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Corpo e dor na clínica contemporânea Márcia Cristina Maesso Daniela Scheinkman Chatelard Andrea Hortélio Fernandes Os modos de expressão, compreensão e percepção da dor mudam em relação à construção cultural e social. O discurso médico-científico vigora na atualidade excluindo a dimensão do corpo em relação à pulsão, desejo e gozo, restringindo à leitura organicista as manifestações de sofrimento e dor psíquicos, oferecendo alívio imediato através das substâncias químicas. A psicanálise orientada pela ética do desejo cria outro espaço para o corpo, sofrimento e dor, ao oferecer a escuta, testemunhando a existência do inconsciente. A dor é uma das coisas mais importantes da minha vida Marguerite Duras A dor acompanha a humanidade em todas as épocas, entretanto os modos de expressão, interpretação e superação da dor se distinguem no decurso da história. As vias criadas Corpo e dor na clínica contemporânea 257

Corpo e Dor Na Clínica Contemporânea V

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Corpo e dor na clínica contemporânea

Márcia Cristina Maesso

Daniela Scheinkman Chatelard

Andrea Hortélio Fernandes

Os modos de expressão, compreensão e percepção da dor mudam em relação à construção

cultural e social. O discurso médico-científico vigora na atualidade excluindo a

dimensão do corpo em relação à pulsão, desejo e gozo, restringindo à leitura organicista

as manifestações de sofrimento e dor psíquicos, oferecendo alívio imediato através das

substâncias químicas. A psicanálise orientada pela ética do desejo cria outro espaço

para o corpo, sofrimento e dor, ao oferecer a escuta, testemunhando a existência do

inconsciente.

A dor é uma das coisas mais importantes da minha vida

Marguerite Duras

A dor acompanha a humanidade em todas as épocas, entretanto os modos de expressão,

interpretação e superação da dor se distinguem no decurso da história. As vias criadas

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pelo ser humano para formular sobre o sofrimento e a dor transitaram principalmente

entre o discurso religioso com a suposição de causas místicas, e o discurso científico

na busca insaciável da localização objetiva do agente causador da dor. A criação artística

pode ser outra via para contornar a dor, contudo despreocupada quanto a conhecê-la

para dominá-la. Vale lembrar, como constatação do irrepresentável posto na arte, a

declaração escrita por Marguerite Duras (1986) sobre seu livro A Dor, de onde destacamos

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a frase posta na epígrafe:

Como pude escrever isto, que ainda não sei nomear e que me assombra quando

releio? Como pude abandonar esse texto durante anos naquela casa de campo

constantemente inundada no inverno? ... . A Dor é uma das coisas mais

importantes de minha vida. A palavra “escrito” não seria adequada.

Encontrei-me diante de páginas metodicamente repletas de uma letra

extraordinariamente regular e calma. Encontrei-me diante de uma fenomenal

desordem do pensamento e do sentimento que não ousei tocar, e comparada

à qual a literatura me envergonha. ( p. 8).

A dor se manifesta lancinante no corpo, mas também é representada nas criações humanas

de diversos modos, na Bíblia e na Mitologia Grega como punição divina, nas

Belas Artes conservando seu aspecto irrepresentável, nas Ciências Biológicas através

das pesquisas semiológicas e pela busca de tratamento a fim de apaziguá-la.

Não se contesta que a experiência da dor seja subjetiva, J. Cambier (2012, p. 399) professor

de clínica neurológica declara que “a dor não é fisicamente mensurável”, pode-se

apenas identificar, através de estimulação elétrica, o limite da dor, que é variável tanto

de um indivíduo para o outro quanto no próprio indivíduo dependendo da situação. Se

a dor varia, dependendo das circunstâncias, no corpo de um mesmo indivíduo, não é

impróprio considerar que há incidência da construção cultural e social sobre a experiência

subjetiva da dor.

O estudo que aborda a história da dor no ocidente demarca que os significados da dor

são distintos em cada época, não são os mesmos em todas as civilizações, mudam de

sentido de acordo com a cultura e a sociedade, transformando a relação do sujeito com

a dor.

