Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
DOURADOS – 2019
SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT
Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)
DOURADOS – 2019
SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT
Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD) requisito para a
qualificação na obtenção do título de Doutora
em História.
Área de concentração: História, Região e
Identidades. Orientador:
Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi.
SILVANA APARECIDA DA SILVA ZANCHETT
Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras
no Pantanal Sul-Mato-Grossense - (1980-2017)
TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA –
PPGH/UFGD
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Losandro Antonio Tedeschi (Dr., UFGD): ________________________________________
1º Examinador Externo:
Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão (Dra., UFRPE): __________________________
2º Examinador Externo:
Marisa de Fátima Lomba de Farias (Dra., UFGD): __________________________________
3º Examinador Interno:
Ana Maria Colling (Dra., UFGD): _______________________________________________
4º Examinador Interno:
Eudes Fernando Leite (Dr., UFGD) : _____________________________________________
Suplente Interno :
Fernando Perli (Dr., UFGD): ___________________________________________________
Suplente Externo:
Prof. Dr. Jiani Fernando Langaro (Dr., UFG): ______________________________________
(...) as mulheres, em primeiro lugar, são vistas, descritas e representadas
pelos homens. Trata-se em seguida de imaginar as mulheres através desses
depoimentos. Isso implica um trabalho de análise crítica e desconstrução da
linguagem e das imagens, que faz parte dos métodos atuais de decifração
dos discursos e dos quais a história das mulheres é parte integrante no mais
alto ponto. Ela serve-se dos mais contemporâneos materiais e instrumentos
para atender a suas próprias necessidades. (Michele Perrot)
Agradecimentos
O primeiro agradecimento é para as mulheres pescadoras, sem elas esse trabalho não
existira, além de cederem um pouco do seu tempo para contribuírem com essa pesquisa,
abriram suas casas, e seus sentimentos íntimos, me proporcionando um grande aprendizado.
Muita gratidão, Marlene, Ivanil, Orlinda, Zeferina, Shirlei, Marilza, Heléia e Vânia, pelos
ricos e valorosos conhecimentos.
Agradeço ao querido Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi orientador e amigo, pelo
muito que aprendi trilhando o caminho da pesquisa, sempre muito prestativo, atencioso,
compreensível e comprometido. Muito obrigada por suas leituras e seus direcionamentos, um
grande mestre a ser seguido.
Um agradecimento especial a Prof. Dra. Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão,
que me proporcionou ricas contribuições e reflexões a partir dos seus estudos realizados no
Nordeste brasileiro. Obrigada pela disponibilidade de estar presente em minha defesa, ao ter
que realizar uma longa viagem, assim, espero que a leitura da tese lhe proporcione
conhecimentos das mulheres pescadoras dos Pantanais Sul Mato Grossense.
Um agradecimento especial à querida e especial Prof. Dra. Ana Maria Colling, além
de amiga, uma professora instigante, que amei desde o dia em que a conheci, sempre muito
comprometida com seus ensinamentos e direcionamentos. Sou muito grata ao professor
Losandro por ter proporcionado essa aproximação que só enriqueceu o PPGH e as pesquisas
sobre Mulheres, Gênero e Resistências em nosso Estado.
À prof. Dra. Marisa de Fátima Lomba de Farias, professora comprometida e carinhosa,
na mesma dosagem, um exemplo a ser seguido por seu trabalho sério e por sua leitura
criteriosa, oportunizou ricos direcionamentos após a qualificação.
Ao Prof. Dr. Eudes Fernando Leite, pelas primeiras orientações, ainda no mestrado,
gratidão pelas sugestões de leituras e direcionamentos, além de um valoroso mestre, criterioso
e preocupado com a escrita da história, é um amigo especial, que me ensinou muito ao longo
dos sete anos na UFGD.
Aos professores da FCH/UFGD, que me acolheram e sempre estiveram prontos para
auxiliar e orientar na minha formação acadêmica. Ao querido Walace, obrigada pelo auxílio
sempre prestativo e atencioso.
Gostaria de agradecer a Deus por me guiar, iluminar e me dar tranquilidade para seguir
em frente com os meus objetivos e não desanimar com as dificuldades. Agradeço pela
oportunidade de ter uma família linda. Em especial ao meu companheiro Wanderson, gratidão
pela compreensão, auxílio, carinho, paciência e amor. Gratidão por ser o maior incentivador
dos meus estudos. Aos meus filhos, Andressa e Wanderson Júnior, obrigada por ser os
melhores filhos que eu poderia ter tido, amo muito vocês.
Ao meu sogro Messias que sempre me auxiliou, tirando-me dúvidas e de ter me
indicando os entrevistados. Em especial a minha sogra Geralda pelo carinho de mãe dedicado
a mim, e nos cuidados com os netos em minhas viagens de estudos, congressos enfim. A tia
Elizena tão carinhosa e atenciosa por apoio e estímulo nesta longa trajetória acadêmica, foi a
primeira incentivadora a formação acadêmica.
Ao meu pai Valdomiro e a minha mãe Neiva [in memória] que sempre me ensinaram
os caminhos do bem, os quais me incentivaram o estudo, mesmo depois de casada. Agradeço
por ter me presenteado com irmãos maravilhosos, João Batista, Luiz Fernando, Ailson e
Rosangela, que tem em mim o exemplo. Não poderia deixar de agradecer cada um da minha
família, cunhadas, cunhados e sobrinhos, meu muito obrigado pela força e compreensão ao
longo da minha jornada.
Em especial, agradeço ao meu primeiro orientador, ainda na graduação Jiani Fernando
Langaro, pelo carinho e dedicação, pois, ensinou-me os primeiros caminhos para uma
pesquisa série e compromissada, sendo um profissional, um amigo, e principalmente um
grande mestre. Gratidão por ter estado sempre muito presente em minha vida acadêmica.
Em especial também a minha grande amiga/irmã/comadre Eliene Dias pelo carinho,
amizade e atenção, puxões de orelha. Sempre muito presentes em vários momentos da minha
vida, me auxiliando nas angústias e incertezas. Gratidão às amigas dos cafés e das leituras,
Marta e Geovana, vocês são inspirações em minha vida.
A turma do mestrado e doutorado 2015, foi muito rico estar com vocês durante um ano
de aulas em especial ao amigo Erasmo, companheiro de viagem até Dourados, que me
proporcionou momentos de aprendizados e reflexões.
RESUMO
Esta tese problematizou as especificidades das relações de gênero, no campo do trabalho da
pesca profissional artesanal. Assim, historiou narrativas orais construídas no mundo ribeirinho
e pantaneiro, evidenciou histórias de vida de mulheres que pescam profissionalmente. Assim,
possibilitou publicizar os múltiplos sentidos e significados que a vida ribeirinha lhes
proporcionou ao longo de suas trajetórias de vida e ao levantar cada conquista por ser mulher
e pescadora. Ainda, analisa suas expectativas, lutas e resistências nas relações tecidas com o
rio e a cidade, bem como a construção de modos de vida singulares expressos nas suas
vivências laborais e comunitárias. A presente pesquisa evidencia memórias cotidianas de
mulheres pescadoras que vivenciam e compartilham práticas e viveres às margens de um rio.
Destaca ainda, narrativas carregadas de significados de existências ora vividos, ora
imaginados e que careciam de uma análise histórica. A pesquisa utilizou metodologicamente
da história oral, em diálogo com fotografias, jornais e ainda com a historiografia relacionadas
ao tema mulheres pescadoras em outras regiões do país. Assim, a produção de entrevistas
gravadasrealizadas nos municípios de Aquidauana, Miranda, Corumbá e Coxim, retrata
experiências de mulheres que se apresentam num contexto de histórias de vida, de superação e
de lutas, que integram um ambiente predominantemente masculino. Além de situar no campo
da reflexão das teorias feministas, de gênero, da memória, das identidades, das
representações, apresentamos os significados que se (re)constroem ao longo de suas vidas. A
tese é o estudo da invisibilidade da mulher trabalhadora da pesca artesanal nos Pantanais. Trás
elementos das desigualdades sociais intrínsecas ao universo pesqueiro, historia memórias
silenciadas no universo pesqueiro. Destaca momentos de encontros e desencontros na maneira
de ser mulher e pescadora no Pantanal, localizada no Estado de Mato Grosso do Sul.
Palavras-Chave: Pescadoras, Pantanal, Meio Ambiente, Empoderamentos, Memórias, Oralidades.
ABSTRACT
This thesis has discussed the specificities in gender relations, at the working environment of
craft professional fishing. That being, oral narratives built within the riverine and pantanal
people were turned into stories, evidenced professional fisher women's life stories. So, it
enabled to publish all the multiple meanings and senses that riverine life had provided them
along their life trajectories and every achievement for being a woman and a fisher. Yet, it
analyzed their expectations, struggles and endurance in the relations with the river and the
town, as well as the building of their singular life manners expressed in their labor and
community experiences. The present research evidences every day memories from fisher
women who live and share experiences and their lives at the river side. It also points out,
narratives full of existential meaning some times lived, some times imagined that needed a
historical analysis. The research has utilized oral storytelling as a methodology, dialoguing
with photos, newspapers and also with the historyography of fisher women theme related in
other parts of the country. That being, the production of recorded interviews in the cities of
Aquidauana, Miranda, Corumbá and Coxim portrays experiences of women who present
themselves in a context of life stories, overcoming and struggling, who are a part of a
predominant male environment. Besides staying in the field of reflexión of feminist theories,
gender, memory, identities, representation, we have presented the meanings that are (re)built
throughout their lives. The thesis is the study of the invisibility of craft fisher women in the
Pantanals. It brings elements of intrinsic social disparity within the fishing universe, history
silenced memories in the fishing universe. It highlights meetings and mismatch moments on
the manner of being a woman and a fisher in the Pantanal, located in the State of Mato Grosso
do Sul.
Keywords: Fisher women, Pantanal, Environment, Empowered, Memories, Oralities.
LISTA DE SIGLAS
COINTA – Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia
Hidrográfica do Taquari
CPP – Comissão Pastoral dos Pescadores
DERSUL – Departamento de Estradas de Rodagem de Mato Grosso do Sul.
ECOA – Ecologia e Ação
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul
EMBRAPA PANTANAL – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
FEMA – Fundação Estadual do Meio Ambiente.
IBAMA – O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
INAMB – Instituto de Controle e Preservação Ambiental (MT-MS) - (Extinto).
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA – O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MPP – Movimento de Pescadores e Pescadoras
PESCART – Plano de Assistência à Pesca Artesanal
PMA – Polícia Militar Ambiental
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar
SCPESCA/MS – Sistema de Controle da Pesca de Mato Grosso do Sul
SEAP – Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca
SEMA/MS – Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul
SEMACT/MS – Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Cultura e Turismo de Mato Grosso
do Sul
SUDEPE – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca
SUDEPE/COREG – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca-corregedoria.
Lista de Imagens
IMAGEM 1 – Localização geográfica das cidades de Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana
e Porto Murtinho...................................................................................................................... 23
IMAGEM 2 – Mapa do bioma do Pantanal............................................................................. 24
IMAGEM 3: Tamanhos de anzol............................................................................................ 40
IMAGEM 4: Fotografia digitalizada: demonstra a pescadora Marlene remando com sua canoa
no rio Taquari. ......................................................................................................................... 45
IMAGEM 5: Pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira...................................................50
IMAGEM 6: Pescadora Shirlei.................................................................................................54
Imagem 7: Casa da Senhora Marilza em Porto Esperança.......................................................64
IMAGEM 8: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul............................................................ 65
IMAGEM 9: Pescadora Marilza exibe os troféus conquistados nas Regatas de Canoinhas
.................................................................................................................................................. 66
IMAGEM 10: Pescadora Marilza comemorando a vitória da 20ª edição da Regata de
Canoinhas ................................................................................................................................ 67
IMAGEM 11: Bordado a mão, presenteado à senhora Vânia, após ter comprado a lancha
pesqueira no ano de 2016......................................................................................................71
Imagem 12: Lancha pesqueira Conceissão Aparecida…………………………..………........72
IMAGEM 13: Reunião entre Presidentes de Colônias de Pesca do Estado de Mato Grosso do
Sul e a Secretaria de Produção Familiar (Sepaf), Agência de Desenvolvimento Agrário e
Extensão Rural (Agraer) e Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal
(Iagro)........................................................................................................................................75
IMAGEM 14: Shirlei com sua filha indo pescar no rio Salobra ........................................... 89
IMAGEM 15: Fotografia da Shirlei em um rico dia de pescaria ........................................... 95
IMAGEM 16: Charge Zumbi: contra as medidas que ameaçam os direitos e modo de vida dos
pescadores artesanais brasileiros. ........................................................................................ 119
IMAGEM 17: Folder da Campanha Nacional pela Regularização do Território
Pesqueiro.............................................................................................................................. 120
IMAGEM 18: Folder das pescadoras contra o anúncio do Decreto nº 8435......................... 121
IMAGEM 19: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS) ...................... 130
IMAGEM 20: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)...................... 131
IMAGEM 21: Votação da aprovação da primeira diretoria da associação de Porto Esperança
ocorrida no dia 11/10/2016................................................................................................... 135
IMAGEM 22: Presidenta da Colônia de Pescadores Heléia ................................................ 138
IMAGEM 23: Fotografia da pescadora Vânia (2017) ........................................................ 144
IMAGEM 24: Baía Vermelha. ECOA .................................................................................145
IMAGEM 25: Catadoras de Iscas..........................................................................................149
IMAGEM 26: Vânia Sato pilotando seu barco ......................................................................155
IMAGEM 27: Vestimenta para pescadora de iscas .............................................................. 157
IMAGEM 28: Fotografia de Orlinda .................................................................................... 166
IMAGEM 29: Orlinda e seu pescado..................................................................................... 169
IMAGEM 30: Canoa da senhora Marilza .............................................................................177
IMAGEM 31: Pescadora Zeferina ........................................................................................ 184
IMAGEM 32: Escola Polo São Lourenço no período de vazante .........................................188
IMAGEM 33: Escola Polo São Lourenço no período de vazante......................................... 188
IMAGEM 34: Pescadora Ivanil (2013)................................................................................. 191
Tabelas
Tabela 1: Número de pescadoras cadastradas no Estado MS.................................................139
Tabela 2: Organização da cadeia produtiva da pesca ............................................................ 206
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 14
CAPÍTULO I – MULHERES PESCADORAS: CORPOS QUE PESCAM .......................... 36
1.1 – Sra. Marlene: "Aqui a natureza é curadinha" ................................................................ 38
1.2 – Sra. Ivanil: "Sou livre e desimpedida"............................................................................ 47
1.3 – Shirlei Aparecida: “Eu sou guia de pesca” .................................................................... 51
1.4 – Sra. Orlinda Vitoria: “pescadora é aquela que está no rio pescando”............................ 55
1.5 – Sra. Zeferina Marques: "Eu sou uma mulher que homem não manda".......................... 57
1.6 – Sra. Marilza: A oralidade de uma campeã ..................................................................... 62
1.7 – Sra. Vânia: "eu sou feliz, não é todo mundo, acho que é porque fui criada na beira do
rio" .......................................................................................................................................... 69
1.8 – Sra. Heléia: Liderança e Representatividade ................................................................. 73
CAPÍTULO II – ARTE PESQUEIRA: CONQUISTAS, RESISTÊNCIAS E LUTAS
COTIDIANAS ....................................................................................................................... 81
2.1 – Lar e Pesca: Relações de trabalho ................................................................................. 83
2.2 – Colônia de Pesca: Representação Política da categoria ................................................ 97
2.3 – Legislação: o (des)caminhar dos direitos ......................................................................113
CAPÍTULO III – PANTANAL: MULHERES PESCADORAS DOS PANTANAIS ......... 124
3.1 – A representação Feminina: Uma luta por direitos às pescadoras ................................ 126
3.2 – Resistências: Caminhos da organização representativa ............................................... 133
3.3 – A Pescaria: Adversidades e a Natureza ........................................................................ 143
3.4 – Beleza e saúde: Os (des)cuidados com preventivos ..................................................... 153
CAPÍTULO VI - MULHERES PESCADORAS: PARA ALÉM DE UMA HISTÓRIA
FEMININA NA PESCA ....................................................................................................... 161
4.1 – O Rio e a Casa: O Trabalho Profissional Artesanal ..................................................... 162
4.2 – Pantanal: O cotidiano das pescadoras .......................................................................... 176
4.3 – A vida de pescadora: Caminhos futuros ...................................................................... 191
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 199
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 210
14
Apresentação
A tese Corpos Femininos: Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras
no Pantanal Sul-Mato-Grossense (1980-2017) emerge enquanto tema de pesquisa ao final do
mestrado (2013). Na dissertação de mestrado1 as mulheres Ivanil (2013) e Marlene (2013)
surgem de uma maneira peculiar e me fazem refletir onde estariam as mulheres no cenário da
pesca, pensando no âmbito regional, fato esse me fez projetar um novo olhar para as mulheres
que cotidianamente exercem a atividade pesqueira como profissão.
A inserção da mulher no mercado de trabalho trouxe novas questões e reflexões
sobre a produção do espaço, conforme se verifica com o trabalho da atividade pesqueira, lugar
tradicionalmente masculino e atravessado pela cultura patriarcal cujo espaço é (re)construído
com a participação das mulheres e o reconhecimento de suas atividades como pescadoras.
Apesar das significativas lutas e conquistas das mulheres, há, ainda, determinados trabalhos
envolvidos por tradições patriarcais que impõem severos obstáculos à entrada das mulheres e
à invisibilidade de suas figuras. Na pesca, é notório o pouco reconhecimento da sociedade de
uma forma geral, e da própria categoria de trabalhadoras em relação à arte pesqueira
desenvolvida por mulheres, como será discutido ao longo deste trabalho.
Como se sabe, a Constituição Brasileira de 1988 representa um marco legal no
acesso aos direitos trabalhistas entre homens e mulheres, contudo ainda presenciamos
diferenciações de salário e de acesso em atividades remuneradas marcadas, sobretudo, pelas
categorias de gênero, raça e lugar. Segundo o IPEA, “além de estarem menos presentes do
que os homens no mercado de trabalho, as mulheres ocupam espaços diferenciados e estão
sobrerrepresentadas nos trabalhos precários”2. Isto também acontece na cadeia produtiva da
pesca, cuja divisão social do trabalho estabelece às mulheres atividades de menor
remuneração e prestígio social, contribuindo para a sua invisibilidade e sobrecarga laboral.
1 A dissertação de mestrado intitulada Histórias, Memórias, significações e apropriações: Pescadores
Profissionais de Coxim/MS (1967 a 2012), defendida no ano de 2013 problematizou as narrativas e trajetórias de
vida de pescadores e pescadoras do município de Coxim/MS. A pesquisa abordou aspectos de suas vivências e
das significações construídas no exercício da profissão, ou seja, os embates cotidianos que cada sujeito
experiencia em suas histórias de vida, com seus valores, apropriações, particularidades e identidades. Trás uma
análise de histórias de vida que proporcionou verificar que estes trabalhadores, ao longo dos anos, vivenciaram
transformações e mudanças na maneira de exercer o ofício e de manejar o pescado. A presente dissertação foi
pulicada em livro no ano de 2015 pela editora Life. 2 Cf.: BRASIL. Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ... [et al.].
- 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. p. 27.
15
Conforme o estudo de Beck (1979)3 a roça e a pesca são atividades
predominantemente masculinas, de modo que todas as decisões relacionadas a estas duas
atividades competem ao homem: na roça ao pai, chefe de família e na pesca, ao dono da rede
ou, por delegação deste, no patrão de pescaria. Historicamente demarcadas como “do lar” e
“ajudantes da pesca”, muitas mulheres conquistaram seus espaços e tornaram-se trabalhadoras
profissionais da pesca, documentadas e atuantes diretamente na economia familiar, conforme
atestam suas narrativas.
Dialogando com Hirata; Kergoat (2007)4 , observamos que o processo de construção
social dos comportamentos atribuídos às mulheres ou aos homens foi elaborado no âmbito do
público e privado. Tudo o que se referia às atividades domésticas, ou seja, ao privado, era de
responsabilidade da mulher, ao passo que ao homem, eram atribuídos os deveres da rua, da
ordem e do público. Enfim, tudo que se imputa ao feminino e masculino estão, a rigor, ligado
às profissões a partir da reprodução social, no uso do tempo e na divisão desigual do trabalho
doméstico. A desigualdade nas relações de trabalho remunerado e não remunerado tem
contribuído na tomada de consciência. Isto porque, “uma enorme massa de trabalho é efetuada
gratuitamente pelas mulheres, que esse trabalho é invisível, que é realizado não para elas
mesmas, mas para outros, e sempre em nome da natureza, do amor e do dever materno”
(HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 596).
Ainda, perceptível nas narrativas apresentadas, observamos que temos “corpos que
pescam”:
Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações,
o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções
que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se
acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam,
os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos [...] enfim, é um
sem limite de possibilidades sempre . seus gestos [...] enfim, é um sem limite
de possibilidades sempre reinventadas, sempre à descoberta e a serem
descobertas. Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem
mas, fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se
atribuem. (GOELLNER, 2008, p.28).
Neste sentido, a questão principal desta tese é problematizar como se construíram as
representações sociais femininas nas relações pesqueiras em Mato Grosso do Sul, sobretudo
no Pantanal e, por extensão, historiar a divisão sexual do trabalho na pesca, destacar como a
3 Cf.: BECK, A. Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar. Boletim de Ciências Sociais, n.
23, p. 21 – 32, 1981. 4 Cf.: HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa,
São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595 – 609, dezembro 2007.
16
presença da mulher é fortemente marcada pela separação do espaço público e do privado.
Refletindo sobre a categoria do privado, dialogamos com a autora Maria do Rosário de Fátima
Andrade Leitão (2008), pesquisadora de trajetórias de mulheres pescadoras do Estado do
Pernambuco.
Pretende-se destacar nessa pesquisa que esse lugar público negado às mulheres,
nesse caso as pescadoras, ao longo da história invisibilizou a participação feminina, sobretudo
nos espaços públicos, proporcionando o resultado de uma presença silenciada como ressalta
Leitão; Lima; Furtado (2008) que, ao estudarem o trabalho das mulheres pescadoras na região
localizada no nordeste do país, destacam, no texto “Mulheres Pescadoras: A Construção da
Resistência em Itapissuma”5, que essas trabalhadoras são:
Inibidas, historicamente, de “conhecer o mundo”, de praticar o poder no
âmbito público, as meninas crescem e se desenvolvem influenciadas pela
concepção de que existe áreas ou profissões tidas como mais adequadas à
condição feminina, que estão ligadas à cuidar do lar, do ensinar e do servir.
No entanto, as mulheres também surgem como lideranças e trabalhadoras da
pesca por uma ressignificação de atividades que sempre desempenharam,
mas que não eram vistas por causa de uma divisão social do trabalho
intensamente centrada no masculino, divisão que conceitua o mar como
ambiente de homens e posiciona as mulheres na terra. (LEITÃO; LIMA;
FURTADO, 2009, p. 9).
Leitão (2008) cita como se a premissa for inegavelmente verdadeira desse fato no
seguinte trecho:
Quando os homens as veem circulando de canoa, gritam em tom jocoso,
“essa canoa tem motor?” A narrativa demonstra algumas diferenças nas
relações de gênero no meio rural e destaca a força das mulheres quando
unidas por um objetivo em comum. Aqui no relato “a velocidade” adquirida
no manejo do remo pelas mulheres, demonstra a aquisição diferenciada de
acesso aos equipamentos para as atividades pesqueiras, já que, os barcos que
pertencem aos homens possuem motor. (LEITÃO, 2008, p.49).
Ao olhar masculino, as mulheres “necessitam” realizar uma excelente atuação,
precisa ser ágil no remo e em todas as funções que o ofício lhes exige. Além do mais, a
atuação dessas mulheres no mundo da pesca destaca-se, mesmo na dupla jornada de trabalho,
pois, precisam conciliar afazeres domésticos com atividade produtiva, fato esse notório nas
5 Cf.: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade; LIMA, Alexandra Silva de; FURTADO, Gilmar Soares.
Mulheres pescadoras: a construção da resistência em Itapissuma. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação. Curitiba, 2009. Texto completo. Acesso em 19/05/2016:
www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-1668-2.pdf
17
narrativas orais. Historicamente romper com o silêncio é o desafio de muitas trabalhadoras
nos diferentes ambientes de trabalho, na pesca é peculiar, pois, além de exercer a profissão,
muitas não são reconhecidas como profissionais. Ainda na contemporaneidade muitas ainda
são nominadas de “ajudantes” de seus companheiros, filhos, pais, dentre outros. Nesse
sentido, continua a divisão sexual do trabalho, destacado na hierarquia caracterizado na força
e no status.
É um corpo capaz de suportar as adversidades naturais de um espaço geográfico
peculiar. Para Rose Mary Gerber (2015) em sua obra Mulheres e o Mar: Pescadoras
Embarcadas no litoral de Santa Catarina, Sul do Brasil, destaca que é “preciso ter um corpo
para a pesca”, o qual é construído “na e pela pesca” pelo “adestramento corporal” que se faz
na repetição e imitação cotidiana que disciplina o corpo em relação às necessidades diárias. É
necessário muito preparo físico para garantir muitas horas expostas ao sol e/ou chuvas, além
de altos períodos mergulhados nas águas do rio ou de lagoas em embarcações muitas vezes
precárias e sem nenhum conforto ou total segurança no exercício do trabalho.
Ou seja, não se nasce com um “corpo” preparado para a pesca, mas cotidianamente
esses corpos são moldados pela realização das tarefas laborais cotidianas. O “corpo é
fabricado num contínuo, na experiência da/na pesca: a força, a mão, a coluna vertebral, as
pernas, os ombros, os olhos” (p. 162). Nesse sentido, as narrativas dessas pescadoras de água
doce, não muito diferentes das pescadoras de águas salgadas, ao longo da pesquisa nos
levarão a refletir sobre as condições de trabalho e de vida das mulheres que pescam e que
sobrevivem nesses espaços peculiares, demonstram ainda, o quanto estão expostas
fisicamente e socialmente num espaço pantaneiro e masculinizado.
A presente tese problematiza a historiografia sobre mulheres e suas
atividades relacionadas à pesca profissional e/ou de subsistência no espaço do Pantanal sul-
mato-grossense. Pretende-se discutir teórica e criticamente conceitos como os de gênero,
poder, empoderamento, cotidiano, memória, trabalho e história das mulheres. Permeada de
muitas indagações referentes à presença feminina na pesca propomos, como ponto de partida,
o seguinte questionamento: Qual a concepção que predomina nas relações de gênero no
trabalho pesqueiro. Esta reflexão justifica-se à medida que encontramos um paradoxo em suas
narrativas: mesmo dispondo de carteira assinada como pescadoras, muitas vezes, elas mesmas
se autodenominam apenas como ajudantes dos maridos/companheiros pescadores. Isto revela
o quanto à identidade dessas mulheres foram constituídas a partir de discursos homogêneos e
patriarcais que as impedem de visualizarem suas próprias relevâncias laborais e não se
18
verem como protagonistas das pesca, sujeitando-se à ideia de serem somente “ajudantes” dos
pescadores homens.
Pierre Bourdieu (2005) destaca,
[...] uma espécie de processo natural e passivo de "enchimento", de que as
mulheres são, não o agente, mas apenas o local, a ocasião, o suporte, ou
melhor, que se localiza na mulher, como na terra, não exige da mulher mais
que práticas técnicas ou rituais de acompanhamento, atos destinados a ajudar
a natureza em trabalho (como arrancar ervas, ou reuni-las em feixes, para
alimento dos animais); com este fato, elas estão duplamente condenadas a
permanecer ignoradas, principalmente pelos homens: seus atos, familiares,
contínuos, rotineiros, repetitivos e monótonos, ‘humildes e fáceis’, como diz
nosso poeta, são em sua maior parte realizados fora da vista, na obscuridade
da casa ou nos tempos mortos do ano agrário. (BOURDIEU, 2005, p. 59-60).
Nesse sentido os discursos homogêneos e patriarcais, confere ao homem, o status de
ser superior que conduz as narrativas, atos e pensamentos subjetivos dessas mulheres. Nesse
sentido, observamos vozes e posturas colonizadas, ou seja,
[...] as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às
relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento que
são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam
nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de
conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de
adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que
‘faz’, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre. (BOURDIEU,
2005, p. 45).
Através das falas observamos essas violências, essa dominação sobre as mulheres
com denominações documentais classificadas como “pescadoras profissionais artesanais” e,
assim, afirmam sua identidade profissional. Observa-se que as narradoras trazem consigo
experiências compartilhadas com seus familiares, amigos, enfim, fatos contados e que muitas
vezes são transmitidos ao longo de suas vidas e tais fatos transformam-se em sentidos,
marcando a identidade dessas trabalhadoras, sendo que:
Memória e história conjugam-se também para conferir identidade a quem
recorda. Cada ser humano pode ser identificado pelo conjunto de suas
memórias; embora estas sejam sempre sociais, um determinado conjunto de
memórias só pode pertencer a uma única pessoa. Somente a memória possui
as faculdades de separar o eu dos outros, de recuperar acontecimentos,
pessoas, tempos, relações e sentimentos, e de conferir-lhes significados.
(AMADO, 1995, p. 132).
19
Portanto, essas pescadoras ao relatarem suas experiências de vida e trajetórias
profissionais, a partir de suas lembranças se afirmam como sujeitos históricos, protagonistas
de suas histórias. Lutam, assim, por seu espaço como parte importante desses lugares, que
vivem, hoje, em meio ao discurso recorrente na esfera do estado, relacionado à “falta de
peixes”. Essas cidades pesqueiras confrontam no mesmo espaço épocas diferentes, oferecendo
ao olhar, uma história sedimentada dos gostos e das formas culturais.
Neste sentido “os imaginários sociais operam ainda mais vigorosamente, talvez, na
produção de visões futuras, designadamente na projecção das angústias, esperanças e sonhos
colectivos sobre o futuro” (BAZCKO, 1985, p. 312). Assim, em suas narrativas, as mulheres
pescadoras anseiam por melhorias de vida.
Entre a maioria das pescadoras profissionais artesanais, apesar das adversidades
vividas, é inegável que existe um apego ao ofício, muitas vezes atribuído as “aventuras” que a
profissão proporciona e as “paixões” vivenciadas por estas, que fizeram escolhas e acreditam
que foi a melhor para suas vidas. Nesse sentido, dialogamos com Kathryn Woodward (2000),
em seu texto “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”, destacando que,
“A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as
várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade [...]” (WOODWARD,
2000, p. 19).
Assim compreendemos as especificidades e particularidades de cada pescadora,
entendemos que suas experiências são únicas e ao mesmo tempo são compartilhadas pela
categoria. Vivendo diversos problemas e dificuldades estas mulheres continuam encontrando
motivos para gostar e praticar tal atividade profissional.
Nesse sentido e parafraseando Paul Ricouer (2007, p.159), destacamos que temos a
cidade, “o rio, o pantanal” que se dá ao mesmo tempo a ver e a ler esse lugar. Esses espaços
suscitam paixões mais complexas que a própria casa, na medida em que oferece um espaço de
deslocamento, de aproximação e de distanciamento. Enfim, é preciso uma atenção em relação
a este meio de trabalho, pois, tanto a profissão como o meio em que elas vivem têm grandes
significados em suas vidas e na comunidade em que praticam a arte pesqueira.
Se a autoafirmação das identidades ocorre principalmente nos processos
organizacionais, nosso intuito é pensar formas e caminhos de fortalecimento destas
organizações para que as barreiras impostas pelo discurso masculinizante sejam diluídas.
Como se verá adiante, algumas mulheres vêm se organizando, num cenário nacional, na busca
pelo reconhecimento e valoração em diferentes frentes de trabalho relacionados à pesca.
Ademais, buscam o fortalecimento dessa identidade em relação à acessibilidade a um
20
conjunto de direitos que dantes lhes fora negado, a exemplo do seguro desemprego no período
do defeso6.
Quando falamos de identidades as conceituamos embasados em Tomaz Tadeu da
Silva (2005) no texto “A produção social da identidade e da diferença”, que destaca que:
Pouco importa se os fatos assim narrados são verdadeiros ou não: o que
importa é que a narrativa fundadora funciona para dar à identidade nacional
a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação,
sem as quais ela não teria a mesma e necessária eficácia”. (SILVA, 2005, p.
85).
Nesse sentido, é preciso historiar essas narrativas carregadas de significados e de
representações sociais de um grupo de pescadoras, por hora invisibilizadas. Destacamos que:
Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.
A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com a relação de
poder. (SILVA, 2005, p. 82).
No bojo da construção do conhecimento acerca desse grupo social, a investigação
proposta busca perceber por meio de quais práticas, representações e apropriações se
reconhecem as mulheres pescadoras profissionais.
Essas conexões e relações de poder, destacadas por Silva (2005), afirmam que:
A identidade é um significado cultural e socialmente atribuído [...] é instável,
contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está
ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a
sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações
de poder. (SILVA, 2005, p. 85-97).
A busca desses significados construídos no cotidiano da pesca, com suas trajetórias e
com seus viveres familiares e comunitários, evidenciaremos de que maneira essas mulheres
elaboram e narram seu passado, seu presente e ainda, como projetam a vida de seus filhos,
nessa riqueza e complexidade de se viver no Pantanal Sul-Mato-Grossense.
6 Defeso é uma medida que visa proteger os organismos aquáticos durante as fases mais críticas de seus ciclos de
vida, como a época de sua reprodução ou ainda de seu maior crescimento. Dessa forma, o período de defeso
favorece a sustentabilidade do uso dos estoques pesqueiros e evita a pesca quando os peixes estão mais
vulneráveis à captura, por estarem reunidos em cardumes. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-aquatica/recursos-pesqueiros/per%C3%ADodos-de-
defeso>. Acesso em: 15/02/2017 às 13h.
21
Dialogando com Halbwachs (1990), destacamos a relevância de evidenciar essas
identidades pelo estudo da memória e da história, observando que essas se conjugam, ao
conferir identidade a quem recorda. Cada sujeito pode ser identificado pelo conjunto de suas
memórias, visto que estas sejam sempre sociais, esse conjunto de memórias só possa
pertencer a uma única pessoa. O estudioso destaca que a consciência individual é:
A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas
mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes
coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes,
cada um tomando em separado, e em seu conjunto. (HALBWACHS, 1990,
p.69).
Sendo assim, a memória possui as faculdades de separar o eu dos outros, ela recupera
acontecimentos, traz lembranças de pessoas, tempos, realizações, relações e sentidos, enfim,
podem evidenciar significados múltiplos. Isso se relaciona à perspectiva de Serge Moscovici
(2003), que conceitua:
As representações entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam
e se cristalizam continuamente, através de uma palavra, de um gesto, ou
duma reunião, em nosso cotidiano. Elas impregnam a maioria das nossas
relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as
comunicações que estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, de
um lado, à prática específica que produz essa substância [...] (MOSCOVICI,
2003, p.10).
Esse conhecimento inscrito nas experiências e nos acontecimentos sustentados por
indivíduos e partilhados na sociedade nos permite compreender (des)encontros de
aprendizados do mundo da pesca. Porque, para o alcance do objetivo do grupo, há tempos a
estrutura cumpre eficientemente o papel de divulgação de suas atividades.
Seguindo o pensamento de Moscovici (2003), destacamos que:
Sempre e em todo lugar, quando nós encontramos pessoas ou coisas e nos
familiarizamos com elas, tais representações estão presentes. A informação
que recebemos, e à qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e
não possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele. Para alargar
um pouco o referencial, nós podemos afirmar que o que é importante é a
natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam
capazes de influenciar o comportamento do indivíduo participante de uma
coletividade. É dessa maneira que elas são criadas, internamente,
mentalmente, pois é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra,
como o fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais
representações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos materiais
22
[...] pois são o produto de nossas ações e comunicações.
(MOSCOVICI, 2003, p. 40).
Nesse sentido, as representações sustentadas pelas influências sociais da categoria
constituem aprendizados adquiridos na comunidade, que assim, compartilham cotidianamente
com o grupo e no lugar onde vivem e trabalham. O conhecimento que move as representações
sociais, conforme se observa em Moscovici (2003):
[...] é sempre produzido através da interação e comunicação e sua expressão
está sempre ligada aos interesses humanos que estão nele implicados”,
portanto, “é produto de um grupo de pessoas que se encontram em
circunstâncias específicas, nas quais elas estão engajadas em projetos
definidos.” (MOSCOVICI, 2003, p. 9).
As autoras Maneschy, Alencar e Nascimento (1995, p. 82), questionam a
invisibilidade da mulher pescadora na cadeia produtiva, sabendo que essas mulheres,
geralmente, aprenderam a arte pesqueira em família e que são elas as responsáveis pela
transmissão do conhecimento e da familiaridade com a atividade pesqueira às novas gerações.
Destacam e também observei no meu espaço de pesquisa, que muitas mulheres
necessitam/ram levar seus filhos, para as suas atividades laborais, primeiramente pela
ausência de creches nas comunidades, assim detalham que é preciso “rever, questionar e
criticar o padrão de relações de gênero e o papel secundário das atribuições femininas é,
portanto, tocar em visões de mundo e em atitudes muito arraigadas”. (MANESCHY et al.,
1995, p. 82-86).
I - O espaço da pesquisa: O Pantanal Sul-Mato-Grossense
Como recorte espacial da pesquisa, abrangemos as cidades que estão localizadas no
Pantanal Sul-Mato-Grossense: Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana e Porto Murtinho.
Nesses municípios há uma concentração de pescadoras e ribeirinhas que vivem da prática
pesqueira e no pantanal sul-mato-grossense. Abaixo temos o mapa7 da localização geográfica
dessas cidades, observem que esses municípios estão localizados na região do Pantanal Sul-
Mato-Grossense.
7 Mapa produzido a pedido da autora dessa pesquisa, visando localizar geograficamente essas mulheres nas
cidades abrangentes da pratica de pesca no Pantanal Sul-Mato-Grossense.
23
IMAGEM 1 – Localização geográfica das cidades de Coxim, Corumbá, Miranda, Aquidauana e Porto Murtinho.
FONTE: Cartografia Alice Lucas de Souza Gomes 2019.
Os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul detêm a maior reserva de
biodiversidade da América do Sul: O Pantanal. Este fato é abordado por Miguel Vieira da
Silva a partir de observações e pesquisas realizadas em sua atuação no Instituto de Controle e
Preservação Ambiental (INAMB). O autor apresenta as potencialidades da região e afirma
que “A pesca em Mato Grosso do Sul, principalmente no Pantanal, merece destaque, embora
seja vista por muitos como ocupação marginal” (SILVA, 1986, p. 06). Atualmente, cerca de
6.331 pescadores profissionais atuam em todo o Pantanal, sendo: 3.759 pescadores
profissionais no Pantanal de Mato Grosso do Sul, sem considerar o segmento de pescadores
de iscas, dados registrados no período de cadastramento realizado em 2014 pelo Sistema de
Controle da Pesca de Mato Grosso do Sul (SCPESCA/MS).
24
Nessa extensa área diversificada observamos como essas pessoas se manifestam ao
relatar trajetórias de vida, como buscam em suas memórias situações que marcaram suas
vidas ao realizarem atividades pesqueiras como profissão.
Abaixo temos o mapa da caracterização do bioma do Pantanal8 MS e MT:
IMAGEM 2 – Mapa do bioma do Pantanal.
FONTE: Cartografia Alice Lucas de Souza Gomes 2019.
8 Mapa produzido a pedido da autora dessa pesquisa, visando localizar geograficamente o Pantanal Sul Mato
Grossense.
25
O Pantanal, segundo ECOA, compreende9:
A área de abrangência total da Bacia do Alto Paraguai — BAP equivale a
496 000 km², ocupando o centro da América do Sul, em territórios do Brasil,
Paraguai e Bolívia [...] Em território brasileiro, a BAP ocupa 361 666 km²,
inteiramente compreendida nos estados de Mato Grosso, ao norte (149.341
km²) e Mato Grosso do Sul, ao Sul (202.325 km²). (ECOA, 2017).
O Pantanal, também conhecido como grande "brejão", é um verdadeiro santuário
ecológico, que com a ação de uma pequena chuva, áreas secas convertem-se em grandes lagos
de águas claras, com profundidades incertas, em alguns locais passa de um metro de
profundidade com uma grande quantidade de plantas aquáticas no interior. Não muito longe
das áreas urbanas é possível avistar servos, anhumas, capivaras, ariranhas, filhote de onça,
jacarés, seriemas, tatus, entre outros animais silvestres passeando despreocupadamente. Em
alguns trechos, principalmente nas baías, podem-se verificar no fundo das águas cardumes de
pintado, surubim, piranhas entre outras espécies. Nessas regiões, os peixes nascem e quando
ganham tamanhos demandam os rios e, procuram as águas profundas do rio Paraguai,
realizando a chamada piracema. Momento rico para o Pantanal, pois representa o ciclo natural
desse ecossistema peculiar.
A parte sul-mato-grossense representa aproximadamente 65% do Pantanal
brasileiro. O Pantanal é considerado a maior área úmida do mundo. E, a
partir da Constituição Brasileira de 1988, foi declarado Patrimônio Nacional.
Além disso, a área do Pantanal foi declarada como Reserva da Biosfera, pela
Unesco no ano 2000. O Pantanal, contudo, não é um ambiente homogêneo.
É possível identificar mais de 10 unidades ambientais diferentes, das quais 6
ficam em Mato Grosso do Sul (Correntes, Taquari, Negro, Miranda,
Nabileque e Porto Murtinho). (Relatório MPA, 2010, p. 18)10
.
Ainda segundo o relatório do Ministério da Pesca e Aquicultura:
A característica mais marcante do Pantanal é ser uma planície alagável com
um regime hidrológico peculiar baseado nos pulsos de inundação ora
determinados pelo aumento de vazão dos rios, ora pelo aumento da
precipitação pluvial e ora por ambos concomitantemente. É um regime
9 Ecoa – Ecologia e Ação é uma organização não governamental que surgiu em 1989, em Campo Grande, capital
de Mato Grosso do Sul, formada por um grupo de pesquisadores que atuam em diversos segmentos profissionais,
tais como: biologia, comunicação, arquitetura, ciências sociais, engenharia e educação. O principal objetivo era,
e ainda é, estabelecer um espaço para reflexão, formulações, debates, além de desenvolver projetos e políticas públicas para a conservação ambiental e a sustentabilidade tanto no meio rural, quanto no meio urbano.
Disponível em: <http://riosvivos.org.br/pantanal/>. Acesso: 16/11/2015 às 14h . 10
Relatório do Programa de desenvolvimento sustentável de aquicultura e pesca no território Pantanal Sul.
Ministério da Pesca e Aquicultura, 2010.
26
caracterizado por enchente-seca. A estação das cheias normalmente ocorre
de outubro a abril, quando o volume de chuva precipitada aumenta,
aumentando a vazão dos rios e ocorrendo extravasamento das águas dos
leitos dos rios para as áreas de inundação. De abril a maio é o período da
vazante, quando reduz o volume de água no ecossistema e a lâmina d’água
recua para o leito dos rios. De junho a outubro se verifica a estação seca.
(Relatório MPA, 2010, p. 18).
Como observamos, o Pantanal representa uma enorme diversidade tanto na questão
geográfica como uma questão cultural. Nesse sentido, podemos falar em Pantanais, devido
essas características marcantes dessa planície, pois não há como se afirmar uma característica
única para todo o bioma pantaneiro.
II — Fontes de pesquisa
Priorizarei a discussão da fonte oral para compreender essas construções históricas,
vivenciadas e compartilhadas por esse grupo de trabalhadores e trabalhadoras. Isto porque, em
conformidade os estudos da oralidade de Alessandro Portelli (2000):
Acredito na história oral precisamente porque ela pesquisa a memória de
indivíduos como um desafio a essa memória concentrada em mãos restritas e
profissionais. E penso que parte de nosso desafio é o fato de que realmente
encaramos a memória não apenas como preservação da informação, mas
também como sinal de luta e como processo em andamento. Encaramos a
memória como fato da história; memória não apenas como um lugar onde
você “recorda” a história, mas memória “como” história. (PORTELLI, 2000,
p. 69).
Ao apreendermos a memória "como" história, nosso objetivo é analisar a maneira
como essas apropriações memoriadas foram construídas e compartilhadas por tais
sujeitos através de um imaginário coletivo e evidenciadas subjetivamente por cada indivíduo
em suas práticas sociais. A proposta é relatar as trajetórias de vida, historicizando os embates,
enfrentamentos, conquistas e silenciamentos históricos das mulheres pescadoras.
Segundo Verena Alberti (2008) em seu texto sobre história oral, a riqueza da história
das oralidades está evidentemente relacionada ao fato de ela permitir o conhecimento de
experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais. Nesse sentido, o/a pesquisador/a
tem acesso a uma multiplicidade de “histórias dentro da história”, que, dependendo de seu
alcance e dimensão, permite alterar “hierarquia de significações historiográficas” [...]
(ALBERTI, 2008, p.166).
27
O meu contato com a "riqueza" da história oral da qual fala Alberti (2008) foi
constituído, primeiramente, ao estudar trabalhos acadêmicos que utilizam a metodologia da
história oral. Ao lê-los, foi possível perceber as riquezas de detalhes que essa fonte pode
trazer principalmente no que concerne aos relatos dos/das profissionais da pesca que não
encontramos em outras fontes históricas. Com isso, passei a questionar até que ponto
estes/estas trabalhadores/as vivenciaram conquistas, lutas e embates em seu cotidiano
exercendo a atividade laboral. Defrontei-me, assim, com a necessidade de ir à busca de
“fontes vivas”, isto é, memórias que muitas vezes não são questionadas e acabam se perdendo
e indo para os túmulos. Nessa convicção, as pescadoras precisavam ser ouvidas e a história
oral seria a fonte privilegiada para tal operação.
Uma questão de organização documental para o pesquisador são as coletas de dados,
pois os arquivos estão em movimento, no meu planejamento essas entrevistas ocorreriam no
decorrer do ano de 2016, no entanto, houve uma enchente na região do Pantanal, dificultando
a chegada até essas narradoras. Outra questão é o próprio período de pesca que, entre os
meses de março ao final de outubro, não é um período favorável, devido essas mulheres
estarem exercendo suas atividades no rio, com horários muito restritos. Muitas nem ficam em
áreas urbanas, realizando acampamentos nas margens dos rios em regiões afastadas do
perímetro urbano. Para o pesquisador que trabalha com oralidades é preciso ter esse olhar
quanto ao momento certo para essa coleta de fontes.
Tal evidência proporciona conhecimentos dentro de uma multiplicidade de fatos,
relatos e de experiências expressos através das entrevistas, as quais expõem as interpretações
realizadas pelos sujeitos sobre os elementos que compõem suas vidas. Além disso,
demonstram as particularidades com que cada pessoa realiza uma (re)construção histórica,
como aponta Alessandro Portelli: “Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas
o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que pensa que fez. Fontes orais podem
não adicionar muito ao que já sabemos, [...], mas contam-nos bastante sobre os seus custos
psicológicos” (PORTELLI, 1997, p.31). As falas evidenciam as memórias das pessoas que,
apesar de individuais, expressam experiências, embates e lutas socialmente compartilhadas
com um grupo mais amplo.
Seguimos o pensamento de Paul Thompson (1992), o qual afirma que a evidência
oral contribui para a construção de uma história rica, viva e comovente. Ele destaca que o
discurso popular carrega implícitos significados e conotações sociais que costumam não ser
reproduzidos em documentos escritos e podem revelar as emoções do narrador, sua
participação em determinados processos e como estes os afetaram em suas trajetórias de vida.
28
A construção da história significa, nesta perspectiva, produzir conhecimentos históricos e
científicos, analisados através do diálogo das narrativas populares.
Analisando as narrativas de trabalhadores/as que vivem da pesca, pode-se afirmar
que nelas encontram-se elementos que revelam sua relação com o Estado e com os demais
membros desta categoria. Dessa maneira, concordo com o que Ana Luíza da Motta afirma, ao
trabalhar com os discursos de pescadores na cidade de Cáceres-MT, que o indivíduo tem “[...]
uma carga de vestígios que significam no gesto daquele que diz, o lugar que ele, enquanto
sujeito ocupa no social” (MOTTA, 2003, p. 76). As experiências particulares das
trabalhadoras fazem-me compreender os sentidos que elas conferem à realidade do trabalho, o
que nos possibilita identificar suas significações num processo histórico mais amplo.
Afirmamos que a experiência cultural das trabalhadoras modifica significativamente as
relações que elas estabelecem com a realidade social a qual foram inseridas, portanto, é
preciso considerar as trajetórias de vida e as experiências de trabalho que são compartilhadas
por elas, observando a relevância da profissão para cada uma. Buscamos, assim, compreender
o papel desempenhado por tais trabalhadoras invisibilizadas na escrita histórica no estado de
Mato Grosso do Sul.
A metodologia a ser desenvolvida na escrita da tese iniciou com análise
historiográfica, tendo como base autores e autoras que discutem historicamente trajetórias de
vida de pescadoras profissionais e artesanais, no âmbito nacional. Ainda a produção de fontes
a partir da História Oral, tendo com método, a coleta de um conjunto expressivo de
entrevistas, além da utilização de outras já produzidas durante o mestrado (2013). Com este
recurso procura-se compreender as experiências cotidianas em torno da pesca profissional, na
busca por espaços de trabalho, valorização pessoal e profissional, embates e lutas constantes e
à forma como estas profissionais respondem aos desafios para a valorização pessoal e
profissional.
Através da articulação destas fontes escritas11
, oficiais, história oral penso que seja
possível identificar vivências e temporalidades que se entrecruzam e se (re)significam num
presente cujas expectativas e lutas são travadas em espaços ambíguos de identificação étnica,
pertencimento social e luta de classes, de espaço para o trabalho feminino e o principal
“Histórias de vida de pescadoras”. Procurando dar conta desse movimento, analisaremos as
problemáticas levantadas não como fatos dados, mas, como processos em formação.
11
Ver.: ANDERSON (2007); BECKER (2013); CATELLA (2001); FURTADO (2009); GERBER (2015);
GOES (2008); HIRATA (2002); LEITÃO (2008-2012); MANESCHY (2000); MARPOARA, (2010);
MORENO (2017); MOTTA-MAUÉS (1999); ROSÁRIO (2008); SILVA (2013); SOARES (2012); SCHERER
(2013); STADTLE (2010); WOORTMANN (1992).
29
Conforme os estudos de Khoury, mais do que trabalhar “fronteiras físicas e imaginárias, o
desafio é pensar [...] como as pessoas exploram, constroem e reordenam territórios e
fronteiras simbólicas que as unem e as separam, com toda sua ambiguidade e ambivalência”.
(KHOURY, 2006, p. 42)
Portanto, é uma construção de narrativas de dizeres que necessitam ser
problematizados e analisados historicamente para se compreender essas múltiplas linguagens
construídas nesse espaço geográfico e cultural de um grupo de trabalhadoras que buscam
permanecer no ofício da pesca mesmo em tempos incertos financeiramente. “Ao narrar, as
pessoas expressam elementos próprios de sua cultura e lidar com as narrativas orais
significam apreender os significados do que é narrado e lembrado no próprio movimento da
realidade social vivida.” (KHOURY, 2006, p. 37).
Salientamos, portanto, a relevância desse recurso metodológico na pesquisa histórica
que será priorizado nesse estudo cujo foco é a análise de “memórias e histórias de vidas” das
pescadoras profissionais do Estado de Mato Grosso do Sul que relatam esses significados e
sentidos diversos em suas vivências. Ao utilizar a ferramenta da história oral, na análise das
relações entre memórias e gênero, esta pesquisa ganha um impulso científico e possibilita a
expansão das fronteiras da historiografia, do protagonismo da história das mulheres.
Ecléia Bosi (2003), em seu estudo O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia
social, afirma que a memória pessoal é também “social, familiar e grupal” e através da
oralidade, busca-se um tempo, uma cidade, um gênero, uma nacionalidade, enfim, buscam-se
memórias invisíveis na escrita da história. Essas memórias transformadas em textos se
reconstroem e remetem a uma vida em sociedade, com valores, culturas, apropriações,
pertencimentos, consentimentos, entre outros.
Parafraseando Ricoeur (2007), na obra A memória, a história, o esquecimento,
destaca que a memória é a representação do passado a partir do hoje, ou seja, ela é uma
reconstrução socialmente individual e perpassada pela coletividade.
Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória
coletiva e as suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela
tradição: foi por ocasião dessas experiências vividas que fora
introduzida a noção de lugar de memória, anterior às expressões e às
fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão. (RICOUER,
2007, p.156).
Assim, a partir das narrativas orais é o historiador que trabalhará com as fontes.
Este tratamento demonstrará as significações presenciadas e construídas por aqueles e aquelas
30
que foram esquecidos/as na escrita historiográfica. Ou seja, por este viés o protagonista é o
próprio sujeito que narra sua história, no entanto quem dá vida à narração é o historiador que,
apesar de não ter vivenciado diretamente a experiência histórica, a historiciza e a publiciza.
Nas palavras de Paul Ricoeur (2007):
A declaração explícita da testemunha, [...] é bem expressiva: “Eu
estava lá”. O imperfeito gramatical marca o tempo, ao passo que o
advérbio marca o espaço. É em conjunto que o aqui e o lá do espaço
vivido da percepção e da ação e o antes do tempo vivido da memória
se reencontram enquadrados em um sistema de lugares e datas do qual
é eliminada a referência ao aqui e ao agora absoluto da experiência
viva. O fato de essa dupla mutação pode ser correlacionada com a
posição da escrita à oralidade é confirmada pela constituição paralela
de duas ciências, a geografia de um lado [...] e de outro, a
historiografia. (RICOEUR, 2007, p. 156).
Nesse sentido, pode-se dizer que sujeito se expressa de uma maneira rica e
comovente, pois esses se veem em seu próprio passado e os constroem por meio de suas
memórias, revivem os momentos de prazer e as paixões, projetam fatos romantizados, e
também as dificuldades de outrora.
São memórias que demonstram as vivências e as principais preocupações que,
coletivas, passam a ser compartilhadas, vivenciadas por esses/as trabalhadores/as ao longo de
suas vidas. A história da pesca traz muitas memórias diversificadas, em grupo: eles e elas se
esforçam para demonstrar que possuem uma relação de harmonia para com o meio ambiente e
a consciência de que precisam dele para prover sua sobrevivência e existência. Assim, as
mulheres pescadoras, dentro desta reflexão, dialogam e relatam suas experiências, angústias e
expectativas referentes aos grandes problemas que enfrentam na vida cotidiana, no exercício
da profissão e nos sentidos atribuídos à própria existência.
Na obra As Mulheres ou os silêncios da história, Michelle Perrot (2005) destaca que
o desenvolvimento da história oral constituiu uma forma de revanche das mulheres. Tal fato
deve-se principalmente a dois aspectos: a longevidade delas, o que as tornam testemunhas de
épocas remotas e o mutismo dos homens que:
[...] em um casal, a partir do momento em que se trata de lembranças
de infância ou da vida privada, contrasta com a loquacidade muito
maior das mulheres, quer seja porque o trabalho e as empreitadas do
exterior tenham atrofiado a memória masculina, quer seja porque falar
de si mesmo é contrário à honra viril que considera estas coisas
31
negligenciáveis, abandonando às esposas os lados dos berços e as
questões do lar. [...] (PERROT, 2005, p. 41).
Silvia Salvatici (2005), em sua obra Memórias de gênero: reflexões sobre história
oral de mulheres, destaca a ampliação positiva do uso das fontes orais na pesquisa histórica
ao fornecer assunções teóricas e soluções metodológicas. “As vozes de mulheres” captadas
pelas entrevistas visibilizaram um passado com o qual as feministas poderiam se identificar,
“era como se as palavras de milhares de mulheres fossem as suas palavras, ou as palavras de
grupos oprimidos pelos quais estavam lutando”. Nesse sentido, as histórias de mulheres eram
tidas como verdades, amalgamando memórias, significados e representações numa
perspectiva de gênero (SALVATICI, 2005, p.32).
Analisando a historiografia da pesca relacionada à atuação da mulher, pode-se
observar que existem nas Colônias12
, mulheres pescadoras que atuam desde a década de 1970
na luta por seus direitos sociais. Participando assiduamente em reuniões no Ministério da
Pesca e Aquicultura, nas próprias colônias de pesca e nas federações de pescadores. Para
pensar estas questões utilizaremos as obras de Leitão (2012), Furtado e Leitão (2012), Veras e
Leitão (2012), Inácio e Leitão (2012), Scherer (2013), Escallier (1999), Medeiros (2012),
Amorim (2005), Jesus (2016), Cavalcanti (2010), Maneschy, Alencar e Nascimento (1994),
Moreno (2017), Furtado (2010), bem como outras pesquisas que problematizam a história de
conquistas de mulheres pescadoras localizadas na região norte do país, observando vivências,
trajetórias, trabalho entre ouras categorias de análise. Ainda, problematizaremos as políticas
públicas para mulheres pescadoras que lhes possibilitaram o acesso ao registro Geral da
12
Colônia de pesca é uma organização sindical dos trabalhadores da pesca e de representação da categoria
pesqueira, tal instituição trabalha juntamente com o Estado na questão organizacional e documental da categoria.
Para obter a carteira nacional de pesca no Ministério da Pesca e Aquicultura/MPA é necessário o trabalho das
colônias na confirmação desses dados MPA/MS. O surgimento ocorreu quando a Marinha do Brasil, preocupada
com a segurança do litoral e dos grandes rios brasileiros, no período das guerras mundiais, resolveu ordenar a
vigilância do litoral e dos grandes rios brasileiros. Quem conhece bem o litoral e os rios são os pescadores.
Então, o comandante Frederico Villar, depois de uma viagem de estudos aos Estados Unidos e Europa, sai do
Rio de Janeiro no Cruzador José Bonifácio, criando as Colônias de Pesca. Isso aconteceu em 1919. Villar veio
dividindo o litoral e os rios em “Zonas de Pesca”, combinando distância e número de pescadores. Então, onde
havia em torno de 200 pescadores criava uma Colônia de Pesca. Por isso, as Colônias têm o “Z” - Colônia Z-1,
Z-2 e assim por diante e, em cada estado começa de novo com Z-1. Porém, as Colônias não foram criadas como
Sindicatos e sim como uma associação de pessoas ligadas à pesca, tanto que, no início, eram chamadas de
Colônias de Pesca e não Colônias de Pescadores. Na viagem de volta, Frederico Villar e outros oficiais elaboram
o estatuto das Colônias e todo o sistema nacional de representação dos pescadores. Os militares tinham como
objetivo principal organizar os pescadores para contribuir no sistema de defesa costeiro, mais do que para
defender os interesses econômicos e sociais da categoria. No dia 1º de janeiro de 1923, foi assinado o Estatuto
para as Colônias de Pesca, em forma de aviso, pela Marinha. As Colônias eram definidas como agrupamentos de
pescadores ou agregados associativos. Cf.: <http://coloniadepescadoresz1se.blogspot.com.br/2016/02/origem-
das-colonias-de-pescadores.html>. Acesso: 12/11/2016.
32
Pesca, aos espaços de poder dentro das Colônias de Pescadores/as e, ainda, a criação e
legitimação do movimento social de Articulação de Mulheres Pescadoras no âmbito regional.
III - Estrutura da Obra
Primeiramente, a pesquisa problematizará fontes de pesquisas historiográficas
realizadas no campo da história, geografia, antropologia, ciências sociais e psicologia,
analisando a literatura que contempla o conceito de história das mulheres que realizam o
ofício da pesca em regiões do Brasil e estudos históricos realizados em
Portugal, Escallier (1999), Amorim (2005). Posteriormente, queremos problematizar a região
pantaneira destacando elementos físicos, históricos e socioculturais, refletindo, assim, sobre o
espaço e o ofício da pesca e as múltiplas concepções a partir de pesquisas realizadas nessa
região do Estado.
Ao longo do trabalho debateremos as categorias relacionadas ao gênero e a história
das mulheres e, ainda, as relações de poder no mundo do trabalho da pesca. Pretende-se,
historiar a história das mulheres nas representações sociais enquanto pescadoras que vivem às
margens dos rios da bacia pantaneira, bem como os sentidos atribuídos à vida, ao trabalho e à
família e ao trabalho pesqueiro, seja ele profissional e ou de subsistência.
Problematizar o trabalho das mulheres e a legislação, observando o conhecimento e a
abrangência da lei; o trabalho familiar e o acesso a direitos legais das ribeirinhas, parece-nos
um argumento indispensável para uma pesquisa responsável acerca desta categoria pouco
reconhecida. Além disso, destacaremos, a configuração da atividade pesqueira e do/da
profissional da pesca, como referência às publicações, leis, projetos de Lei em órgãos
responsáveis observando a (in)visibilidade mulher no: o Ministério da Marinha, Federação
Estadual da Pesca; Legislações nacionais e estaduais; Como por exemplo: Decreto-lei n.º 221,
de 28 de fevereiro de 1967; Lei n.º 8212, de 24 de julho de 1991; Lei n.º 9605, de 12 de
fevereiro de 1998; Lei n.º 10 779, de 25 de novembro de 2003; Projeto de lei nº 6697 de 2006,
ainda, observar ao longo da pesquisa a visibilidades das pescadoras em encontros e
conferências estaduais e nacionais de Trabalhadoras da Pesca.
A tese prima historiar os enredos dessas mulheres pescadoras frente às
representações sociais, econômicas, culturais de mulheres protagonistas no campo de trabalho
da pesca no Pantanal. Acerca da caracterização das mulheres que trabalham no setor
pesqueiro pantaneiro problematizará suas trajetórias em diálogo com os referenciais teóricos
Ricoeur (2007), Foucault (2005), Perrot (2005), Bosi (2003), Certeau (2013), entre outros
33
autores que fundamentarão esses múltiplos significados atribuídos pelas narradoras no seu
ofício, bem como os sentimentos expressos em relação ao vivido no lugar “Pantanal”, com a
profissão, no lar, na colônia, enfim. Refletindo que as representações sociais, segundo
Chartier13
(2002), constroem identidades; marcam diferenças; constroem sujeitos. Destacando
o dia-a-dia das trabalhadoras da pesca e das ribeirinhas, busca-se o sentido do trabalho e do
lazer e a relação das mulheres com o meio ambiente: como se dá a configuração das
identidades das mulheres pantaneiras. Ainda por este viés, quero investigar a transmissão e
circulação de saberes da arte pesqueira pensando a comunidade: continuidades e ou
descontinuidades? Finalmente, por intermédio das fontes imagéticas analisarei e observarei as
pescadoras questionando se as relações de gênero as invisibiliza.
A rede de entrevistadas foi pensada a partir da atuação de cada pescadora, buscando
abranger a pescadora de iscas, de peixes, a piloteira14
, a que pilota canoas e as que pilotam
lanchas. Ao todo foram realizadas 08 entrevistas com mulheres pescadoras profissionais,
computando em média 7 horas de gravações. Após a coleta foi realizada a transcrição,
transformando as falas em textos conforme o método abordado por Portelli (1996), no
processo de transcrição, essas falas foram brevemente editadas, retirando vícios de linguagem,
repetições e excessos, oportunizando uma melhor compreensão do dito, sinalizando silêncios,
os não ditos, sabendo que nem sempre é preciso dizer com palavras, mas com olhares e
gestos.
No primeiro capítulo: Mulheres pescadoras: corpos que pescam, historiamos a rede
de pescadoras profissionais que fazem parte desse estudo. No sentido de, situar o leitor para a
compreensão da rede de mulheres que pescam e que contribuíram para que essa pesquisa
fosse realizada.
No segundo capítulo: Arte pesqueira: Conquistas, Resistências e Lutas Cotidianas,
analisou-se os caminhos legais e a transformação das frentes representativas da categoria, bem
como a configuração das Colônias de Pesca em Mato Grosso do Sul. Propôs uma reflexão
acerca das lutas e apresenta-se as conquistas da categoria nas questões do direito trabalhista e
ainda as lutas feministas, como a relevância da Marcha das Margaridas (2015), na luta por
direitos sociais e previdenciários, pelo direito de exercer atividades ligadas à pesca e pela
manutenção de direitos conquistados.
13
Cf.: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002. 14
Piloteira ou Pirangueira é uma classificação dada às mulheres que pilotam embarcações pesqueiras, tanto para
elas mesmas como para atender o turismo.
