18
XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 COSMÓPOLIS, ANOS 1930; SÃO PAULO, ANOS 1930 REPRESENTAÇÕES, SUBJETİVİDADES E SABERES SOBRE A CİDADE Clovis Ultramari Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected] Manoela Massuchetto Jazar Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected] Isabela I. Moura Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná [email protected] RESUMO Este artigo tem como contexto maior o diálogo interdisciplinar entre urbanismo e literatura, referindo-se ao segundo campo como fonte investigativa sobre a cidade. A partir da geografia apresentada por Guilherme de Almeida em sua obra Cosmópolis (1929), recorrentemente considerada na sua relação com a metrópole de São Paulo, tem-se material para potencializar um debate sobre a cidade, sugerir linhas de investigação e de se ter, na literatura, uma fonte de informações para cenários urbanos específicos. O debate se faz a partir da descrição de Guilherme de Almeida de oito compartimentos urbanos em São Paulo habitados cada qual por um grupo distinto de imigrantes. Tal descrição é tomada como provocadora, apenas, de um debate sobre questões urbanas. Ficam explícitos a visão fractal do autor, as razões para que isso ocorra e possíveis distinções entre o relato não-ficcional e a realidade. Essa realidade é a da década de 1930, sempre considerada como modernizante e já sugerindo ares de globalização para São Paulo. O artigo conclui pela potencialidade da literatura como ferramenta investigativa para estudos da cidade, podendo contribuir para a redução de vazios investigativos e mesmo para um já sinalizado esgotamento dos modos tradicionais de se entender a cidade. PALAVRAS-CHAVE: Guilherme de Almeida. Literatura e Cidade. Epistemologia e História Urbanas.

COSMÓPOLIS, ANOS 1930; SÃO PAULO, ANOS 1930anpur.org.br/wp-content/uploads/2018/09/12_79527.pdf · deixando que se valorize a perspectiva por ele adotada e o que ela pode provocar

Embed Size (px)

Citation preview

XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

COSMÓPOLIS, ANOS 1930; SÃO PAULO, ANOS 1930

REPRESENTAÇÕES, SUBJETİVİDADES E SABERES SOBRE A CİDADE

Clovis Ultramari Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected]

Manoela Massuchetto Jazar Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected]

Isabela I. Moura Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná [email protected]

RESUMO

Este artigo tem como contexto maior o diálogo interdisciplinar entre urbanismo e literatura, referindo-se ao segundo campo como fonte investigativa sobre a cidade. A partir da geografia apresentada por Guilherme de Almeida em sua obra Cosmópolis (1929), recorrentemente considerada na sua relação com a metrópole de São Paulo, tem-se material para potencializar um debate sobre a cidade, sugerir linhas de investigação e de se ter, na literatura, uma fonte de informações para cenários urbanos específicos. O debate se faz a partir da descrição de Guilherme de Almeida de oito compartimentos urbanos em São Paulo habitados cada qual por um grupo distinto de imigrantes. Tal descrição é tomada como provocadora, apenas, de um debate sobre questões urbanas. Ficam explícitos a visão fractal do autor, as razões para que isso ocorra e possíveis distinções entre o relato não-ficcional e a realidade. Essa realidade é a da década de 1930, sempre considerada como modernizante e já sugerindo ares de globalização para São Paulo. O artigo conclui pela potencialidade da literatura como ferramenta investigativa para estudos da cidade, podendo contribuir para a redução de vazios investigativos e mesmo para um já sinalizado esgotamento dos modos tradicionais de se entender a cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Guilherme de Almeida. Literatura e Cidade. Epistemologia e História Urbanas.

2

COSMÓPOLIS, 1930’S; SÃO PAULO, 1930’S

ABSTRACT

The context of this article is the interdisciplinary dialogue between urbanism and literature; second investigative field is taken as a primary source for the debate. Such dialogue is restricted to the sole use of literature as a source of urban information. It refers to the book Cosmopolis (1929), by the Brazilian poet and essayist Guilherme de Almeida, mostly considered as reference of his relation with the city of São Paulo. Article uses Almeida´s interurban geography, its references to this city´s elements and compartments, and possible temporal relations between his text and urban changes implemented in the 1930´s. Guilherme’s work is taken solely as a provocative tool to discuss a debate on urban questions. It reiterates the author´s fractal consideration of the city and the potentiality of literature as a tool to understand specific and more general urban scenarios and processes. It also concludes for the possibility of taking literature as a tool to reduce investigative voids and as additional perspectives to old approaches already demonstrating scientific fatigue.

KEY-WORDS: Guilherme de Almeida. Literature and City. Urban Epistemology and History.

3

INTRODUÇÃO

A obra selecionada de Guilherme de Almeida é aquela em que a cidade ainda chama a atenção pela

modernidade e globalização. A primeira pelo simples crescimento demográfico urbano, neste período

com aproximadamente um milhão de habitantes e São Paulo já consolidada como a maior cidade

brasileira, por transformações urbanas significativas e por um significativo processo de industrialização.

A segunda é anunciada pela polarização que essa cidade exerceu sobre distintas etnias. Assim

entendida - moderna e global -, sobretudo a partir da virada do século XIX para o XX, vê-se, no campo

cientifico, o surgimento de um novo campo de estudos: o urbanismo. No Brasil, tardia, perifericamente,

mas, do mesmo modo que nos países centrais, este campo de estudo em formação se faz sob o

impacto de processos em níveis diversos de industrialização. Conforme Choay (2010), tal campo se

constituiria muito menos pela clara constatação de uma modernidade, mas sim pela confirmação de

um problema que demandava enfrentamento técnico. Deste mesmo contexto histórico, em sua origem,

é também a aproximação entre a literatura e a cidade, sendo a primeira reconhecedora das

transformações ocorridas na segunda. Nascimento (2014), por exemplo, localiza neste período um

estreitamento de relações entre esses dois campos, conectados por uma modernidade desejada e

explicitada: “A urbe moderna foi captada pelos discursos político e artístico, tornando-se, assim, o lócus

do mundo contemporâneo. Dessa forma, as cidades foram imortalizadas por escritores como Charles

Baudelaire, que escreve a Paris do século XIX” (p. 81), citando também Dickens com Londres, Borges

com Buenos Aires, Lisboa com Eça de Queiroz e Cesário Verde, e Rio de Janeiro com Machado de

Assis, João do Rio e Lima Barreto. O binômio modernidade e cidade atrairia também a intenção de um

novo campo da sociologia, onde, dentre outros, a Escola de Chicago, com nomes como Ernest

Burguess, Robert E. Park e Louis Wirth que dariam atenção à “patologia social”, criminalidade,

segregação e migração campo-cidade; Walter Benjamin, com sua Berlim da infância ou a Paris das

reformas haussmanniènes, que discutiria a sociedade do começo do século. No Brasil, a noção de

modernidade guardaria particularidades, sendo incorporada como algo que vem de fora e que deveria,

obrigatoriamente, ser apreciada e adotada (Siqueira, 2008).