A mudança de sentido que uma sociedade dá à dor é menos importante do que as

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consequências desta transformação sobre a experiência individual da dor: os diferentes

significados atribuídos à dor – prova necessária, mal que precede um bem maior,

castigo, fatalidade – modificam a percepção que o sujeito tem da dor, aumentando ou

diminuindo sua capacidade de resistência ... (Rey, 2012, p. 20).

Isso posto, é preciso considerar que na contemporaneidade evidencia-se a potência do

discurso médico-científico sustentado pela sofisticação tecnológica das máquinas e pelo

avanço das pesquisas na produção de fármacos que auxiliam no diagnóstico e tratamento

da dor, seja ela física ou psíquica.

No colóquio sobre O lugar da psicanálise na medicina, Lacan (1966/2001) mencionou

que a definição do homem moderno é determinada pelo mundo científico em torno

dos ideais da saúde, gerando na sociedade uma demanda específica de saúde e cura, ao

mesmo tempo depositando nas mãos do médico - a quem todos vêm requerer o “ticket

de benefício” com resultado imediato - o poder que advém dos produtos tecnológicos e

químicos de última geração.

A leitura de Birman (2001) acerca do mal-estar na contemporaneidade coaduna com

esse apontamento de Lacan, ao considerar os fundamentos da cultura do narcisismo e

da sociedade do espetáculo desenvolvidos respectivamente por Lasch e Debord29, como

intervenientes no direcionamento biológico das pesquisas psicopatológicas atuais, largamente

pautadas nos conhecimentos genéticos, bioquímicos e psicofarmacológicos. O

discurso psicopatológico atual, na concepção de Birman, está submetido ao ideal social

de sanidade que preconiza o evitamento da dor e do sofrimento psíquico ao ser fomentado

pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo que propõem o gozo

imediato do tempo presente, resultado da exaltação do eu na cena social e da perda das

relações do sujeito com o tempo e a história. Birman (p. 242) indica as consequências

para o sujeito do que ele nomeia como “subversão da tradição ética do Ocidente” pelo

ideal cientificista, mencionando a mudança significativa na subjetivação das paixões

(pathos) a partir do uso eloquente das drogas (lícitas ou ilícitas) contra a angústia e a

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depressão, afirmando o aumento vertiginoso da medicalização psicofarmacológica sobre o

sofrimento psíquico em relação à diminuição do limiar suportável dos sofrimentos nos

indivíduos que, por sua vez, passam a demandar as substâncias miraculosas.

29 O autor se refere às seguintes publicações: Lasch, C. The culture of narcissism. Nova York: Warner

Barnes Books, 1979 e Debord, G. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.

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Outro apontamento importante realizado por Birman (p. 58) acerca do mal-estar na

contemporaneidade articulado à pregnância do discurso médico-científico concerne à

“colonização do corpo-organismo pela medicina”. Com isso dividem-se as competências

teórico-clínicas e o ser humano, constituindo como domínio do território médico o saber

sobre o organismo que é separado do psiquismo, esse último devendo ser tratado e

investigado no território da psicologia e ou da psicanálise. Nessa correlação o organismo

sem subjetividade pertence ao conjunto da clínica médica, assim como o psiquismo

sem organismo pertence ao conjunto composto pela clínica psicológica. O resultado

dessa operação é a subtração, ou exclusão do corpo que foi concebido por Freud com

marcado pela pulsão e pelo desejo.

Lacan (1966/2001, p. 32) situou os fenômenos corporais que são considerados e nomeados

pela medicina como psicossomáticos, a partir de uma falha “epistemo-somática”.

Ao criar esse termo “epistemo-somática” e colocá-lo articulado a uma falha, Lacan alude

ao fracasso do progresso científico em relação ao saber sobre o corpo, na medida em

que exclui a dimensão do gozo dessa relação. A falha epistemo-somática refere-se ao

alcance impossível do conhecimento absoluto, almejado pelo ideal científico, acerca dos

enigmas apresentados pelo corpo. Ideal de conhecimento cujo ponto de partida para

conquistá-lo se localiza na criação de “uma língua bem feita” que permita a realização

de uma “leitura exaustiva sem obscuridade ou resíduo”, na qual “todas as manifestações

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patológicas falariam uma linguagem clara e ordenada” capaz de transformar todos os

sintomas em signos (Foucault, 1998, p.107).