34
No terceiro capítulo: Pantanal: Mulheres Pescadoras dos Pantanais, historia-se
memórias de mulheres que atuam no setor pesqueiro na diversidade do Pantanal Sul Mato
Grossense. Objetiva-se construir o espaço de trabalho dessas mulheres nos Pantanais, ou seja,
nessa diversidade ambiental, social e cultural que representa o espaço pantaneiro. E no quarto
capítulo: Mulheres Pescadoras: Para Além de Uma História Feminina na Pesca, observou-se
elementos do cotidiano, como a casa, o barco, o fazer da pescadora e sua importância no
cenário pesqueiro. Apresenta aprendizados e projeções futuras que elas constroem no dia a dia
para a permanência na/no exercício da arte pesqueira e ainda na garantia do direito ao
trabalho, ao território e ao lar.
35
Capítulo 1 – Mulheres pescadoras: corpos que pescam
Até hoje eu me lembro, eu fecho o olho e vejo [...] (Almeida, 2013)
Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e
as suas comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por
ocasião dessas experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar
de memória, anterior às expressões e às fixações que fizeram a fortuna
ulterior dessa expressão. (RICOEUR, 2007, p. 157)
36
1. Introdução
Os sujeitos se expressam, conforme Ricoeur, de uma maneira rica e comovente, pois
esses se veem nesse passado relatado e constroem essa visão em suas memórias, revivem os
momentos de prazer e as paixões, projetam momentos romantizados e, também, as
dificuldades de outrora. Essas memórias demonstram as vivências e as principais
preocupações que, coletivas, passam a ser compartilhadas, vivenciadas por essas
trabalhadoras da pesca artesanal ao longo de suas vidas. A história da pesca traz muitas
memórias diversificadas, coletivamente, as mulheres inseridas no universo da pesca
entrevistadas nesta pesquisa se esforçam por meio das narrativas para demonstrar que
possuem uma relação de harmonia com o meio ambiente e a consciência de que precisam dele
para prover sua existência e sobrevivência.
Assim, nesse primeiro capítulo apresento a rede de entrevistadas para situar o leitor e
apresentar os primeiros relatos de suas histórias de vidas, que evidenciam nesse estudo uma
reflexão e diálogo com as narradoras. E a partir da análise dessas memórias construídas com
suas experiências, angústias e expectativas referentes aos problemas que enfrentam na vida
cotidiana, no exercício da profissão e nos sentidos atribuídos à própria vida e sua existência.
Percebe-se, portanto, uma urgência em viabilizar essas “memórias” narradas/vividas por
sujeitos históricos silenciadas historicamente.
Nesta perspectiva, pesquisas que utilizam a história oral na análise das relações entre
memórias, dando um novo sentido à história das mulheres, ganham legitimidade e
possibilitam a expansão das fronteiras da história e do protagonismo de gênero. Para iniciar o
capítulo trago a narrativa de duas pescadoras profissionais de Coxim/MS, o que fez despertar
meu interesse e desviar o olhar para essas mulheres. São entrevistas realizadas durante a
dissertação de mestrado (2013)15
, momento em que as entrevistadas concedem um toque
especial na pesquisa, ao demonstrarem que estão de fato atuando no espaço constituído
historicamente por homens. Posteriormente, realizarei a apresentação das pescadoras
profissionais dos municípios de Aquidauana, Miranda e Corumbá.
Nessa direção, Bosi destaca: “o narrador é um mestre do ofício que conhece seu
mister: ele tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira. Seu talento de
narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor; sua dignidade é a de
15
ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias, Significações e Apropriações: Pescadores Profissionais de
Coxim/MS - (1967 a 2012). As imagens e entrevistas apresentadas neste capítulo utilizam o estudo realizado
com as pescadoras em Coxim, visando ampliá-lo para pensar as múltiplas relações existentes entre as mulheres
pescadoras residentes em outros municípios do Estado de Mato Grosso do Sul.
37
contá-la até o fim, sem medo” (BOSI, 2003, p. 90). Carregadas de experiências e vivências
cotidianas, ouvir as narrativas das mulheres ribeirinhas e pescadoras proporcionou-me uma
reflexão acerca da riqueza de conhecimentos, que essas mulheres demonstram a respeito do
fazer pesqueiro. São mulheres, numa profissão quase exclusivamente praticada por homens
ou, pelo menos, a eles assim atribuída. De fato, observamos que há um número expressivo de
pescadoras profissionais que labutam dia a dia na execução de atividades ligadas à pesca e na
busca por melhores condições de vida e de trabalho no estado de Mato Grosso do Sul. A partir
de suas expressões, observamos mulheres com conhecimentos amplos, que incluem desde o
tipo de anzol até o barulho do peixe em movimento para alimentação. Duas narradoras
escolhidas, por exemplo, demonstraram o sentimento de liberdade proporcionado pela
profissão. Ambas trabalharam anteriormente como domésticas; no entanto, foi na pesca que
encontraram os sentidos de liberdade, de reconhecimento e ganhos melhores.
São oralidades embebidas de acontecimentos memoráveis carregadas de significados,
portanto, refletir historicamente a história de mulheres ribeirinhas é justamente captar essas
narrativas do fazer atividades carregadas de história e de significados pessoais e sociais, pois
as práticas acontecem nos rios Paraguai, São Lourenço, Taquari, Coxim, Salobra, e nas
cidades Corumbá, Miranda, Aquidauana e Coxim, no Pantanal, e explicitam os múltiplos
sentidos sociais formados num contexto mais amplo da categoria, ou seja, a permanência e o
gosto pela arte de viver às margens de um rio. Assim, as narrativas apresentam a história de
uma cidade, de um povo e de uma cultura em constante transformação; nesse sentido,
necessitam ser registradas, analisadas e compartilhadas. Falar do cotidiano, de memórias e da
história de mulheres nos traz uma possibilidade de reflexão e registro das múltiplas dimensões
da vida de sujeitos comuns que narram realidades, evidenciam identidades e representações,
na arte de fazer história.
Segundo Michelle Perrot [2007], as mulheres durante muito tempo foram objeto de
um relato histórico que as relegou ao silêncio e à invisibilidade. São invisíveis, pois sua
atuação se passa quase que exclusivamente no ambiente privado da família e do lar. O espaço
público pertence aos homens e poucas mulheres se aventuram nele. Pelo silêncio das fontes
documentais sobre a questão pesqueira na região, quase não se pesquisou sobre mulheres
pescadoras, e ainda é um trabalho que se exerce longe de locais públicos: grande parte deste
grupo pesca em áreas longínquas da cidade, dificultando sua visibilidade, tanto individual
quanto coletivamente, mas estão no exercício da atividade e precisamos registrar e refletir
sobre essa categoria que luta por direitos e garantias de sua real inserção e permanência na
atividade pesqueira.
38
Reiteramos: no mundo do trabalho da pesca, por ser uma atividade
predominantemente masculina, elas não aparecem e são silenciadas. Mas vale ressaltar que o
silêncio existe, não no sentido da ausência de fontes sobre as mulheres, mas na representação
dos relatos que se fazem delas; silêncio no sentido da falta de discursos autênticos, que
destacam a relevância da participação feminina no trabalho. Refletindo com Foucault (1970),
destacamos que essas relações de poder que transformam discursos em verdade, isolaram
essas mulheres do mundo da pesca, colocando-as como “ajudantes”; no entanto, esses
discursos16
assimétricos são produzidos por homens, e os resultados são os ‘vazios’ no sentido
da ausência de fontes que retratem essa mulher trabalhadora, que exerce sua força de trabalho
fora do espaço do lar, e se insere entre mulheres comuns que, ao não deixarem vestígios ou
fontes, documentalmente não existem e vão sendo apagadas da história de sua região.
Ao longo dos anos, conforme Leitão (2009) mulheres atuantes na atividade pesqueira
têm buscado reconhecimento e independência, porém na realidade nem sempre conseguem,
sendo que o trabalho exige um grande esforço físico, não se costuma atribuir a elas os
resultados práticos do trabalho e, aos olhos de outros, são vistas apenas como ajudantes de
seus maridos. O aprendizado do ofício da pesca realizado pelas mulheres constitui lutas
cotidianas em busca de melhores condições de vida para suas famílias, ou seja, essas mulheres
trazem consigo uma carga de significações apropriadas da coletividade, pois as narrativas são
muito parecidas entre os homens e as mulheres. Entretanto, essas não demonstram o que
alguns poderiam caracterizar como fragilidade feminina e sim memórias históricas
apropriadas e vivenciadas no cotidiano, e que são semelhantes em ambos os sexos.
1.1 - Sra. Marlene: "Aqui a natureza é curadinha"
Toda narração mítica é uma representação interessada mediante a qual se
pretende aumentar o capital simbólico do grupo, tanto quanto legitimar esse
capital a partir de formas de reconhecimento [...] (BLÁSQUEZ, 2000, p.
187).
16
Por discursos compreende-se um conjunto de enunciados na medida em que eles provêm da mesma formação
discursiva. Foucault em sua obra reflete o funcionamento da sociedade, assim o discurso passa por uma visão de
mundo a todos os conhecimentos e impõe em um determinado momento, em uma época o modo transformador
que gera também em torno de produção subjetiva, centrando o homem como produção de sujeito no mundo
exterior a partir das práticas discursivas, promovendo a construção de saberes envolvendo pluralidade de
discursos. Cf.: FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
39
Seguindo a reflexão proposta por Gustavo Blázquez e parafraseando o autor, iremos
nos deter na narrativa oral da ribeirinha e pescadora Marlene Nunes de Almeida, nascida em
11/08/1953, natural de Iepê, São Paulo, viúva de um pescador, mãe de 6 filhos e que
atualmente está com 65 anos de vida. Pesca há mais ou menos 53 anos em Coxim/MS, local
em que vive desde criança. Nunca foi registrada como pescadora profissional, tampouco em
outra profissão. Pesca desde solteira e é apaixonada pelo rio, destaca que presenciou grandes
transformações da arte pesqueira, desde o manuseio dos instrumentos até as leis pesqueiras. A
entrevista foi concedida no dia 13 de abril de 2013, em sua residência, época em que estava
com 60 anos.
Narra que houve muitas modificações17
na pesca, principalmente na geografia do rio,
o qual era fundo e as águas eram fortes. Cresceu às margens do Rio Taquari e ama a pescaria.
Primeiramente a senhora Marlene descreve como era a pescaria, quais eram os apetrechos da
atividade e detalha a arte de pescar no rio Taquari:
Antigamente esse rio era fundo, bem fundo, esse trecho aqui da ponte, pra
cima da ponte nova, esse lado que se chamava canalinho, essa ilha do
Jaraguá não subia canoa, nem barco não subia motor era só puxado, aí com
um determinado tempo, com a enchente, tinha uma casa de material nessa
ilha, pegava muito peixe, muito mesmo, tanto no anzol, como no tarrafão, no
côvo. (Coxim, 13/04/2013).
Nesse momento da entrevista, a narradora me questiona:
Você sabe o que é um côvo? Côvo é um coisa de ferro, ele é meio fino,
funilado, e um bocão e põe num lugar onde o peixe tem que subir, ele vai pra
subir, se ele não consegue subir ele volta pra trás, ele cai dentro desse côvo,
ai não tem como ele sair [...] isso aí é proibido [...] tinha a lambada, tinha
três anzol, você põe assim, diferente de meio metro um do outro, com peso o
peixe que está naquele trecho você cata ele, não tem escapatória [...] tem a
fisga e tem o alçapão, aí você mira e joga bem em cima do peixe bateu ali,
varou a ferpa e você traz mesmo, atravessa aquele ossinho da asa [...] você
viu o vulto do peixe, você pega aquela mira nele, você tem que ser bom na
17
As transformações geográficas do rio é um dos objetos de pesquisa do EMBRAPA Pantanal, destacando que
entre os fatores de mudança está relacionado o assoreamento do rio Taquari, o que constitui na atualidade um
dos mais graves e discutidos problemas de impacto ambiental e sócio econômicos do Pantanal. Apesar do rio
Taquari, historicamente, transportar grande quantidade de sedimento, a partir do final da década de 1970 esse
processo foi intensificado com a expansão da atividade agropecuária na bacia do alto Taquari (BAT). Os
resultados das análises estatísticas evidenciaram um aumento significativo no regime pluviométrico e
consequentemente na erosividade das chuvas na BAT, entre o período de 1969- 70/1973-74 para o período de
1974-75/1987-88. Cf.: SORIANO, B.MA.; CLARKE, R.T.; CATELLA, A.C. Evolução da erosividade das
chuvas na bacia do alto Taquari. Corumbá: Embrapa Pantanal, 2001. 18p. (Embrapa Pantanal. Boletim de
Pesquisa, 25).
40
fisga, já fiz aí embaixo com meu pai, aí mudou, o peixe mudou muito.
(Coxim, 13/04/2013).
A entrevista foi realizada na residência da senhora Marlene, a qual faz fundos com o
Rio Taquari, sendo assim, ela apontava para o rio mostrando os lugares sobre os quais narrou
no trecho acima. Ainda gesticulava e demonstrava os apetrechos utilizados na pescaria,
realizando uma comparação entre o período da sua infância até a atualidade, demonstrando
como se pescava e o que era permitido na realização do fazer pesqueiro.
IMAGEM 3: Tamanhos de anzol.
FONTE: <http://revistaaruana.blogspot.com/2014/10/especial-medida-dos-anzois.html>.
Acesso em: 25/07/2018, às 16h.
A imagem acima ilustra o tamanho dos anzóis, para termos uma noção das mudanças
que a arte pesqueira sofreu com essas transformações. A entrevistada prossegue e afirma:
[...] modificou muito! Modificou a pescaria, modificou o jeito das pessoas
pescarem, modificou o tamanho do anzol. Você sabia que esses anzol barra
0,1, barra 0,2, não se usava? Porque não aguentava os peixes, era só anzol
grande, era barra 0,12, barra 0,14, aqueles anzolzão, fundo de agulha bem
grandão, era fundo de agulha primeiro, agora não, se pega anzolzinho.
(Coxim, 13/04/2013).
Marlene aponta mudanças significativas no decorrer desses anos e que a pescaria era
a busca por peixes grandes, mas hoje não; devido às transformações no rio, esses peixes de
grande porte não são mais pescados com tanta facilidade como era antes. Portanto, atualmente
o que cair no anzol é uma conquista. Ela destaca ainda, sobre a modificação do tamanho dos
anzóis e do tamanho do pescado, que a mudança ocorreu de maneira gradativa:
41
[...] quando pegam um pacu de 5 quilos, ficam doido os rapazes, eu peguei
um dourado de 16 quilos, eu mesma coloquei ele nas costas. Eu não estava
conseguindo, meu pai falava: “Você não consegue minha filha, é muito
grande”. Dourado de 16 quilos eu peguei, pacu de 13 quilos eu peguei, então
mudou muito [...] meu pai falava, “conserva minha filha esse rio!” Pelo
menos quando você estiver com 60 anos, você pelo menos um peixe de 12
quilos você vai pegar [...] porque vai acabando [...](Coxim, 13/04/2013).
A pescadora se mostra envaidecida ao relatar que pescou peixes grandes, ainda bem
jovem, pois entre 14 e 15 anos começou a pescar e nessa época os pescados eram pesados
para ela carregar; no entanto, jogou nas costas e prosseguiu com seu peixe. Ao relatar esses
episódios, seus olhos brilham e, de maneira comovente, narra gesticulando como se estivesse
revivendo o passado.
Relata ainda sua relação identitária com o trabalho:
[...] eu não pesco de molinete, nunca pesquei, eu não gosto. É na linhadinha
mesmo e outra, você pode ver, eu vou lá [comércio de artigos de pesca]
compro uma vara de piauçu, às vezes eu quero ficar na sombra, às vezes o
piauçu está pegando no meio e eu não quero ficar no sol, ai eu vou lá e
compro umas varas de piauçu, ou senão eu vou ali no pé de bambu, eu tiro
umas dez, cinco varinhas de bambu, pedaço de bambu mesmo ou um pedaço
de pau, eu amarro minha linha e pesco fico pescando [...] toda vida foi assim,
nunca usei molinete, e outra eu só pesco com linha 0,60 para ximboré e a
linha 0,70 e 0,80 para piauçu e para piraputanga e tudo, porque ali vem de
tudo! [...](Coxim, 13/04/2013).
Segundo o modo de narrar, fica evidente que para a entrevistada pescar é uma arte,
destaca que não gosta e não necessita de apetrechos especializados em suas pescarias, prefere
a maneira tradicional, ou seja, com linhadas, varas de bambu ou até mesmo com pedaços de
pau. Sua narrativa é rica em detalhes de sua vivência de pescadora, rememorando um longo
tempo de trabalho e de dedicação. Detalha a espessura da linha em milímetros necessários
conforme os peixes que pretende pescar, e faz isso com um saber adquirido naturalmente,
apreendido desde a infância.
A senhora Marlene prossegue a narrativa demonstrando uma preocupação que seu
pai lhe transmitia sobre a preservação do rio, apontando que raridades de pescados poderiam
acabar:
[...] você sabia que há quarenta e cinco anos atrás, peixe de cinco quilos, não
se tirava de dentro do rio, você sabe por quê? Tinha muito peixe! Descartava
os peixes pequenos, meu pai ainda falava assim: Olha, pega com cuidado, de
baixo das asinhas dele para poder não destroncar, porque tem que soltar. Um
42
dia, peguei um pintadinho, aí ele falou: Solta, minha filha, que o peixe é
pequeno demais, solta ele [...]. (Coxim, 13/04/2013).
Sua memória está marcada pela riqueza de pescados existentes nesses rios; faz um
comparativo no sentido de que peixe pequeno não se tirava do rio, pois se tinha a ideia de que
era necessário deixar o peixe crescer. Atualmente, em virtude da alteração ambiental, mudou-
se o comportamento, e se comemora muito ao pegar um peixe de 5 quilos. De fato, existe uma
tabela vigente com as medidas de tamanho permitido, ou seja, o peixe deve corresponder a um
tamanho específico para ser retirado do rio. O desrespeito a essa regra pode gerar multa e
prisão, isto é, é proibido capturar fora dessa tabela, sendo autuado(a) o(a) pescador(a)
amador(a) ou profissional responderá por crimes ambientais18
.
Já na questão relacionada ao comércio desses pescados, Almeida relembra que
[...] não tinha onde vender, tinha que salgar o peixe, tinha que mantear
(cortar em mantas e salgar) o peixe, para esperar o comprador, aí meu pai
tinha os lotes para eles mantear e era umas piraputangonas! Não era essas
pequeninas [...] tudo grandona, de 2 quilos de 2,5 quilos e meio, era curimba
[curimbatá], era tudo peixe grande, não tirava peixe pequeno, agora não tem
outro, tem que tirar o pequeno [...].(Coxim, 13/04/2013).
A memória de Marlene está marcada pela riqueza de outrora do rio, desses pescados
grandes, ou seja, peixes de 20 a 40 quilos, de acordo com o tipo de peixes. Para a narradora
essas mudanças foram significativas, sendo que havia uma ideia natural de preservação no
sentido de que tamanho de peixe seria apropriado retirar do rio. Porém, na atualidade se
percebe que essa mudança nas condições ambientais interfere na maneira de pescar,
transforma a arte pesqueira e o cotidiano das pescadoras. Obviamente, o valor desses peixes
tem uma diferença no mercado, sendo mais rentável o peixe grande; no entanto, hoje conta-se
o que se pega no rio.
Outra questão importante mencionada pela entrevistada é que, primeiramente, os
peixes eram salgados para permitir a venda posterior, esperando um comprador. Com o passar
dos anos e com a chegada de um pequeno frigorífico de peixes, começou o transporte desses
pescados: “bem aqui”, diz apontando para a direção do antigo frigorífico chamado Linares,
“começou transportar, [...] ainda era só peixe salgado.[...] Aí que ele começou transportar os
peixes, mas era assim, fazia uma carga, [...] era muito peixe, menina” (ALMEIDA, 2013).
Interrompe a narrativa e pensa; nesse momento de sua reflexão, ela destaca:
18
Conforme Lei Nº 9.605, de 12 de Fevereiro de 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm>. Acesso em: 15/03/2017, às 14h.
43
[...] eu lembro que eu peguei um jaú de 60 quilos, quem ajudou a tirar do rio
foram os homens, porque estava amarrado, era uma linhona da grossura
desse dedo [mostra o dedo indicador], estava amarrado num pau, quando eu
ia segurar naquela corda o jaú dava um pinote, o jaú só fazia isso e já me
derrubava, e os homens falaram: nossa, vamos tirar! Eles me chamava de
neguinha, neguinha pegou um peixe grandão! Daí o peixe queria me levar,
ele só fazia assim, eu já caía, porque ele era muito grande, aí eles tiraram, sei
que aí, era uma balançona grandona, até hoje eu me lembro, eu fecho o olho
e vejo, foi eles que tiraram, foram eles que limparam, eles que carregaram
para mim, quatro homens! Que se não fosse eles eu não pegava nem a asa
daquele jaú! (Coxim, 13/04/2013).
A senhora Marlene descreve sua fragilidade física ao capturar um peixe grande, na
questão da retirada do rio, porém, observamos também em sua narrativa que não foi apenas
um homem que a auxiliou, mas 4 homens. Portanto, não seria fácil para ambos os sexos. Em
seguida questionei: foi o maior que a senhora pegou? “Não! Eu peguei um de 70 quilos, só
que não tirava, não dava conta” (ALMEIDA, 2013). Portanto, a pescaria para Marlene era a
busca pelo peixe grande, que mesmo sabendo que precisaria do auxílio masculino, a mesma
não desistiu de ir em busca do pescado valioso.
Ao perguntar se pescava sozinha, Marlene respondeu: “sempre pesco sozinha! Teve
uma época que nós pescava ali do outro lado, naquela pedra, a gente só faltava sair nos tapas
por causa do lugar. [...] Eu pescava, eu não tinha a canoa, eu pescava no mato” (Coxim,
13/04/2013). Em seguida relembra de um apuro que viveu numa dessas pescarias:
[...] um dia fui lá no rio e pesquei duas cacharas, uma não era grande, a outra
era bem grande, era três peixes, olha o que que eu fiz!, Eu amarrei esses
peixes numa corda e marrei na perna, mas eu achei que tinha matado, ele
viveu [o maior], ele cansou, a hora que eu subi em cima, eu vi minha mãe,
mas, quando eu ia gritar, eu falei: minha mãe não sabe nadar! Aí eu falei:
vou morrer aqui com esse peixe marrado na minha perna e quando eu fazia
assim para eu pegar na linha, eles afundava comigo, até que eu fui batendo,
batendo, batendo e batendo, até que eu falei: bem ali tem uma pedra eu vou
ver se tiro essa perna aí eu só solto o corpo pra não morrer afogada com
cinco peixe marrado na perna, aí quando eu estava saindo cansada minha
mãe falou assim: o meu véio, se você não fizer uma canoa pra neguinha ela
vai morrer afogada com os peixes amarrados na cintura, na perna, eu
comecei a amarrar na cintura, o duro que na cintura não dava pra nadar [...]
até atravessar com os peixes [...](Coxim, 13/04/2013).
Ao descrever que pesca sozinha, descreve sentidos de empoderamento,
protagonismo, independência e autonomia, categorias extremamente importante na construção
da história das mulheres. Em diálogo com Bourdieu (2002) observamos que as narrativas
44
podem contribuir para empoderar, nesse caso as pescadoras, ajudando-as a refletir sobre
situações como o da opressão e da dominação invisível, muito presente no setor pesqueiro.
Assim, o ato de empoderar-se significa um desafio nessas relações de poder predominantes
em profissões ditas masculinas. Representa também, uma expansão no sentido de liberdade de
escolha e de atuação e ainda, possibilitada a capacidade de agir dessas mulheres sobre os
recursos e decisões que afetam suas vidas. Ao refletir sobre a história das mulheres, destaco
que é um processo que pode ajudar na superação de desigualdades de gênero, ou seja,
autônomas e independentes.
Sua narrativa é entremeada de oralidade imaginativa e fantasiosa, carregada de
sentidos e significados de uma pescadora corajosa e audaz, que preza por narrar os seus feitos.
Não percebe, mas no início da narrativa relata que eram dois ou três peixes e ao final se
tornam cinco peixes. Seguindo, demonstra também os riscos que a profissão traz aos
pescadores, pois praticamente todos os anos morrem pessoas vítimas de afogamento.
Inclusive, seu esposo foi um pescador profissional que morreu afogado, segundo a narradora.
Em seguida questionei se após esse episódio ela havia conseguido comprar sua canoa, e ela
responde: “depois meu pai conseguiu com o Zé Colodino, um pescador velho, o pai de
Marlene disse: Manoel, estou querendo fazer uma canoa, o meu pai fazia. Há! então eu faço
para você, aí você dá a velhinha para menina pescar, foi aí que consegui!” (Coxim,
13/04/2013). A canoa, mesmo velha, facilitou o trabalho da pescadora, pois não teria mais que
amarrar os peixes nos pés ou na cintura para atravessar o rio Taquari.
45
IMAGEM 4: Fotografia digitalizada: demonstra a pescadora Marlene remando com sua canoa no rio
Taquari.
FONTE: arquivo pessoal da senhora Marlene, 10/1991. Fotografia utilizada na dissertação de
mestrado defendida em 2013.
Na fotografia acima, a senhora Marlene sobe o rio Taquari com seus filhos ainda
pequenos, para um dia de pescaria.
Marlene relata ainda sobre o seu “lugar” de pescar no rio:
[...] tenho, ali é o buraco da Marlene ali, toda vida ali [apontando para o rio],
ali é meu cantinho e é a natureza curadinha, não tem nadinha, não tem uma
árvore tirada naquela beirada, porque eu não deixo, ali é sagrado,
preservado, agora eu vou levar para lá mudas de caju, de manga [...](Coxim,
13/04/2013).
Marlene possui um espaço no rio dedicado para a sua pescaria, esse local fica aos
fundos de sua residência. Para ela é sagrado, pois é dele que é retirado o seu sustento. É um
espaço cuidado e preservado por ela, pois tem o sentido de sua propriedade, de e para o
trabalho, e não permite o desmatamento nesse espaço. E faz um comentário tentando
estabelecer uma relação de ligação quanto ao assoreamento do rio, pois:
[...] ficam culpando os fazendeiros, mas outra coisa que tem dentro desse rio
aqui, que eu já falei: fica lancha, se sabe por que? Que é de dez anos pra cá,
eu falo, porque eu tenho experiência, de uns dez anos pra cá, o que de
arvoredo que cai, nessas beira do rio, tem hora que você anda por um
barranco, naqueles que tem aquelas entradinhas que a lontra faz. Você fica lá
e manda uma lancha passar duas vez pra você ver o que uma lancha faz num
barranco. [...] Ela bate lá [...]. Você escuta o lepi lepi lepi, daí uma semana
depois você vai lá pra ver o barranco, está arriando e se tem uma árvore
46
grande e pesada, e se aquela árvore cai, ela vem e arranca metade do
barranco. Eu falo que aquilo tudo eles derrubam tudo aquelas beiradas [...].
Deveria ter uma velocidade que não faça muita onda, se ela passar muito
devagar também ela faz a onda o dobro [...](Coxim, 13/04/2013).
Marlene aponta em sua narrativa uma possível teoria empírica ao dizer que foi a partir da
ampliação dos movimentos de pequenas lanchas que se iniciou o processo de assoreamento do rio
Taquari. Justifica sua opinião a partir de experiência e convivência com o rio, observando os
acontecimentos ao longo dos anos de pescaria, fato esse observado por outras pescadoras como a
senhora Orlinda19
, moradora de Miranda/MS. Seguindo suas explanações, dona Marlene faz uma
comparação da época em que seu pai pescava e os dias de hoje:
[...] mudou muito, você não tinha muito trabalho de pegar como hoje, meu
pai tinha vez que saía daqui, falava assim: minha veia, eu vou ali na
cachoeira do campo, fazer uma carga de peixe. [...] Então saíam cedinho,
tinha muitos filhos e não tinha essa venda de peixe que tem agora, era muito
difícil, aí eles queriam só os peixões, então eles saíam cedinho. Me lembro
como hoje, pegava uma banda de rapadura e uma vasilhinha com farinha e lá
ele rapava a rapadura e misturava com farinha para comer, ou levava um
pouquinho de sal, porque lá eles pegavam uma curimbinha e já assava com o
sal e já comia com farinha, aí quando era de tardezinha eu já ficava de olho,
eu ficava pescando por aqui, ficava olhando para quando ele chegar, eu ir
ajudar ele atravessar, porque ali a água era muito forte, [...] de longe já via os
trem deles, tudo por cima do peixe. O Osmar [irmão] falava: o meu pai vem
com a canoa alta, de primeiro a canoa era alta, ficava só com a beiradinha
porque se a água fizesse assim jogava os trem dele dentro da água e ele com
aqueles jaúzão, menina você via cada lombo, dessa largura, era gostoso
demais [...](Coxim, 13/04/2013).
Em seu relato, analisamos as mudanças ao longo desses anos, pois hoje, para fazer
uma carga de peixe, pode-se levar de 30 a 40 dias de pesca ininterrupta. Uma das
justificativas para essa alteração é que quando o pai da senhora Almeida pescava, era liberada
a pesca com rede e hoje não; a pescaria permitida por lei é apenas com anzol, dificultando
assim a captura de um grande volume de pescado. E ela finda a narrativa relatando que
“pescar de anzol não acaba com os peixes do rio” (ALMEIDA, 2013), afirmação essa a partir
de seus conhecimentos com o fazer pesqueiro.
De acordo com as expressões de dona Marlene Almeida, pode ser possível deduzir
que uma educação ambiental eficaz, ou seja, pautada no contato, no convívio com o rio e com
as atividades de sobrevivência alicerçadas na relação dos indivíduos com a natureza,
possibilitaria o restabelecimento da anterior realidade da arte pesqueira, uma vez que a
19
Cuja entrevista será apresentada posteriormente, nesse capítulo.
47
ausência de conscientização resultou no esgotamento de pescado de grande porte, como
pintados, jaús, pacus e dourados.
1.2 - Sra. Ivanil: "Sou livre e desimpedida"
A ribeirinha senhora Ivanil Bispo da Silva Domingues, 56 anos, natural de Coxim,
nascida na fazenda Alegre, apresenta-nos suas memórias que partem de sua infância vivida na
barranqueira, ou seja, uma ribeirinha que pescava apenas para se alimentar. Casou-se com um
pescador, constituiu família, mudou-se para a cidade, e trabalhava de doméstica, no entanto,
sempre gostava de pescar. Porém, não podia ir pescar no Pantanal com o esposo devido ao
filho pequeno, assim, nas horas vagas pescava na cidade e vendia pequenos peixes para as
peixarias. A entrevista foi concedida no dia 13 de abril de 2013.
A pescadora nos relata a sua experiência com a pesca no Pantanal:
[...] no Pantanal é que nós pescamos, e é de anzol de galho e de tarrafa na
medida que a gente pega a isca [...] para armar o anzol de galho. [...] As
pessoas acham que é tudo fácil, mas não é, pois tem muito pernilongo,
mosquito. Acham que é só farra, não é! É uma coisa muito difícil porque
você tem que acordar, você arma os anzóis à tarde entre 6 e 7 horas, você
arma os anzóis e depois você vai correr o anzol, entre 10, quase 11 horas da
noite. Eu acho que é ...[pensa] é muito difícil, aí você já tem que levantar
para correr anzol por causa da piranha, porque se não a gente chega lá e ela
já comeu tudo. [...] Então, nós limpamos e guardamos, porque nós não
deixamos nada para fora, pegando eles [peixes], já limpamos e já
guardamos. Aí quando chega 9 horas a gente dorme, aí quando é 4, 5, 6
horas nós vamos correr os anzol de novo[...] (Coxim, 13/04/2013).
Em seu relato, observo que a organização das tarefas do dia a dia da pescaria são
todas cronometradas, pois a entrevistada destaca que precisam estar atentas ao momento de
cada atividade ou correm o risco de perder a sua produção para piranhas, que devoram tudo
em instantes. Narra, ademais, que ela e seu esposo ficam 40 dias no Pantanal, acampados e
migrando conforme o movimento dos peixes. Ao descer ao Pantanal, leva água potável e,
quando esta acaba, utiliza o filtro e relata que a água fica da cor da torneira: “é a água do rio
mesmo que nós bebemos, nós fazemos a compra, daí levamos as coisas, o gelo” (Ivanil,
2013). Fica evidente em sua narrativa um diferencial em relação aos pescadores homens: a
mulher tem a preocupação com a filtração da água do rio, e nos relatos de pescadores homens,
afirmam que muitas vezes bebem água do rio mesmo, ‘só deixam a água descansar para
abaixar a sujeira’, e em seguida bebem.
48
Ao ser questionada sobre sua profissão, verifico sua atuação na arte pesqueira em
contraponto com o trabalho doméstico. Ivanil responde:
Eu era doméstica, eu trabalhava de doméstica mesmo, [...] eu acho uma
diferença muito grande, [no exercício da profissão] porque a doméstica você
trabalha, você ganha aquilo ali fixo, e lá no rio não! Você já pega o peixe e
você já sabe o que está ganhando em cima daquilo. Livre de tudo, [despesas
com o atravessador] o pagamento é maior e é mais valorizado. É assim, eu
acho que é melhor aqui [pescando] porque não tem ninguém para mandar em
mim, não é? Daí eu vou lá e faço minha carga, assim sou livre e desimpedida
(Coxim, 13/04/2013).
Foi possível observar, pelo que expressa, que a vida de trabalhadora doméstica não
lhe proporcionava a renda que a pescaria lhe possibilitou. Outro ponto importante em sua fala
é o sentimento de “liberdade” que a profissão lhe oferece e, ainda, une a liberdade com o
gosto pelo ofício: “eu gosto de ser pescadora mesmo, porque eu gosto dessa vida de ir pescar,
está dentro do rio mesmo.” (DOMINGUES, 2013). Assim, não é uma escolha somente pela
renda que a profissão lhe proporciona, mas pelo próprio gostar da atividade, pois se sente
valorizada e não pensa em ter outra profissão, segundo suas próprias palavras.
Geralmente, neste contexto de ribeirinhos pescadores, a profissão é passada
hereditariamente, através do conceito de modo de vida20
, ou seja, um vivido, um saber
repassado de pais e mães para filhos e filhas. No entanto, conforme a senhora Ivanil, não
deseja que seu filho siga a profissão, e diz:
[...] não! meu filho está estudando, está fazendo faculdade de Educação
Física e ele trabalha na cidade mesmo, [...] trabalha naquele trabalho e só vai
[para o pantanal], quando a gente chama ele, para ir lá nos ver [...]. Olha, eu
não quero, para mim, eu acho que não, eu já estou lá dentro [no mundo da
pesca], eu já sei que é sofrido e para meu filho, não! (Coxim, 13/04/2013).
Mesmo tendo uma narrativa anterior sobre o gosto pela profissão, ela não quer que o
filho siga sua profissão, devido ao “sofrimento” no exercício do ofício. Aponta que o filho vai
para o Pantanal somente quando é chamado pelos pais, em ocasiões específicas. Ivanil
20
Por modo de vida compreendemos o plano da vida imediata, em que se debatem o viver e o vivido, o saber e o
sabido, o fazer e o não fazer, enfim, diferentes matrizes socioculturais que se defrontam com os imperativos da
indústria e do mercado. Para o homem comum, a vida cotidiana apresenta-se como uma espécie de território;
nela, as relações sociais ganham um colorido e apresentam as possibilidades de realizações, e é nela também que
se apresentam as limitações tanto concretas como simbólicas. Conhecimentos de um mundo vivido, elaborado e
reelaborado, que se materializam na maneira de um lugar identitariamente referenciado e validados na interação
social. Cf.: ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: Colonialidade, Modernidade e
Processos de Territorialização. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Orgs.). Desenvolvimento e Conflitos
Ambientais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 439-462.
49
responde em tom de reflexão que pescadora (o) não é valorizada (o); sua afirmação contém
certa contradição em relação à sua explanação anterior, quando menciona uma hierarquização
entre determinadas atividades que exerceu, a pesca e o serviço de doméstica. Neste momento,
afirma: “não! Pela lei pescador não é valorizado e a gente não tem apoio de ninguém, [...] da
justiça, de ninguém [...]” (DOMINGUES, 2013). Em seguida fica em silêncio, refletindo
sobre o reconhecimento da categoria. No entanto, relatou há pouco que se sentia valorizada
em alguns aspectos. Emite um juízo de valor e um sentido social ao dizer que, se a renda for
maior, ela se sente valorizada. Observo que há uma confusão em relação ao que seria, de seu
ponto de vista, uma valorização pessoal, profissional, social enfim; é uma visão das relações
comerciais que a profissão lhe possibilita, porém, para o filho almeja outros caminhos.
Ao ser questionada sobre a atuação da colônia de pesca21
, a mesma relata:
[...] a colônia é uma força para o pescador, porque se não fosse o presidente!
Nós não tínhamos nada daquilo, a colônia sempre foi aquela, quando
antigamente, que eu comecei a pescar em 1999, a colônia era muito precária;
agora você chega lá, tem apoio para o pescador, eles dão assistência mesmo!,
para o pescador. O presidente corre atrás, vai para Brasília, vai para todo
lugar, se não fosse o presidente a colônia já tinha fechado, [...] eu ia em
muita reunião em Campo Grande no tempo do Zeca (Governador do Estado
MS, 1998-2006). O governador Zeca quis fechar a pescaria, não é? Com
apoio do presidente, nós fomos em 10 ou 15 reuniões, nós íamos para
Campo Grande! Se não, graças a Deus, é o apoio da colônia, se não a
pescaria já tinha fechado mesmo! A Colônia tem um papel importante para o
pescador, ela orienta tudo para o pescador. (Coxim, 13/04/2013).
Assim, destaca que ela reconhece a força e o papel da colônia de pesca enquanto
representação da categoria, no entanto, direciona sua valorização ao presidente, no qual
denomina com exaltação enquanto representante da categoria. Essa postura está presente na
narrativa dos pescadores homens22
e também das mulheres; em geral, costumam reconhecer a
figura do presidente da colônia como um grande lutador pelos direitos da categoria em
Coxim, numa espécie de atribuição heroica a quem ocupa esse cargo.
Dona Ivanil faz uma crítica à imprensa e aos governantes que disseminam a notícia
de que não há mais peixe nos rios da bacia pantaneira, diz que é preciso “ir lá” em lócus “ver
21
A presente pesquisa revela que tanto o pescador quanto a pescadora estão organizados e ativos nas Colônias de
Pesca locais, que tem a função de registrar e organizar a documentação profissional da categoria. Ainda realiza
orientações, quanto às normas legais da pesca e além de, ter a função de representação sindical. As pescadoras
entrevistadas, todas estão filiadas em colônias de pesca, conforme Lei nº 11.699, de 13 de junho de 2008, sendo
as Colônias de Pesca as é a primeira instância de representação sindical e preza pelos direitos desses possam ser
reconhecidos e assegurados. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11699.htm>.
Acesso em: 16/03/2017, às 14h. 22
Conforme narrativa dos pescadores entrevistados: ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias,
Significações e Apropriações: Pescadores Profissionais de Coxim/MS - (1967 a 2012).
50
se tem peixe ou não, antes de sair falando sem saber” a realidade do quantitativo de pescado.
Demonstra, ainda, que reconhece a importância do conhecimento dos ribeirinhos nesta
questão, para a implantação de leis, decretos e ações em geral para proteção da pesca e dos
peixes, e salienta que os mesmos deveriam ser ouvidos.
É interessante que ela, em sua fala, faz uma espécie de convocação, como que
chamando essas pessoas que não tem a vivência da pesca e do contato com o rio para
presenciarem a migração dos cardumes de peixe, para depois se posicionarem a respeito da
quantidade de pescado e de fato conhecer o potencial pesqueiro da bacia pantaneira.
Na imagem abaixo, visualizamos a pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira,
juntamente com outro pescador. Esta cena entre as mulheres é rara, pois a maioria das
pescadoras “são” de barranco, ou de pequenos barcos e canoas. Dona Ivanil, percebe-se,
rompe com certas condutas socialmente perpetuadas no que diz respeito à profissão, pois é
bastante atuante e se desenvolveu no trabalho que anteriormente era sempre atribuído a
homens. Sobre o fechamento da pescaria nos rios da bacia pantaneira, Ivanil narra: “Ah! se
fechar a pesca, coitado dos pescadores que depende da pescaria, não é? Porque esses
salarinhos pequenos, ai! não que aquele que a gente tem costume de trabalhar, não é? [...]”.
(Coxim, 13/04/2013).
IMAGEM 5: Pescadora Ivanil pilotando a lancha pesqueira.
FONTE: Fotografia digital datada junho/2013. Fotografia utilizada na dissertação de mestrado
defendida em 2013.
Ou seja, os pescadores e pescadoras já se acostumaram a ter uma renda de suas
produções e não conseguiriam em outra profissão. A questão financeira é um fator importante,
51
sendo que é comum que essas trabalhadoras façam reservas financeiras para passar o período
da piracema, época em que a pesca é proibida, e os pescadores e as pescadoras cadastrados
recebem os “salarinhos pequenos”. Segundo elas, e de acordo com os comentários da
entrevistada, o salário mínimo que recebem não é suficiente para manter o sustento da família.
Dona Ivanil encerra a entrevista comemorando uma conquista: “[...] hoje, graças a
Deus consegui com meu suor, eu e meu marido, nós dois e com muita batalha, conseguimos
comprar uma lancha, e hoje eu vou jogar ela na água, [...] vou comemorar, [...] essa conquista
que conquistamos com muito esforço e muito suor.” (Coxim, 13/04/2013).
1.3- Shirlei Aparecida: “Eu sou guia de pesca”
A próxima entrevistada é mais jovem. Trata-se de Shirlei Aparecida da Silva, nascida
no dia 22 de julho de 1982, natural de São Paulo-SP, moradora no distrito de Saloba, na
cidade de Miranda. Ao andar pela comunidade, verificamos que seu nome era referência, pois,
segundo as pescadoras, é uma mulher que atua de modo muito presente no ramo da pesca
profissional e de maneira peculiar na região pantaneira: além de pescadora, é também
piloteira, atendendo ao turismo local.
Em sua narrativa sobre a profissão, Shirlei (2017) detalha seu inicio profissional:
Eu comecei (pensa) deixa eu ver! (pausa) Depois que eu conheci ele
(marido) que eu fui pescar. Ele descia para pescar e eu não tinha condições
de ir, daí comecei a gostar de ir com ele pescar. Então tirei os documentos e
fui pescar. Primeiro tinha que tirar o documento, daí eu comecei a pescar, ia
acampar e fui aprendendo, eu ficava lá, eu aprendi! Comecei a remar e ele
começava a rir de mim, ficava remando no meio do rio, aí fui indo, nós
pescávamos aqui em baixo (mostra a direção do rio), todo dia ia pescando,
foi aí que eu fui pescar com minha cunhada, eu e as minhas meninas. Todos
os dias nós descíamos, eu não sabia pilotar, eu descia e colocava o motor no
barco e ia já sozinha pilotar e assim foi indo, passado um tempo, foi que fui
aprendendo[...](Miranda, 16/01/2017).
A narradora descreve que o ofício lhe foi apresentado pelo esposo e foi ele quem a
ensinou a exercer o trabalho de uma maneira que a levasse a se tornar profissional e à sua
independência. Desde o momento em que começa a pescar com sua cunhada, vai pegando
segurança na arte pesqueira. Pescadora e mãe, leva para a labuta suas filhas, ainda crianças,
para acompanhar suas tarefas diárias no rio, devido à falta de onde deixar as crianças.
O contexto em que se desenvolve, na atualidade, a vida das pescadoras no meio
urbano e a forma como conseguem organizá-la, são elementos de fundamental importância ao
52
entendimento sobre as questões de gênero, família e pesca em Mato Grosso do Sul,
principalmente porque influenciam as práticas cotidianas da família. Destacamos que os
relatos aqui apresentados revelam lutas e dificuldades diárias, tais como: acesso aos centros
de educação infantil para os filhos, as relações parentais no exercício do ofício e as de
vizinhança. Além disso, optar pela pesca também interfere e determina as relações com o
meio ambiente e, consequentemente, com a organização e a execução dos trabalhos na casa e
na pesca, fatores esses evidentes nas narrativas.
Ao ser questionada quanto a se pescava para o comércio de pescado ou para ela
mesma vender o seu peixe, Shirlei (2017) responde: “a gente pesca para vender, pilotava para
pescador mesmo (turista). Ele pilotava para uma turma e eu com outra turma pilotava, porque
meu marido ia mais, aí fui pegando experiência”. Nesse momento inicial de sua atividade, ela
vai ao poucos adquirindo o aprendizado, realizando já a pesca para turistas tanto da região
quanto de fora do Estado. Quando não estão como guias de pesca, aproveitam para pescar
para depois vender para os turistas, outra maneira rentável para as pescadoras.
Shirlei (2017) destaca como foi o início profissional:
Antes eu não conhecia o rio nem os turistas, eu pilotava só para casais, daí a
gente foi tendo conhecimento, conhecendo homens... Eu comecei a pescar
primeiramente para dois homens. Como sempre vem mais homem, eu
comecei a ir, às vezes uma mulher mesmo, pescava mais para casais, às
vezes só para uma mulher [...](Miranda, 16/01/2017).
A entrevistada destaca que sua relação de trabalho com turistas homens sempre foi
de respeito, visto que é uma mulher trabalhadora que exerce uma profissão. Respeito nesse
sentido e com o trabalho que a mulher desenvolve, com suas funções e representações no
mundo do trabalho. Destaca que primeiramente pilotava apenas para casais e logo se torna
uma guia de pesca para quem quiser ir pescar, de qualquer gênero:
Nunca aconteceu deles não me respeitarem, sempre me respeitam, nunca
mesmo! [pausa] Mesmo com eles bebendo, nunca me desrespeitaram. No
começo eu era discriminada, falavam assim: ‘Como você fica pilotando para
homem aí?’ Assim, né? Como você faz para ir ao banheiro?’ A primeira
coisa que perguntam. Eu falo assim: não! Eu não vou ao banheiro, só se eu
tiver bem apertada. Eu não vou, mal bebo água no rio, quando eu estou
muito apertada eu vou, ainda mais com os turistas vendo? Eles vão! Eu falo
para eles: desce no barranco ou eu falo para eles: Eu viro para lá, fica à
vontade, eles estão ali para divertir, não é? Fica à vontade, esquece que eu
estou aqui, eu viro para o lado, daí mas hoje em dia estão acostumados
comigo já. (Miranda, 16/01/2017).
53
É interessante observar os significados socialmente construídos e repassados para
determinados grupos presentes nesta narrativa. Shirlei (2017) destaca uma representação do
lugar da mulher, esse espaço onde a mulher precisa preservar o seu corpo dos olhos dos
homens, enquanto eles não precisam, podem ficar à vontade, pois quem tem que “virar” o
rosto é a mulher. Quanto a ela, precisou suportar comentários sobre seu trabalho em meio a
homens, e se resguarda de ingerir água e de satisfazer as necessidades físicas em um ambiente
no qual estaria exposta aos turistas. Nessa fala observamos dois pontos importantes sobre sua
relação com a saúde e com o trabalho: a pescadora prioriza seu trabalho e negligencia sua
saúde23
.
Uma das questões que merece reflexão nesse estudo é a saúde da mulher pescadora.
Aqui se evidencia um relato do papel de gênero no ato da pesca, pois é um corpo que não se
situa no universo masculino, é um corpo feminino controlado por regras morais e hierarquias
de gênero. É um sexo que denuncia sua representação, ao narrar que não bebe água para não
ter que ir ao banheiro durante o seu trabalho. Na região do estado de MS, em geral as
temperaturas no rio são altas na maior parte do dia. A pescaria ocorre em horários onde à
sensação térmica varia entre 35 a 45 graus no período das 9h até por volta das 16h.
Isto demonstra a necessidade de, como pesquisadores, analisarmos formas de incentivo para
se pensar de forma mais responsável acerca da saúde dessas mulheres no exercício de sua
profissão.
Destaco que as doenças que mais acometem as mulheres pescadoras estão
relacionadas principalmente à sobrecarga de trabalho, às condições de insalubridade e
periculosidade presentes em seus ambientes de trabalho e acometem tanto as mulheres, como
também os homens. Assim, as relações saúde e doença em mulheres pescadoras perpassam
pelas representações sociais e valores culturais a elas impostos e empregados por elas em seu
modo de viver e de trabalhar com as atividades pesqueiras, visto que o trabalho e a vida
cotidiana são influenciados pelo ambiente em que vivem.
No decorrer da entrevista, Shirlei (2017) demonstra que conseguiu sua independência
tanto com a pesca como também com a carteira nacional de habilitação:
[...] coloco o motor no barco, jogo o motor no barco, tem gente que fala:
‘Shirlei, você é doida!’ Aí eu falo: Por quê? Eu tenho que ficar dependendo
dele? Eu vou ficar dependendo dele? Como agora, com o carro, eu pego o
motor, eu coloco lá na ponte com o carro e ele me ajuda. Às vezes eu mesmo
23
CF.: BRITO, Jussara Cruz de and D'ACRI, Vanda. Referencial de análise para o estudo da relação trabalho,
mulher e saúde. Cad. Saúde Pública [online]. 1991, vol.7, n.2, pp. 201-214. ISSN 0102-311X
54
coloco, eu viro o barco e coloco o motor e vou pescar. (Miranda,
16/01/2017).
A narrativa de Shirlei é marcada por sua conquista empoderada; segundo ela, hoje
com a compra do carro e o seu conhecimento de manobras com o barco e com o motor,
consegue fazer atividades que antes necessitava do auxílio do esposo. Demonstra, perante aos
meus questionamentos, sua independência, ao afirmar que consegue se desenvolver em seu
trabalho sem a interferência ou a necessidade de ‘tutela’ do esposo.
IMAGEM 6: Pescadora Shirlei.
FONTE: Arquivo pessoal da entrevistada, fotografia impressa sem data.
Na foto acima, Shirlei (2017) se orgulha em demonstrar seu pescado, um verdadeiro
troféu, pois o peixe pintado é uma espécie considerada de porte médio a grande, e exige muito
esforço físico para ser retirado do rio. Seu cotidiano com a pescaria está estabelecido: "Saio
cedinho mesmo; é, a gente sai cedo e fica o dia inteiro no rio, às vezes levo o almoço, faço
uma marmita. Quando é para mim eu pesco à noite mesmo, eu já me acostumei, vamos nós
dois, armamos o anzol e ficamos a noite”. Em sua narrativa, observamos o companheirismo
com o esposo, embora a ausência do mesmo não a impeça de realizar a atividade sozinha, pois
hoje tem a autonomia no seu fazer cotidiano.
55
1.4 – Sra. Orlinda Vitoria: “pescadora é aquela que está no rio pescando”
Orlinda Vitoria Dias Moraes, nascida em 28 de julho de 1960, é natural de
Miranda/MS. Relata que é uma pescadora que nasceu em um ambiente pesqueiro, e segue o
trabalho profissional juntamente com o esposo. O matrimônio, segundo ela, lhe propiciou o
aperfeiçoamento do seu trabalho. Ao chegar a sua casa, sem me conhecer sou convidada a
entrar. Apresento-me, logo arruma a cadeira para eu me sentar e muito tranquilamente começa
a narrar sobre sua trajetória de vida:
[...] eu nasci e me criei mirandense [...]. Minha mãe é nascida e criada e
criou nós aqui em Miranda também, toda minha família é nascida e criada
aqui. Meu pai não era daqui, ele era de Coxim, acho que ele veio com idade
de 20 anos para Miranda. Foi aqui que ele terminou também, faleceu aqui,
agora minha mãe, graças a Deus, ainda é viva, nasceu e criou aqui e ainda
está aqui até hoje. (Miranda, 16/01/2017).
Sua profissão foi aprendida com a família e relata que sua mãe era pescadora
profissional:
[...] é da pesca também, ela morava em fazenda quando meu pai era vivo, daí
depois de uns tempos para cá, ela conheceu o patrimônio de Salobra aí ela
vive lá. Daí ela começou pescar lá, teve um tempo ela tinha carteira de
pesca, mas ela aposentou e a idade dela já venceu também, ela está com 79
anos. Agora aposentada não pesca mais! Não dá mais não! Já está bem de
idade, bem idosa, mas o restante da vida dela, ela passou pescando, pegando
isca, pescando no rio [...](Miranda, 16/01/2017).
O distrito de Salobra é um ambiente estratégico para o desenvolvimento da pesca,
local muito frequentado pelo turismo local, pelo fácil acesso aos pontos de pesca e de
atendimento ao turista que compra a isca dessas pescadoras. Dona Orlinda (2017) destaca, em
sua fala, sua herança e sua paixão adquirida com sua mãe que mesmo em idade avançada,
adora estar no rio exercendo a atividade.
Inicialmente, Orlinda Moraes narra suas primeiras atuações no âmbito pesqueiro
profissional:
Está com 13 anos que eu pesco, desde 2003. Que eu pesco assim de carteira,
pescadora profissional. Mas antes disso eu já pescava, pegava isca,
pescava de varinha, eu morei 11 anos na beira do rio. Daí tem entre quinze a
dezesseis anos que eu casei com esse meu esposo. Então, nós pescava no rio,
mas eu pesco também na lagoa. Na época que entra o mês de fevereiro, a
partir de dia 20 até o mês de março mais ou menos, eu pesco isca viva, daí
56
desse período em diante até mês de outubro, é no rio. Desde as quatro horas
da manhã que a gente levanta pra sair e ir para a pescaria e aí volta lá pelas
três, quatro horas da tarde de novo, vamos pescar [...](Miranda, 16/01/2017).
A narradora destaca em sua fala dois momentos importantes: é pesca de iscas vivas e
posteriormente a pesca de peixes para o comércio local. Ao iniciar o período da pesca após o
período da piracema, muitas pescadoras se ocupam com a pescaria de iscas vivas, que
abastecem o mercado local e ainda comercializam com proprietários das embarcações e ou
com atravessadores, para a venda para outros municípios que desenvolvem a pesca turística e
comercial.
No desenrolar de seu relato, conta-me sobre o contato com a pesca antes mesmo de
tornar-se uma profissional:
Antes disso eu já pescava, quando eu tinha outro esposo, o outro esposo
trabalhava mais em fazenda, mas daí não deu certo, porque ele bebia demais,
daí eu vim morar em Miranda [...]. Então eu conheci essa profissão de
pescadora e comecei a pescar, e de lá pra cá só pescaria! Daí eu tirei minha
carteira de profissional e hoje eu estou exercendo ela, exercendo minha
carteira de pescadora. Para te falar que para ser pescador tem que honrar
aquilo ali que faz! Não é falar: ‘eu sou pescadora’ e não ir na beira do rio,
que muitos falam que: ‘sou pescadora!’, mas não vai nem na beira do rio!
[...] (Miranda, 16/01/2017).
Criticamente, Dona Orlinda aponta, assim como outras entrevistadas, que muitos/as
pescadores/as, apesar de terem suas carteiras assinadas, não atuam na profissão. Segundo ela,
"pescadora é aquela que está no rio pescando". Destaca que não basta ter apenas carteira de
pesca, mas desenvolver de fato a profissão, pois a experiência com o fazer é o que gera a
verdadeira experiência, no sentido de aprendizado, e, consequentemente, o reconhecimento.
Portanto, ser pescadora de fato é estar cotidianamente no rio pescando e tirando da profissão o
seu sustento.
Essas denúncias são vozes que trazem à tona os embates cotidianos da categoria.
Segundo a narradora, existem pescadoras com carteira de pesca, que não pescam e que isso só
enfraquece a categoria perante os órgãos competentes e perante a sociedade. Destaca, ainda, a
necessidade de demonstrar conhecimentos para exercer o ofício, ou seja, é preciso ter
autonomia com as ferramentas de trabalho:
Muitas nem conhece como colocar um castor, colocar o anzol, como fisgar
com o anzol, não sabe! Falo, eu nessa parte eu sei tudo! Eu encastoo o meu
anzol, coloco minha linha do jeito que eu uso, arrumo o molinete, varinha,
eu sei preparar tudo! Não preciso depender do meu companheiro: “Fulano,
57
arruma isto aqui pra mim que eu não sei!” Eu sei de tudo, tudo mesmo, até
inclusive minha caixa, minha traia de pesca é tudo separado, porque eu não
gosto de pegar traia dele, ele não pega a minha nem eu a dele, cada um tem a
sua [...] (Miranda, 16/01/2017).
Dona Orlinda destaca toda a preparação do seu material de pesca e o fato de fazer
questão de ter o conhecimento de como organizar e preparar os seus apetrechos. Destaca que
essas práticas se renovam na dinamicidade da natureza pantaneira e só com a experiência
apreendida pôde enfrentar com a naturalidade as tensões que a pesca no Pantanal oferece.
Para a narradora, ser pescadora é ter conhecimento de todo o processo, como o preparo do
anzol, da linha adequada, da vara e da isca certa, e faz questão de argumentar que cada um
deve ter o seu material.
1.5 - Sra. Zeferina Marques: "Eu sou uma mulher que homem não manda"
Zeferina Marques da Silva, nascida em 28 de agosto de 1965, é natural de
Corumbá/MS. Pesca desde criança e adquiriu a profissão dos pais. Reside em uma
comunidade com cerca de vinte famílias de pescadores numa região chamada São Lourenço,
distante aproximadamente 250 km da cidade de Corumbá. Dona Zeferina destaca que mora
"no meio do Pantanal”. A entrevista ocorreu dentro de sua lancha pesqueira, num dia
chuvoso, enquanto estava na cidade à espera da primeira parcela do seguro defeso24
.
Primeiramente a senhora Zeferina demonstra timidez, mas logo após esse primeiro contato e
um gole de café, ela se senta e busca em sua memória suas lembranças de quando iniciou a
pescar, destacando que pesca desde criança:
Olha, desde que eu me criei com meus pais que nós começamos a pescar,
mas nós não sabíamos mesmo como pescar, mas nós íamos com ele na canoa
e ele ensinava para nós como nós devemos pescar e nós fomos crescendo na
pescaria e depois de um tempo ficamos pescando cada um por si e vivo
pescando até hoje [...]. Eu tenho carteira de pesca, toda vida tive carteira de
pesca [...]. (Corumbá, 15/01/ 2017).
Portanto, seu primeiro aprendizado foi com o pai, um aprendizado natural, como um
ofício repassado de uma geração a outra, repleta de memórias de uma prática que é também
24
Seguro defeso é um benefício federal também chamado de Seguro Desemprego, que a categoria tem direito
por quatro meses, no período denominado Defeso ou Piracema, cada trabalhador tem o direito legal de receber
Um (1) salário mínimo durante quatro (4) meses em que não se pode pescar profissionalmente. Para tanto, é
preciso estar em dia com a documentação e proceder a entrada do benefício junto ao INSS. Cf.:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.779.htm>. Acesso em: 10/04/2017, às 14h.
58
afetiva. Aparentemente, a entrevistada vive numa comunidade de pescadores desde a infância,
e relata:
Ser pescadora é assim, uma coisa que o meu pai me criou eu assim, para
comprar as coisas para a gente, alimento para a gente, uma coisa que a gente
precisava e nisso a gente criou e a gente vai criando até hoje nossos
filhos, netos... A gente arruma dinheiro, compra as coisas que a gente quer e
paga as contas que a gente tem. Não é? Tudo com pescaria mesmo, que na
pescaria que a gente está, vive pescaria e eu adoro ser pescadora
[...](Corumbá, 15/01/ 2017).
Acrescenta, ainda:
Meu pai que me ensinou a pescar, meu pai e minha mãe, todos eles pescava.
Meu pai saía, nós era pequeno assim, criança pequena, chamava nós para
pescar, ia com nós, não deixava nós pescar, mas ensinava, assim: ‘Olha
aqui, fio é assim que pesca, linha assim’... Se eu ouvisse que ia pescar, eu já
ia com eles, ensinava pegar a isca e iscar, foi entretendo e estamos aqui até
hoje pescando, e gosto de pescar (Corumbá, 15/01/ 2017).
Zeferina demonstra que seu aprendizado vem de muito cedo, pois com idade entre 4
a 5 anos já estava acompanhando o pai e os irmãos na pescaria. Destaca os cuidados que o pai
teve com os filhos, ensinando como deveriam exercer o ofício, sendo que este era
praticamente a única fonte de renda para a comunidade; portanto, mais do que um lazer, um
passatempo prazenteiro entre pais e filhos, era uma forma de educação para a vida, uma
necessidade imposta: era preciso aprender e desenvolver essa atividade para sobreviverem.
Entretanto, a tessitura das recordações entrelaça lições práticas e memórias afetivas.
Talvez esta seja uma das razões para seu comentário seguinte, quanto a se tivesse que
escolher outra profissão: “Eu não escolhia! Eu escolheria a pescaria mesmo, já me acostumei,
já tenho minha carteira de profissão, não quero mais outra coisa, eu sou feliz, graças a Deus
[...]. Eu me sinto valorizada por ser pescadora mesmo!” (Corumbá, 15/01/2017)
Sua marca identitária vem ao encontro com a análise de identificação observada por
Ellen Woortmann (1992), no texto Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e
gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste. Ao estudar as comunidades pesqueiras e a
posição dos gêneros, a pesquisadora afirma:
A classificação do espaço, opondo o mar à terra, é central para a identidade
do grupo como um todo, e corresponde à oposição homem/mulher. Ela não é
uma oposição simétrica, mas hierárquica, pois implica relacionar a parte com
o todo. Mais que uma oposição lógica, é uma oposição ideológica (...). A
59
atividade do homem-pescador é completa porque ele “é” a comunidade total,
pois a identidade masculina constitui a identidade do grupo (...). Se a
complementaridade era (no passado dos grupos estudados) equilibrada, era
também hierárquica, e era, e ainda é, a atividade do homem (que é o
pescador) que fazia a especificidade desses grupos (WOORTMANN, 1992,
p.58).
Tudo isso implica compreender essa identidade feminina nativa25
de pescadora,
ensinada pelo pai, pois é o pai que leva e ensina a filha a pescar e como pescar, gerando um
processo de identificação mais facilmente assimilado. Além do mais, essa identidade faz parte
de uma precoce e permanente socialização para o trabalho no rio, o que garante uma
apropriação do saber visto como intrínseco e presente no comportamento dessas ribeirinhas.
Sua narrativa demostra a construção identitária estabelecida no lugar, que representa
sua história e também a de sua geração, abarcando, ademais, as gerações passada e futura.
Reflete essas experiências cotidianas assentadas em um modo de produção que é estabelecido
por meio de laços e vínculos afetivos entre familiares e com o espaço de trabalho. Zeferina,
em seu diálogo, destaca essa apropriação familiar de aproximação com o Pantanal, que a
família construiu já em outras gerações. Por outro lado, para ela, as relações são diferentes,
passam por transformações mesmo entre os indivíduos de um mesmo grupo:
Hoje, infelizmente com o uso de drogas, as pessoas faz maldades, porque do
jeito que eu criei meus filhos, eu ensinei uma coisa que ele (o pai) me
deixou: não ficar apanhando nada de ninguém, nunca fiquei mexendo com a
vida de ninguém. Então, eu criei meus filhos assim, criação de meu pai, não
mexer nas coisas de ninguém, eu só pego o que for meu, o que não for meu
eu não pego e vou vivendo na pescaria e quero pescar até hoje, mas, nunca
pesquei mexendo nas coisas dos outros [...]. Meu pai me deixou muito bem
esclarecida [...](Corumbá, 15/01/ 2017).
Observamos os medos socialmente construídos, como o caso do uso das drogas e,
ainda, a questão moral, detalhando que em seu aprendizado não lhe é permite roubar.
Compreende que a pescaria também é um campo de disputas, pois é preciso ter laços de
confiança, cada espaço é delimitado para cada pescador(a). Portanto, passa tais ensinamentos
aos seus filhos que vivem também da pesca.
Sobre seus filhos, comenta:
Eu tenho três filhos, dois guris e uma menina, são todos pescadores, todos já
têm carteira de pesca. Só a do Márcio que não veio, ele só pesca com
25
Entendo que identidade feminina nativa é a construção dessas pescadoras que vivem isoladas dos meios
urbanos e que vivem em pequenas comunidades familiares, localizadas no Pantanal Sul Mato Grossense.