Este artigo busca inserir-se nesta potencialidade investigativa, arriscando o enfrentamento dos

chamados vazios investigativos. Tal empreitada integra estudos interdisciplinares, servindo-se das

convergências entre os campos do Urbanismo e da Literatura, onde o segundo é fonte investigativa

para o primeiro e jamais sua intenção precípua. De um lado, não se discute aqui a fonte literária pelo

viés dos estudos literários; de outro, os estudos sobre a cidade e seu urbanismo são entendidos como

prática social e cultural, no extremo oposto do seu entendimento pelos campos mais restritos à

arquitetura, à engenharia ou a aspectos físico-naturais, conforme a “primeira porta” descrita por

Bresciane (1991), na tentativa de se entender a cidade.

Outro contexto do presente artigo é o da própria escolha metodológica para se compreender a cidade,

empreitada cada vez mais consciente da importância não apenas de novas interpretações, mas

também de novas fontes. Tal escolha não resulta de uma mera opção pessoal ou desilusões frente a

uma realidade com restritos avanços positivos em termos de qualidade de vida e apropriação coletiva

4

daquilo que a cidade produz. Há, sim, uma constatação de que o objeto – a cidade - altera-se mais

profundamente em tempos recentes. Esta é uma constatação, aliás, recorrente na literatura científica

sobre o tema: “As cidades e as metrópoles exigem hoje uma revisão conceitual e propositiva,

proporcionalmente tão profunda e abrangente quanto às próprias transformações que estão alterando

seus atributos” (Meyer, 2006: s/p). Do mesmo modo, Bresciani (2004, p. 9) afirma: “a cidade que tão

bem conhecíamos mudou, [...] a ideia (ou idealização) de cidade se [apresenta] em constante

descompasso”. Se se reconhece a dificuldade em entender o espaço urbano, ainda mais árduo é tentar

transformá-lo – principalmente por meio de ferramentas usuais; despertando, então, um interesse pela

busca de novos caminhos para auxiliar nessas transformações.

A fonte aqui analisada é, do mesmo modo que suas similares no campo acadêmico, limitada de verdade

completa. O objetivo precípuo da escrita de Guilherme de Almeida não é o da descrição de um

determinado processo urbano ou mesmo de uma cidade específica: as oito “leituras” que o autor faz

de compartimentos urbanos de São Paulo respondem a uma demanda muito explícita: descrever os

bairros estrangeiros da capital. A veracidade, universalidade e eventual descompromisso com a

exatidão daquilo descrito na obra de Guilherme de Almeida assumem papel secundário neste artigo,

deixando que se valorize a perspectiva por ele adotada e o que ela pode provocar em termos de debate

sobre a cidade. De fato, “Apenas na aparência a cidade é homogênea” (Benjamin, 2006: 127).

Usar um texto - como propomos no estudo interdisciplinar urbanismo/literatura - é distinto de interpretá-

lo (Eco, 2008). A despeito de isso parecer limitação no uso desta fonte, o próprio Umberto Eco já havia

explicado que interpretação não é limitação e sim opção de perspectiva interpretativa:

Poderíamos objetar que a única alternativa a uma teoria radical da interpretação voltada para o leitor é aquela celebradas pelos que dizem que a única interpretação válida tem por objetivo descobrir a intenção original do autor. E, alguns dos meus escritos recentes, sugeri que entre a intenção do autor (muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante para interpretação de um texto) e a intenção do interprete que (para citar Richard Rorty) simplesmente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” existe uma terceira possibilidade”. Existe a intenção do texto (2005: 29).

Braz e Bulhões (2016) inserem as publicações de Guilherme de Almeida nas tentativas "apaziguadoras

e mesmo idealistas do convívio entre estrangeiros e na relação destes com os chamados "nativos" da

metrópole paulistana. Para esses autores, a obra Cosmópolis está de costas para a metrópole,

constituindo um agrupamento de pessoas que vivem apenas entre seus pares, são exóticos e

despertam a curiosidade. Guilherme de Almeida, ele mesmo parece concordar: “São Paulo parece que

está tão longe, tão longe, lá, muito além desta planura cor de barro", [diferenciando-se pelos seus]

"cubos altos” (Almeida, 2004, em Rapsódia Húngara, p. 14). Não estaria presente nesta discussão, por

exemplo, a lembrança trazida por Morse (1970) de que essa unidade identificada por Guilherme se

dava mais por razões profissionais ou de emprego e trabalho que necessariamente por razões étnicas.

Do mesmo modo, a identificação genérica de “típicos-subempregos” identificados por Guilherme de

Almeida nos seus bairros estrangeiros não seriam absolutamente corretos, havendo inserções mais

diversificadas de sua população na economia da cidade, para além da simples homogeneização, por

exemplo, de turcos para além da venda de bugigangas, conforme atestado por Hall (2004, apud Braz

5

e Bulhões, 2016). Para Lesser (2001), há na obra de Guilherme de Almeida uma ambiguidade entre a

simpatia e o receio e uma sátira ao descrever os estrangeiros: “O Oriente mais que próximo” caçoava

do orientalismo, falando dos árabes não como pessoas, mas como “bigodes, apenas bigodes. Bigodes

contemplativos [...] bigodes esperançosos [...] bigodes esfumaçados [...] bigodes sonoros. Bigodes” (p.

111).

Ora, para atenuar críticas referentes a uma eventual parcialidade ou restrição analítica, Barthes (2004)

afirma que “é impossível falar de literatura sem se referir a uma psicologia, a uma sociologia, a uma

estética ou a uma moral” (p. 38). A sujeição da veracidade ao intento literário - ou jornalístico, neste

caso - seria também explicada por Rulfo (1995) quando declara que todo escritor seria um mentiroso. A

“verdade” sobre um processo urbano ou sobre um momento de uma cidade seria então buscada na

diversidade de fontes e, mais importante ainda, no debate que essa busca possa gerar.

