Correia Joao Fenomenologia e Teoria Dos Sistemas

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    que toca em relao ao consenso ou mesmo simples complementaridade dos projectos.A correspondncia a fase visvel, explcitae notria, das dificuldades que se verificavamnos pontos de vista tericos dos prprios au-tores. Detrs das observaes de Schutz edas recusas de Parsons em tomar nota dasmesmas, h motivos tericos profundos: di-ferentes concepes sobre a ordem social,sobre a formao dos consensos e sobre asrelaes entre os indivduos e as normas. As-

    sim, defende-se a existncia de uma proble-mtica relacionada com a integrao social(menos explcita no caso de Alfred Schutz)que pode originar um campo de investigaono mbito da Teoria Social e da Teoria Pol-tica.

    2 Parsons e Schutz: um esboode caracterizao

    2.1 A urgncia de umreconhecimento

    Alfred Schutz e Talcott Parsons podemapresentar-se, em meados do sculo passado,como o verso e o reverso do devir da Teo-ria Social, prosseguindo modos de teorizarque viriam a repercutir-se em diversos se-guidores1. A histria do encontro e do de-bate que ocorreu entre ambos, no incio da

    dcada de 40, est marcada por mal enten-didos. Equivocados pelos elogios mtuosiniciais, a apreciao global das principais

    1 Cfr. Elizabeth Suzanne Kassab, The Theory ofSocial Action in the Schutz-Parsons Debate, Friburg,Editions Universitaires, 1991. Sobre o mesmo tema,pode ver-se Alfred Schutz, The social world and thetheory of social action in Alfred Schutz, CollectedPapers II: Studies in social theory, The Hague, Marti-nus Nijoff, 1976, pp. 3-19.

    obras, lidas agora luz de um contexto emque se conhecem as consequncias tericasdos pressupostos que defenderam, tornamclara a impossibilidade do entendimento queainda buscaram. Necessariamente, desej-vel validar de um outro modo mais atento acontroversa presena destes autores no pano-rama intelectual do sculo que findou:

    a) Desde logo, Schutz sofre de um esque-cimento, a nosso ver, enigmtico. Em Portu-gal, alm de escassos ensaios, de referncias

    em Teses de Doutoramento, ou de algumasteses elaboradas em Faculdades de Filosofia,ainda so poucos os que efectuaram estudossistemticos sobre este autor. Apesar de setratar de algum que levou por diante uminteressante projecto de fundamentao fe-nomenolgica da sociologia compreensiva,tentando desenvolver uma teoria da aco so-cial, investigar a natureza da intersubjecti-vidade e da construo social do conheci-

    mento e tendo permitido a fundamentaoterica de correntes to influentes como a Et-nometodologia de Garfinkel2; opensamentode Goffman e de Giddens3, ou a obra de Pe-ter Berger e de Thomas Luckmann4, a ver-dade que ainda no vieram a luz do dia in-vestigaes aprofundadas nem sequer tradu-es portuguesas. Ser que o percurso inte-lectual heterodoxo daquele que Husserl con-vidou para seu assistente, o coloca numa p-tria de ecletismo pouco frequentada pelos in-

    2 Cfr. H. Garfinkel, Studies in ethnometodology,Cambridge, Polity Press, 1984.

    3 Cfr. Anthony Giddens, New rules of sociologicalmethod, London, Hutchinson & Co, 1960; cfr, ErvingGoffman, Frame analisys, Harmondsworth, PenguinBooks, 1975.

    4 Peter Berger e Thomas Luckmann, A construosocial da realidade, Petrpolis, Vozes, 1973 ( Orig:The social construction of reality, 1966).

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    vestigadores das disciplinas que cultivou (Fi-losofia e Cincias Sociais)?5 Ser que o ca-rcter fragmentado da sua obra marcada pelaimpossibilidade de um percurso acadmicoa tempo inteiro ainda condiciona a recepoda sua obra?

    b) Parsons, por seu turno, parece ser v-tima de um exorcismo intelectual. No ape-nas pde exercer um distinto e influente lu-gar acadmico como quase controlou a soci-ologia anglo-saxnica, conquistando a hege-

    monia na comunidade cientfica. O resultado que os exageros levados a efeito no sentidode promover a emancipao dos tiques dofuncionalismo parecem ter conduzido ao es-quecimento do peso intelectual que Parsonsdetm nas obras de influentes contempor-neos como Alexander, Luhmann e Haber-mas6. Mais ainda: parece ter-se cado numrelativo desdm por um trabalho que eviden-cia uma patente sofisticao e refinamento

    5Como lembra Arvid Brodersen na Nota do Edi-tor introdutria ao segundo volume dos Collected Pa-

    pers de Alfred Schutz, uma lio que Schutz apren-deu cedo na vida e continuou a ensinar at ao fim foia necessidade de basear qualquer teoria social sobreuma fundamentao filosfica. Desde o princpio eleencontrou a base para a sua prpria filosofia em Hus-serl mais do que em qualquer outro, mas tambm emBergson, William James, Georg Simmel, Max Schelere outros (Arvird Brodersen, Editors Note in AlfredSchutz, Collected Papers II: Studies in social theory,The Hague, Martinus Nijoff, 1976, 18.)

    6Sobre a presena que Parsons continua a ter nasobras destes autores ler Richard Mnch, Teora par-soniana actual: en busca de uma nueva sntesis inAnthony Giddens, Jonathan Turner e outros, La teorasocial hoy, Madrid, Alianza Editorial, 1990. Devemtambm consultar-se as obras dos autores citados no-meadamente J. C Alexander, Neofunctionalism, Be-verly Hills, Sage, 1985; Habermas, Thorie du agircommunicationel, Paris, Fayard, 1987 alm de diver-sas obras de Luhmann onde as referncias a Parsonsso explcitas.

    intelectual. De certa forma, os vcios do fun-cionalismo tornaram polmica a referncia aesta corrente. Muitos esquecem que Parsonsconstruiu uma Teoria Social elaborada e queo estrutural-funcionalismo apenas uma dasfacetas do seu percurso.

    c) Se os autores parecem conhecer um mo-mento de relativo confinamento periferiados centros acadmicos e de reflexo, maisainda tal acontecer com o debate entre eles.Trata-se, a nosso ver, de um erro. O carcter

    visivelmente oponvel dos seus pressupostose das consequncias tericas e prticas queestes encerravam constitui uma forma de umiluminar o pensamento de outro. luz de ume de outro, percebemos o que distingue asTeorias Interpretativas das Cincias Sociaisdas perspectivas mais acentuadamente mar-cadas pela herana de Durkheim e pela tra-dio filosfica em que este se funda, desdeHobbes e Hegel at Comte. Compreendemos

    as diferentes concepes de Cincia Socialque motivam cada um destes trabalhos ondeainda ressoam as grandes polmicas sobre omtodo verificadas no sculo XIX alemo,de tal modo que o debate Parsons Schutz um dos importantes momentos de con-trovrsia sobre a Epistemologia das CinciasSociais. Compreendemos o papel que a Fe-nomenologia de Husserl desempenha na des-crio do mundo da vida e como a percepodas mltiplas realidades sociais algo que setorna dificilmente concilivel com o estrutu-ral funcionalismo e a sua enfatizao, porvezes excessiva, da ordem e da integrao.Compreendemos que em Schutz ainda ecoaa forte dvida para com Husserl e consequen-temente com uma fenomenologia que aindaacredita num homem capaz de coincidir ab-

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    solutamente consigo mesmo7. Compreende-mos que a ateno s estruturas subjectivasda conscincia como modo de explicao doencontro entre a conscincia e o mundo so-cial articulada com a ideia weberiana de ac-o subjectivamente significativa exige aindauma ateno especial ao sujeito individuale uma concepo de intersubjectividade queimplica a participao activa dos sujeitos naconstruo e actualizao da dimenso nor-mativa da sociabilidade. Compreendemos

    que a mesma ateno conferida por Parsonsatravs da teoria voluntarista da aco e dareferncia a Weber conheceu, de forma lentamas que j se vislumbrava nos seus trabalhosiniciais, um percurso de enfatizao da com-ponente normativa. Finalmente, compreen-demos que h uma leitura que remete paraa Poltica e para a tica que nunca foi de-senvolvida por Schutz e que est muito maisexplicitada em Parsons. Esta leitura pode,

    no caso de Schutz, ser encontrada nos in-terstcios da sua anlise da fragmentao domundo da vida social em mltiplas realida-des e, inclusivamente, permite uma compre-enso interessante de fenmenos como osdas identidades e de conceitos como o de rei-ficao8. Tal leitura evidentemente poucocompatvel com a preocupao normativista,integradora e consensualista que marca, ape-

    7 cfr. Emmanuel Lvinas, Descobrindo a exis-

    tncia com Husserl e com Heidegger, Lisboa, Piaget,1997, p. 61.8 Tal leitura j se adivinha nalguns sintomas :

    termos conhecimento da existncia de trabalhos deautores por todo o mundo que lem Schutz luz dasnoes de cidadania multicultural e da crtica ao uni-versalismo abstracto. De conhecimento directo, pode-mos citar a obra de Burke Thomason, Making senseof reification, London, MacMillan Press, 1982 ondese procede, de forma mais ou menos clara, a este tipode leitura.

    sar do seu refinamento, o trabalho de TalcottParsons.

    Do lado de Alfred Schutz, encontra-se aabertura aos estudos microssociolgicos, aenfatizao do mundo da vida quotidiano, asinteraces face-a-face, a valorizao dessasinteraces na negociao e actualizao dasnormas sociais, o desenvolvimento da he-rana de Husserl e de Weber de um modo quedefiniria o estilo e a metodologia das princi-pais correntes da sociologia compreensiva.

    Do lado de Parsons, contabiliza-se agrande teoria, a ateno s macroestrutu-ras, a insistncia na interiorizao das nor-mas como um factor de escolha dos fins edos meios que caracterizam a aco racio-nal, a preocupao com a harmonia e a in-tegrao societrias, o lento afastamento emrelao assumida herana weberiana para,em seu lugar, colocar um esquema terico demuito mais forte cariz durkheimiano em res-

    posta ao problema hobbesiano.

    2.2 Alguns elementos sobre aobra de Alfred Schutz

    Entre os contributos fundamentais de Schutz,conta-se a incorporao dos conceitos demundo da vida e de atitude natural naTeoria Social com a qual se abre a porta introduo das interaces face-a-face comoobjecto privilegiado de estudo. Graas aosdesenvolvimentos introduzidos pela Sociolo-gia de inspirao fenomenolgica, a socia-bilidade ganha uma nova configurao, pas-sando a ser entendida como um conjunto derelaes interpessoais e de atitudes pesso-ais que, ainda que dependendo de padresaprendidos, so pragmaticamente reproduzi-das na vida quotidiana.