60
protocolo de licença de pesca, porque se não tem a carteira tem que ter uma
licença. Enquanto a carteira está em andamento, tem que ter uma licença,
porque não pode pescar senão o pessoal pega. Com a licença pode pescar,
tem dois com carteira e do outro era para chegar, mas não chegou. Todos
tem carteira, todos! (Corumbá, 15/01/ 2017).
A entrevistada se mostra ciente das obrigações que a atividade pesqueira impõe. A
carteira profissional do pescador é gerada a partir do cadastramento de pescador profissional,
através da Superintendência de Pesca da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos
Hídricos - SUPESCA/SEMA. A instituição tem o objetivo de controlar e emitir
primeiramente o protocolo que permite a realização da atividade pesqueira. Atualmente existe
uma burocracia de cadastramento de novos pescadores; os sistemas de controle estão
apresentando certa rigidez para emissão dessas carteiras de pesca, emitindo primeiramente um
protocolo26
que garante que o pescador possa exercer a profissão.
Segundo a narrativa apresentada, observamos que existe uma hereditariedade
profissional, principalmente nessa comunidade da família referida, e que a senhora Zeferina
tem uma preocupação com as questões legais, pois segundo ela “todos” os filhos estão
documentados e devidamente registrados.
O seu imaginário social é marcado pela visão bucólica do Pantanal, algo não
experienciado por muitos nas áreas urbanas. Segue sua narrativa, destacando:
[...] porque a gente vai à casa dos amigos para visitar, passa tanta coisa na
televisão. Como nesses dias mesmo, quando nós vimos a televisão, aquele
dia não é para mim. Eu disse: ‘Isso não é para mim!’ Muita tormenta para
mim, porque no Pantanal nós somos muito felizes, tranquilo, não é? Não
tem nada disso, é um Pantanal, é no mato, a turma fala no mar (devido o
tamanho do rio). Eu sou mais feliz lá do que viver aqui, do que levar uma
bala sem nem saber de onde que veio. Às vezes fala: “mas foi com
fulano!” Mas às vezes está acompanhando outro, nem para morar na cidade
também eu não gosto, não é para mim a cidade. Para mim a cidade é só para
vir aqui por um motivo ou outro, vou ao banco, espero aqui (lancha), pego
meu dinheiro, sou pescadora, fazer o que? Esperar o dinheiro e a vontade do
governo fazer gerar o dinheiro. Mas eu não gosto da cidade com o motivo
que disse, que é muita bandidagem e é muita coisa que acontece e eu gosto
de onde meu pai me criou, lá, nós bem honesto. Eu não quero morar aqui na
cidade, eu prefiro ir pescar e voltar para pescar, do que ir morar aqui. Eu não
quero morar aqui devido às coisas que acontece; eu tenho filho, eu tenho
neto, a gente vem para cá e tem essas coisas, bebidas e esses bandidos muito
26
Portaria nº 2.546/2017, que regula a autorização temporária para o Registro Geral da Atividade Pesqueira, na
categoria Pescador Profissional Artesanal. A medida terá validade até a finalização do recadastramento geral
pelo Sistema de Registro Geral da Atividade Pesqueira (SisRGP), cujo os registros iniciais estão suspensos desde
2015 por recomendação dos órgãos de controle. Cf.:<http://www.mdic.gov.br/index.php/noticias/3013-
secretaria-de-aquicultura-e-pesca-regula-autorizacao-temporaria-para-pescador-profissional-artesanal>. Acesso
em: 10/10/2018 às 15h.
61
perigoso... nem pros meus netos, deixa eu lá mesmo, eu sou muito feliz no
Pantanal pescando, sou muito feliz [...].(Corumbá, 15/01/ 2017).
O conhecimento adquirido e compartilhado por Dona Zeferina nesta fala, sobre o
Pantanal, se estabelece principalmente com base no imaginário dos moradores, desenvolvido
a partir da ideia que vai caracterizar uma vida longe dos riscos urbanos, como a violência e a
bandidagem. A construção do imaginário social da vida pantaneira lhe traz sentidos
representativos de um espaço de harmonia, sem violência, e ainda muito feliz. Em suas
palavras, sua felicidade está estreitamente vinculada ao espaço, longe das inquietações quanto
aos perigos que a cidade traz, seja pelos meios de comunicação, seja no dia a dia na cidade e
nas práticas urbanas.
Nesse sentido, vale ressaltar a problematização de Antônio Carlos Sant'Ana Diegues,
na obra O mito moderno da natureza intocada (2000) , que observa:
Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território é
também o lócus das representações e do imaginário mitológico dessas
sociedades tradicionais. A íntima relação do homem com seu meio, sua
dependência maior em relação ao mundo natural, comparada ao do homem
urbano-industrial faz com que os ciclos da natureza (a vinda de cardumes de
peixes, a abundância nas roças) sejam associados a explicações míticas ou
religiosas. As representações que essas populações fazem dos diversos
hábitats em que vivem também se constroem com base no maior ou menor
controle de que dispõem sobre o meio-físico. [...] Nesse sentido, é
importante analisar o sistema de representações, símbolos e mitos que essas
populações tradicionais constroem, pois é com base nele que agem sobre o
meio. É com base também nessas representações e no conhecimento
empírico acumulado que desenvolvem seus sistemas tradicionais de manejo
[...] (DIEGUES, 2000, p.85).
Há uma carga identitária com o espaço do vivido e da convivência, com o cotidiano
comunitário e com o que este lhes proporciona. Nessa direção, mesmo o contato indireto com
o meio urbano, mediado pela televisão, representa um desequilíbrio que afeta emocionalmente
a entrevistada: "aquele dia não é para mim". É perceptível que sua vida rural lhe proporcione
outros significados e sentidos como o silêncio, a tranquilidade, a segurança contra a
bandidagem e outros problemas sociais. E destacamos novamente a relação com a tecnologia
televisiva que lhe traz perturbação em contraposição à forma de vida e de convivência restrita
ao espaço e às relações pessoais limitadas pelo contato direto: ouvir e ver o que acontece
longe, nos lugares de maior aglomeração de pessoas é preocupante, ao passo que lá no
Pantanal “eu sou feliz e só venho aqui devido à necessidade financeira, caso contrário nem me
deslocaria para a cidade”.
62
Em suma, o que sobressaltamos nesta entrevista é que a senhora Zeferina construiu
sua visão de mundo e sua história na tranquilidade que o Pantanal proporciona, longe dos
perigos urbanos (violência, assassinatos, bandidismo, drogadição). Esse sistema tradicional
ribeirinho representa para a pescadora – apesar de não ser isenta das dificuldades inerentes à
profissão, dentre as quais ela mesma destaca o rendimento financeiro dependente do governo
em determinadas épocas –, uma segurança de vida e de sobrevivência, rejeitando a vida
urbana até mesmo para as futuras gerações de sua linhagem. Deste modo, projeta o futuro dos
seus, como pescadora e mãe de família, neste único território que reconhece e com o qual
constrói uma identificação, o pantaneiro.
1.6 - Sra. Marilza: A oralidade de uma campeã
A pescadora Marilza de Lima, nascida no dia 21 de setembro de 1965, em Corumbá,
destaca que sua vida é marcada pela presença da pesca: são aproximadamente 26 anos de vida
pesqueira, além de ser uma campeã da Regata de canoinhas, uma competição que ocorria em
Corumbá, que demanda muito agilidade com a canoa e com o remo. Destaca: “pescava
na minha região, a região que eu mais pescava era no Esperança, Porto Morrinho. Aí eu
mudei de lá, e tive que vir pra cidade, com meus filhos [...]". Sua mudança para a cidade se
deu por conta da escola para os filhos: "E lá só tinha quinta série [...], aí tive que vim pra cá,
aí agora já mudei, agora é pra cima é do lado daqui já, região de Corumbá." Assim, narra que
é pescadora de iscas vivas e que se estabeleceu na cidade praticando a pesca e cuidando dos
filhos, inclusive de sua instrução escolar.
A senhora Marilza narra o porquê do trabalho com a pesca:
[...] Porque eu gostei muito de pescar, do tipo que eu fui criada na beira de
rio e a minha vida era trabalhar assim mesmo; gostava de fazer aquele
serviço. Braçal, pegar canoas velha e arrumar, é isso aí, porque eu não
conseguia serviço na cidade, tentei assim sair dessa vida, mas não consegui.
Você vê que aqui mesmo dentro da cidade, tem minha casa, eu levanto de
manhã cedo já faço minha matula (marmita com comida) e já pego minha
canoa e vou embora pegar isca. Aí às vezesàa noite também, às vezes eu saio
duas horas, uma hora da tarde, só venho de madrugada de lá. Porque a gente
gosta, eu me acostumei mesmo [...]. (Corumbá, 16/01/2017).
Sua memória é marcada pelo serviço braçal, seja ele na pesca de iscas vivas ou na
restauração de canoas. É um trabalho que consome grande parte do seu dia, principalmente na
temporada pesqueira, momento esse em que é preciso garantir a renda para manter-se durante
63
os meses da piracema. Não há hora certa para estar no rio, já prepara a marmita e segue sua
vida para o rio ou para a lagoa na busca por iscas, muitas vezes acompanhada do seu esposo,
irmã, nora ou até mesmo dos filhos.
Dona Marilza descreve o dia a dia na pescaria, os momentos que são marcados por
idas e vindas ao rio, em um trabalho aparentemente incansável. Ao questionar se ela habituou-
se a ir todos os dias para a cidade, ela responde, que "[...] a maioria das vezes eu acampo, no
máximo que eu acampo é uma semana. Porque quem fica mais acampado são os meus filhos,
agora eu vou mais, eu saio é daqui do posto, aqui de Corumbá, vou e volto todos os dias". A
questão do acampamento na beira do rio depende muito do movimento comercial das iscas na
cidade. Se a procura está grande, os pescadores e pescadoras precisam fazer esse movimento
para vendê-las, seja na própria casa ou em grandes quantidades para o comércio de iscas
vivas.
A pescadora descreve o início de suas atividades pesqueiras, destacando que já
pescava com a carteira de pesca, e diz que foi uma das primeiras mulheres devidamente
registrada:
[...] Sempre tive carteira! Desde quando eu comecei a pescar, eu já tinha. Eu
fui a primeira das mulheres de lá da beira do rio do Porto Esperança que teve
a carteira. Fui eu! Aí que eu comecei, o pessoal falava: ‘ah, mas a senhora
tem carteira?’ Tenho; começou já ter carteira de piloteira, que geralmente
mulher não tinha. Não tinha carteira de piloteira e nem de pesca para a
mulher. Eu falei: ‘Eu vou tirar também a carteira de pesca’ [risos]; tirei
tudo. (Corumbá, 16/01/2017).
Descreve que sempre teve o cuidado de pescar documentada, que em períodos
anteriores as mulheres não possuíam as carteiras de pesca, nem mesmo a licença para pilotar
barcos e lanchas, mas que essa foi uma de suas preocupações, e entendemos que desde já
tinha consciência de que sua valorização no trabalho designado em geral a homens precisaria
do respaldo legal, pois seria algo que lhe conferiria legitimidade. Relata que era questionada
pelos pescadores se ela tinha mesmo o documento, e ela afirmava que sim, até mesmo a
carteira que permite guiar barcos de pesca. Narra que mesmo gestante não deixava de ir
pescar e que muitas pessoas a olhavam com estranheza:
[...] ‘E essa mulher aí, só vive na beira do rio!’ Eu grávida da minha menina,
grávida de oito meses, aí com água na cintura assim, pegando caranguejo. Aí
o pessoal parava lá pra comprar isca de mim: ‘ah, a senhora não tem medo
de cair?’ ‘Não!’ Isso aí não prejudica [risos]. Eu já estava com 26 anos e
com saúde, não prejudicou. Ganhei, tive ela (filha) lá mesmo na beira do rio,
64
lá mesmo, no Porto Esperança, não teve tempo para vir com ela pra
maternidade, tive ela lá mesmo. (Corumbá, 16/01/2017).
Imagem 7: Casa da Senhora Marilza em Porto Esperança
Fonte: Arquivo pessoal da senhora Marilza, s/d.
Na fotografia acima, Marilza (2017) demonstra primeira casa, na porta esta ela o
esposo e as 3 filhos e o filho. Ao narrar que sua filha nasceu na beira do rio, a entrevistada dá
destaque a um dado importante, visto que muitas mulheres ribeirinhas tiveram a experiência
de “parir” nos locais de trabalho. A região do Porto Esperança é um distrito do município de
Corumbá, está localizado na margem esquerda do rio Paraguai, a cerca de 25 km da
localidade de Porto Morrinho e a 70 km do município de Corumbá. No mapa abaixo,
podemos localizar geograficamente o distrito de Porto Esperança:
65
IMAGEM 8: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul
FONTE: <http://www.viagemdeferias.com/mapa/mato-grosso-do-sul/>. Acesso em:
20/06/2018 às 16h.
Uma questão importante para a análise da maternidade é a sua relação com a
fragmentação do tempo feminino, lembrando que a mulher vive o ciclo reprodutivo, a
menstruação, a gravidez e o resguardo pós-parto. À mulher cabe o peso de cuidar, alimentar,
vestir e dar atenção a toda a sua família, e nesse tempo fragmentado está a dupla ou tripla
jornada feminina. Dependendo da situação familiar, o período de resguardo e de afastamento
por causa da gravidez é encurtado em nome da sobrevivência da família. No contexto
da pesca, muitas mulheres narram que precisam entrar em cena, ou voltar à ativa o quanto
antes para auxiliar no provento da casa. Nesse sentido, o tempo biológico da mulher não é
dela. Neste caso, tampouco seu próprio corpo é seu: é um corpo do marido, dos filhos, do
trabalho.
Diego Rocha Medeiros Cavalcanti, em sua pesquisa intitulada: “Mulheres nas
águas: Um estudo sobre relações de gênero na pesca”, destaca que:
Pensar as mulheres e o trabalho delas – todas as formas de trabalho produtivo e
reprodutivo – é pensar o átomo a partir do qual se estrutura a família. É pensar
também no tempo e no ritmo. E se tempo e ritmo são como músicas. Pensar o
trabalho das mulheres é pensar na grande sinfonia dos tempos de seus corpos, do
ciclo de vida dos seus filhos e marido e como esses ciclos são organizados pela
cultura. É pensar os tempos naturais e biológicos que aproximam as mulheres da
Localização
geográfica:
Porto
Esperança
66
natureza, e nos tempos sociais que são os tempos mediados pela cultura.
(CAVALCANTI, 2010, p. 55).
Nesse sentido, é relevante analisar, nessa categoria de trabalho, as relações de gênero
constituídas socialmente entre homens e mulheres. A natureza sociocultural e histórica dessas
mulheres se dá numa construção desigual nessas relações entre os sexos na esfera do trabalho.
As diferentes culturas desenvolvem diversos entendimentos do que é ser mulher pescadora e o
que é ser homem pescador. Sabemos, com base nestas diferenças, que gênero é uma
construção social e histórica, que se modifica no tempo e no espaço.
IMAGEM 9: Pescadora Marilza exibe os troféus conquistados nas Regatas de Canoinhas
FONTE: Arquivo pessoal da Marilza, 21/12/2018.
Durante minha primeira visita à senhora Marilza, senti-me comovida durante a
entrevista, pois a narradora descreveu brilhantemente sua vitória na 19ª edição da Regata de
Canoinhas de Corumbá, apresentando a reportagem sobre a conquista:
Após aproximadamente 15 minutos, a primeira a descer o rio, dar a volta no farol e
retornar para a Prainha foi Marilza de Lima, de 47 anos. "Toda vez eu ganho. É a
prática. Sou pescadora desde que nasci", comemorou a moradora do bairro
Cervejaria, que venceu sem muitas dificuldades. "A parte mais difícil foi o Farol. Ali
dá um frio na barriga, a correnteza é muito forte". (Jornal Diário Corumbaense,
08/12/2012).
Marilza narra com entusiasmo sobre o campeonato, detalha que as habilidades foram
adquiridas graças a ter nascido numa comunidade ribeirinha. Para ela, em todas as
competições a volta pelo farol é sempre um desafio, pois o movimento das águas é grande e o
67
perigo da canoa virar aumenta, “dá um frio na barriga”, mas não deixa de competir e o faz
com muita agilidade.
Nesse momento da entrevista afirma com certo lamento que o campeonato acabou:
[...] tem dois anos que não tem mais essa regata de canoinhas [...]. Eu participei 18
anos. Eu fui, perdi uma vez só, para minha irmã [...]. De casa pode não é? Assim
mesmo, porque nós somos tão amigas [risos], que nós saíamos juntas, eu saía,
quando eu via que eu estava longe dela eu esperava ela. Aí nessa de esperar ela, eu
enganchei numa pedra e ela aproveitou [risos]. Passou! Eu falei: ‘da outra vez não
tem pedra não, não tem espera não’ [risos]. (Corumbá, 16/01/2017).
IMAGEM 10: Pescadora Marilza comemorando a vitória da 20ª edição da Regata de
Canoinhas
FONTE: Diário Corumbaense Essa imagem é da senhora Marilza em sua 13ª vitória consecutiva na 20ª edição
da Regata de Canoinhas. Fonte: <http://diarionline.com.br/index.php?s=noticia&id=64561>. Acesso em:
15/02/2017 às 15h.
Demonstrando sua forte relação com o rio ao narrar suas 18 participações com
17 vitórias na Regata de canoinhas organizada pelo 6º distrito da Marinha em comemoração
ao dia do marinheiro (13 de Dezembro), a senhora Marilza me leva até sua varanda
para mostrar sua canoa. Este é o instrumento utilizado para o trabalho de coleta de iscas e,
principalmente, em todas as competições que participou. Narra: "não desfaço dela de jeito
nenhum", olha por um tempo e segue a narrativa:
Mas é, a gente se acostuma, eu gosto, gosto muito e no dia que eu não vou
para eu pegar (iscas), chega uma pessoa, fala: ‘tem caranguejo?’ Fico até
doente se não tenho para oferecer. Como agora, vai abrir a pesca, já
pensou, eu com ele aí doente nesta dificuldade danada, e ele não parava, ele
68
ficava pra lá, quando ele tá lá pro morrinho eu estava aqui, aqui eu estava na
minha luta aqui, ele lutando pra lá e eu pra cá. É companheiro mesmo, foi
fácil não [...](Corumbá, 16/01/2017)
Nesse momento da entrevista, Marilza conta que o esposo está hospitalizado
primeiramente devido a um grave acidente de trânsito, quando levava iscas vivas para Campo
Grande, e nesse momento luta contra um terrível câncer. Sua vida se resumia em ir da casa
para o hospital, e a vida no trabalho estava muito complicada, pois não havia tempo para ir
para a lagoa coletar iscas. Descreve que gosta de pegar caranguejo e de ter as iscas à pronta
entrega, sendo que nesse momento é grande a procura. Não ter o que oferecer a deixa muito
incomodada, pois não pode atender aos clientes e, ainda, há a dificuldade financeira com os
dois sem trabalhar. Sem suas idas ao rio, comenta que o dia não é o mesmo, está acostumada
com a rotina de estar todos os dias no rio ou nas lagoas coletando iscas.
Parafraseando Michel de Certeau (1994), pessoas, mesmo envolvidos em um sistema
plural, “constroem modos de fazer” que se distinguem de lugar para lugar. Assim,
observamos que as pescadoras como dona Marilza dominam conhecimentos desse meio que
são adquiridos na própria experiência da vida ribeirinha, e compartilhados oralmente pela
comunidade, a partir da cultura desse lugar. Descreve seu início com a pesca de isca:
[...] Primeiro era assim mesmo de catar iscas que começamos, era eu e uma tal de
Sebastiana, ela era guerreira! Nós saíamos cinco horas da manhã de canoa no remo,
nós não saía de motor não, nós íamos de remo, nós atravessávamos esse rio aqui, o
Paraguai, nós íamos pro bracinho tudo de remo. Sabe, caçando lugar bom mesmo
pra nós; lugar que pegava pouquinho, nós não ficava, nós ia ao lugar que nós víamos
que ia pegar bastante assim, não é?! Garantir o que compensava, nós íamos e
parecíamos que não demorava, depois que você chegava que você ia ver aquele
cansaço, enquanto você estava no remo, ia embora. E ela falava ainda assim: ‘bem
ali, bem ali’, faltava remo nesse ‘bem ali’ [risos], ia embora [...](Corumbá,
16/01/2017).
Nesse relato, destaca seu aprendizado com outra pescadora que domina o
conhecimento do lugar. Observamos que detalha o aprendizado com a colega de trabalho a
quem descreve como uma “guerreira”; ou seja, o conhecimento do ambiente de trabalho, do
domínio com o seu fazer é compartilhado, é ensinado: “ficávamos onde sabíamos que íamos
catar muitas iscas”.
Essa arte de fazer a partir da experiência e da convivência com quem sabe nos remete
à reflexão a partir da perspectiva de Michel de Certeau (2013), na obra A invenção do
Cotidiano:
69
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos
pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. Todo dia,
pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de
viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com essa fadiga, com este desejo. O
cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a
meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve
esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que
amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância,
memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil
sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não
história”, como o diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é
o Invisível...( CERTEAU, 2013, p.31).
Portanto, este estudo busca esse “invisível”, busca esse “mundo memória”, de
mulheres que experienciam a arte de viver no mundo pesqueiro. São vozes carregadas de
sentidos e significados múltiplos e valiosos para a construção da história da pesca em Mato
Grosso do Sul.
1.7 - Sra. Vânia: "eu sou feliz, não é todo mundo, acho que é porque fui criada na beira
do rio"
A senhora Vânia Aponte Sato, nascida em 19/05/1975 em Corumbá-MS, relata que
sempre foi ribeirinha e sua vida é marcada pela presença da pesca, primeiramente ribeirinha.
Posteriormente, retorna como pescadora profissional. A referência de mudança ocorre em
relação direta com seu casamento:
Quando fui morar pela beira do rio de novo, porque a mãe dele morava numa
fazenda, aí o conheci; tudo na beira do rio de novo, lá começamos a pegar iscas,
começamos a vender para lanchas de turistas, aí os patrões da minha sogra venderam
a fazenda, então tivemos que vir embora. Nós morávamos no Pantanal, na região da
pontinha, aí viemos para Corumbá, conhecemos o Bibi, tínhamos recém chegado à
cidade e ele comprava iscas. Começamos a pescar, pegar iscas para ele, só vendia
para ele também, ele pagava certinho. Eu e meu marido agora recentemente
compramos essa lanchinha, ele continuou comprando iscas ainda da minha sogra, aí
meu sogro adoeceu e ele não quis mais pegar iscas, aí ele parou se não estava até
hoje [...] (Corumbá, 15/01/2017).
No caso da pesca artesanal, a relação entre família e trabalho é fundamental para a
compreensão da dinâmica destas comunidades. A relação familiar na atividade pesqueira se
aproxima da produção da agricultura familiar. Assim, é salutar dialogar sobre o trabalho
feminino e a sua articulação direta na vida comunitária para o entendimento da atividade na
pesca artesanal. A senhora Vânia destaca que iniciou sua atividade primeiramente de maneira
esporádica e logo com seu esposo se profissionalizou, o que lhe rendeu a compra de uma
70
lancha pesqueira, dando-lhes mobilidade e maior liberdade profissional, mesmo tendo como
cliente um comerciante que paga corretamente pelas iscas.
Na narrativa descrita logo a seguir, a senhora Vânia descreve a vida ribeirinha no
Pantanal, observa que lá se produz tudo para a alimentação e já na cidade há outros gastos:
[...] eu praticamente a minha vida toda de pescadora, conheço tudo, meu irmão mora
na beira do rio, esses dias fomos lá almoçar, [...] a gente morava no mato, não tinha
a necessidade, a gente não gasta tanto, como gasta na cidade. No mato, quando eu
fiquei com ele lá a gente teve a Laís, plantava desde arroz, mandioca, tudo a gente
plantava feijão, então você não tinha aquela necessidade, esses gastos, essa
necessidade de ter aquele dinheiro, aí a gente pescava e a gente roçava, [...] tirei
minha carteira, aí continuamos na lida de iscas [...](Corumbá, 15/01/2017).
Historicamente as mulheres são responsáveis pelas funções reprodutivas, pelos
cuidados com a casa, com os filhos e cada vez mais assumem funções produtivas para o
sustento da família, seja na plantação como também na coleta. Essas famílias se construíram
culturalmente em um processo dinâmico que se dá em meio as transformações, adaptações,
mudanças e permanências, as quais são viabilizadas pelas estratégias geradas por esses
sujeitos. A entrevistada destaca em sua narrativa que plantava de tudo e que não havia essa
“necessidade” de dinheiro, como ocorre quando está na cidade, ou seja, realizava as
atividades de pesca e da roça para a sobrevivência, e isso bastava para o sustento de todos na
família. A oposição entre a vida urbana e a vida em espaços de maior contato com a terra e os
rios também é uma construção histórica e social, e se evidencia na fala desta pescadora . Um
fator motivador do seu deslocamento das áreas rurais para a área urbana foi à questão escolar,
já que os filhos, ao crescerem, precisam de mais instrução formal.
Uma observação importante é que as pescadoras da região também realizam outras
atividades, como o artesanato, para a complementação de renda. O bordado abaixo traz a
imagem da lancha da senhora Vânia, que recebe o nome de Conceissão Aparecida e foi
confeccionado por uma amiga pescadora:
71
IMAGEM 11: Bordado a mão, presenteado à senhora Vânia, após ter comprado a lancha
pesqueira no ano de 2016.
FONTE: Fotografia colorida produzida em Máquina Digital Nikon pela autora em 15/01/2017.
Quando a senhora Vânia traz o bordado para mostrar a imagem da sua lancha, vem à
tona a informação de como também o artesanato se torna uma atividade que as mulheres
pescadoras produzem para complementar a renda familiar. Retratam, em muitos casos,
aspectos de sua vida ribeirinha. Essa imagem artesanal visibiliza significados simbólicos para
essas mulheres, que agregam o fazer feminino na atividade pesqueira, sendo que representam
o cotidiano, a conquista, a ferramenta de trabalho, o lugar, além de cotidianamente
explicitarem a divisão sexual do trabalho. A mulher complementa a renda com o artesanato
enquanto o homem vai consertar o barco, vai produzir a tarrafa artesanalmente, entre outras
atividades mais especificamente consideradas masculinas e diretamente ligadas à pesca em si.
O cotidiano mantém, na vida das mulheres pescadoras observadas, o modelo
tradicional de relações sociais de sexo e representa o acúmulo de tarefas, tanto na pesca, no
artesanato, como também no lar. Como pescadoras e artesãs, o artesanato é um ofício
fortemente marcado pela presença feminina em Corumbá, destaca a senhora Vânia. Ainda
lhes cabe, no espaço do trabalho com a pesca, a catação de iscas, a pesca de peixes pequenos,
como o caso da pesca de piranhas, as funções domésticas e a educação dos filhos. Salienta
que a renda que resulta da produção do artesanato complementa o orçamento da família,
principalmente durante a piracema.
A senhora Vânia descreve o dia a dia da seguinte maneira:
72
[...] saímos de manhã às 6 horas, temos o local da pesca, começamos a pescar
até certas horas. Daí tem que parar para iscar o anzol, é de 120 a 150 (anzóis),
pegamos bem por dia, demora para destripar, limpar uma por uma, a você tem que
fazer aquele feixe, porque não pode soltar uma por uma no gelo, você tem enfiar
tudo no fio. Faz um feixe, quando a piranha é grande o máximo que pode colocar é 7
e quando a piranha é pequena pode colocar 15, aí lava tudo, deixa escorrer e põe no
gelo, para não estragar [...](Corumbá, 15/01/2017).
Destaca a importância da pesca da piranha, que não é considerado peixe de primeira
linha, mas que, no entanto, traz uma renda garantida. Descreve todo o processo de limpar,
organizar em feixes para o armazenamento e depois a venda. Há dois movimentos que os
pescadores precisam fazer, primeiramente arrumar os anzóis de galho, amarrar as linhas em
galhos e árvores colocando as iscas vivas e, enquanto aguardam, realizam a pesca de piranhas
com as varinhas de mão. É preciso ter essa organização e logo é preciso cuidar desses anzóis,
pois se o peixe iscado se machuca e sangra as piranhas atacam, então é preciso estar atento e
retirar rapidamente os que foram pescados.
Na foto abaixo, Dona Vânia fotografa o esposo com os dois netos em sua lancha
pesqueira estacionada no Porto Geral, em Corumbá.
Imagem 12: Lancha pesqueira Conceissão Aparecida
FONTE: Fotografia Digital disponibilizada pela entrevistada para a elaboração desse estudo
19/11/2018.
73
Na atualidade, o casal pesca para vender tanto para o turismo de sua cidade quanto
para atender os restaurantes na cidade de Puerto Quijarro, na Bolívia. Sua lancha pesqueira,
estacionada no porto principal da cidade, é relatada como uma grande conquista, visto que
com sua aquisição há uma mudança significativa de elevação do padrão pesqueiro e que
possibilita à busca do peixe valioso e nobre em regiões mais longe da cidade.
Ao perguntar sobre sua vida de pescadora no seu ambiente do trabalho, ela replica:
[...] como a gente tem a lanchinha, eu e meu marido e um senhor pescamos,
então saímos daqui, ela é uma pequena embarcação de madeira pequeninha.
É dividida assim, na cabine vou eu e meu marido e na parte que vai o gelo, o
senhor arruma lá e fica também. Tem cozinha, tem banheirinho, então vamos
lá para a pescaria. São sete dias, um dia de subida, cinco dias de pescaria e
mais a volta, ficamos no mato. Você sai daqui, quando a gente vai para cima
é longe, são 16 horas de viagem para chegar na boca da baía onde a gente
pesca, daí da boca até o local da pescaria é mais duas horas [...](Corumbá,
15/01/2017).
Descreve com os olhos brilhantes como é sua lancha pesqueira, e ainda detalha a
quantidade de dias e horas para chegar até o ponto onde realizam a pescaria. Geralmente
pescam em baías, locais onde as águas são calmas e profundas; as baías também são
consideradas os berçários dos peixes, local de grande concentração de peixes antes do período
da piracema que acontece nos meses de novembro a fevereiro. Considera-se, ainda, o
necessário movimento dos pescadores conforme o movimento dos cardumes de peixes para a
saída em busca da reprodução natural. Sem dúvida, a posse de uma lancha permite uma
mobilidade bastante apreciada por esta pescadora, pois é um elemento que agrega valor à
atividade, não apenas individual como também socialmente constituído.
1.8 - Sra. Heléia: Liderança e Representatividade
A pescadora Heléia Aparecida Soares Ferreira, nascida em 28/05/1965, natural de
Aquidauana/MS, destaca que pesca desde 1998. Atualmente é presidente da colônia de pesca
Z-07. A entrevista ocorreu em uma sala da colônia Z-07 de Aquidauana no dia 10/08/2017.
Ao ser questionada como foi seu início na pesca, dona Heléia narra:
Olha, na pesca eu estou há mais de 20 anos. O meu esposo é pescador, então
eu optei pela pesca pra ajudar ele e estou há mais de mais 20 anos pescando.
Agora como diretora da colônia de pesca de Aquidauana tem 18 anos. Meu
esposo é apaixonado por pesca também, e por incentivo dele, comecei a
pescar. (Aquidauana, 10/08/2018).
74
A pescadora Heléia destaca que seu aprendizado, como o de muitas pescadoras, vem
após o casamento, e que sua experiência com a pesca foi pequena, devido ter assumido a
direção da Colônia de pesca. Esta à frente da instituição há mais de 18 anos, assim salienta
que tem uma pequena experiência com a pesca em si. “Mas no final de semana, eu gosto de
pescar, mas não sou assim apaixonada para ter que viver na pesca, eu gosto muito do que eu
faço aqui dentro da colônia” (Aquidauana, 10/08/2018). Em sua narrativa, observamos que a
sua relação com a pesca é diferente das demais entrevistadas, pois sua paixão é voltada para
as questões administrativas da Colônia e a pesca é apenas para se distrair aos finais de
semana.
Descreve seu início à frente da Colônia de Pesca:
Eu entrei num mandato da dona Ermi, que foi uma presidente atuante muitos
anos na colônia; eu entrei como tesoureira, fiquei um tempo como tesoureira
daí eu passei pra presidência. Depois fiquei três anos no mandato de
presidente, voltei pra tesouraria, agora de dezembro de 2015 pra cá eu estou
na presidência de novo. (Aquidauana, 10/08/2018).
Alternando entre a presidência e a tesouraria, a senhora Heléia se diz apaixonada
pelo que faz e que “se encontrou”, no sentido de encontrar seu lugar de atividade, frente à
instituição. No município de Aquidauana, a experiência feminina na presidência é de longa
data e é aprovada pela maioria dos pescadores e pescadoras. Descreve que estão em período
eleitoral:
Até agora, inclusive esse ano tem eleição, porém, como não temos nenhuma
chapa concorrente, parece que só tem a minha ainda. Temos que publicar um
edital para cumprir com os prazos, mas por enquanto não tem nem rumores
que tenha outra chapa, eu continuo mesmo porque eu estou há praticamente
dois anos para me aposentar pela pesca [...]. E é o que eu sei fazer, que é
pescar e administrar aqui a colônia, então eu prefiro e pretendo ficar aqui até
me aposentar. (Aquidauana, 10/08/2018).
Ao descrever os primeiros passos do processo eleitoral, destaca que ainda é a
preferida para continuar representando a categoria. Mesmo não exercendo a pesca comercial,
a senhora Heléia destaca que pretende trabalhar até se aposentar, realizando os trabalhos
administrativos na colônia de pesca. Na foto abaixo, podemos observar a atuação da
presidente em diálogo com o Governo de Estado, em busca de melhorias para o comércio da
pesca artesanal.
75
IMAGEM 13: Reunião entre Presidentes de Colônias de Pesca do Estado de Mato Grosso do Sul e a
Secretaria de Produção Familiar (Sepaf), Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural
(Agraer) e Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (Iagro).
FONTE: Heléia sentada no primeiro lugar ao lado direito da foto: VENTORIM, Kelly.
<http://www.semagro.ms.gov.br/presidentes-de-colonias-de-pescadores-reunem-se-na-sepaf-e-discussoes-para-
impasses-do-setor-caminham-a-passos-largos/>. Acesso em: 15/09/2018, às 16h.
A principal discussão da reunião foi sobre uma questão preocupante que os atinge
diretamente:
[...] a retirada do mercado de peixes oriundos da pesca artesanal,
considerados clandestinos pela fiscalização dada a falta de inspeção, tem
movimentado os pescadores e gerado diversos encontros entre os
representantes das colônias e a equipe do Governo do Estado. [...]
(VENTORIM, 2015).
A pescadora Heléia destaca que as colônias de pesca não possuem nem um tipo de
selo de controle de qualidade, fazendo com que os pescados sejam classificados como
“clandestinos”, pela falta de inspeção sanitária e adequação das normas sanitárias. Ressalta
que há uma ‘luta grande’ das colônias de pesca para garantir o comércio de pescados,
principalmente em supermercados, locais propícios para vender peixes cortados e embalados
por quilo. Heléia destaca que é uma luta histórica, mas que, no entanto, não se tem uma
política que olhe para o pequeno produtor e garanta uma ampliação para comercialização dos
pescados.
76
Refletindo sobre a representação feminina nas colônias de pesca, observamos um
dado revelador na foto anteriormente apresentada: muitas mulheres estão atuando e
participando à frente das colônias; no entanto, ainda é preciso uma ampliação nessa
participação como um todo. A senhora Heléia destaca que a participação feminina ainda é
incipiente, pois observa que em reuniões periódicas da associação elas ainda são minorias.
Quanto à participação revela que:
A maioria são homens [...]. Eu acho que devia ter mais participação das
mulheres pescadoras! Inclusive nós já tivemos muitos programas com
parceria com o governo do Estado, Governo Federal e com o próprio
Ministério da Pesca, com cursos para ajudar na renda [...], cursos para
complemento de renda, só que nós tivemos que parar vários pela metade, por
falta do próprio interesse das mulheres [...](Aquidauana, 10/08/2018).
Salienta que no município de Aquidauana a atuação das mulheres é menor em
relação a outros municípios. Destaca em sua narrativa que é preciso uma maior participação
das mulheres, tanto nas questões administrativas como também na pesca em si. Detalha que
teve que encerrar cursos profissionalizantes e de complemento de renda por falta de
participação e adesão das mulheres. Esses cursos27
têm como objetivo proporcionar outras
fontes de renda em momentos como no período da piracema.
É particularmente interessante a observação da narradora ao falar da importância da
participação feminina, visto que as mulheres estão apagadas dos espaços representativos e
que, ao não ocuparem esses espaços, os homens dominam. Foi constatado nas narrativas que
muitas dessas mulheres, além de atuarem na pesca, são as chefas dos lares, mantendo a
família com a renda obtida quase que exclusivamente com a pesca. Ademais, há uma
resistência para exercer outras atividades lucrativas, e percebe-se que, além do trabalho, existe
quase sempre a referência a uma grande paixão pela natureza e ao que ela tem a oferecer.
A história oral, segundo Bosi (2003), nos possibilita o uso das memórias como
mediadoras de pessoas e épocas, e “a memória [...] pode ser trabalhada como um mediador
entre a nossa geração e as testemunhas do passado” (BOSI, 2003, p. 15). Nesse sentido, no
ato da fala, a memória é “o intermediário informal da cultura” (BOSI, 2003, p.15). Assim,
buscando essas memórias, nesse capítulo apresentamos histórias de mulheres pescadoras que
quebram algumas barreiras na história da pesca demonstrando que podem exercer a atividade
27
Exemplo de Cursos: Processamento de couro de peixes para confecção de artesanatos, produto com mercado
nacional e internacional. No Estado consegui duas associações que iniciaram os trabalhos, primeiramente em
Coxim, que no momento da pesquisa esta desativada e em Mundo Novo que esta em funcionamento, contando
com aproximadamente 20 mulheres atuando na produção e comercialização.
77
pesqueira, pilotando seus barcos e lanchas profissionalmente, não como ajudantes, mas como
integrantes de uma categoria de trabalho.
Michelle Perrot (1989) destaca que a memória da narrativa histórica tradicional é
assexuada, principalmente porque as mulheres, em sua maior parte, estão ausentes na escrita.
Seguindo as narrativas construídas historicamente nessas comunidades ribeirinhas, afirmamos
que há uma carga de significados históricos vivenciados por essas pescadoras, no entanto
silenciadas historicamente e socialmente.
Essas mulheres, ditas “do povo” ao longo da história, apareciam ou aparecem nas
falas “quando seus murmúrios inquietam no caso do pão caro, quando provocam algazarras
contra comerciantes ou contra proprietários, quando ameaçam subverter com sua violência
um cortejo de grevistas” (PERROT, 1989, p. 10). Assim, as vozes dessas mulheres são
transformadas em textos que se (re)constroem e se remetem a uma vida em sociedade com
valores, culturas, identidades, representações, entre outros.
As memórias são a representação do passado, a partir do hoje, trata-se de um passado
reconstruído socialmente, perpassado pela coletividade. São memórias, conforme Ecléa Bosi
(1994), ao tratar daqueles que tem muito a contar, menciona que os indivíduos que passam
horas falando de suas lembranças e que seria preciso um “escutador infinito”. Nesse sentido,
buscamos constantemente essas lembranças em suas memórias, com essas narradoras
experientes. Portanto, o estudo da memória dessas mulheres sul-mato-grossenses surge como
um instrumento eficaz na arte de fazer história de uma categoria de trabalhadoras. A autora
defende que os sujeitos compõem sua obra e demonstram sua função social exercida durante a
sua vida, e a memória na categoria gênero representa uma construção de narrativas que
fizeram e fazem história e que não eram viabilizadas pela historiografia regional.
Bosi (2003) segue numa perspectiva transcendente, sem abandonar o panorama
individual. Em cada narrativa ela remete a situações em que o entrevistado se envolveu em
interação com outras pessoas, reflete suas crenças adquiridas em seu grupo e se ancora
temporalmente aos eventos que fizeram notícia e qualificaram a época, como, por exemplo, a
Marcha das Margaridas28
. A vida privada constitui um relato de um tempo coletivo e o
pesquisador pode remontar, a partir das práticas da privacidade, o contexto social do qual se
nutrem e que elas ajudam a definir.
28
A primeira Marcha das Margaridas ocorreu no dia 10 de agosto de 2000, com o lema 2000 Razões para
Marchar Contra a Fome, a Pobreza e a Violência Sexista, em Brasília. Representa uma das maiores
manifestações públicas de mulheres trabalhadoras ocorridas na capital do Brasil.
78
Losandro Tedeschi (2014) problematiza que essas memórias de mulheres inseridas
em grupos sociais constroem um conjunto de “memórias”, sendo essas compartilhadas e
socializadas através de seu gênero, seja político, étnico, entre outros. Memória e gênero nesse
sentido vão além, visto que a lembrança é a história da pessoa e seu mundo, e esse rememorar
é a sobrevivência do passado. Nesse sentido, em diálogo com Portelli (1997), afirmamos que
a história oral, enquanto ferramenta de análise metodológica, nos possibilita o acesso a essas
memórias silenciadas historicamente. De fato, é somente a partir do final do século XX que
as histórias orais, de forma ainda tímida e enfrentando diversas resistências, passam a ser
recolocadas na agenda das discussões das instâncias legitimadoras. (TEDESCHI, 2014, p. 40-
41).
Evidencia-se, portanto, uma urgência em viabilizar essas “memórias”
narradas/vividas por sujeitos esquecidos e invisibilizados. Nesta perspectiva, pesquisas que
utilizam a história oral, na análise das relações entre memórias e história das mulheres,
ganham legitimidade e possibilitam a expansão das fronteiras da história e do protagonismo
de gênero.
Finalizando o primeiro capítulo, destaco que essas pescadoras são interlocutoras de
grande parte das pescadoras profissionais do Estado de Mato Grosso do Sul e do Brasil.
Parafraseando Bosi (2003), procurei nessas vozes os encontros e desencontros de memórias
que tecem o dia a dia de mulheres que encontraram significados para viver e resistir num
espaço dominado por homens. Essas memórias não são apenas delas, mas de muitas mulheres
pescadoras, sendo a memória de trabalhadoras que hoje possuem uma carteira de pesca,
possuem uma fonte de renda e que não aceitam ser nominadas de ajudantes, pois são
Pescadoras Profissionais Artesanais, devidamente registradas e atuantes no mundo pesqueiro.
A história oral tem contribuído, para dar a conhecer grupos excluídos de registros
escritos e inscrever no relato historiográfico vozes múltiplas e silenciadas. Neste sentido, a
história oral ganhou caráter testemunhal, termo defendido por José Carlos Sebe Bom Meihy,
colaborando para trazer a público os sofrimentos mais íntimos e ignorados no contexto das
tragédias coletivas, como o autoritarismo e o silenciamento por ele produzidos:
É exatamente o desenrolar de processos como deslocamentos, exílios,
catástrofes, que implicou a formulação deste novo gênero, ou seja, da busca
de fundamentos desse novo campo, o da história oral testemunhal. [...] é
preciso olhar situações ou de grupos em que o colaborador envolvido
participou de forma traumática, como vítima, de alguma circunstância
marcante. Não se fala apenas de casos políticos, pois há grupos que sofreram
com terremotos, enchentes, pestes, enfim, situações que produziram traumas
79
específicos. Mudanças do comportamento mnemônico em face de tragédias
são importantes para a requalificação da identidade e, mais do que isso, do
estabelecimento de políticas públicas (MEIHY, 2010).
No caso das mulheres pescadoras, em especial nesse estudo, as narrativas orais
apresentam-se como possibilidades de inserção na história, em que geralmente estiveram
invisibilizadas, sendo a elas relegadas à vida privada, ou simplesmente situadas como
“ajudantes” da figura masculina. O encontro entre a história das mulheres e a história oral nos
revela um movimento presente no cotidiano e podemos destacar uma relação entre o privado e
o público, ao romper com a suposta divisão binária entre o mundo dos homens (público) e o
mundo das mulheres (subjetivo), ainda promove questionamentos sobre as especificidades do
universo feminino como a organização da família, da casa, dos afazeres cotidianos e da pesca.
Para Michelle Perrot (2006), não houve a presença do poder institucional à mulher na
maior parte do processo histórico, sendo assim, há outras possibilidade para se falar de seus
diversos poderes cotidianos e familiares e o quanto eles afetam as relações sociais e políticas,
mesmo invisibilizadas aos olhos da sociedade e de grande parte da historiografia. Ainda nos e
nos ensina que:
As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a opressão, a
dominação, por reais que sejam, não bastam para contar sua história. Elas
estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras
palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fábrica, elas têm outras
práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à
disciplina – que derrotam a racionalidade do poder, enxertadas sobre uso
próprio do tempo e do espaço. Elas traçam um caminho que é preciso
reencontrar. Uma história outra. Uma outra história (PERROT, 2006, p.212)
Assim, a história das mulheres com a história oral ganha, um papel social que
ultrapassa o cenário público, pois ao publicizar experiências cotidianas de mulheres que
sempre estiveram as margens, nos lançamos de um passado silenciado para um presente com
narrativas múltiplas construídos na coletividade. E nesse interim, os estudos da memória,
pode colaborar para nos jogar dentro de histórias não contadas.
No segundo capítulo discutiremos sobre os avanços da categoria de trabalho,
analisando os caminhos da legislação pesqueira, e ainda a representação das colônias de pesca
frente às adversidades que a categoria tem vivenciado ao longo dos anos. Propomos analisar
o significado positivo que a documentação funcional trouxe para o reconhecimento das
mulheres como trabalhadoras produtivas, para além dos direitos previdenciários e refletir
sobre os avanços e retrocessos das políticas públicas para as pescadoras até o ano de 2016,
80
visto que sempre se pensou nos homens, porém elas já estavam lá, invadindo esse espaço,
exercendo as atividades milenarmente dominadas pelos homens; apenas não eram vistas.
81
Capítulo 2 - Arte pesqueira: Conquistas, Resistências e Lutas Cotidianas
Os relatos de que se compõem essa obra pretendem narrar práticas comuns.
Introduzi-las com as experiências particulares, as frequentações, as
solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão
abrindo um caminho, significará delimitar um campo. Com isso, será
preciso igualmente uma “maneira de caminhar”, que pertence, aliás, às
“maneiras de fazer” de que aqui se trata. Para ler e escrever a cultura
ordinária, é mister reaprender operações comuns e fazer da análise uma
variante de seu objeto (CERTEAU, 2008, p.35).
82
Introdução
Ao provocar, incentivar e ser interlocutora dos momentos de produção das narrativas
das pescadoras, conforme apresentadas no primeiro capítulo, torna-se evidente que é preciso
que se estabeleça uma relação de confiança entre as partes para que o narrado apresente o
contexto que a pesquisa de fato busca, e as entrevistadas se sintam à vontade para se expressar
livremente acerca dessas memórias e seus significados pessoais e, em dados momentos,
sociais. Desse modo, ouvi-las e registrar suas vozes é entender não apenas um ‘modo de dizer,
mas ‘um modo de fazer’, pois o fazer cotidiano dessas mulheres, parafraseando Certeau
(2008), vai além de terem coragem para exercer uma profissão compreendida como
"masculina".
Para essa análise, buscamos as possibilidades que a história oral nos instrumentaliza,
visto que, segundo Bosi (2003), a história oral nos possibilita o uso das memórias como
mediadoras de pessoas e épocas. Retomamos a citação da estudiosa: “a memória [...] pode ser
trabalhada como um mediador entre a nossa geração e as testemunhas do passado” (BOSI,
2003, p. 15). Nesse sentido, no ato da fala, a memória é “o intermediário informal da cultura”
(BOSI, 2003, p.15). Assim, damos visibilidade a essas memórias, após apresentarmos
algumas histórias de mulheres pescadoras que rompem com estereótipos e conseguem, aos
poucos, quebrar algumas barreiras na história da pesca no MS. Adentrando um território ainda
marcadamente designado ao masculino, a persistência dessas mulheres as faz demonstrar
aptidão e competência ao exercer a atividade pesqueira, seja diretamente na pesca ou
pilotando seus barcos e lanchas, profissionalmente. Seu status de profissionais, segundo a
legislação, exime-as do papel de ajudantes, ligadas à sombra dos maridos ou demais homens:
são, legalmente, certificadas como integrantes de uma categoria de trabalho.
Assim, suas narrativas são enriquecidas ao evidenciar suas conquistas gradativas em
espaços nos quais antes eram silenciadas, tornadas invisíveis. (TEDESCHI, 2014) – e
relembramos os comentários das senhoras que afirmam que outros as olhavam de modo
diferente, expressando estranheza com “essas mulheres para cá e para lá no rio”, ou
trabalhando no meio de homens, ao pilotar barcos para turistas. Os relatos nos falam dessas
conquistas, e revelam que foi nesse território que encontraram sentidos múltiplos na arte
pesqueira, diríamos inclusive simbólicos, pilotando barcos para o turismo, presidindo colônias
de pesca ou exercendo a pesca comercial e/ou turística.
Assim, história oral, como ferramenta de análise metodológica, possibilita o acesso a
essas memórias silenciadas historicamente (TEDESCHI, 2014, p. 40-41), mas começam e
83
emergir com força e se revelam fortes no contexto da pesca pantaneira. Este trabalho viabiliza
o registro e a expansão, pelo viés acadêmico, das “memórias” narradas/vividas por sujeitos
esquecidos, anteriormente invisibilizadas, apagadas, embora em conjunto apresentem uma
nova perspectiva da construção histórica e social da região conhecida por seus rios que atraem
visitantes devido a seu potencial pesqueiro. Sob este prisma, este capítulo propõe a reflexão
acerca das lutas e as conquistas da categoria nas questões do direito trabalhista e ainda as lutas
feministas, como a Marcha das Margaridas (2015), na luta por direitos sociais e
previdenciários, pelo direito de exercer atividades ligadas à pesca e pela manutenção de
direitos conquistados. São trajetórias e conquistas importantes, porque representam os ganhos
e os direitos conquistados para a categoria dos profissionais da pesca, que há pouco tempo
não estava inserida nos projetos do governo. Reconhece-se, no entanto, que tais conquistas
são ainda frágeis, porém, representam um avanço em relação às condições anteriores. Do
ponto de vista dos pescadores e pescadoras, são ganhos muito preciosos.
2.1 Lar e Pesca: Relações de trabalho
No período considerado como alta temporada (agosto, setembro e outubro), em que a
rotina de pesca envolve praticamente grande parte do dia e também da noite, as pescadoras
destacam que é preciso aproveitar esses momentos tanto pilotando para o turista sazonal como
também pescando para a comercialização do seu pescado. A pescadora Shirlei comenta:
Antes de ser pescadora eu trabalhava na casa dos outros, aqui mesmo eu
trabalhei bastante tempo aqui (mostra um restaurante ao lado da sua casa),
depois que fui pescar [...]. Eu gosto, é uma coisa que eu gosto mesmo, eu
não sei fazer outras coisas. Eu gosto de pescar, sou muito feliz mesmo, eu
faço de tudo um pouco, às vezes eu pesco. Como a pesca está fechada
agora, a gente nem para aqui, agora o pessoal pede para levar em Miranda,
aí eu levo, eles fazem compras, aí voltamos, mas assim, não pode parar, não
é? (Miranda, 16/01/2017).
Shirlei destaca em sua fala que, além de exercer a atividade relacionada à pesca, nas
horas “vagas” auxilia os vizinhos, levando-os para o município de Miranda para realizarem
suas compras. Destaca que é muito feliz exercendo essas atividades, seja no rio ou atendendo
os vizinhos com seu carro que lhe proporciona esse movimento de prestadora de serviços.
Salienta que se encontrou na pesca profissional, faz porque “gosta” e que é feliz realizando
tais atividades, pois é o que sabe fazer atualmente.
84
Refletindo a narrativa de Shirlei (2017), trago para a reflexão a pesquisa intitulada
“Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço e tempo entre mulheres de famílias de
pescadores”, de Kirla Korina dos Santos Anderson. A autora destaca:
Entretanto, em que pese tudo isso, a atividade produtiva feminina é
entendida, em muitos casos, ou quase sempre nestes contextos, como
“suporte” da atividade principal do marido, o que pode ser traduzido pela
categoria “ajuda”, de que muitas vezes se utilizam para se referir a elas, até
as próprias mulheres. Implica dizer que ao ingressar em atividades extra-
domésticas, as mulheres não deixam de lado suas obrigações com o lar.
(ANDERSON, 2007, p. 32).
Ao não deixar sua atividade “do lar”, ela se coloca em dois espaços ao mesmo
tempo, o da casa e o da pesca. No caso da narradora, ela demonstra múltiplos movimentos:
pesca, dirige para ajudar os conhecidos e é dona de casa. Nessas jornadas múltiplas, elas não
se sentem valorizadas. Entre as atividades do lar, pescaria e prestação de serviço, Shirlei
descreve que o distrito de Salobra é um local turístico, com hotéis preparados para organizar
toda a pescaria. Então, para não ficar “parada” aguardando ser chamada pelos hotéis, ela
presta serviços para a comunidade. Como pirangueira29
, ela presta serviço tanto para hotéis,
como também particular:
Eles pagam um pouco menos, depende, a gente cobra baseado pelo hotel, a
gente cobra um pouquinho menos que o hotel, não muito menos. Pois, se o
hotel cobra R$250,00 pelo barco, motor e piloteiro, a gente já cobra 230,00,
fora a gasolina e cada um vai com um barco [...]. (Miranda, 16/01/2017).
Shirlei demonstra ser empreendedora, e negocia, sempre que possível, a diária de
trabalho mais acessível que a oferecida pelo hotel, visto que esse ganha porcentagem sobre o
trabalho oferecido pelas guias de pesca. É preciso ter esse olhar, afirma a entrevistada, para
com o turista, sendo que ao atendê-lo bem, ele sempre voltará e já irá procurá-la, sem ser
preciso deixar parte de sua renda ao hotel.
Ao ser questionada sobre seus filhos, Dona Shirlei responde que tem três filhas e que
antes de tê-las não pescava:
Nesse tempo não, nessa época eu pescava só para mim, daí o que acontecia:
tinha vez que ele ficava 15 dias pescando, daí quando aparecia turista e ele
não tinha como sair, eu ficava em casa. Daí falei: ‘sabe de uma coisa? Eu
29
Pirangueira: em algumas regiões do país é denominada de maneira pejorativa, no entanto, aqui é utilizada pela
entrevistada, referindo-se a mulher que pilota barcos de pesca para atender ao turismo.
85
vou pilotar’ (risos), ‘e como eu tenho carteira de arrais (carteira de
habilitação para conduzir embarcações) e tudo mais, vou começar pilotar’.
Aí, comecei a sair e fui indo e eu sei mexer com coisa de pesca inteiro, eu
faço o que ele faz, de tudo... É difícil colocar o motor no barco, porque é
pesado, mas na maioria das vezes o barco já fica na água. Daí foi que,
quando eu comecei a pescar, foi com ela (aponta para a cunhada). Um dia eu
nem sabia como que era, daí o marido da minha cunhada colocou o motor no
barco e eu desci o rio, fui pertinho aqui. Na hora que fui saindo, o motor
estava engatado e deu uma arrancada, menino do céu! Essas meninas
choravam, chorava muito, chegou a entrar água no barco, aí quando eu ia
funcionar o motor para irmos embora, elas não queria. Eu falava: ‘como nós
vamos embora?’ As crianças não queriam entrar no barco, eu falava ‘como
nós vamos embora?’, até que nós conseguimos vir embora e nesse dia
pegamos muito peixe [...]. (Miranda, 16/01/2017).
Sua narrativa destaca que a necessidade econômica a levou a iniciar o trabalho de
pescadora, uma vez que, na falta do esposo, ela mesmo sentiu que poderia exercer tal
atividade, pois sabia fazer tudo que o oficio exigia. Conta sua primeira experiência ao ligar o
motor, fato até desastroso, mas que não a fez desacreditar em seu potencial. Sua memória
trouxe o choro de medo das crianças e a alegria de ter conseguido pegar muitos peixes
naquele dia, o que serve para contrabalançar as recordações positivas e negativas.
Dialogando com o estudo de Leitão (2013), destacamos que está muito presente nos
relatos das mulheres pescadoras a indicação de que as atividades domésticas e os cuidados
com os filhos e do lar são compreendidas pelos homens como trabalho exclusivo feminino.
Aliás, vale a ressalva de que muitas mulheres reproduzem esse comportamento e mentalidade
socialmente construídos, tanto atribuindo a si mesmas essas responsabilidades quanto às
demais mulheres. Em outras palavras, considera-se, de modo geral, que se existe a
necessidade de levar os filhos para o trabalho, é a mulher quem deve levar, e o mesmo vale
para outros tipos de cuidados mais direta ou indiretamente ligados à casa e à prole. A
atividade pesqueira não as isenta dos cuidados domésticos; pelo contrário, elas somam
jornadas de trabalho.
Anderson (2007) destaca que:
No exame da mobilidade ocupacional feminina, os resultados revelam que as
inserções e re-inserções são orientadas para complementação de renda, o que
tem servido para compreender o desempenho de outras atividades produtivas
que não estão relacionadas com a pesca. (ANDERSON, 2007, p. 32).
Portanto, se a mulher entra para o mundo da pesca com o intuito de gerar renda e não
ser simplesmente lazer, esta em geral não é exatamente uma escolha pessoal, como se fosse a
primeira opção na escolha de uma profissão, ou se acalentasse desde cedo o sonho de exercer
86
esse ofício. A atividade é inserida em sua vida em virtude de outras demandas: para
complementar a renda de uma família na qual o homem ainda é o provedor, em um papel
subalterno e dependente. Nesse caso, essas múltiplas tarefas fazem parte do seu cotidiano,
vistas como algo natural e inerente à figura feminina, esposa e mãe; subjetivamente, assumem
o papel “designado” para as mulheres.
Saffioti (2004) destaca que o patriarcado é um caso específico das relações de
gênero, de maneira desigual e hierárquica. A ordem patriarcal de gênero admite a dominação
e a exploração de mulheres pelos homens, configurando a opressão feminina. Nesse sentido,
no binômio dominação/exploração da mulher, os dois polos da relação possuem poder, mas
de maneira desigual.
Como qualquer fenômeno histórico, a família patriarcal não corresponde a
um modelo único de organização familiar, apresentando variações ao longo
do tempo e de acordo com o lugar, porém, mantendo sempre a superioridade
e o poder do patriarca em relação aos seus membros. E esse poder masculino
não se limita ao espaço doméstico, mas se reflete na forma de organização
da sociedade como um todo. (LIMA; SOUZA, 2015, p. 517).
Observamos que, na relação de subordinação feminina, há variações, mas em geral
não são muitas as alterações no resultado final. No caso das ribeirinhas e pescadoras, essas
mulheres puderam questionar a supremacia masculina e encontrar meios diferenciados de
resistência: “mesmo com medo, eu fui pescar” (Miranda, 16/01/2017). O medo referido está
vinculado a uma reticência inicial de como e por que adentrar um território estranho,
pertencente a outro, social e historicamente negado a ela, por sua condição feminina. Talvez
não se trate especificamente de um medo do marido, um único homem, mas é o receio
simbólico e social imposto enquanto construção histórica.
A relação patriarcal30
continua bastante enraizada no imaginário coletivo, pois o
homem permanece no comando. Ao falarmos dos avanços femininos, principalmente
na conquista dos espaços públicos, a mulher ainda figura como a principal responsável pelos
cuidados com o lar e com a criação dos filhos, ou seja, ainda muito atrelada e por vezes
restrita ao espaço privado; o espaço público, apesar das mudanças de configuração social e do
30
Quando trago a discussão da ideologia patriarcal, destaco a presença constante da mulher nessa organização
estrutural das famílias pesqueiras, sendo que à mulher cabe os cuidados com o lar e ao homem os cuidados com
o barco, com os apetrechos. No entanto, não em uma maneira de cooperação, mas de demarcação de espaços e
papéis, de determinação do sistema patriarcal enraizado na cultura ribeirinha. SOIHET (1989, p.169) destaca que
muitas atividades laborais realizadas por mulheres não aparecem nos censos, e ao consultar os órgãos oficiais do
estado, encontramos a categoria “pescador” embora não se contabilize a “pescadora”. Cf.: SOIHET, Rachel.
Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem Urbana (1890-1920). Rio de Janeiro, Ed.
Forense Universitária, 1989.
87
lar, permanece majoritariamente atrelado ao domínio masculino. Parece haver uma rejeição e
uma ausência proposital de assimilação por parte de muitos homens de que as funções
domésticas no âmbito familiar não são exclusividade das mulheres, posto que compartilham
esse espaço, sendo responsáveis em conjunto por sua construção e manutenção, incluindo o
cuidado e a educação dos filhos. Ao mesmo tempo em que permanecem socialmente ligadas
ao espaço privado e são impelidas, por diversos fatores históricos, sociais, culturais e
econômicos a adentrar na esfera pública, as mulheres encontram empecilhos na conquista de
espaço neste âmbito, pois muitas sofrem discriminação, violência e descrédito. As pescadoras
entrevistadas ilustram esses aspectos.
No distrito de Salobra há um revezamento durante a temporada de pesca, sendo que
há períodos mais propensos ao turismo e outros momentos de pesca profissional para
comercialização:
[...] se a gente pegar firme mesmo, o peixe não está dando muito, a gente vai
ficar sem dinheiro, porque está meio fraco de peixe... Mais turismo mesmo, e
o turismo ele acontece só nesse período de março a novembro, e também não
é diretão, mas é mais agora no começo da pesca, daí final de semana e
depois feriado e final da pesca, e o peixe tem tempo que ele dá uma parada!
Tem vez que está subindo um cardume, aí fica bom de peixe [...] (Miranda,
16/01/2017)
A pescadora Shirlei demonstra o conhecimento de seu fazer, e descreve as
peculiaridades da pesca, pois há momentos com o predomínio da pesca comercial e momentos
para a atenção ao turismo, levando em conta que essas trabalhadoras precisam trabalhar
conforme o movimento de cardumes de pescado. Destaca ainda que, conforme o movimento
turístico (feriados e finais de semana), o foco maior é o atendimento com os serviços de
pirangueira, pois esse lhe proporciona uma renda maior e garantida, pois nem sempre se pega
o peixe na pescaria profissional.
Nesse momento da narrativa, o esposo Nilson Samuel interrompe a entrevista e
menciona que a região recebe muitos turistas de São Paulo e também de Campo Grande
e destaca:
[...] nessa região aqui eu falei para ela, eu ensinei ela pilotar e pescar
tudinho, tem que acabar com esse preconceito, esse machismo, que mulher
tem ficar só na cozinha, só tarefa de casa, tem que procurar profissão para
fora de casa. Muitos falam: ‘você deixa sua esposa pescar?’ Sim, eu deixo.
(Miranda, 16/01/2017).
88
Observamos em sua narrativa vários pontos importantes para se analisar.
Primeiramente, o senhor Nilson afirma: “eu ensinei”; portanto, ela realiza a profissão devido
aos ensinamentos dele, pois ele lhe ensinou “tudinho”, o que gera uma dívida e já insinua uma
hierarquização. Logo em seguida, aparecem as expressões associadas: “você deixa sua esposa
pescar?” e “eu deixo”. Portanto, socialmente há um interdito, há uma expectativa quanto aos
papéis masculino e feminino e suas respectivas atividades. Se a mulher adentra um espaço que
historicamente não lhe corresponde ou desrespeita o que se considera autoridade do marido,
causa estranheza, mesmo entre os pares, entre pessoas de um mesmo grupo. Eis o porquê da
pergunta dirigida ao marido. Por outro lado, o marido consente e permite à esposa exercer sua
profissão: a relação hierárquica não é rompida apesar da postura diferente que o esposo alega.
A mulher precisa e tem o consentimento do esposo para realizar o ofício, mesmo
afirmando “tem que acabar com o machismo”, “com o preconceito”. Se ele não permitisse, ela
não estaria exercendo tal atividade. O que depreendemos é que as relações e disputas de poder
permanecem, às vezes sutilmente, interiorizadas pelos sujeitos, e permeiam os territórios
familiares e se estendem para as atividades como pescadores. Foucault (1979; 1987)
permanecem, às vezes sutilmente, interiorizadas pelos sujeitos, e permeiam os territórios
familiares e se estendem para as atividades como pescadores.