Este artigo insere-se em pesquisa ampliada dos autores e trata da dificuldade de se encapsular a

realidade complexa de uma cidade por meio de sínteses e conceitos. O debate aqui apresentado tem

como pressuposto a tomada de determinados elementos fractais pela obra literária ou outra fonte como

inerente do exercício de discussão sobre ou explicitação da cidade. A obra Cosmópolis atende a uma

demanda específica feita a Guilherme de Almeida por um jornal e com um propósito. Estavam lançadas,

neste momento, as imposições de uma clara limitação de sermos nós e nossas circunstâncias (Ortega

y Gasset, 1914).

Porque um amigo me disse, faz pouco tempo: - Lembra-se daquela série de artigos sobre bairros estrangeiros de São Paulo, que você publicou no Estado, se não me engano em 1929, sob o título de Cosmópolis? Você deve ter guardado os recortes. Nunca pensou em por isso em livro? Olhe que valeria a pena [...] (Almeida, 2004: 10).

Na justificativa de nossa escolha da obra de Guilherme de Almeida estaria então a limitação intrínseca

a qualquer fonte de análise, sua opção por explicitar a temática do urbano ou da grande cidade, e a

intenção primeira do artigo que é a de servir-se de textos provocatórios para discutir nosso objeto de

interesse. Nuanças urbanas não explicitadas por Guilherme de Almeida em seu texto não serão aqui

lembradas no intuito de correção ou crítica e sim de geração de debate. Vale, apenas, a partir dessa

eventual ausência, a provocação para o debate sobre o urbano, deixando para outros trabalhos a

discussão sobre se ela é intencional, se resulta de uma observação imprecisa, e se traduz um

distanciamento intelectual, por exemplo.

A leitura de Cosmópolis para este artigo, acredita-se, permite discutir elementos catalisadores

escolhidos pelo autor para resumir a imagem de uma cidade. A São Paulo aí descrita está restrita à

perspectiva do autor e à intenção e interpretação de quem a lê. Para o leitor mais geral ter-se-ia uma

cidade com recortes geográficos limitados e uma grande população dividida em dois grandes grupos;

a dos imigrantes, tema da obra selecionada e moradora de bairros, e a dos nativos, moradora na área

ainda mais central. Mesmo para a cidade dos anos 1930 (vide cartografia a seguir), essa clara distinção

de moradores e de sua espacialização parece reducionista frente à metrópole com mancha urbana já

ampliada e para além de seu perímetro político-administrativo. O próprio Guilherme de Almeida, ao

6

retomar suas reportagens escritas em 1929, 33 anos depois, perguntaria desconfiado sobre a exatidão

ou veracidade daquilo que viu e escreveu.

Por isso desentulhei do passado as longas tiras de papel de jornal, amarelas de idade e esquecimento. Desdobrei-as. Fui lendo. Como um estranho. Sensação de novidade. Então essa cidade existiu, de fato? Assim fácil e pitoresca, com apenas 900 mil habitantes tão afeiçoados a ela e entre si mesmos, bem diferenciados, pela origem e costumes [...]? (Almeida, 2004: 10, Introdução).

De fato, na análise cartográfica que se obteve para a época, a relação entre a somatória dos espaços

ocupados por esses dois grupos (tomados como síntese da cidade de então por Guilherme de Almeida)

e a cidade formalmente parcelada é muito pequena. Satisfazendo o segundo objetivo deste artigo, a

leitura desta obra, de imediato, aporta elementos para uma possível discussão sobre processos

urbanos contemporâneos: crescimento demográfico, intervenções urbanas, assimilação de imigrantes

e, sobretudo, a constante oscilação entre fascínio e medo. Love (1982), expressando esse fascínio pela

São Paulo do período que se inicia com a República e prossegue até o Estado Novo de Getúlio Vargas

não hesita em usar a expressão “locomotiva do Brasil” para descrever essa cidade. Santos (2005)

atesta um crescimento demográfico para essa cidade entre 1910 e 1930 de 136%. Silva (2007), analisa

as benesses vividas ali por conta da política nacional de industrialização de substituição de importações

e da recuperação econômica que seguiu a crise de 1929 e a Segunda Grande Guerra.

No campo interdisciplinar literatura e cidade, a obra de Guilherme de Almeida pode ser tomada como

um “poeta em ação” meio a uma metrópole que se transforma. De sua ação, tem-se, minimamente, a

participação no Movimento Modernista Brasileiro, a partir de 1922, na Revolução Constitucionalista de

São Paulo de 1930, como combatente, na Academia Brasileira de Letras, na Comissão para as

festividades do IV Centenário da cidade de São Paulo, e em cargos públicos diversos (ABL, 2018). Do

cenário urbano por ele vivido, tem-se uma cidade capaz de representar a transformação nacional, da

economia agrária para urbana e industrial, com o chamado desenvolvimento “para dentro”, conforme

lembrado por Cano (2012).

A literatura como fonte histórica primária, em tese, não é profícua, mas nela podemos encontrar a

cidade que se quis ou a que se rejeitou numa determinada época. Tem-se então um caminho para se

identificar a cidade idealizada ou criticada, os agentes sociais que comungam essas posições e a

priorização de recursos adotada. A cosmópolis descrita por Guilherme de Almeida reflete o mito de um

mundo que se acredita modernizar-se, dentre outros caminhos, pela industrialização e urbanização.

Cidades passam a ser mitificadas no campo do urbanismo, como a arquitetura e o desenho urbano de

Paris em nível global até meados do século XX (Ultramari; Ciffoni, 2015) e no campo da literatura (vide

Brocca, 1993). Esses mitos, sejam enganosos ou fractais, revelariam idealizações, mas também,

sujeições entre grupos sociais de uma cidade e de uma época.

[...] as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho [...]. Interpretar um texto significa explicar por que essas palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas (Eco, 2005: 28).