A psicanálise não nega nem exclui que o corpo goza e fala através dos sintomas, por

situar-se em referência a um discurso que difere fundamentalmente da ordem do discurso

científico em diversos aspectos, dos quais se destaca o tratamento das questões do

corpo em relação ao inconsciente. Do corpo-organismo concebido pela ciência médica,

exclui-se a dimensão do gozo, do que o corpo diz-fazendo-menção ao gozo suposto e

perdido, por meio de fenômenos somáticos como Lacan sinalizou. Numa metáfora que

alude à primazia do organismo sobre o corpo proposto na ciência atual, podemos dizer

que o ato médico que rapidamente diagnostica e medica, funciona como um ato antropofágico

que engole a dimensão do corpo, portanto do humano, em nome da ciência, e

empanturra o organismo com as substâncias químicas que a indústria oferece.

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Tomando esse panorama parcial acerca do mal-estar na contemporaneidade, articulado

à pregnância do discurso médico-científico colocado na função de dominar o sofrimento

que aflige o ser humano, concernente às paixões (pathos), na forma das inibições,

sintomas e angústia, e estendendo a questão à manifestação da dor no corpo, é possível

conceber que a consequência da rápida resposta à demanda por medicamentos é proporcional

à diminuição do limiar suportável da dor.

No campo da psicanálise a questão que envolve corpo, sofrimento e dor, se apresenta

desde seus primórdios, quando Freud passou a investigar a demonstração do sintoma

histérico no corpo em relação à sexualidade, distinguindo-o da leitura proposta pela

neurologia, na qual o sintoma tinha significado preconcebido em referência à estrutura

e ao funcionamento orgânico. A separação de Freud da concepção médica do sintoma

aumentou na medida em que avançou em seu percurso, propondo um novo método de

investigação, orientado pelo material inconsciente em formação na fala, no sonho, no

chiste, no lapso, no ato falho e também no sintoma.

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Freud atribuía a Charcot o mérito de ter livrado a histeria do descrédito dos médicos que

a interpretavam como uma simulação, um teatro, mas, ele rompeu com seu mestre, a

respeito da qualificação de “lesão funcional” dada ao sintoma histérico e também com a

consideração do caráter generalizado do trauma, que passou a ser abordado, por ele, em

sua particularidade. A lesão funcional histérica remete ao que não pode ser capturado

ao nível do olhar na necropsia, consistindo em uma lesão suposta, mas essa qualificação

garante que o método de diagnóstico médico, que transforma o sintoma em signo

patognomônico, subsista. E ao fazer do sintoma um signo representativo da doença,

descarta-se sua dimensão significante (Allouch, 1995). Nesse ponto, localiza-se a ruptura

fundamental realizada por Freud com o campo médico para constituir o campo

psicanalítico referido ao saber inconsciente.

A interpretação freudiana da lesão funcional como lesão devida à ligação da representação

a uma outra representação implica que a passagem ao sintoma da primeira está

referida a esta própria ligação e não a um processo de incubação, de extensão, da única

representação que tem em conta a teoria do trauma de Charcot. O acréscimo, por Freud,

dessa outra representação traumática é decisivo, pois ela escapa assim ao saber, tanto

ao do médico quanto ao da histérica. ... O saber do trauma elaborado por Freud dá lugar

à fala da histérica, pois ele espera desta fala, em conformidade com a estrutura de seu

discurso, a produção de um saber não sabido (Allouch, 1995, p. 49).

Nessa formulação, Allouch aponta que Freud deslocou o sintoma da posição de signo

tal qual era concebido, colocando-o na posição de significante, no sentido lacaniano do

termo, ao concebê-lo como representação que alude ao irrepresentável. O sintoma histérico,

na psicanálise, é um significante, que representa o sujeito para outro significante,

o do trauma, que por sua vez escapa à representação absoluta e cristalizada. Para isso,

Freud também teve de se deslocar da posição do cientista em relação ao saber, passando

da referência ao saber constituído na linguagem especializada à referência ao saber inconsciente

constituído pela fala dos seus pacientes.