Em determinado momento da entrevista, o esposo da senhora Shirlei se aproxima
com uma caixa e me mostra uma foto de quando eles não possuíam um carro, dizendo: “nós
íamos de cargueira para pescar”, e então aponta para a bicicleta carregada. Na fotografia a
seguir, Shirlei está com sua bicicleta, carregada com seus equipamentos de pesca juntamente
com sua filha ainda criança, a caminho do rio.
Dona Shirlei ao olhar a fotografia abaixo narra como tudo começou:
[...] Teve uma vez, um dia, a minha cunhada me chamou para pescar, ele
estava meio apurado, daí o que ele fez, ligou: ‘Shirlei, chegou um pessoal aí,
quer pilotar para um casal de velhinhos?’ Como o pessoal dele chegou mais
cedo, não teve como ele ir. (Miranda, 16/01/2017).
89
IMAGEM 14: Shirlei com sua filha indo pescar no rio Salobra
FONTE: Foto digitalizada pela autora da tese. Arquivo pessoal da entrevistada, fotografia sem data.
O senhor Nilson Samuel completa a narrativa e detalha:
[...] ele não queria! O senhor não queria que ela fosse, eu não tinha como
sair, ajeitando as traias dele, não tinha como eu ir. Falei assim para a
dona: ‘tem uma piloteira aí’, não falei que era minha esposa, a hora que ela
chegou ela falou, ‘mama mia!’ Respondi: ‘pode ir que eu ponho a mão no
fogo por ela’, e agora toda vez que eles vêm, ela quer ela, ela fez eles pegar
jurupensém, jurupoca, uns pacus... Soltou uns peixe fora de medida,
gostaram da pescaria, pescaria tão gostosa da gente pescar [...](Miranda,
16/01/2017)
Observamos na narrativa que, segundo o pescador, o senhor que o contratava estava
relutando para ir com uma mulher, o que revela uma postura de negar à mulher um lugar que
se considera não lhe pertencer. É interessante que o próprio senhor Nilson revela, talvez sem
perceber, ter usado um subterfúgio para conseguir que sua esposa pilotasse o barco para o
casal: tentou angariar a simpatia da senhora idosa, como que convocando uma certa
solidariedade feminina para a esposa Shirlei, e para si na intenção de convencer o contratante.
Porém, o que se sobressai como argumento de força é a palavra de Nilson: com a garantia de
competência e a anuência por parte de um homem, o casal aceitou o desafio de ir pescar com
uma piloteira mulher. Aqui temos uma dupla dominação masculina: é o homem que permite e
determina que ela vá e faça o serviço, e é outro homem quem “aceita” que a mulher faça o
90
trabalho de um homem. De fato, a senhora Shirlei nada mais comenta acerca dessa versão
sobre o episódio, e se tem consciência das forças simbólicas em disputa tanto na narrativa
quanto no momento narrada, nada deixa transparecer, como que naturalizando suas
implicações.
Podemos trazer para a discussão Bourdieu (1989), ao analisar o poder simbólico
incorporado no âmbito das relações socioculturais implícita e subjetivamente. Desse modo, “o
poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser conhecido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o
exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 7-8). Compreender e aceitar sua condição de dominadas,
isto é, naturalizar e neutralizar sua situação de subordinação, tornando-se cúmplices mesmo
que subjetivamente, de sua própria dominação, é algo que ainda ocorre nas relações entre
indivíduos, nos grupos. Sabe-se que a dominação perpassa uma série de representações que
constroem socialmente os corpos num contexto social. Os discursos moldam a estruturação
dessa dominação de modo a situar e conformar os gêneros e as sexualidades de acordo com a
determinação cultural, estabelecendo hierarquia entre eles e fazendo com que o macho se
sobreponha à fêmea. Na entrevista, isto se evidencia na frase: “Eu deixo ela ir pescar”. Essa
visão patriarcal e androcêntrica faz com que se crie um conjunto de oposição entre os sexos,
de modo a estabelecer uma divisão do mundo entre os gêneros feminino e masculino.
Nesse sentido, Shirlei relembra momentos em que outra mulher não queria que ela
fizesse o trabalho de pilotar, pois é natural para homens e não para mulheres:
[...] há um costume com piloteiros (homens), ela nunca tinha entrado num
barco, a hora que eu entrei, assim que eu funcionei o motor, ela disse: Não,
não! Foi só no começo, quando chegamos lá em baixo ela se aliviou e
gostou. Daí ela começou a cantar, pegava peixe e cantava, [...] Nós pegava
peixe, foi que agora toda vez que ela vem, ela quer que eu vou com eles, fica
aqui em casa, só o senhor e já ficaram aqui em casa. Aqui é bom de peixe,
no começo da temporada é bom de peixe, se desce lá, você está no barco e
vê [...]. Conforme a cor da água, você vê o peixe grande em cima, conheço
quando tem peixe no rio [...] (Miranda, 16/01/2017)
O trabalho desenvolvido por Dona Shirlei (2017) carece de uma relação de
confiança, visto que não depende somente da sua desenvoltura com a embarcação, mas é
preciso considerar também uma relação e desenvoltura frente às adversidades vindas da
natureza. No entanto, em sua fala ela reforça que demonstrou que é tão eficiente na arte
pesqueira quanto seu esposo, conquistando o casal de turistas, que hoje são amigos. Detalha
91
que conhece o movimento dos peixes, sabe onde tem peixe, conhecendo a coloração e o
cheiro da água, conhecendo, enfim, todas as nuances de seu “modo de fazer”, de seu ofício.
Outro detalhe importante é a questão de acampamento. Shirlei não costuma realizar
essa prática, ao questioná-la quanto a isso, o esposo Nilson responde:
[...] pescador profissional pode acampar, não pode destruir a natureza, se
tiver lixo no rio, tem que trazer, tem que ficar cuidando, isso que eu falo,
quando um turista joga uma latinha no rio, eu dou uma volta no barco e pego
a latinha e coloco na sacola, aí o turista fala: ‘mas é só uma latinha!’ ‘Mas
você faz e não volta mais, e eu? É daqui que eu tiro o pão de cada dia’, eu
falo, eu levo um saquinho, às vezes não levo aí deixo dentro do barco. Eu
falo ‘vamos catar as latinhas, saquinhos de minhoca’... eu não jogo no rio,
jogo no barco e depois trago para jogar no lixo [...](Miranda, 16/01/2017).
Observo que não houve uma resposta adequada, mas sim evasiva, que o fluir da
memória do marido se sobrepôs à voz da mulher e, por alguma razão, consciente ou
inconscientemente, uma questão delicada de ausência do lar foi deixada de lado, preterida por
outra questão, mais relevante, talvez, para o pescador. Ao afirmar que pescador profissional
pode acampar, a maioria das mulheres entrevistas, não “gostam” de acampar.
Observamos nessa reflexão um ponto importante, a preservação ambiental, o cuidado
com o espaço de trabalho. O pescador reforça o pedido aos turistas para que se preserve e
cuide das margens do rio. Entende que é parte desse ecossistema, como uma extensão do
ambiente, ao passo que aqueles que vêm de fora não conseguem perceber e estabelecer a
mesma conexão: “você (...) não volta mais, e eu?”. Grande parte dos pescadores e pescadoras
acampam por pelo menos 7 dias dentro do Pantanal, acompanhando a movimentação dos
cardumes de peixes; sendo assim, Nilson enfatiza que tem que preservar, trazer o lixo e
depositar em local adequado, nunca deixando lá.
Conforme o estudo de Ilsyane do Rocio Kmitta, intitulado Descortinando os
Pantanais: A construção de um paraíso às avessas entre o limite das águas e dos homens,
trago uma reflexão da autora que reforça o discurso do senhor Nilson. Sobre a população
ribeirinha, quanto a questões de preservação ambiental,:
[...] podemos alegar que as relações com o meio ambiente são estreitas, por
outro lado afirmamos também que o homem que habita os pantanais, ou seja,
o pantaneiro, possui uma estreita afinidade com esse espaço. Dessa forma, é
possível concluir que essas relações se desdobram em identidade de tal
forma que a modificação desse espaço implica a destruição de parcelas de
sua identidade, quando populações ribeirinhas, como pescadores e pequenos
criadores, são colocadas à mercê da história em favorecimento de grandes
proprietários e fazendeiros que, com seu discurso de pioneirismo, chamam
92
para si toda a história como “guardiões do Pantanal”, ignorando e relegando
ao esquecimento memórias e vivências no que tange ao conhecimento da
natureza, seus ciclos de água, o cuidado com o meio ambiente, suas
resistências e formas tradicionais de vivências em um “santuário ecológico”
onde as pequenas comunidades não figuram como adornos na evocação do
éden, não se enquadram na composição de cenários caricaturescos
norteadores das visões idílicas constituídas por representações apologéticas e
de esforços hercúleos para a manutenção de suas propriedades e uma
memória heroicizante e nada ingênua. (KMITTA, 2016, p. 152).
Embora o estudo aponte para as oposições grandes proprietários x pescadores e
ribeirinhos, nas quais os menos favorecidos são também os menos visíveis, ressaltamos que
em geral são os(as) pescadores(as) e ribeirinhos(as) aqueles(as) que de fato menos agridem o
espaço com o qual se identificam e tem afinidade. Nilson, oriundo desses grupos,
individualmente também se coloca como um “guardião do Pantanal”, entre os que defendem o
cuidado com a natureza local, vislumbrando o futuro da pesca e do rio. Destaca
principalmente que o turista nem sempre volta, mas ele estará aqui, dependendo todos os dias
desse ambiente. Kmitta (2016) salienta que o ambiente natural faz parte da identidade da
categoria, ou seja, ao destruí-lo estará eliminando parcelas das identidades desses grupos.
O pescador Nilson narra que o pioneirismo da esposa como guia de pesca incentivou
outras a exercerem tal serviço:
[...] quando ela começou a pilotar foi que surgiu mais piloteiras, antes não
tinha quem pescava para turista como ela pesca [...]. A menina de Salobra
pesca. Ela e a mãe dela, ela é muito boa no anzol, ela e a mãe dela, ela pesca
para turista, a mãe não pesca para turista (Miranda, 16/01/2017).
Nilson detalha que Shirlei é conhecida como a menina que pesca e que igual à mãe é
uma pescadora que tem muitas habilidades com esta prática, que o diferencial entre ela e a
mãe está no atendimento ao turismo. A própria Shirlei completa a narrativa relembrando que
"a cunhada pescava muito, agora só trabalha na cozinha mesmo, esse ano não deu para pescar,
nós íamos catar caranguejo, eu levava cada susto tentando pegar [...]”. Percebe-se que muitas
abandonam a profissão para exercerem outros ofícios, pois, segundo Shirlei, a pesca exige
muita “coragem” e “força” para se trabalhar. Relata que a cunhada abandonou a pescaria
devido a não se identificar com a atividade, além de ter filhos pequenos que careciam de seus
cuidados mais de perto.
Entre os apuros passados, relembra um episódio com um jacaré, momento que marca
o rito de iniciação na pesca:
93
[...] quando eu estava aprendendo as coisas, um dia estava pegando pacu
peva, o pintado passava no canal, só pegava com coador (pacu peva),
pintado só com bicheiro, aí ele estava com o cilibrim31
, ele falou: ‘Pega ali’;
nada de pegar, aí que um jacaré veio, quando fui com o coador no jacaré, só
que eu não vi que era um jacaré, o jacaré veio com tudo, aí caí no barco e ele
xingou, agora ele não xinga mais! (Miranda, 16/01/2017).
Shirlei destaca que não foi fácil, pois o trabalho exige um olhar criterioso que ela não
possuía no início das atividades com pescaria. O senhor Nilson completa a narrativa: “agora
ela é uma excelente pescadora!”; então, não precisa mais ser insultada para aprender a pescar.
Cada pescaria com turmas novas é um desafio para estabelecer confiança:
[...] agora quando a gente vai pescar, quando o pessoal é novo e não me
conhece, eu fico olhando na cara deles. Quando eu entro no barco e eles
sabem que é uma mulher que vai pilotar, eles ficam meios desconfiados, eles
pensam: ‘será que vai dar certo?’ De repente, quando é de tarde, que eles
pegam peixe, eles me elogiam, dão os parabéns, já pega o número, já marca
outra pescaria, eles ligam e já reserva e fala: ‘eu quero a Shirlei!’ (Miranda,
16/01/2017).
Portanto, sua trajetória é marcada pela repetição da necessidade de se provar apta e
capaz no serviço no qual os turistas esperam encontrar um homem, apesar de seus anos de
experiência. Na sequência de seus relatos, sua memória retoma dois momentos que foram
marcantes para o início como piloteira, primeiramente quando o esposo a indica para um casal
de idosos (já mencionado) e outro momento, quando um fazendeiro procura por um piloteiro,
ela se candidata e vai realizar a atividade, mesmo com medo: fator de empoderamento que a
faz ter "coragem" para iniciar sua atividade como guia de pesca:
[...] um senhor da fazenda, até hoje ele vem, muito tempo, ele chegou ali,
perguntou assim se tinha como alguém pilotar para ele. Daí a minha menina
veio aqui correndo, eu falei assim: ‘Eu vou!’ Eu acho que foi quando eu
comecei a ir, meio com medo, aí fui embora [...]. Ele vem direto, vem o filho
dele, direto ele vem, já me procurava, falando: ‘Shirlei, vamos pescar’
[...](Miranda, 16/01/2017).
A partir de então seu nome ganha prestígio na região e se torna referência entre as
pescadoras, principalmente pelo seu atendimento ao turista, oferecendo um trabalho de
qualidade, segundo a narradora. Descreve abaixo outra referência de seu trabalho de guia de
pesca:
31
Cilibrim: Lanterna refletora com potência maior que as lanternas comuns.
94
[...] Nós sempre pescava com dois senhores, um era mudo, um dia estava
pescando ali embaixo, aí ele falou assim: ‘Shirlei, coloca isca, coloca alguma
linha para ele, porque se eu colocar lambari ficava beliscando e balançando o
barco!’ Eu coloquei. Quando eu coloquei ele jogou, ele fisgou e foi puxando,
puxando, eu não aguentei, um pacu, coloquei outra bolinha de novo, outro
pacu, bolinha de jenipapo, daí eles sempre vem aqui e já me procura
[...].(Miranda, 16/01/2017).
Sua experiência e conhecimento com o fazer pesqueiro faz com que Shirlei conquiste
uma clientela que se torna fiel ao seu trabalho. No entanto, é preciso compreender essas
relações de poder relacionadas ao gênero, fato que ocasionou inúmeros debates no movimento
feminista e entre estudiosas de gênero, pois Foucault (1979) retrata em suas análises uma
nova concepção de poder, desvencilhada daquela que defende que apenas parte da sociedade
o possui.
Eu falo assim, aqui mesmo, se precisarem pilotar, eles sabem de uma pessoa
do Paraná que veio, eles vieram para eu pilotar, mas os homens começaram
com graça, aí não fui [...](Miranda, 16/01/2017).
Quando Shirlei se sente ameaçada prefere não ir, responde a essa violência com um
não. A teoria geral do poder nos faz compreender essas múltiplas relações permeadas na vida
cotidiana, de onde vem o entendimento de uma microfísica do poder defendida por Foucault
(1979), pois ninguém está destituído desses micropoderes. Neste sentido, sua contribuição
teórica nos ajuda a analisar traços de violência contra as mulheres e busca-se
compreender essa gama de fatores que perpassam as relações permeadas de violências. Nesse
sentido, as mulheres não se encontram totalmente destituídas de poder, e podem fazer uso dos
mecanismos que detém no exato momento da ameaça de violência; no caso de Shirlei,
conforme mencionado, ela enfrentou a “graça” dos homens, disse “não vou” e não foi.
Por outro lado, a entrevistada também demonstra suas habilidades na pesca, o que
valoriza seu trabalho e a ajuda ter segurança para estar no espaço masculino e desempenhar
bem suas funções, competindo em condições de igualdade no que diz respeito ao
conhecimento de seu “modo de fazer”. O peixe pacu, conhecido e considerado peixe de
primeira linha, representa para os turistas um troféu, por não ser tão fácil para pescar e de
encontrar no rio, assim, com suas habilidades para encontrá-lo, dona Shirlei conquista seus
clientes, ao lhes acenar com a possibilidade de pescar o tão desejável pacu amarelinho do rio.
95
IMAGEM 15: Fotografia da Shirlei em um rico dia de pescaria
FONTE: Fotografia digital disponibilizada pela pescadora Shirlei, com data 14/08/2014.
Na foto apresentada, Shirlei exibe dois peixes da espécie pacu, peixe muito
procurado em rios pantaneiros; para os pescadores turistas e profissionais tem um destaque
especial pelo sabor e também pelo prazer de fisgá-lo. Ainda podemos observar que a
pescadora utiliza adequadamente instrumentos de segurança e de proteção, como colete salva-
vidas e boné, essenciais para exercer as atividades em rios do Pantanal.
Ao ser questionada sobre seus costumes, Shirlei narra:
[...] só pesco com a minha varinha assim (mostra a varinha). Ele é mais
chato com as coisas dele (risos).... Quando íamos pescar ficava tudo junto,
agora já tenho as coisas separadas, minha varinha é minha, a dele é dele, eu
também não empresto minhas coisas [...]. (Miranda, 16/01/2017).
Shirlei detalha que ao longo do tempo tem conquistado sua independência
profissional, equipando-se com seus próprios materiais de pesca, mesmo que subjetivamente
revele a estreita relação com o marido ao dizer que “ele é mais chato”, e termina falando:
“não empresto minhas coisas”. Marca em sua fala um movimento rumo à igualdade, pois com
a própria organização dos apetrechos do trabalho, não abre mão de sua conquista e de seus
equipamentos, assim como ele.
96
Destaca que gosta tanto de pilotar como também de pescar para comercializar o
pescado. Sua residência é localizada às margens da BR 262, fato esse propiciador do
comércio pesqueiro, principalmente para caminhoneiros que por ali transitam. Descreve como
foi empreender no ramo e como se organiza na aquisição de apetrechos para melhorar tanto
no atendimento ao turismo como também no seu dia a dia com a venda de seus pescados:
[...] teve um tempo que só tínhamos um barquinho pequeno que nós
pescávamos, o motor estragado [...]. Ele pegou e se enfezou, e pegou e
largou a pesca e eu fiquei aqui. Ele pegou um acerto e comprou um barco e
eu apanhei e comprei um motor. Parcelei e tal, fiz empréstimo pelo produtor
aí foi que conseguimos melhorar os equipamentos. Nós descíamos para
acampar, às vezes, e o motor estragava lá embaixo e toda vez eu batia o
motor e não funcionava e quando funcionava vinha embora... Daí foi assim,
melhorou com a compra de um novo [...](Miranda, 16/01/2017)
Os pescadores foram contemplados com uma política que visa ampliar e
instrumentalizar a produção de pescados no Brasil, implantando linhas de crédito pelo
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), vinculado à
Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAFDA).
Em outubro de 2012 foi lançado o Plano Safra da Aquicultura e Pesca
2012/2013/2014, instrumento que organiza as políticas governamentais e
apresenta uma série de medidas voltadas para o desenvolvimento sustentável
da cadeia produtiva da pesca e aquicultura. O “Plano Safra” prevê
investimentos de R$ 4,1 bilhões para expandir a aquicultura, modernizar a
pesca e fortalecer a indústria e o comércio pesqueiro. A meta é produzir dois
milhões de toneladas anuais de pescado até 2014. (BRASIL, MPA, Cartilha
de Crédito, 2013, p.03).
Esta foi uma medida bastante bem-vinda, uma política importante para as pescadoras
e pescadores que ficavam “amarradas” nas mãos dos atravessadores, pois ao não ter os
instrumentos de trabalho, como o barco e o motor, tinham que pescar exclusivamente para
eles. Com essa oportunidade de financiamento a juros baixos, que variam entre 0,5% até 3%
ao ano e com carência de até três anos, possibilitou-se o acesso a um investimento que equipa
e qualifica o trabalho dos pescadores, gerando mais possibilidades de renda aos pequenos
produtores.
A pescadora Vânia Sato (2017) demonstra mudanças significativas em sua atuação
na pesca após a compra de uma lancha pesqueira:
97
[...] fomos trabalhando com o peixe, a gente pescava caranguejo, tuvira, tudo
que caia na rede era isca, vendia tudo. Depois compramos uma lanchinha, ai
começamos a pescar para nós, quando está bom de pintado nós pesca
pintado, mas nunca nós largamos da piranha. Porque piranha nós temos para
quem entregar, chegou ai já entregou, é 300 a 400 quilos de piranha
[...] arrumamos tudinho, certinho, daí ele leva para a Bolívia, para os
restaurantes, entrega para eles, aqui também vende, mas não movimenta
muito, mas sai [...] graças a Deus com o dinheiro de iscas que compramos a
lancha [...] (Corumbá, 15/01/2017).
Há toda uma organização no setor pesqueiro, a senhora Vânia (2017) destaca que
pesca tanto iscas vivas para atender o mercado local, como peixes em geral, o que determina
são os movimentos desses pescados. Destaca que tem mercado para todos os peixes e iscas
vivas e que para eles o principal mercado é com os comerciantes da Bolívia, pois a venda do
peixe piranha é garantida, é só ter o pescado que tem pessoas para comprar. Segundo a
narradora, a pesca de iscas proporcionou a compra da lancha pesqueira, o que leva a ter mais
lucros pescando livre de atravessadores. Grande parte das pescadoras narram com muito
orgulho essas conquistas, pois segundo elas é o resultado de muito trabalho, sendo que muitas
(os) pescadoras (es) não possuem embarcações para realizarem suas atividades laborais, assim
ficam a mercê desses comerciantes que oferecem as embarcações e tem pescadores exclusivos
para seus comércios.
Nessa direção, temos que compreender a política desenvolvida ao longo dos anos
pelas Colônias de Pesca, visando compreender o papel da instituição enquanto representação
sindical e de viabilidade de conquistas para a categoria.
2.2 - Colônia de Pesca: Representação Política da categoria
Sara Moreira Soares (2012), destaca em sua pesquisa intitulada Descaindo a rede do
reconhecimento: as pescadoras e o seguro-defeso na comunidade Cristo Rei no Careiro da
Várzea, que as mulheres de comunidades pesqueiras não buscam apenas uma carteira de
pescadora, mas o significado e os frutos reais da condição proporcionada por ser pescadora,
ou seja.
Elas estão lutando por um protagonismo que minimize a dívida histórica
engendrada pela invisibilidade no mundo da pesca. Em suma, elas buscam o
reconhecimento não somente de gênero, mas de cidadania; de participação
na esfera social; uma luta por redistribuição de renda e pelo direito das
condições de igualdade nas comunidades pesqueiras. (SOARES, 2012, p.
119).
98
O trabalho das mulheres pescadoras não é algo novo, já o anseio por sua visibilidade
o é, como já abordado em pesquisas anteriores (ANDERSON, 2007; SOARES, 2012;
LEITÃO, 2008; CAVALCANTI, 2010, MORENO 2017). A questão em pauta seria os
entraves para reconhecer a presença dessas mulheres em diversas atividades relacionadas
tanto direta como indiretamente com a pesca e com a participação na atividade de
representação da categoria. Tais entraves podem ser superados à medida que as pescadoras
assegurarem a sua participação em instituições de representatividade cuja primeira instância é
a Colônia dos Pescadores, onde seus direitos possam ser reconhecidos e assegurados.
A pescadora Zeferina (2017) destaca em sua narrativa as transformações na questão
da legislação pesqueiro ao longo dos anos:
[...] mudou muito coisa, a legislação de hoje, antes era mais
rígida, agora muitas vezes não podia nem sequer sair. Quando se estava na
pescaria, pegava e puxava, antigamente não fechava a pescaria, agora não,
de uns tempos para cá que surgiu a lei da piracema, mas é bom na verdade.
Fechar a pescaria num ponto, eu acho que é bom e é não é porque se fechar a
pescaria logo tem que ter seguro para a gente. Nós que vivemos da pesca
precisamos, porque sem ter recurso, pois nós que vive da pesca nós precisa,
tudo que precisa comprar para nós é da nossa pescaria e ai, vai viver de que?
(Miranda, 15/01/2017).
Ao narrar que a legislação “antes era mais rígida”, a pescadora Zeferina (2017) esta
rememora períodos de fiscalização mais rude e que tratava a categoria de maneira rude,
segundo narrativas de outros pescadores32
que denunciam o tratamento que era atribuído aos
pescadores profissionais.
[...] Quem tem outro serviço, quem tem outros empregos, mas com carteira,
vive de outro serviço, é motoqueiro, é frete, sei lá [...] já esta tendo dinheiro,
diferente de nós que só vive para a pesca, ai não tem condição,
quer ver agora onde vai conseguir receber o seguro? O meu e o dele, nos já
fomos para lá, já voltemos agora, estamos aqui, não temos condições de
voltar para lá, se não chegar o seguro. Porque nós não temos dinheiro para
comprar diesel, comida, como vai comprar diesel para subir, não tem como,
um exemplo tem que ficar aqui. Quem depende do seguro, o pescador
quando é pescador verdadeiro depende de seguro e complica as coisas para a
gente que é pescadora, tem outro trabalho se tem alguma para fazer tem
como comprar comida, tem como comer, mas nós que somos pescador
verdadeiro, não tem como, não tem aonde ir, só se vai caçar um servicinho
às vezes numa coisinha para lá para fazer tem que assinar a carteira, por que:
32
Narrativas dos pescadores: Sr. Armindo, Sr. Bráz e Sr. Raimundo ao concederem entrevista para a produção
da obra: ZANCHETT, Silvana A. S. Histórias, Memórias, Significações e Apropriações: Pescadores
Profissionais de Coxim/MS - (1967 a 2012). Ed. Life, 2015.
99
há não ser diarista, mas ai complica para nós que é pescador, nós não
podemos fazer complicar porque nós não podemos, porque é pescador, então
pode até passar necessidade! Tem que ser pescador [...] ai eu sou pescador e
não quero isso, passo o que passar vejo alguma coisa que passa que a gente
pescador não é assim falar é sempre a gente pode ser mais cobrado, mas eu
quero ser pescador e vou ser até o dia que Deus quiser! Se Deus quiser
[...](Miranda, 15/01/2017).
Sua narrativa evidencia outro aspecto, destaca que a atividade pesqueira continua a
ser o sustento principal da casa, cuja execução atende à divisão de tarefas entre os membros
do grupo familiar. Por ser uma atividade familiar, obedecem as regras e aos laços de
dependência estabelecidos pelo grupo familiar. Portanto, é deste modo que as tarefas são
divididas entre os membros e as possibilidades de fechamento da pesca profissional gera uma
instabilidade, destacada na afirmativa de que "pescador de verdade" vive exclusivamente da
pesca e dos seus resultados, sejam os benefícios ou os problemas como o atraso do seguro-
defeso, seja exercer outra atividade que demandaria ter assinatura em carteira profissional. A
palavra “pescador” em negrito, esta no gênero masculino, sendo preservado no texto da
narrativa da Pescadora Zeferina (2017), pois tem um significado além da linguagem, tem um
tom de destaque que é o ser pescador, sendo utilizado por uma mulher.
Ao ser questionada sobre a possibilidade de fechamento da pesca, Zeferina (2017)
primeiramente pensa e logo responde de maneira reflexiva:
[...] mas o que vão fazer com nós? Como que nós vamos viver? Aí que eu te
pergunto: como nós vamos viver sendo pescador, o que vão fazer com nós?
O que será? Bandido não quero virar, nem Deus há de deixar, porque o
pescador é assim, nem meus filhos, eu tiro comigo, como eu sou pescador,
tira o ramo dele o que que ele vai fazer? A gente não quer fazer outra coisa,
nem Deus há de deixar, fazer outra coisa [...] (Miranda, 15/01/2017).
A Federação Estadual de Pescadores Profissionais, como as Colônias de Pesca, lutam
constantemente para o não fechamento da pesca em Mato Grosso do Sul. Existe debates dos
setores políticos33
tanto pela permanência como pelo fim da pesca profissional. As discussões
perpassam pela ampliação ao atendimento turístico e também pela implantação de Pequena
Centrais Hidrelétricas (PCHs).
33
As colônias de Pesca de MS entregaram um documento solicitando apoio do deputado federal Fernando
Gabeira, contra a moratória da pesca em Mato Grosso do Sul. A medida previa a proibição da pesca
profissional, por no mínimo quatro anos. O governo do Estado (2005) culpabilizava os pescadores, pela extinção
de peixes, que segundo órgãos de pesquisa não confirmavam a argumentação. Os pescadores e pescadoras
profissionais receberam o apoio da Embrapa Pantanal e da Ong Ecoa-Ecologia e Ação. Cf.:
<http://www.riosvivos.org.br/canal.php?canal=289&mat_id=8023>. Acesso em: 26/11/2016, às 17h.
100
Os pescadores profissionais não concordam com a medida de precaução
proposta pelo governo do Estado. Pois sabem que não está acontecendo uma
sobrepesca no Pantanal. "Nós vamos tentar um diálogo com o governo para
mostrar que eles estão errados. Esta decisão não tem embasamento técnico",
afirma Estevão de Queiroz Miranda, presidente da Federação dos Pescadores
do Estado de MS. (ECOA, 20/10/2005).
A proposta de fechamento da pesca é lembrada como um momento de luta,
insegurança e desafio, vivenciado pela categoria. Zeferina destaca em sua narrativa que só
sabe pescar e que não quer exercer outra atividade que não seja a pesca profissional. A
Federação de Pescadores do Estado de Mato Grosso do Sul, cobram do governo,
embasamento técnico para confirmar o equivoco que estava acontecendo naquele momento.
Shirlei (2017) detalha seu olhar sobre o trabalho que a colônia de pesca desenvolve:
Eu não sei se estou errada, a colônia ajuda assim, mas não é aquelas coisas
não! Ela faz, a gente paga a mensalidade lá, e não tem o retorno, porque não
tem retorno de nada lá, só mexe com a documentação, só é mexer com
documento atrasado. A gente vê que venceu ai que nos vai lá e agora que
esta tendo a máquina de tirar Xerox [...] então paga a mensalidade todo mês
cada um, gente paga R$: 25,00 de mensalidade, eles disseram que ia
aumentar mais ai teria que ter mais coisa para a gente. Eu penso que a
colônia eles teria que ter um médico ou outra coisa, não sei! Lá a gente paga
tanto e tem tanto pescador ai que paga e não sabe para que é [...](Miranda,
16/01/2017).
Sua narrativa como das demais pescadoras, traz um desconhecimento do papel que a
Colônia desenvolve, a vê apenas como uma instituição que organiza a documentação dos
pescadores. E todas cobram que deveria ter uma assistência maior ao pescador profissional,
sendo que pagam e não veem um retorno que gostaria de ter, como exemplo, quando foram
criadas as colônias de pesca, havia dentistas para os pescadores, em parceria com as
prefeituras da cidade (SILVA, 1986).
As pescadoras destacam em suas falas a luta das Colônias de Pesca, para a
manutenção do oficio no Estado. A pescadora Marilza (2017) pontua, ser indagada sobre as
relações com as políticas públicas proporcionadas para a categoria que:
[...] Só é nós e a colônia! A colônia só faz isso aqui, encaminha para você, os
documentos, só também [...] É isso ai que eu falo que tem que ter né! Porque
ele (esposo) não dava entrada no INSS e passou muito tempo com a firma
parada [...] Daí não conta, teve que aposentar ele pela pesca, pela justiça,
pois eles não aceita mesmo! [...] Agora a pessoa falar que você não vive de
pesca! Ai não! Ai já é demais, [...] Acham que você não vive daquilo. No dia
que eu fui lá, para dar entrada no auxilio, porque era direito meu, a mulher
pegou e falou assim pra mim: Mas e o documento da senhora? Eu falei dona,
101
falei pra ela: senhora, se eu não tivesse tudo, tudo na lei eu estaria aqui [...]
lá no meio do asfalto, tudo lá no meio do asfalto, falei pra ela, ai ela pegou e
falou assim: mais da AGENFA, para lá precisa, eu falei pra ela [...] sem a
nota na primeira barreira que você passar você está preso. [...] (Corumbá,
16/01/2017).
É um consenso o olhar sobre a Colônia como representação estatal da categoria, pois
segundo as narradoras, é só para documentar e encaminhar para o atendimento conforme as
necessidades. Um exemplo vivido pelas mulheres pescadoras é a dificuldade quando tentam
se aposentar ou reivindicar auxílio-doença. Os próprios atendentes, segundo ela, olham com
desconfiança e não acreditam que vivem da pesca, mesmo com a documentação nas mãos.
Segundo dona Marilza (2017), há médicos do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) que
não acredita que elas são pescadoras, pois estão arrumadas, limpas e com unhas feitas, sempre
pedem para elas mostrarem as mãos e muitas não ganham o seu benefício de direito.
Destaca sua indignação com tais posturas:
[...] A gente que vive daquilo, que batalha, que você sofre. Se senti assim:
Você acha que está sendo humilhada e a pessoa está achando que você está
brincando com ela. Mas aquilo ali. vou falar pra você, eu passei uma raiva
com aquela mulher lá viu! Eu não ia mais fazer, se ela respondesse mais uma
palavra minha, eu ia pegar tudinho eu ia à defensoria, ia meter um processo
nela, porque na verdade ela fez uma pergunta pra mim tão besta, que, quer
dizer ela achou que eu não estava em dia com a AGENFA? Só pode! Se eu
não tivesse, eu estaria ali levando os documentos, passando por ambiental,
eu estava presa! Me deu uma raiva, é desrespeito com a gente, a pessoa
humilha a gente [...] Eu estudei até a quinta série [...] (Corumbá,
16/01/2017).
Ao falar da Colônia de pesca, compreende que o papel é auxiliar na documentação e
encaminhamentos. Agora ao ter que provar que exerce tal atividade, se sentiu humilhada, pois
a burocracia é grande e precisa estar com toda documentação, que na ausência de
documentação, pode até ser presa por crime ambiental.
No caso das pescadoras, perceber a dominação masculina “invisível” é
importante porque a ideia enraizada é de negação dos espaços públicos,
postura que amplia a desigualdade de gênero e também social, uma vez que
nega a participação cidadã dessas mulheres. Com isso, ocorrem os entraves
em se reconhecer as trabalhadoras tanto na pesca como em diferentes
modalidades e frentes de trabalho. Na pesca, como já mencionamos, a
própria crença na panema por muito tempo serviu de âncora para sustentar
os argumentos de que as mulheres não pescavam. Por isso, a luta dessas
mulheres pelo reconhecimento é primeiramente da condição de pescadoras, e
depois de cidadãs na luta pelos seus direitos sociais. (SOARES, 2012, p.
119).
102
Essa é uma das grandes lutas das mulheres pescadoras, “visibilidade” elas se sentem
humilhadas ao ter que provar que realmente pescam. Mostrarem as mãos, detalhar os
equipamentos de pesca, tipos de peixes que capturam e tipos de iscas que usam, são as
perguntas realizadas pelos que não acreditam que essas mulheres exercem a profissão. Alguns
as criticam por estarem bem arrumadas, maquiadas e com aparências femininas, isso as
desqualificam enquanto pescadoras. Nesse sentido, compreendemos que as instituições,
principalmente a Colônia de Pesca ainda segue e preserva o princípio tradicional, conservador
e patriarcal.
A senhora Marilza (2017) sofreu um acidente automobilístico o qual causou uma
fratura no seu maxilar e outros ferimentos. Sentiu-se humilhada, mesmo afirmando que só era
possível transportar iscas vivas com nota fiscal e com a autorização da ambiental, mesmo
assim a atendente do INSS, não estava acreditando que ela estava trabalhando no momento do
acidente. Em sua compreensão, acredita que a falta de instrução escolar, lhe traz tais
desrespeitos.
Marilza (2017) narra a batalha da filha ao ter que provar que vive da pesca e está
fazendo um curso superior.
[...] É que nem a minha filha, a minha filha tem carteira de pesca, porque de
vez em quando ela sai aí com a gente, ela sai para pegar uns caranguejos.
Então quando ela foi lá (INSS) para ela fazer não sei o que foi fazer lá, a
mulher falou pra ela: Ah, mais você vive de pesca e faz faculdade? Então
quer dizer que se você é de pesca, não vai fazer uma faculdade? [...] Ai a
minha filha falou pra ela, não é porque eu sou da categoria, que eu tenho a
carteira de pesca que eu não vou fazer faculdade! Quer dizer que, por isso eu
vou ficar toda vida nisso? (Corumbá, 16/01/2017).
A maior indignação da senhora Marilza (2017) diz respeito ao despreparo de
atendentes e médicos, pois ao conhecerem os candidatos questionam a possibilidade de não
exercerem, de fato, a profissão e completa a narrativa:
[...] Humildade que você tem! Não sei se é porque eu fui criada assim no
mato, mais eu vejo muitas coisas, que você está vendo que está errada! A
pessoa acha que não, que você é o errado e ele é o certo! Entendeu! Então,
eu acho que muitas vezes é isso ai que eu fico pensando que nem a minha
mãe falava: Você pode ser um analfabeto, mas desde que você respeite as
pessoas [...] (Corumbá, 16/01/2017).
103
A subordinação feminina é visível e recorrente no mundo do trabalho pesqueiro, no
qual, como já dissemos, existe a dificuldade em reconhecer as mulheres como profissionais
que trabalham em regime familiar e que ainda exercem duas ou mais funções. Como no caso
da filha da senhora Marilza que é universitária, pescadora e dona de casa. A indignação vem
ao exigir respeito, sendo uma questão dos bons costumes, visto que muitas vezes se sentem
humilhadas ao ter que provar que exercem a atividade pesqueira e ao mesmo tempo buscam
se instruir, portanto, não podem ser questionadas por estarem buscando novos caminhos.
Poxa não foi fácil não! E, então ai que me injuria às vezes, as pessoas achar
que você está mentindo, poxa esse dia que eu fui lá no INSS, que essa
mulher falou aquilo lá. Se eu tivesse pelo menos boa de falar, que eu não
estava nem boa para falar. Eu não podia nem conversar muito, tinha que
conversar pouco, nessa brincadeira, eu fiquei três meses sem comer um
grumo [sic] assim de coisa dura, era só pastoso que fala. (Corumbá,
16/01/2017).
Outro fator desanimador segundo Marilza (2017) é a relação de constante
confirmação de atuação e que o não respeito enquanto profissional atuante a deixa "injuriada",
ou seja, em estado de recuperação de um acidente grave, ainda teria que passar por essas
comprovações.
Por outro lado, Orlinda (2017) relata que não compreende como alguns
pescadores(as) que não pescam conseguem comprovar que trabalham realmente e
exclusivamente com a pesca:
[...] porque a gente passa por isso, quando é final do ano, a gente tem que
puxar nada consta, tem que ir no INSS pra ver e puxar lá o NIS da gente pra
ver como é que esta, se a gente não está trabalhando em algum lugar se a
gente não tá registrado, para poder pegar o seguro. E tem gente que pega o
seguro, tem gente que às vezes é aposentado e ainda esta funcionando a
coisa ainda, eu não sei que jeito que fazem [...] nós fomos na colônia e
estava eu e minha irmã, minha irmã estava brava lá a gente que é pescador
que sofre, que se lasca na beira do rio a gente vem aqui pra fazer uma coisa
que é difícil, ai a pessoa que nem é pescador chega aqui e faz as coisas com
facilidade [...] (Miranda, 16/01/2017).
A narrativa de grande parte das pescadoras é a denúncia de ser pescadora legítima,
aquela que esta no rio todos os dias e tem como provar isso. A Colônia é a instituição de
referência para as pescadoras, um lugar onde eles buscam orientações sobre o desempenho da
atividade, mesmo que esses assuntos não estejam vinculados diretamente à pesca. Ainda, é
na Colônia que recebem as principais instruções sobre o cuidado que devem ter com questões
104
previdenciárias, orientações sobre mudanças na legislação, ainda cuidados com a saúde, com
a natureza e com o meio ambiente. Por isso, em diálogo com Fassarela (2007), observamos
que as participações das pescadoras nessas instituições são importantes para a busca de
visibilidade nos espaços públicos. A negação dessas participações de mulheres na vida
pública, significa uma a negação de sua própria cidadania.
Ainda, observamos que há uma institucionalidade patriarcal presente em todas as
colônias de pesca, visto que o apagamento feminino é notório em todos os espaços, no
entanto, a autuação delas é presente em todos os campos da arte pesqueira.
Orlinda (2017) frisa que:
[...] o trabalho da colônia sei lá, eu acho assim que não é tanta coisa, porque
nós não temos médicos, nós não temos dentista, nós não temos nada, não
é! Nós não temos uma fabrica de gelo, que nem tinha os maquinários da
colônia, tinha! Só que parou tudo, a gente paga a mensalidade, paga tudo.
A colônia, só que até agora num esta funcionando nada lá! [...] é porque
tinha que ter, tinha que ter faculdade pros filhos dos pescadores é algo que
não tem, não tem nada! Nem gelo para o pescador não tem, que antigamente
ainda tinha, quando era época de outros presidentes. Tinha gelo, tinha as
máquinas que funcionava lá pra fazer o gelo, comprava os peixes dos
pescadores, só que agora não tem nada disso mais não, nada de bom na
colônia não, tem mais [...] (Miranda, 16/01/2017).
Observamos relações de poder entre grupo e as suas “lideranças”, perceptível na
narrativa de pescadora Orlinda (2017), ao destacar que antes com a outra presidência tinha
gelo, agora não tem mais nada. Faz uma crítica quanto a conquista por direitos às
pescadoras(es), que a colônia deveria oportunizar melhorias na saúde, educação e nos
subsídios para coadjuvar o trabalho dos pescadores.
O papel da colônia, em sua visão é:
[...] só documentação, só isso mesmo, que é alguma coisa que eles correm
atrás. Que nem agora mesmo, aqui está a associação do João [...] que tem o
nome dele lá, até hoje a mensalidade dele é 15 Reais. E sabe quanto que nós
vai pagar? Vai para 35 Reais de mensalidade que é pago pelo Banco Sicredi,
se a gente atrasar paga o dobro disso dai [...] Mês passado eu atrasei mesmo
e paguei R$: 100,00 acho que eu paguei R$: 107,00 parece que deu R$: 2,50
de juros de cada parcela, que é R$: 25,00 e eu atrasei e entrei na bomba lá,
não é fácil não. Pra quem vive só da pesca, não é fácil desembolsar isso dai
todo mês todo mês, a gente devia fazer uma reunião para ver se essas
pessoas estão de acordo com aquilo ali, que nem ali na associação faz,
quando vai aumentar a mensalidade eles vão e chama e reuni os pescadores e
vai aumentar a mensalidade se esta de acordo ou não, [...] é vê se dá
para pagar ou não, e ai não eles nunca faz isso ai não! É por conta
deles! (Miranda, 16/01/2017).
105
Há nas narrativas, um desconhecimento da representação de fato das colônias, muitos
atribuem como quase uma propriedade particular do presidente.
Orlinda (2017) destaca que:
[...] isso dai é temporário também, a senhora vê que a gente não é assalariada
pra sempre, é quatro mês só, se não fazer uma reservinha passa muita
dificuldade nessa época. E atrasou bastante (o repasse) que tem gente que até
agora não recebeu ainda! Você acredita! É que nós, eu mesmo graças a Deus
recebi duas parcelas vai pra três já, mas tem gente que não recebeu nem a
primeira ainda, é tem gente que ia procurar servicinho pra trabalhar né
porque que jeito que ia ficar? Não dá pra ficar não, tem que sair para
trabalhar se não passa necessidade. Falar a verdade passa mesmo, não é fácil
não, é difícil. As pessoas que são beneficiarias naquilo ali, chega tempo não
está certinha, a gente faz às vezes dia 9 de outubro começa o seguro já
fechou a pesca já começa o seguro já, o certo é fazer 30 dias quando fizer 30
dias certinho a gente esta recebendo. Só que não acontece não tem muitos
que não recebeu até hoje nada, nada mesmo [...] (Miranda, 16/01/2017).
Orlinda (2017), afirma que a categoria ao longo do ano, precisa fazer reserva de
dinheiro para passar o período de defeso, visto que nem sempre o seguro34
sai no prazo.
Quando realizei a entrevista era meados do mês de janeiro e muitos pescadoras(es) não
haviam recebido o seguro-defeso até aquele momento, portanto, ao dizer que “não é fácil”, a
pescadora destaca todo um planejamento necessário para exercer a atividade e permanecer,
sendo sempre um desafio permanecer na atividade.
Ainda, destaca a dificuldade para se obter a documentação necessária para exercer a
atividade:
[...] tem muitos, ali tem uma menina naquela casa ali (aponta para uma casa
em frente) a gente vê que ela é pescadora mesmo, porque ela pesca mesmo!
Quando a pesca está aberta às vezes nós vamos pra lagoa e pega isca de dia
e de noite não para. E tem meu irmão também, ele foi para Salobra [...] esta
com três anos, acredita que eles fizeram a carteira e não veio até hoje [...] é
não veio a carteira e eles depende do rio. Depende de verdade! Tem alguns
que não depende, nem é dependente da pesca e a carteira vem com
facilidade e a dele não veio até hoje! [...] que não tem porque tem muitos
que pesca só pra pegar mesmo dinheiro do governo, agora tem muitos não,
34
Seguro Defeso é o benefício de um salário mínimo garantido pelo Governo Federal aos pescadores e
pescadoras profissionais artesanais do país durante o período de reprodução das espécies, (Piracema/defeso) de
modo que nesse período a pesca profissional e turística fica proibida. Para ter direito e receber esse auxílio
existem várias exigências e documentos que devem ser comprobatórios do exercício da profissão. Com a Medida
Provisória Nº 665, foi a primeira ação que logo foi convertida na Lei nº 13.134, de 2015, estabeleceu-se
mudanças como a alteração do pagamento que era feito através do Ministério do Trabalho e Emprego, passando
atualmente para o INSS. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13134.htm>.
Acesso em: 12/11/2018, às 19h.
106
muitos já depende daquilo ali, que nem nessa época mesmo nós estamos
assalariados só que, graças a Deus nós temos direito (permissão para
pescar) três quilos, ou um exemplar todo ano, todo ano nós podemos ir lá no
rio e tirar três quilos de peixe. [...] que é pra alimentação, isso ainda tem
graças a Deus. (Miranda, 16/01/2017).
Ao narrar a “pesca aberta”, está se referindo ao período de março a outubro em que é
liberada a pesca profissional e turística. Fora desse período, considerado piracema, é o
momento em que não se pode pescar, no entanto, é permitido ao ribeirinho e pescadores
profissionais, a pesca para a alimentação. Ao narrar um exemplar, está falando de um peixe de
porte grande e que poderá ter mais de três quilos, ou ainda peixes diversos até o peso de três
quilos, direito esse reservado para quem vive exclusivamente da pesca.
Orlinda (2017) supõe que a Colônia de pescadores tem o monopólio para a emissão
da carteira e que a falta transparência nas ações desenvolvidas pela instituição.
[...] Não presta conta com ninguém! Tem a fábrica de gelo também, que faz
o gelo, só que eles faz o gelo sozinho, vende também, ninguém participa.
Participa só mesmo pra fazer o documento no dia de fazer o seguro, vai lá
que eles fazem e mais nada. Que nem minha filha mesmo que faleceu, ela
era de lá associada, da associação de lá, só que ela fez a carteira da
associação, a senhora acredita que não correram atrás da carteira dela, ela
faleceu e a carteira dela ficou lá em Aquidauana, lá na reserva e eles não
foram buscar, e eu não tenho condições de pegar e a carteira, ficou
lá! (Miranda, 16/01/2017).
A senhora Orlinda faz uma crítica quanto à atuação da colônia, relatou que a mesma
deixa a desejar quando não apresenta transparência nas suas ações e funções. Sente a falta de
um amparo da mesma junto aos pescadores e pescadoras, oportunizando um suporte para o
desenvolvimento da pesca, como exemplo, abastecimento das embarcações com gelo a preços
mais acessíveis que a do comércio local, além de outros suportes, no caso de assistência de
maneira mais presente na vida dos pescadores. Cita o exemplo da filha, que com seu
falecimento não houve nenhuma ação da Colônia para auxiliar a família quanto os direitos dos
familiares, nem mesmo orientações teve nesse período de luto.
As reflexões historiográficas têm correspondências com as narrativas
das entrevistadas que, reconstroem os seus discursos e incorporam o valor da autonomia, da
satisfação entre outros sentimentos ligados ao ofício. Orlinda (2017) descreve seu sentimento
ao realizar o oficio:
[...] Adoro minha paixão, meu Deus quanto eu gosto hein, eu se pudesse
viver 24 horas no rio eu vivia! Que nem agora, nós estamos vendo
107
para comprar uma lancha. Quando comprar uma lancha, nós vamos estar
mais no rio do que em casa, porque já é assim! [...] A partir de agora do mês
de março pra me encontrar em casa, tem que marcar pra me encontrar aqui!
Porque se não, não me encontra aqui em casa. É mais no rio do que em casa,
não paro em casa, agora só nessa época, nesse período que a gente respeita a
piracema, tem muitos que não respeita é direto (pescando), agora eu não! 4
meses é em casa e 9 meses pro rio, e pesco mesmo, não paro em casa não!
Minha é paixão é o rio [...] (Miranda, 16/01/2017).
Existe uma conscientização ecológica, para muitas pescadoras o respeito ao período
da Piracema é extremamente importante para a preservação das espécies de peixes. O fato de
não se retirar peixes do rio durante os meses da reprodução das espécies, ou seja, na época do
defeso, contribui não só para a sobrevivência dos peixes, como também para a manutenção da
arte pesqueira. As pescadoras com as quais falamos cobram em suas narrativas um maior
controle ambiental dos rios, com fiscalização da pesca ilegal e fora do período permitido.
Grande parte das narrativas apresentam denúncias, relativo à quantidade de
pescadoras profissionais atuantes na categoria. Ao questionar se têm muitas mulheres que
pescam no Município de Miranda, as pescadora Shirlei e Orlinda acriminam as fraudes
cometidas por pescadoras que não atuam diretamente na pesca. Orlinda (2017) narra:
Muitos, assim não tem não! Tem bastante pescador, agora que exerce a
profissão são poucos, a gente só vê os pescadores quando fecha a pesca e
começa fazer seguro-desemprego. Dai a gente começa a ver bastante, mas
pra dizer assim no rio, pra falar que vê bastante pescador mulher lá no rio é
difícil, e até nas lagoas também é difícil [...] (Miranda, 16/01/2017).
Orlinda (2017) narrar que tem pretensões de se aposentar:
Quero ver se eu aposento esse ano também, só que essa lei mudou ou
não? Porque disseram que tinha mudado a lei pra nós mulheres pescadoras,
é com 55 anos e 15 anos de carteira, só que eu não tenho. Tenho 13 anos de
carteira, só o tempo do meu esposo encobre o meu ele tem 37 anos, foi na
Colônia e a secretária de lá disse que bate o papel e desse papel tem que me
aposentar também. Só que não vou parar de pescar não! Porque a gente
aposenta com idade de pescaria, só que não vai ser necessário parar
não, posso continuar [...] (Miranda, 16/01/2017).
No que tange às questões previdenciárias, as mulheres pescadoras têm os mesmos
direitos que as trabalhadoras rurais, ou seja, enquadram-se na chamada aposentadoria
especial podendo aposentar-se aos 55 anos de vida e com 15 anos de carteira profissional. No
entanto, Leitão (2012) em sua obra Gênero e Pesca Artesanal, destaca que a falta de
reconhecimento dessas mulheres como profissionais da pesca por meio da Previdência
108
Social, acarreta imensa dificuldade na concessão do seguro saúde, licença- maternidade e
aposentadoria. Além disso, tais dificuldades fragilizam a categoria, e a forma de compensar
tais condições de trabalho seria justamente o reconhecimento das pescadoras como seguradas
especiais.
Leitão (2013) aponta em seus estudos que:
[...] discriminação ou invisibilidade da mulher na cadeia produtiva da pesca,
o desconhecimento de muitas pescadoras sobre o acesso aos seus direitos
sociais na pesca artesanal, a dificuldade de acesso aos espaços de poder
dentro das Colônias e Associações de pescadores/as; os riscos e dificuldades
de acesso aos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); a presença do
atravessador e a necessidade de um comércio justo (LEITÃO, 2013, p. 103).
Uma fala consensual entre as pescadoras é a de que a colônia não passa de uma
instituição que exerce a atividade do estado e as pescadoras não participam efetivamente nas
atividades da representação da categoria. Demonstram em suas falas desconhecimentos e
dificuldades de entendimentos do real trabalho das colônias, cobram outras ações que as
proporcionem conhecimentos diversos de seus direitos sociais e previdenciários. Ainda,
muitas não tem acesso aos lugares de poder das instituições e acabam sendo invisibilizadas
socialmente.
Parafraseando Foucault (1999) em A Ordem do Discurso, o descrédito no discurso
masculino acerca das conquistas que as mulheres têm alcançado, pode ser analisado a partir
dos mecanismos externos de controle de um discurso elaborado que tende a silenciar a voz
das mulheres, tornando-as invisíveis em suas ações. Foucault supõe que:
[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de
exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se
bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer
coisa. (FOUCAULT, 1999, p. 09-10).
Apesar de exercerem a pesca, muitas mulheres não têm voz ativa na politização da
classe trabalhadora. Mesmo exercendo cargos como os de presidentas de colônias de
pescadores(as), suas vozes e demandas não são ouvidas no cenário público e suas
participações são, ainda, muito pequenas. A presidente da Colônia de Aquidauana, a senhora
109
Heléia (2018), destaca que, houve um aumento da participação feminina frente as colônias de
pesca:
Eu acho que se não tiver 50% de mulheres, esta chegando nisso, a maioria
são mulheres hoje que representa as colônias de pesca. Nós devemos ter
umas 7 ou 8 colônias que são representada pelos homens, eu acho que esta
mais ou menos assim [...]Esta equilibrado, tanto as mulheres como os
homens. (Aquidauana, 10/08/2018).
A pescadora e presidenta da Colônia de pesca Heléia (2018), destaca que apesar de
ter poucas mulheres atuantes ainda, nas representações das colônias no Estado de Mato
Grosso do Sul, a participação das mulheres está em equilíbrio. Ela cobra a atuação das
mulheres, acredita que falta essa conscientização política para uma maior participação
feminina, principalmente para ter rotatividade nas atividades das instituições. Narra que está
próximo das eleições e ainda não ouviu nenhuma manifestação de chapas para concorrer o
cargo em Aquidauana, ou seja, uma questão que podemos refletir é o porquê da não
participação? Uma das hipóteses é que a falta de instrução escolar dessas pescadoras, as
deixam amedrontadas de assumir cargos de poder.
No discurso dessas mulheres pescadoras está presente uma argumentação construída
no imaginário social ribeirinho, aprendido de geração em geração, de que se elas
possuem renda e que esse é um fator que contribui para coloca-las em pé de igualdade. Que
está garantindo a conquista de direitos sociais e que, ao mesmo tempo contribui para o
empoderamento35
dessas trabalhadoras, que vem de uma ordem social machista e patriarcal.
Para nós, feministas, o empoderamento de mulheres, é o processo da
conquista da autonomia, da auto-determinação. E trata-se, para nós, ao
mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O
empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das mulheres
das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para as feministas
35
Nessa pesquisa utilizamos o conceito de empoderamento, refletindo as constantes lutas por valorização e
reconhecimento de gênero no campo do trabalho, da independência financeira, das conquistas documentais e de
direitos. Conforme o texto Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social, o conceito de
empowerment contempla não apenas como uma construção da consciência crítica, pelo sujeito no seu contexto
natural, social, cultural, político e de vivência. Não é uma simples capacidade de atuação nos padrões em
diferentes âmbitos da vida social, profissional, enfim, mas está diretamente ligada à aquisição de poder. Nessa
direção, “supõe o vivenciar um processo articulado que integre a construção de uma consciência crítica com a
ação, ou o desenvolvimento de capacidade real de intervenção e transformação da realidade”. O conceito
empoderamento nesse caso, vai além de um processo de emancipação individual, pois envolve uma consciência
coletiva. Cf.: EICOS. Estudos Interdisciplinares de comunidades e Ecologia Social. Empoderamento:
participação, solidariedade e desenvolvimento (a). Disponível em:
http://www.eicos.psycho.ufrj.br/anexos/port_empod.htm Acesso em: 15/10/ 2016, às 22h.
110
latino americanas, em especial, o objetivo maior do empoderamento das
mulheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com o a ordem
patriarcal que sustenta a opressão de gênero. Isso não quer dizer que não
queiramos também acabar com a pobreza, com as guerras, etc. Mas para nós
o objetivo maior do “empoderamento” é destruir a ordem patriarcal vigente
nas sociedades contemporâneas, além de assumirmos maior controle sobre
“nossos corpos, nossas vidas”. (SARDENBERG, 2009, p.2).
Portanto, vai além da certa autonomia financeira, são mulheres empoderadas porque
rompem barreiras da profissão milenarmente dominada por homens. Em suas narrativas, há
indícios dessas libertações, mesmo que muitas ainda não veem dessa maneira, há
transformações significativas para as mulheres, como exemplo, ter sua carteira profissional de
pesca e acesso aos benefícios que a categoria lhes pode proporcionar.
Nessa direção, questiono o número de mulheres que pescam nessa região, pensando
nos municípios de Miranda e no distrito de Salobra e Shirlei (2017) destaca: “que pesca sim!
pilotar aqui só eu mesmo! minha cunhada fica mais com o marido dela. Tem bastante mulher
que pesca, antigamente não era muito comum mulher pescar, não tinha carteira e não tinha
nada”. (Miranda, 16/01/2017). Observamos um tom de denúncia em sua voz, pois
anteriormente a mulher não tinha acesso a carteira profissional de pesca, por não ser comum
encontrar, mulheres exercendo tal atividade. Esse movimento de documentação das mulheres
inicia em 1978 e é ampliado a partir do ano 2000.
Shirlei (2017) denuncia que, agora, algumas mulheres possuem a carteira de pesca,
mas não exercem a profissão de fato. Destaca que se preocupou em ter a carteira logo que
começou a pescar, pois:
É assim, é muito rígido é meio rígido [fiscalização] se entra no rio, você não
sabe se eles vão sair (Polícia Florestal). Você não sabe qual será a hora e o
momento que eles vão olhar no rio, não é? O trem esta feio! Aqui batem
muito em cima da carteira de pesca, eles pegam mesmo, quando eles descem
a primeira coisa, mesmo assim conhecendo eles confirmam, quem não tem
carteirinha de pesca, tem a licença obrigatória, eles são rígidos, eles
perguntam? Tem licença? Daí falo: Tenho sim! (Miranda, 16/01/2017).
Em sua narrativa demonstra a rigidez da fiscalização, pois mesmo conhecendo os
pescadores e as pescadoras locais, fazem a vistoria da documentação, garantindo que tanto
o(a) pescador(a) profissional, quanto o(a) amador(a) estejam rigidamente legalizados para a
atividade de pesca. Sem contar que necessitam ter uma documentação específica que o
habilita a pilotar lanchas, motores de popa, entre outras embarcações. Sem essa documentação
emitida pela Marinha do Brasil, o(a) pescador(a), só é permitido à pesca ribeirinha.
111
Em seguida, pega uma foto dela e da cunhada pescando, relembra a fala de
uma vizinha: "Shirlei você é doida! mas eu falava: Eu tenho que trabalhar!" prossegue a
narrativa e demonstra as conquistas que o ofício lhe proporcionou:
A nossa casa, era de palha, depois de tábua, fomos construindo, com essa
profissão de pescador, estamos construindo muitas coisas. Eu falo tipo
assim: Tem pescador que pode até reclamar da pesca, mas não esta vivendo
da pesca, porque tem muito pescador que é só pescador de seguro de defeso
mesmo, se fizer uma pesquisa mesmo, muita gente vai ser cortado mesmo,
porque não pesca, porque nós estamos direto no rio. Vai só na colônia para
fazer a carteira, atrapalha o pescador que pesca, tem muita briga, e tem uns
que tem mais benefício que nós, entendeu? Tem coisa, não precisa: tem
maquinista de bitrem, que é pescador! Hoje tem coisas de pescador que eu
não sabia, tem benefício de pescador, como comprar barco e motor, só que o
presidente da colônia e secretaria da colônia não explicou para a gente [...]
Eu não sabia disso dai, a gente compra carro, a estradinha e paga por ano
sem juros, ninguém fala para nós, eu conversando com eles (pescadores de
outros lugares) tiraram um carro, então, lá com que a colônia lá de Coxim
trabalha, até médico tem lá, dentista [...] A colônia é arrumada, a colônia lá
fornece mantimento, gelo, remédio, tem dentista, tem médico, tem tudo, [...]
A nossa colônia é desestruturada não tem câmara fria, fica enrolando, [...] e
quantos ele não arrecada, a mensalidade esta R$: 25,00. Quanto eles não
arrecada? Eles disseram que ia aumentar a mensalidade, acho que é demais
mesmo, porque é uma coisa que eu não sei, é coisa de correr atrás, porque o
pescador tem montar uma associação e ir para cima da colônia, porque se
deixar nas mãos deles, eles não fazem nada! [...] Eu acho assim que tinha
que ter mais coisa, lutar pelo direto dos pescadores [...] (Miranda,
16/01/2017).
Ao analisarmos o discurso de Shirlei, observamos algumas críticas dirigidas à
atuação do presidente da Colônia de Pesca. Segundo ela, a instituição não os representa
enquanto força sindical tampouco socialmente. Salienta que, somente cobrar a mensalidade, a
mesma deveria buscar melhorias na atenção aos pescadores, em geral, como a questão médica
e odontológica. Mesmo sabendo que não seria o papel da colônia, essa é uma cobrança das
pescadoras que anseiam suporte nos acessos à saúde, educação e assistência social. Outra
questão importante diz respeito à orientação quanto aos benefícios disponíveis à categoria,
visto que muitos não têm conhecimento dos seus direitos e dos acessos a equipamentos que
podem auxiliar no dia a dia da pesca, como no caso do PRONAF, o qual possibilita acesso a
juros baixos, equipando os pescadores para melhorar a rentabilidade. Ainda faz um
apontamento quanto a implantar uma associação para combater a Colônia, no entanto, o que
precisam é buscar a união da categoria na participação politica da instituição de
representação.
A narrativa da Heléia (2018) destaca os problemas quanto ao acesso aos recursos:
112
Então aqui pra nós temos um problema que impede chamado Banco do
Brasil. Nós fizemos todo o processo, pegamos os pescadores interessados,
inclusive fizemos reuniões e encaminhamos eles para AGRAER, ele saiu de
lá com todo documento, mas chegamos no Banco do Brasil para o gerente
barrar entendeu? Teve colônias no estado, inclusive a de Coxim foi uma que
eu tenho conhecimento que teve financiamento para barco, financiamento
pra carro, teve também em Fátima do Sul, conseguiram alguns barcos
também, teve algumas outras colônias do estado que conseguiram, mas aqui
pra nossa região infelizmente não. E que o Banco do Brasil alega que o
pescador é equiparado ao sem terra, então a divida do sem terra impede, eles
fizeram um financiamento e não pagaram. (Aquidauana, 10/08/2018).
Heléia destaca a dificuldade que os pescadores da região de Aquidauana, em não ter
acesso ao crédito com financiamento público. Não compreende o porquê da negativa a um
crédito que é de direitos dos trabalhadores da pesca, o qual qualifica o trabalho e a geração de
renda da comunidade pesqueira. Segue a narrativa, demonstrando que procurou até mesmo a
Gerência Regional do Banco do Brasil:
Então eles barram mesmo! Nós já tivemos muita reunião, a Federação já se
envolveu com isso, fizemos reunião com o regional deles em Campo Grande
do Banco do Brasil, mas até hoje nós não tivemos sucesso. Devido a
inadimplência dos sem terras, eles não tiveram coragem de abrir para o
pescador aqui em Aquidauana, não saiu um processo, teve bastante mas
chega na lá o Banco do Brasil. (Aquidauana, 10/08/2018).