7

Para ler e interpretar Cosmópolis pela perspectiva da questão urbana serve-se, prioritariamente, da

cartografia da época em que atua. Reconhece-se a crítica de Virginia Woolf sobre a limitação de se

estudar obras e autores por meio de cartografias. A autora rejeitaria essa ferramenta por não acreditar

na possibilidade de relacionar ficção com realidade: “A writer’s country is a territory within his own brain,

and we run the risk of disillusionment if we try to turn such phantom cities into tangible brick and mortar”

(apud Tachker, 2017: 416). Turchi (2004, apud Kokula, 2016), no entanto, diria que a cartografia da

ficção é uma ferramenta para se adentrar num mundo desconhecido. No caso de Cosmópolis, os

trajetos e locais são facilmente identificáveis; permanece a dúvida sobre os atributos que lhes são

dados e a representatividade que lhes computa no contexto da cidade maior, já nos anos 1930.

O estudo empírico deste artigo reconhece essas possibilidades investigativas, esses pressupostos e

essas limitações como instigadoras de um debate sobre a cidade. Mais que reconstituir a cidade do

passado, julgar o autor ou o urbanismo da época, o que se busca é a provocação do debate urbano.

TÍMIDOS CIRCUITOS DE GUILHERME DE ALMEIDA

A despeito de Cosmópolis resultar de uma demanda específica de um jornal ou mesmo da

recomendação de um amigo para sua publicação em livro posteriormente - fatos que circunscreveriam

a geografia da cidade descrita - pode-se falar numa aderência entre o circuito relatado na obra e o

circuito vivido pelo autor. Na obra, o compromisso de se relatar oito compartimentos estrangeiros em

áreas da cidade de São Paulo; na vida, uma trajetória reduzida aos níveis urbano e regional.

Tais geografias, entretanto, não devem ser tomadas como explicações às críticas de “visão de mundo”

em Guilherme de Almeida. Mário de Andrade (apud Ulrich, 2007) requer que Guilherme se liberte de

suas intenções bairristas no seu amor incondicional a São Paulo e mesmo saudosista frente a um forte

processo de urbanização; críticas que avançam para a identificação de um Guilherme de Almeida

pouco nacionalista frente à constante valorização de uma São Paulo cosmopolita. Guilherme assimila

essas críticas e em parte revê ou reitera seu próprio discurso. Ulrich (2007), por exemplo, o vê optar

posteriormente pela defesa de uma São Paulo cafeeira, sob o comando histórico de portugueses e com

um passado de conquistas.

O próprio Guilherme de Almeida reconheceria as críticas recebidas - meio a outras, inúmeras,

demonstrações de respeito, como a sua condecoração como Príncipe dos Poetas, em 1958 - quando

de entrevista pouco antes de morrer:

Hoje, meus livros aparecem sem merecer uma só referência: e, talvez, por isso mesmo, esgotou-se mis depressa. Agentes do meu intelligence service já me revelaram que, entre literatos de hoje, diz-se que “não é “bem” citar ao poeta Guilherme de Almeida. Compreendo, trata-se de um poeta “vendido” (Almeida, 1955: 41, em entrevista ao Jornal Diário Nacional).

Guilherme de Almeida nasce em Campinas, passa sua infância em Limeira, Araras e Rio Claro. Chega

a São Paulo em 1902, e, com poucas idas e vindas, aí se estabelece e permanece até a morte, em

8

1959. Períodos curtos fora de São Paulo ocorreram: viagens pelo Brasil para divulgar o Movimento

Modernista; Montevideo, em homenagem a Olavo Bilac; Rio de Janeiro, ao casar com Baby de Almeida;

interior do estado de São Paulo como promotor público; Cunha/SP, como combatente da Revolução

Constitucionalista; e Portugal, como exilado, por exemplo. Nenhuma dessas ausências pode ser

comparada em termos de tempo e de volume de produção intelectual como aquela de seu retorno

definitivo a São Paulo, de 1933 a 1969, cidade que se confirma como polo regional/nacional e já sugere

a constituição de uma grande aglomeração metropolitana.

Figura 1: O Circuito regional de Guilherme de Almeida: formação, atuação e moradia.

Fonte: Autores mencionadas ao longo do texto, sob base cartográfica do estado de São Paulo, 1929, disponível em: http://www.sp-turismo.com/mapas/mapa-antigo.htm

O circuito intraurbano de Guilherme de Almeida na cidade de São Paulo representa o percurso imposto

pelo interesse do capital imobiliário, o qual viria a se acentuar nas décadas seguintes também em outras

cidades brasileiras. Já na década de 1930, via-se a migração das elites para aquilo que viria ser

denominado de bairros novos - conforme literatura científica do campo urbanístico nos anos 1990 - e o

abandono das áreas centrais de São Paulo. No caso específico do autor, tem-se a moradia com os pais

no bairro da Luz (rua Conselheiro Nebias, 97), residência na rua Pamplona, nos Jardins, e residência

definitiva no Perdizes/Pacaembu (rua Macapá, 187).

Figura 2: GA e o espraiamento de áreas centrais de São Paulo / 1930.

9

Fonte: Organização dos autores a partir de fontes mencionadas ao longo do texto. Obs.: Quando não se contou com endereço preciso, fez-se por aproximação. O avanço da ocupação urbana (círculos a partir da Sé) respeita descrição história, elaborada por Caio Prado Júnior (2012), em estudo denominado O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo.

A figura acima sugere - mas não confirma - um conhecimento vivido restrito do espaço urbano por

Guilherme de Almeida, se comparado com o da verdadeira mancha urbana de São Paulo dos anos

1930. Sugere também um trajeto intraurbano pessoal que reproduz a valorização de novos

compartimentos, a partir de um reuso ou mesmo abandono da área central tradicional. O abandono de

áreas centrais para os novos bairros é tema recorrente ainda hoje no urbanismo brasileiro e reflete não

apenas o funcionamento do capital imobiliário que atende aos interesses de uma elite, mas também o

papel do estado em financiar infraestruturas urbanas nessas novas áreas. Guilherme de Almeida não

pode ser avaliado pela perspectiva do interesse imobiliário, sem dúvida; a relação que se faz aqui é a

de servir-se de uma experiência pessoal com farto volume de informações e análises, para demonstrar

sua potencial utilização no debate urbanístico e iniciar uma sobreposição analítica entre o escrito, a

temática da escrita e a realidade urbana vivida.

Figura 3: Espraiamento a partir do centro / Loteamento Pacaembu.

10

Fonte: Cartografia de 1956, destaque para a Chácara Pacaembu (Companhia Sumarezinho para o caso do terreno em questão,

vizinha portanto das áreas parceladas pela empresa Light), in PACHECO, José Aranha de Assis. Perdizes, história de um

bairro. Prefeitura de São Paulo, 1982.