    Os conceitos de mundo da vida e da

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    atitude natural, nucleares na sociologia deinspirao fenomenolgica, tm a sua ori-gem em Husserl e sero objectos de umaexposio sistemtica de Alfred Schutz, quepretende aplic-los como um contributo parauma fundamentao rigorosa de uma CinciaSocial compreensiva.

    Na anlise fenomenolgica do papel ac-tivo da conscincia na constituio de objec-tos da experincia, Husserl insistiu na exis-tncia de estruturas subjectivas que no eram

    passivamente postas em jogo pela experin-cia sensorial mas, antes, intervinham, decisi-vamente, nos actos de percepo e na elabo-rao do conhecimento. O real s tem sen-tido na conscincia9.

    No decurso desta aproximao ao dom-nio da constituio subjectiva, Husserl pro-cedeu a uma distino fundamental entre aatitude natural e a reduo fenomenolgica.A expresso atitude natural foi usada para

    designar os termos e o modo pelo qual per-cebemos, interpretamos e agimos no mundoem que nos encontramos. Orientada por con-sideraes de natureza pragmtica, a atitudenatural envolve a suspenso da dvida acercade saber se as coisas so como parecem ouse a experincia passada ser ou no umguia vlido para o futuro. Na atitude natu-ral, quem percepciona acredita que as coi-sas so como lhe aparecem ou, pelo menos,procede a uma suspenso de qualquer dvidaque possa ter acerca disso. O sujeito assume,at uma evidncia em contrrio que no terde ser de natureza cientfica, que o seu enten-dimento das circunstncias adequado. Oactor, consequentemente, pressupe que asaces, que foram bem sucedidas em condi-

    9 cfr. Lvinas, Descobrindo a existncia com Hus-serl e Heidegger, op. cit., p. 63.

    es similares precedentes, continuaro a serbem sucedidas na situao presente.

    O reverso da atitude natural a dvidacartesiana, que, cepticamente, nega a ob- jectividade da percepo, a adequao doconhecimento ou a utilidade da experinciapassada. Porm, no este o tipo de dvidaque tem lugar na reduo fenomenolgica. Areduo transcendental epoch consistena suspenso do juzo sobre o mundo, nono sentido cartesiano, mas no sentido da ten-

    tativa de regressar ao carcter prioritrio daconscincia, aqum do momento em que omundo se oferece como um pr-dado exis-tente na sua evidncia. Na reduo fenome-nolgica, o investigador limita-se a suspen-der a sua crena, por exemplo, na existn-cia objectiva dos objectos da percepo comvista a examinar como que eles so expe-rimentados como objectivamente existentes.A tarefa a que Husserl se prope a sus-

    penso da crena no mundo exterior, quercomo ela ingenuamente vista por qualquerum na vida quotidiana, quer como ela in-terpretada por filsofos e cientistas. Graas epoch, o sujeito encontra-se livre do seuentrave mais ntimo e secreto: a conside-rao do mundo como um pr-dado, alcan-ando a absoluta autonomia em relao aomundo e conscincia que dele possui. Atra-vs desta operao, em lugar de se regres-sar s coisas, retorna-se conscincia quese tem do mundo, ou seja, a uma correla-o essencial entre a conscincia e as coi-sas10. De um certo modo, h uma reflexosobre o prprio acto da percepo. Os ob-jectos percebidos so assim encarados como

    10 Cfr. Edmund Husserl, La crise des sciences eu-ropennes et la phnomnologie transcendantal, Pa-ris, Gallimard, 1967, p. 172.

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    um produto de uma complexa srie opera-es pr-predicativas, inconscientes e auto-mticas, em que cada percepo de um ob-jecto determinado referida a uma variedadede experincias prvias de outros objectossemelhantes e dos objectos em geral.

    A partir daqui adivinha-se um conjunto dedireces possveis que a pesquisa fenome-nolgica podia tomar. Uma das direcesera o empreendimento husserliano de esta-belecer uma fundao indubitvel para todo

    o conhecimento humano atravs da anliseda sua constituio pelos actos subjectivosda conscincia. Outra via procurava estabe-lecer as relaes entre conhecimento cient-fico e o conhecimento vulgar. Esta via, de-senvolvida pelo prprio Husserl nas suas l-timas obras, reforava o ponto de vista se-gundo o qual toda a reflexo humana se ba-seia no Lebenswelt, o mundo da experin-cia vivida e teve alguns dos seus protagonis-

    tas mais interessantes nalguns trabalhos deMerleau-Ponty11 e em Aron Gurvisch e Al-fred Schutz.12

    Desenvolvendo as intuies de Husserl,Schutz considerou a atitude natural comouma suspenso da dvida em relao ob-jectividade do mundo13, aplicando de modominucioso, este tipo de atitude e o modo deconhecer que lhe prprio em relao so-

    11 O trabalho mais explcito e significativo neste

    domnio ser O Filsofo e a Sociologia in MauriceMerleau Ponty, Signos, So Paulo, Martins Fontes,s/d., pp. 105-121.

    12 Evidentemente, podamos citar uma outra direc-o, radicalmente nova, que foi abruptamente intro-duzida por Heidegger. Porm, a Hermenutica Filo-sfica fica fora do mbito da anlise deste trabalho.

    13Cfr. Alfred Schutz, William Jamess concept ofthe stream of thought phenomenologically interpre-ted in Collected papers, vol. III, The Hague, Marti-nus Nijoff, 1975, pp. 5-6.

    ciabilidade. A epoch fenomenolgica con-vida a pr entre parnteses o mundo objec-tivo para atender ao mbito da conscinciaem que aquele se oferece como vivncia dasubjectividade _ ignorando todos os juzosacerca da existncia do mundo exterior como fim de alcanar a esfera da evidncia abso-luta. A atitude natural, ao contrrio, contmuma tese implcita na qual se aceita o mundocomo existente14, tal como ele se d, na suaevidncia.15 Schutz apropria-se da concep-

    tualizao de Husserl para caracterizar esp-cie de naivit constitutiva da possibilidadede percepo do mundo e, em especial, domundo social. Na atitude natural eu sempreme encontro a mim prprio num mundo quetenho por garantido e evidentemente realem si mesmo16. Ela uma postura que re-conhece os factos objectivos, as condiespara as aces de acordo com os objectos volta, a vontade e as intenes dos outros

    com quem tem de se cooperar e lidar, as im-posies dos costumes e as proibies da lei,e assim por diante. Assim, a atitude natural caracterizada menos pelo realismo do quepela ingenuidade do realismo, ou seja, pelofacto que o indivduo se encontra diante do

    14 Na nossa vida quotidiana (...), aceitamos semquestionar a existncia do mundo exterior, o mundode factos que nos cerca. Na verdade, pode ser queduvidemos de qualquer datum desse mundo exterior,pode ser at que desconfiemos de tantas experincias

    desse mundo quantas vezes quisermos; mas a crenaingnua na existncia de algum mundo exterior, essatese geral do ponto de vista natural vai subsistir, im-perturbvel. Ibid., p. 5.

    15 cfr. Alexandre Morujo, Mundo e intenciona-lidade, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1961, p.43.

    16Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structu-res of life-world, Evanston, Northwestern UniversityPress, 1995, 4.

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    objecto sem se interrogar sobre o sentido dasua objectividade17.

    A atitude natural desenvolve-se por parteda generalidade dos actores sociais que ac-tuam no mundo da vida (Lebenswelt). Este outro dos conceitos que constituram a pe-dra de toque do impulso fenomenolgico de-tectado no campo da sociologia. O con-ceito surge inicialmente na obra de Hus-serl, referindo-se ao mundo da evidnciae da experincia quotidianas por oposio

    ao mundo quantificado da cincia moderna.Husserl refere-se-lhe como aquele que nos verdadeiramente dado como perceptvel, omundo da experincia real ou possvel.18

    Constitui-se como integrando um tipo deverdades situadas, prtico-quotidianas.19

    Nesse mundo, os actores so consideradosna certeza da experincia, anteriormente aqualquer constatao cientfica, seja ela psi-colgica, sociolgica ou outra20. apre-

    sentado como o mundo das evidncias ori-ginais, entendidas enquanto diversas da evi-dncia objectiva e lgica, relacionada aoponto de vista terico da cincia da naturezacientfico-positiva21.

    Alfred Schutz compreendeu bem o al-cance da caracterizao husserliana, e o in-teresse da mesma para a sua formulao daTeoria Social. O mundo da vida simples-mente toda a esfera das experincias quotidi-anas, direces e aces atravs das quais osindivduos lidam com seus interesses e ne-gcios, manipulando objectos, tratando com

    17 Emmanuel Lvinas, Descobrindo a existnciacom Husserl e Heidegger, op. cit., p. 36.

    18 Edmund Husserl, La crise.. . , op. cit. p.. 5719Ibid, p.15020 Ibid., p. 119.21Cfr. Ibid., pp. 145-146.

    pessoas, concebendo e realizando planos22.Trata-se de um mundo intersubjectivo co-mum a todos ns, no qual no temos um in-teresse terico mas um interesse eminente-mente prtico23. Este o mundo em quenos encontramos em cada momento da nossavida, tomado exactamente como se apresentaa ns na nossa experincia quotidiana.24 Ouainda de um outro modo mais explcito, queter consequncias claras para a discussoepistemolgica nas Cincias Sociais: pelo

    mundo da vida quotidiano deve ser entendidaaquela provncia da realidade que o simplesadulto normal toma por garantida na atitudedo senso comum.

    A atitude natural que os actores soci-ais empreendem no mundo da vida temum estilo cognitivo prprio. Desde logo,caracteriza-se pela mxima ateno vidano sentido em que o Sujeito evita mergulharno fluir interior da conscincia. Ao invs de

    um tempo interior, prprio da conscincia,a temporalizao no mundo da vida quoti-diana implica que o fluxo das experinciasvividas se organize a partir de um aqui eagora, perfeitamente delimitado, em direc-o ao passado e ao futuro, como uma cor-rente de unidades intencionais. Nesse sen-tido, Schutz foi um estudioso da experinciado tempo: a dure, ou tempo interior da ex-perincia subjectiva, um conceito analisado

    22Helmut Wagner, Introduo in Helmut Wagner(ed.), Fenomenologia e relaes sociais Colectneade textos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Edi-tora, p. 16.

    23Alfred Schutz, O mundo da atitude natural inHelmut Wagner (ed.), Fenomenologia e relaes so-ciais, op cit, p. 73.

    24 Aron Gurwitsch, Introduction in A. Schutz,Collected papers, Vol. III, Haya, Martinus Nijhoff,1975, p. xi. Alfred Schutz e Thomas Luckmann, Thestructures of life-word, op. cit., p.3.