Helena Hirata (2002) destaca que a divisão do saber e do poder é constitutiva da
divisão sexual do trabalho e das relações de poder entre homens e mulheres, sendo assim,
concordamos com a autora ao considerarmos que a falta de uma identidade pesqueira
contribuem para aumentar a dificuldade de acesso por parte das pescadoras aos programas e
projetos que objetivam apoiar a pesca artesanal. Se para a categoria como um todo, é
burocrático e possuem grandes exigências ao acesso a essas políticas, se faz necessário refletir
as particularidades das mulheres pescadoras nesse processo.
Heléia não compreende o porquê da falta de acesso a essas políticas de investimentos
no setor pesqueiro:
Nós já tivemos sérios problemas com isso, mas você vê, teve no governo da
Dilma o Pronaf, [...] olha tinha vários PRONAFS, PRONAF MULHER,
PRONAFE PESCA, tinha dinheiro. Muito dinheiro para o pescador, mas no
Estado só foram três colônias que conseguiram, essa parceria com eles tudo
do Banco do Brasil, todos os outros enfrentam problemas Miranda, Jardim,
113
Bonito. E aqui pra nós não! É uma pena, porque em toda classe tem os bons
pagadores e os maus pagadores, mas aqui a gente vê, tem muitos que
precisam e a forma de pagamento era muito pouco, o juro era pouco.
(Aquidauana, 10/08/2018).
Uma de suas explicações é a questão da inadimplência relacionada ao programa
social do pequeno produtor do Movimento Sem Terra (MST) em nosso Estado. Ao não ter
acesso a esses programas de governo, a categoria fica fora dos projetos de desenvolvimento
econômico no Estado e assim, muito trabalhadores ficam presos a atravessadores que
possuem barcos, motores e lanchas pesqueiras as quais ficam com parte da renda desses
trabalhadores.
Scherer (2013), em sua obra Trabalhadores e trabalhadoras na pesca: Ambiente e
Reconhecimento, destaca também que, por todo o país, as mulheres buscaram o Registro
Geral da Pesca, junto às Colônias de Pescadores para obtenção da carteira de pescadoras
profissionais artesanais. Essa é uma iniciativa elementar, visando o cumprimento ao que
preconiza a Constituição Federal de 1988, que assegura nesse sentido, os direitos trabalhistas
e previdenciários. Como resultado da luta por mais direitos, no decorrer do ano de 1991 ao
qual foi promulgada a Lei n.8.287, “que concede aos pescadores (as) artesanais os benefícios
do seguro desemprego na época de defeso”. Essa política instituiu o seguro desemprego e está
intrinsecamente ligada à equiparação dos direitos de trabalhadoras rurais aos das
trabalhadoras urbanas.
2.3 – Legislação: o (des)caminhar dos direitos
As Colônias, Federação e Confederação somente foram regulamentadas no ano de
2008 em seu artigo 8º, através da Lei nº 11.699/2008, atribuindo estas a pé de igualdade de
sindicatos rurais. Assim, “os pescadores artesanais conquistaram avanços no que tange aos
direitos sociais e políticos, quando as colônias de pescadores, através do artigo 8.º, foram
equiparadas aos sindicatos de trabalhadores rurais, recebendo a configuração sindical”
(MORAES, 2001, p.1).
As transformações iniciaram a partir de 1991, no governo Collor, por meio da das
Leis nº 8.212 e nº 8.2137 de 24 de julho de 1991, a partir desse momento os pescadores
tiveram acesso ao direito de seguridade e previdência social, compreendidos dentro do
conceito de segurados especiais, os mesmos direitos garantidos pelos componentes da
agricultura familiar.
114
A autorização do pagamento do seguro desemprego aos pescadores artesanais
durante o período de defeso foi autorizado pela Lei nº 8.287, de 20 de dezembro de 1991, mas
estes deveriam cumprir algumas exigências para que pudessem ter direito ao que rege a lei.
Lembrando que os pescadores e as pescadoras são classificados como segurados especiais,
atrelados às práticas agrícolas, nesse aspecto há um desconhecimento das comunidades
pesqueiras em nosso país.
No Governo Lula, no ano de 2003, essa lei de 1991 foi substituída pela Lei nº
10.77910, que dispõe sobre o seguro desemprego para todos os pescadores artesanais. Ou
seja, essa lei dispõe sobre a concessão do benefício de seguro desemprego durante o período
de defeso ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma artesanal. Foi
através dessa Lei que a pesca artesanal foi regulamentada pela primeira vez, sobretudo no que
se refere às questões previdenciárias/trabalhistas. Institui também a Secretaria Especial de
Aquicultura e Pesca (SEAP), com status de Ministério, e mais tarde por meio da Lei 11.958,
junho de 2009, criou o Ministério da Pesca e Aquicultura.
Com essas conquistas e por meio do Registro Geral de Pesca, houve a possibilidade
do pescador comprovar a atividade pesqueira, seja ela comercial ou industrial, usufruir dos
benefícios como a aposentadoria em menor tempo de contribuição para a Previdência Social,
seguro desemprego nos períodos de defeso, benefício de auxílio doença, auxílio
maternidade36
e por acidente de trabalho.
A Lei nº 11.718, de 20 de junho de 200837
, altera os conceitos dos segurados
especiais, tendo como principalmente mudança o acréscimo com a informação sobre a
residência. Observando que o segurado especial não necessita domiciliar em imóvel rural,
como era obrigatoriedade anteriormente. Igualmente, houve o detalhamento das condições da
caracterização do pescador profissional, observando o trabalho em família.
No ano de 2003, por meio da Medida Provisória nº 103, de 1º de janeiro de 2003,
houve a inclusão das mulheres nas políticas governamentais do Brasil. Ganha destaque a
criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), posteriormente a
Medida Provisória foi convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. No parágrafo 2º,
artigo 1º da referida lei, a Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres (SEPM),
36
A pescadora não pode receber os dois benefícios ao mesmo tempo, em determinados meses é preciso optar
pelo seguro defeso ou auxílio maternidade, observando que a pescadora terá que comprovar que trabalhou na
pesca nos últimos 12 (doze) meses. Cf.: <http://www.previdencia.gov.br/2015/12/beneficios-pescadores-artesanais-podem-requerer-seguro-defeso-diretamente-em-entidades-representativas/> Acesso: 20/08/2018,
às 20h. 37
Lei nº 11.718 na íntegra. Cf.: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11718.htm>.
Acesso em: 20/08/2018, às 20h.
115
bem como outras secretarias, subsidiam o Presidente da República. Compete às secretarias:
assessoramento nas políticas voltadas para a questão do gênero, de discriminação e de
igualdade entre homens e mulheres.
A Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, foi alterada posteriormente pela Lei nº
12.314, de 19 de agosto de 2010 que, em seu artigo 22º, destaca os objetivos e competências
principais da SEPM:
À Secretaria de Políticas para as Mulheres compete assessorar direta e
imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e
articulação de políticas para as mulheres, bem como elaborar e implementar
campanhas educativas e antidiscriminatórias de caráter nacional, elaborar o
planejamento de gênero que contribua na ação do governo federal e demais
esferas de governo, com vistas na promoção da igualdade, articular,
promover e executar programas de cooperação com organismos nacionais e
internacionais, públicos e privados, voltados à implementação de políticas
para as mulheres, promover o acompanhamento da implementação de
legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem ao
cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo
Brasil, nos aspectos relativos à igualdade entre mulheres e homens e de
combate à discriminação, tendo como estrutura básica o Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, o Gabinete, a Secretaria-Executiva e até 3 (três)
Secretarias (Art. 22º da Lei nº 12.314/2010).
Observamos que o caminhar da Lei, possibilitou a visibilidade da mulher na
formulação e implementação de políticas públicas para subsidiar o combate à discriminação, e
fomentar a igualdade entre homens e mulheres. Também pode contribuir com o
reconhecimento da participação feminina nas diferentes frentes de trabalho, dando
visibilidade as mulheres que exercem determinadas profissões que não as reconhecem
enquanto categoria de trabalhadoras.
Em 2008, no governo do presidente Lula criou-se o primeiro Plano Mais Pesca e
Aquicultura com projeção até o ano de 2011, período do processo de transformação da SEAP
em Ministério. O Plano salientava a importância de investimentos no setor para a produção de
alimentos e a geração de emprego e renda no país e deixou explícita o potencial do Brasil
como um país produtor de pescado, principalmente da pesca oceânica. Projetou investimentos
para superar entraves ao desenvolvimento sustentável do setor aquícola e pesqueiro.
"Estruturar a cadeia produtiva é o grande desafio para garantir aumento e regularidade de
oferta, qualidade e renda aos pescadores e aqüicultores e com um preço acessível aos
consumidores." (BRASIL, 2009b, p.8). O principal objetivo do plano era a promoção do
desenvolvimento sustentável da pesca e da aquicultura, principalmente pela via da aquicultura
que possui um grande potencial de expansão no país.
116
Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira e Vera Lúcia da Silva, destaca no texto, O
Processo de Industrialização do Setor Pesqueiro e a Desestruturação da Pesca Artesanal no
Brasil a partir do Código de Pesca de 1967, que:
Apesar da iniciativa governamental com a Nova Lei da Pesca (11.959/2009),
o estímulo concedido não é eficiente para a rearticulação da pesca artesanal.
Aliás, continua contribuindo para a industrialização da pesca. Isso por dois
motivos. O primeiro – a concessão de crédito visa estimular a divisão do
trabalho entre patrões de pesca e pescadores, não estimulando o modo de
produção comunitário. E como segundo motivo aponta-se o fato de que as
comunidades pesqueiras já foram 95 desarticuladas desde a década de 1960.
Com isso, alienaram suas propriedades nos litorais e nas áreas ribeirinhas,
que, somado com a especulação imobiliária de muitas dessas regiões,
impede o restabelecimento dessas comunidades. Ao lado disso, a falta de
estímulo e reconhecimento jurídico aos profissionais da pesca
(especialmente as mulheres) acarreta, certamente, o esvaziamento do setor.
(OLIVEIRA e SILVA, 2012, p. 354).
Oliveira e Silva (2012), destacam que a política de Estado é o desenvolvimentismo e
não a valorização, principalmente das trabalhadoras que lutam para ter reconhecimento
jurídico. Além de, estimular a relação patrão e empregado, no caso das mulheres, abre brecha
para serem nominadas de auxiliares ou ajudantes.
Larissa Tavares Moreno (2017), em sua pesquisa Os trabalhadores artesanais do
mar em Ubatuba/SP: a dinâmica territorial do conflito e da resistência, destaca o Decreto nº
8.425, de 31 de Março de 2015, que,:
[...] dispõe sobre os critérios para a inscrição no Registro Geral da Atividade
Pesqueira e a concessão de autorização, permissão ou licença para o
exercício da atividade. O grande cerne de discussão sobre esse decreto diz
respeito à nova divisão/classificação feita do trabalho na atividade pesqueira,
com rebatimento direto às mulheres. Isto é, primeiramente passa a se
considerar o pescador somente aquele que trabalha na captura do pescado,
excluindo o restante do processo produtivo. Nisto se soma a caracterização
de uma nova categoria: a de trabalhador/trabalhadora de apoio a pesca, ou
seja, num sentido de inferiorizar os pescadores e principalmente as mulheres
pescadoras que auxiliam no beneficiamento do pescado, na confecção e
reparo das artes e petrechos da pesca e em outras atividades, afetando assim
a identidade do pescador e da pescadora artesanal. (MORENO, 2017, p. 111-
112).
Após muitas lutas, o decreto possibilita um retrocesso ao caracterizar a categoria de
pescadoras (es), principalmente as pescadoras recai sobre as mulheres visto que anteriormente
eram nominadas de ajudantes dos esposos, após o decreto possibilita classifica-las novamente,
relegando um papel secundário no mundo da pesca. Fato esse, criou muitos entraves para as
117
trabalhadoras conseguirem se aposentar ou tiver acesso a outros auxílios e direitos
previdenciários. Além de afetar a identidade da pescadora profissional artesanal, um crítico
cenário nada favorável à atividade artesanal e as/os pescadoras/os artesanais. Ao
visualizarmos a constante precariedade e perda da autonomia da categoria, recai sobre a
identidade social da pescadora e do pescador em relação à sua atividade laboral artesanal
enquanto profissão milenar.
Após muitas discussões em outubro de 2015, se extingue o MPA:
Como se não bastasse o histórico processo de descaso e mesmo as limitações
do MPA, no início de outubro de 2015 a presidente Dilma Rousseff
anunciou a Medida Provisória 696, que promove a reforma administrativa
que extinguiu e transformou ministérios e secretarias. Dentre os cortes está o
MPA, que foi extinto e absorvido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA). (MORENO, 2017, p. 115-116).
Moreno (2017), salienta que a atuação do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA),
que perdurou de 2009 a 2015, destaca as muitas limitações e até retrocessos para o setor
pesqueiro artesanal e consequentemente para o conjunto de pescadores e pescadoras
artesanais. Ao longo da trajetória curta do MPA, houve muita alternância de Ministros, sete
(7) ministros ao todo, o Ministério fazia parte do “pacto de governabilidade”, a maioria dos
ministros e chefes das secretarias era de partidos de bases aliadas, caracterizando apenas uma
composição política sem uma relação técnica ou política comprometida com a pasta. Nesse
sentido, não houve políticas específicas e efetivas.
Em carta38
de repúdio à ida da Pesca Artesanal para o MAPA, intitulada: Pesca
Artesanal - muito grande para ser ignorada e destruída pelo governo brasileiro: não aceitamos
que o governo brasileiro destine a pesca artesanal para ser esmagada pelo agro-hidronegócio
no MAPA.
Este ano foi marcado pelo total desrespeito e desprezo do governo brasileiro
para com a Pesca Artesanal. [....] Os efeitos perversos se consolidaram nas
leis 13134 e 13135 que fizeram retroceder direitos conquistados a duras
penas. Estes efeitos foram ficando mais drásticos à medida que o governo
adotou uma regulamentação conservadora que impôs graves perdas de
direitos, principalmente às mulheres pescadoras. Fragmentação da categoria,
exclusão de pescadores de subsistência, interferência na autodeterminação e
na identidade através de uma conceituação que não contou com a
participação das comunidades. [....] O Ministério da Pesca já foi para nós
38
Carta na íntegra: <http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com/2015/10/carta-de-repudio-ida-da-pesca-artesnala.html>. Acesso em: 20/08/2018, às 20h.
118
uma grande frustração, à medida que orientou maioria de seus esforços
principalmente para a aquicultura empresarial e pesca industrial sendo a
pesca artesanal relegada a políticas fragmentadas, assistencialistas,
descontinuadas e sem planejamento. A gestão da pesca ficou por muito
tempo parada, só sendo retomada nestes últimos meses. Até o registro dos
pescadores e das pescadoras artesanais tornou-se cada vez mais
desestruturado. São mais de 300.000 carteiras canceladas, das quais a
maioria é de verdadeiros pescadores e pescadoras artesanais. O Ministério da
pesca foi um dos responsáveis pelo inchaço de não pescadores no Registro
Geral nos períodos eleitorais, o que fez com que este documento de grande
importância perdesse sua força de comprovação da atividade. E ainda por
cima as consequências deste processo recaiu sobre os próprios pescadores e
pescadoras artesanais, com os efeitos desastrosos já evidenciados
anteriormente nos novos marcos legislativos violadores de direitos. O
ministério foi moeda de troca política, ele foi o que mais houve troca de
Ministros, nenhum com trajetória e conhecimento no setor. Mudaram as
perspectivas e não permitiram a consolidação das políticas impondo um
retrocesso até de processos deficientes que existiam na política de pesca.
Não aceitaremos estarmos junto com o Agronegócio e reivindicamos que,
como estava sendo planejado, que a Pesca Artesanal igualmente aos outros
grupos da agricultura familiar seja alocada no Ministério do
Desenvolvimento Agrário que poderá dar diferente tratamento aos
pescadores artesanais pela sua atribuição e trajetória política, devendo este
ser dotado de estrutura e orçamento para atender a grandeza da Pesca
Artesanal. (MPP; CONFREM, 2015b, s/p).
Por meio do MPP - Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais e
CONFREM - Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e
Marinhas. Há uma mobilização de repúdio as ações do governo Dilma (2015) em relação ao
direcionamento do MPA para o MAPA, devido principalmente o descaço do governo com
tudo que tinha se debatido ao longo dos anos, através de conferencias e encontros estaduais e
regionais. A carta inicia destacando o desrespeito e desprezo para com a pesca artesanal,
mesmo após muitas conquistas, a categoria artesanal vai observando ao longo dos anos, esses
direitos sendo diluídos, sendo que o “processo de desconstrução, negação e desrespeito está
sendo coroado agora com o envio da pesca artesanal para o seio do agronegócio que junto
com o hidronegócio irão por fim exterminar e relegar ainda mais a pesca artesanal”.( MPP;
CONFREM, 2015b, s/p grifos dos autores).
A categoria de maneira muito critica, manifesta-se de maneira categórica para tentar
salvar o trabalho artesanal.
119
IMAGEM 16: Charge Zumbi: contra as medidas que ameaçam os direitos e modo de vida
dos pescadores artesanais brasileiros.
FONTE: Jornal O LEME, informativo Julho/201539
.
Ao observar a charge acima, observamos que grande parte das conquistas da
categoria vai sendo diluídas pelo próprio governo. O decreto n. 8.42540
de 25 de Março de
2015, regulamenta “os critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira e
para a concessão de autorização, permissão ou licença para o exercício da atividade
pesqueira”. Nesse sentido, as mulheres são afetadas diretamente, isso muito visível no apelo
que a categoria faz contra o decreto, e demonstram o quanto exercem ativamente em todos os
setores da pesca profissional.
Abaixo temos um folder demonstrando a insatisfação das mulheres com o decreto e
ainda, demarca a presença das mulheres pescadoras contra a medida imposta pelo governo.
Com o grito de indignação “Pescadora não é peixe para viver só na água”:
39
Disponível: <http://www.cppnacional.org.br/sites/default/files/leme/O%20Leme%20-
%20Julho%20de%202015.pdf> . Acesso em: 10/01/2018. 40
Art. 24 e Art. 25 da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, disponível:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8425.htm>. Acesso em: 20/08/2018,
às 21h.
120
IMAGEM 17: Folder da Campanha Nacional pela Regularização do Território Pesqueiro
FONTE:
https://www.facebook.com/peloterritoriopesqueiro/photos/a.211530372353907/473115912862017/?type=3&theater>. Acesso em: 15/10/2018, às 19h.
O movimento chamado Marcha das Margaridas41
, ocorreu no dia 11 de agosto de
2015, em Brasília. Um registro importante para as lutas das pescadoras profissionais
artesanais do Brasil, pois delimitam e marcar uma história de resistência dessas mulheres
trabalhadoras, que por muito tempo ficaram fora dos debates políticos e dos movimentos
sociais.
41
A Marcha das Margaridas iniciou no ano de 2000, com a finalidade de desenvolver ações estratégicas das
mulheres do campo e da floresta e integra a agenda permanente do Movimento Sindical de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e de movimentos feministas e de mulheres. O movimento propõe animação,
capacitação e mobilização das mulheres trabalhadoras rurais em todos os estados brasileiros, além de
proporcionar uma reflexão sobre as condições de vida das mulheres do campo e da floresta. Por ser permanente,
as mulheres trabalhadoras rurais seguem, diariamente, lutando para romper com todas as formas de
discriminação e violência, que trazem consequências perversas à vida delas. A Marcha das Margaridas é
coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), formada por 27
Federações de Trabalhadores na Agricultura (FETAGs), por mais de 4 mil Sindicatos dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais (STTRs) e por várias organizações de mulheres parceiras. Cf.:
<https://www.geledes.org.br/tag/marcha-das-margaridas/>. Acesso em: 22/11/2018, às 15h.
121
IMAGEM 18: Folder das pescadoras contra o anúncio do Decreto nº 8435
FONTE: Acervo combate racismo ambiental42
A partir do anúncio do decreto, ocorrem diversos movimentos pelo país, visto que a
categoria a perda de direitos conquistados era claro e objetivo no decreto e ainda, cheio de
retrocessos, principalmente para as mulheres pescadoras artesanais.
Com o decreto, só é considerado pescador artesanal quem faz a captura do
pescado, excluindo a produção familiar tradicional, que inclui a maioria das
mulheres das comunidades. Em nota divulgada, o MPP afirma que “com
isso, se impede o trabalho, o direito à identidade das pescadoras artesanais
que fazem o beneficiamento e a confecção dos apetrechos da pesca, retiram
seus direitos e criam precedentes para a negação de direitos trabalhistas e
previdenciários conquistados”. Além disso, o decreto diz que só entra no
conceito de pescador artesanal aquele que depende exclusivamente da
pescaria. “Esse ponto desconsidera pescadores/as artesanais que exercem
outras atividades tradicionais, como a agricultura e o artesanato, e que essas
fazem parte de um modo de ser específico e que fortalecem a atividade da
pesca”, esclarece a nota. Aumentando as restrições, o decreto 8425 também
impede o acesso ao RGP àqueles que pescam para subsistência (consumo
familiar, troca, escambo etc), desconsiderando que essa é também
42
Disponível: https://acervo.racismoambiental.net.br/2015/08/11/marcha-das-margaridas-2015-une-pescadoras-do-brasil-contra-decreto-do-governo-que-retira-seus-direitos/ Acesso em: 15/10/2018, as 16h.
122
característica das comunidades tradicionais pesqueiras. (Informativo O
LEME, Julho de 2015) .
Quando analisamos as narrativas e debates relacionados a determinadas categorias de
trabalho, a tendência empiricamente é a excludente, no entanto ao analisarmos as políticas
públicas e dimensionar o contexto local, destacamos que tudo vai depender de quem está
conduzindo o discurso e com que interesse. Enquanto representação da Colônia, observamos
um discurso organizativo, porém, na prática cotidiana da colônia, não é assim tão simples,
pois se fala de um lugar de poder, se fala de uma organização e representação da categoria.
Em relação com o poder público, a observação das lideranças é a delimitar os traços que
compõem a "verdadeira pescadora", analisam se a atividade da pesca é a principal fonte de
renda, se pescam embarcadas ou de barranco, quando são guias de pesca, se conhecem os
equipamentos de pesca, se vem de famílias de pescadores. Nesse sentido, o decreto procurar
caracterizar os “pescadores de verdade”, mas que, no entanto, “desconhecia” a realidade das
pescadoras profissionais, sendo que exercem atividades pesqueiras e ligadas a pesca, como o
artesanato, produção de equipamentos de pesca, coleta de iscas em lagoas e manguezais entre
outras atividades.
Hulda Stadtle (2010) em seu texto Mulheres na Pesca Artesanal de Pernambuco
Políticas Sociais e Ambientais do Litoral ao Sertão, considera pescadoras profissionais a
partir de três tipos de autodefinição:
1) As que pescam como atividade principal, onde as demais atividades estão
sujeitas a esta; 2) As que pescam como atividade complementar, antes ou
após a jornada doméstica representando renda familiar; e 3) As que pescam
como atividade para consumo familiar direto. Essas categorias são
importantes, principalmente porque se aproximam de um dos objetivos da
pesquisa que é expor relações de gênero na pesca artesanal e avaliar as
políticas públicas que atendem as mulheres dessa categoria. (MORENO,
2017, p. 04).
A participação das mulheres no munda da pesca é diversificada nessa pesquisa, pois
temos pescadoras de iscas, pescadoras de peixes grandes e guias de pesca. Nesse caso, a
documentação é a mesma e a nomenclatura também, no entanto, aparece nas narrativas o
termo, “sou pescadora de verdade, pois pesco de varinha”, “sou pescadora de verdade, estou
todos os dias no rio”, “sou pescadora” e “vou pescar mesmo em dia chuvoso, pois sou
pescadora”. Uma importante observação está no enfrentamento que as mulheres precisam
passar para provar suas identidades de pescadoras profissionais, frente a funcionários públicos
entre outros. Quanto se fala “pescadora”, essas não aparecem em diversos cenários, nem
123
mesmo como coadjuvantes, como se o protagonismo das mulheres nas frentes de trabalho da
atividade de pesca fosse algo recente, no entanto, recente é o reconhecimento delas, a partir
do próprio trabalho e não pela sua ligação conjugal ou parental.
Num contexto geral, concordo com Stadtle (2010) ao afirmar que essas mulheres
além de exercerem a profissão, necessitam da tutela dos maridos para serem profissionais
reconhecidas. Sendo que, a primeira questão que se levanta ao oficializar a carteira
profissional, é questionar a esposa, filha ou irmã de pescador, até mesmo na primeira esfera
que é colônia de pesca.
Ao longo do capítulo, discutimos a representação social e política da Colônia de
Pesca e a trajetória das conquistas legais. Ainda, analisamos o olhar que as pescadoras tem
para com as colônias de pesca, observando como elas veem a instituição que as representam.
Observamos que o desconhecimento ainda é grande e que muitas precisam ainda tomarem
seus espaços de poder, como constatamos, as implicações e problemáticas à perpetuação na
atividade pesqueira é uma característica muito presente, nas narrativas. Conforme verificado
pelos trabalhos de campo realizados, é cada vez mais visível e compreensível a presença
feminina nesses espaços de trabalho, agora profissionais, devidamente documentadas e
atuantes no mercado de trabalho.
Ao nosso ver, essa atuação feminina nas atividades de representação das colônias,
como guias de pesca e na pesca em geral, é uma forma alternativa de resistir e lutar pelas
condições dignas de vida e de trabalho da/na pesca. Já que essas mulheres sempre estiveram
lá, porém num cenário tidas como secundárias, eram apenas ajudantes de seus esposos, pais
ou irmãos, atualmente não, querem mostrar a importância dessa atividade em suas vidas,
sendo assim, buscam meios de (re)conquistar o direito de exercer com plenitude de
possibilidades materiais e subjetivas, o oficio pesqueiro em total contato com a natureza e
com a urbanidade.
No próximo capítulo, analisaremos as trajetórias de vidas dessas mulheres que
escolheram o Pantanal para exercerem suas atividades laborais. Observando o que é essa
representação natural em suas vidas, os perigos, medos e superações que esse cenário
representa na vida de cada mulher pescadora.
124
Capítulo 3 - Pantanal: Mulheres Pescadoras dos Pantanais
[...] navegar pelo rio Paraguai um dia inteiro sem que os olhos encontrem a
presença de ocupação humana, tendo somente ao alcance mamíferos, aves e
répteis disputando os peixes aprisionados nas rasas lagoas marginais que
formaram-se quando as águas recuaram após espraiarem-se por toda a
imensa planície durante a cheia. Este é um quadro que se repete a cada ano
e é o período mais exuberante dos ciclos da vida neste ambiente. (ECOA)
125
1. Introdução
Iniciamos esse capítulo destacando que, quando falamos em Pantanal43
é preciso
conceitua-lo e contextualiza-lo a partir de sua biodiversidade, o que justificativa nossa opção
pelo termo “pantanais” em detrimento de seu vocábulo no singular. Os diferentes e diversos
pantanais formam uma área que ocupa 59,7% do estado de Mato Grosso do Sul. Ao
considerar a pluralidade desse território nas análises das narrativas das mulheres pantaneiras,
sobretudo de suas relações familiares e comunitárias, optamos por utilizar ao longo dessa tese,
o termo "mulheres dos pantanais".
Michele Sato (2001) em seu texto Debatendo os desafios da educação ambiental,
destaca que:
[...] a natureza nunca pode ser separada daquele que a percebe, ela nunca
pode existir efetivamente em si, pois suas articulações são as mesmas de
nossa existência, ela se estabelece no fim de um olhar ou término de uma
exploração sensorial que a investe de humanidade. (SATO, 2001, p. 21).
Nesse sentido, é preciso historiar a vida e as experiências dessas mulheres
considerando, efetivamente, suas relações com essa natureza no desenvolvimento de seus
trabalhos pesqueiros. Dessa forma, analisaremos histórias de mulheres pescadoras
e pantaneiras observando suas formas peculiares de trabalho, seus costumes, suas identidades,
visibilidades e resistências no mundo do trabalho historicamente determinado pela presença
masculina.
Luisa Passerini (2011), em sua obra Memória entre política e emoção, destaca que:
Estas narrações históricas não apenas colocam em evidência problemas e
aspectos que outras fontes não evidenciam, como o papel das emoções no
cruzamento entre público e privado, mas também contém silêncios
problemáticos, que indicam as tensões entre a subjetividade e a pesquisa
histórica. (PASSERINI, 2011, p. 100).
Em consonância Passerini, abordaremos nesse capítulo as tensões, as emoções e os
sentidos que essas mulheres construíram ao longo de suas trajetórias no mundo da pesca, nos
43
O Pantanal ocupa uma área de 138.183 km2 tendo o rio Paraguai como a espinha dorsal do sistema de
drenagem. O rio Paraguai corre no sentido norte-sul, recebendo água dos rios Jaurú, Cabaçal e Sepotuba pela
margem direita e rios Cuiabá (com seus afluentes São Lourenço e Piquiri), Taquari, Miranda (com seu afluente
Aquidauana) e Apa pela margem esquerda, sendo que esse último delimita a BAP ao sul, estabelecendo a
fronteira Brasil-Paraguai. Cf.: CATELLA, Agostinho Carlos A Pesca no Pantanal de Mato Grosso do Sul, Brasil:
Descrição, Nível de Exploração e Manejo (1994 – 1999), Manaus, 2001, p. 02.
126
pantanais Sul Mato Grossense. Um mundo permeado de incertezas e de conquistas para essas
mulheres, visto que, esse espaço era até então, destinado aos homens. Nesse sentido, as
narrativas orais nos enriquecem historicamente ao visibilizar histórias de vida de mulheres
que estavam fadadas ao mundo privado à sombra dos seus esposos, mas que puderam
interferir nessa realidade por intermédio da pesca.
3.1 – A representação Feminina: Uma luta por direitos às pescadoras
Mas, a despeito das grandes mudanças por que passa a organização familiar
no mundo contemporâneo, o modelo patriarcal ainda desempenha, e não
somente no Brasil, importante papel na estruturação das relações conjugais
de gênero, legitimando a desigualdade de direitos entre homens e mulheres.
(LIMA; SOUZA, 2015, p. 519).
Não somente no Estado de Mato Grosso do Sul, mas em grande parte do país, as
mulheres desempenham a pesca profissional a partir da configuração familiar, sobretudo ao
lado de esposos. Contudo, suas atividades não eram reconhecidas como trabalho formal e,
portanto, não configuravam dentro das políticas públicas.
Leitão (2009) em seu texto 30 Anos de Registro de Pesca para as Mulheres, destaca
os principais marcos na história das colônias de pescadores/as, para a compreensão da
invisibilidade das mulheres na cadeia produtiva da pesca:
1) As primeiras colônias de pescadores do Brasil foram estabelecidas a partir
de 1919 sob a tutela da Marinha de Guerra; 2) Em 1920 foi criada a
Confederação dos Pescadores do Brasil; 3) A partir de 1970, foi criada a
Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, sendo abolida a
Divisão de Caça e Pesca; 4) A Constituição de 1988 estabelece a
equiparação das colônias aos sindicatos de trabalhadores rurais; 5) Na
década de 1980 foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, órgão na ocasião responsável por
gerenciar e promover o desenvolvimento do setor pesqueiro do país. Na
década de 1990, o Ministério da Agricultura volta a incorporar os pescadores
artesanais dentro de sua estrutura; 7) Em 2003 a Secretaria Especial de
Aqüicultura e Pesca passa a coordenar as ações e políticas públicas da pesca
e aqüicultura, transformada em Ministério desde 2009. (LEITÃO, 2009, p. 3-
4).
Conforme observamos a citação acima, em nenhum momento temos uma política
específica voltada para a mulher pescadora, visto que, ao longo desses 30 anos analisados, o
Estado vê apenas o homem pescador. A autora (2009) observa, ainda, que a representação em
127
esferas participativas, tanto em colônias, associações e na federação de pescadores, predomina
a figura masculina.
Segundo Leitão (2009) a política nacional voltada para a categoria tem como
objetivo promover e apoiar iniciativas de desenvolvimento local sustentável visa tanto
atividades pesqueiras como também a elas relacionadas, observando a família e suas
organizações.
A intenção é promover inclusão social e qualidade de vida nas comunidades
pesqueiras, a partir de princípios e práticas da pesca responsável que
preservem o ambiente. Para isso é necessário que: 1) Participem homens e
mulheres em espaços de representação política dos próprios pescadores/as,
através de suas organizações (associações, colônias e federação de
Pescadores/as, sindicatos e cooperativas); 2) Se promovam parcerias com
diferentes instituições para geração de tecnologias direcionadas para
educação e capacitação técnica, a partir do diálogo e troca de saberes com as
comunidades pesqueiras; 3) Sejam facilitadas as informações sobre as fontes
de crédito, divulgar e auxiliar o processo de elaboração e execução dos
projetos; 4) Se estabeleçam formas de gestão compartilhada no uso de
recursos naturais; 5) Se desenvolvam outros processos de geração de renda
(artesanato, turismo, culinária) associados às atividades que estão ligadas
direta ou indiretamente à pesca artesanal. (LEITÃO, 2009, p. 6).
Nesse sentido, concordamos com Leitão (2009) em relação as políticas públicas da
atividade pesqueira, especialmente no tocante à visibilidade das mulheres: é preciso seguir os
princípios e práticas de preservação ambiental e ainda garantir a efetiva participação das
mulheres nesses espaços de poderes. Ainda, que se criem ações para o desenvolvimento de
geração de renda para fortalecer economicamente e politicamente essas mulheres, é preciso
essa participação em todos os espaços de atuação.
Destaca ainda que:
Ao refletir sobre cidadania, alguns questionamentos se destacam no
cotidiano das relações de gênero: quais são os mecanismos que convertem as
demandas das mulheres em demandas das sociedades em geral; quais os
discursos que legitimam ou deslegitimam as solicitações femininas; quais
são os mecanismos, os atores e estratégias que promovem certos temas ao
debate político e a concretização em políticas públicas inclusivas; por fim,
quais são os mecanismos de participação e empoderamento das mulheres no
desenvolvimento local. (LEITÃO, 2009, p. 6).
A partir dos questionamentos levantados por Leitão (2009) observamos que a visão
cidadã das mulheres pescadores de Mato Grosso do Sul ainda é limitada e precisa avançar,
primeiramente na organização sindical e na participação da construção de políticas públicas
128
locais, regionais e até mesmo nacional. Isto porque as mulheres pescadoras são extremamente
participativas na economia local e regional, seja na pesca, na coleta de iscas vivas ou na
produção de artesanatos.
Segundo o relato de Heléia (2018), é somente nos anos de 1990 que se inicia as
discussões de políticas voltadas para as mulheres pescadoras:
Acho que foi de 1991 pra cá, foi que contribuiu muito para dar esse direito
para as mulheres pescadoras. A Pastoral da Pesca, que deu uma acolhida
muito grande, porque na verdade há uns 18 anos atrás mais ou menos, logo
que eu entrei na pesca, inclusive teve uns problemas de pescadoras que
estavam recebendo o beneficio de auxílio através da carteira do documento
do pescador, então as que receberam tiveram que devolver qualquer tipo de
benefício. Quaisquer coisas que elas receberam, através do INSS tiveram
que devolver para o Governo Federal, que não dava o direito. Então, como
que aconteceu tudo isso, eles deram direito também da mulher virar
pescadora, porque hoje como eu falei, a demanda é grande, mas tem umas
pescadoras que são pescadoras mesmo, acompanha o marido o ano todo nos
tem alguns casos assim, são poucos, mas tem! Então eu acho que uns 20%
mais ou menos de todo nós, temos hoje um número de associados de 420
mais ou menos, deve ter uns 20% de mulheres, dessas mulheres, atuante
mesmo deve ter uns 10%. E essas 10% que eu estou dizendo, tem muitas que
sabe, como a Solange disse são porreta mesmo [risos] elas pescam mais que
muitos pescadores, hoje a gente essa dificuldade mesmo porque a lei não
permite a gente fazer uma avaliação de quem é e não é entendeu?
(Aquidauana, 10/08/2018).
Heléia (2018) destaca em sua narrativa que parte considerável das pescadoras em todo
o país, teve problemas de acesso aos benefícios, pois as mulheres estavam silenciadas
documentalmente nesse processo. Ou seja, elas estavam aquém de qualquer direito trabalhista
e previdenciário. Em sua narrativa, destaca também uma critica às mulheres que possuem
carteira de pesca, mas que no entanto, não exerce a profissão, conforme já destacado em
outras narrativas dessa pesquisa.
Hoje se você chega no Ministério da Pesca com os seus documentos eles são
obrigados a te dar o documento! E a gente sabe que tem muitos que não
pescam, que não vivem da pesca, que são os chamados pescadores de seguro
desemprego. Quando o governo abriu as pernas para soltar a carteira o que
apareceu de carteirinha de pesca de gente que não sabe nem para que lado o
rio corre! Então isso dificulta para gente também. (Aquidauana, 10/08/2018).
Heléia (2018) levanta uma questão importante para o debate de políticas públicas
para a categoria, trata-se do controle de cadastramento das trabalhadoras. Um dado importante
é a fragilidade do sistema de controle, no sentido de conferir quem é realmente pescadora ou
129
quem somente utiliza ilegalmente dos benefícios que a categoria conquistou ao longo dos
anos.
[..] Acaba tirando de quem realmente precisa, que tem estados ai no Brasil
que muitos ficaram sem receber por causa disso, muita fraude. Passaram
para o INSS e tiraram do Ministério do Trabalho, para melhorar, mas eu não
estou vendo melhoras ainda não! Eu acho que continua igual, se não esta
pior, porque o INSS esse ano dificultou muito para gente, tem um atraso
enorme no repasse dos pescadores que é assim, a pesca geralmente fecha no
mês de novembro e vai até o dia 28 de fevereiro. Então, geralmente é no
começo de novembro a gente já começa a fazer o seguro defeso e habilitar
eles pra receber, esse ano começou a pagar o defeso de 2017, começaram a
pagar agora em fevereiro e março de 2018. Quer dizer, não te deixa pescar,
mas também não paga correto! Entendeu? Foi muito chato para a nossa
gente, principalmente para as colônias, porque todo mundo era mal instruído
um pouquinho sabe que a culpa não é da gente. (Aquidauana, 10/08/2018).
Em seu relato, Heléia (2018) destaca que a mudança para o INSS não apresentou até
o momento, mudanças significativas para a categoria, pelo contrário, os atrasos são
significativos, pois estão recebendo com atraso de quase três meses de pesca fechada, ou seja,
passam o período de defeso sem receber o benefício. A implantação do seguro-desemprego,
popularmente conhecido como seguro defeso, atualmente previsto na Lei n.º 13.134/2015,
tem como direito social de natureza trabalhista e secundária, visa amparar o trabalhador com
uma prestação pecuniária temporária nos períodos de proibição da pesca (defeso). O benefício
contempla a categoria que exerce a atividade profissional de maneira artesanal, garantido
tanto a quem a exerce individualmente, como também a quem exerce em regime de economia
familiar.
Anelise Becker (2013) em seu texto Seguro-defeso e pescadoras artesanais: o caso
do estuário da Lagoa dos Patos, destaca que:
No ano de 2010, o Ministério do Trabalho e Emprego, manifestando pela
primeira vez sua discordância relativamente às recomendações veiculadas
pelo Ministério Público Federal, aduziu que “o regime de economia familiar
definido no § 1º art. 1º da Lei n. 10.779/2003 não comporta a concessão de
Seguro Desemprego a cada um dos membros do grupo familiar, mas tão-
somente ao pescador artesanal que comanda o grupo familiar”, porquanto
“os membros da família do pescador que limpam o peixe e o preparam para
a comercialização, integram a chamada cadeia produtiva do setor pesqueiro,
mas não praticam a pesca, na forma definida no art. 1º da Lei n.
10.779/2003. Portanto, não estão compreendidos no conceito de pescador
artesanal, e não fazem jus ao benefício”. (BECKER, 2013, p. 53).
130
A medida afetou diretamente as mulheres que atuam tradicionalmente na atividade
pesqueira artesanal em regime de economia familiar. A medida44
determinou o não
pagamento do seguro-defeso, com o entendimento que pescador é aquele que esta no rio
pescando e não os familiares que contribuem com a manipulação do pescado, ou seja, a cadeia
produtiva da pesca. Para impedir fraudes o Ministério do Trabalho emitiu uma Instrução
Normativa MTE/SPPE n. 01/201145
. Fatos de fraudes foi mencionado pelas entrevistadas ao
falar das falsas pescadoras, ou seja, situações que prejudicaram a categoria que trabalha
individualmente ou em regime familiar. No entanto, fez com que as mulheres tivessem
também o cuidado com a efetivação da documentação pesqueira.
IMAGEM 19: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)
FONTE: https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em:
18/11/2018, às 10h.
44
Tal medida ocorreu após fraudes ocorridas na região, que passou a registrar pessoas e devido ao simples fato
de pagar a anuidade já lhe conferia o direito de receber o seguro desemprego. O interesse despertado pelo acesso
ao benefício do seguro-defeso que tal documento conferia fez com que a referida possibilidade viesse a ser
explorada por um tipo de “indústria” do seguro-defeso na região. Tais fatos foram objeto de intensa investigação
policial no âmbito da “Operação Truta” (Inquérito Policial DPF/ RGE/RS n. 2007.71.01.000783-0), por meio da
qual ajuizada, entre outras, a Ação Penal nº 5002628-13.2010.404.7101. Cf.: BECKER, Anelise. Seguro-defeso
e pescadoras artesanais: o caso do estuário da Lagoa dos Patos. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 12 – nº
41, p.45-91– jul./dez. 2013. 45
Instrução Normativa MTE/SPPE nº 01/2011. Cf.: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-sppe-1-2011.htm>. Acesso em: 18/11/2018, às 10h.
131
IMAGEM 20: Folder produzido pelo Instituto de Seguridade Social (INSS)
FONTE: https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em:
18/11/2018, às 10h.
No folder acima, observamos as orientações realizadas pelo INSS, nele podemos
notar que a palavra utilizada para se referir à categoria é no masculino: Seguro-Defeso do
Pescador Artesanal. Em relação à mulher temos apenas uma imagem que sugere sua
participação na atividade. Como se vê, não há menção à nomenclatura “pescadora”, o que
dificulta a visibilidade das mulheres pescadoras nas ações públicas. Nota-se, ainda, a seguinte
mensagem: “O direito ao benefício não se estende aos trabalhadores de apoio à pesca
artesanal”, ou seja, ao longo da história da pesca, as mulheres exerceram a função de
auxiliares de seus esposos e muitas por falta de conhecimento não possuíam a documentação
de pescadoras profissionais.
Ao avaliar questões legais e de direitos, os órgãos competentes no caso MPT, INSS,
entre outros, não podem ignorar, a questão de gênero, conforme aborda a nota técnica da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres:
Não pode o intérprete/executor do direito tampouco ignorar, no caso em tela,
a questão de gênero que subjaz à questão, exemplarmente abordada pela
132
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres: O entendimento da
atividade produtiva das mulheres como “ajuda” vai na contramão do que
propugna o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que deve balizar
as ações do governo em todos os níveis e esferas. Lançado em 2007, o Plano
apresenta como objetivo precípuo a eliminação de todas as formas de
discriminação contra as mulheres, garantindo a igualdade de gênero, e tem
na autonomia das mulheres um de seus princípios. Afirmações como a
destacada no excerto acima contribuem para a perpetuação de visão segundo
a qual os trabalhos desenvolvidos pelas mulheres constituem um tipo de
“ajuda” (ou colaboração) e que, como consequência disso, não são passíveis
de remuneração. A compreensão de tais atividades como ‘ajuda’ é evidente
no caso das mulheres envolvidas na pesca artesanal, cujas atividades
produtivas misturam-se com tarefas domésticas, sendo muitas vezes levadas
a cabo concomitantemente – assim, a coleta de mariscos, o cuidado dos
filhos, o reparo de redes, o preparo das refeições e a evisceração do peixe
aparecem todas, indistintamente, como atividades associadas ao cuidado da
casa e da família. (Nota Técnica – SPM/PR, de 27/06/2011) (BECKER,
2013, p. 65 - 66 - grifo da autora).
Para Becker (2013), o fato ocorrido em 2011- de não se conceder o benefício de
seguro-defeso às mulheres presentes na cadeia pesqueira - fere um direito garantido
constitucionalmente e dá mostras do preconceito de gênero existe por parte daqueles que não
reconhecem as atividades das mulheres na pesca artesanal.
Dessa maneira, podemos afirmar que o reconhecimento/fortalecimento da
representatividade da categoria perpassa, primeiramente, por questões de supostas hierarquias
entre homens e mulheres que precisa urgentemente ser eliminada. Apesar da existência das
leis, as mulheres estão muito aquém do esperado na luta pelo reconhecimento. Ao contrário
de outros estados analisados nessa pesquisa, destaco que ainda precisamos avançar na
organização feminina de movimentos na luta pela valorização do trabalho das pescadoras nas
comunidades pesqueiras do Estado, e ainda no fortalecimento das conquistas da categoria.
Nesse sentido concordamos com Leitão; Lima e Furtado (2009) ao afirmarem que:
As colônias e associações de pescadores precisam assumir essa ação e
procurar rever a definição estreita de pescador, de modo a que trabalhadoras
da pesca hoje invisíveis tenham um espaço, ou seja, um lugar. O acesso a
benefícios como aposentadoria, seguro saúde, ou auxílio maternidade
constitui uma condição própria da cidadania. Garantir às mulheres o estatuto
de trabalhadoras da pesca, como parceiras de terra ou das águas, é um grande
passo na conquista de uma cidadania de qualidade, com relações mais justas,
igualitárias e democráticas entre homens e mulheres. (LEITÃO; LIMA;
FURTADO, 2009, p. 13)
Portanto, a manutenção e sobrevivência das mulheres pescadoras é uma luta
cotidiana, visto que, ainda hoje predomina em vários setores uma visão romântica e
133
estereotipada da natureza feminina, que determina a figura feminina a maternidade e o trato
do lar. Ou seja, ainda predomina essa visão de que as mulheres são apenas auxiliares ou
ajudantes de seus companheiros nas atividades pesqueiras. Porém, como vimos nas narrativas
das mulheres recolhidas nessa tese, é visível a participação da categoria na economia local e
regional.
3.2 – Resistências: Caminhos da organização representativa
No Pantanal, grupos isolados e comunidades enfrentam cotidianamente os
desafios da falta de recursos e condições básicas como segurança territorial,
saúde e educação, entre outros fatores. A organização social e política torna-
se uma premissa básica, neste contexto, para que essas lacunas sejam
solucionadas – ou ao menos amortizadas – e seus direitos e dinâmicas de
vida sejam respeitados. São grandes as pressões que sofrem para
permanecerem nas áreas que habitam. Há aproximadamente 25 anos a Ecoa
trabalha apoiando a organização desses grupos. (ECOA, 21/12/2018).
As comunidades mais isoladas da urbanidade sofrem com a ausência de diversos
serviços públicos, nesse sentido a Ong ECOA46
, faz um trabalho importante para a
organização das comunidades ribeirinhas tradicionais. No tocante às mulheres é importante
destacar as:
Lideranças femininas: O papel das mulheres pantaneiras nesse processo
merece destaque. Mesmo somando cada dia mais na renda do núcleo
familiar, a falta de reconhecimento, representatividade e espaço dentro das
associações de moradores – compostas predominantemente por homens – é
uma realidade que gera descontentamento. Esse cenário acabou
impulsionando a organização dessas mulheres em associações próprias de
produção. (ECOA, 21/12/2018).
As mulheres recebem orientações para a organização de frentes femininas, na busca
de valorização do trabalho na comunidade pesqueiro. Com o auxílio do Ecoa foram realizadas
assembleias gerais com a eleição de três associações de moradoras dos municípios de
Corumbá, Miranda e Ladário. “Não surpreendentemente, foram empossadas três associações
de mulheres, reafirmando a luta das mulheres pantaneiras pelo reconhecimento merecido
dentro da comunidade e do Estado”. (ECOA, 21/12/2018). Em relação a outras regiões do
46
A iniciativa integra o Projeto ECCOS - Conectando Paisajes en el Bosque Seco Chiquitano, el Cerrado y el
Pantanal de Bolívia y Brasil para la Sostenibilidad del Desarrollo Productivo, la Conservación de sus valores
ambientales y la Adaptación al Cambio Climático, com o apoio da União Europeia. Cf.:
<http://ecoa.org.br/ecoa-inicia-projeto-que-tem-o-objetivo-de-fortalecer-governanca-das-areas-de-fronteira-cadeias-produtivas-sustentaveis-e-areas-protegidas/>. Acesso em: 18/11/2018, às 16h.
134
país, essas associações representam no Estado, um movimento importante, com olhos pela
valorização do trabalho da mulher pescadora. Abaixo temos a organização das três
associações:
APA Baía Negra: A Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra
está dentro de uma Área de Proteção Ambiental em Ladário (MS). Isso
fortalece tanto a conservação da região, quanto a perspectiva de que as
famílias, em especial as mulheres, consigam melhores condições de vida
dentro de uma unidade de conservação de uso sustentável.
Porto da Manga: No Pantanal, as mulheres representam mais que 70% da
categoria de pesca de iscas. Por isso, é bastante significativo que a
Associação de Mulheres Extrativistas do Porto da Manga, composta por
pescadoras – a maioria coletoras de iscas – esteja à frente da nova gestão da
Associação de Moradores por questões de interesses comuns e específicos –
que só as mulheres tem nessa atividade tão pesada.
Porto Esperança: Em 2015 depois de intensos conflitos socioambientais, os
ribeirinhos do Porto Esperança receberam seus Termos de Autorização de
Uso Sustentável (TAUS), garantindo o direito histórico da comunidade de
permanecer em seu território. A Associação de Mulheres Ribeirinhas do
Porto Esperança assume neste contexto o papel político de que este direito
seja mantido e seu trabalho gere mais oportunidades numa região que
segundo elas mesmas, é abençoada. ((ECOA, 21/12/2018).
Um importante papel do projeto Ecoa é a ação de organizar e instrumentalizar as
mulheres pantaneiras, que ao longo da história do Estado estiveram silenciadas e
invisibilizadas. O Projeto visa “Olhares para o futuro: Pelos próximos três anos, estas gestões
femininas estarão adiante nas representações comunitárias, em busca de melhores
perspectivas de trabalho e renda e também assumindo o papel político em defesa dos seus
territórios.” (ECOA, 21/12/2018). Acreditamos que não há nada melhor do que ouvir estas
mulheres e tê-las nas frentes políticas, na busca por melhorias profissionais e comunitárias.
Abaixo temos a imagem da organização da primeira diretoria da associação de Porto
Esperança47
:
47
O processo contou com a assessoria da Universidade Federal de Mato grosso do Sul através de Aurélio Briltes
(Advogado e Professor do Curso de Direito da UFMS- Fadir) e da Ecoa, representada por Nathália Eberhardt
Ziolkowski. Foram lidos e aprovados o Estatuto da Associação, bem como a Ata de Fundação constando da
primeira diretoria eleita e votação do nome da Associação. Cf.: <http://ecoa.org.br/mulheres-pantaneiras-se-organizam/> . Acesso em: 18/11/2018, às 16h.
135
IMAGEM 21: Votação da aprovação da primeira diretoria da associação de Porto Esperança ocorrida
no dia 11/10/2016.
FONTE: <http://ecoa.org.br/mulheres-pantaneiras-se-organizam/> Consulta em:
20/12/2018, às 16h.
No Estado de Mato Grosso do Sul, essa organização de mulheres pescadoras
representa um avanço nas políticas publicas para as mulheres, visto que a Colônia de Pesca
acaba sendo uma extensão da burocracia estatal. As mulheres pescadoras não as reconhecem
enquanto representação sindical da categoria. Apesar de alguns avanços a partir da criação da
Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP) em 2003, transformado em Ministério da
Pesca48
, em 2009 com uma trajetória de elaboração de diversas políticas públicas para a
categoria, ainda temos muitos obstáculos para o fortalecimento da cidadania das pescadoras
artesanais em nosso estado de Mato Grosso do Sul.
Ao despertar para uma nova consciência através de diversos setores de representação
da mulher como associações, colônias de pesca e Federação da pesca, percebemos que as
relações de desigualdade entre as pescadoras e os pescadores são visíveis, no entanto, aqui no
Estado a participação feminina é bem representativa.
48
Ministério da Pesca e Aquicultura foi extinto e incorporado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa), a pasta da pesca passa agora a ser uma Secretaria Especial da Pesca e Aquicultura. A
reforma foi instituída pelo Decreto nº 8.711, de 14 de abril de 2016.
136
Estudos sobre a condição feminina com base nas relações sociais de gênero, nesse
estudo referente a mulher que pesca, demonstram a dominação masculina. Historicamente
temos desigualdades socialmente construídas entre homens e mulheres, nesse sentido,
precisamos construir políticas públicas que considere as especificidades das mulheres,
ribeirinhas profissionais da pesca.
A categoria gênero é aqui entendida como um elemento constitutivo de relações
sociais fundadas nas diferenças percebidas entre os sexos e como um primeiro modo de dar
significado às relações de poder, como sustentado de Joan Scott (1995). Logo, como nos
ensina Pierre Bourdieu (1999) torna-se relevante conhecer aspectos do seu cotidiano e das
organizações políticas e das políticas públicas para a categoria. É preciso considerar as
contribuições das pescadoras para a produção do pescado, para rentabilidade no lar e na
comunidade, enfim todos estes aspectos responsáveis pela transformação da história em
natureza, do arbitrário cultural em natural. Portanto, é salutar analisar as conquistas e o acesso
das pescadoras das políticas públicas, para entrarmos no mundo dos sentidos e significados
que as pescadoras construíram no cotidiano pesqueiro e ainda, observar o universo das ações e
do papel Estado diante de sua realidade enquanto mulheres.
Concordamos com a autora Helena Hirata (2002) ao afirmar que a divisão do saber e
do poder é constitutiva da divisão sexual do trabalho e das relações de poder entre homens e
mulheres e que isto deve ser levado em conta na análise das perspectivas futuras do trabalho
feminino. Uma das dificultadas apresentadas pelas pescadoras como Shirlei (2017), Marilza
(2017) entre outras, é o acesso aos programas e projetos que objetivam apoiar a pesca
artesanal. Entre estes, o PRONAF-PESCA, que estende as ações do PRONAF-Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura familiar aos pequenos agricultores e pescadores
artesanais, pois as exigências para o acesso as políticas, principalmente as de crédito e
financiamento de equipamentos, não consideram as especificidades das mulheres pescadoras.
Na historia do trabalho na pesca artesanal no Brasil, ainda faltam muitas
conquistas referentes a estabelecer políticas públicas para saúde, previdência
e segurança alimentar. No caso das pescadoras artesanais, até mesmo a
reprodução da força de trabalho, que interessa ao capital, está comprometida.
O acesso à aposentadoria especial e as politicas de Estado para a saúde, está
condicionado a critérios de comprovação do exercício profissional, que não
reconhecem as especificidades da atividade pesqueira artesanal dificultando
o acesso aos direitos previdenciários, especialmente entre as mulheres. Por
não haver conhecimento mais profundo produzido por pesquisa, pela
inexistência de acesso aos já produzidos, por falta de reconhecimento
profissional ou por falta de capacitação entre os profissionais da saúde
básica, peritos do INSS negam às pescadoras o direito ao auxílio doença ou à
137
aposentadoria. Por esta razão a Articulação Nacional tomou como bandeira,
junto com a dos territórios pesqueiros, os problemas ocupacionais de saúde,
cobrando do Ministério da Saúde sua obrigação com realização de pesquisas
e tomada de medidas. (STADTLER, 2015, p.5).
Hulda Stadtler (2015, p.05) destaca que é visível a dificuldade que as pescadoras
enfrentam ao ter que “provar” que são realmente pescadoras profissionais, devido
principalmente à questão da identidade conter várias características que as vulnerabiliza: raça
e etnia, pobreza, ruralidade (pouco acesso), deficiência alimentar (insegurança), baixa
escolaridade, violência de gênero, alcoolismo, falta de documentação e por fim, o tipo de
trabalho realizado, coleta de iscas ou a pesca em lanchas. Assim, observamos que vai além
das questões de saúde, mas de políticas públicas que as veja como profissionais da pesca,
independentes, produtoras de renda e de conhecimentos múltiplos do trabalho.
Heléia (2018) destaca a luta da presidente anterior da Colônia de Pesca de
Aquidauana:
Hoje pra você ter uma ideia, uma sede dessa aqui só tem mesmo em duas
cidades do estado, que é lá em Coxim e daqui. Outras têm sede, mas não é
assim bem estruturada como é a nossa, você vai ter a oportunidade de vê
todas e essa daqui é nossa. Apesar de que foi na gestão da Ermi e de um ex-
prefeito daqui, uma pessoa muito boa, foi ele doou o terreno e a dona Ermi
sempre foi muito política, ela se envolvia muito com os políticos. Foi através
de uma amiga dela que conseguiu uma verba de certo deputado, ai conseguiu
construiu a cozinha pequenininha lá, passou mais um ano ou dois anos, foi
ela que conseguiu, só que ela gastou muito a sola do sapato. (Aquidauana,
10/08/2018).
Aqui temos o relato de uma presidente da Colônia de pesca, que destaca que a luta e
as conquistas foram frutos do trabalho da ex-presidenta que de maneira política local e
estadual, angariou recursos parlamentares para a construção da sede própria da representação
sindical, sendo o terreno fruto de doação da Prefeitura Municipal de Aquidauana.
138
IMAGEM 22: Presidenta da Colônia de Pescadores Heléia
FONTE: Fotografia Digital produzida pela autora para a produção dessa pesquisa, 10/08/2018.
Na foto acima, temos a imagem da frente da Colônia de Pescadores da Z-07
localizado na cidade de Aquidauana/MS. No histórico da instituição temos lideranças
femininas atuantes na conquista de melhorias para a categoria na região. Nesse local, são
realizadas reuniões, assembleias, cursos de orientação entre outras ações. Nesse espaço temos
também as salas administrativas utilizadas para cadastramento de pescadores e pescadoras,
organização documental.
Heléia (2018) descreve a dificuldade para organizar a diretoria da instituição:
[...] nós temos uma dificuldade, agora, por exemplo, eu estou conversando
com a Solange (secretária) eu já falei com alguns da diretoria alguns
aceitaram outros não. O vice-presidente não quer mais, o presidente de
conselho e o fiscal não quer mais, então a dificuldade que a gente tem para
montar essa diretoria, pois ela tem que estar com os doze componentes. A
Federação da Pesca não quer saber se está faltando alguém, tem que
apresentar uma chapa com doze e nós estamos com dificuldades para montar
essa chapa. Eu falei para a Solange, as vezes da até vontade da gente desistir.
(Aquidauana, 10/08/2018).
Como observamos no capítulo segundo desse trabalho, a legislação exige essa
representatividade e a participação da categoria frente às lutas sindicais. No entanto, a
presidente destaca a dificuldade de gerenciar uma instituição com poucos recursos financeiro
e dependente de ações políticas do Estado.
Atualmente conforme dados da Federação Estadual de Pescadores e Aquicultores em
Mato Grosso do Sul, o número de Pescadoras devidamente documentadas é de:
139
TABELA 1: Número de pescadoras cadastradas no Estado MS.
Colônia de Pesca em Mato Grosso do Sul Quantidade
Colônia Z-1 de Corumbá 408
Colônia Z-2 de Coxim 142
Colônia Z-3 de Três Lagoas 102
Colônia Z-5 de Miranda 133
Colônia Z-6 de Porto Murtinho 106
Colônia Z-7 de Aquidauana 116
Colônia Z-8 de Mundo Novo Sem informação
Colônia Z-9 de Angélica 29
Colônia Z-11 de Bonito 55
Colônia Z-12 de Paranaíba 122
Colônia Z-13 de Bataguassu Sem informação
Colônia Z-14 de Ladário 299
Colônia Z-15 de Naviraí 115
Colônia Z-16 de Itaquiraí 57
Total Pescadoras 1.684
FONTE: Informações levantadas no mês de janeiro 2019, pela diretora secretária da
Federação Estadual de Pescadores e Aquicultores – MS, senhora Elis Regina Severino. Quadro
produzido pela autora da pesquisa, 10/01/2019.
No quadro acima, temos um total aproximado 1.684 pescadoras regularmente
documentadas e filiadas nas Colônias de Pesca em Mato Grosso do Sul. Nos municípios de
Corumbá, Ladário e Miranda, temos uma concentração maior de mulheres que exercem a
pesca de iscas vivas para abastecer o comércio local. Já nos demais municípios têm uma
participação maior de mulheres que pescam o peixe, tanto de maneira embarcada como a
pesca de barranco, fatos esses observados na pesquisa de campo.
As Colônias que têm uma estrutura física mais estruturada são as de Coxim e de
Aquidauana, as demais possuem vários problemas com adequação de prédios de
equipamentos. Para Heléia (2018) esse fato se dá devido à luta da gestão em parceria com os
poderes públicos locais e estaduais. A lei nº 11.699, de 13 de Junho de 2008, dispõe sobre as
competências das Colônias, Federações Estaduais e Confederações Nacional de Pesca e
Aquicultura, amparada no artigo 8º da Constituição Federal. A Federação da Pesca em Mato
Grosso do Sul acompanha os trabalhos das Colônias de pesca no cumprimento das regras
140
legais, no entanto, esta garantida em lei que as Colônias de Pesca têm plena autonomia e
soberania em suas assembleias. E a Federação tem o dever de representar a categoria em
caráter estadual.
Heléia (2018) narra sobre um grande problema relacionado com a consciência de
classe, ou seja, com o fortalecimento da Colônia de Pesca:
Nem todos, então é outro problema sério que a gente tem é isso ai, porque se
a colônia favorece você que é associado, eu não sou assim aqui na colônia,
aconteceu de um benefício vir pra colônia, então vai ao nome de todos os
pescadores, entendeu? Isso é que tem que acabar, acredito que, direito é pra
quem tem direito, como esta acontecendo agora do INSS, está tirando o
direito da gente (Colônia) porque se o pescador for lá (INSS) não vai
conseguir aposentar. Eu tenho um exemplo aqui, de um pescador que ficou
sete anos sem pagar nada, vinha aqui passava um melzinho na gente, falava:
eu vou receber e eu venho pagar e foi indo até que chegou um tempo que a
Federação baixou uma portaria normativa determinando que a gente só possa
atender os associados que estão em dia, eu não posso fazer uma manutenção,
eu não posso preencher um carnê do INSS, eu não posso encaminhar ele pra
Imasul, para o Ministério da Pesca, para nada! Se ele não estiver totalmente
em dia com as mensalidades. O que acontece como no caso desse senhor que
ficou sete anos sem pagar, eu sei que ele é pescador antigo, só que eu não
acho certo favorecer ele enquanto ele não paga, porque tem outros que
pagam certo. (Aquidauana, 10/08/2018).
Heléia (2018) destaca que a categoria precisa reconhecer e fortalecer a representação
sindical das Colônias de Pesca, visto que, ao conseguir benefícios para a categoria, ela vem
para todos e todas. Ao não cumprir com as obrigações, no caso a mensalidade, que são pagas
mensalmente ou anualmente, fere com a consciência de classe num sentido geral.
Para entendermos um pouco sobre as relações políticas entre homens e mulheres nas
Colônias de Pesca no Estado de mato Grosso do Sul, é preciso compreender que temos duas
esferas que representam seus associados de forma específica, quando se tem uma demanda
própria ou de maneira genérica. De alguma forma, as instituições representam tanto homens
quanto mulheres, de forma direta, através de associadas(os) que estão inseridas ou não na
instituição. Porém, há um estranhamento quando se fala em conquistas, ou seja, para Heléia e
as demais entrevistadas, a instituição deveria trazer mais benefícios para os associados e não
para toda a categoria.
No Estado de Mato Grosso do Sul a história da pesca ainda é muito precoce, a
mobilização de luta por direitos ainda está em processo de organização e de desenvolvimento.
Nesse aspecto, as mulheres estão muito aquém do esperado para uma luta social por
reconhecimento da categoria, contudo, a organização das associações no Pantanal é um
avanço significativo na história da Pesca e das mulheres pescadoras.
141
Heléia (2018) destaca que:
[...] a maior função da Colônia é a assessoria e a documentação.