Ainda que de modo pouco dialético a respeito dos principais agentes que constroem, se apropriam e

usam a cidade, Guilherme de Almeida reconhece que seu percurso intraurbano segue a trajetória de

uma cidade que, inocentemente, cresce. Em conhecida citação sobre a construção e mudança para

sua Casa da Colina, reconhece:

Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente [...] era apenas uma estrada rústica. [...] aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim. Fiquei vivendo a vida daquele suposto fim de mundo, que era de fato um começo. Começo de um pequeno mundo que eu vi, dia a dia, ir-se fazendo em torno de mim. [...] (Almeida, 2004a : s/n, sobre A Casa da Colina).

No período em que a Casa da Colina era construída, São Paulo já contava com quase dois milhões de

habitantes (IBGE, 2018) e já possuía traços que viriam caracterizar a urbanização brasileira de modo

geral, por meio da verticalização e ocupação extensiva com grande demanda por serviços públicos

(Silva, 2007). Também neste período, se iniciavam as formações irregulares, que, para São Paulo

apareceriam na década de 1940 (Taschner, 2005) abrigando então uma diversidade de classes sociais,

“barões do café, industriais, operários, comerciantes, artesãos” (Zanirato, 2000, p. 241).

Para o caso específico de Cosmópolis, chama à atenção, na década de 1930, a retomada da

imigração de estrangeiros ao país, e, no caso de São Paulo, a divisão do espaço urbano com migrantes

de regiões como o Nordeste (Barros, in Zanirato, 2000), ausentes da obra de Guilherme de Almeida.

Eram igualmente distantes do autor moradores que formavam o espraiamento metropolitano da cidade,

fenômeno que, conforme Bógus e Véras (2000), se confunde com a própria história de São Paulo.

A multiplicidade de fenômenos urbanos constitui, pois, um processo de difícil identificação e síntese

presentes na urbanização paulistana, e de complexa assimilação em circuitos mais restritos. A julgar

11

pela geografia intraurbana vivenciada por Guilherme de Almeida, estariam ausentes de seu cotidiano

grandes mudanças que a metrópole experimentava.

O percurso do centro antigo para a área em formação Pacaembu/Perdizes realizado por Guilherme de

Almeida atesta processo comum em nossas cidades, de uso, transformação, desuso, desvalorização

e eventual revalorização de suas partes. Primeiramente, morador da Rua Pamplona, de 1933 a 1946,

e da Rua Macapá, desta data até 1969, Guilherme reproduziria aquilo que Villaça (2001) descreve

como novos centros. Como parte desse processo destaca-se a utilização de recursos públicos para a

construção de novas áreas, ao mesmo tempo em que se abandonam áreas tradicionais, consolidadas

também com grande aporte de recursos públicos em infraestruturas e serviços. Vistos sobre essa

perspectiva, esses fenômenos seriam apenas muito mais tarde compreendidos; destacando-se, no

Brasil, os trabalhos de Castells (1983), Lipietz (1982), Lojkine (1981) e Harvey (2006).

Tais processos comumente integram a chamada questão urbana naquilo que diz respeito ao uso e

ocupação do solo das cidades, aqui entendido como prática social. Neste artigo, são processos

lembrados a partir de relações observadas em um autor, sua obra e, no caso de Guilherme de Almeida,

sua relação específica com São Paulo. O item seguinte discute informações encontradas na obra

Cosmópolis que igualmente instigam o debate sobre a cidade.

O CIRCUITO DE COSMÓPOLIS

Guilherme de Almeida, mais conhecido como poeta, destaca-se também por suas crônicas de jornal;

sendo a cidade e o cinema seus temas mais recorrentes e para os quais dedicou colunas seriadas. Em

1926, ingressa no Jornal O Estado de São Paulo e, em 1929, publica as colunas A Sociedade, com

destaques da então elite paulistana e Cosmópolis sobre os bairros estrangeiros da cidade. A partir de

1927, no jornal Diário Nacional, publica também a coluna Pela Cidade, com pseudônimo de Urbano

(Vieira, 2014). Para o caso das duas últimas colunas, tem-se a versão posterior em livro: Pela Cidade

(Almeida, 2004a) e Cosmópolis (Almeida, 2004b).

Seguida de uma introdução onde explica a origem da obra, Cosmópolis conta com oito pequenos

capítulos, cada qual referente à uma etnia encontrada em São Paulo: “Rapsódia Húngara”, “O bazar

das bonecas” (japoneses), “Chope duplo” (alemães), “O ’gueto’” (judeus), “A confusão báltica”, “Um

carvão de Goya” (espanhóis), “Os simples” (portugueses), e “O Oriente mais que próximo” (árabes e

turcos). Está excluído dessa lista o grupo de italianos, mais numeroso, porém ocupando a cidade de

forma mais dispersa - conforme avaliado pelo próprio autor -, dificultando a observação de um bairro

especificamente como tal.

O cenário dos oito compartimentos para uma cidade de quase um milhão de habitantes forma um

mosaico geográfico que se sobrepõe a uma malha urbana significativamente maior que aquela que se

visualiza em cartografia de São Paulo para 1929. Nesta época, conforme figura 4 a seguir, São Paulo

12

contava com loteamentos formais (e considerados pela cartografia do município) distantes do centro

superiores a 20 quilômetros e também sobre municípios vizinhos. A se considerar a possibilidade de

ocupações irregulares ou clandestinas ou minimamente não informadas pela cartografia oficial, essa

grande mancha é ainda mais significativa se comparada ao grande mundo descrito por Guilherme de

Almeida.

Aos olhos do autor, a diversidade estaria no indivíduo morador de uma metrópole, mas integrante de

uma grande sociedade pretensamente homogênea. Ao descrever um de seus oito compartimentos

“estrangeiros” de São Paulo, em 1929, diz: “amigos ou inimigos ou indiferentes todos. Todos.

Entretanto, que harmonia, e que equilíbrio e que igualdade! O grande milagre do trabalho. Harmonia,

equilíbrio e igualdade feitos de diferenças” (2004b: 14).

O contexto urbano vivenciado seria o da busca e explicitação da modernidade, ao modo já ocorrido,

por exemplo, em Paris em meados do século XIX. Ainda sob o impacto das obras implementadas por

Antônio Prado (último de seus quatro mandatos, em 1911) e considerado um Haussmann paulistano

(Santos, 2012), Guilherme de Almeida identificaria uma metrópole em formação e em transformação,

tal qual um cosmopolitismo à paulista (ibid.), recém-saída de um longo período de escravidão e

economia agrária.