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    por Bergson e que William James tambmdesenvolveu atravs de uma ideia de correntede conscincia em oposio ao tempo exte-rior ou tempo csmico medido pelos rel-gios25. No mundo quotidiano, na atitude na-tural, medida que vamos vivendo nas nos-sas experincias, vamo-nos esquecendo daprpria subjectividade, avanando cada vezpara mais longe da possvel reflexo26. Ouseja, a ateno vida (attention la vie)impede-o de mergulhar na intuio da dura-

    o pura27. Schutz recupera a distino queBergson28 faz entre viver dentro da correntede conscincia e viver dentro do mundo doespao e do tempo (. . . ) Na vida quotidiana,enquanto age e pensa, o Ego vive ao nvelda conscincia do mundo do tempo e do es-pao29. Podem-se, assim, imaginar diversosgraus de tenso da conscincia em funodos interesses da nossa vida, representandoa aco o nosso interesse maior, o grau m-

    ximo de ateno , e o sono a nossa total faltade interesse30.Neste mundo de evidncias a atitude natu-25 Cfr. Helmut. Wagner, A abordagem fenome-

    nolgica da sociologia in Helmut Wagner (ed.), Fe-nomenologia e relaes sociais, op. cit., p. 16. eA. Schutz, William James: concept of the stream ofthought phenomenologically interpreted op. cit., pp.2-4 .

    26 Cfr. Ibid., p.5.27 Alfred Schutz, Bases da fenomenologia, in

    Helmut Wagner (ed.), Fenomenologia e Relaes So-ciais, op. cit., p. 61.

    28 Bergson teve igualmente uma importncia rele-vante em Schutz, havendo autores como Burke Tho-mason que lhe atribuem mesmo uma importncia su-perior obra de Husserl no conjunto das suas influn-cias. Cfr. Burke Thomason, Making sense of reifica-tion, op. cit., pp.17-18.

    29 Alfred Schutz, Bases da fenomenologia, op.cit., p. 61.

    30 Cfr. Ibid., p.68.

    ral evoca uma forma de espontaneidade quese traduz na aco em e sobre o mundo exte-rior e num interesse por este de natureza emi-nentemente prtica. Com efeito, o actor nomundo social experimenta-o primeiro comoum campo de actuais e possveis e s secun-dariamente como objecto de pensamento31.

    Finalmente, a intersubjectividade oferece-se como um pr-requisito para toda a ex-perincia humana imediata no mundo davida32. Para Schutz, a intersubjectividade

    significa que estamos envolvidos uns paraoutros no como objectos mas como sujei-tos. Encontramo-nos a agir e a falar uns comos outros num contexto similar de comuni-cao. A sociologia no pode separar osfactos da sua natureza intersubjectiva. Eutomo simplesmente por adquirido que ou-tros homens alm de mim, existem no meumundo (. . . ) o meu mundo da vida no privado mas intersubjectivo; a principal es-

    trutura da sua realidade ser partilhado (...)Da mesma forma que evidente para mim,dentro da atitude natural, que eu posso atcerto ponto obter conhecimento acerca dasexperincias vividas pelos meus semelhantes por exemplo os motivos dos seus actos tambm eu assumo que o mesmo se passa re-ciprocamente com eles em relao a mim33.Nesta perspectiva, a realidade s se pode en-tender estabilizada na sua identidade graas reciprocidade de expectativas, de acordocom a qual os actores chegam a um enten-

    31Alfred Schutz, The Stranger: an essay in socialpsychology in Collected Papers II, The Hague, Mar-tinus Nijjoff, 1976, p. 92.

    32Cfr. Alfred Schutz, The problems of transcen-dental intersubjectivity in Husserl, in Collected pa-

    pers, vol. III, op. cit., p. 82.33Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structu-

    res of life-world, op. cit., p.4.

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    dimento intersubjectivo em que colocam en-tre parnteses as suas diferenas de experi-ncias para as considerarem como idnticas.Cada uma das pessoas envolvidas lida coma caracterstica de uma dada situao racio-cinando como se, no caso de estar no lugarde outrem, vivesse a situao comum a partirda sua perspectiva . De modo mais ou me-nos ingnuo, acredita-se que aquilo que fazsentido para cada um de ns faz sentido paratodos os outros. De modo idntico, parte-se

    do princpio que os meus actos dirigidos aosrestantes sero entendidos do mesmo modoque os actos dos restantes dirigidos a mim34.

    O esforo de Schutz no sentido da obten-o de um impulso fenomenolgico para asCincias Sociais s pode finalmente ser en-tendido no mbito de um frutfero dilogocom Max Weber. Schutz forma grande partedos seus pressupostos tericos que man-ter com admirvel coerncia numa Europa

    Central onde ecoam de forma vincada asdisputas epistemolgicas sobre as CinciasSociais. Dilthey, Rickert ou Max Weberconfrontavam-se com o aparecimento de no-vas cincias as Cincias do Esprito (Geis-teswisenchaften) nas quais se tornava cadavez mais difcil defender a pura e simplesaplicao dos mtodos das Cincias Natu-rais. Os mtodos de estudo empregues co-meavam a deixar de ser os de tipo emp-ricos ou causais porque se percebia que eranecessrio compreender as totalidades espi-rituais em que determinados eventos se ve-rificavam. O ponto de vista assumido porSchutz torna-se claro quando nos confronta-mos com os grandes dilemas fundadores dasociologia. De um lado, tem-se uma posi-

    34 Cfr. Alfred Schutz, Social world and social ac-tion in Collected papers, vol. II, op. cit., p. 15.

    o subscrita por Durkheim, numa linha queremonta a Comte , a qual pretende explicare descrever como que os indivduos es-to associados independentemente das suasconcepes e necessidades, e, do outro, en-contramos uma outra posio assumida porWeber e Simmel segundo a qual precisoperceber a intersubjectividade, os significa-dos mutuamente atribudos s diferentes ac-es dos indivduos para que possamos com-preender as dinmicas sociais. Este ltimo

    caminho enfatiza a noo de verstehen, gra-as qual procuramos compreender o sen-tido atribudo pelo outro s suas aces, emdetrimento do ercklren que procura estabe-lecer leis regulares que, semelhana das ci-ncias exactas, expliquem os fenmenos hu-manos. Em Weber, no basta que uma ac-o possa ser interpretada por um agente emtermos de motivo cujo sentido possa ser co-municado a outrem. ainda preciso que a

    noo de cada agente tenha em considera-o a do outro quer para se opor a ela, querpara entrar em composio com ela: A ac-o social (. . . ) uma aco em que o sen-tido visado pelo sujeito ou sujeitos est refe-rida conduta de outros, orientando-se porela no seu desenvolvimento.35 Ao invs deDurkheim, que explicitamente defende a co-ercibilidade e exterioridade dos factos soci-ais os quais devem ser tratados como coi-sas Weber enfatiza a ideia de aco sub-jectivamente significativas. Schutz abraaresta concepo de Sociologia compreensiva,procurando aprofund-la atravs da investi-gao de Husserl relativa as estruturas sig-nificativas da conscincia. Nesse sentido, oseu esforo a conciliao da objectividade

    35Max Weber, Economa y sociedad, Mxico,Fondo de Cultura Econmica, 1964, p. 5.

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    da cincia social com a subjectividade da ex-perincia humana.

    Pode-se adequadamente conceber a socio-logia de Weber como individualista e subjec-tivista. O seu individualismo pode afirmar-se no porque negue o carcter colectivo deconceitos como o de Estado mas porqueentendia que este tipo de conceitos era sus-ceptvel de ser reduzido s aces compre-ensivas dos indivduos. Nos seus trabalhossempre enfatizar o significado subjectivo

    das aces sociais. Isto no invalida a possi-bilidade de uma cincia da sociedade, para oqual contribui com o conceito de tipos ide-ais entendidos como constructos delineadospara atender a propsitos investigativos leva-dos a efeito luz de problemas especficose bem delimitados. Estes elementos indivi-dualistas e subjectivistas interessaram prin-cipalmente a Alfred Schutz, o qual pretendiadefinir o mundo social como uma realidade

    construda pelos homens no decurso da suaactividade prtica.

    2.3 Breve presentao da obra deTalcott Parsons

    Talcott Parsons introduziu, de modo muitoconsistente e conceptualmente fundamen-tado, um conjunto de novos problemas soci-ais com o seu livro The Structure of SocialAction. A obra era, preponderantemente,uma apresentao das teorias de quatro gran-des referncias das Cincias Sociais (Weber,Durkheim, Pareto e o economista Marshall)com as quais o pblico americano estava es-cassamente familiarizado36. Da leitura des-

    36 Talcott Parsons, Introduction to the paperbackedition, in Talcott Parsons, The structure of socialaction, New York, The Free Press, 1968, VIII.

    tes autores, empreendida com grande sofis-ticao intelectual, resultavam duas ideiasfundamentais que coincidem tambm comas reas de reflexo em que ser mais vis-vel a sua incompatibilidade com a obra deSchutz. Por um lado, entendia-se que ne-nhuma cincia pode ser construda com baseem puros dados empricos, postulando, destemodo, um novo nfase na reflexo terica37.Assim, afirmava-se contra um empirismo in-gnuo, solidamente enraizado, que conside-

    rava o progresso cientfico como uma sim-ples acumulao de descobertas de factos,afirmando que uma teoria cientfica era umavarivel independente no desenvolvimentoda cincia 38. Por outro lado, considerava-se que, ao longo da obra dos autores estu-dados, se encontrava um leque de proble-mas que confluam naquilo que ele conside-rava ser a teoria voluntarista da aco. As-sim, a concluso central para que convergia a

    obra destes cientistas sociais consistia no es-tabelecimento da orientao normativa comouma estrutura indispensvel e constitutiva daaco social.

    Ao longo do seu livro, Parsons considerouque as unidades bsicas do sistema de acosocial eram os actos, tal como as partculaseram as unidades do sistema mecnico cls-sico39. Um acto era logicamente compostopor um actor, o seu agente; um fim, ou seja,um futuro estado de coisas que se pretendiaatingir com esse mesmo acto; a situao emque o actor age, e que difere nalguns tra-os bsicos do estado de coisas para o quala aco orientada, o fim40. Procurava-se,deste modo, construir um quadro de refern-

    37 Talcott Parsons, Introduction, ibid., p. IX.38 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 7.39 Cfr. Talcott Parsons, Ibid.op. cit, p. 43.40 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 44.

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    cia que remetia, de forma analgica, para ascategorias do espao e do tempo, com basenas quais Kant formulava a fundamentaobsica da possibilidade da mecnica newto-niana.