Encaminhamos para o Ministério da Pesca. Só que é assim: o direito do
pescador é para o que é filiado numa colônia e que contribui certinho com o
INSS, muitos ainda não entenderam essa função. Eu falo isso há 18 anos e
eles não entendem, eles pagam a Colônia e encaminha ao INSS. Mas para
aquele que esta pagando o INSS e que falta dois anos para se aposentar, não
é pelo INSS que vai aposentar, vai aposentar pelo seu tempo de pesca e o
tempo de trabalho. No caso o homem é com 60 anos, mas tem que
comprovar os 15 anos da atividade interrupta e a mulher com 55 anos. Mas
não pode ter aquele brecha, em 15 anos ela não pode ter nenhum registro em
carteira, nem um afastamento, então o que a gente faz é encaminhar eles para
o INSS pra receber benefícios. Se eles chegar no final do período da pesca
fechada e ele não tiver pago o INSS ele não terá direito ao seguro
desemprego, então eles falam não precisa pra aposentadoria, mas para
qualquer tipo de beneficio, como por exemplo se ele se machucou lá no rio e
precisa de um encostamento pelo INSS? Ele tem que estar com INSS em dia,
se ele não tiver em dia, ele não recebe. Então a gente encaminha pra
aposentadoria também encaminha para o INSS: auxílio maternidade, auxílio
reclusão e seguro desemprego, tudo isso é serviço da colônia para os
associados. (Aquidauana, 10/08/2018).
Nesse sentido, a experiência narrada por Heléia (2018) demonstra que o maior
problema é a falta de conhecimentos dos tramites a ser percorridos pelas pescadoras(os), na
garantia de seus direitos e deveres. Tanto a Federação como as colônias de pesca, prezam pela
filiação para a garantia de direitos, no entanto, para o INSS não há essa obrigatoriedade e a
instituição passa a ser apenas um órgão de luta por direitos e não necessária para as funções
legais de efetivação desses direitos, ou seja, o direito da trabalhadora é maior que sua filiação
na Colônia de Pesca. Narra ainda que a categoria tem dificuldades para compreender
mudanças, visto que,
[...] fica difícil para o pescador! Não aceita mesmo! O próprio prejudicado
não foi comunicado ou consultado, porque lá eles costumam usar um ditado
que fala: É fácil fazer lei em uma salinha fechada com ar condicionado, mas
vai vivenciar o dia a dia do pescador para vê como é que é! (Aquidauana,
10/08/2018).
Heléia destaca em sua narrativa que a categoria nunca é consultada para fazer leis, e
que ao fazer as mudanças à categoria, não recebe comunicados claros, o que dificulta a
compreensão dessas transformações. A pescadora ainda cita um ditado utilizado pela
categoria ao afirmar que os legisladores não conhecem a realidade vivenciada pelas
trabalhadoras no dia a dia. Um ponto importante para refletir é que a escolaridade da categoria
142
é muito incipiente e que esse fato dificulta o entendimento das burocracias e ainda até mesmo
das possibilidades políticas de representação da categoria.
No caso das pescadoras, Soares (2012) observa em seu estudo que:
Na pesca, essa luta das pescadoras por acesso aos espaços públicos é mais
pela necessidade de visibilidade que pela busca do poder, uma luta pela
igualdade nas formas de participação na esfera da vida pública. Algo
historicamente negado às mulheres principalmente nos espaços delimitados
socialmente como “exclusivo dos homens” como o da pesca, negando,
assim, o protagonismo das pescadoras. As lutas dos movimentos sociais na
conjuntura política em torno da pesca levam em direção ao reconhecimento
como reivindicação de justiça social, conforme desenvolve Fraser (2002),
uma vez que as mulheres das comunidades pesqueiras buscam não só uma
carteira de pescadora, mas o significado e os frutos que a condição de
pescadora pode lhes proporcionar. Elas estão lutando por um protagonismo
que minimize a dívida histórica engendrada pela invisibilidade no mundo da
pesca. Em suma, elas buscam o reconhecimento não somente de gênero, mas
de cidadania; de participação na esfera social; uma luta por redistribuição de
renda e pelo direito das condições de igualdade nas comunidades pesqueiras.
(SOARES, 2012, p. 119).
Ao ouvir as narrativas das pescadoras, concordamos com Soares (2012) ao nos
depararmos com o discurso de luta dessas mulheres, que ao denominarem como pescadoras
de verdade, se auto afirmam num espaço masculino. Ao mesmo tempo narram que estavam lá,
sempre estiveram lá, no entanto, invisibilizadas pelo sistema e pelos órgãos do Estado que vê
o homem pescador e não a mulher pescadora e suas especificidades.
Ana Maria Colling (1997), destaca que além do rompimento com o imaginário sobre
a mulher reservada ao espaço doméstico, é fato que, ao assumirem postos de comando, no
caso as guerrilheiras, as mulheres aceitavam e assumiam o discurso masculino, assim:
A questão do consentimento é central no funcionamento de um sistema de
poder, seja social ou sexual, devendo ser objeto de estudo também a
dominação masculina como dominação simbólica, que supõe a adesão das
próprias dominadas a categorias e sistemas que estabelecem a sujeição
(COLLING, 1997, p.4).
Na pesca, não diferente de outros fatos históricos, a mulher sofre essa dominação
simbólica, esse espaço de poder é masculino. Heléia (2018) destaca que ao conquistar o cargo
de presidenta da Colônia, não compreende a magnitude perante o cenário nacional, visto que
sua voz ainda não é ouvida pela maioria que ela representa. Aqui nos perguntamos: Por que
143
Heléia não é ouvida? Acreditamos que há indícios de que é um corpo e uma voz feminina que
fala, ou seja, que relevância tem essa voz nesse espaço dominado por vozes masculinas?
Além das questões das representações políticas nas Colônias de Pesca, as mulheres
convivem com outras situações que fogem dos espaços representativos, é o espaço natural e
adverso que o rio e o Pantanal representam na vida dessas mulheres.
3.3 - A Pescaria: Adversidades e a Natureza
Ao descrever seu dia a dia no rio, a pescadora Vânia (2017) relembra um fato que faz
parte da vida de muitas pescadoras: a questão das adversidades da natureza:
[...] Sem energia elétrica, já passamos por poucas e boas. Já atravessemos
num breu [sic] e maré. Estava um tempo bonito menina, não tinha vento, não
tinha nada, estava um sol lindo que estava, a gente atravessou,
quando começamos a pescar, entre o morro do molar, você não via mais
nada. Quando foi 2:30 da tarde quando tentamos atravessar o rio não deu
mais, porque a onda estava alta, ai ficamos presos, meu marido falou quando
for umas 4:00 vai melhorar ai deu 4:00 horas e nada ai foi passando, foi
anoitecendo e eu já com medo e nós no meio da baia. Aonde que a gente
imaginaria que ia acontecer isso, nós dormimos lá, só saímos no outro dia,
muita onda muita mesmo, correndo risco de vida, meu Deus! Eu imaginava
uma sucuri subindo ali. Porque a gente pesca junto, mas na lancha, ai chegou
em tal lugar a gente pega o barquinho de alumínio pequeno, nosso barquinho
é pequeno, é para 3 pessoas só, ai ficamos a noite inteira, vinha vento sul e
garoinha, toda vez eu levava casaco, nesse dia o tempo estava bonito eu não
levei meu casaco, só com uma blusinha fininha, ficamos a noite inteira [...]
(Corumbá, 15/01/2017).
Há toda uma preparação para o desenvolvimento da atividade pesqueira, tais como a
organização das roupas e dos equipamentos necessários para qualquer emergência. Nessa
situação adversa, a senhora Vânia (2017) afirma que foram pegos de surpresa, pois pelos
conhecimentos do clima, não era esperado esse temporal. É preciso planejar o horário de
saída para o rio como também o horário de retorno para casa ou para a lancha, observando os
perigos possíveis, numa escuridão com o rio fazendo ondas, não há como sair de uma baía,
que segundo eles é um “mar” calmo e aberto e que não tem como seguir o movimento das
águas, como num rio. Ou seja, dentro da baía as águas são calmas, agora com temporal, as
águas dos rios são fortes e levanta ondas, colocando os pescadores em grande perigo ao estar
em barcos pequenos.
144
O Pantanal, para as pescadoras, é um enorme “mar”, e representa um enorme brejão
e tem seus ciclos naturais:
O Pantanal vive sob o desígnio das águas. Ali, a chuva divide a vida em dois
períodos bem distintos: de maio a outubro, meses de seca, onde são
descobertos os campos, exibindo a força e a beleza de sua vegetação, e as
águas escorrem pelas depressões formando os corixos, canais que ligam as
águas da baía com os rios próximos. De novembro a abril, as chuvas caem
torrenciais tornando rapidamente a planície em baías de centenas de
quilômetros devido a dificuldade de escoamento das águas pelo alagamento
do solo. (PEREIRA, 2009, p. 16).
As pescadoras utilizam termos como “mar”, “riozão” para tentar expressar o que
significa essa maior planície alagável do mundo. Que com pouca chuva, já se transforma em
um rio de água límpida. Na foto abaixo, temos a pescadora Vânia (2017), com sua filha,
pescando em uma baía, ao lado esquerdo da foto observamos as águas tranquilas, ao lado
direito da imagem uma enorme vegetação imersa.
IMAGEM 23: Fotografia da pescadora Vânia (2017)
FONTE: Fotografia cedida pela pescadora Vânia (2017) para elaboração dessa pesquisa S/D
Na fotografia acima, vemos um dia tranquilo de pesca, dentro de uma baía, é visível
a água mansa, no entanto, em temporais com ventanias há um forte movimento das águas,
principalmente na entrada dessas baías que os pescadores chamam de boca, que segundo a
narradora, nesses temporais as ondas ficam enormes e não há como sair. Nessa foto,
145
observamos a pescadora Vânia (2017) e sua filha mais velha, pescando o peixe dourado49
,
uma espécie considerada de primeira linha e muito disputada pelas pescadoras, elas narram
que é uma pesca muito bonita devido a luta desse peixe para não ser capturado.
IMAGEM 24: Baía Vermelha. ECOA
FONTE: Site ECOA, Fotografia: André Siqueira
Quando as narradoras descrevem o riozão ou comparam os rios com o mar, é a partir
de imagem como essa acima. Cenários como esse, fazem parte do cotidiano das Pescadoras
que pescam peixes ou iscas em enormes planícies toda alagada. Conforme Bosi (2004) nesses
relatos orais está a importância de se considerar os significados que os sujeitos imprimem as
suas práticas cotidianas.
Destaco as narrativas da Shirlei (2017) dos momentos de "convívio com a temível
onça pintada":
[...] Eu sou muito corajosa, para dormir na beira do rio, quando tem de três a
quatro pessoas, eu tenho coragem, pois tenho medo da onça! Quando somos
só nós dois, eu não durmo, a onça urra. Uma vez nos subimos lá em cima,
estava pegando piauçu, fomos subindo, chegamos lá descansamos um
pouquinho, deixaram (outro pescador) a barraca para nós lá. Daí ficamos lá
em cima para dormir. Ah menina! no outro dia amanheci com meu olho que
49
Lei nº 22/2018 proíbe a captura, o embarque, o transporte, a comercialização, o processamento e a
industrialização do peixe Dourado, por um período de cinco anos, no Estado de Mato Grosso do Sul. Disponível
em: <https://www.correiodoestado.com.br/cidades/pesca-de-dourado-fica-proibida-por-cinco-anos-nos-rios-de-ms/343427/> . Acesso em: 20/12/2018, às 18h.
146
parecia que estava com terra, porque eu não consegui dormir, parecia que
tinha onça, e ele dormindo, dormindo, (o esposo completa:) “quando tem
guarda assim, eu durmo gostoso, dai que eu durmo mesmo”. Dormiu mesmo,
e eu não! (MIRANDA, 16/01/2017).
A saga com a onça pintada demonstra os perigos que o Pantanal possui, pois é seu
habitat natural. Na cadeia alimentar dessas felinas está o peixe, fato que imprime nas
pescadoras certo receio e faz com que tenham muito cuidado, principalmente nos
acampamentos. Conforme a narrativa da Shirlei (2017), "uma vez pescando pintado, ela veio
quietinha rodando com um pau, ficou muito perto de nós, senti o bafo nas costas".
Parafraseando Certeau (2008), as palavras, os gestos e os sorrisos trazem manifestações
significativas da vida cotidiana. Assim, observamos que como essas pescadoras são capazes
de superar com criatividade, as adversidades da pesca, transformam, mesmo que
momentaneamente, em prática divertida e de lazer, “esquecem” os perigos, medos e os
incômodos do cotidiano pesqueiro.
Shirlei (2017) destaca em sua narrativa, significado como o da felicidade:
[...] eu me sinto muito feliz! É uma coisa que distrai, se passa o tempo. Você
esta lá, você para num cantinho, lá quando não está dando mosquito, nós
conversamos, nós pescamos, [risos] Nós fritamos peixe. Quando as nossas
meninas eram pequenas, nós levávamos um arroz branco, dai pegava lá
embaixo uma piranha, e já fazia um foguinho [...] Quando eu vim morar
para cá, eu morava ali do outro lado [...] e eu estava pescando e de repente
curimba [sic] é difícil de pegar no anzol, e ficaram admirados de eu pegar,
eles tiraram o sarro: Você vai virar pescadora mesmo, porque não pega
assim no anzol, eu descia para pescar no barranco, no começo a gente não
sabia, a gente pegava e não tirava o ferrão e pisava no ferrão, uma vez pisei
em um e saiu um mandi pendurado no pé, [...] Deus me livre, é uma dor
insuportável, [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
Shirlei (2017), narra momentos de descontração para subjetivar o cotidiano
pesqueiro, destaca as certezas da “mistura” para o almoço, ainda fala de sua “sorte” ao pegar
um peixe chamado curimbatá que só é capturado com uma tarrafa ou rede. Ao destacar o fato
de não saber lidar com o pescado no inicio da profissão, relembra que ao pisar em um ferrão
de peixe, sentiu uma dor horrível, assim não descreve apenas momentos de alegria por estar
nesse espaço bucólico e cheio de adversidades, relembra também momentos de dor e de
persistência na lida cotidiana. Um detalhe interessante do cotidiano pantaneiro são os períodos
do ano que aumentam a quantidade de mosquitos, em determinados períodos quase não se
pode falar, no entanto, para Shirlei (2017) nunca foi motivo para não ir pescar, nem mesmo a
147
questão do período de resguardo, foi motivo para impedir a ribeirinha Shirlei (2017), de estar
no rio.
Eu era doida para ir para o rio, 14 dias depois de ganhar neném, eu queria ir
pescar, grávida mesmo, queria estar no rio, mesmo com medo de ganhar
neném no rio. Ganhei neném, depois de uns dias, nós descemos e foi à noite
inteirinha a onça urrando. Naquele tempo, sei que ele (esposo) tinha uma
vinte e dois (arma de fogo) ele ia atirar para cima para assustar a onça, eles
(Polícia Ambiental) foram lá ver o que era. Falamos: não foi arma não,
batemos pau [...]. (MIRANDA, 16/01/2017).
Em meio ao discurso, Shirlei (2017) descreve sua saga ao exercer a atividade da
pesca artesanal, demonstra momentos de coragem e ao mesmo tempo de medo e insegurança,
visto que, o espaço natural tem suas particularidades.
Orlinda (2017) também descreve em sua narrativa que sempre pesca embarcada, pois
prima pela segurança dela e do seu esposo. Segundo as narrativas das pescadoras, essa região
é marcada pela presença de onças pintadas. Elas rondam as margens dos rios para se
alimentarem, e ao acamparem nas margens dos rios, correm riscos de serem atacados por elas.
Esse fato faz com que se previna, não arriscando sua vida e nem do seu esposo:
[...] é só eu e meu velho, fiquei com medo. Nós não vamos descer no
barranco não, nós ficamos no barco mesmo, dai fica até certas horas
pescando. Quando vi que ele estava cansado, só peguei a lona que nós
levamos, forrei no fundo do barco, peguei os forros, forrei bem forradinho e
deitemos lá, ficamos lá, amanhecemos o dia lá, deitados no barco [risos] e o
tempo começou armar de chuva, ai falei pra ele: Vamos embora, vai chover,
vamos embora [...] Muitas vezes, eu e ele, não dormimos [...] eu sou
apaixonada por pescaria, fico a noite inteira pescando, agora tem gente que
vai fica tranquilo, faz barraca, arma barraca na beira do rio, pousa lá, nós
não! Nós não descemos do barco não! Fica a noite inteira dentro do barco.
(MIRANDA, 16/01/2017).
De fato, as condições de trabalho não são nada fáceis, os perigos são constantes e as
condições de renda refletem na qualidade de vida. A pescadora Orlinda (2017) descreve que é
preciso ter muito cuidado, pois são idosos e nesse caso, seriam presas fáceis para a temível
onça pintada, muito presente nas narrativas das pescadoras. Há também motivos de
encantamentos, sabem dos perigos que correm, no entanto, a pescadora Orlinda (2017)
descreve que sonha vê-las a olho nu, fato esse ainda não contemplado.
[...] Aqui tem bastante onça pintada, bom aqui para cima a gente quase não
vê, mas descendo de Salobra pra baixo, lá de dia o povo vê onça passeando,
148
e filma elas. Disseram-me que tem um lugar ali, não sei onde, para baixo
que tem uma onça que é até acostumada com peixe, joga o peixe lá e ela já
aparece na barranca do rio. É bem reservado o lugar e é perigoso, só que eu
durante o tempo que pesco, eu nunca vi uma onça, para falar a verdade,
nunca vi uma onça na beira do rio. Eu falo assim pro meu velho: Sou
louquinha para ver uma onça, mas não consigo ver, meu irmão vê
diariamente ela, vê a onça, ele filma, tira fotografia, as filmagens das
onças. Eu não tive o privilégio de ver, agora meu esposo e o meu genro, eles
viram, filmaram, trouxeram a filmagem dela, só que eu não tive essa sorte,
vejo o rastro dela na beira do rio, vejo bastante rastro dela, mas ela mesmo,
não! (MIRANDA, 16/01/2017) .
Esse fascínio pelas onças faz parte do imaginário de muitas pessoas que buscam o
Pantanal, seja para a pescaria ou passeios turísticos. O safari pantaneiro é conhecido
mundialmente, em razão da riqueza de sua fauna, que, no entanto, para as trabalhadoras da
pesca, representa um grande perigo no cotidiano da categoria.
A pescadora Orlinda (2015) expõe os sacrifícios e perigos gerados pela pesca, que,
no entanto, não são empecilhos, nem inibidores da presença feminina na lida. Em sua fala,
percebemos a naturalidade com que enfrenta as adversidades, com firmeza e a coragem de
quem tem experiência desde criança. Ressaltamos os símbolos utilizados como instrumentos
estratégicos para delimitar e assegurar o domínio do lugar, uma relação possessiva e coletiva
que se estabelecem.
Pergunto à senhora Orlinda se ela tem o costume de acampar, ao que responde:
[...] Não, às vezes a gente vai depois, nós só pousa lá se for pescar a noite,
mas no outro dia cedo nós já vem embora. Agora antes, nos estávamos com
ideia de ir, arranjar uma lancha ou um amarrar o barco na beira do rio, pra
nós ficar dois, três dias lá, só que agora ele aposentou graças a Deus da pra
ficar mais tranquilo. E gasta muito porque todo dia vai e volta, vai e
volta, gasta demais [...] e passa a noite pescando e agora a gasolina foi lá em
cima também, teve alta de novo [...] aí vai ficar mais difícil eles pescar
[...] (Miranda, 16/01/2017).
Outro perigo constante dos pescadores é o jacaré, logo abaixo descreve uma
experiência que lhe trouxe uma cicatriz na mão:
[...] Eu passei assim no Pantanal! até jacaré andou relando a minha mão, olha
aqui, nesse lugar aqui (mostra a mão) foi o sinal do dente do jacaré. Só que
nesse dia, nós estávamos pegando isca na lagoa, até passou no tal do
Picarelli (programa jornalístico de televisão). A gente finca um pau
aqui, finca aqui, daí pega a ponta dele e vai levando assim, daí acerta lá
longe lá no barranco assim, daí fica no meio ali fica tudo preso. Eu esqueci
que ali naquele lugar ali, todo dia eu ia pescar e tinha um jacaré naquele
lugar ali, numa moitinha assim, dai o meu esposo disse assim: Vai limpando
149
aí dentro, vai tirando essas sujeiras ai dentro, e eu fui catando aqueles mato
assim, dai na hora que chegou lá naquela moita assim, eu enfiei a mão assim
e tirei, quando enfiei a mão eu senti o jacaré [...] (Miranda, 16/01/2017).
Orlinda (2017) descreve com riqueza de detalhes, todo o processo de coleta de iscas
vivas nas lagoas. E ao desenvolver a tarefa, esquece da morada do jacaré, enfiando a mão
diretamente na boca do jacaré. Logo abaixo, na fotografia observamos a coleta de iscas vivas:
IMAGEM 25: Catadoras de Iscas
FONTE: Fonte: ECOA – Fotografia: Jean Fernandes
A pesquisada desenvolvida por Fernanda Santana, com o tema Toque feminino.
Coletoras de iscas vivas entre camalotes floridos, a autora analisa a prática de pescadoras de
iscas no Pantanal:
No ano 2000 um relatório produzido pela Ecoa focando comunidades
ribeirinhas foram detectado a vulnerabilidade dos “isqueiros”, coletores de
iscas vivas que abastecem o turismo de pesca do Estado. Para o trabalho
homens e mulheres ficavam imersos até o peito na beira dos rios sem
nenhum material de proteção e a mercê do frio e animais peçonhentos. Os
isqueiros eram discriminados e, sequer eram reconhecidos como
profissionais. (SANTANA, 2009).
Nesse cenário vulnerável, Orlinda (2017) afirma:
150
[...] parece que eu senti a boca dele, fez assim [...] eu puxei a mão assim, e já
tinha furado a minha mão aqui, pegou o dente dele aqui, pegou aqui em cima
da minha mão só que não segurou, não conseguiu segurar [...] fui mais
rápida, mas ficou um mês. Meu braço inchou até aqui em cima assim, mas
pensa coisa que dói, mas dói, dói mesmo. Fiquei um mês com braço na
tipoia sem poder movimentar com o braço, dessa vez eu fiquei com medo de
pegar isca. No começo nós pescávamos eu e meu cunhado, nós tínhamos
duas telas, só que ele tinha a tela dele e eu tinha a minha tela, assim aquela
telinha de pegar isca [...] que é flutuante. Ele pescava na dele lá, e eu na
minha aqui e com água até por aqui assim (na altura do peito) eu não tinha
medo não, vivia dentro da água [...] só que depois que fui mordida pelo
jacaré, eu criei medo! Criei medo desse jacaré que ele é perigoso [risos]
[arrancar o braço fora] é porque se ele pegasse assim de verdade mesmo ia
virar, ele torcia, porque ele pega e vira [...] embola assim, é aonde ele
quebra, aonde ele pegar ele quebra se ele tivesse pegado a minha mão assim
de cheio ele tinha quebrado minha mão, tinha arrancado a minha mão, mas
graças a Deus só foi isso, esse trisquinho que deu aqui na minha mão
mesmo, mas ainda ficou com defeito um pouquinho [risos] é ficou a
lembrança do jacaré ficou bem o sinal do dente dele aonde entrou aqui. O
susto foi grande não foi fácil não, depois ficou o sinal do corte ainda tem o
corte, do dente dele aqui [...](MIRANDA, 16/01/2017).
Ao narrar toda a saga com o jacaré, relembra o processo dolorido que foi após o
acidente, ainda do perigo que correu, pois poderia perder o braço. Relembra também
momentos que pescava com seu cunhado, cada um no seu espaço de trabalho, tranquilamente,
no entanto, após o ataque do jacaré, desenvolveu um medo do animal que antes convivia
muito perto.
Shirlei (2017) narra momentos que marcaram sua memória:
[...] É muito cansativo, você chega, passa o dia inteirinho, chega em casa
moída. Mas quando esta saindo peixe é gostoso, antes de fechar a pesca,
um pessoal estava aqui, era de um ônibus que eles vinham, eram um pessoal
muito bom, aí eles pegaram e ligaram, se não tinha problema de eu ir pilotar
para eles, falei: Não! Era um casal que eu nunca tinha pilotado para eles,
resolvemos fazer assim, eu vou com o casal aqui e mais um, fomos. Então
falaram: Vamos voltar cedo. Chegando lá, o tempo começou a armar, daí o
povo falou: Vamos embora Shirlei. Nós viemos, chegamos na metade do
caminho a chuva pegou nós, temporal mesmo, eu vim embolada no motor,
aquela chuva (forte), dai o homem, arrumou uma tampa de panela para
proteger meu rosto até chegar aqui, pensei que nós não íamos chegar. Se
virar o barco ou afundar? Foi uma experiência e tanto, se eles não
confiassem em mim para pilotar, não sei o que poderia ter acontecido. Passei
no teste deles, vim embora, não dava para enxergar nada pela frente, vim no
rumo, peguei na mão de Deus e chegamos bem. (MIRANDA, 16/01/2017).
Ao exercer a atividade em ambientes naturais, corre-se o risco de adversidades como
temporais com ventanias muito fortes. Ao pilotar o barco, carregado e com chuva, os perigos
151
são redobrados, pois não há como se proteger dela. Ela lembra o dia em que um turista
utilizou uma tampa de panela como escudo de proteção, possibilitando que ela conseguisse
pilotar rio acima, o que garantiu que chegassem seguros até o porto da cidade.
Orlinda segue a narrativa e afirma sobre sua autonomia para pilotar:
[...] Eu piloto, só que eu não gosto de pilotar também, só piloto quando
precisa! É só quando não tiver ninguém para ir comigo, daí eu vou, mas
desde que tenha um companheiro, eu já dependo do companheiro. Já que eu
não gosto, não é minha paixão o motor. Eu não tenho medo é que eu não
gosto, não tenho aquela paixão por pilotar um motor, tem mulher que gosta,
eu não gosto. Por mim, eu dependo mais de companheiro para pescar, para
pilotar para mim, porque eu não gosto, inclusive eu tenho um motor, um
barquinho de cinco metros e meio, que é meu mesmo. Só que é na
companhia dos outros, porque eu sozinha não gosto de ir não! (MIRANDA,
16/01/2017).
Desta maneira, ajustamos um olhar para o entendimento de como as mulheres
pescadoras conciliam suas atividades procurando eleger as prioridades, sejam elas a compra
de um motor, lancha, um barco, enfim. Revelam em suas falas, seus gostos, conhecimentos e
conquistas, destacam que dependem dos companheiros para pilotar os barcos e lanchas, no
entanto, se precisarem ir sozinha irão, pois sabem pilotar.
Em suas narrativas, observamos as referências a esses investimentos, como no caso
da pescadora Orlinda (2017):
É com dinheiro de pesca, tudo que eu tenho é aqui! Todo mundo sabe isso
aqui tudo, é carro é tudo que nos temos é com o dinheiro da pesca [...] Isso
aqui não investiu com outro dinheiro não! Que meu velho, ele mexe com
venda de isca e também capina, agora ele aposentou. Agora ele vai ficar
mais comigo na pescaria, ele aposentou e não depende mais tanto estar
trabalhando forçado, porque não pode também porque ele é doente, ele tem
problema de coluna, mas o probleminha esta na idade, ele tem 37 anos de
carteira de pescador [...] É um bom tempo! Ele se aposentou agora e nós
vamos viver só no rio pescando. (MIRANDA, 16/01/2017).
Portanto, pesca para além da pesca, ao destacar sobre a rentabilidade que o oficio lhe
proporciona:
[...] É para viver bem, bem, não dá! Mas dá para a gente ir levando, sabe
como é que é, não tem outra profissão. A senhor pode ver: Miranda é
pequeno, não tem um nada aqui para gente trabalhar, então é só a pesca
mesmo [...] Se fecha a pesca, eu acho que acaba tudo na cidade porque
fechou a pesca, acabou tudo! Acaba o movimento daqui [...] É só silêncio, é
difícil, difícil mesmo! Deve agradecer a Deus pela pesca, porque falar que o
152
que nós temos aqui da para se defender, não são aquelas coisas. Que tem
mês que da para sair alguma coisa, mas tem mês que é ralado [...] Tem vez
que sobra, muitas vezes esta com dinheiro R$: 20,00 R$: 30,00 Reais
guardado. Para nós mesmo que pesca de motor, é mais difícil porque as
vezes a gente desembolsa e vai no rio e não consegue nada. É porque tem
época que esta difícil, esta feio mesmo, agora tem época que não, tem época
que é boa. Ano passado graças a Deus teve bastante peixe, parou um
cardume de peixe aqui na ponte e foi bom, e tinha muito pintado no meio,
bastante peixe mesmo, deu para aproveitar já no começo. Tem época que é
ruim [...] E fica ruim de pegar, tem época que parece que não tem os peixes,
não sei se os peixes descem ou sobem, só sei que não acha mesmo, sei que é
difícil mesmo. Pode bater dia e noite que não sai nada [...] (MIRANDA,
16/01/2017).
Essa característica está muito presente na vida socioeconômica e cultural das
comunidades ribeirinhas do Pantanal, particularmente nos períodos de seca, na qual as
famílias, diante das adversidades ambientais, inventam e reinventam formas de sobrevivência
a cada sazonalidade das águas. Há um constante e ininterrupto recomeço, que se renova
dinamicamente através da capacidade criativa de se adaptar a cada enchente ou período de
seca, falta de peixes e escassez de recurso financeiro. Por outro lado, se orgulham ao mostrar
que tudo que possuem de bens materiais são resultados do trabalho com a pesca artesanal.
Entre outras adversidades do mundo da pesca há perigos relacionados a vida dos
trabalhadores. Um alerta é com a possiblidade de naufrágios, um dos medos muito presentes
no imaginário das pescadoras:
[...] é graças a Deus nunca passei apuro de mais outras coisas, negócio de
virar barco cair não, que a gente mais anda com cuidado também né porque
sabe que é perigoso, falam que o rio só não gosta daquele que não sabe
nadar, a verdade: Ele gosta daquele que sabe nadar, ele leva mesmo! já
aconteceu muitas causas de morte aqui no rio, tem bastante causo de barco
que virou. Uma vez não achou o barco, não achou o motor, é mais perigo,
não é fácil não! Por isso que eu tenho medo de sair sozinha. Que nem eu falo
pro meu velho: Eu não tenho força, um dia nos estava pescando eu não sei
que jeito ele soltou o motor da rabeta [sic] do motor, enganchou no pau,
enganchou no vão do pau, ficou grudado a hélice lá e custou tirar o motor de
lá, esse que é o meu medo [...] Sozinha e chegando enganchar, que jeito eu
vou fazer pra mim tirar? Força eu não tenho para puxar, então eu evito isto
dai eu não vou sozinha, que nem muitas vezes eu vou com minha
filha pescar, quando não tem ninguém pra ir, dai vai eu e ela porque
qualquer coisa nos estamos juntas e ela também é pescadora, dai nós
vamos juntas nós duas para o rio sozinha, de barco sozinha eu não
fui, porque tem que ter muito cuidado, tenho medo de acontecer as coisas e a
gente sozinha por ai, não dá certo não [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
Essas mulheres representam o mundo vivido, os seus lugares, como lugar de
realização da vida, a percepção é entendida como uma “ação humana de compreensão do
153
mundo, que se dá no momento em que o homem vai ao mundo, se ver no mundo, se
construindo com ele”, ou seja, cada pescadora se constrói no mundo da pesca, carregadas de
significados simbólicos reais e imaginários. Esse espaço analisado sob um viés
fenomenológico nos permite refletimos como as mulheres pescadoras se relacionam com o
Pantanal, com suas experiências vividas nos lugares da pesca, na coleta de iscas e em seus
cotidianos. Nesse sentido, elas constroem um mapa mental que “é a representação da forma
de como o homem percebe, representa, descreve e vive o lugar” (NOGUEIRA, 2014, p. 79-
103). São Mulheres que desenvolvem/idealizam uma representação romântica do lugar, do
belo, da verdadeira felicidade entre outros adjetivos utilizados para destacar que vivem nesse
lugar bucólico e repleto de adversidades, que para elas representam o próprio sentido de vida
e da sobrevivência.
3.4 Beleza e saúde: O (des)cuidado
Um dado importante a ser questionado entre as mulheres pescadoras está relacionado
aos (des)cuidados com prevenção às doenças de pele, causadas por exposição prolongada ao
sol, chuva e altas horas mergulhadas em águas com variadas temperaturas. Um estudo
realizado por Ribeiro e Silva (2012)50
destaca graves doenças de pele em pescadores e
pescadoras, em grande parte devido à falta de proteção e cuidados preventivos. A questão
desse não cuidado é recorrente nas falas das narradoras:
Visto calça, blusa de manga cumprida, tênis, boné, quando eu ia pescar
direto eu não passava protetor nem nada, ai as mulheres pegava no meu pé?
Shirlei você passa protetor? Não! Aí elas falavam: tem que passar, pois
quando chegar um tempo, por causa do sol, eu ficava muito vermelha, você
tem que passar! As mulheres falavam: Você pode pegar câncer, ou num sei o
quê! Porque é uma coisa que: quando você está no rio, você não pensa em
outra coisa [...].(MIRANDA, 16/01/2017).
A questão da saúde da mulher levantada por Shirlei (2017) é um dado importante
para ser analisado. No caso específico da mulher pescadora que exerce sua profissão quase
que exclusivamente exposta ao sol, em uma embarcação geralmente de alumínio, com reflexo
do sol e a evaporação da água, permite que a temperatura seja mais elevada e,
consequentemente, os riscos são aumentados.
50
RIBEIRO, A. de O.; SILVA, L. C. F. da. ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO DE QUEILITE ACTÍNICA EM
PESCADORES DO LITORAL SUL DE SERGIPE. 2012. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de
Sergipe. Disponível em: <http://bdtd.ufs.br/handle/tede/1027> . Acesso em: 22/11/2018, às 20h.
154
A esse respeito disso Orlinda (2017) descreve seu dia a dia no rio:
[...] Eu visto calça comprida, camisa de manga pra pescar, chapeuzinho na
cabeça, bonézinho na cabeça, agora calçado quase eu não sou muito de
calçar botina, bota essas coisas não. Porque eu tenho mais medo, que é mais
perigo, se a gente tiver calçando um calçado fechado, se cair dentro da água
é perigoso, que a gente afoga, agora descalço não, descalço fica mais leve,
mas calçar uma bota um calçado fechado se cair a gente afunda! É
chinelinho mesmo. A noite pra pescar sabe como eu faço? Eu levo uma
sacola, sacolinha, eu coloco a sacolinha aqui (mostra o calcanhar) e amarro
no pé com a sacolinha. É por causa do mosquito também, que é muito
mosquito a noite, os mosquito fica tudo no pé da gente, para não calçar
calçado fechado, eu fico com a sacolinha no pé. (MIRANDA, 16/01/2017).
Observamos nessa narrativa uma crença simbólica de Orlinda ao salientar que não
pesca calçada pelo perigo de afundamento. E para não utilizar repelente de insetos ou botas
fechadas, utiliza-se da sacola plástica para a proteção contra os mosquitos. Nas imagens
disponibilizadas pelas pescadoras observamos apenas a utilização de camisas de manga longa,
calças e bonés, raramente estão com coletes salva vidas e outros equipamentos de segurança.
Porém, os cuidados com a pele, ainda é negligenciado por elas, e muito presente nas
narrativas de todas as pescadoras, conforme a pescadora Vânia (2017) também descreve logo
abaixo:
[...] Quase não tenho cuidado. A turma fala: sua pele esta tudo acabada, eu
não ligo. Minha irmã fala, minha irmã é mais velha que eu: Quero que você
veja a pele dela, bem lisinha, se tiver que escolher e pele bonita ou o sol, eu
escolho o sol, por isso eu nem ligo. Eu pesco o ano todo, a vida toda, eu não
ligo [...] eu sou feliz, eu fico pensando assim: Não é todo mundo, acho que é
porque fui criada na beira do rio, se eu tivesse que escolher entre outra
profissão e a pescaria, eu escolheria a pescaria [...] Eu tenho cinco meninas,
eu não quero isso para elas, mas assim para mim, eu gosto acho que é porque
nasci, criei assim, eu gosto [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).
A senhora Vânia é uma mulher de 42 anos de idade, sua pele clara mostra facilmente
o porquê sofre com os efeitos nefastos do sol, vento, dentre outros fatores aos quais fica
exposta cotidianamente na atividade pesqueira. É uma mulher de personalidade marcante,
decidida, trabalhadora e que segundo ela "não se importa com sua pele", muito jovem com
uma postura séria, revela a pesca como uma razão para sua vida. Uma vida marcada
pela identidade rural que a diferencia de muitas mulheres urbanas, no sentido de vaidades e
cuidados com a pele.
155
Faz questão de mostrar a foto abaixo, e destaca que o único equipamento que utiliza
são os óculos de sol:
IMAGEM 26: Vânia Sato pilotando seu barco
FONTE: Fotografia digital cedida pela entrevistada Vânia (2017) para utilização nessa
pesquisa S/D.
Percebe-se com isso que as pescadoras estão sujeitas a adquirirem diversas doenças
no exercício de sua profissão, inclusive doenças ocupacionais em decorrência de seu trabalho
e de suas exposições solares e de permanências em lugares insalubres. Elas raramente se
preocupam com os cuidados quanto a utilização de equipamentos de segurança e de
vestimentas apropriadas, que as protegem de ter sérios problemas de saúde. Segundo as
entrevistas, as doenças mais comentadas entre as pescadoras é a hanseníase e de câncer de
pele, entre outras doenças laborais, como varizes, problemas de coluna e articulações.
O Ministério da Saúde lançou duas cartilhas51
com o objetivo de orientar as
pescadoras com assuntos relacionados à saúde e o ambiente profissional. As cartilhas
51
As cartilhas foram produzidas a partir do diálogo realizado entre o Ministério da Saúde, pesquisadores e
pescadoras artesanais em 11 oficinas no país, sobre a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do
Campo, da Floresta e das Águas. As oficinas, realizadas entre abril de 2016 e agosto de 2017, tiveram a
participação de 417 pescadoras de 117 municípios, de 16 estados. Os encontros aconteceram em Remanso
(BA), Olinda (PE), Natal (RN), Paraíba (PR), Fortaleza (CE), Santarém (PA), São Luís (MA), Parnaíba (PI),
Januária (MG), Espírito Santo (ES), Rio de Janeiro (RJ), Alagoas (AL), Vitória (SE), Santa Catarina (SC),
Laguna (RS) e Matinhos (PR). Cf.: <http://portalms.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/44443-cartilhas-orientam-sobre-a-saude-das-pescadoras-artesanais> . Acesso em: 22/11/2018, às 16h.
156
contribuem na orientação de acesso ao serviços públicos de saúde e na melhoria da saúde
das mulheres que trabalham com a pesca artesanal.
“A cartilha tem o intuito de dar visibilidade à atividade pesqueira
desenvolvida por mulheres, enfatizando como atuam na pesca e na
mariscagem e como a atividade laboral pode estar relacionada ao seu
adoecimento. Ambas as publicações são importantes para o
reconhecimento do trabalho e por meio delas levam informações às
mulheres na cadeia produtiva da pesca para o enriquecimento do trabalho
já realizado”, destaca o diretor de Gestão Participativa e ao Controle Social
do Ministério da Saúde, Marcus Peixinho. (Ministério da Saúde,
27/09/2018).
A ação faz parte da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo,
da Floresta e das Águas visa garantir o direito e o acesso à saúde a estas populações por
meio do Sistema Único de Saúde (SUS), portanto, uma política pública importante para as
mulheres pescadoras que representam no país aproximadamente meio milhão de mulheres
que trabalham diretamente com a pesca artesanal.
O projeto ECOA evidencia que:
No quesito saúde, principalmente entre as mulheres, constatam-se muitos
problemas provenientes da insalubridade da atividade desenvolvida ao longo
dos anos, tais como artrite, artrose, problemas de coluna e dores nas
articulações e nos ossos, da mesma forma que acontece na comunidade de
Porto da Manga. Infelizmente, essas doenças específicas que atingem os
ribeirinhos não recebem a devida atenção do poder público. (ECOA).
Durante as entrevistas questionamos todas as pescadoras sobre os cuidados e
proteções com a saúde, e de maneira geral, todas as mulheres não demonstram preocupações
com esses cuidados. Principalmente, porque segundo elas, o uso de protetores solares e de
repelentes atrapalha e pode espantar os peixes, sendo assim arriscam sua própria saúde não se
protegendo contra doenças laborais. Por não se cuidarem adequadamente, estão
constantemente expostas as doenças de pele além de estarem sujeitas a ataques de cobras,
jacarés e arraias, entre outras adversidades.
A jornalista Iasmim Amiden52
, destaca em seu estudo jornalístico intitulado
Independência tem Algemas, um estudo sobre as Mulheres da Manga, destaca um outro
olhar:
52
Trabalho de conclusão de curso produzido para a disciplina de Projetos Experimentais do Curso de Jornalismo
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A jornalista Iasmim Amiden foi premiada no ano de
2018, com o prêmio nacional, no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) em
Curitiba/PR, com a melhor reportagem na categoria de Jornalismo Digital. O trabalho foi sobre o cotidiano
157
A atividade consiste em coletar, principalmente, caranguejos durante o dia,
e tuviras durante a noite. Milhares de iscas vivas capturadas por semana
fazem o trabalho parecer fácil, mas as mãos e pés calejados de Eliene, além
das frequentes visitas ao hospital, por causa das intensas dores nas pernas,
revelam um gosto amargo deste cotidiano. Eliene apresenta hematomas no
corpo e cicatrizes, consequência do excesso de esforço físico e das ferroadas
de arraiais. (AMIDEN, Iasmim. 2017) Grifos da autora.
Ao desenvolver a pesquisa de campo, por meio de entrevistas e registros fotográficos, a
jornalista capta indícios de problemas de saúde que essas pescadoras contraem ao desenvolver a
atividade pesqueira. Na imagem abaixo, observamos uma pescadora de iscas vivas, devidamente
vestida para o labor. O macacão confeccionado com material impermeável é utilizado para evitar
acidentes principalmente em lagoas, durante a pesca de iscas vivas, é utilizada juntamente com
uma bota de borracha.
IMAGEM 27: Vestimenta para pescadora de iscas
FONTE: Ecoa - Fotografia Iasmin Amidem.
As mulheres pescadoras do Pantanal vivem sobre o designo das águas, ou seja,
Um ciclo para os que vivem nos limites da sobrevivência é a impiedosa
eternidade que se renova, na seca, na cheia, e em todos os períodos do
das mulheres ribeirinhas do Porto da Manga. O Trabalho se desenvolveu com o apoio da Ecoa durante as
visitas à comunidade e em todo o processo de pesquisa e aprendizado sobre o Pantanal. Disponível em:
http://ecoa.org.br/mulheresdamanga/aguaquecorreentrepedras.html. Acesso em: 10/11/2018.
158
Pantanal. As comunidades ribeirinhas se adequam ao ritmo das águas. A
ideia de que povos tradicionais pantaneiros são seres que vivem em perfeito
equilíbrio com o meio ambiente, é sufocada pelo cotidiano árduo de
mulheres que trabalham exaustivamente para garantir a sobrevivência de
suas famílias. (AMIDEN, Iasmim. 2017) Grifo da autora.
É preciso conhecer o Pantanal e suas peculiaridades, pois ao refletir sobre o
equilíbrio das ribeirinhas com o meio ambiente, temos relatos que evidenciam o dia a dia
dessas trabalhadoras que sobrevivem perante os ciclos das águas. Ao mesmo tempo em que se
auto definem livres e independentes, estão “algemadas” ao ambiente e no trabalho com as
iscas, chegando a ficar até 10 horas dentro da água. As pescadoras descrevem a atividade
extremamente exaustiva e os ambientes perigosos, mas que, no entanto, lhes proporciona
sobrevivência.
Desde 2012 a Ecoa atua como parceira do Ministério Público do Trabalho de
Mato Grosso do Sul (MPT/MS) na distribuição de macacões impermeáveis
(EPIs) para coletores de iscas no Pantanal. Em sua maioria mulheres, que
sofriam com diversos tipos de doença devido a exposição constante a
umidade. Ataques de animais também passaram a ser evitados com a
chegada dos equipamentos de proteção individual. As famílias, são
acompanhadas de perto pelo diretor-presidente da Ecoa, André Luiz
Siqueira. Por serem consideradas grupos sociais muito vulneráveis, a Ecoa
desenvolve ações que levam até essas pessoas instituições públicas,
ordenadores de direito e instituições de pesquisa para que tenham acesso
a direitos básicos como saúde e educação53
. (ECOA, 2018) Grifo do autor.
O desconhecimento e a falta de recursos para o investimento em equipamentos de
segurança, expôs a categoria ao longo dos anos a diversos acidentes e históricos de mortes de
trabalhadoras. Em suas memórias há marcas de perdas e dores que a arte pesqueira lhes
proporciona na luta pela sobrevivência no Pantanal. É salutar desenvolver ações de proteção
com essas comunidades que vivem longe da urbanidade, mas não longe dos seus direitos, que
devem ser preservados.
Segundo Amiden (2017):
Os conhecimentos adquiridos e compartilhados sobre a coleta de isca viva,
produção de alimentos e artesanato representam o fortalecimento das
relações sociais entre as ribeirinhas da região, que juntas vivem a luta pelo
auxílio das políticas públicas e garantia de seus direitos. O empoderamento
53
A reportagem intitulada: Qual a importância dos macacões impermeáveis para os/as isqueiros/as do Pantanal?
Publicada no site do ECOA no dia 07/12/2018 destaca a importância da utilização de equipamentos de segurança
pelas trabalhadoras, busca diminuir os risco de acidentes ao desenvolver as atividades laborias. Cf:
<http://ecoa.org.br/importancia-dos-equipamentos-deprotecao-individual-para-isqueiros-do-pantanal/>. Acesso em 15/12/2018, 13h.
159
dessas mulheres nasce para subverter o ciclo imposto, o cotidiano de
impiedosas eternidades, pois, ainda têm em sua independência algemas que
as condicionam para situações rotineiras marcadas pela insalubridade, com a
falta de assistência médica e moradia adequada, além da precariedade do
ensino básico. (AMIDEN, Iasmim. 2017).
Relevante destacar que o empoderamento das pescadoras profissionais se dá,
sobretudo, pelo viés financeiro, pela aquisição da carteira de pesca e reconhecimento do
profissional da pesca, ultrapassando a ideia preconceituosa de que são simples ajudante ou
auxiliar de seus esposos. É recorrente em suas falas, o orgulho por poderem financiar um
equipamento de pesca, barco, motor ou lancha pesqueira em seus próprios nomes e receber os
auxílios e benefícios, tornando-se independentes socialmente e profissionalmente.
Ao longo desse capítulo analisamos a participação das mulheres frente às colônias de
pesca, o entendimento do que é uma representação sindical e ainda aspectos ligados a saúde e
ao trabalho das mulheres. Ao nosso ver essas temáticas estão interligadas, pois é a partir da
compreensão que elas possuem do sistema de representação da colônia e da preservação dos
seus direitos trabalhistas e, consequentemente, previdenciários que elas se veem reconhecidas
na sociedade. Fica evidente que ainda precisamos avançar muito nas questões de organização
e participação em movimentos de lutas sindicais e por direitos das pescadoras em Mato
Grosso do Sul. A partir de constatações, análises de estudos e pesquisas desenvolvidas em
regiões no Nordeste54
brasileiro observa-se que, nossas pescadoras não participam
efetivamente das lutas femininas para a garantia de seus direitos, afirmamos que ainda
engatinhamos nesse processo de organização e participação feminina. Cito análises de estudos
realizados no Estado do Nordeste, devido à inexistência de estudos voltados para a categoria
feminina no Estado de Mato Grosso do Sul.
Tratar as relações de gênero no mundo da pesca é transitar em espaço delimitado e
imerso em simbologias que colocam homens e mulheres em posições opostas. Onde homens
pescam nos rios em seus barcos e lanchas pesqueiras, e as mulheres nas margens dos rios ou
em lagoas, com suas canoas e/ou em pequenas embarcações. São raras as mulheres que se
54
O Núcleo de Pesquisa - Desenvolvimento e Sociedade - tem desenvolvido nos últimos sete anos vários estudos
focados na problematização sobre a invisibilidade da mulher no mundo do trabalho, especialmente o universo da
pesca artesanal no Brasil. Desde 2006 a equipe de pesquisadoras/es dos projetos Conflito de Gênero no
Cotidiano da Comunidade Costeira A Ver-o-Mar e Pescando Pescadores: Políticas Públicas e Extensão
Pesqueira(Projetos elaborados por professoras/es do POSMEX - Programa de Pós-Graduação em Extensão
Rural e Desenvolvimento Local), em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Pernambuco, contemplados em Editais pelo CNPq. (Pesquisas que contribuíram no
fortalecimento do Grupo de Pesquisa - Desenvolvimento e Sociedade) priorizou entre seus objetivos contribuir
no debate sobre gênero numa perspectiva da “feminização” da pobreza especialmente nas relações de trabalho
que envolve a pesca artesanal no Brasil. In: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. 30 Anos de
Registro de Pesca para as Mulheres. Seminário na UFRPE - Recife, 2009, p.1.
160
aventuram a pilotar grandes embarcações e conduzir lanchas pesqueiras, mas estão lá, para
desenvolver todas as atividades que o ofício solicita.
É um espaço marcado pela heteronormatividade explícita, visível na demarcação das
narrativas e delimitadas nas obrigações. Aos homens competem as grandes pescarias, já as
competências das mulheres são marcadas primeiramente pela dedicação integral dos
interesses da família, da educação dos filhos, do preparo das refeições, entre outras atividades
relacionadas à pesca ou ao lar. Ao homem compete à conservação das embarcações, a
confecção de tarrafas para a coleta de iscas e a comercialização do grande pescado, já a
mulher, a venda de iscas ou peixes em suas casas ou em comércios locais.
Assim, seguimos com a pesquisa historiando, no quarto capítulo, essas relações entre
a história das mulheres pescadoras e o lugar, o meio e os modos de vida. Buscando evidenciar
as continuidades ou descontinuidades do ofício pesqueiro pelas filhas e filhos de pescadores e
por fim os silêncios na historiografia regional em relação a essa categoria de trabalhadoras.
161
Capítulo 4 - Mulheres Pescadoras: Para Além de Uma História Feminina na Pesca
Mulher batalhadora,
Mulher organizadora,
Que pesca seu pescado,
Que vive de seu trabalho,
Que enche de orgulho,
O nosso grande estado.
Mulher de alegria,
Mulher de harmonia,
É bom viver com você,
E com sua pescaria.
(Poesia à Mulher Pescadora/José Anderson da Silva e Jeverson Cavalcante
da Silva).
162
Introdução
Assim como o poema de José Anderson e Jeverson - posto como epígrafe desse
capítulo - exalta a mulher pescadora, também as narrativas colhidas em nossa pesquisa
revelam um discurso recorrente afirmativo de auto valorização. São falas de mulheres
pescadoras do Estado de Mato Grosso do Sul que constroem uma história no mundo do
trabalho.
A esse respeito, Bosi (1994) afirma que:
A análise do cotidiano mostra que a relação entre essas duas formas de
memória é, não raro, conflitiva. Na medida em que a vida psicológica entra
na bitola dos hábitos, e move-se para a ação e para os conhecimentos úteis
ao trabalho social, restaria pouca margem para o devaneio para onde flui a
evocação espontânea das imagens, posta entre a vigília e o sonho. (BOSI,
1994, p. 48).
O cotidiano dessas mulheres pescadoras nos proporcionou conhecer e visibilizar
histórias de trabalhadoras do mundo rural, do mundo Pantaneiro e da trajetória de
trabalhadoras, que em nome da sobrevivência, se aventuram em lugares milenarmente
dominado pelos homens. Chegam como ajudantes e logo se tornam profissionais, registradas
e reconhecidas pela categoria, como parte importante do processo pesqueiro no Estado.
Nesse capítulo discutiremos trajetórias, aprendizados e projeções futuras das
mulheres pescadoras que lutam dia a dia para exercerem a arte pesqueira e garantir o direito
ao trabalho, ao território e ao lar.
4.1 – O Rio e a Casa: O Trabalho Profissional Artesanal
Pensando na questão escolar, Shirlei (2017) destaca que estudou até o primeiro ano
do ensino médio: “estudei, estudava à noite, eu trabalhava no restaurante ali, trabalhava até
umas quatro horas da tarde, eu fiz o EJA55
”. Grande parte das pescadoras com idade hoje
entre 50 e 60 anos não foram alfabetizadas, e as entre 30 a 40 anos não frequentaram o Ensino
Médio. A jornada de trabalho das mulheres chega a ultrapassar 10 horas diárias no rio. Ao ser
questionada se gostaria que as filhas seguissem o ramo pesqueiro, Shirlei (2017) responde,
enfática: "Não! eu falo para elas, eu quero que elas vem para poder passear, eu tenho três (3)
55
EJA: Educação de Jovens e Adultos.
163
meninas, uma tem sete (7) anos, outra cinco (5) anos e a outra tem doze (12), porque assim,
pescar é bom, mas é uma coisa que eu faço, porque dependo disso! Antes era um lazer, agora
não!" (Miranda, 16/01/2017)
As pescadoras como Shirlei, iniciam a vida pesqueira profissional após tentar outros
caminhos, como cozinheira. A pescaria era apenas uma “diversão”, no entanto, a necessidade
a faz buscar esse novo caminho, que não deseja as suas filhas.
Kirla Anderson (2007) em seu texto Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço
e tempo entre mulheres de famílias de pescadores, destaca que as mulheres têm uma grande
preocupação com a instrução escolar visando sempre:
A melhoria da qualidade de vida é pensada, não mais como a continuidade
do trabalho da pesca para os filhos. De acordo com Fátima, a pesca é uma
atividade incerta: “A pesca é uma atividade incerta, porque não tem seguro
de nada. Não sabe o dia de sair, nem de chegar. Se chega vivo, se vai pegar
peixe... É mesmo que uma aventura”. É por isso que desejam para os filhos
outras atividades, de preferência no mercado formal, o que pode ser
conseguido (segundo pensam) pela dedicação aos estudos. Esses “estudos”,
talvez a marca, o ícone mais representativo – até como de difícil alcance) de
todo esse processo que procurei compreender e traduzir, como é possível
fazê-lo, neste trabalho. (ANDERSON, 2007. p. 110).
Anteriormente, os filhos eram a garantia de força de trabalho para o sustento da
família, na contemporaneidade, os filhos não são utilizados dessa maneira. As famílias
preferem que os filhos busquem melhorias em sua qualidade de vida com a instrução escolar,
fala essa quase consensual nas entrevistas. As pescadoras mais idosas não tiveram a
oportunidade para estudar, já as mais jovens não concluíram o ensino médio.
A inclusão da categoria pescadora nos avanços trabalhistas e, por extensão, a
possibilidades de acesso a seguros como defeso, doença e aposentadoria, contribui para que as
pescadoras possibilitem aos filhos a permanência no espaço escolar. Contudo, em regiões
mais afastadas das cidades, os estudos findam no último ano do Ensino Fundamental. Logo,
os filhos seguem a profissão dos pais e abandonam a escolarização.
De acordo com Michel de Certeau (1994) afirma que o homem mesmo envolvido em
um sistema plural “constrói modos de fazer” e se distingue de lugar para lugar, nesse sentido,
as pescadoras dominam um enorme conhecimento do meio adquirido pela própria experiência
de vida. A elas são relegados os cuidados com os filhos, os cuidados com a casa e somente
depois disso organizado, elas podem em à busca de sua vida profissional. Da rede de
entrevistadas, 7 de 8 iniciam o trabalho profissional na pesca, após os encaminhamentos dos
filhos na vida escolar, pois não podem acampar e deixar os filhos sozinhos na cidade, no
164
período entre os 6 aos 13 anos das crianças, as mães pescadoras, ficam muito ligadas aos
espaços domésticos e a pesca, não é tão ativa.
A economia feminista questiona o conceito restrito do trabalho, atividade econômica,
considerando o trabalho de forma mais abrangente, incluindo o mercado informal, o trabalho
doméstico, a divisão sexual do trabalho na família, e integram a reprodução como
fundamental à nossa existência, incorporando saúde, educação, dentre outros relacionados à
economia.
Nalu Faria (2011) em seu texto Mulheres Rurais na economia solidária56
, destaca
que:
Ainda é muito presente no cotidiano dos grupos de mulheres a visão de que
há um longo percurso para que se construa uma maior autonomia e que
possibilite as mulheres vencerem os obstáculos para uma atuação no
conjunto dos espaços da economia rural. Um desses limites é interferência
do trabalho doméstico e de cuidados das crianças na sua disponibilidade para
o trabalho produtivo e para a participação política. Mesmo sem ter no
mapeamento os dados em relação ao trabalho doméstico, os outros dados
existentes sobre a jornada de trabalho das mulheres e o conhecimento a
partir da percepção da experiência cotidiana indicam a centralidade desse
tema. É possível afirmar que um desafio fundamental é colocar na agenda a
necessidade de que o trabalho doméstico e de cuidados devem ser uma
responsabilidade compartilhada. Portanto há que se buscar formas de
socialização de uma parte desse trabalho e que ele seja assumido também
pelos homens. (FARIA, 2011, p.50).
As mulheres pescadoras constroem autonomias, mesmo que ainda frágeis e
pequenas, no entanto, representa muito para elas, pois ao se “desligarem” da vida doméstica,
ganham visibilidades no mundo do trabalho ao lutarem por direitos iguais, ao conquistarem
direitos trabalhistas e previdenciários. A particularidade da pesca, se dá pelo fato de que o
período pesqueiro gera em torno de oito (8) meses de trabalho no rio e quatro (4) meses de
defeso. Nesse período de pesca “aberta” as mulheres utilizam grande parte dos seus dias nos
rios, assim os cuidados com a casa ficam em segundo plano, no entanto, ainda é “obrigação”
delas. São elas que cozinham e preparam os alimentos, são elas que cuidam das roupas e dos
afazeres domésticos.
No texto, Gênero, história das mulheres e história social (2007)57
, a autora destaca o
papel importante das pesquisas relacionadas às mulheres:
56
BUTTO, Andrea (Org.) e DANTAS, Isolda (Org.), “Autonomia e cidadania: políticas de organização
produtiva para as mulheres no meio rural,” Curadoria Enap. Disponível em: < https://exposicao.enap.gov.br/items/show/245>. Acesso em 26/10/2018, às 16h. 57
Texto traduzido por Ricardo Augusto Vieira - Mestrando em Filosofia/Unicamp.
165
As mulheres como atores da história, suas atividades, suas diferenças de
raça, de classe e de origem nacional, suas concepções de si e do mundo ao
redor são, de agora em diante, fatos da história. Este processo de reabilitação
teve um grande peso não somente no desenvolvimento geral dos objetos da
história, mas também na formação da consciência feminista e numa maior
compreensão, por parte do público, da desigualdade dos sexos. A introdução
e a propagação nas obras históricas do conceito de gênero enquanto
categoria socialmente construída foi um questionamento eficaz do
determinismo biológico. Este conceito reforçou a comparação e o estudo das
variações e dos processos; através da sua utilização na desconstrução,
chamou a nossa atenção para as relações de poder. (TILLY, 2007, 59-60).
Assim, analisar essas relações de poder, observar a construção dessa história ao
longo dos tempo e, principalmente, em diálogo com autoras como: Michelle Perrot, Joan
Scott, Joana Maria Pedro, Maria Izilda Mattos, Margareth Rago, Ana Maria Colling entre
outras pesquisadoras, nos permite uma releitura do passado ao visibilizar narrativas
entremeadas de relações de poder, dominação e de silenciamento, enfim, reflexões de
mulheres protagonistas de sua história.
Assim destacamos a necessidade de estudar as narrativas de mulheres pescadoras, o
seu cotidiano, suas marcas laborais, o seu cansaço físico, suas lutas, conquistas e também os
perigos adversos advindos da natureza no campo de trabalho. Em nossa pesquisa, destacamos
que as mulheres são as principais provedoras do lar, ou seja, o trabalho com a pesca gera mais
da metade da renda da família. Por conseguinte, para obterem êxito, são submetidas a
jornadas que ultrapassam dez (10) horas de trabalho dentro do rio ou da lagoa, para realizar a
coleta de iscas vivas e ou a pescaria.
Ao falar da sua casa, Orlinda (2017) nos disse que sempre a deixa limpa e
perfumada, “não é porque sou pescadora, que minha casa tem que cheirar peixe”. Há um
padrão nas casas das pescadoras entrevistadas, em todas as casas, há símbolos do ofício,
sendo embarcações, vara de pesca no telhado, motor de polpa na sala de estar, tanques e
galões de gasolina nas varandas. Demonstra que preza pela organização da casa durante o
período de pesca, e segundo ela quando está trabalhando não se importa de sair e não estar
com todos os afazeres domésticos em ordem.
Orlinda (2017), orgulha-se, ao demonstrar na fotografia abaixo, o seu “troféu” nesse
caso o peixe pintado com um peso em média de dez quilos, fruto de um ótimo dia de trabalho,
a imagem foi produzida na varanda dos fundos da casa da pescadora.
166
IMAGEM 28: Fotografia de Orlinda
FONTE: Arquivo pessoal de Orlinda, cedida para utilização nessa pesquisa, s/d.
Ao fundo da imagem, temos um fogão a lenha, ao lado direito um freezer, e ainda
uma balança em cima de uma mesinha de madeira, um gancho de ferro na vida do telhado.
Assim, é a configuração de grande parte das casas das pescadoras, apetrechos do ofício fazem
parte da decoração do lar.
Ao questioná-la sobre sua aprendizagem no ramo pesqueiro, ela responde:
[...] Eu já sabia sim um pouquinho, porque a gente falar que é mirandense já
aprende alguma coisa desde o começo (criança), eu já sabia. Mas não bem
por dentro da pescaria como que era, só que dai aprendi comecei mexendo
com iscas, dai nós já íamos para o rio também, já fomos aprendendo
devagarzinho as coisas e agora sei de tudo [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
A pescadora, portanto, antes mesmo de conhecer o esposo, tinha seu cotidiano
marcado pela presença da pesca, algo comum, segundo ela para quem mora na cidade de
Miranda-MS. Isto porque grande parte da população tem como geração de renda a pesca de
peixe e de iscas vivas. Seu aprendizado foi aprimorado a partir do casamento, sendo que o
ofício pesqueiro nessa região inicia-se na infância e que se mantém com o passar do tempo e
167
fases da vida das pessoas. De alguma forma, a criança aprende com a coletividade, refletindo
o cotidiano estudado e embasado em Certeau (2008), cujo conjunto de obrigações aprendidas
naquele processo, se torna “natural”, entre os familiares.
Dialogando com Diegues (1983), Motta-Maués (1993) e Maldonado (1993),
destacamos que a organização social da pesca baseia-se em saberes tradicionais, passados
oralmente de geração em geração, no ambiente pesqueiro. São aprendizados com tecnologias
de construção naval, instrumental de captura do pescado, organização da força de trabalho e
ainda estratégias de comercialização. Em meio a esse universo encontra-se o espaço da casa,
dominado por símbolos da pesca.
No ciclo de desenvolvimento das famílias, alguns filhos aparecem nas narrativas
como trabalhadores da pesca ou próximos dela, a exemplo do trabalho nos hotéis
pesqueiros. A profissão da pesca geralmente é passada de pai para filhos, no caso da
pescadora Orlinda (2017) observamos que, das três filhas, duas são pescadoras profissionais.
Muitos pais e mães não querem essa profissão para seus filhos, entretanto, eles seguem a
profissão dos pais. Isto porque a atividade da pesca se organiza por laços de amizade e
parentesco. Leitão (1997) destaca que é um aprendizado oral-visual, em que as funções por
sexo e por idade são critérios de divisão sexual do trabalho, classificação e distribuição das
atividades.
Ao perguntar sobre os filhos, Orlinda (2017) afirma:
"tenho! sou mãe de quatro (4) filhas, uma falecida. Viva tenho três (3) só
que é tudo criada já". (são do ramo da pesca?) "São, tem duas que é, uma
caçula que mora aqui e a outra que mora no Salobra, elas são profissional
também, pescadora profissional! só tem uma que mora na fazenda que não é!
mas o restante também é [...] É na zona rural há 18km daqui. Só que lá é
mais Pantanal do que aqui, que lá tem hotel na beira do rio, pesqueiro
mesmo por lá, então só lá morei 11 anos . Também pesquei bastante
lá, agora estamos aqui em Miranda pescando aqui até quando Deus quiser
[...](MIRANDA, 16/01/2017).