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A criação de Freud do conceito de trieb, traduzido por pulsão, cedeu devido lugar ao

corpo humano rompendo com a dicotomia entre corpo e alma. Com a escolha do termo

trieb Freud (1915/2004) formulou sobre a força constante que emana do corpo, fonte

pulsional, em direção à satisfação que só pode ser parcial, por apenas contornar o objeto

(que tampouco é definido e existente) para satisfazer a excitação corporal.

Hanns (2004) nos esclarece que o termo trieb no alemão e também em Freud se refere

às determinações da natureza incluindo as determinações psíquicas, enquanto instinkt

enfatiza a articulação entre o biológico e o fisiológico como determinantes.

Mas, é na posição entre o psíquico e o somático, na qual Freud (1915/2004) concebe o

conceito de pulsão (trieb) como conceito-limite, que ele situa o corpo num lugar propriamente

humano, dependente da relação com o Outro e com linguagem.

Se abordamos agora a vida psíquica do ponto de vista biológico, a “pulsão” nos aparecerá

como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico

[itálico nosso] dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique,

como uma medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de

sua relação com o corpo. ( p. 148).

O destaque sobre “representante psíquico” refere-se a sinalizar que Freud trata da própria

inscrição do corpo na linguagem ao definir desse modo o conceito de pulsão. Nas

notas sobre a tradução dos termos utilizados por Freud no artigo Pulsões e destinos das

pulsões, Hanns atenta para o uso do termo representante, em alemão repräsentant, sig262

nificando “estar no lugar de”, “substituto”, alertando que frequentemente chega a ser

confundido nos idiomas latinos por “representação”, “figuração”, “apresentação”. Para

“figuração” ou “apresentação”, utiliza-se a palavra vorstellung em alemão.

A pulsão situada como representante entre o corpo e o psíquico, como o que está no

lugar de outra coisa, “não habita lugar nenhum” como Garcia-Roza considerou, mas

sendo uma potência indeterminada só pode ter alguma determinação ao ser capturada

pelo aparelho psíquico formulado por Freud, ou pela rede de significantes concebida

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por Lacan. Na leitura de Garcia-Roza (1995), entre pulsão e linguagem se estabelece

uma relação dialética:

O aparato anímico pode ser visto como um aparato de captura. Sua função é capturar as

intensidades pulsionais dispersas e organizá-las. Mas este aparato de captura é também

um aparato de linguagem. Mesmo quando o concebemos como um aparato de memória,

essa memória é memória de uma escritura psíquica. É, portanto a linguagem o

princípio estruturante das pulsões. No entanto, se é a linguagem que confere às pulsões

uma organização, são as pulsões que conferem à escritura psíquica sua intensidade. (p.

73).

Com a criação freudiana do conceito de pulsão amplia-se o campo de investigação sobre

o corpo o sofrimento e a dor, incluindo a problemática questão da sexualidade.

Freud já apontava para os conflitos que enfrentamos atualmente na época em que

escreveu O mal estar na civilização (1929-1930/1990), formulando que o humano,

diante do desamparo e do sofrimento que vêm de nosso corpo, do mundo externo e

da relação com o semelhante, construiu formas sofisticadas para amortecer e evitar as

preocupações. Por meio de substâncias químicas, da ciência e da religião, a humanidade

encontrou uma saída que, por um lado esboça proteção e alívio da dor, mas por

outro produz alienação. Nesse texto, Freud indica que o homem se tornou parecido a

um “Deus de prótese”, nomeação que ganha maior consistência nos tempos atuais,

em função do avanço da ciência, da tecnologia e da importância dada a essas esferas

da criação humana na resolução de problemas.

Freud (1908/1990) investigou, por exigência de seu trabalho clínico, a importância do

contexto social na constituição do sintoma de seus pacientes, chegando a formular a

problemática dicotomia entre sexualidade e civilização na formação do sintoma neurótico,

defendendo de forma otimista em seu texto Moral sexual civilizada e doença nervosa

moderna que uma reforma na moral social poderia evitar a neurose dos sujeitos.