    Duas consequncias provinham destaforma de pensamento: em primeiro lugar, re-sultava daqui que a aco implicava um de-terminado esforo, uma vez que um fim sempre um estado de coisas futuro relativo situao actual o qual s pode ser realizado

    graas ultrapassagem de determinados obs-tculos supervenientes. Por outro lado, umaaco assim considerada parecia s poder re-sultar, primordialmente, do ponto de vistasubjectivo do autor. Trata-se de uma parti-cularssima anlise do ponto de vista subjec-tivo que jaz no prprio corao da teoria vo-luntarista parsoniana. A verdade, porm, que. conforme se viria a verificar, a impor-tncia conferida norma matizava a impor-

    tncia dada ao actor.Com efeito, para Parsons, entre os elemen-tos constituintes dos actos estabelecia-se umcerto modo de relao, segundo a qual, naescolha de meios alternativos para um fim,desde que a situao permita alternativas, huma orientao normativa da aco41.

    Insurgindo-se contra a concepopositivista-utilitarista, em que a aco vista como uma adaptao ao meio ambi-ente, Parsons defende a aco como umesforo que implica uma tenso entre osplanos normativo e condicional, isto , umacerta avaliao normativa que no esquecea necessidade de adequao dos meios comvista a fins, s condies em que o actorse encontra. Enfatizando-se um ponto devista puramente positivista, a aco seria

    41 Cfr.Talcott Parsons, Ibid. op. cit. p., 44.

    completamente determinada pelas condiesinerentes situao, pelo que a distinoentre meios, dependentes do actor, e condi-es, independentes do autor e intrnsecas situao em que este se encontra, fica, decerto modo, sem sentido, j que a acoacaba por se reduzir adaptao racionals condies. O papel activo do actor restringido compreenso da situao e previso do curso do seu devir. ParaParsons, torna-se, mesmo do ponto de vista

    estritamente positivista, imaginar como possvel ao actor errar se no existe outradeterminante alm das condies. Qualquerfalha na aplicao da norma racional spode, assim, ser explicada atravs de duaspossveis palavras: ignorncia ou erro42.Quanto ao ponto de vista idealista, traduzir-se-ia no esquecimento das condies e naenfatizao do que se considera ser a normacorrecta. No idealismo, no h nada nas

    condies da aco que seja considerado emtermos de prevenir o cientista ou o tericocontra o cometimento de um erro. Na me-dida em que as relaes causais subsistissementre elementos da situao, o actor estcondicionado j que a realizao do fimdepende do tomar em conta estas relaes.Porm, no idealismo h lugar apenas pararelaes com o ideal para o qual a aco orientada43. Enquanto o tipo de teoria vo-luntarista envolve um processo de interacoentre elementos normativos e condicionais,no plo idealista o papel dos elementoscondicionais desaparece, da mesma formaque, em correspondncia, no plo positivistadesaparece o elemento normativo44 Neste

    42 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., pp. 64-66.43 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 483.44 Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 82.

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    sentido, Parsons entende que a sua teoriavoluntarista da aco permite uma tensoentre a dimenso normativa e a dimensocondicional oferecendo uma ponte entreestas duas tradies irreconciliveis45.

    Assim, nesta linha, a normatividade ganhauma certa preponderncia mitigada pelo re-conhecimento das condies de aco. Aonvel da escolha dos fins, a teoria volunta-rista considera que o fim da aco produtode um sistema de valores. Ao nvel da es-

    colha dos meios, considera que os padresnormativos, mais do que outros expressos naaplicao racional do conhecimento cientifi-camente vlido, podem constituir a base emque o curso da aco escolhido.

    Resulta daqui uma ideia que conduziriaParsons no sentido da ateno particular queconferiria, ao longo da sua obra, integra-o normativa. De Durkheim, Parsons ex-trai a ideia de que a integrao social re-

    sulta da subscrio de normas e de valorescomuns, os quais podem ser interiorizadosde modo a tornarem-se constitutivos na for-mao dos objectos desejados. , de certaforma, por aqui, que entra a importantssimareferncia a Hobbes, ao nvel da descriodas condies ltimas da vida social. EmHobbes, como o Homem guiado acimade tudo pela pluralidade das suas paixes,o bem identifica-se com aquilo que ele de-seja. 46 Os desejos humanos so aleatrios,pelo que na ausncia de qualquer controlorestritivo o Homem adoptar ao seu fim maisimediato os meios que considerar mais efica-zes. Com efeito, a escassez de determinadosbens conduz a que dois ou mais homens pos-sam desejar aquilo que no podem ambos ter.

    45 Cfr. Talcott Parsons, Ibid .op. cit., p. 486.46 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 89.

    Em face da pluralidade de desejos humanose de uma igualdade de esperana ou sejaem face do facto de que todos podem sen-tir iguais expectativas na obteno dos mes-mos fins, emerge um problema: trata-se da-quilo a que Parsons chama de problema daordem ou seja, da necessidade de uma ori-entao normativa relativa ao grau de atendi-bilidade dos vrios fins desejados47. Comopara levar por diante os fins desejados, o Ho-mem carece do reconhecimento e do servio

    de outros homens, ter de recorrer fora e fraude, no se vislumbrando na concepoestritamente utilitarista o que quer que sejaque possa obstar utilizao destes meios48.A concluso de Parsons, em face da perspi-caz descrio de Hobbes, passa pela entendi-mento de que uma soluo para o problemada ordem jamais ser encontrada num planoestritamente utilitrio: uma sociedade pura-mente utilitria catica e instvel, porque

    na ausncia de limitaes no uso dos meios,particularmente a fora e a fraude, tenderpara uma luta ilimitada pelo poder. Na ver-dade, Hobbes limita-se a ser, na perspectivade Parsons, um bom exemplo para a carac-terizao das consequncias da viso utilita-rista do mundo.

    O olhar de Parsons pela obra de Marshall,Durkheim, Weber e Pareto tende para umamesma ideia fundamental: trata-se de for-mular uma concepo que passa pela intro-duo de atitudes valorativas e por um sis-tema de valores comuns. Implica, por isso,atravs de percursos intelectuais vrios, umaultrapassagem de uma enfatizao pura e ex-clusiva da norma de racionalidade. Em Pa-reto, valoriza-se a fixao de um fim ltimo

    47 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 93.48 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. p. 2.

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    que no logicamente dedutvel atravs deuma norma de racionalidade intrnseca; emDurkheim detecta-se um passo importantepara uma posio conforme teoria volun-tarista da aco e que implica a constitui-o de um sentido de obrigao moral quepassa pela interiorizao de valores; em We-ber, sada-se a existncia de uma tipologiadupla da racionalidade, que abre as portas considerao da eficincia mas tambm dalegitimidade49.

    A enfatizao do problema da ordem nor-mativa, que emerge de The structure of so-cial action e nas obras seguintes, conduz aum certo afastamento de Weber Aceitando aas influncias provenientes da Biologia e daAntropologia (nomeadamente da leitura queRadcliff-Brown faz de Durkheim), o con-ceito de aco tornar-se-, segundo o prprioParsons, cada vez mais durkheimiano e me-nos weberiano50. No fundo, para Parsons, o

    que permite a resoluo do problema hobbe-siano passa pela interiorizao das normas um processo em que intervm, claramente,as influncias tutelares de Durkheim e Freud.A ideia hobbesiana, segundo a qual as pai-xes humanas resultariam claramente numconflito social endmico, leva Parsons a en-tender que a resposta a este problema no solucionvel no quadro da mera coordenaodos interesses dos indivduos. A soluo im-plica a interiorizao das normas. Atravsdeste processo, possvel aos actores soci-ais adoptar valores padro que limitariam odomnio dos fins a que poderiam aspirar edos meios que poderiam empregar para atin-gir esses fins. Para definir os padres de va-

    49 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., pp. 178-301 ;pp. 301 ; 451 ;

    50 Cfr. Talcott Parsons, Introduction, op. cit., p.XI.

    lor Parsons comea com uma situao idea-lizada:

    a) os actores partilham expectativas co-muns quanto ao desempenho de papis;

    b) estas expectativas esto integradas numsistema de valores mais vasto que tambm partilhado;

    c) quer as expectativas quer os valores sointeriorizados.

    Neste contexto, os agentes cooperaro en-tre si num padro coordenado de actividade

    por trs razes bsicas: a) encontram-secomprometidos com o curso de aco espe-rado ou prescrito, porque cada um de per si ointeriorizou como mais adequado ou apropri-ado; b) interiorizaram outros valores relaci-onados, que podem ser ameaados se existiruma falha em levar por diante as exignciasque a situao apresenta e c), tm receio queoutros os punam por no agirem adequada-mente, frustrando expectativas ou perdendo

    estima, amor e aprovao. Nesse sentido,postula-se um teorema da aco institucio-nalizada, graas ao qual qualquer padro deactividade tender a cristalizar ao longo dotempo, at porque qualquer tentativa de des-vio em relao s expectativas padronizadasoriginar consequncias desvantajosas. Esteteorema providenciar no sentido de o actorficar positivamente motivado para cooperarcom outros, agindo de acordo com as neces-sidades institucionais. , pois, atravs da in-teriorizao de valores comuns que um sis-tema de interaces sociais pode ser estabili-zado.

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    3 As divergncias Parsons Schutz

    Desde 1937 at 1940, Alfred Schutz, queelaborara um texto de recenso crtica do tra-balho de Parsons, dirigiu-se-lhe vrias vezesno sentido de se encontrarem. O encontrorealizou-se, mas correu da pior forma, poisParsons via no texto de Schutz uma crticaao seu trabalho. Schutz, por seu turno, diziaque apenas pretendia clarificar algumas das

    suas dificuldades no entendimento do traba-lho de Parsons51.Os desencontros entre Parsons e Schutz

    so muito frutferos no que respeita aosdesenvolvimentos posteriores dos trabalhosdos dois autores e dos seus seguidores.Schutz insistir vrias vezes em que jamais,como suspeitou Parsons, pretendia proce-der a uma reviso do seu trabalho chegandomesmo a dizer que estava de acordo com

    grande parte da obra e lamentava se, por al-guma vez, ou por alguma razo ou outra, oseu interlocutor se sentiu induzido a modi-ficar os alicerces bsicos do seu sistema.52

    Apesar desta gentileza, na mesma correspon-dncia encontram-se interpelaes directassobre pontos de discordncia evidentes.

    Podem-se aduzir algumas hipteses paraexplicar a diferena de percepo entreSchutz, os seus seguidores e o prprio Par-sons sobre a magnitude das divergncias.

    Uma explicao geralmente aceite diriarespeito vontade de Schutz de encontrar uminterlocutor intelectual na Sociologia ameri-cana. Parsons seria relativamente bvio pela

    51 Richard Grathoff, The theory of social action, ;the correspondence of Alfred Schutz and Talcott Par-

    sons, Indiana University Press, Bloomington, 1978 p.98.