A hereditariedade da profissão é muito recorrente entre as pescadoras, todas as
trabalhadoras narram estas ligações familiares. Grande parte das pescadoras primam por
destacar que há muitas pescadoras documentadas, porém as que exercem a profissão são
poucas. Esse fato também foi observado durante a minha pesquisa de mestrado (2013),
detalhe que não agrada a categoria de trabalho, pois não reconhece quem de fato pratica a
profissão.
Segundo Orlinda, muitas mulheres, além de pescarem pilotam lanchas e barcos:
168
Pilotam para turistas, minha sobrinha, só pilota para família também! Dai
tenho uma amiga, uma conhecida, acho que ela tem até, a coisa dela no
facebook (página de anúncio) que ela é piloteira lá de Salobra [...] aquela ali,
ela pesca, ela pilota faz de tudo. Tem bastante piloteira em Salobra tem
bastante mulher pescadora mesmo que sai no rio, que pesca ali você vê
bastante mulher pescadora ali [...] (MIRANDA, 16/01/2017)
Para a piloteira e pescadora Shirlei (2017) que trabalha no turismo na região
pantaneira, as mulheres que atendem turistas possuem um diferencial em relação aos homens:
[...] A mulher é atenciosa, tem mais paciência, não é que nem os
homens, que tem homem quem vem e não tem tanta paciência que nem a
mulher. Então ela pilota, pilota mais para família, minha sobrinha pilota
mais para família, ela não vai assim quando é só homem ela não vai, quando
é família, ela vai, agora a outra, ela não! Ela pilota para o que
aparecer. (MIRANDA, 16/01/2017).
Espera-se esse comportamento das mulheres, não como uma característica nata,
trata-se do resultado do processo de socialização de mulheres e homens, característica comum
em todas as profissões. Foucault (2010) na obra Vigiar e Punir, detalha que:
[…] o poder produz saber; poder e saber estão diretamente implicados; não
há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber;
também não há saber sem que haja ou se constituam, ao mesmo tempo,
relações de poder. Temos antes que admitir que o poder produz saber (…);
que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder
sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo, relações de poder. (…)
Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria
um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas
que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos
possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 2010, p.30 ).
Assim, seguindo o autor, compreendemos que, o conhecimento é oriundo de luta de
poder, e o discurso é um ponto importante para observar os fatores geradores de poder. Logo,
subjetivamente, Orlinda (2017) enfatiza que, a sobrinha só pesca para famílias, já a “outra”,
pilota para quem aparecer, independente se é só com homens ou não. Outro detalhe, está
relacionado às questões de docilidade ligada à mulher, ao afirmar que a mulher é mais
atenciosa, mais paciente que os homens que atendem o turismo local.
169
Na foto abaixo, observamos Orlinda (2017), pescando embarcada, no momento em
que fisga um peixe. Essa fotografia entre outras, ela demonstrou durante a entrevista, num
sentido de afirmar, “está aqui, sou pescadora de verdade”.
IMAGEM 29: Orlinda e seu pescado
FONTE: Fotografia digital cedida pela pescadora Orlinda (2017) para a realização dessa pesquisa S/D.
[...] é peixe grande, mas às vezes a gente pesca embarcada, tem mais
chance de pegar, agora de barranco é mais difícil, são peixinhos miúdos,
agora pra pegar pacu, dourado, esses peixes maiores e o pintado, tem que ser
na embarcação que dai a gente vai longe também. Porque aqui por perto
ficar beirando a ponte aqui não pega peixe bom, pega só esses peixinhos [...]
Até piranha é difícil pegar aqui pertinho, então a gente sobe ou desce o rio ai
para baixo, muitas vezes a gente sobe a noite para pescar e as vezes desce.
Mas é bom, é gostoso! É muito gostoso, pra mim que gosto muito, eu acho
muito gostoso [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
No período denominado por elas como o período da safra, principalmente nos meses
de março a outubro, o mínimo que se costuma pescar é entre 15 a 20 quilos por dia, no
entanto, esses números podem variar muito. Como a narrativa acima destaca, para se pescar
170
uma boa quantidade é preciso estar embarcada e acompanhar o movimento dos peixes.
Na experiência vivenciada pelas mulheres pescadoras, elas se empenham para garantir um
bom ano de pescaria conforme o movimento do pescado, muito conhecido, segundo elas (a
cor da água, o cheiro, a influência da lua, etc). Enfim, todo o processo lhes proporcionam
sensações de alegria, liberdade e satisfação ao pegar peixes e efetivar/produzir/ a carga do dia.
A pesca desempenha uma função preponderante para a vida das famílias pescadoras,
que além de assegurar a manutenção socioeconômica do lar, além de uma sociabilidade que se
estende por tempos e lugares, contribui para a aquisição de bens e investimentos futuros. Há
uma prática de venda no domicílio, ao questionar se vende para atravessadores, a mulher
responde:
[...] Não, nós vendemos em casa mesmo, nós vamos na florestal e dá entrada
no estoque, dai nós lança a nota e já fica aqui e nós vendemos em casa. Nós
temos os clientes que já vem em casa, que já tem até plaquinha ali de venda
ali em frente, daí as pessoas que passa ali e vê já da uma chegadinha aqui,
tem cliente de fora que já sabe que a gente vende, tem de Bodoquena, de
Campo Grande, caminhoneiro que é conhecido passa aqui para comprar o
peixe. Já sabem, agora peixe grande assim que nem pintado, já é mais difícil
de vender, só que a gente vende na casa de isca aonde compra na peixaria,
no Zero Hora ali, só que tudo da negócio não fica sem vender não, tudo que
entra é bem vindo, é vendido [...] (Miranda, 16/01/2017).
Praticamente todas as pescadoras comercializam os pescados em suas casas, uma
pratica comum nas regiões pantaneiras. A primeira burocracia para a emissão da nota fiscal do
pequeno produtor é a entrada e a fiscalização realizada pela Polícia Ambiental, a qual analisa
a procedência, ou seja, se foi pescado dentro das regras legais, e então está liberada para a
venda ao consumidor ou aos comércios de peixes. Uma questão destacável na narrativa da
pescadora Orlinda (2017) é a venda do peixe de pequeno porte:
[...] vende mais o peixe pequeno, vende mais esses bagres, piranhas, [...] a
gente vende bem mesmo, quando a gente pega. Agora pintado meio menor
assim que da medida, os mais pequenos saí bem. Agora aqueles bem
grandões são mais difíceis de vender, muitas vezes são duas as pessoas na
casa, ai não vai comprar um baita peixão. Fica mais difícil vender e não pode
cortar, que para cortar tem que pedir licença, tem que ter autorização pra
cortar, nem a cabeça do peixe não pode tirar, se for vender, vai querer um
peixe inteiro? Você vai querer só o corpo, e eu não posso cortar pra vender
para você, tem que vender inteirinho do jeito que está, para ver que não está
malhado, que não está fora da medida também, tem que está inteirinho com a
cabeça. É assim que funciona, pra gente cortar um peixinho tem que ter
autorização da florestal. Eu tenho peixe lá em casa, não posso vender ele
cortado [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
171
As regras são legítimas, entretanto não correspondem à realidade da comunidade
pescadora estudada, pois conforme narrativas anteriores, todo pescado tirado do rio vende e
tem mercado. Agora, os sistemas de controle são rígidos quanto a questão da pesca predatória,
vender peixes cortados e ilegal, pois ao cortar, perde as características e comprometendo a
fiscalização, como se foi pescado de anzol ou de equipamento proibido como a rede, que ao
utilizar tal equipamento, “malha” o peixe, ou seja, faz um marca característica. Nesse sentido,
somente peixarias devidamente fiscalizadas podem cortar e empacotar para vender em
menores porções. Ressaltamos a importância alimentar, econômica e cultural que os rios
pantaneiros representam na vida dos/as ribeirinhos/as, não apenas como um componente
indispensável no equilíbrio ambiental, mas como um ser vivo, enraizado em sua vida,
presentes na economia local e regional.
Acreditamos ser essa responsabilidade ambiental a principal motivação para muitas
famílias e comunidades, respeitarem e cumprirem as regras legais dos órgãos competentes de
defesa e de proteção da natureza. Sobre a fiscalização de seus espaços de trabalho, declaram
ser é necessário, pois é de onde provém a sobrevivência de geração para geração.
A fiscalização aqui é muito difícil, só se for por denúncia, para eles fiscalizar
o que acontece. Eu mesmo falo que é tranquilo, porque o povo em
Salobra mesmo nessa época que está fechada a pesca, o povo está correndo
de barco para baixo e para cima. Continua pescando normal do mesmo jeito.
Não respeita, é um, dois respeitando e o resto não? Só que isto fica difícil, o
pessoal que não respeita também porque agora está na época dos peixes estar
desovando, está aumentando, o pessoal vai e mata os peixinhos que está
nessa época. Quando abre a pesca as pessoas falam que o rio está ruim de
peixe, mas está ruim de peixe porque nessa época deles reproduzir
novamente, eles estão matando os peixes, ai não tem como. É preservar,
conservar, preservar! Que nem na beira do rio mesmo, muitas vezes as
pessoas que vai lá, leva aquele monte de sujeira, dai em vez de juntar tudo e
trazer de volta ou tirar fora do rio! Não, deixa tudo na beira do rio, tem vez
que aqui no rio está um lixão. A gente olha, chega está branco de lixo na
beira do rio, mas é a população, que muitos pensam que é só hoje que vai
precisar, mas tem que ver que isto daí é pra nós e depois é pros filhos e vai
pro netos, pros bisnetos, que a geração vai ficando. (MIRANDA,
16/01/2017).
Para as famílias ribeirinhas, a pesca é uma atividade intrínseca em suas vidas e está
presente em todos os momentos, em todas as estações que permeiam seu lugar de vivência,
contribuindo diretamente para a manutenção do modo de vida ribeirinho e passado de geração
em geração. Assim, o peixe é o alimento da preferência da população mirandense, em sua
narrativa evidencia que o maior consumo é de peixes com escama. Não nos esquecendo de
que as espécies de couro liso tem uma importância econômica maior, pois são considerados
172
peixes de primeira linha. A conscientização ambiental também está muito presente nas
narrativas, cobram e denunciam a falta de educação ambiental ao ver as margens dos rios
repleto de lixo e ainda, não compactuam com a pesca no período da piracema.
A pescadora segue narrando a importância da pesca para a sua família:
[...] já tenho meus filhos que são pescadores, dai já vem os netos
também, tem neto que depende de pesca também, e assim vai indo de
geração pra geração, vai indo nunca acaba. Então, por isso que a gente tem
que preservar esse raiozinho que tem ai, só que tem gente que não preserva
não, matam bastante jacaré no rio, época de cardume de peixe que da dó de
ver porque eles vão tirar filé, tira courinho, as vezes aqueles bichinhos está
até vivo. Eu já vi pacu passando pequeninho, tiraram o filézinho dele das
costas assim e soltaram o bichinho nadando, vivinho coitadinho. Só
o filézinho, judiação, faz falta de uma investigação da florestal. Que nem eu
falo assim: Se vir uma investigação casa por casa, já que fulano é pescador
então vamos lá, vamos conversar, vamos ver como que é o dia a dia, porque
tem gente que eu não sei como que faz que conseguem fazer um seguro, é
porque desde que a gente tenha carteira registrada a gente não pode fazer
seguro, e tem gente que tem carteira registrada e faz, eu não sei como que
funciona isto ai não! (MIRANDA, 16/01/2017).
Para Orlinda, as gerações dependem da pesca, por isso é preciso “cuidar” do rio para
o futuro, pois é ele quem “produz” o peixe, assim, em equilíbrio, é garantida a sobrevivência
no futuro. Sua narrativa vem carregada de sentimentos de injustiça com a natureza, pois ao
não respeitar e cumprir as regras, compromete o futuro dos ribeirinhos e pescadores.
Um momento de muita dor, descrito por Orlinda (2017), foi a perda da sua filha, um
momento em que segundo ela não recebeu um auxílio da colônia local:
[...] foi acidente de carro [...] ela estava indo pra fazenda com esposo dela,
dai o carro bateu nela, lá na Fundação Bradesco no trevo da Fundação,
[...] os dois morreram na hora, vai fazer três anos [...] ela estava grávida, era
pescadora também, ela era mais velha que a caçula, a segunda depois da
caçula, faz três anos agora que ela faleceu. Eu lembro como se fosse
hoje [...] difícil mesmo, eu tive até paralisia facial, depois que ela faleceu [...]
estava em casa quando fiquei sabendo que ela faleceu, ela acabou de sair
aqui de casa, ela estava em tratamento, pois estava com hemorragia por
causa da gestação. Porque ela não segurava o filho, ela ficava grávida, ai
com dois meses mais ou menos ela perdia o neném, ela estava em
tratamento, estava com 10 dias aqui em casa. Mas nem bem saiu demorou
um pouquinho ai soubemos da noticia que tinha acontecido um acidente com
ela. Só que não me falaram que ela tinha falecido, só falou que tinha
acontecido um acidente, meu velho em vez de me levar lá, me levou lá para
o hospital esperar lá no hospital. [...] É que eu não ia passar bem, mas graças
a Deus eu sou evangélica dai Deus me deu força, é me deu força pra resistir
tudo. Graças a Deus [...] Uma tragédia meu Deus, não é fácil, é difícil viu, eu
nunca mais me divirto assim, me distrai a cabeça no rio [...] É isso dai que
ajuda bastante também. É trás a paz a gente vai lá [...] eu falo para o meu
173
velho, é aonde eu mais queria ficar, longe do barulho assim, vai lá escuta
aquele silêncio, jacaré bufando, é passarinho cantando aquilo e ali distrai a
mente da gente [...](MIRANDA, 16/01/2017).
Um trauma retomado pela narradora, demonstrado em sua face, as marcas de uma
paralisia facial, após o choque emocional, que a fez parar a atividade pesqueira por um
período, no entanto, a pesca e o meio natural lhe trouxeram a força necessária para seguir sua
vida. Narra que o rio lhe traz paz para suportar a dor da perda de sua filha, que além da prática
do ofício no rio tem um significado também de distração. "[...] minha paixão é pescar; é muito
bom! É uma terapia na vida da gente isso daí, [...] trabalha tudo, com o corpo da gente e a
mente, é muito bom! [...] ". Ainda, ouvir os barulhos dos pássaros e dos jacarés, a faz distrair
das dores que a perda da filha lhe causou. Nesse sentido, a pesca retrata além de um simples
ofício, mas representa também uma terapia ocupacional.
Orlinda (2017) destaca que ao longo dos anos observou muitas mudanças no rio, que
influenciou a quantidade de peixes. Detalha, ainda, que o sucesso da temporada depende
muito da relação com o movimento das águas e da natureza: "[...] É que tem época que
quando tem enchente grande, que tem bastante água, ai é bom, agora quando não pega água
no rio, ai fica bem péssimo, fica bem ruim mesmo". Vai além das relações com a pesca
predatória debatidas pela sociedade, pois os conhecimentos vividos destacam que:
[...] mudou muita coisa, muitas vezes o pessoal fala: o lancheiro que está
acabando com os peixes. É o jacaré que acaba com peixe, mas não é não,
falar a pessoa tem que ver que o que acaba com peixe no rio é o arrozal. Só a
pessoa que pesca, que vê o tanto de peixe que morre e outro também [.....]
que prende, dai eles puxam a água pra lá, daí levam os alevinos para lá, que
dai as vezes os peixinhos, pacuzinhos desse tamanhinho, piauçu, quando
tiver colhendo arroz e a senhora quiser vai lá, da uma olhada aonde a
máquina passa, você vê a quantidade de peixinhos, filhotinhos que
fica [...] Muitas vezes fala: é o jacaré que acaba! Para a senhora saber a
verdade, tem jacaré coitado que muitas vez morre é de fome no rio. Porque
não é fácil eles pegar um peixe não. Que nem eu já vi o jacaré um dia
pescando, um jacaré fraquinho, [...] nos cortava peixe e jogava pra ele e ele
não tinha nem força para mastigar o peixe, de tão magro que estava. Eu falei:
ai passa fome e o povo culpa o bichinho que mata os peixes, que come os
peixes, o animal nem isso pega, passa fome [...] (MIRANDA, 16/01/2017).
Orlinda (2017), com seus aprendizados e com a vivência no rio, destaca que a falta
de peixes está atrelada à grande lavoura de arroz nessa região, pois ao utilizar a água do rio,
leva os alevinos que ficam presos nessas lavouras. No período da colheita, ela afirma que vê
muitos peixes sendo esmagados pela colheitadeira. No entanto, a “culpa” recai sobre os
174
jacarés ou aos pescadores/as que pescam em grandes embarcações. Seu olhar é embasado na
observação empírica, observada ao longo dos anos:
[...] pegam a água direto do rio, ai jogam lá, é nesse momento que os
peixes entram com a água e sai lá embaixo, mas têm muitos peixinhos que
ficam parados, ai não sai pra lá não. Porque entra para o meio do arroz, daí
quando a água abaixa eles se perderam deles (cardume) fica lá no meio preso
e é onde mata muito, milhões de peixe mesmo. Até o dono do arrozal um dia
nós estávamos lá pegando isca, pegando lambarizinho lá, dai ele veio com a
camisa, ele amarrou as mangas da camisa assim, e fez tipo um saco, sem
mentira nenhuma, um saco de pacuzinho e piauçu. Ele falou que tem demais,
a quantidade que quiser pegar é só ir ali acompanhar a máquina vai cortando
e os passarinhos vão comendo aqueles peixes [...] é judiação mesmo que dá
dó de ver [...] Muitas vezes pensa que é o jacaré, mas não é o jacaré que
acaba, às vezes nem culpa o pescador! Culpa mais o jacaré! (MIRANDA,
16/01/2017).
A categoria pesqueira traz conhecimento ligado ao meio ambiente, é uma voz que
denuncia o abuso ao meio ambiente, ligado principalmente ao capitalismo liberal, que torna as
mulheres dependentes desse sistema nocivo, que as vitimam, que as rebaixam entre outros
fatores. Assim, estar nesse ambiente, escutar essas narrativas de uma vivência, é
extremamente relevante nessa e em futuras discussões, principalmente nas questões ligadas às
formas de convívio entre o homem e a natureza. Essas vozes precisam ser ouvidas e
divulgadas, pois são narrativas carregadas de conhecimentos do lugar, dos movimentos e
trazem teorias que carecem ser valorizadas. As falas podem ser diversificadas entre si, cito,
como exemplo, as pescadoras e os lavradores, fala de um lugar, e nessa relação, o
conhecimento e a importância que cada um dá para com os cuidados com a natureza, é
primordial para projetos futuros. No caso da plantação de arroz é necessário o uso da água do
rio, nesse caso temos uma tensão entre as duas partes. Por um lado, Orlinda (2017) aponta a
falta de peixes ocasionada pela retirada de alevinos para as lavouras, por outro, os produtores
rurais culpam os pescadores que pescam grandes quantidades de peixes.
O reconhecimento do lugar, do movimento das águas, da presença de cardumes, das
mudanças climáticas, garante as pescadoras uma prática sustentável de sobrevivência no ramo
pesqueiro. É preciso respeitar essas experiências apreendidas e compartilhadas entre as
gerações, pois esses aprendizados possibilitam significados e ressignificação do que é ser
pescadora do/no Pantanal Sul-Mato-Grossense.
Orlinda (2017) demonstra esses conhecimentos ao descrever quando há peixe no rio:
175
Conheço quando tem e quando não tem peixe no rio, é conhecido, a gente vê
as ondas, os movimentos de peixe. Igual no rio hoje, a gente já sabe se vai
estar bom. Hoje tem peixe! E quando não está é um silêncio, a gente não vê
um peixinho pulando no rio. E já sabe que está ruim, tem dia que a gente não
trás nenhum bagre pra falar a verdade. Vai além de comprar isca, tem que
gastar com gasolina, ainda gasta com o que comer para levar, ai vem à
despesa R$: 70, 80 que tem que desembolsar. Não é fácil não! (MIRANDA,
16/01/2017).
Esses conhecimentos precisam ser praticados, pois há todo um investimento na
organização da pescaria, portanto, é preciso ter esse cuidado e usar seus conhecimentos
compartilhados pela comunidade pesqueira, visando não ter prejuízo num dia “errado” para a
pesca. Mesmo com todos esses conhecimentos, incertezas financeiras, as pescadoras
demonstram que são contra o possível fechamento da pesca.
[...] É verdade, falar que a gente tem que lutar por isso aí né, não deixar
fechar não! Não acabar, que é difícil e tem gente que só tira o sustento dai
mesmo, porque você vê Miranda, não tem uma indústria, não tem uma
fábrica, não tem nada, a não ser as fazendas em volta. Mais não são todos os
fazendeiros que empregam também, tem a quantidade de pessoas pra
trabalhar. Então dai é só pesca mesmo, a pesca é a salvação nossa, porque é
difícil! Difícil mesmo, e tem outra também, que nem eu, nós a partir dos 40
anos, quem o vai querer para trabalhar? Ninguém quer mais! (MIRANDA,
16/01/2017).
Há uma sombra tenebrosa entre as pescadoras: o fechamento definitivo da pesca. Isso
iria interferir no modo de vida como um todo, ademais, a profissão está relacionada ao
controle do tempo de trabalho, autonomia, proximidade com a família e a casa. As pescadoras
artesanais nasceram em famílias de pescadores e exercem a profissão ainda muito
precocemente, fazendo ter um apego pelo ofício. Possuem a visão de que o mercado de
trabalho é restritivo, além da falta de outras oportunidades de trabalho, a partir dos 40 anos de
idade, não seria fácil para inserir em novas frentes de trabalho, portanto, não só apego pela
profissão, mas por falta de opção de outras possibilidades nessa região que sobrevive do
movimento pesqueiro.
Nessas regiões pantaneiras, observamos através dessas narrativas e imagens, que as
pescadoras dão novas leituras às suas próprias realidades e trajetórias de vida. Realidade e
trajetórias únicas, que, por vezes, parecem fragmentadas, devido à diversidade de
histórias singulares e de extrema importância para a valorização dessas mulheres, que vivem
conflitos cotidianos, mas que seguem em uma narrativa individual, que no entanto, reflete a
narrativa coletiva, são memórias e traços de realidades de interesses da categoria, seja na
176
manutenção do trabalho, seja na preservação da natureza ou até mesmo na própria valorização
ao narrar, “sou pescadora de verdade”.
As mulheres pescadoras demonstram em suas narrativas, que suas histórias fazem
parte de um processo em construção constante, portanto o estudo da categoria constitui essa
gama de valores coletivamente compartilhados. As lutas e conquistas, inclusive das mulheres,
estão relacionadas com os aprendizados óbvios em suas trajetórias de vida e mais, suas
narrativas evidenciam a reivindicação de uma vida próspera e digna para seus filhos e para si
próprias. Há uma história ainda oculta que precisa ser visibilizada e narrada sobre as mulheres
pescadoras, com suas impressões e seus sentimentos sobre o meio ambiente, sobre o Estado,
os alcances das políticas públicas, da preservação da natureza, dos consentimentos, das
conquistas, das identidades, enfim.
O gênero e a história oral caminham juntos, parafraseando Passerini (2011), nesse
caso enquanto importante elemento na construção da identidade feminina, pois possibilita
evidenciar essas construções de uma história outra, com formas de resistência e que se fazem
presentes no cotidiano das mulheres pescadoras do Pantanal de Mato Grosso do Sul.
4.2 – Pantanal: O cotidiano das pescadoras
A pescadora Marilza (2017) destaca um ponto importante de análise: trata-se da
organização, da divisão e da apropriação do tempo que as mulheres pescadoras se organizam
no cotidiano. Observamos primeiramente que elas seguem uma lógica que legitima as
mulheres enquanto gestoras da sua natureza o que muitas vezes as subordinam nesse ambiente
capitalista e opressor. O tempo feminino das pescadoras de iscas está distribuído em
diferentes atividades, podemos afirmar que é um tempo fragmentado e compartimentado no
qual prevalece à sobreposição de trabalho e de tarefas cotidianas do lar, ou ainda do comércio
de iscas na própria residência.
177
IMAGEM 30: Canoa da senhora Marilza
FONTE: Fotografia digital produzida pela autora da pesquisa para utilização nessa pesquisa 10/12/2018.
Na fotografia acima, Marilza (2017) demostra a canoa que lhe rendeu prêmios na
competição de canoas e ainda o seu pequeno comércio de iscas vivas. Na varanda da casa,
nesse espaço pequeno, a canoa marca a casa da pescadora e comerciante de iscas vivas.
Descreve o dia a dia da pesca e salienta que muitas vezes retornam somente ao final do dia
aos seus lares, isso conforme o movimento de pescados, pois conforme a movimentação
turística ou de boa safra, retornam para a pesca noturna, momento propício devido ao silêncio
da noite. Ainda, destaca que o movimento do seu comércio de iscas em sua própria residência,
a faz organizar essa ida e vinda do rio.
Todas as pescadoras entrevistadas nesse estudo, descrevem com riquezas de detalhes
os passos para organizar as tarefas do dia, primeiramente levantam muito cedo, entre quatro a
cinco horas da manhã, arrumam a matula58
e logo após o café da manhã, seguem destino ao
rio ou lagoas para realizar a pescaria e/ou coleta de iscas vivas.
58
Matula: provisão de alimentos para a viagem, vocábulo muito utilizado por comunidades pantaneiras.
178
Pergunto se ao longo desse tempo de atuação na atividade pesqueira, ela havia
observado mudanças, tanto no rio como na paisagem e no jeito de pescar, ela responde:
Ah, mudou! Mudou muito. Mudou porque, mudou contra mim [...] e
transporte. Para nós que é pescador, foi difícil. Tem muito controle, ficou
caro também. E ficou mais difícil pra gente aqui não é? Quem vive nessa
luta aí, que a renda é pouco, de pescador, sabe. Aí você tem que pagar
imposto, pagar INSS, paga colônia, e ainda paga [...] O sindicato, força
sindical, e até que de primeiro não era tanto, agora já mudou mais ainda pra
nós, porque nós pagávamos três vezes só no ano. Agora não, nós temos que
pagar fevereiro, março, abril, maio, junho, julho o ano inteirinho. Pagando o
INSS, todo mês tem que pagar e se você não pagar vai correndo juros, então
pra dizer que ficou mais difícil ainda, pra aposentar [...] (CORUMBÁ,
16/01/2017).
Nesse momento Marilza relembra principalmente a questão do controle de venda de
iscas no que tange ao fato de que passou a ser obrigatória a retirada da nota fiscal para o
transporte entre municípios. Ela ainda, faz uma crítica à quantidade de impostos e tributos que
são necessários pagar para se ter o direito a uma aposentadoria de um salário mínimo, ou seja,
não compreende as questões burocráticas que anteriormente não se tinha. Ou seja, conforme
analisamos no segundo capítulo, as mudanças nas leis trabalhistas e previdenciárias foram
lentas e frágeis, e ao relatar sobre essas transformações que ocorreram ao longo dos anos,
destaca, que mesmo passando por diversos problemas de saúde, ainda necessita trabalhar em
média três anos para ter o direito de se aposentar.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a pesca é
reconhecidamente uma das atividades mais perigosas e coloca os pescadores em risco de
morte sete vezes mais que outros setores industriais juntos, sendo os naufrágios, condições
adversas do tempo e encontro com animais aquáticos perigosos, nessa região em especial há
muitos jacarés, cobras peçonhentas e piranhas, os principais causadores de acidentes
registrados.
Marilza (2017) descreve que a Marinha a multou, por tê-la visto transitar em seu
barco no rio, sem os equipamentos de segurança:
Que nem um dia o rapaz da Marinha que me pegaram no bote e
me multaram, ai eu fui lá, eu cheguei lá falei com ele assim: Eu vim aqui pra
ver. Mas dona Marilza! Porque ele me conhece já. Dona Marilza, eu sei que
a senhora sabe remar canoinha, mas agora barco a senhora estava sem salva-
vidas [risos] Eu falei: não era eu [risos] não era eu [risos]. Para nós que
está acostumada nisso daí, [...] acha que não é perigo, mas é perigoso.
(Corumbá, 16/01/2017).
179
Além dos perigos de naufrágio, há outros constantes perigos no dia a dia da pescaria,
conforme o relato da pescadora Marilza (2017) seguinte:
[...] Porque você pisa no jacaré, cobra venenosa, que pensa que não tem no
camalote [sic] e é o que tem. Muitas vezes já foram mordidos. Eu, graças a
Deus, não fui picada, mas já quase sabe? Quase mesmo, quantas vezes
cheguei de tacar a mão assim. Mas sou protegida por Deus, sempre Deus
olha por quem trabalha. Que a vida da gente, que se mata aí não é fácil não
viu, é arriscado [...] (CORUMBÁ, 16/01/2017).
Nessa narrativa, há uma crença apropriada ao destacar que, ser trabalhadora lhe dá a
proteção divina. Ou seja, nos seus vinte e seis anos de pescaria profissional, não houve
nenhum acidente de trabalho, tese de que “Deus protege quem trabalha”. Ainda falando sobre
as dificuldades enfrentadas pelas pescadoras, ressaltamos também a questão da saúde,
principalmente o trabalho delas com as iscas que é extremamente insalubre, pois, além de
obter vários ferimentos resultantes do contato acidental com as garras dos caranguejos, há a
longa e constante permanência junto à água.
Na esteira dessas reflexões, Marilza (2017) também pensa acerca da disponibilidade
da mulher, na busca e na persistência da arte do fazer pesqueiro:
[...] No começo eles achavam que não era lugar delas [risos], agora eles
estão vendo que as mulheres estão dando mais perseverança que os homens,
que tem um homem aí que não quer dar dureza assim. Você fala assim:
Vamos lá catar uma isca, não querem mais ir, mas pega ai duas, três
mulheres se elas vão! Por exemplo, a primeira vez como teve muitas
pescadoras aqui que não era, nunca tinha pegado em isca, foi a primeira vez
e já gostou. Já não quer mesmo ficar, quer ir! Entendeu, se pega as mulheres
vão rapidinhas, agora os homens, os homens é preguiçoso, não quer catar
isca não, é verdade, tem mulher guerreira aqui! (CORUMBÁ, 16/01/2017).
De maneira crítica, observa que as realizações das atividades obedecem a uma
frequência diária, pois há necessidade de trabalho contínuo e realizado mais de uma vez por
dia. Revela-se uma rotina apreendida e compartilhada entre as mulheres e essas atividades
diárias requerem das mulheres criatividades e negociações, porque, na figura de dona da casa,
ela vai ser a responsável pela manutenção da casa e do cuidado com as pessoas, já na lida é
uma negociação com as colegas de pesca. E finaliza sua narrativa afirmando que há uma
disponibilidade nata da mulher, diferenciada em relação ao homem, os denominam de
"preguiçosos".
Nesse sentido e em diálogo com o texto Pescador e marisqueira: identidades em
conflito, da autora Roseni Santana de Jesus (2015), se observa que:
180
O conhecimento adquirido pelos homens sobre a natação se estabelece
principalmente no imaginário dos moradores, como um fator que vai
caracterizar a pesca como atividade superior à mariscagem, ambiente que
abriga os que não precisam necessariamente saber nadar. Outro fator
extremamente relevante para se pensar a superioridade da pesca na
hierarquização das atividades exercidas na maré é o fato de que a água é
vista como algo que limpa o corpo, enquanto a lama suja. Neste imaginário
sexista secular, os homens personificados como uma figura superior não
podem ser inseridos em um espaço de natureza desordenada como se é
pensado o ambiente do manguezal. Em uma divisão de gênero, este espaço é
destinado, portanto as mulheres. (JESUS, 2015, p. 17).
Há uma diferença ao pescar no rio versus mar, pois a pesca no rio é com anzóis de
galho, varas e molinetes, já a pescaria em alto mar requer diferentes equipamentos como redes
e embarcações maiores equipadas com guinchos e assim por diante. Apesar dessas diferenças,
os conhecimentos de natação são necessários tanto em mar como em rios. A pescadora
Marilza (2017) destaca que não basta conhecer o rio e saber nadar, é preciso respeitá-lo para
ter a proteção divina.
Há uma constatação de hierarquia sexista histórica no mundo pesqueiro, segundo
Marilza (2017) há um número pequeno de homens que pescam iscas vivas, sendo uma prática
muito maior das mulheres. O homem, com suas grandes embarcações, dominam os grandes
rios e os mares, e as mulheres restringem-se as pequenas lagoas com suas pequenas canoas.
Umas das questões levantadas para a rede de entrevistas diz respeito ao preconceito.
Ao perguntar se em algum momento foram descriminadas pelos homens pescadores, Zeferina
(2017) me responde:
[...] não, não! Olha, eu vou falar para a senhora: eu já peguei jaú de 45
quilos. Eu não gosto de pescar no sábado, eu fui teimosa, eu não gosto de
pescar no barco, eu não vou pescar no sábado e vai o irmão desse (mostra o
filho) que era maior. Vamos pescar? Vamos! Ai fomos, eu e o filho, pescar,
saímos e ele (marido) ficou arrumando a tarrafa dele, eu fui com uma
filho meio pequeno assim. A isca era corumbinha, pequei e isquei a
corumbinha, soltei a linha tudo lá, quando a linha correu por baixo da canoa
o jaú já estava pego! Fui afundando ele e eu comecei a gritar e gritava,
gritava e gritava até que ele escutou para me ajudar. Pesou 45 quilos o jaú,
até que eu consegui tirar o jaú, o pessoal não queria acreditar. Nos vendemos
na cooperativa. A senhora lembra-se da cooperativa? A turma da cooperativa
quando pesou o jaú, perguntou? Foi você que pegou? O meu
esposo respondeu: Não foi ela. Aí falaram: Não foi ela, porque ela não ia
conseguir tirar um jaú desse. Falei , pois fui eu que matei, foi mesmo! Eu
não vou mentir. Pega muito peixe grande para lá, de vez enquanto a gente
pega pintado, jaú de 20 a 30 quilos de 35, 25 quilos, tem peixe grande, a
gente tem que ter linha boa para não escapar, agora igual ele que gosta de
pescar com a linha fina. Eu não! Eu só pesco com a linha 0100, porque se
181
não amolecer ele vem, é garantido pegar o peixe, ele já não, gosta de 080
agora eu não só pesco com 0100, para não correr o risco de perder o peixe
[...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).
Como se vê, existe um discurso machista em relação à atividade pesqueira
desenvolvida pelas mulheres. No caso específico de Zeferina, não acreditaram que foi ela a
pescadora do grande jaú. O peixe grande e valioso cabe ao homem pescar, a mulher cabe o
peixe pequeno, é mais que olhar a questão física, é o discurso das relações de poder. Contudo,
a pescadora responde a todos com descrições de suas conquistas, lutas e desafios. Ela utiliza
seus conhecimentos como a espessura da linha, o tipo de isca e a maneira de trabalhar o peixe
fisgado no anzol, visando cansá-lo para conseguir tirar da água. Esse movimento de pedir
ajuda para retirar o peixe grande, não demonstra fragilidade, devido essa ação ser corriqueira
entre os homens também.
Ao ser questionada sobre o olhar masculino acerca do trabalho das mulheres,
Zeferina (2017) destaca que:
[....] (pensa) olha, ai tem que ver não é? Porque tem mulher que eu falo para
a senhora: É igual eu. Eu falo que eu sou uma mulher que homem não
manda! Falo assim que homem que fala que não vai pescar quando está
chovendo, e eu não vou pescar? Eu vou pescar, eu ponho minha capa, vou
embora pescar. Tem vez os homens falam assim: Você vai? está
chovendo! Eu mesmo com chuva falo: nosso trabalho é pescaria, até ai eles
falam embora então, nós já pega e vai, a vida é corrida, os filhos está para a
escola. Mas eu tenho comigo, falo para a senhora assim: Que a gente vive
mais da pescaria mesmo, porque eu falo, porque, eu tiro comigo, porque as
vezes está chovendo. Parar? Não paro por causa da chuva, agora, a não ser
que, se tiver um temporal, se eu ver que está um temporal, porque ai eu estou
arriscando minha vida, ai eu não vou, eu não vou arriscar minha vida!
Não! Assim eu não vou não, mas se tiver uma garoinha como está assim
hoje, ai eu vou pescar todo dia, ai que pega o peixe [...]. (CORUMBÁ,
15/01/2017) (Grifo da autora).
Ao narrar "sou mulher que homem não manda", observamos uma afirmação de
ascensão do empoderamento feminino, um discurso empoderado que evidência mudanças e
transformações de uma minoria de mulheres no mundo. Demonstra que vive da pesca e sabe
das adversidades naturais, sabendo quando deve ir pescar e quando não é o momento de se
aventurar. Assim, afirma um auto poder sobre si e sobre seus atos, e não se permite aceitar os
discursos masculinos de fragilidade por ser mulher.
Orlinda (2017) descreve no seu cotidiano, relações dinâmicas de convivência entre
pescadores homens e pescadoras mulheres, que retiram parte significativa de suas
182
subsistências socioeconômicas do rio. Nesse sentido, trago o diálogo sobre as relações
familiares e de reconhecimento das mulheres no ambiente de trabalho.
Nunca senti assim descriminada não, muitas vezes é mais homens, muitas
vezes é duas, três mulheres no meio dos homens pescando. É assim família,
agora as que mais pesca, são as mulheres que tem os maridos lancheiros,
essas ai pescam muito! Pesca mais também. Agora que exerce a profissão,
quando a pesca está aberta, elas somem nas lanchas com as famílias, agora
de barco, isto ai é mais pouco, as mulheres não são todas não! Bem pouco
mesmo, eu tenho uma irmã, tenho uma sobrinha que é tudo pescadora
também, mora em Salobra. Lá pescam também, eles acampam na época da
baixa, eles pescam de dia e pescam a noite, pilotam também
[...] (MIRANDA, 16/01/2017).
Sua fala incisiva destaca que há muitos(as) pescadores(as), contudo, os que pescam
de fato, são poucos. No entanto, traz um ponto importante que é a questão familiar, ou seja, as
mulheres dos pescadores proprietários de lanchas têm sempre a companhia das esposas e que
essas pescam de fato. A pescadora Vânia (2017) também descreve sobre o olhar masculino
em relação as mulheres ativas no trabalho pesqueiro, ela responde que:
[...] acho que é normal, já está normal já! Quando fala: pescador, nunca se
lembra da mulher. Mas eu acho normal, porque eu piloto barco para meu
marido [...] às vezes eu tenho que sair na lancha para trazer alguma coisa eu
piloto sozinha, eu não vejo problema nenhum por ser mulher, pelo contrário,
tem muito pescador que admira. Falam assim: puxa, eu convido minha
mulher e ela nunca vai, é um privilégio trabalhar com seu marido,
companheiro mesmo sendo lá no rio [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).
Mais uma vez percebe-se a naturalização da condição da mulher e a reprodução do
discurso de normalidade como um discurso aceito pelas mulheres. Mesmo narrando: "Quando
fala pescador, nunca lembra da mulher", há uma percepção descolada das práticas laborais,
pois observamos que as mulheres participam ativamente de todas as atividades extrativistas
locais, entre elas pilotagem de embarcações, da coleta de iscas vivas, de caranguejos e
principalmente na atividade da pescaria de peixes. Desse modo, a invisibilidade da mulher na
tradição pesqueira é reproduzida pelas mulheres locais, que replicam o discurso local das
comunidades. Muitas vezes, não visualizam um discurso masculinizado em suas falas, que
exclui as outras mulheres que não escolheram a pesca como atividade laboral e ainda se
sentem privilegiadas por exercer a profissão como seus companheiros.
As autoras Maneschy; Siqueira; Álvares (2012), em seu texto Pescadoras:
subordinação de gênero e empoderamento, afirmam que:
183
As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis –
econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das
comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso
porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local,
compreendendo que a pesca artesanal, como as demais atividades produtivas
não se mantêm por si sós, através dos laços mercantis. Ao contrário,
decorrem de um conjunto de funções e de relações, envolvem mulheres e
homens, tarefas associadas a saberes diversificados, a sociabilidades e a
espaços interempoderamento. (MANESCHY; SIQUEIRA; ÁLVARES,
2012, p.722)
Sendo assim, o empoderamento representa uma alteração radical nas estruturas que
reduzem essa posição subordinada que as mulheres ainda ocupam. Essas mulheres tornam-se
empoderadas por meio da tomada de decisões individuais que refletem nas ações coletivas e
consequentemente nas próprias mudanças. No Pantanal, essas mulheres exercem as atividades
com seus esposos, filhos e até mesmo com outras mulheres, no entanto, prevalece o trabalho
familiar.
Dialogando com Ana Alice Costa, em sua obra Gênero, Poder e Empoderamento das
mulheres, destacamos que:
Empoderamento é um neologismo que se refere ao ato de tornar-se o poder,
realizado por quem carece dele. O empoderamento das mulheres implica,
então, em garantir-lhes, os meios para que possam tornar-se a idéia e o ato, e
desse modo, consigam combater a discriminação de que são objeto e elevar
sua posição social. (COSTA, 2000, p.35).
Nesse sentido, as narradoras como Zeferina (2017) demonstram que empoderaram-se
a partir da prática do trabalho. Na contemporaneidade, essas transformações ocorridas na
condição feminina, é um ato de poder. Haja vista que, muitas mulheres não decidem sobre
suas vidas, por não se constituírem enquanto ativas e autônomas, não exercem e não
acumulam o poder, mas o reproduzem, para aqueles que, de fato, controlam o poder. Não
podemos deixar de apontar que essas pequenas parcelas de poder que lhes tocam e permitem
romper barreiras do patriarcado, ainda são tremendamente desiguais em relação à supremacia
masculina.
Então, Zeferina (2017) destaca que se sente realizada com sua profissão e com a sua
vida:
[...] Eu sou feliz com a pescaria [...] todos comigo lá pescando, só pescando,
porque viver na cidade não compensa, porque lá eu sou feliz, todos juntos
184
comigo lá, todos pescando, todos tranquilo, eu venho para a cidade ver as
coisas, às vezes eles vem juntos e voltamos juntos. Todos tranquilos, vamos
ficar, as vezes só vem (para a cidade) se for chamado, porque prefiro mexer
na pescaria, junto comigo, meu pai me criou na pescaria. Por que não pode
criar eles assim? Os meus não pode? Então, eles vão ficar assim, junto do
povo de pescaria, que vive junto comigo lá, tranquilo, eu sou muito feliz de
estar junto com meus filhos, quando é mais tarde, estou tranquilo [...] sou
muito feliz e muito [...] tranquilo [...] em paz com a natureza [...] a gente
com a carteira tudo em dia, a ambiental vê a carteira não mexe com a gente,
olha nossa carteira, tudo liberado, não tem nada assim de errado [...].
(CORUMBÁ, 15/01/2017).
Considerando esse processo de empoderamento da mulher, nesse estudo a mulher
pescadora, a matriarca Zeferina (2017) traz à tona uma nova concepção de poder, assumindo
formas democráticas, construindo novos mecanismos de responsabilidades coletivas, de
tomada de decisões e de responsabilidades compartilhadas. O empoderamento das mulheres
representa, portanto, um desafio às relações patriarcais dominantes, em especial dentro da
família e na manutenção dos seus privilégios de gênero. Empoderar-se, segundo Bourdieu
(2001) significa uma importante transformação da dominação tradicional dos homens sobre as
mulheres, pois oportuniza uma autonomia no que se refere ao controle de suas vidas,
autonomias, protagonismos, liberdades, enfim, na família, no trabalho ou na comunidade.
IMAGEM 31: Pescadora Zeferina
FONTE: Foto produzida em câmara Nikon, pela autora da pesquisa Corumbá, 15/01/2017.
Zeferina (2017) é moradora e pesca na região de:
185
[...] denominação “Barra” vem do fato desta comunidade localizar-se a
montante de Corumbá (MS), na margem esquerda do rio Paraguai, próximo
de onde recebe o rio São Lourenço, na divisa entre os estados de Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul. O acesso somente é possível por barco ou
avião, sendo que de barco o tempo de viagem é de mais de 26 horas partindo
de Corumbá, o centro urbano mais próximo. (ECOA).
A pescadora e ribeirinha Zeferina (2017), destaca que mora no “coração” do
Pantanal, numa comunidade de pescadores bem distante da cidade de Corumbá-MS. Além de
residir, é nessa região chamada São Lourenço que ela pesca:
[...] No taquarezinho para baixo é uma reserva, tem uma reserva até na boca
do motem [sic] Nós temos que pescar na boca do motem para baixo, porque
no rio Paraguai para cima também é uma reserva. Nós pescamos de Bela
Vista para cima, lá pode pescar também, para cima é uma reserva, a gente
não pode pescar na reserva de pesca. (CORUMBÁ, 15/01/2017).
Segundo o projeto ECOA59
, e também fato esse evidenciado na narrativa de Zeferina
(2017) nessa região, a comunidade:
É formada por 22 famílias, sendo que a maior parte delas vivia anteriormente
em elevados na margem direita do rio e de lá foram forçadas a sair na década
de 1990, para a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural
(RPPN). A partir de 2012/13 tiveram seus direitos parcialmente
reconhecidos com a emissão de um Termo de Autorização de Uso
Sustentável (TAUS), pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Neste
mesmo processo conseguiram a emissão de um TAUS coletivo para uma
antiga área comum na margem direita. Nela se refugiam e tem acesso à água
potável que lhes oferece a Serra do Amolar durante as grandes cheias. O
local tem o sugestivo nome de Aterro do Socorro. (ECOA).
Segundo a pesquisa60
de André Luiz Siqueira (2015):
Os conflitos desenham-se a partir dos limites territoriais das Áreas Naturais
Protegidas (AP), ou Unidades de Conservação, com as das populações
tradicionais locais, já que não existe apenas o da comunidade da Barra do
São Lourenço como revelado no presente estudo, e sim, comunidades como
59
ECOA: Ecologia e Ação é uma organização não governamental que surgiu em 1989, em Campo Grande,
capital de Mato Grosso do Sul, formada por um grupo de pesquisadores que atuam em diversos segmentos
profissionais, tais como: biologia, comunicação, arquitetura, ciências sociais, engenharia e educação. O principal
objetivo era, e ainda é, estabelecer um espaço para reflexão, formulações, debates, além de desenvolver projetos
e políticas públicas para a conservação ambiental e a sustentabilidade tanto no meio rural, quanto no meio
urbano. Cf.: <http://ecoa.org.br/ecoa-institucional/>. Acesso em: 18/06/2018, as 16h. 60
SIQUEIRA, André Luiz. Conflitos Socioambientais em Comunidades Tradicionais da Fronteira Brasil-
Bolívia e a Experiência de Implantação do Turismo de Base Sustentável como Alternativa de Renda na
Comunidade da Barra do São Lourenço. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em
Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal. 2015. Disponível
em: <http://riosvivos.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Disserta%C3%A7%C3%A3o_Andr%C3%A9_Luiz_Siqueira_Final_Setembro_2015.pdf>. Acesso em 18/06/2018, as 20h.
186
Paraguai-Mirim e São Francisco também passam por processos semelhantes.
Desta forma, o estudo seguiu na identificação do território e do conflito entre
os limites das UCs e os da comunidade local da Barra do São Lourenço,
sobre o quão impactante é a coerção e a proibição do território de um povo,
onde os gestores das unidades e o Estado brasileiro podem estar provocando
processos desastrosos para a cultura e a identidade brasileira – fronteiriça, ou
seja, o estudo demonstrou que na supressão das condições de existência e
manutenção de comunidades tradicionais como a da Barra do São Lourenço
é não entender minimante a fronteira e, além disso, é desconsiderar o
patrimônio cultural brasileiro. (SIQUEIRA, 2015, p. 28-29).
Ao descrever sobre as áreas de conservação, Zeferina (2017) destaca momentos de
tensão vivenciados pelas comunidades tradicionais. Comunidades que vivem exclusivamente
da pesca e da pequena agricultura familiar, são agora colocados em limites de preservação. Na
narrativa abaixo, Zeferina (2017) descreve o cotidiano das famílias dessa região:
[...] Todos os dias estamos no rio na minha canoa, é pegando isca para pegar
o pintado, é jogando a tarrafa. Tem vez que estamos pescando de canicinha
[sic]: põe uma graminha e quando está ruim de tarrafa, então a gente coloca
um galhinho, põe lá com o chimborézinho e pega o chimboré para pegar
pintado. A gente só vem aqui (Corumbá) quando vem trazer o peixe e
carregar o gelo e já voltamos, às vezes a gente nem vem. Ele (esposo) e o
filho vêm trazer o peixe, faz as compras, pega o gelo e leva para a gente,
pega anzol, linhada. Tem vez que dá é muito e tem que levar e gelo, nós
ficava esperando eles chegar para a gente continuar a pescaria, mas é na
pescaria direto, tendo gelo estamos pescando, fez a carga vem embora, às
vezes mesmo não fazendo a carga, tem que vim porque o gelo já acabou tem
de trazer o que está pego, todo dia no rio [...] (CORUMBÁ, 15/01/2017).
A pescadora detalha que todos os dias estão no rio pescando, seja isca ou pesca de
grandes peixes e que só vai à cidade para fazer compras, vender o pescado e obter gelo para
manter os peixes por um período de entre 15 a 30 dias. A questão da falta de energia elétrica
em áreas pantaneiras, faz com que esse movimento para buscar o gelo seja constante.
Anteriormente relembra o cotidiano pesqueiro e descreve sua memória do comércio de
pescado realizado por seu pai:
[...] Era de peixe seco que meu pai vendia, eu me lembro muito bem, eu era
mais pequena, mas eu lembro, meu pai vendia peixe seco, só que ele vendia
lá mesmo. Ele tinha um barquinho, só que não me lembro do nome que
tinha esse barquinho, ele ia para lá e levava o sal para meu pai, para fazer o
peixe seco e meu pai vendia esse peixe seco para esse barquinho, trazia o sal
e levava a compra que meu pai comprava, às vezes levava a encomenda que
meu pai pedia, era esse barquinho, eu era pequena assim (monstra a altura da
cintura). [...] Logo proibiu o peixe seco e até hoje não pode, a gente não
pode salgar o peixe mais, agora fala assim: não pode trazer peixe salgado,
187
nem nós lá podemos salgar também, é para o controle [...] (CORUMBÁ,
15/01/2017).
A pesca pantaneira possui essa particularidade com a questão de armazenamento do
pescado, uma necessidade constante das pescadoras e pescadores. A maioria das pescadoras
não conta com geradores de energia, freezer, enfim, é preciso ter gelo que é comprado a
quilômetros de distância da região de trabalho. Isso, muitas vezes, não possibilita
o congelamento do pescado, restringindo o tempo de pescaria, pois é preciso vender o
pescado e realizar a compra de gelo, e ainda providenciar outros materiais para prosseguir
com o trabalho. A questão energética leva essas mulheres a dependerem de gelo para guardar
o pescado, o que implica em riscos para a garantia da qualidade do produto ou até mesmo a
perda. Era comum em várias regiões a venda do peixe seco61
, a questão da pesca predatória
ocasionou uma legislação que proibisse esse tipo de comércio no Estado.
Conforme estudo do ECOA destaca que as "raízes genealógicas da comunidade é
caracterizada por uma mescla entre povos ancestrais da região como os índios da etnia
Guató e de antigos escravos". Zeferina (2017) narra que escolheu o lugar que nasceu para
construir sua história depois de casada:
[...] Fizemos uma casinha lá, por que a gente nasceu e criou lá e a gente não
desapega [...] nascemos e criamos lá, é no Pantanal mesmo. Lá é uma
comunidade e tem escola, nossas crianças estudam na escola lá, quando fala
da escola do São Lourenço, então nós temos uma escola lá, vivemos lá.
Desde março que meu pai faleceu ficou um terreno lá, minha mãe, tudo mora
lá. Ela já tem cento e poucos anos e mora lá, depois que o meu pai faleceu
ela ficou com a gente [...] meu pai morreu com quase 100 anos, tem uns
cinco anos que ele morreu, e ela está lá velhinha e aguenta ainda. Falo: vai
caí na canoa! Mas ela vai e quer teimar e dar um jeito, porque ela já está de
idade e eu só tenho ela, [...] mas nós não tínhamos nada lá, agora que nos
conseguimos uma escola para nós [...] (SILVA, 2017).
Abaixo temos duas imagens da tão sonhada escola, que foi uma grande alegria a sua
chegada na comunidade, pois reafirma a narrativa da pescadora Zeferina, que: “agora temos
até escola”, sendo que antes não tinha nada.
61
Lei nº 11.724 de 05/11/2004, estabelece no Art. 28. “No transporte oriundo da pesca comercial ou desportiva,
o pescado ao ser vistoriado não poderá estar sem cabeça, apresentar marcas de captura por petrechos proibidos
ou conter exemplares de tamanho inferior ao estabelecido no art. 14. Parágrafo único. A presença de quaisquer
das características a que se refere o caput, comprometerá toda a partida do pescado, sendo procedida a apreensão
do produto e lavrada a competente autuação”. Portanto, salgar o pescado compromete a caracterização e além do
mais, foge das normas sanitária no Estado de Mato Grosso do Sul. Cf.:
<http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/secoge/govato.nsf/fd8600de8a55c7fc04256b210079ce25/3aaf9d3a1b70c0dc04256f4900779136?OpenDocument>. Acesso em: 25/11/2018, às 16h.
188
IMAGEM 32: Escola Polo São Lourenço no período de vazante62
.
FONTE: Site ECOA – Fotografia: Patricia Zerlotti
IMAGEM 33: Escola Polo São Lourenço no período de vazante.
FONTE: ECOA – fotografia: Luiz Siqueira
62
Período da vazante: Após as cheias dos rios no Pantanal, inicia a vazante, que é o período no qual os leitos dos
rios baixam e começam a se formar “corixos” ou baías que retêm grande quantidade de peixes, esse fenômeno é
conhecido pelo nome de “lufada”, que servem de banquete às aves aquáticas concentradas na região. Cf.:
<http://www.pantanalecoturismo.tur.br/artigos.php> Acesso em: 10/12/2018, às 21h.
189
Observamos, ainda, um relato da educação familiar, principalmente voltada à
hereditariedade profissional. Zeferina (2017) foi ensinada nesse ambiente e não vê motivos
para que seus filhos deixem de seguir seus passos na atividade pesqueira. Para ela, viver nesse
ambiente vai além da questão da profissão, visto que representa a “tranquilidade” que na
cidade não se tem. Ela valoriza o bem estar que o ambiente natural lhe proporciona e evita
estar na urbanidade, pois a cidade lhe tira a tranquilidade.
Tem que ser pescador [...] eu sou pescador e não quero isso, passo o que
passar, vejo alguma coisa que passa, mas a gente é pescador! Não é falar
que sempre a gente pode ser mais cobrado, mas eu quero ser pescador e vou
ser até o dia que Deus quiser! Se Deus quiser [...](MIRANDA, 15/01/2017)
(Grifo da autora).
Esse pertencimento ao oficio e ao espaço, muito presente na narrativa das pescadoras
e existente na narrativa da pescadora Zeferina (2017), se distancia das demais pescadoras ao
afirmar que os filhos “tem que ser pescador”. Ela mesma se autodenomina pescador, no
gênero masculino, num sentido maior que da linguagem, representa o sentido de sua vida.
Não muda o discurso, mesmo ao passar por dificuldades ou por ser cobrada pelos órgãos de
fiscalização, não se vê e não vê os filhos em outra profissão, e nem outro lugar geográfico.
Refletir esse espaço em diálogo com a autora Ana Fani A. Carlos (2007), na obra O
lugar no/do mundo, compreende-se que:
A produção espacial realiza-se no plano do cotidiano e aparece nas formas
de apropriação, utilização e ocupação de um determinado lugar, num
momento específico e, revela-se pelo uso como produto da divisão social e
técnica do trabalho que produz uma morfologia espacial fragmentada e
hierarquizada. Uma vez que cada sujeito se situa num espaço, o lugar
permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto situações
vividas, revelando, no nível do cotidiano, os conflitos do mundo moderno
(CARLOS, 2007, p. 20).
O conceito de lugar apropria-se de um caráter subjetivo, uma vez que cada sujeito
traz uma experiência direta no seu espaço, somente com um comprometimento com o lugar é
que adquirimos pertencimento. O lugar reflete referências pessoais e familiares, o sistema de
valores e de crenças, a cultura e hereditariamente constroem uma paisagem no espaço
geográfico. Trata-se na realidade de espacialidades carregadas de afetividades que
desenvolvemos ao longo de nossas vidas e na convivência com o lugar e com a comunidade.
Conforme destaca o autor Milton Santos (2006, p. 212) “os lugares são vistos como
190
intermédio entre o mundo e o indivíduo”, ou seja, o indivíduo apropria-se do espaço
subjetivamente com uma carga de sentimentos, afetividades e pertencimentos do lugar.
Juntamente ao que afirma Zeferina (2017), a pescadora Marilza (2017) não se vê em
outra profissão, afirmando que, mesmo aposentada, praticará a pesca para a sua alimentação.
Segundo sua narrativa já teve chances de praticar outras atividades, no entanto, qualquer folga
estará no rio ou na lagoa, pois é uma de suas paixões. No entanto, Marilza (2017) compreende
que a cada dia há problemas que dificultam a prática pesqueira e incentiva os filhos buscarem
alternativas de renda para suas vidas.
Você vê que cada vez está ficando difícil, estão colocando mais dificuldades
no nosso trabalho. É verdade, então eles estão fazendo aquilo dali acho que
para, não sei não! Para acabar mesmo. Não sei! Olha que eu sei que pescaria
de primeiro era muito bom, ganhava dinheiro, ninguém tinha essa
dificuldade que está tendo agora viu! Está difícil viu! (Corumbá,
16/01/2017).
As pescadoras se sentem desrespeitadas quando sua identidade e modos de vida são
questionados por quem não as reconhece nesse universo de subsistência, no seu habitat
natural, nem mesmo com suas habilidades e/ou nossas necessidades do percurso no trabalho.
Ao mesmo tempo, se sentem vitimadas pelo excesso de burocracias e acreditam que o
governo o faz para acabar com a profissão. Assim, Marilza (2017) encerra sua narrativa,
destacando sua alegria, sua liberdade e sua realização com o seu fazer:
Eu sou muito feliz viu, graças a Deus, não tenho patrão [risos] Eu sou feliz,
no dia que eu quero ir eu vou, no dia que eu falar assim: Não vou! Ninguém
me tira de casa [risos]. Agora o dia que eu vou, ninguém me obriga não
[risos], mas é verdade, é bom ser patrão de você mesmo! Tem o seu, do
que você está sendo mandado pelos outro. É porque é obrigado a trabalhar
assim pra gente, não é qualquer um né, quem quer ter alguma coisa tem que
trabalhar agora aquele que não quer, ele vai ficar ai mesmo fazendo outro
tipo de coisa. (CORUMBÁ, 16/01/2017).
Para Beauvoir (1980), o trabalho pode propiciar a liberdade concreta à mulher. No
entanto, atualmente ele não representa a liberdade, sendo que o trabalho feminino ainda é
complexo, devido às duplas jornadas. Ao realizar o trabalho fora de casa, esse não lhes
dispensa do trabalho do lar, do cuidado com os filhos, enfim. A maioria das mulheres que
trabalham no meio rural, nesse caso as pescadoras, não se livram do mundo feminino
tradicional. Algumas mulheres encontram no seu trabalho autonomia econômica e social,
porem não a liberdade do trabalho doméstico.
191
Há indícios de sentido de liberdade em sua fala e de empoderamento também, que
são representações estabelecidas nessas relações de poderes instituídas e hierarquizadas pela
sociedade patriarcal que sempre valoriza os trabalhos realizados pelos homens. Tal
protagonismo começa a desabrochar com a inserção das mulheres no campo do trabalho
pesqueiro em geral. Em diálogo com Leitão (2013), compreender que o fazer pesqueiro ainda
evidencia a mulher como uma coadjuvante da figura masculina, profissionalmente
invisibilizada no setor pesqueiro e perante a sociedade como um todo, as mulheres são
protagonistas de suas histórias. Porém, essa invisibilidade é causadora de sua marginalização
e silenciamento, principalmente na participação de movimentos sociais da categoria.
Enfim, quais caminhos futuros devem seguir, quais perspectivas e projetos
constroem individualmente e coletivamente, visando sanar as adversidades que a própria
profissão acarreta ao longo dos anos para essas mulheres?
4.3 – A vida de pescadora: Caminhos futuros
IMAGEM 34: Pescadora Ivanil (2013)
FONTE: Fotografia digital disponibilizada pela pescadora Ivanil (2013)
A partir da fotografia acima, refletimos sobre os caminhos da pesca em Mato
Grosso do Sul, observando que, mais que um aspecto de vida ao meio natural, é a
simbologia que esse mundo representa para essas mulheres trabalhadoras. Observa-se
que a memória e a identidade são elementos de disputa no campo social, pois os grupos
192
reivindicam a posse da verdade ou da ancestralidade como forma de legitimar a posse de
um território, dos seus bens, ou do conjunto de bens, enfim, o Pantanal e o pertencimento
ao mundo da pesca.
Considerando o autor Michael Pollack (1992) em sua obra Memória e
Identidade Social,
Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que
ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si [...] A memória e a identidade são valores disputados em
conflitos sociais e intergrupais. (POLLAK, 1992. p.200- 212)
No horizonte desse estudo, observamos que a memória contribui para a construção da
identidade, na medida em que é possível refletir, numa representação da imagem “que uma
pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta
aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser
percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros.” (POLLACK, 1992, p. 204)
Assim, é possível perceber a importância que estes conceitos possuem nos aspectos
individuais e coletivos e ainda, a possibilidade de reflexão sobre o ser/estar no mundo, nesse
caso na pesca, no rio, nos Pantanais.
Nesse sentido, é preciso refletir os caminhos futuros da pesca, a partir de significados
que elas mesmas construíram no cotidiano com a pesca. Heléia (2018) destaca em sua fala,
um dado importante e que ao discutir o futuro da pesca em Mato Grosso do Sul, deve ser
levado em conta. Ou seja:
Só se ouve falar: o peixe está em extinção! Não tem mais peixe! os peixe
acabaram! Mas não sabe que o peixe hoje é manhoso. Você pega só se
adivinhar o que ele quer comer, e tem que ver como está a água também. Se
bem que hoje está bom, meu marido ficou uns dias nesse ano ainda, sem
pegar um pintado, só o pacú e piauçu. Agora deu uma chuvinha, encheu um
pouquinho ele foi lá e armou dois anzóis, pois ele tem direito de até onze,
mas não pegou nada, estava ruim e tinha que comprar a isca e não tinha o
dinheiro pra comprar a isca certa. Então ele pegou apenas duas iscas e pegou
caiu um de 16 quilos, então ele fiou todo faceiro vendeu comprou iscas,
investiu na gasolina e na isca viva. Porem de lá para cá já não pegou mais
nenhum, então você não sabe o dia que o peixe está comendo. É complicado
para o pescador, não é que acabou o peixe, é o peixe que está manhoso, é o
peixe que escolhe o que vai comer [risos]. (Aquidauana, 10/08/2018).
193
Heléia destaca em sua narrativa que é preciso conhecer o dia a dia da pesca e que
para conseguir o tão sonhado pescado é necessário agradar o paladar do peixe que busca
capturar. Aqui nessa narrativa, temos significados que essas mulheres atribuem ao
conhecimento do rio, da pesca e do peixe. Ao afirmar que o peixe está “manhoso”, destaca um
ponto importante, muito marcado nas falas das pescadoras, que é o conhecimento que o ofício
lhes exige. Ou seja, é preciso saber qual é a isca certa, quando a temperatura da água está
adequada, quando é o momento de ir pescar peixes e quando é o momento da pesca de iscas
vivas. E outro detalhe muito presente no cotidiano das pescadoras é que nem sempre a
pescaria é certeira, como demonstrado na narrativa da Heléia (2018), ao narrar sobre a pesca
que o marido realizou, fez investimentos com iscas vivas e gasolina, e voltou sem o precioso
pescado.