Em função da continuidade de sua investigação imposta pela clínica, Freud constatou

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que a responsabilidade pelo sintoma dos sujeitos não era da civilização, mas que os

próprios sujeitos manifestavam repulsa à sexualidade, e que a sexualidade era fonte

de perturbação para o humano. Sendo assim, ele formulou em Totem e Tabu (Freud,

1912-1913/1990), ao investigar sobre a origem da civilização, que os homens criaram as

instituições sociais, pautadas na moral e nos tabus, organizadas em torno da culpa que

se aloja na realidade psíquica. Essa culpa é decorrente de um ato mítico do assassinato

do pai.

A ficção, criada por Freud, em Totem e Tabu, trata da existência de um pai, único a gozar

de todas as mulheres do grupo, que proibia aos outros membros pertencentes ao grupo,

que eram seus filhos, a possibilidade de ter acesso a essas mulheres, e por esse motivo

o pai foi assassinado e devorado pelos próprios filhos. Com o pai morto, os irmãos

tiveram de instaurar e se submeter à lei contra o incesto, renunciando às mulheres

desejadas para não se tornarem rivais destinados à destruição mútua e para manter a

organização do grupo.

Freud afirma que o ato que correspondeu ao assassinato do pai marcou o princípio da

civilização, pois, consequentemente levou à instauração da lei da interdição do incesto e

à criação da religião totêmica que é também um sistema social.

O homem criou a civilização para encaminhar seus conflitos subjetivos relativos ao desamparo,

às instituições humanas se articulam a expressão subjetiva dos indivíduos. A

formulação de Fuks (2003) é precisa para exprimir essa articulação:

Freud designa como cultura a interioridade de uma situação individual – manifesta nos

impulsos que vêm desde dentro do sujeito – e a exterioridade de um código universal,

subjacente aos processos de subjetivação e aos regulamentos das ações do sujeito com o

outro. (p. 10).

As construções culturais e sociais trazem a marca do desamparo humano em relação a um

gozo impossível de obter, similar ao gozo do pai da horda da ficção freudiana, a partir da

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qual Freud demonstrou o quanto o ser humano está envolvido na busca interminável

pela obtenção de uma satisfação absoluta, mas, por ser essa satisfação inalcançável, é

preciso inventar sua proibição. A produção e uso indiscriminado das substâncias químicas

para aliviar o sofrimento e dor psíquicos, revelam uma tentativa de restituição

desse gozo, entretanto, essa tentativa não é completamente bem sucedida em razão de

um resto que concerne à pulsão, força constante e indeterminada que emana do corpo.

A partir desse resto, a articulação entre corpo, sofrimento e dor é tratada na psicanálise

diferentemente do corpo-organismo da medicina. Desde os conceitos de trauma e de

trieb cunhados por Freud para considerar o desamparo e o sofrimento humano diante

da sexualidade, até as construções de Lacan acerca do objeto a , como causa do desejo

ou mais-de-gozar, para formular sobre o desejo e o gozo, a escritura lacaniana do nó

borromeano, demarcando a incidência do real, simbólico e imaginário articulados e

delimitando distintas modalidades de gozo, são ferramentas que permitem conceber

o corpo e o sofrimento que nele se manifesta, a partir da ética orientada pelo real que

escapa ao ideal do conhecimento científico.

Lacan (1959-1960/1997) retira a discussão sobre a ética que comumente incide sobre o

domínio do ideal, passando a orientar-se na relação do homem ao real. A ética regula

a práxis da psicanálise ressaltando a responsabilidade sobre o sintoma e o desejo, principalmente

quanto à posição ocupada pelo analista na relação transferencial, na qual

geralmente é alvo do endereçamento da demanda de felicidade almejada pelo encontro

ao Bem Supremo. As construções culturais e imperativos sociais de cada época podem

funcionar como determinantes do ideal de felicidade. Entretanto, pela própria posição

do analista, de escutar o que nessa demanda se articula, o percurso da análise permite

o contato com a problemática do desejo, que é singular, e nisso consiste sua dimensão

trágica.

Lacan (1959-1960/1997) encontrou na tragédia de Sófocles, Antígona, argumentos fecundos

para abordar a questão do desejo e da ética psicanalítica.