    52 Richard Grathoff, Ibid. op. cit., pp. 97-98.

    sua profunda ligao com a tradio euro-peia e por ser, de certo modo, o represen-tante mais proeminente de uma orientaoinvestigativa que se reclamava de inspira-o weberiana. Com efeito depois do en-cerramento do dilogo com Parsons, Schutzabordou meios intelectuais americanos atra-vs, sobretudo, dos crculos fenomenolgi-cos, designadamente na Revista Philosophyand Phenomenological Research, de MarvinFarber. A maior parte do seu trabalho ga-

    nharia uma decisiva inspirao na recepocrtica da Fenomenologia e, s passados al-guns anos, com o conhecimento crescente dasociologia americana, em especial do Prag-matismo, comearia a ser conhecido entre asCincias Sociais53.

    Uma segunda explicao, aduzida porThomason, seria o facto de Schutz ocuparum terreno intermdio entre a objectividadee o rigor lgico dos esquemas e procedimen-

    tos cientficos e o mundo do senso comumem grande parte subjectivamente fundado eapenas intuitivamente apreensvel. Parece-nos que esta posio de Burke Thomasonno est devidamente fundada. Para almde nem toda a correspondncia indicar nestesentido j que existem interpelaes direc-tas entre os dois autores em que se revelamdivergncias claras nesta matria ,constata-se, na obra de ambos os autores, substnciapara uma vastssima fonte de discrepncias.Alis, se Schutz ocupasse um terreno inter-mdio o que de todo bastante improv-vel o mesmo no se poderia dizer de Par-sons. Schutz pretende estabelecer uma re-lao activa entre a percepo intersubjec-tiva do mundo quotidiano e as cincias soci-

    53 Cfr. Burke Thomason, Making sense of reifica-tion, op. cit., p. 30-31.

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    ais. Isto traduz-se, em relao ao seu opo-nente/interlocutor, em substanciais diferen-as de metodologia cientfica que no so fa-cilmente compatveis com ecletismo cient-fico.

    Nesse sentido, parece mais legtimo acei-tar a explicao de Wagner, segundo a qualSchutz ter lido de forma incorrecta as in-tenes de Parsons, vislumbrando neste umatentativa de correco de Weber que passavapor uma abordagem onde a psicologia social

    e a fenomenologia desempenhariam um pa-pel importante54.

    Na verdade, uma leitura de muitos dosensaios schutzianos e da vasta obra de Par-sons evidenciam uma mais do que provvelfrico profunda entre o pensamento da so-ciologia de inspirao fenomenolgica e ateoria parsoniana da aco. Referimo-nos,em primeiro lugar, a orientaes metodol-gicas completamente divergentes sobre as re-

    laes entre a Cincia Social e o mundo doconhecimento vulgar e, em segundo lugar,s consequncias que estas orientaes com-portam para a concepo de integrao so-cial e de relaes entre os agentes e as nor-mas. Ora estas duas reas revelaram-se fun-damentais nas discusses que atravessaram osculo passado entre as duas teorias e os seusseguidores.

    54 Helmut Wagner citado por Fred Kernstin, Edi-

    tors Preface in Alfred Schutz The Problem of Raci-onality in the social world, Collected Papers IV,Dro-drecht, Boston and London, Kluwer Academic Pu-blishers, 1996. O quarto volume dos Collected Pa-

    pers foi editado aps a morte de Helmut Wagner, im-portante estudioso de Schutz, ao qual Ilse Schutz en-tregara um conjunto de inditos com este objectivo,cerca de vinte anos depois da publicao dos trs pri-meiros volumes. Wagner ainda surge como editor.

    3.1 Divergnciasepistemolgicas: abordagemsubjectiva

    Parsons nunca estendeu a sua rejeio do po-sitivismo na anlise social aos mtodos dascincias positivas, considerando mesmo emThe structure of social action, que existe umncleo metodolgico comum a todas as cin-cias empricas, qualquer que seja o seu ob- jecto de estudo. O conhecimento racional

    um todo orgnico55. Nesse sentido, to-das as cincias merecedoras desse nome pro-cedem integrao das observaes emp-ricas discretas em conceitos teorticos dota-dos de abstraco, expressando-se atravs deleis gerais analticas. Por exemplo, a mec-nica newtoniana tinha como ponto de partidaa observao de corpos em queda ou de bo-las rolando em planos inclinados. Estas ob-servaes jamais poderiam ter fornecido as

    bases para a elaborao das leis sobre a gra-vitao universal, a no ser que se expressas-sem em termos de conceitos abstractos e ana-lticos como sejam massa, acelerao,etc. Ou seja, a abstraco conceptual em re-lao ao concreto uma condio teorticaessencial para a formulao de leis cientfi-cas. Embora as cincias sociais analisem fe-nmenos subjectivos, no se podem excluirdeste padro geral de desenvolvimento cien-tfico. Deste modo, para Parsons no h co-nhecimento emprico que no seja concep-tualmente formado. Toda a referncia a da-dos puros dos sentidos, experincia pura oua corrente de conscincia, no apenas des-critiva da experincia em si mas uma ques-to de abstraco metodolgica, legtima e

    55 Cfr.Talcott Parsons, The structure of social ac-tion, op. cit, p. 21; p .28.

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    importante para certos fins, mas de todos osmodos, abstraco56. Para se expressar comouma cincia, capaz de formular resultadosatravs de leis dotadas de generalidade, a so-ciologia tem de passar pela fase crucial dedesenvolvimento conceptual em que os ele-mentos analticos sejam desenvolvidos comoos meios de exprimir os resultados da obser-vao sociolgica.

    Na investigao sociolgica, apenas se ob-tero, em primeira instncia, coleces de

    observaes discretas semelhantes s expe-rincias isoladas que o fsico vai anotandono seu dirio. Com o fim de dar origem aleis gerais cientficas, preciso decompor es-sas unidades discretas em componentes queas integram ou seja em elementos analticos.Da mesma forma em que um corpo fsico descrito como tendo uma certa massa, velo-cidade, etc., um acto deve ser descrito comotendo um certo grau de racionalidade, de-

    sinteresse, etc. a estes atributos geraisde um fenmeno concreto relevantes dentrodo enquadramento de um determinado qua-dro de referncia descritivo, e a certas com-binaes deles, que se aplicar o termo ele-mentos analticos57. Verificar-se- que cadaobservao compreender uma combinaoespecfica dos valores de um ou mais ele-mentos analticos. Estes elementos analti-cos no deixam de ser uma abstraco, umavez que se referem a uma propriedade geral:a massa de um corpo, tal como a raciona-lidade de um acto, nunca podem ser obser-vados empiricamente como tais 58. Por seulado, uma experincia universal da cin-cia que estes elementos analticos, uma vez

    56 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 28.57 Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 34.58 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 35.

    claramente definidos, apresentaro determi-nados modos uniformes de relao, os quaissero chamados leis analticas59. A obser-vao fundamental mas a cincia sociol-gica s emerge quando as observaes con-sideradas de per si forem decompostas emelementos constitutivos susceptveis de in-tegrarem leis universais. Este predomnioda concepo objectivista da cincia socialno impedir Parsons de apresentar uma lei-tura relativamente acolhedora do conceito de

    verstehen (compreenso) atravs do qual eletenta introduzir na teoria da aco um ele-mento normativo. Porm, a dimenso sub-jectiva fica largamente reduzida interiori-zao das normas.

    A abordagem Teoria Social formuladapor Schutz, tinha tido lugar na sequncia dosgrandes debates levados a efeito durante oSculo XIX, na Alemanha, sobre a naturezae a metodologia das Cincias Sociais. O

    seu primeiro estudo Der Sinnhafte Aufbauder sozialen Welt, publicado em Viena em193260 j constitua uma leitura sobre ospressupostos metodolgicos de Weber feita luz de uma conceptualizao fenomenol-gica. Neste trabalho, como alis em toda asua obra, Schutz insistiu em que o mundo so-cial era susceptvel de ser interpretado pelosseus membros como significativo e intelig-vel em termos de categorias sociais, o queabria a porta possibilidade de uma relaoentre a Cincia Social e o conhecimento vul-gar dos agentes sociais

    Para fundamentar este ponto de vistaSchutz, em Concept and Theory Formation

    59 Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p.36.60 Utiliza-se neste artigo a traduo de 1967. Al-

    fred Schutz , Phenomenology of social world, Evans-ton, Illinois, Northwestern University Press, 1967(Trad: George Walsh e Fr. Lehnert).

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    in the social sciences insistiu em trs pon-tos fundamentais. Em primeiro lugar, defen-deu a distino entre cincias naturais e ci-ncias sociais com base no facto de que assegundas lidam com acontecimentos e rela-es pr-interpetadas e, como tal, significa-tivas para os actores evolvidos. Em segundolugar, argumentou que os processos compre-ensivos so procedimentos centrais para queos actores sociais possam interpretar signifi-cativamente o mundo. Finalmente, defendeu

    o mtodo da compreenso enquanto abor-dagem da subjectividade do actor como ummtodo indispensvel para as cincias soci-ais. Com efeito, o mundo da natureza, talcomo explorado pelos cientistas naturaisno significa nada para as molculas, to-mos e electres. Mas o campo de obser-vao do cientista social a realidade so-cial tem um significado especial e uma es-trutura relevante para os seres vivos, agindo

    e vivendo nele. Atravs de constructos dosenso comum eles pr-seleccionaram e pr-interpretaram este mundo que eles experi-mentam como a realidade do seu dia a dia. isto que determina o seu comportamentomotivando-o61.

    Aplicando este raciocnio observao ci-entfica, Schutz conclua mesmo que esta ac-tividade est permeada por relaes de com-preenso entre os agentes, antecipando-se sconcluses que Karl Otto Apel, 20 anos maistarde, elaboraria sobre est matria: o pos-tulado que explica e descreve o comporta-mento humano em termos de uma observa-o emprica controlvel revela-se curto pe-rante a descrio e explanao do processo

    61 Alfred Schutz, Concept and theory formation inthe social sciences in Alfred Schutz, Collected Pa-

    pers, Vol. I, The Hague, Martinus Nijjoff, 1962, p.59.

    pelo qual o cientista B controla e verifica aspesquisas e concluses do cientista A. Parafazer isso, B tem que saber o que A obser-vou qual era o objectivo da sua investigao,porque ele pensou o facto observado comodigno de ser observado, isto relevante parao problema cientfico em causa, etc. Este co-nhecimento vulgarmente chamado de com-preenso62.

    Assim, para Schutz a compreenso (vers-tehen) fundamental, seja na vida quotidi-

    ana quando interpretamos as aces uns dosoutros, seja na cincia social, quando ondeo nosso objectivo chegar a uma compreen-so significativa da realidade social que, si-multaneamente, tenha algum significado aosolhos do conhecimento partilhado no mundoda vida. Se o mundo social surge como umamatriz de actividade interpretada pelos parti-cipantes com recurso a constructos intersub-jectivamente vlidos, Schutz opina que a sua

    influncia na aco social no pode ser ig-norada pelos cientistas sociais. Estes podemcriar constructos de segunda ordem, que ori-ginam modelos tipificados de estudo da ac-o social.