Para a identificação dos oito compartimentos estrangeiros apresentados em Cosmópolis procedeu-se

a uma seleção e posterior inserção em mapa de menções com maior aderência à ocupação e uso do

espaço urbano, conforme apresentado no quadro 1. Anteriormente a esse quadro, para guia-lo na

leitura, tem-se a figura 4.

13

Figura 4: Os compartimentos estrangeiros de Cosmópolis.

Fonte: os autores, a partir da obra Cosmópolis.

Quadro 1: Compartimentos estrangeiros e citações descritivas

Compartimento Citações

Húngaro “Rosa-dos-ventos. Alto da Mooca. É aqui em cima que moram todos os ventos de São Paulo. Rua do Oratório: que não é rua e não tem nenhum oratório. Uma subida alongada, cansada, arrastada. Vai, não vai [...]. O bairro húngaro de São Paulo (p.13).

Japonês

“Uma corrida rente aos paredões antigos da Rua da Glória. Uma esquina, dobrada à esquerda. Outra, derrapada à direita [...] Japão” (p. 20).

“Um avanço mais pela Rua Conselheiro Furtado: e a Rua Conde de Sarzelas rasga, sobre os telhados pretos, velhos, tristíssimos, da Rua da Boa Morte, lá embaixo, o se corte íngreme e reto” (p. 20).

“Aqui, onde começa e acaba o Japão. Começa e acaba de repente, porque é pequeno, pequenininho este Japão: e assim são todos os japões possíveis. Concentração absoluta: Rua Conde de Sarzedas, toda de casas sem fisionomia, como as caras da multidão” (p.20).

Alemão “Rua Vitória, da Rua dos Gusmões, de todas as travessas da Rua Santa Efigênia [...]. É o bairro rasteiro dos bares. É o bairro dos pianos. É o bairro alemão. É o bairro do chope” (p.26/27).

Judeu

“[...] Rua José Paulina. Baixa, comprida e cheia” (p.31).

“[...] povo de Israel, correndo entre as alas de casas da Rua José Paulino, como antigamente entre as muralhas da água miraculada do Mar Vermelho. [...]. A judia alva explica: esse é um convite para um baile da colônia israelita; aquele, para uma reunião de alfaiates numa cooperativa, à Rua Amazonas [...]” (p.32).

“A Rua Sólon não existe, naquele momento do dia: naquele momento do dia, ela é apenas um amontoado de auto-ônibus ‘Bom Retiro’. Rua Barra do Tibagi. O auto tem que parar, atolado no que a enchente do Tietê andou fazendo por ali. [...] À direita, a Travessa dos Aimorés... Enquanto vai subindo devagar a Rua Capitão Matarazzo” (p.33).

Báltico “Rua Alvarenga Peixoto [...] A vocação deste nome triste de um brasileiro que fez versos num presídio africano bastou para produzir a tirada lírica desse ‘Noturno da Agência do Correio do Bairro Báltico de São Paulo’ [...]” (p.39).

Espanhol

“Tarde de noroeste na Rua Santa Rosa. Rosa? Cheiro de aniagem e cebola” (p.43).

“É a hora do barbeiro. Fígaro mora ali, na Rua Benjamim de Oliveira [...] Raspa, e a cara freguesa emerge, toda azul, do seu gesto de ópera ... Rua Lucas. As calçadas estão cimentadas de crianças brincando com tranças de cebola [...]” (p.45).

Português “Um riso fino de guizos no ar arrepiado da manhazinha.

14

Na rua rica, entre palacetes de aventais brancos no portão, vai indo, com uma solenidade assustada, o rebanho das cabras. Pardas e malhadas, fincam o casco, bifurcado nas pedras e nos cimentos [...]. Onde moram, quem são eles, os bons cabreiros da manhazinha? Vou num declínio da tarde, pela Rua Correia Dias. A rua é reta, plana e bem calçada. Mas, de repente, quebra-se e descamba numa ladeira brusca e trôpega, de terra estorricada e despenca, de buraco em buraco, até uma estrada transversal, vermelha, calma, repousante, que se chama Rua Jurubatuba. [...]. Desço ao vale, espremido entre o recorte alto de Vila Mariana e o apinhado baixo do Cambuci. Uma frescura serrana. [...] E de onde são vocês? Somos de Bringança [...] Portugal” (p.50).

“Olhei um pouco a velhinha que, de cima da Rua Jurubatuba, acenou para baixo com um ramo verde na mão [..]. Olhei um pouco a velhinha que, de cima da Rua Jurubatuba [....]. Olhei um pouco a rapariga que vinha toando uma cabrita por um atalho vermelho escorrido da Rua Paula Ney” (p.51).

Para árabes e turcos

“A coisa começa ali, naqueles cafés comerciais da Praça Antônio Prado. [...]. Vou pela Rua João Brícola. Aqui, escorrego no lodo preto do asfalto e escorro pela Ladeira Porto Geral, de pedra torta e molhada sob o rha-rha-rha dos bigodes que rodam por ali e dos gramofones que começam a rodar também por ali” (p.55).

“A Rua 25 de Março é um shaker de coquetel que São Paulo bate. Produz só um coquetel: turco. Receita para se fazer um turco: coloca-se no shaker da Rua 25 de Março um sírio, um árabe, um armênio, um persa, um egípcio, um curdo; bate-se tudo muito bem e, pronto! Sai um turco de tudo isso. Para São Paulo, é assim: quem mora ali é turco. Entretanto [...] Rua 25 de Março: o reino da bugiganga” (p.56).

“Vou, sob placas e tabuletas, até o fim da Rua 25 de Março, até o limite extremo do Oriente Mais que Próximo: o túnel do Anhangabaú, a Sublime Porta [...] Ali em cima estão os hotéis orientais e as pensões orientais da Rua Florêncio de Abreu” (p.58).

Fonte: os autores, a partir da obra Cosmópolis.