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Representada pela primeira vez em 441 a.C., a tragédia se passa em Tebas e inicia-se

a partir da morte dos dois irmãos de Antígona (filha da união incestuosa de Édipo e

Jocasta), em combate mútuo. Eteócles, por defender a cidade, foi enterrado com todas

as honras, enquanto Polinices, que foi tomado como traidor da cidade, seria punido,

Corpo e dor na clínica contemporânea 265

segundo a determinação do rei Creonte, deixado insepulto para ser devorado pelas aves

carniceiras. Antígona, ciente do decreto do rei, decide enterrar seu irmão Polinices com

todos os rituais necessários para encaminhá-lo ao além, mesmo sabendo da punição (de

morte) prevista para quem desobedecesse ao edito do rei. Flagrada nesse ato junto ao cadáver

do irmão, os guardas a levaram a Creonte, que se viu obrigado a sentenciar sua morte.

Hemon, filho de Creonte e noivo de Antígona, admirado pela atitude da amada, tenta

argumentar, em vão, com o pai, para de demovê-lo da sentença de morte de Antígona.

Mas Creonte determina que Antígona seja enterrada viva. O oráculo Tirésias, que era

cego, anteviu desgraças para Creonte se ele mantivesse a condenação de Antígona, desagradando

aos deuses. Relutante, quando Creonte volta atrás em sua decisão de punir

Antígona, era tarde demais. Enterrada viva, não pertencendo nem aos vivos nem aos

mortos, ela se enforcou, deixando Hemon, seu futuro marido, em desespero. Responsabilizando

o pai pelo suicídio da amada, Hemon tenta matá-lo e como não consegue,

mata-se em seguida. Eurídice, mãe de Hemon e mulher de Creonte, ao saber dos acontecimentos,

também se suicida. Creonte lamenta a tragédia (Kury, 2004).

Lacan (1959-1960/1997) destaca que a recusa de Antígona, a curvar-se ao edito do rei

aponta que a lei é “não toda”, que há leis não escritas, de modo que, em relação ao desejo,

cabe a cada um de modo próprio escrever. A lei escrita por Creonte está pautada em

“querer fazer o bem de todos” para honrar aqueles que defenderam Tebas e preservá-

-la dos inimigos, mas ele comete um erro de julgamento. Ao impor sua visão a partir

de um valor de consistência moral, fica cego para o desejo. Antígona segue na direção

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contrária a de Creonte, ela “não cede de seu desejo”, mesmo que tenha que atravessar o

“temor e a piedade” para responsabilizar-se e pagar por ele.

A ética de Antígona se aproxima do compromisso ético do analista em relação à falta-a-

-ser, o trágico na psicanálise relaciona-se à sua ética, que consiste na responsabilização

de cada um na direção de sustentar-se na trilha do desejo próprio, implicando em suportar

o sofrimento que corresponde ao desamparo e à falta de um gozo absoluto.

Atualmente a manifestação de dores difusas no corpo, sem lesão correspondente ou

evidências de um agente causador, é nomeada como fibromialgia, de acordo com o

diagnóstico médico que é estritamente clínico. O tratamento recomendado pela Sociedade

Brasileira de Reumatologia (Hermann et al., 2010) associa recursos farmacológicos

destacando o uso de antidepressivos, relaxantes musculares, analgésicos simples e

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opiáceos leves, aos exercícios físicos variados, como os aeróbicos, de alongamento e de

fortalecimento muscular, e às terapias, como fisioterapia, terapia cognitivo-comportamental

e suporte psicoterápico.

Considerando que o tratamento da fibromialgia gira em torno de aliviar a dor que insiste

apesar dele, sendo por isso concebida como síndrome crônica, formulamos uma

questão: A fibromialgia poderia ser tomada como um testemunho da falha epistemo-

-somática (Lacan, 1966/2001), como uma declaração do fracasso científico ao excluir a

dimensão do gozo e do corpo?

Cabe à psicanálise não recuar diante dessa discussão acerca do sofrimento e dor, para

propor outra psicopatologia referida à ética que inclui o corpo em relação ao desejo e

gozo, e outro tratamento oferecendo a escuta que remete à existência do inconsciente.

Referências

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