Questiono sobre as discussões e embates cotidianos que a categoria enfrenta, quanto
ao fechamento definitivo da pesca, Heléia de maneira incisiva destaca que:
Eu discordo! Você sabe por que querem fechar? Tudo bem que hoje, a gente
que já vive na pesca de um tempo para cá sabemos que está difícil. Eu digo
para os pescadores, que o peixe está sabendo ler e escrever [risos] Que hoje
eles escolhem a isca que vão comer, se a água muda o peixe já some tudo!
Entendeu? Hoje está difícil, mas eu acho que isso não seria motivo pra
fechar a pesca, porque a pesca é uma das profissões mais antigas, se eu não
me engano a mais antiga criada no mundo. Eu acho que eles tinham que
fazer o seguinte: Criar alternativas para quem quer continuar pescando, por
exemplo, montar um tanque de peixes, tem gente que quer e tem vontade de
sair dessa vida sofrida do rio e criar seu próprio peixe, mas não tem
condições financeiras. Então eu acho que o governo, antes de pensar em
fechar, isso tanto o Governo Federal como o Estadual, deveriam ver isso.
Aqui no nosso Estado é o governo estadual que mais pensa em fechar a
pesca. Então, antes dele pensar em fechar, eles tinham que criar alternativas
para o pescador, de repente ele (Estado) vai com uma proposta boa e o
pescador até aceita! Eu estou vendo que hoje já não está como antigamente,
então eu vou criar peixe que eu sei que eu vou ter o peixe para vender!
Agora não, eles primeiramente pensam e fazem as leis, para depois trazer
para nós! (Aquidauana, 10/08/2018).
Heléia (2018) toca em um ponto delicado que é o diálogo entre o Estado e a categoria
de pesca, em diversas regiões do país, visto que, toda a ação do governo vem sem diálogo
com as trabalhadoras(os). Até mesmo as representações Confederação, Federações, Colônias
e Associações de Pesca e Aquicultura, são pegas de surpresas com leis, decretos e normativas,
sem um diálogo ou debate, sem conhecimento do lugar e do meio ambiente. Aponta as
dificuldades que a categoria enfrenta para a sobrevivência na profissão, no entanto, não vê
uma alternativa rentável que possibilite outras fontes de renda. Sugere investimentos no setor
194
da piscicultura, no entanto, observa que não há intensões do governo em subsidiá-los63
, pois
sem isso a categoria não tem condições de implantar tanques para a produção de pescado aqui
em Mato Grosso do Sul.
Uma das questões relevantes para nossa análise perpassa questões econômicas e
sociais dos pescadores profissionais, e trata da possibilidade de fechamento da pescaria
profissional. Cientes destes aspectos, questiono a entrevistada: “Shirlei, o que você pensa,
você pensa sobre a possibilidade de se fechar a pesca hoje?” E ela responde: “Eu penso! É
meio estranho, não é? Porque, se acaba assim? (pensa) Mas se acabar e fechar a pesca eu não
sei o que vai acontecer, porque a gente não vive sem a pesca, aí estamos enrolados, como
vamos arrumar serviço? Não sei”! (SILVA, 2017). É interessante observar a reação de uma
pescadora que depende financeiramente de sua atividade e que não prevê outra forma de
trabalho.
Em um estado rico em rios piscosos, a pesca parece ser uma atividade legítima e não
propensa a variações, o que garantiria, legalmente, a permanência das famílias e dos
pescadores e pescadoras nas regiões em que sempre viveram e desenvolveram seu trabalho.
Entretanto, as boas condições de vida e de trabalho dependem das políticas públicas
direcionadas a esses grupos. Esse debate perpassa algumas esferas do poder e entra na agenda
de ambientalistas que cogitam a possibilidade de ampliação do pesque e solte, fortalecendo o
turismo ecológico, possibilidade essa que assombra grande parte de trabalhadores que
dependem da pesca para a venda.
Visto que o turismo beneficia uma classe elevada economicamente, que pratica a
pesca apenas como lazer, a preocupação em garantir a existência de peixes nos rios para esse
divertimento afeta diretamente as populações ribeirinhas e de pescadores, pois o lado perverso
de se pensar unilateralmente é a negação do valor do trabalho tradicional de pescadoras e
pescadores que sobrevivem desta atividade.
Vale ressaltar que, mesmo que os governos municipais, estaduais e federais
apresentem projetos de cursos e qualificação para que estes profissionais aprendam a
desenvolver outras atividades e habilidades, a inserção no mercado e a aptidão para estas
63
A partir dos anos 2000, o governo brasileiro adota um modelo político e econômico neodesenvolvimentista no
país, visando fortalecer e incentivar o crescimento econômico além de reestruturar a infraestrutura nacional.
Dentre as medidas temos o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), além da distribuição de auxílios
sociais à população vulnerável economicamente pelo Programa do Bolsa Família e o acesso à créditos a
pequenos produtores rurais, PRONAF, que subsidia também os pescadores e aquicultores. Cf.: CASTELO, R. O
novo desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento econômico brasileiro. Serviço Social &
Sociedade, São Paulo, v. 1, p. 613-636, out./dez. 2012. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n112/02.pdf>. Acesso em: 30 de maio de 2017, às 22h.
195
outras tarefas podem trazer problemas de adaptação e permanência, além do fato de que se
devem levar em consideração as inclinações individuais, bem como as escolhas motivadas por
fatores unicamente pessoais. Neste respeito, lembramos que muitas de nossas entrevistadas
revelam as memórias afetivas das atividades pesqueiras, deixam perceber seu gosto pessoal de
exercer esse trabalho. Pescar se reveste de um conteúdo simbólico historicamente constituído,
o que outra atividade não propiciaria. Afastar famílias ribeirinhas de sua fonte de ganho traria
um impacto social e histórico para além de questões meramente econômicas.
Assim a identidade é o resultado da apropriação/produção/reprodução do vivido na
comunidade, dotado de aspectos materiais e imateriais, presentes onde se realiza o trabalho,
na casa, no lazer, nas crenças, na produção e na comercialização do pescado ou da isca viva e
também na organização social e política da comunidade. Para tanto, devemos destacar que a
nossa análise se dá por sua dinâmica laboral, isto é, verificamos as práticas e relações de
sobrevivência, produção e reprodução laboral em relação ao sistema do capital ao qual estão
inseridos, e que por sua vez tendem a estar subordinados a determinados mecanismos, de
disputas e de conflitos.
Ruy Moreira (2016) destaca em sua obra A geografia do espaço-mundo: conflitos e
superação no espaço do capital, que:
O trabalho transforma os meios naturais com seus diferentes valores de uso
em meios sociais de existência, realizando o salto de qualidade da natureza
natural (dita primeira natureza) em natureza socializada (dita segunda
natureza) mediante o qual o homem se transforma de história natural em
história social e transforma a história social em história natural
autopoeticamente. Relação trans-histórica, pois, na qual homem e natureza
se movem reciprocamente numa dialética de interioridadeexterioridade em
que o homem transforma a si mesmo, hominizando-se, no mesmo ato que
transforma a natureza, historizando-a. (MOREIRA, 2016, p.115)).
Partimos assim, do pressuposto que as pescadoras artesanais também devem ser
compreendidas como trabalhadoras que compõem a classe trabalhadora. No entanto, essas
mulheres devem ser vistas sob a luz de suas particularidades e da trama de relações expressas
tanto territorialmente como também temporalmente. E observar que a "condição e forma
concreta de ser do homem e da natureza estão dentro de um quadro têmporo-espacial"
(MOREIRA, 2016, p.115). Portanto, nesse processo do trabalho feminino na pesca participam
o ser social e a natureza, ou seja, é a mulher pantaneira ou do Pantanal que defronta a
natureza, apropria-se dela e as modifica ao tempo que modifica a si própria e a sua própria
natureza.
196
Antônio Carlos Diegues na obra O mito Moderno da natureza intocada, traduz o que
vem acontecendo no cenário nacional:
O modelo do conservacionismo norte-americano espalhou-se rapidamente
pelo mundo recriando a dicotomia entre “povos” e “parques”. Como essa
ideologia se expandiu, sobretudo para os países de Terceiro Mundo, seu
efeito foi devastador sobre as “populações tradicionais” de extrativistas,
pescadores, índios, cuja relação com a natureza é diferente da analisada por
Muir e os primeiros “ideólogos” dos parques naturais norte-americanos. É
fundamental enfatizar que a transposição do “modelo Yellowstone” de
parques sem moradores de países industrializados e de clima temperado para
países de Terceiro Mundo, cujas florestas remanescentes foram e continuam
sendo, em grande parte, habitadas por populações tradicionais, está na base
não só de conflitos insuperáveis, mas de uma visão inadequada de áreas
protegidas. Essa inadequação, aliada a outros fatores como: graves conflitos
fundiários em muitos países; noção inadequada de fiscalização;
corporativismo dos administradores; expansão urbana; profunda crise
econômica e a dívida externa de muitos países subdesenvolvidos, estão na
base do que se define como a “crise da conservação”. (DIEGUES, 1996,
p.37)
As mulheres pescadoras demonstraram ao longo das narrativas, conhecimentos e a
participação nas mudanças tanto na maneira de pescar como quando e onde pescar. O
Pantanal proporciona às mulheres a paz que não encontraram nas cidades, a beleza das
paisagens, a simplicidade, a perpetuação dos pequenos detalhes do cotidiano e o silêncio
barulhento da natureza (pássaros, onças, as águas, as árvores). São constantemente chamadas
pelo discurso ambientalista conservacionista de que é preciso preservar, que precisam se
adequar, em determinados momentos, precisam se adaptar a determinadas áreas que se
tornaram áreas protegidas, sobretudo no que se referem às populações tradicionais. A esse
respeito, cito o exemplo à fala da pescadora Zeferina (2016) que viu seu local de pesca se
tornar uma reserva nacional.
Nesse sentido, observo de maneira geral, como se articulou o movimento de
resistência e de organização da categoria de trabalhadoras da pesca artesanal profissional.
Destaco a relevância da Articulação Nacional das Pescadoras no Brasil (ANP), criada em
2005, com uma vertente feminina em luta pelo reconhecimento e pelo direito laboral da/na
pesca. Com o intuito de negar e criticar a lógica patriarcal da sociedade que ainda as
enxergam apenas como “ajudantes” ou “dependente” de uma figura masculina. (Assessoria de
comunicação do Conselho Pastoral dos Pescadores, 2015). Portanto, nota-se que a resistência
dos pescadores e pescadoras no Brasil se faz presente e atuante, esses estão sempre em luta e
buscando a efetivação de seus direitos, ainda que constantemente haja mecanismos que visem
197
à desestruturação e desarticulação do modo de vida e trabalho desses trabalhadores e
trabalhadoras.
Heléia (2018) destaca que um dos importantes movimentos que auxiliou a categoria
de pescadoras e pescadores no Brasil foi o Conselho Pastoral da Pesca.
O Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) foi criado a partir da segunda
metade dos anos 1960 através da influência de uma ala progressista da Igreja
Católica (Teologia da Libertação) em Pernambuco. Alguns movimentos
sociais no Brasil se organizaram, em razão das injustiças ambientais, sociais,
políticas e trabalhistas. O CPP visou ações políticas a fim de modificar a
situação de marginalização em que estavam os pescadores e pescadoras
artesanais. A organização contribuiu destacadamente com o setor, como por
exemplo, na luta pelo Ministério da Pesca, elaboração da política nacional à
pesca, entre outras ações. O CPP encontra-se organizado a partir da CPP
Nacional, cujo presidente atual é o Bispo Dom José Haring e subdivide-se
em regionais: Regional Bahia, Regional Ceará, Regional Nordeste
(Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas), Regional Norte
(Pará) e Regional Sul (Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato
Grosso do Sul) (CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES, 2016).
No caso das pescadoras dos Pantanais, infelizmente os movimentos de âmbito
nacional como CPP, MPP, ANP, ainda são muito incipientes, e as mesmas não conhecem e
não participam de maneira efetiva. Por outro lado, localmente as pescadoras se organizaram
em associações de pesca e primordialmente nas Colônias de Pesca, a fim de conquistar
melhorias das condições de vida e trabalho.
Pode-se dizer que o CPP é um acontecimento único na história das lutas
sociais dos pescadores e pescadoras artesanais no Brasil, pois, antes desse
mediador sóciopolítico, nenhum outro grupo (instituição, entidade e/ou
partido) tinha se voltado com a mesma força para mobilizar e/ou apoiar as
reivindicações dos pescadores artesanais. É claro que a presença e a cultura
política difundida pelo Poder Público, através da Marinha Brasileira e
décadas depois com a SUDEPE, disseminou junto aos homens e mulheres
das águas um sentimento de fragilidade organizativa, de distanciamento, em
muitas situações, da dimensão de um fazer político classista, porém isso
também se deveu a própria inexistência de mediadores e/ou das alianças que
poderia ter sido construídas com ele, como aconteceu com o campesinato
(ligas camponesas, PCB, Igreja Católica, por exemplo), a título de
comparação. (RAMALHO, 2012, p.14).
Nesse sentido, o trabalho de mediação do CPP em âmbito nacional foi fundamental
para a qualificação e organização política da categoria, sobretudo quanto ao processo de
resistência contra as relações de poder impostas pelo Estado, embora as Colônias de
Pescadores, de maneira geral em Mato Grosso do Sul, ainda estabelece apenas a mediação das
198
questões capital, trabalho e Estado. Observável no momento de composição de chapas de
representação na liderança das Colônias, ou seja, quase não se vê surgir novas lideranças
comprometidas com a categoria. Isso refletindo a narrativa da pescadora e presidente da
colônia de pesca de Aquidauana, Heléia (2018).
É relevante apontar que não observei de maneira ativa e representativa, um
movimento de mulheres pescadoras artesanais na luta pelo não fechamento da pesca em Mato
Grosso do Sul, não observei narrativas de organização e tentativas de diálogo entre a categoria
feminina e o Estado. Sendo que, as mulheres possuem particularidades no campo do trabalho
com a pesca, enfim, estão invisibilizadas nessa e em muitas outras questões, ao analisarmos
outras realidades como os Estudos desenvolvidos em outras regiões do país.
Endosso o que Moreno (2017) destaca em seu estudo que:
[...] essas medidas, para além de necessárias do ponto de vista da reprodução
de vida, é também uma forma alternativa de resistir e lutar pelas condições
dignas de vida e trabalho da/na pesca, já que esses sujeitos em nenhum
momento estão querendo abandonar a lida pesqueira ou torná-la como uma
atividade secundária, muito pelo contrário, estão querendo mostrar a
importância dessa atividade, buscando meios de (re)conquistar o direito de
exercer com a plenitude de suas possibilidades materiais e subjetivas, das
quais todo ser social em contato com a natureza por meio de seu trabalho
devem ter! (Moreno, 2017, p. 181).
Ao finalizar o capítulo, destaco a expressão “caminhos futuros” para afirmar que
essas mulheres pescadoras artesanais ao longo da história de Mato Grosso do Sul e da história
da pesca, resistiram para exercer a profissão e para terem direitos de serem trabalhadoras
profissionais. Atualmente64
, precisarão construir frentes de resistência para a garantirem a
permanência na atividade pesqueira. Precisam (re)significar e (re)existir na arte pesqueira,
necessitam ainda, ocuparem os espaços negados historicamente a elas e assim, praticar e
exercer o que lhes traz sentidos múltiplos em suas vidas que é pescar e ser reconhecidas
socialmente e profissionalmente.
64
Decreto nº 15.166: também chamada de Cota Zero, visa instituir novos regramentos e limitações para a pesca
amadora e desportiva no Estado, determinada pelo governador Reinaldo Azambuja. Ainda, passa por intensas
discussões, o decreto que determinará os caminhos da pesca em Mato Grosso do Sul. A ideia central do projeto é
proibir o trânsito de pescado por pescadores amadores e para as(os) pescadoras(es), estipula medidas com
tamanhos mínimos e máximos de pescado. A categoria se movimenta, visto que a medida afetará drasticamente
o futuro dos trabalhadores da pesca. que instituiu novos regramentos e limitações para a pesca amadora e
desportiva no Estado, o governador Reinaldo Azambuja determinou que sejam intensificadas as ações de
fiscalização nos rios de Mato Grosso do Sul. Cf.: <http://www.imasul.ms.gov.br/institucional/>. Acesso em:
22/02/2019, às 18h.
199
Considerações finais
Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à margem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores. Pacus comem frutas de carandá
nos cachos.
(Manoel de Barros, 2001, p. 33).
200
Embalada pela poesia de Manoel de Barros, destaco que a tese Corpos Femininos:
Cotidiano, Memória e História de Mulheres Pescadoras no Pantanal Sul-Mato-Grossense
(1980-2017) problematizou narrativas de trajetórias de vida das pescadoras profissionais
artesanais do Estado de Mato Grosso do Sul. Mulheres Pescadoras dos Pantanais narraram
aspectos de suas vivências, aprendizados e significações construídas no exercício da profissão,
ou seja, nos embates cotidianos que cada mulher experinciou, em sua história de vida, com seus
valores e particularidades.
Nesses quatro anos de convívio, escrita, ressonâncias com essas mulhers foi possível
apreender questões relevantes que configuram uma rede de relações coletivas e familiares em
relação à pesca artesanal e de subsistência no Pantanal e no Estado Sul Mato Grossense. Uma
rede conectada entre o meio ambiente, o trabalho, a fronteira, o Estado, as resistências, os
conflitos, as subordinações, o tempo, o lugar, a casa, o barco, enfim, memórias
compartilhadas, que nos brindam com conhecimentos, e que nos possibilita apreender suas
particularidades e singularidades que lhes são próprias da condição de ser mulher, mãe,
esposa e profissional da pesca artesanal.
A tese registra memórias, impressões e traz à luz, sujeitos que sempre existiram no
espaço pesqueiro, no entanto, estavam invisibilizadas pela historiagrafia regional. Ainda, nos
permitiu compreender sobre a participação das mulheres pescadoras artesanais, na produção
econômica em várias regiões do país. Primeiramente, a sua participação em diversos setores
como o da economia, da política, sendo participativas e ativas no campo da pesca. Porém,
historicamente, como demonstramos ao longo da trajetória dessa pesquisa, houve a omissão e
muitos silêncios, relacionados ao trabalho da mulher no setor pesqueiro e na economia do
Estado.
Nesse ínterim, constatamos descaso e precarização do trabalho das pescadoras
artesanais, haja vista que cada vez mais se tem processos de desestruturação social e laboral
dos direitos dessas trabalhadoras. Portanto, o que deveria ser fonte de realização, finda em
perdas de direitos, angústias, marginalização, sofrimentos, ou seja, perde-se a dimensão da
humanização frente à categoria. Constata-se, portanto, que há um descaso por parte do Estado
brasileiro, para com as pescadoras artesanais por todo o território do país.
Quando construí o projeto de pesquisa da tese, tinha em mente uma visão muito
romântica da situação laboral dessas mulheres. Imaginava que o Estado era rígido em seu
controle e em suas leis, porém, ao desenvolver a pesquisa de campo e analisar a historiografia
201
da pesca no Brasil, constatei que, o Estado é extremamente severo e que precisa olhar para
essas mulheres, com uma visão muito além do assistencialismo, mas dentro de uma política
humanitária, pois são ativamente participantes de todos os processos que a arte pesqueira lhes
demanda, participando ativamente no desenvolvimento econômico e social do Estado.
Natália Tavares de Azevedo e Naína Pierri (2014) no texto A política pesqueira no
Brasil (2003-2011): a escolha pelo crescimento produtivo e o lugar da pesca artesanal,
destacam que:
No conjunto, a atuação governamental dos últimos anos, detrás de um
discurso de suposta sensibilidade social e responsabilidade ambiental, e
apesar da diminuição imediata da pobreza, tem contribuído para aumentar a
vulnerabilidade e a situação de injustiça ambiental sofrida pelas
comunidades pesqueiras artesanais. Frente a esta situação, parte significativa
dos pescadores artesanais organizados tem adotado uma posição crítica ao
governo. Em 2010, isto cristalizou na criação de um novo movimento
nacional e autônomo da categoria, denominado Movimento de Pescadores e
Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP). Em 2012, o MPP lançou a
Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios das Comunidades
Tradicionais Pesqueiras, que tem como objetivo principal a aprovação de
uma Lei de Iniciativa Popular que reconheça e disponha a demarcação das
áreas de terra e água das quais dependem as comunidades pesqueiras
(AZEVEDO & PIERRI, 2014, p. 77-78).
Como observamos no segundo capítulo dessa pesquisa, houveram movimentos e
manifestações que buscaram ao longo da história, construir políticas públicas, conquistaram
direitos previdenciários, no entanto, sempre frágeis e inconsistentes. Com a articulação do
Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil, temos uma nova luz pela
resistência no cenário pesqueiro e ganha força com outros movimentos como o do Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP).
O reconhecimento do direito coletivo à esses territórios e aos recursos neles
presentes é considerado a condição fundamental para garantir a
sustentabilidade da pesca artesanal e garantir a reprodução dos modos de
vida e práticas tradicionais de suas comunidades. A luta por conquistá-lo
constitui uma exemplar resistência dos pescadores artesanais brasileiros
frente ao modelo de desenvolvimento excludente impulsionado pelo governo
nos últimos anos. (AZEVEDO & PIERRI, 2014, p. 78).
Há, nesse sentido, um forte incentivo do capital, favorecido pela atuação do Estado,
na desestruturação das(os) trabalhadoras(es) da pesca. Para tanto, cometem injustiça
202
ambientais, marginalizam e invisibilizam as trabalhadoras e trabalhadores. Assim, as políticas
desenvolvimentistas subordinam e controlam o desenvolver da pesca, delimitam territórios
(terra e rios).
Moreno (2017) afirma que,
[...] as políticas e estratégias historicamente adotadas pelo Estado em relação
ao setor pesqueiro nacional sempre se pautaram num modelo de
"desenvolvimento" focado no crescimento econômico acelerado e a qualquer
custo, em detrimento dos recursos naturais explorados e dos sujeitos sociais,
que tendem a serem desvalorizados e marginalizados. Aliás, atualmente,
com o golpe parlamentar em curso no Brasil, a tendência é o acirramento das
situações e embates com os trabalhadores e trabalhadoras, e como tais, os
pescadores e as pescadoras não estão de fora desse processo, muito pelo
contrário. Esses sujeitos estão também na linha de frente desse campo
minado, que só tende a negar e retirar os direitos dos trabalhadores, a
criminalizar as ações e movimentos sociais/sindicais, a privilegiar os
interesses burgueses e da reprodução ampliada do capital. A resistência dos
pescadores é pela própria existência, negada em sua totalidade a
prosseguirem os processos de sua desterritorialização. (MORENO, 2017, p.
200)
Para tanto, a forma de reflexão da tese foi construída permeada pela discussão da
categoria no Estado de mato Grosso do Sul em diálogo com pesquisadoras(es) de outras
regiões do país. Visando compreender a dinâmica local e a dimensão num sentido mais
amplo, foi possível observar que as mulheres pescadoras dos Pantanais, comungam dos
mesmos anseios e possuem as mesmas lutas cotidianas para ser/estar no mundo da pesca.
Ao longo dos anos, verificaram-se mudanças na maneira de pescar, alterações na
paisagem (cheias, assoreamentos, secas), interferências naturais e humanas que trazem
mudanças à vida e ao trabalho das pescadoras, que precisam se adaptar as novas realidades.
Como exemplo, cito mudança de pescadora para guia de pesca, experienciado pela Shirlei
(2017), ao ter que “criar” coragem para enfrentar sozinha o mundo da pesca turística. Ou seja,
mais que um desafio, uma mudança na arte do fazer, agora uma profissional que precisa
provar que é eficiente ao desenvolver sua nova função.
Assim, a história das mulheres pescadoras se revela como um processo histórico de
transformação, de apropriação e de empoderamentos conquistado pelo trabalho que realizam.
Nesse sentido, o feminismo como movimento político, na defesa de direitos iguais para as
mulheres, que não cessam a atuação, de modo que buscam redesenhar as relações
203
interpessoais, e dessa maneira fazer com que as mulheres sejam socialmente reconhecidas e
valorizadas no campo dominado por homens.
Como visível na narrativa de grande parte das entrevistadas, as comunidades
tradicionais de pescadoras estão subordinadas a lógica do mercado. Moreno (2017) destaca
que o “capital”:
[...] historicamente busca minar as resistências e formas alternativas de luta e
existência dos pescadores e das pescadoras artesanais, já que os subordina
pelas tramas do mercado, de maneira a controlar essas formas de produção e
reprodução não capitalistas, ao mesmo tempo em que impõe "novos"
significados aos recursos (terra e água, por exemplo), a vida e ao trabalho.
Embora o cenário se revele conflitante e desafiante a condição de ser dos
pescadores e das pescadoras artesanais, esses sujeitos em seu cotidiano, com
sua vivência e experiências sociais, culturais, políticas e laborais tem
resistido e permanecem produzindo e reproduzindo-se. Portanto, a pesca, os
pescadores e pescadoras artesanais resistem ao capital. (MORENO, 2017, p.
200)
Se pensarmos numericamente na categoria como um todo, em Mato Grosso do Sul
temos aproximadamente seis (6) mil pescadores devidamente documentados nas Colônias de
Pesca. Pensando nesse sentido, o que seria mais vantajoso economicamente para o Estado e
para o mercado em geral: a pesca ou a piscicultura? Investir e qualificar as trabalhadoras e
trabalhadores da pesca ou investir no turismo? Essas são algumas das perguntas que não
temos uma resposta nesse momento. Pois, no cenário nacional os pescadores representaram
um “peso” ao governo ao ter que pagar o seguro-defeso, é um peso ao ter que aposentar esse
trabalhador em regime especial, enfim.
A categoria luta por permanência e autonomia no exercício do trabalho na pesca
artesanal, e essa permanência é uma forma de resistência. Nesse cenário, temos as
trabalhadoras com suas experiências culturais e laborais, num movimento dinâmico a partir
das relações de gênero, da vivência, do trabalho, da mediação com a natureza e de resistência,
visível na autonomia de pescar, liberdade profissional e principalmente pelas redes de ajuda
mútua e de solidariedade estabelecida entre a comunidade pesqueira.
Compreendemos assim que a pesca artesanal possibilita uma relação identitária do
indivíduo com a natureza e nos mostra que além de produzirem alimentos, as trabalhadoras
artesanais dos pantanais produzem vida e subsistência, e mediante aos seus trabalhos e modos
de vida, ganham força para lutar, permanecer e resistir nesse mundo do trabalho.
204
Por que estudar as mulheres pescadoras dos Pantanais do Estado de Mato Grosso do
Sul? O porquê da escolha dessa profissão, e principalmente, a mulher pesca ou ajuda/auxilia?
Essas questões, foram o mote para a construção da tese. Visto que, nessa perspectiva histórica
não encontrei estudos relacionados à mulher, assim foi um desafio compreender a dinâmica
das relações sociais construídas pela categoria. Até mesmo, encontrar essas fontes
memoráveis foi um grande desafio, visto que ao longo de quatro anos de pesquisa, tivemos
enchentes, secas, altas temporadas e doenças graves de pescadoras chaves para a produção de
narrativas. No entanto, não foi empecilho para que a pesquisa prosseguisse. Ao longo do
levantamento de dados e entrevistas, observei que trabalhar com o estudo de comunidades
tradicionais e com ribeirinhas, necessita de estratégias, pois a rotina dessas mulheres é bem
complexa e diversificada.
As pescadoras profissionais artesanais que utilizam dos recursos naturais sob a forma
de uso comum numa rede de relações sociais complexas, vivem num sistema de cooperação
tanto no processo produtivo, como também nos afazeres da vida cotidiana. Foi preciso
estabelecer relações de confiança e de respeito com essas trabalhadoras, visto que ao narrar
sobre suas sobre suas vidas e vivências, desenhou-se a história de mulheres que pescam e
sobrevivem no mundo pesqueiro no Pantanal.
Na perspectiva foucaultiana de poder aplicada, não poderíamos deixar de falar nas
relações de poder na arte pesqueira e seus efeitos vinculados a manobras, técnicas, táticas e
mecanismos, tendo implicações sobre as ações dos sujeitos que o exercem. Compreendo que
às relações de gênero permitem o rompimento da polarização entre o masculino e o feminino,
porém, não impede, que em determinados momentos, mesmo que na maioria deles e de
maneira subjetiva, alguns dos sujeitos estejam mais submetidos a manobras de poder do que
outros, nesse caso as mulheres que praticam profissionalmente a pesca, num ambiente
predominantemente masculino. Nesse sentido, Foucault (1987) nos ensina sobre os efeitos
disciplinarizantes no exercício do poder, na maneira do dominador que dociliza corpos,
direciona comportamentos desejados e esvazia capacidade de contestação.
Nesse cenário, dominado por poderes e discursos masculinos temos as mulheres
pescadoras que ao longo da história do Pantanal estiveram presentes no exercício das
atividades pesqueiras. Labutando e possibilitando a subsistência de suas famílias, abrindo
mão, muitas vezes, de se qualificar educacionalmente, a maioria das pescadoras não
concluíram o ensino fundamental e as anciãs não receberam nenhuma instrução educacional,
conforme a narrativa de Heléia (2018).
205
Faz-se necessário, discutir a economia solidária65, nesse estudo sendo que :
As mulheres formam grupos potenciais para o desenvolvimento da economia
solidária porque, diante das necessidades radicais de sobrevivência, elas
criam saberes e fazeres, com a produção e comercialização informais de
diversos produtos para o aumento da renda familiar. Tais saberes e fazeres
são incorporados e recriados pela economia solidária, ao tornarem-se
produção e comercialização, atividades afins de empreendimentos
econômicos solidários pautados nos seus princípios essenciais, [....] Pautam-
se no trabalho coletivo, nas discussões, no processo de formação para o
trabalho e, questionam a hegemonia capitalista e as hierarquias de gênero.
(FARIAS, 2015, p. 184)
Ao analisar o trabalho das mulheres pescadoras dos Pantanais Sul Matogrossenses,
observo o que Marisa de Fátima Lomba de Farias (2015) conceitua ao afirmar que as
mulheres são grupos potenciais na questão de sobrevivência dessas comunidades pesqueiras.
Muito perceptível a partir das narrativas que demonstraram essas práticas e saberes, para a
manutenção de suas famílias e de suas comunidades.
Ainda, Farias (2015) conclui que:
Essas redes permitem que as mulheres produzam, conversem, socializem
experiência, apresentam-se como lideranças e exercitem a capacidade de
questionamentos que extrapola a condição econômica. Elas voltam-se para
sua subjetividade que se fortalece por meio de autonomia financeira, do
acesso a conhecimentos e técnicas produtivas, enfim, pensam sua condição
no mundo e as formas de transformar tal condição. (FARIAS, 2015, p. 184)
Essas redes são fundamentais nas trajetórias profissionais dessas mulheres, pois se
empoderam a partir do trabalho, ocupam espaços e lugares antes negados a elas. Mesmo que
de maneira tímida ainda, as mulheres pescadoras desse estudo, demonstraram ao longo de
suas narrativas, superações, persistências e resistências para ser/estar no mundo da pesca. E ao
ter as redes femininas de trabalho, se amparam e se fortalecem no exercício das atividades
laborais. Cito aqui o inicio das associações de pescadoras debatidas anteriormente, e a
presença de mulheres nas presidências de Colônias de Pesca.
Um dos passos da pesquisa foi observar e perceber que a organização da escrita da
tese perpassava a atividade produtiva da pesca que ia além do ato de pescar. Percebi que
65
Verbete: FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de. Economia Solidária. In. Colling, Ana Maria. TEDESCHI,
Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.: UFGD, 2015, p.181-185.
206
temos uma cadeia produtiva, dando sentido ao conceito de atividade pesqueira artesanal
profissional compreendido no Art. 4º da Lei da Pesca:
Consideram-se atividade pesqueira artesanal, para os efeitos desta Lei, os
trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca, os reparos
realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto
da pesca artesanal. (BRASIL, 2009).
Então, as atividades das mulheres da/na pesca, conforme outros estudos em outras
regiões do país, já haviam identificado, que são toda a organização da pesca em si. Não temos
apenas o ato da pesca, mas temos a participação efetiva de mulheres em todas as etapas de
produção e comercialização.
Tabela 2: Organização da cadeia produtiva da pesca
Pré-pescaria Pescaria Pós-Pescaria
Organização das embarcações
(gasolina, remo, motor, gelo e
caixas térmicas); preparação
da refeição (matula),
organização dos apetrechos e
equipamentos de pesca;
seleção das iscas adequadas.
Ir ao rio ou em lagoas.
Limpeza e armazenamento
do pescado.
Comercialização em suas
residências, nos portos,
peixarias ou atravessadores.
Limpeza e reparo dos
equipamentos de pesca e das
embarcações.
FONTE: Dados e tabela organizada pela autora.
Acima, temos as etapas que tanto as mulheres quanto os homens devem seguir para a
organização da pesca, a pesca em si e a comercialização do pescado. Para as mulheres, ainda
restam outras funções, como os cuidados com filhos e filhas, casa e demais funções do
cotidiano. Segundo as mulheres, os cuidados dos afazeres domésticos ficam em segundo
plano em momentos de alta produção de pescados e/ou atendimento ao turismo.
Maria Cristina Maneschy (2000) no texto, Da Casa ao Mar: papéis das mulheres na
construção da Pesca responsável, destaca que:
De diferentes modos, portanto, as mulheres desempenham papéis cruciais na
manutenção das comunidades pesqueiras artesanais: manipulando recursos
de diferentes ecossistemas, terrestres e aquáticos, gerando rendas
complementares à da pesca, agregando valor a produtos locais e participando
207
de organizações coletivas. Resta alcançar um efetivo reconhecimento social,
que implicaria em sua inclusão nas políticas de desenvolvimento do setor.
Assim, no tocante ao crédito, torna-se necessário que as agências
financiadoras mudem o enfoque dominante, que privilegia o financiamento
de barcos e instrumentos de captura, de maneira individual, para incluir o
fomento a grupos que processam e aproveitam subprodutos da pesca, de
maneira integrada ao financiamento da produção pesqueira. No tocante à
capacitação profissional, sobretudo, trata-se de concebê-la em um sentido
amplo, que assegure não só a eficácia no trabalho, como também, que
possibilite às comunidades lançar mão de alternativas de sobrevivência,
absolutamente necessárias em períodos de interrupção da pesca, ou em
situações em que os estoques são objeto de intensa exploração. Estas são
condições inerentes à instituição da chamada “pesca responsável”.
(MANESCHY, 2000, p. 90)
Maneschy (2000) afirma que o conceito da pesca responsável deve ir além da
responsabilidade com a preservação do meio ambiente e dos recursos pesqueiros,
primeiramente precisa-se compreender que a manutenção das comunidades pesqueiras
artesanais é primordial no fornecimento de pescado para o comércio no Brasil e em outros
países. Que o Estado precisa vê-las com o potencial de trabalho e de produção como um todo,
e ainda, como uma questão de humanidade e de sobrevivência. É imprescindível que essas
pescadoras sejam reconhecidas mesmo as que não estão nos rios ou em embarcações
pescando, e que utilizam de outras ferramentas da pesca profissional, como exemplo a
produção de artesanato com couro de peixes.
É na convivência que o saber não sabido de Michel de Certeau (2004) se desenvolve.
O corpo feminino aprende através da experiência pessoal dessas trabalhadoras, num processo
de apropriação e de pertencimento à comunidade de pescadores. Por outro lado, o
questionamento pelo/do Estado, que contesta essa certeza, de são mulheres e pescadoras,
sendo que:
[…] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as
relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o
marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está
ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização
econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é
investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua
constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num
sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força
útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT,
2013, p. 28 - 29)
208
Ellen Woortmann, antropóloga da Universidade de Brasília, chamou atenção para o
processo de silenciamento em pesquisas sobre mulheres pescadoras, e até mesmo na análise
do discurso, que por vezes passam imperceptíveis aos pesquisadores e pesquisadoras:
Não raro, o discurso do pesquisador repete o discurso público do grupo
estudado, cuja identidade se constrói sobre uma atividade - a pesca -
concebida como masculina, e deixa de lado o discurso privado. A
conjugação de planos de discurso e de autoridade, masculino e feminino,
público e privado, decorre do que Cronin (1977) chamou de harmonia entre
ideais culturais e sistema produtivo. O próprio discurso acadêmico, pois,
relega ao silêncio o ponto de vista feminino, mesmo quando as atividades
das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo como um todo.
(WOORTMANN, 1992, p.44)
Assim, muito da “invisibilidade” da mulher pescadora decorre de construções
acadêmicas, que privilegiam apenas certos aspectos da realidade. Nesse sentido, chamo a
atenção para aprofundar novas pesquisas com mulheres pescadoras, pois ainda temos muitos
aspectos a ser problematizados e publicizados, que numa primeira pesquisa, não foi possível
alcançar. Dada a toda uma análise do território, das particularidades de cada região além do
acesso a grupos distantes geograficamente de centros urbanos.
No Manual de História Oral, BOM MEIHY, José Carlos Sabe destaca que o
pesquisador brasileiro que atua na perspectiva da História Oral, possibilita o trabalho com a
memória de sujeitos e evidencia uma possível compreensão do período histórico evocado,
qual seja:
A presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da
história oral. Nessa medida, a história oral não só oferece uma mudança no
conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido social à vida de
depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência histórica e se sentir
parte do contexto em que vivem (MEIHY, 2005, p.19).
É importante destacar o caráter dialógico presente na metodologia da História Oral,
sendo um trabalho importante e necessário nessa pesquisa, carente de fontes históricas. Não
nos esquecendo das responsabilidades e olhar crítico ao cenário em si, visto que, a história das
mulheres pescadoras dos pantanais, garante sentidos para a categoria de trabalhadoras. Essas
mulheres não são vítimas, não são vilãs, são mulheres, mães, profissionais que pescam e
conquistas espaços, são protagonistas de suas histórias.
209
Daphne Patai (2010), em sua obra História Oral, Feminismo e Política, destaca
que:
O ato de contar uma história de vida envolve uma racionalização do passado
conforme ele é projetado e levado a um presente inevitável. E, de fato, uma
versão especial da história de vida de alguém pode tornar-se um componente
essencial do senso de identidade em dado momento. Do imenso depósito de
memórias e reações possíveis evocadas pela situação de entrevista, o
entrevistado seleciona e organiza certos temas, episódios e lembrança, então
comunicados de maneira particular. Sem dúvida, a memória em si é gerada e
estruturada de maneira específica, em função da oportunidade de contar uma
história de vida e das circunstâncias em que isso acontece. Em outro
momento da vida, ou diante de outro interlocutor, é provável que surja uma
história bem diferente, com ênfases diferentes. (PATAI, 2010, p.30).
Nesse seara, a pesquisa que ora finaliza deixa possibilidades de investigações
futuras, com uma variedade de temas relacionada a essas mulheres e comunidades, que
habitam e/ou utilizam do Pantanal e de suas riquezas para viver e/ou trabalhar. No caso do
ramo da pesca, as mulheres ainda necessitam de muitas pesquisas, e produção de
historiografia, principalmente no cenário em que vivemos com a possibilidade de fechamento
da pesca profissional no Estado de Mato Grosso do Sul.
210
Referências
ALBERTI, Verena. História Oral. In: Pinsky, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2008, p. 165.
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Ensaios de teoria da história. Bauru, São Paulo: Edusc, 2007.
AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral.
In: História, v. 14, 1995. BARROS, José D´assunção. O campo da história. Petrópolis-Rio
de Janeiro: Vozes, 2004.
AMORIM, I. MULHERES NO SECTOR DAS PESCAS NAVIRAGEM DO SÉCULO XIX.
Disponível em: <https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/437/1/Ines_Amorim_p661-
683.pdf>. ARQUIPÉLAGO - HISTÓRIA, v. 2ª série, n. IX, p. 657 – 680, 2005. Disponível
em: https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/437/1/Ines_Amorim_p661-683.pdf>. Acesso
em: 10/08/2017.
ANDERSON, K. K. dos S. Lugar de mulher é em casa? Cotidiano, espaço e tempo entre
mulheres de famílias de pescadores. 2007. 121 p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Pará, Belém.
BÀSZQUEZ, Gustavo. Exercícios de apresentação: antropologia social, rituais e
representações. In: MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro Flamarion. (Orgs.)
Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: SP, Papirus, 2000.
BAZCKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Romano, Ruggiero. Enciclopédia Einaudi. V.
15. Anthropos-homem. Lisboa: Casa da Moeda, 1985.
Beck, A. Lavradores e pescadores - um estudo sobre trabalho familiar e trabalho
acessório. Trabalho apresentado ao Concurso de Professor Titular. Florianópolis: LTSC.
mimeo. - 1979
________ Roça, pesca e renda: trabalho feminino e reprodução familiar. Boletim de
Ciências Sociais, 1981, n. 23, p. 21- 32.
BECKER, Anelise. Seguro-defeso e pescadoras artesanais: o caso do estuário da Lagoa
dos Patos. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 12 – n. 41, p.45-91- jul./dez. 2013.
BOM MEIHY, José Carlos Sabe. (Re)introduzindo história oral no Brasil. São Paulo:
Xamã, 1996.
211
BOM MEIHY, José Carlos Sabe. Manual de História Oral. 5. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 11ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BRASIL. Lei n. 11.959, de 29 de Junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras,
revoga a Lei n. 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei n. 221, de
28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Brasília, 2009a Disponível em: Acesso em:
22 Out. 2017.
BRASIL. Ministério da Pesca e Aquicultura. Plano de Desenvolvimento Sustentável Mais
Pesca e Aquicultura: uma rede de ações para o fortalecimento do setor. Brasília: MPA,
2009.
BRITO, Jussara Cruz de and D'ACRI, Vanda. Referencial de análise para a estudo da
relação trabalho, mulher e saúde. Cad. Saúde Pública [online]. 1991, vol.7, n.2, pp. 201-
214. ISSN 0102-311X
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da
historiografia. São Paulo: UNESP, 1997.
BURKE, Peter. A história do acontecimento e o renascimento da narrativa. In: _____.(org.) A
Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 142 p.
BUTTO, Andrea (Org.) e DANTAS, Isolda (Org.). Autonomia e cidadania: políticas de
organização produtiva para as mulheres no meio rural. Curadoria Enap. Disponível em: <
https://exposicao.enap.gov.br/items/show/245>. Acesso em 26 de Outubro de 2018. 192 p
BRUM, Rosemary Fritsch. História Oral e as Mulheres. In. Colling, Ana Maria. TEDESCHI,
Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.: UFGD, 2015.
CALLOU, Â.B. F. TAUK, Santos, M. S.; GEHLEN, V. R. F.(Organizadores) -
Comunicaçâo, Gênero e Cultura em Comunidades pesqueiras Contemporâneas. Recife:
Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2009.
212
CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Ed. Contexto, 2011.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. Bauru,
SP: EDUSC, 2005. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de Teoria e
Metodologia. Ensaios. São Paulo: EDUSC, 2005.
CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. Memórias de um trauma: O Massacre da GEB.
(Brasília – 1959). In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Editora Olho‟Àgua,
2000.
CARLOS, A. F. A. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª Ed. 2ª
reimpressão. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006.
CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.
CATELLA, Agostinho Carlos. A Pesca no Pantanal de Mato Grosso do Sul, Brasil:
Descrição, Nível de Exploração e Manejo (1994 – 1999) – 2001. 377f. Tese (Doutorado em
Ciências Biológicas) – INPA/UA. Manaus.
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil. 1990.
CHAUVEAU, Agnés; TÉTARD, Philippe (orgs.). Questões para a história do tempo
presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
COLLING, Ana Maria. A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, 1997.
COSTA, A. A. Gênero, Poder e Empoderamento das mulheres. NEIM/UFBA, SalvadorBA,
1999. Disponível em:
<https://pactoglobalcreapr.files.wordpress.com/2012/02/5empoderamento-ana-alice.pdf>.
Acesso em: 10/11/2018.
COSTA, Carlos Frederico Corrêa da. Recortes do Imaginário Social de Pescadores
Profissionais Artesanais de Águas Fluviais; O caso da Colônia de Pescadores Z-4, com
sede em Aquidauana-MS, 1954-1988. (Dissertação). 1989. PPGH/ PUC/SP.
213
COSTA-NETO, Eraldo Medeiros. O conhecimento ictiológico tradicional dos pescadores
da cidade de barra, região do médio São Francisco Estado Bahia, Brasil. Bahia: UUEFS,
2002.
DIEGUES, A. C. S. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática,
1983.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos annales á nova história. Bauru-SP:
EDUSC, 2003.
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos
Borges. São Paulo: Editora UNESP; Editora Boitempo, 1997. 143
ECOA. Ecologia e Ação. Porto da Manga. 2005. Disponível em:
<http://riosvivos.org.br/pantanal/desenvolvimento-integral-de-comunidades-2/comunidades-
do-pantanal/porto-da-manga/>. Acesso em: 14/09/2018.
ESCALLIER, C. O Papel das Mulheres da Nazaré na economia Haliêutica. Etnográfica,
III (2), p. 293 – 308, 1999. Disponível em:
<http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_03/N2/Vol_iii_N2_293-308.pdf>. Acesso em:
05/02/2016.
FABICHAK, Irineu. A Pesca no Pantanal de Mato Grosso. São Paulo-SP: Nobel, 1923.
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo (orgs.) Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.
FALCON, Francisco. História e representação. In: MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro
Flamarion. (Orgs.) Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas:
SP, Papirus, 2000.
FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de. Economia Solidária. In. Colling, Ana Maria.
TEDESCHI, Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.:
UFGD, 2015.
FERREIRA, Marieta de Moraes. (Coordenação); ABREU, Alzira Alves de. [et al].
Entrevistas: abordagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio
Vargas, 1998.
FLORES, Joaquin Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos
Roberto Diogo Garcia; Antonio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
214
FONTANA, Josep. História depois do fim da História. (Tradução Antonio Penalves
Rocha). Bauru, SP: EDUSC, 1998.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France.
Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Loyola: 1999
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a História. In: Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1979. FUKUYAMA, Francis. El fin de la historia? Estúdios Públicos. [digit.]
S/D. FUNES, Eurípedes A. Mocambos do Trombetas: História, Memória e Identidade;
Estudios Afroamericano Virtual; 2004.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Uma
trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. A história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
2010.
FURTADO, Gilmar Soares. Lançando rede tecida e retecida na esperança de garantir
peixe e sonho : um resgate das ações da comissão pastoral dos pescadores sobre gênero,
educação e desenvolvimento local na comunidade de pescadores de Itapissuma, PE.
2010. 127 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento
Local) – Recife: Universidade Federal Rural de Pernambuco.
GERBER, Rose Mary. Mulheres e o mar: uma etnografia sobre pescadoras embarcadas
na pesca artesanal no litoral de Santa Catarina. Florianópolis. 2013. (Tese). Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2013.
GERBER, Rose Mary. Mulheres e o Mar: Pescadoras Embarcadas no litoral de Santa
Catarina, Sul do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.
GINSBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:_____. Mitos, Emblemas,
Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
GOELLNER, Silvana V. A cultura fitness e a estética do comedimento: as mulheres, seus
corpos e aparências. In: STEVENS, Cristina M. T.; SWAIN, Tânia N. (Org.). A construção
dos corpos. Perspectivas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2008, p. 245-260.
215
GOES, Lidiane de Oliveira. Os usos da nomeação mulher pescadora no cotidiano de
homens e mulheres que atuam na pesca artesanal. 2008, 208f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG;
Brasília: Editora UNESCO, 2003.
HAROCHE, Claudine. Reflexões sobre a personalidade não totalitária. Texto apresentado no
colóquio internacional “A banalização da violência: a atualidade do pensamento de
Hanna Arandt”. UFPR, Curitiba, p 14-18 de out. de 2002.
HELENA HIRATA, Reorganização da Produção e Transformações do Trabalho: uma nova
divisão sexual? In: Gênero e democracia, Cristina Bruschini e Sandra G. Unbehaum –
organizadoras, 1ª edição, Rio de Janeiro, Editora 34 Ltda., 2002.
HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595 – 609, dez. 2007.
HIRATA, Helena & KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do
trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007.
HOBSBAWM, Eric J. O presente como história. Novos Estudos. CEBRAP, N.° 43, nov.
1995. 144 p.
IRSCHLINGER, Fausto Alencar. O resgate da história local: lugares e memória. Cadernos
de pós-graduandos em história. Passo Fundo: UPF, 1999.
JULLIARD, Jacques. A Política. In: Le Goff, J. Nora, P. (orgs.) História: novas abordagens.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
KHOURY, Yara Aun. A Problemática da Memória como Linguagem Social e Prática
Política: a Experiência de Trabalhadores da Empresa Thyssenkrupp do Brasil. História
e Perspectivas, Uberlândia (46): 31-64, jan./jun. 2012.
KMITTA, Ilsyane Do Rocio. Experiências Vividas, Naturezas Construídas: Enchentes no
Pantanal (Porto Murtinho – 1970-1990). 2010. 238 f. - Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal da Grande Dourados.
216
LAVERDI, Robson. Sentidos políticos de ser pescador no Lago de Itaipu. In: Outras
Histórias: Memórias e Linguagens. São Paulo: Olho d‟Água, 2006. LE GOFF, Jacques.
História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Extensão Rural, Extensão pesqueira:
Experiências Cruzadas. Recife: Fasa, 2008.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. A Ver-o-Mar: a construção do diálogo entre
universidade e sociedade. In: LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. (Org).
Extensão Rural & Extensão pesqueira: Experiências Cruzadas. v. 1, p. 105-112, 2008b.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Pesca & gênero: o papel das mulheres no
desenvolvimento local. Cartilha. Labrys: Estudos Feministas (Online), v. 13, p. 1-12, 2008.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. 30 Anos de Registro de Pesca para as
Mulheres. Seminário na UFRPE - Recife, 2009.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Gênero e Pesca Artesanal. Recife: Liceu,
2012.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade. Gênero e Políticas Públicas na pesca
artesanal em Itapissuma. In: Angelo Bras Callou Fernandes e Maria Sallet Tauk. (Org.).
Comunicação, gênero e Cultura em Comunidades pesqueiras tradicionais. Recife:
FASA, 2009, v. 1, p. 161-174.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade; LEITÃO, Ivan Pereira; SILVA; Cristina da;
SILVA, Nadja Soares de Lima. Educação para a inclusão: programa pescando letras. 53°
Congresso Internacional de Americanistas (ICA). Cidade do México, 2009. CD-Rom.
LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima Andrade, LIMA, Alexandra Silva de; FURTADO,
Gilmar Soares. Mulheres Pescadoras: A Construção da Resistência em Itapissuma.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXXII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba, PR – 2009. CD-Rom. Texto
completo.
LEITÃO, Maria do Rosário F. Andrade. GÊNERO, PESCA E CIDADANIA. Amazônica -
Revista de Antropologia, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 98-115, set. 2013. ISSN 2176-0675. Disponível
em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/view/1307>. Acesso em: 10 Jan.
2019. doi:http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v5i1.1307.
LIMA, Lana Lage da Gama. Souza, Suellen André. Patriarcado. In: Colling, Ana Maria.
TEDESCHI, Losandro Antônio (Orgs). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados-MS, Ed.:
UFGD, 2015.
217
MACEDO, Juliana Matoso. Sazonalidade e Sustentabilidade na pesca profissional de
Corumbá. Coleção Centro-Oeste de Estudos e Pesquisas. In: Paisagens Pantaneiras e
Sustentabilidade Ambiental. Ministério da Integração Nacional, Secretaria Extraordinária
do Desenvolvimento do Centro-Oeste, 2002.
MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular: um contínuo refazer de práticas e
representações. In: PATRIOTA; Rosangela. (Orgs). História e Cultura: espaços plurais.
Uberlândia-MG: Aspectus/NEHAC, 2002. parte III.
MANESCHY, M. C.; ALENCAR, E. ; NASCIMENTO, I. H. Pescadoras em busca de
cidadania. In: M.L.M Alvares, M.A. D'Incao. (Org.). A mulher existe? uma contribuição ao
estudo da mulher e gênero na Amazônia. 1 ed. Belém: GEPEM/MPGE, 1995, v. 1, p. 81-
96.
MANESCHY, M. C.; ALENCAR, E. ; NASCIMENTO, I. H. O papel da mulher na pesca
artesanal. In: Conferência dos Ministros responsáveis pelas pescas dos países de língua
portuguesa, 1998, Salvador. Súmula do Seminário sobre pesca artesanal, 1998.
MANESCHY, M. C. A.; ALENCAR, E., NASCIMENTO, I. H. Pescadoras em busca de cidadania. In:
ÁLVARES, M. L. M.; D'INCAO, M. A. (Org.). A Mulher existe? Uma contribuição ao estudo da
mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM/GOELDI, 1995, pp. 81-96.
MANESCHY, Maria Cristina. A mulher está se afastando da pesca? continuidade e
mudança no papel da mulher na manutenção doméstica entre famílias de pescadores no
litoral do Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: série antropologia, Belém, v. 11,
n. 2, p. 145-166, dez. 1995.
MANESCHY, Maria Cristina. Da Casa ao Mar: papéis das mulheres na construção da
Pesca responsável. Proposta nº 84/85 mar/ago, 2000.
MANESCHY, Maria Cristina; ALENCAR, Edna; NASCIMENTO, Ivete H. “Pescadoras em
busca de cidadania”. In: Álvares, maria Luzia m.; d’incao, maria ângela (org.). a mulher
existe? uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na amazônia. belém:
Gepem/mpeg, 1994. v. 1.
MARPOARA, Silvana Marques Porto Araújo. Mulher além da Maré: Um diálogo
cinematográfico entre pesquisa ação, violência e desenvolvimento local vivenciados por
pescadoras artesanais do município de Itapissuma (PE). Dissertação de Mestrado,
apresentado ao POSMEX/UFRPE, em março de 2010.
MARX, K. O capital: critica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
vol.1, parte terceira, 2008.
218
MEDEIROS, M. C. et al. A pesca artesanal na costa da Paraíba. 2012. Dissertação (Mestrado)
- Universidade Estadual da Paraíba. Disponível em:
<http://tede.bc.uepb.edu.br/tede/jspui/handle/tede/1822>. Acesso em: 23/01/2017.
MORAES, S. C. 2001. Colônias de pescadores e a luta pela cidadania. In Congresso
Brasileiro de Sociologia, 10, UFC, Fortaleza, 7 p.
MOREIRA, Ruy. A geografia do espaço-mundo: conflitos e superação no espaço do
capital. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2016, 235p.
MORENO, Larissa Tavares. Os trabalhadores artesanais do mar em Ubatuba/SP : a
dinâmica territorial do conflito e da resistência / Larissa Tavares Moreno. - Presidente
Prudente: [s.n.], 2017
MOTTA, Ana Luiza Artiaga Rodrigues da. O sujeito no discurso ecológico sobre a pesca
na cidade de Cáceres-MT. Campinas-SP: 2003, UNICAMP, (Dissertação). (Dissertação).
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível
em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270724>. Acesso em: 3 ago. 2011.
MOTTA-MAUÉS, M. A. Pesca de homem/Peixe de mulher(?): Repensando gênero na
literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras. Etnográfica (Lisboa), Lisboa, v. III,
p. 377-399, 1999.
MOTTA-MAUÉS, M. A. Pesca de homem/peixe de mulher: Repensado gênero na
literatura acadêmica sobre comunidades pesqueiras no Brasil. Etnografia, Vol. Lll, n.2, p.
377-399, 1999.
NOBRE, M.; FARIA N. (orgs). Economia feminista. São Paulo: SOF, 2002. Cadernos
Sempre Viva.
OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de.; SILVA, Vera Lúcia da. O Processo de
Industrialização do Setor Pesqueiro e a Desestruturação da Pesca Artesanal no Brasil a
partir do Código de Pesca de 1967. Seqüência, n. 65, p. 329-357, dez. 2012.
PASSERINI, Luisa. A memória entre a política e emoção. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
PEREIRA, João Antonio. Geografia de Mato Grosso: “O mundo é do tamanho que você
quiser... Construa-o conforme sua imaginação”. Guiratinga-MT, Set. 2009. Disponível em.:
<https://pt.calameo.com/read/0001152895ce015e5d61d>. Acesso em:18/05/2017.
219
PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
PERROT, Michele. Práticas da memória feminina. Revista brasileira de História, São
Paulo, v. 9, n. 18, p. 09 – 18, 1989.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: Imaginando o
imaginário. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, V. 15, n. 29, 1995.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2. Ed., 2ª
reimpressão. 2010.
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. (Rio de Janeiro), v.5, n.
10, 1992.
POLLAK, M., Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Tradução
de Monique Augras. 145
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n.10, 1992, p. 200-212.
PORTELLI, A. Tentando Aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre ética na
história oral. Projeto História, PUC, São Paulo-SP, n. 15, 1997.
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e significado nas
memórias e nas fontes orais. Tempo. Universidade Federal Fluminense. Departamento de
História,-Vol.1, n°2. Dez. 1996 – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
PORTELLI, Alessandro. Memória e diálogo: desafios da história oral para a ideologia do
século xxi. in: História oral: desafios para o século XXI. (Orgs.) Marieta de Moraes
Ferreira, Tania Maria Fernandes e Verena Alberti. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de
Oswaldo Cruz/cpdoc - Fundação Getulio Vargas, 2000. 204p.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista do programa do estudo
pós-graduado em história e do departamento de história da PUC – SP. São Paulo: EDUC,
Fev/1997. REIS, José Carlos. História e Teoria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
Retrato das desigualdades de gênero e raça / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
... [et al.]. - 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf >. Acesso em: 22/15/2017.
220
RIBEIRO, A. de O.; SILVA, L. C. F. da. Estudo Epidemiológico de Queilite Actínica em
Pescadores do Litoral Sul de Sergipe. 2012. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal
de Sergipe. Disponível em: <http://bdtd.ufs.br/handle/tede/1027>. Acesso em:19/05/2017.
RICOEUR, P. A Memória, a História, o Esquecimento. [S.l.]: Editora Unicamp, 2007. Citado
na página 13. SALVATICI, S. Memórias de gênero: reflexões sobre história oral de
mulheres. História Oral, v. 8, n. 1, p. 29 – 42, jan/jun 2005.
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Edunicamp, 2007.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994.
ROSÁRIO, Jeruza Jesus do. Marisqueiras e pescadoras: o cotidiano na reserva
extrativista baía do Iguape-BA - 2008. 127 f.: Santo Antonio de Jesus-Bahia. (dissertação)
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional – UNEB
ROSSETO, Onélia Carmem; JUNIOR, Antônio C. P. Brasil. (Orgs. ). Brasília: Ministério
da integração Nacional: Universidade de Brasília, 2002.
ROSSETO, Onélia Carmem; JUNIOR, Antônio C. P. Brasil. (Orgs.). Brasília: Ministério da
integração Nacional: Universidade de Brasília, 2002
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. Seis ensaios da história das idéias.
(Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Editora da UNESP, 2010.
SAFFIOTI. Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. 1197 5 70507 1
SAMUEL, Raphael. Revista Brasileira de História. São Paulo: Scielo, v. 9. nº. 19. set.
89/fev.90.
SATO, M. (2001, maio). Debatendo os desafios da educação ambiental. Rev. Eletrônica
Mestr. Educ. Ambient., Rio Grande, p.14-33.
SCHERER, Elenise (Org.). Trabalhadores e trabalhadoras na pesca: ambiente e
reconhecimento. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.
SCHMITZ, H. et al. Pescadores Artesanais e Seguro Defeso: Reflexões sobre Processos de
Constituição de Identidades numa Comunidade Ribeirinha da Amazônia. In.: Amazôn.,
Rev. Antropol. (Online) 5 (1): 116-139, 2013.
221
SILVA, Miguel Vieira. Mitos e Verdades sobre a pesca no pantanal Sul-Mato-Grossense.
Campo Grande-MS: FIPLAN-MS, 1986.
SILVA, Patricia de Araújo. O mar é masculino? O trabalho das mulheres na Ponta da
Ilha/Jurujuba/Niterói. Rio de Janeiro, 2013. 91 f. (Dissertação) Programa Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE
JANEIRO. Disponível em:
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoCon
clusao.jsf?popup=true&id_trabalho=283500 Acesso em: 20/06/2017.
SILVA, Tomás Tadeu; HALL, Stuart (Orgs.) Identidade e diferença: a perpectiva dos
estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
SILVEIRA, Ronan Garcia da. História de Coxim. Campo Grande: Editora Ruy Barbosa,
1995.
SOARES, Sara Moreira. Descaindo a rede do reconhecimento: as pescadoras e o seguro-
defeso na comunidade Cristo Rei no Careiro da Várzea / Sara Moreira Soares. - 2012.
Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Universidade Federal do
Amazonas, Manaus, 2012. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/2311 Acesso em:
10/02/2017.
STADTLER, Hulda Helena Coraciara. Mulheres na pesca artesanal: lutando por
previdência e saúde. Retratos de Assentamentos, [S.l.], v. 18, n. 1, p. 91-112, jan. 2015.
ISSN 2527-2594. Disponível em:
<http://retratosdeassentamentos.com/index.php/retratos/article/view/183>. Acesso em: 01fev.
2019.
TEDESCHI, L. A. Alguns apontamentos sobre história oral, gênero e história das
mulheres. 1. ed. Dourados-MS: UFGD, 2014. v. 1.
THOMÉ, Pollianna. A mulher e o Pantanal: uma relação de trabalho e de identidade.
Aquidauana, 2008. 154 f. (dissertação) – Geografia. UFMS. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=129133
Acesso em: 10/03/2012.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operaria I: A arvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
TUCHMAN, Bárabara Wertheim. Em busca da história. In:______ . A Prática da história.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
222
TILLY, Louise A.. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu,
Campinas, SP, n. 3, p. 28-62, jan. 2007. ISSN 1809-4449. Disponível em:
<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1722/1706>. Acesso
em: 15 janeiro. 2018.
VAINFAS, Ronaldo. Da história das Mentalidades á História Cultural. Revista História.
São Paulo: UNESP. 1996.
WOORTMANN, Ellen F. Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e gênero
em 'comunidades pesqueiras' do Nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 18, p.
41-60, 1992.
ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: Colonialidade, Modernidade
e Processos de Territorialização. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Orgs.).
Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 439-
462.
SITES CONSULTADOS
Ecoa: Mulheres da manga. Disponível em:
<http://ecoa.org.br/mulheresdamanga/ontemchoveunofuturo.html>. Acesso em: 22/10/2017.
Imasul. Disponível em: <http://www.imasul.ms.gov.br/recursos-pesqueiros-e-fauna/boletins-
scpescams/>. Acesso em: 22/10/2017.
Legislação Pesqueira. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509231/001030625.pdf?sequence=1> .
Acesso em: 22/10/2017.
Leis. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11699.htm>. Acesso em: 22/10/2017.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Lei/L13134.htm>. Acesso em: 22/10/2017.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.779.htm>. Acesso em:
22/10/2017.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Lei/L13134.htm#art2>. Acesso em: 22/10/2017.
223
Embrapa Pantanal. Disponível em:
<https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/812744/1/ADM007.pdf>. Acesso em:
22/10/2017.
Publicações no site do Governo MS. Disponível em: <http://www.ms.gov.br/governo-celebra-
parceria-com-frigorifico-de-peixes-para-tornar-ms-lider-nacional-na-producao-de-tilapia/>.
Acesso em: 22/10/2017.
INSS: Seguro Defeso. Disponível em: <https://www.inss.gov.br/beneficios/seguro-
desemprego-do-pescador-artesanal/>. Acesso em: 22/10/2017.
Normas legais do Seguro Defeso. Disponível em:
<http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-sppe-1-2011.htm>. Acesso
em: 22/10/2017.
Fontes Orais
Heléia Aparecida Soares Ferreira. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva
Zanchett Aquidauana/MS, 10/08/2018
Ivanil Bispo da Silva Domingues. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva
Zanchett. Coxim/MS, 13/04/2013.
Marilza de Lima. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Corumbá/MS, 16/01/ 2017.
Marlene Nunes de Almeida. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Coxim/MS, 13/04/2013.
Orlinda Vitoria Dias Moraes. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Miranda/MS, 16/01/2017.
Shirlei Aparecida da Silva. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Miranda/MS, 16/01/2017.
Vânia Aponte Sato. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Corumbá/MS, 15/01/ 2017.
Zeferina Marques da Silva. Entrevista. Entrevistadora: Silvana Aparecida da Silva Zanchett.
Corumbá/MS, 15/01/ 2017.