A divisão social e étnica é claramente identificada por Guilherme de Almeida nesses compartimentos;

atentando para um comportamento social de várias nacionalidades distribuídas em um mesmo espaço

urbano, mas que, simultaneamente, estabelecem um “território” próprio, facilmente identificado,

descrito e delimitado pela leitura espacial de um observador/transeunte. Nesse caso, a literatura

explicita não apenas a formação física do espaço, mas também das variáveis socioeconômicas que ele

abriga. Essa interpretação - nossa - da obra de Guilherme de Almeida é exercitada estrategicamente

com o apoio de Umberto Eco (2005: 46): “o leitor deve suspeitar que cada linha esconde um outro

significado secreto; as palavras [do autor], em vez de dizer, ocultam o não-dito”.

Reintera-se a ideia de que narrativas urbanas são formas de transmissão de experiências e

subjetividades; cidades narradas são cidades produzidas, “montadas”, a partir da vivência e imaginação

incutidas por um escritor e, posteriormente, pelos caminhos de interpretação e análise previlegiados

por um leitor. Com isso, de um lado, tem-se a liberdade autoral e justificativas que explicam atributos e

entendimentos adotados, de outro, tem-se o objetivo da leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo iniciou com o pressuposto de que a cidade rejeita conceitos generalizantes e não permite

sínteses a partir de seus fractais. Estabeleceu uma discussão sobre o urbano a partir de provocações

identificadas na figura e obra de Guilherme de Almeida, buscando responder ao seu objetivo: tomar a

literatura como fonte de discussão para o urbano, não necessariamente pelo atributo literário da obra,

mas tão somente por informações sobre a cidade que ela possa conter.

O objetivo principal desta discussão foi o de exercitar os potenciais que se acreditam existir na

aproximação interdisciplinar entre os campos de estudo do urbanismo e da literatura. Reconhece-se

que a pesquisa literária tem na cidade um de seus instrumentos de investigação; o contrário, o

15

urbanismo buscar na literatura sua fonte ou estratégia de debate, no entanto, é pouco usual. O artigo

também contou com o pressuposto de que a interpretação do espaço urbano no mundo literário tem

suas bases nas construções analíticas de quem o escreve e, posteriormente, de quem o lê. A

experiência e a prática do espaço da cidade pelo autor e pelo leitor são fundamentais para a construção

e a transferência da ideia por meio da narrativa.

A metrópole que cresce, que assusta e que atrai está presente em Cosmópolis; a opção primeira de

Guilherme de Almeida, todavia, é de júbilo e celebração da vida urbana. Anuncia aquilo que mais tarde

resumiria no seu claro otimismo em poema encomendado para o dia da inauguração de Brasília, em

1960: “Agora e aqui é a Encruzilhada Tempo-Espaço; Caminho que vem do Passado e vai ao Futuro”

(Almeida, 1960, Prece Natalícia à Brasília).

A leitura de Cosmópolis, o que poderia também ser encontrado em Pela Cidade, confirma o uso de

visões fractais na descrição do complexo urbano, deixando a ser discutida a mirada que se adota nesta

parcialidade, a prioridade analítica praticada para fracassadamente estabelecer uma síntese. Há

também, no texto analisado, um desejo de universalidade das ideias, prática comum nas relações

sociais e políticas, assim como especificamente na prática urbanística. Modelos de um urbanismo ou

gestão urbana moderna, que sugiram inserção em economia internacional, mais comumente

eurocêntrica, estão presentes no modo como nossas cidades são pensadas desde o início do processo

de urbanização brasileiro. O mosaico de etnias descrito por Guilherme de Almeida é homogêneo em

um aspecto, o trabalho, conforme por ele mesmo atestado, e pela apropriação que fazem de espaços,

das infraestruturas urbanas ou dos serviços públicos, acreditamos nós. Nas passagens acima, há uma

dicotomia residual entre o mais e o menos urbano (como no caso dos portugueses descritos por uma

ruralidade meio à metrópole). Há também uma dicotomia entre o centro e os bairros, sendo o primeiro

já consolidado e ocupado pelos nativos paulistanos e o segundo por estrangeiros. Estão ausentes, no

entanto, as dicotomias que se julgam mais importantes no debate sobre a apropriação de uma cidade:

de renda, de qualidade de vida urbana, de oferta de serviços e de infraestruturas.

A inserção do autor no fenômeno urbano por ele descrito reduz sua perspectiva analítica. De falto, falta

a Guilherme de Almeida o necessário distanciamento analítico, temporal e geográfico, atributos que

devem ser considerados nas suas escolhas analíticas.

A grande disponibilidade de informações e publicações sobre o autor e cidadão Guilherme de Almeida

potencializa a intenção que se estabeleceu neste artigo: o uso da literatura como fonte para o estudo

do urbano, complementando aquelas tradicionalmente utilizadas. Ainda que o objetivo do jornalismo

literário de Guilherme de Almeida seja distinto daquele que aqui se tem, tais informações e publicações

nos levam - à revelia do autor - a questões importantes sobre processos urbanos. Real, ficcional ou

sabidamente fractal, Cosmópolis instiga dúvidas sobre a cidade e retrata cenários com os quais

compartilhamos ou rejeitamos ao serem idealizados, geridos, apropriados, abandonados e

transformados.