    Nesse sentido, na sua apreciao da obrade Parsons no decurso da fracassada corres-pondncia entre ambos, Schutz arguiria queParsons se esquiva a demonstrar a razo pelaqual a referncia ao ponto de vista subjec-tivo um pr-requisito para a teoria da ac-o63. Schutz ir mais longe. Dir que Par-sons tem uma intuio correcta segundo aqual uma teoria da aco ficaria sem signi-ficado sem a apreciao do ponto de vistasubjectivo. Porm, acusa Parsons de no se-

    62Alfred Schutz, Concept and theory formation inthe social sciences, op. cit., p. 53

    63Richard Grathoff, Theory of social action, op.cit., p. 36

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    guir esse ponto de vista at s suas ltimasconsequncias. Nesse sentido, argumentaque Parsons substitui os eventos na mentedo actor por uma observao apenas aces-svel ao observador, confundindo a observa-o objectiva dos fenmenos objectivos comos prprios fenmenos objectivos64. Na res-posta, Parsons no podia ser mais claro: osfenmenos cientficos s podem ser descri-tos quando descritos e analisados por um ob-servador 65 Nesse sentido, o ponto de vista

    subjectivo ganha, em Parsons, uma dimen-so puramente lgica.

    3.2 Controvrsias sobre a ordemsocial

    3.2.1 Parsons: a orientao normativa

    O uso parsoniano da interiorizao social ea sua insistncia no papel motivacional dasnormas e dos valores, constitua um modode soluo do problema hobbesiano e umatentativa firme de resposta s questes relaci-onadas com a possibilidade de coordenaosocial dos projectos individuais dos agentes.Como viria a ser substancialmente assina-lado, partindo de um enquadramento tericoque comeava com uma certa consideraodo ponto de vista subjectivo do actor, Par-sons acabava por chegar a uma anlise com-pletamente externa das normas e dos valores

    encaradas como determinantes da conduta.Em Parsons, a dimenso subjectiva da ac-

    o fica reduzida mera interiorizao doenquadramento normativo. A forma comoa sua conceptualizao evolui, indicia, ape-sar da referncia enftica ao papel de Weber,

    64 Ibid., op. cit. p. 36.65 Talcott Parsons, Structure of social action, op.

    cit., p. 88.

    que a resposta da teoria voluntarista da acoe, em especial do estrutural-funcionalismo,ao problema da diversidade, se manifestaatravs da formulao de uma ideia de in-tegrao social e de formao de consensofundada especialmente nas formulaes deDurkheim.

    As concepes que apontam para um es-tado de anarquia e de guerra de todos con-tra todos (que ser superado, para em, seulugar, se instaurarem o equilbrio e o con-

    senso social), remontam a Hobbes e suaassero segundo a qual um preceito ouregra geral de toda a razo que o homem sedeve esforar pela paz. Detecta-se, ao longoda obra de Hobbes, um rigor lgico que ocoloca ao mesmo tempo nas correntes con-traditrias designadas por jusnaturalismo oudo direito natural, e por positivismo jurdico.Preceitua-se que aco justa no estado civil aquela conforme a lei que deriva da vontade

    do soberano, o que remete para uma concep-o formal de direito na base da qual a jus-tia consiste na observncia da ordem jur-dica positiva, qualquer que seja o seu con-tedo. Prescreve-se a existncia de um Es-tado Absoluto assente na monopolizao daproduo do Direito pela eliminao de to-das as fontes que no sejam a lei. Por ou-tro lado, considera-se a existncia de uma leinatural como ditame da razo. Como que possvel o carcter absoluto do Estado sea vontade do soberano deve obedecer leinatural? Na opinio de Bobbio, a explicaodo paradoxo reside na especificidade do con-ceito hobbesiano da razo. A razo, em Hob-bes, no a faculdade com a qual aprende-mos a verdade evidente dos primeiros princ-pios. Tem um contedo utilitrio e finalista:serve para distinguir o que conveniente einconveniente para alcanar a paz, concebida

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    como fim supremo pela lei natural. A lei na-tural aquele ditame da razo que sugere aohomem que se quer a paz , deve obedecerem tudo lei positiva. Ao contrrio da mai-oria dos jusnaturalistas, o fundamento con-tratualista do Estado, em Hobbes, serve paragarantir a ausncia de limites ao seu poder.Ou seja, enquanto para os outros jusnatura-listas a naturalis ratio ou recta ratio o bem,para Hobbes a lei natural prescreve a procurada paz. Desta lei fundamental, considerada

    como primeiro princpio da razo prtica, de-rivam as restantes leis. Fundamenta-se esteponto de vista numa concepo fortementepessimista sobre o estado original que pre-cede o contrato: os homens no retiram pra-zer algum da companhia de outros homens(e, sim, pelo contrrio, um enorme despra-zer) quando no existe um poder capaz de osmanter a todos em respeito.66 A justia s passvel de ser realizada no Estado Civil,

    pois onde no h poder comum e no h lei,no h injustia. Na guerra [de todos contratodos que tpica do estado natural], a forae a fraude so as virtudes cardeais. A jus-tia e a injustia no fazem parte das facul-dades do corpo ou do esprito67. Pelo con-trrio, aps a realizao do pacto intersubjec-tivo entre os homens, um preceito ou regrageral da razo que todo o homem se deve es-forar pela paz. A integrao social ganhauma fora coactiva em que a vontade dos su-jeitos se reduz obteno da paz. O homemconcorda em desistir da sua liberdade natu-ral em favor da autoridade soberana que, emtroca, garante a sua segurana.

    Este percurso fundamental para uma

    66 Thomas Hobbes, Leviat, Lisboa, Imprensa Na-cional Casa da Moeda, 1995, p. 111.

    67 Ibid., p. 113.

    certa linha da sociologia. Em Durkheim,(uma das principais influncias que Parsonscita quanto fase do seu percurso que classi-fica como estrutural-funcionalista) a pos-sibilidade de realizao da felicidade hu-mana olhada, prioritariamente, sob o pontode vista da integrao social e da forma-o de um consenso68. Encontra-se emDurkheim, principalmente quando aborda osuicdio e a diviso do trabalho, uma ques-to de acentuado recorte hobbesiano: quais

    os mecanismos que permitem aos indivduosintegrarem-se na sociedade? Ou seja, como que sociedades, que prezam tanto o indivi-dualismo, se podem proteger contra as pre-tenses egosticas dos seus membros e alcan-ar um mnimo de consenso? Ou, de outromodo, como que a autonomia do indiv-duo compatvel com a existncia social?Para este autor, a ausncia da aco mode-radora da norma conduz a um estado de ano-

    mia ao qual devem ser atribudos (...) osconflitos incessantemente renovados e as de-sordens de toda a espcie de que o mundoeconmico nos d um triste espectculo.69Ainterveno da conscincia colectiva, enten-dida como conjunto de crenas e de sen-timentos comuns mdia dos membros deuma mesma sociedade (....) independentedas condies particulares em que os indiv-duos se encontram70, entendida como pos-suindo uma natureza diferente dos estadosde conscincia individual71, constitui umdos contributos fundamentais de uma pers-pectiva que privilegia uma viso pacificante,

    68 cfr. mile Durkheim, A diviso do trabalho so-cial, vol. 2, Lisboa, Presena, 1977, pp. 9-34.

    69 Ibid., p. 9.70 Ibid., p. 99.71 mile Durkheim, As regras do mtodo sociol-

    gico, Lisboa, Editorial Presena, 1987, p. 17.

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    na qual as partes s tm sentido quando en-tendidas em simultneo com o todo org-nico72. A conscincia colectiva distintadas conscincias individuais. Com efeito,ao agregarem-se, as almas individuais doorigem a uma individualidade psquica denovo gnero.73 Como observa Luhmann,em Durkheim, moralidade e solidariedadeso gmeas74.

    Encontramo-nos perante uma viso queconcebe a sociedade como um todo, mais do

    que em termos de uma pluralidade ou de umconflito entre diferentes grupos e foras so-ciais. Perspectiva-se a defesa de uma soci-edade onde o indivduo participar na ener-gia colectiva pela realizao da sua funo:o imperativo categrico da conscincia mo-ral est em vias de tomar a forma seguinte:pe-te em estado de desempenhar utilmenteuma funo determinada75. Nessa medida,defende-se uma articulao entre o todo e

    as partes, pela qual a liberdade , ela pr-pria, produto de uma regulamentao: Noposso ser livre seno na medida em que ou-trem impedido de beneficiar da superiori-dade fsica, econmica ou outra de que dis-pe para sujeitar a minha liberdade. 76 Coe-rente com a tentativa de encontrar uma formalgica de descrever a interpenetrao entreindivduo e sociedade, o seu modelo com-preende uma dinmica dos factos sociais queenaltece o sujeito apenas como plenamente

    72 Nesse sentido, Durkheim torna claro que os mo-tivos do seu trabalho se relacionam com a questo dasrelaes entre a personalidade individual e a solida-riedade social. mile. Durkheim, A diviso do tra-balho social., vol. 1, p. 49.

    73Cfr Ibid., pp. 102-103.74 Niklas Luhmann, The differentiation of society,

    New York, Columbia University Press, 1982. p. 7.75 Ibid., p. 56.76 Ibid., p. 10.

    realizvel no todo. Deste modo, o indivduos pode conseguir a sua realizao, aceitandoo seu papel e a sua funo no interior do sis-tema da diviso de trabalho.

    O consenso social imaginado por estas re-flexes de linhagem hobbesiana privilegia aordem como um ponto de partida, pressen-tindo no conflito e na dissidncia uma fontede desprazer e de sofrimento que ameaam aprpria possibilidade de relaes sociais es-tveis. A hiperbolizao da sociedade, como

    algo que vive em si, dotada de uma facti-cidade e uma exterioridade incontornveis,transformam a fora coactiva do consensosocial numa minimizao do papel transfor-mador e activo do agente social.

    O pensamento de Parsons, uma das facesmais visveis deste ponto de vista que tende aenfatizar o consenso, dedica a maior parte doseu esforo analtico explorao das razesque podem justificar a estabilidade e a dura-

    bilidade das estruturas sociais. Norbert Eliascomenta, a propsito dos excessos do funci-onalismo: temos que imaginar o rio comoesttico antes de dizermos que ele corre77.Mais uma vez maneira de Hobbes, o pro-blema que persegue Parsons o da forma decoordenar a pluralidade de fins perseguidospelos diversos sujeitos, continuando a man-ter a ordem social, sem que surja a guerrade todos contra todos. A grande questo, in-tuda em The structure of social action, ,

    77 Norbert. Elias, Introduo sociologia, Lisboa,Edies 70, 1980, p. 125. Elias acrescenta: Foi-seto longe na direco oposta ( da conceptualizaoda mudana) que lderes tericos da sociologia, comopor exemplo Talcott Parsons, consideram a estabili-dade ou a imutabilidade como caractersticas normaisde um sistema social, e a mudana apenas como con-sequncia de perturbaes do estado normal de equi-lbrio das sociedades.