16

REFERÊNCIAS

ABL / Academia Brasileira de Letras. Site oficial. Página do escritor Guilherme de Almeida. Disponível em <http://www.academia.org.br/academicos/guilherme-de-almeida>. Acesso: 06/01/2018. ALMEIDA, Guilherme de (letra). Canção do Expedicionário. Música de Spartaco Rossi. São Paulo, 1944. _____. Pela Cidade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2004a (primeira edição 1962). _____. Cosmópolis: São Paulo, 1929. Cia Melhoramentos: São Paulo, 2004b (primeira edição 1962). BARROS, A. Relatório do Interventor Federal de São Paulo Adhemar de Barros para o Presidente da República Getúlio Vargas”. 1939. São Paulo: Empresa Gráfica dos Tribunais. In ZANIRATO, Silvia Helena. São Paulo 1930/1940: novos atores urbanos e a normatização social. In História Social, nº 7, 2000, Unicamp, Campinas. BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2006. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2004 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo; Editora UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BÓGUS, Lucia Maria Machado; VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. A reorganização metropolitana de São Paulo: espaços sociais no contexto da globalização. In Cadernos Metrópole, nº 3, 2000. São Paulo: PUCSP, 2000. BRAZ, Michelle Moreira; BULHÕES, Marcelo. A representação do imigrante na série de reportagens “Cosmópolis”. Anais d0 6º Encontro Regional Sul da história da Mídia. Universidade Estadual Paulista / Unesp, São Paulo. BROCA, J. Brito. Teatro das letras. Campinas: Ed. UNICAMP, 1993. BUENO, Laura M. de Mello. Projeto e favela / metodología para projetos de urbanização. Tese de doutorado apresentadas à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo, 2000. CABANAS, Maria Isabel Morán; INFANTE, Ulisses. O meu Portugal: Crônicas de um desterro [de] Guilherme de Almeida. Annablume / Casa Guilherme de Almeida / Poiesis: São Paulo, 2016. CANO, Wilson. Da década de 1920 à de 1930: transição rumo à crise e à industrialização no Brasil. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v.16, nº 1. Disponível em < http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/viewFile/1179/932>. Acesso: 10/01/2018. CASTELS, M. A questão urbana. São Paulo, Paz e Terra, 1983. HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo, Anablumme, 2006. CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 2010. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2008. _____. Interpretação e Super Interpretação. Martins Fontes: São Paulo, 2005. FOLHA DA MANHÃ. Como vivem nossos escritores: Guilherme de Almeida tem duas letras, uma para compor versos; outra “social ... e escreve em “estado de transe”. Entrevista ao Jornal Diário Nacional, 02 de outubro de 1955, p. 41. Disponível no acervo Folha em <http://acervo.folha.uol.com.br/fdm/1955/10/02/1/> Acesso: 10/01/2018.

17

HALL, Michael. “Imigrantes na cidade de São Paulo”. p. 122. In: HORTA, Paula (org.). História da cidade de São Paulo: a cidade na primeira metade do Século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004. vol 3. HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade. São Paulo: Editora Hucitec, 1980. IBGE. Censos Censitários. Disponível em ibge.gov.br Acesso: 15/01/2018. IHGG / Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas. Site oficial. Disponível em: <https://ihggcampinas.org/>. Acesso: 10/01/2018. LEFEBVRE, H. A revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. LOVE, Joseph. A locomotiva: São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CASA GUILHERME DE ALMEIDA. Site oficial. Disponível em <http://www.casaguilhermedealmeida.org.br/>. Acesso: 11/02/2018. LESSER, Jeff. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP. 2001. LIPIETZ, A. Alguns problemas da produção monopolista do espaço urbano. In: Espaço & Debates, n.7, São Paulo, 1982. LOJKINE, J. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1981. MARTINS, Isis do Mar Marques. A Geografia da cidade e das transformações urbanas na obra de Fiódor Dostoiévski: o espaço em Os Irmãos Karamázov. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 37, n. 3, p. 509-527, set./dez. 2017 MEYER, Regina Maria Prosperi. O Urbanismo: entre a Cidade e o Território. Ciência e Cultura. vol.58 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2006. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252006000100016>. Acesso: 03/01/2018. MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo – de comunidade à metrópole. São Paulo: DIFEL, 1970. NASCIMENTO, Luciana. Cartografias Literárias Urbanas em Eça de Queiroz. Revista Ininga. Vol. 1. Nº 1, 2014. ORTEGA Y GASSET. Meditaciones del Quijote. Publicaciones y la Residencia de Estudiantes. Madrid, 1914. PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil e outros estudos. Cia. das Letras: São Paulo, 2012. RULFO, Juan. Una verdad aparente. In RULFO, j.; BORGES, J. L.; MUDROVCIC, María Eugenia (ORG.), Espejo en el camino. Ciudad de Mexico: UNAM, 1995. SANTOS, Fabio Alexandre dos. Urbanização e salubridade na cidade de São Paulo, 1911-1930. In anais do XXIII Simpósio Nacional de História / ANPUH. Londrina, 2005 SANTOS, Michelle Moreira Braz. A reportagem-poema em Guilherme de Almeida: um estudo da série Cosmópolis. 2012. 127 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, 2012. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/126277> Acesso: 25/01/2018. SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. Site oficial. História do bairro. Disponível em

18

<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/viva_pacaembu_-_historia_do_bairro_1494442677.pdf>. Acesso: 10/01/2018. SCALON, Marta Benatti. Intertextualidade: as múltiplas vozes na Canção do Exílio. Webartigos. Disponível em <https://www.webartigos.com/artigos/intertextualidade-as-multiplas-vozes-na-cancao-do-exilio/66525/#ixzz52VKivuNX> Acesso: 28/12/2017.

SILVA, Luís Octávio da. A constituição das bases para a verticalização na cidade de São Paulo. In Arquitextos, 080.05, ano 07, janeiro, 2007. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.080/280>. Acesso: 18/01/2018.

SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. A cidade e a urbanização no ideário da modernidade republicana. In MATA, Sérgio Ricardo da; MOLLO, Helena Miranda; VARELLA, Flávia Florentino (org.). Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. Disponível http://www.seminariodehistoria.ufop.br/seminariodehistoria2008/t/sma.pdf em Acesso: 25/01/2018. TASCHNER, Suzana Pasternak. Favelas em São Paulo – censos, consensos e contra-sensos. In Cadernos Metrópole, nº 5, 2005. TACHKER, Andrew. Woolf and Geography. In Berman, Jessica (org.). A companion to Virginia Woolf. Wiley Blackwell: London, 2015. TURCHI, Peter. Maps of the Imagination: The Writer as Cartographer. San Antonio, TX: Trinity UP, 2004. 7. Print. ULTRAMARI Clovis; FIRKOWSKI, Olga L. Sobre mudanças e continuidades na gestão urbana brasileira. Revista Mercator, v. 11, n. 24, 2012. ULTRAMARI, Clovis; CIFFONI, Ana Lucia. The far distant city of Paris and someone called Haussmann. Diálogos (Maringá. Online), v. 19, n.3, p. 1371-1388, set.-dez./2015. Disponível em < http://www.uem.br/dialogos/index.php?journal=ojs&page=article&op=viewArticle&path%5B%5D=1097>. Acesso: 28/11/2017. VIEIRA, Guilherme Lopes. A casa Guilherme de Almeida: lugar de memória com discurso curacional. Monografia de conclusão de curso (bacharelado em História), USP, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2014. VILLAÇA, Flavio. Espaço intra-urbano no Brasil. Studio Nobel: São Paulo, 2001. ZANIRATO, Silvia Helena. São Paulo 1930/1940: novos atores urbanos e a normatização social. In História Social, nº 7, 2000, Unicamp, Campinas.