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    mais uma vez, a de como possvel a ordemquando o homem basicamente destrutivo ecompetitivo. Nessa medida, desde The struc-ture of social action, s a orientao norma-tiva pode garantir a Parsons o mnimo de or-dem e de harmonia requerida para a manu-teno da sociedade como uma colectividadee para sustentar a possibilidade de evitar ocaos. Assim, a institucionalizao de normase de valores comuns e a sua interiorizaopelos indivduos membros de uma dada soci-

    edade a chave que se tornar determinanteao longo do seu trabalho para a compreen-so da ordem social. O esforo terico deParsons traduz-se, em larga medida, na re-duo da aco social a um processo no in-terior do qual garantido que as interacestendem a restabelecer a harmonia e o con-senso, proporcionando a integrao no sis-tema78. O problema da legitimidade espe-cialmente reduzido transformao das ex-

    pectativas sociais em exigncias legtimas luz dos padres normativos vigentes. Umsistema tem de ter uma aprovao suficientedos seus actores adequadamente motivadospara agir de acordo com as exigncias dosseus papis, positivamente na realizao dassuas expectativas e, negativamente, quanto absteno de comportamentos demasiado

    78 No ser por acaso que Talcott Parsons comeaa introduo ao primeiro captulo de O sistema das

    sociedades modernas com uma espcie de declaraode filiao: Este livro tem muitas razes intelectuais.Talvez a mais influente seja o idealismo alemo quevai de Hegel a Marx e Weber. Embora hoje estejaem moda ridicularizar a glorificao que Hegel fez doEstado Prussiano, na verdade desenvolveu uma teoriacomplexa da evoluo societria geral e a sua culmi-nao no Ocidente moderno(...) Talcott Parsons, Osistema das sociedades modernas, So Paulo, Livra-ria Pioneira Editora, 1974, p. 11.

    disruptivos, isto , desviantes79. Devem-seevitar os compromissos com padres cultu-rais normativos que no assegurem um m-nimo de ordem ou que dem origem a exi-gncias impossveis por parte das pessoas,que gerem desvio e conflito a um nvel in-compatvel com um mnimo de condiesde estabilidade e de desenvolvimento orde-nado.80 Toda a mudana, nesse sentido, rapidamente catalogada como desvio. To-das as reclamaes particulares so olhadas

    como uma ameaa clara capacidade inte-gradora do sistema. Talcott Parsons no he-sita em classificar de fundamentalistas as po-sies tericas que expressam uma resistn-cia generalizao de valores81. A falta deadequao dos indivduos s normas moraisintegradoras, designada por anomia, classi-ficada como a anttese polar da instituciona-lizao plena ou mesmo como o colapso daordem normativa82. Com base numa des-

    confiana em relao aos movimentos soci-ais, qualquer criticismo imanente surge, naverdade, como reprovvel. A comunidadesocietria considerada como um corpocorporativo de cidados que empreendem re-laes consensuais com a sua ordem norma-tiva83. A abordagem conceptual de Parsonsem relao comunidade societria centra-se na ideia de integrao, promovendo a par-tilha de um sistema de crenas comuns entreos participantes da interaco84. Assim, a

    79 Talcott Parsons, The social system, New York,The Free Press, 1964, p. 27.

    80 Ibid., pp. 26-27.81 Talcott. Parsons, O sistema das sociedades mo-

    dernas, op.cit., p. 122.82 Ibid., p. 81.83 Ibid., p. 24.84 Cfr .Talcott Parsons, The social system, op.cit.,

    pp. 325-332.

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    ordem normativa ao nvel societrio contmuma soluo para o problema de Hobbes isto , impedir que todas as relaes huma-nas degenerem at ao ponto de uma guerrade todos contra todos. 85 Nesse sentido, afuno primria desse subsistema integrador definir as obrigaes de lealdade comu-nidade societria, tanto para os participan-tes como um todo, como para as diferentescategorias de status e papis diferenciadosno interior da sociedade86. Considera-se,

    pois, que a teoria individualista tem enfati-zado exageradamente o interesse pessoalpelo que o problema mais imediato para amaioria dos indivduos no caso de conflito o ajustamento das obrigaes entre lealdadescompetitivas87Virando as costas s possibi-lidades normativas que resultavam dos mo-vimentos sociais, vislumbrando em todos omesmo delrio fundamentalista, esta teoriaacaba por conduzir ideia de que s a gera-

    o de novas formas de influncia pode levara um consenso normativo que provenha re-cursos capazes de integrarem a comunidadesocietria.

    Este trabalho seria dificilmente compat-vel com o de Schutz sobretudo pela suaimensa oposio a uma concepo subjecti-vista e individualista. Com efeito, as diferen-as de concepo ao nvel da Teoria Social eda Metodologia das Cincias Sociais impli-cavam juzos sobre o papel do actor socialque no caso de Schutz, possibilitavam umaaproximao contingncia e entropia in-suportveis para uma viso funcionalista.

    A questionao moral, tica ou pol-tica parece arredada do universo terico de

    85 Talcott Parsons, O sistema das sociedades mo-dernas, op.cit., p. 23.

    86 Ibid., p. 24.87 Idem Ibidem.

    Schutz. Com efeito, este no pretende fazerqualquer apologia desta ou daquela formade estar no mundo mas apenas descrev-la.So relativamente escassas as referncias deSchutz dos quais se possam inferir a existn-cia de um posicionamento explcito ao nvelde questes com repercusso na praxis.

    A insistncia na atitude natural podemesmo induzir em erro e parecer a apolo-gia de um certo esprito despido de inten-es crticas. O assunto pode ser abordado

    de vrios modos. A verdade que em toda aabordagem do mundo da vida est implcitauma certa ideia de crtica que alguns j con-sideravam remontar a Husserl.88 A crticaao cientismo generalizou-se de um modo queestaria presente durante quase todo o sculoXX atravs de Weber, de Luckcs e da Es-cola de Frankfurt. Com Habermas, o mundoda vida seria mesmo objecto de uma abor-dagem essencialista na qual se diagnostica a

    existncia de dois domnios sociais sis-tema e mundo da vida - que se diferen-ciam consoante a racionalidade que predo-mine em cada um deles seja comunicacio-nal ou instrumental 89. Do ponto de vista

    88 Segundo Bragana de Miranda, trata-se de umatradio que, de certo modo, remonta ao prprio Hus-serl. O mundo da vida seria a instncia dos valores poroposio ao universo da cincia, ou melhor do reduci-onismo cientista degradado transformado em projectode dominao do mundo. (Jos Augusto Bragana

    de Miranda, Analtica da actualidade, Lisboa, Vega,1994, pp. 54-55).

    89 Com efeito, em Habermas estabelece-se, uma di-ferena entre: 1) o enquadramento institucional deuma sociedade ou mundo vital scio-cultural, e 2) ossubsistemas de aco racional relativa a fins que se in-crustam nesse enquadramento. Na medida em que asaces so determinadas pelo marco institucional soao mesmo tempo dirigidas e exigidas mediante expec-tativas de comportamento, sancionadas e recprocas.Na medida em que so determinadas pelos subsis-

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    do mundo da vida, focam-se os elementosda razo prtica, enquanto o ponto de vistado sistema enfatizam-se os elementos rela-cionados com a aco teleolgica e a razoinstrumental. No mundo da vida prevalecemmecanismos de intercompreenso e de con-senso, enquanto no sistema prevalecem osmecanismos de troca e de poder.

    Porm, como Lvinas j intura numa ob-servao dirigida a Heidegger90, o prpriomundo da vida pode ser um lugar de reifica-

    o. Ora, a verdade que Schutz, sem nuncater feito uma extensa abordagem tica ou po-ltica, deixou um percurso aberto reflexi-vidade no seio desse mundo, abrindo portas

    temas de aco racional-teleolgica, regulam-se pormodelos de aco instrumental ou estratgica. (Jr-gen. Habermas, Cincia e tcnica como ideologia,Lisboa, Presena, 1987, p. 60) Urge, assim, detec-tar as instncias de resistncia, as esferas aonde existeuma outra lgica em nome da qual seja possvel de-fender a utopia de uma sociedade sem restries co-

    municao. A resistncia penetrao dos universossistmicos desloca-se para o horizonte de interaco epara o mundo da vida scio-cultural: a racionalizaoao nvel do mundo da vida scio-cultural implicariaa extenso da comunicao isenta, enquanto ao nveldos sistemas de aco racional implicaria o aumentodas foras produtivas e a extenso do poder de dispo-sio da tcnica.

    90 Lembramo-nos, por associao de ideias, destapassagem de Lvinas em que este nos alerta para ofacto de que a reificao no apenas o primado datcnica como Heidegger ( e com ele, todo o marxismo

    romntico, primordialmente de Marcuse), parece pen-sar: quando Heidegger deplora a orientao da inte-ligncia para a tcnica mantm um regime de podermais desumano que o maquinismo e que talvez notenha a mesma origem que ele. (Heidegger no tem acerteza de que o nacional-socialismo provm da reifi-cao mecanicista dos homens e que no assente numenraizamento grosseiro e numa adorao feudal doshomens subjugados pelos senhores e mestres que oscomandam). V. Lvinas, Descobrindo a existnciacom Husserl e Heidegger, op. cit., p. 167.

    que Parsons fechava. O individualismo me-todolgico e a sua abertura subjectividadee pluralidade de modos de conhecer noseio do mundo da vida tinham consequnciasnoutros planos. Geravam uma concepo deaco social que era incompatvel com o de-terminismo normativo.

    Com efeito, a sociologia de inspirao fe-nomenolgica abordou de frente a questoda particularidade, reconhecendo, de modoexplcito, a existncia do fenmeno que hoje

    entendemos como pluralizao dos mundosda vida. Cada um percebe o mundo e ascoisas dentro do mundo desde o particularponto de vista em que est colocado em cadamomento, e tambm desde determinados as-pectos e perspectivas que variam na depen-dncia do ponto de vista.91 O conhecimentoprprio da atitude natural na quotidianeidadetraz a sua evidncia em si prprio ou emvez disso, tido como pressuposto na falta

    de evidncia em sentido contrrio. um co-nhecimento de receitas certas para interpre-tar o mundo social e para lidar com pessoase coisas, de forma a obter em cada situa-o, os melhores resultados possveis com omnimo esforo, evitando consequncias in-desejveis92. Com efeito, a atitude naturaltem uma premissa de confiana na perma-nncia das estruturas do mundo que ganhaespecial sentido quando pensada em relao sociabilidade: eu confio que o mundo talcomo tem sido conhecido por mim perma-necer e que consequentemente o acervo deconhecimentos obtidos dos meus sucessorese formado pelas minhas prprias experin-

    91 Aron Gurwitsch, Introduction, op. cit., p. xiii;p. xv.

    92 Alfred Schutz, O cenrio cognitivo do mundoda vida, in Helmut Wagner, (org.), Fenomenologia erelaes sociais, op, cit., p. 83.

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    cias continuar a preservar a sua validadefundamental93. Neste sentido, admiss-vel concluir pela existncia na atitude natu-ral pragmtica, realista e carente de refle-xividade de uma certa forma de conheci-mento que implica uma aceitao que sus-ceptvel de ser equacionado luz daquilo queuma certa tradio do pensamento conside-rou como sendo a reificao94. A atitude na-tural e o conhecimento do senso comum im-plicam que o processo constitutivo intei-

    ramente ignorado, enquanto que a objectivi-dade constituda perfeitamente tida por ad-quirida95. Embora Schutz nunca tenha uti-lizado o termo reificao, legtimo sus-tentar que a atitude cognitiva analisada nomundo da vida o conduz a identificar a ob-

    93 Alfred Schutz e Thomas Luckmann, Structuresof life-world, op. cit., p. 7.

    94 Segundo Frdric Vandenberghe que historiouo conceito, apesar da palavra reificatio no aparecerem qualquer dicionrio latino, deriva da contracodos termos res e facere e pode ser definida pelatransformao fsica ou mental de algo numa coisa,que originalmente no era, ou seja, a tendncia a ob-

    jectificar o que dinmico. Em suma, pode referir-se a um tornar-se coisa de algo que no , por di-reito, uma coisa. Ou seja, a reificao consiste ematribuir ilegitimamente uma facticidade, uma fixidez,uma externalidade, uma objectividade, uma imper-sonalidade, uma naturalidade, em suma, uma coisi-dade ontolgica julgada inapropriada. (Cfr. FrdricVandenberghe, Une histoire critique de la sociologieallemande, Paris, La Dcouverte/Mauss, 1996 pp. 25-

    28), Nesse sentido, a reificao social tem a ver com ofuncionamento relativamente autnomo dos sistemasda cultura e da sociedade modernas, e com a sua trans-formao em verdadeiros cosmos fechados, funcio-nando independentemente da vontade dos indivduos.cfr..Ibid., p. 38. Na medida em que a reificao signi-fica a determinao do indivduo pelo exterior, pelasmacroestruturas da ordem material, significa, pois, asabotagem da liberdade individual. cfr..Ibid., p. 220.

    95 Alfred Schutz, Phenomenology of social world,op. cit., p. 82.

    jectividade como constituda e como taldependente de processos subjectivos. Simul-taneamente, conduz ideia de que as pessoasreificam sempre que ignoram essa constitui-o, tomando a objectividade por garantida.H uma espcie de congelamento do qualdepende o esquecimento do papel activo dasconscincias dos agentes sociais. Esta an-lise no implica, tal como acontece na tra-dio marxista, uma condenao, a adopode uma atitude crtica em relao aos proces-

    sos de reificao tal como sucede na obra deLuckcs ou de Adorno. Pelo contrrio, estimplcita a ideia que, de certo modo, este es-quecimento dos processos activos de consti-tuio indispensvel para uma integraosocial bem sucedida. Sem esta dose de inter-pretao, que implica um certo grau de rei-ficao e at de inautenticidade, os actoressociais perderiam o contacto com um mundopartilhado de significados que tornam poss-

    vel a sociabilidade. De certa forma, comoconstituintes, os actores sociais so potenci-almente intrpretes. Porm, sem a partilhade significados comuns, o mundo social ga-nharia um estado de devir permanente e adiversidade da vida seria uma porta abertapara uma entropia dificilmente suportvel.Com efeito, toda a actividade da conscincia uma actividade tipificadora na qual cadaexperincia do actor ocorre dentro dum ho-rizonte de familiaridade e pr-conhecimento.A percepo prpria do senso comum efec-tuada com base em tipos. Estruturamos omundo de acordo com tipos e relaes tpi-cas entre tipos. 96

    Porm, da mesma forma que Schutz

    96 Alfred Schutz, Type and edos in Husserls latephilosophy in Collected papers, vol. III, op. cit., pp.94-95.

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    chama a ateno para este aspecto passivodo estilo cognitivo do mundo da vida e daatitude natural, tambm destacou a dimen-so subjectiva da constituio. Ora, ao faz-lo introduz uma larga margem para abrir asportas contingncia social.

    Com efeito, Schutz reconheceu que omundo da vida traz, em si, mais do quea realidade quotidiana e recorreria a Wil-liam James e ao seu conceito de sub-universos para se referir s provncias de

    significado finito, a cada uma das quais cor-responde um particular estilo cognitivo97.Com o termo provncias de significado fi-nito, Schutz est a definir horizontes designificao plurais, onde determinadas pro-posies so aceites enquanto no entraremem conflito com outros pensadas ao mesmotempo. Entre estas contam-se o sono, a ex-perincia esttica, a fantasia, o mundo da ci-ncia, o mundo da arte e o mundo das cren-

    as religiosas. A ateno de Alfred Schutz multiplicidade de realidades, a conscin-cia da existncia de grupos diversificados, aateno dedicada ao papel do outro, do es-trangeiro e do marginal so elementos cen-trais do seu pensamento, contribuindo para apossibilidade de compreenso reflexiva dosmecanismos de formao do estilo cognitivointerior de cada grupo98. A multiplicao

    97 Alfred Schutz e Thomas Luckmann, Structures

    of life-world, op. cit., p. 21-22.98 Desde logo, devem referir-se nesta matria tex-tos fundamentais de Schutz como The homecomer(Collected papers, vol. II, pp. 106-119) aonde seprocede descrio da estranheza da situao sentidaquando do regresso a casa vindo da frente de guerra;On multiple realities ( Collected papers, vol. I, op.cit., pp. 207-259); Don Quijote and the problem ofreality onde o problema das realidades mltiplas retomado (Collected Papers, vol. II) ; e at The wellinformed citizen (Collected Papers, vol. II, op. cit.,

    de experincias, bem como a possibilidadede as observar de uma outra perspectiva de-monstra que os consensos sobre a realidadesocial estabelecidos em cada grupo internoso, cada um por si, afinal um entre outrospossveis. Com o faz questo de precisarThomason, mesmo no universo da fantasiaou da demncia (o caso de Don Quijote),Schutz abstm-se de formular qualquer ar-gumento ontolgico sustentando o mundo darealidade quotidiana como o mundo autenti-

    camente real99.O reconhecimento explcito de uma certa

    contingncia inerente aos mundos da vidadeixa em aberto o caminho da reflexividadecomo um elemento essencial de superaodo seu carcter coercivo. nessa medidaque Schutz no hesitar mesmo em afirmarque o que est para alm de qualquer ques-tionamento at agora pode ser sempre postoem questo100. Com efeito, o que tido

    por garantido no forma uma provncia fe-chada, articulada inequivocamente e clara-mente arranjada. O que tido por garantidodentro da situao predominante no mundoda vida est rodeado de incerteza 101Os ac-tores sociais agem com base nos saberes ad-quiridos nas suas histrias efectivas, ou seja,de acordo com as suas situaes biogrficasdeterminadas. Estas sempre enfatizam de-terminadas possibilidades de aco em de-trimento de outras, tornando os actores e os

    pp. 120-134), onde o carcter fludo e susceptvel deser sobreposto e alterado do sistema de relevncias demonstrado.

    99 Burke Thomason, Making sense of reification,op. cit., p. 110.

    100Alfred Schutz, Type and edos in Husserls latephilosophy in Collected papers, vol. III, op. cit., p.231.

    101 Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The struc-tures of life world, op. cit., p. 9.

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    intrpretes cegos para outros possveis quepodiam preencher as suas vidas. Porm, sea realidade como , no porque tem deser assim - porque dispe de uma qualquerpropriedade ontolgica mas sim graas aum consenso que se estabelece na vida quo-tidiana. Isto ser claramente assumido porSchutz num dos seus textos mais marcantes,a propsito de uma experincia to radicalcomo a loucura: o que a loucura o que o juzo num universo que a soma de todos

    os nossos sub-universos?102 Nem o sensocomum de Sancho nem a loucura de Quijotemerecem condenao. Se existem processossubjectivos de construo da realidade so-cial, ento ela reside sempre num consensocontingente que pode sempre ser substitudopor outro possvel 103.

    Evidentemente, pode-se dizer que se estperante um estilo intelectual, um mtodo euma atitude. Porm, dificilmente se pode ig-

    norar que resultam possibilidades para pen-sar a contingncia e a reflexividade da expe-rincia do sujeito moderno, de um modo emque a constante eroso que se verifica con-temporaneamente na estabilidade e na per-manncia dos mundos da vida e das provn-

    102 Alfred Schutz, Dom Quijote and the problem ofreality in Collected Papers, II, op. cit., pp. 157-158.

    103 .Nesse sentido, apontam os esforos desenvol-vidos num notabilssimo texto por Peter Berger paraestabelecer as semelhanas entre Musil O Homem

    sem Qualidades e Schutz, luz do seu texto OnMultiple realities. Nessas semelhanas, Berger en-contra dois traos fundamentais: uma abertura essen-cial a todos os modos possveis de experincia e umareflexividade persistente na observao do mundo.Peter Berger, The problem of multiple realities: Al-fred Schutz and Robert Musil in Maurice Natanson(Ed.) , Phenomenology and social reality: essays onmemory of Alfred Schutz, The Hague, Martinus Nij-

    joff, 1970, pp. 213-233.

    cias finitas de significado pode ser compre-endida de forma incompatvel com a con-sensualidade apriorstica definida pelo fun-cionalismo.

    Ao longo deste texto, fomos, pois delimi-tando duas reas em que se verifica a ausn-cia de concordncia e a existncia de duaslinhas dificilmente conciliveis.

    Em primeiro lugar, a dvida de AlfredSchutz com Husserl e Weber tornava incom-patvel uma fenomenologia que sublinhava

    o carcter intersubjectivo e interpretativo dasociabilidade com uma Teoria dos Sistemasque afirmava o predomnio da normatividadesocial sobre o indivduo.

    Em segundo lugar, a dvida terica deSchutz conduz dificuldade em compatibi-lizar a permanncia de um certo individua-lismo com a concepo que Parsons tinha dacomunidade societria. Esta segunda linhaexplica a existncia de uma poltica por de-

    trs deste movimento fenomenolgico a qual incompatvel com a concepo sistmicacentrada numa espcie de harmonia subli-nhada e enfatizada partida.

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