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Avisado fica o leitor, que…
O livro que vos deposito em mão não tem a pretensão de ser um álbum de um
imaginário inerte (longínquo) que já passou; o livro tenta recuperar o imaginário,
mais por palavras do que por imagens, inserindo-o no tempo e dando-lhe vida.
3
Mas é certo que não é, também, exactamente, uma monografia, um registo
alinhado de factos de um só «facto». Porque por vezes dei mais importância à
história dos factos, que ao facto em si mesmo. Pretendi sublinhar, acima de tudo,
que sem a Costa-Nova «nós» não éramos o que somos, ainda que já não sejamos,
hoje, nem de perto nem de longe, o que já fomos, tal a perda de identidade
consumada, provocada ou circunstancial, intencional ou não, pouco importa,
agora e aqui, equacionar. A Costa-Nova, ela também, já não é o que era, fadada
hoje para se mostrar mais para a fotografia, do que a alimentar-se da intimidade
das suas gentes.
Surgiu este livro na sequência – ou como consequência directa – do «Ensaio
Monográfico».
Ao aprofundar o historial de Ílhavo, apercebi-me da importância que a Costa-
Nova terá desempenhado na formação, se assim o desejarem, da identidade do
«ílhavo».
Foi do seu areal que partiu a horda dos andarilhos sonhadores, calcorreadores
infatigáveis da borda do mar, que foram por aí «abaixo», em passo safado,
miudinho e bamboleante, na procura de pousio mais suave, menos avaro na
espórtula. O sonho – instinto mais desenfreado que sentimento de razão (T.B.) –
foi um íman suficientemente poderoso para fazer saltar aquelas gentes, para quem
os tacanhos limites da paisagem que lhes serviu de berço eram exíguos demais,
para os manter aquietados e açamados, refreando-lhes a ânsia de se atirarem ao
caminho.
Era então ainda cedo para dar corpo a outra aventura que tinha a infinidade do
mar como meta a descobrir para que se cumprisse o último dos capítulos de um
fado que foi o de saltitarmos de oceano em oceano, de continente em continente,
arrecadadores de culturas, observadores de rituais, universalizando-nos antes de
outros quaisquer.
O êxodo daquela primeira migração, porém, não empobreceria o recanto que
sonhava afirmar-se como local cosmopolita.
Deixei-os, pois, (só) por uns tempos imbricados na árdua faina fora de portas,
para me fixar a tentar perceber como teria sido que, de uma primeira correnteza de
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casebres que por aqui deixaram ficar, pardieiros toscos e alquebrados, alapados,
especados na ondulação da duna que a brisa marítima foi construindo, parecendo
perdidos do mundo, nasceria o agregado urbano, urbe pitoresca, sinuosa e
caprichosa, que foi crescendo à borda de uma ria azul. Azul, esplendidamente
azul, de onde soprava uma frescura que tomava conta do passante, contagiando-o,
endrominando-o, convidando-o a fazer parte do cerimonial do louvor à natureza.
Não tardei a perceber que teria sido mais por vontade própria que por exclusão
(imposta) que se teria processado o acantonamento da classe piscatória numa
língua exígua de terreno de ninguém, situada lá para sul, ao endireito das
companhas da xávega. Enquanto isso, o norte do aglomerado, era pousio da
população sazonal que fora chegando e marcando presença habitual, para folgar e
se divertir, no regalo do pitoresco, «gentes» cultural e socialmente desligadas das
outras gentes lá do sul, para quem a Costa-Nova era, tão só, um meio de
sobrevivência, passando ao lado do folguedo, embiocadas a fazer de conta que
não era com elas, como que aceitando «o nada» irremediável a que pareciam estar
condenadas.
E, assim, passo a passo, foto a foto, documento a documento, articulado
jornalístico a referência livresca, fui descortinando e fixando os momentos em que
a Costa-Nova ganhou dimensão, forma e estatuto de local atractivo,
pretensiosamente cosmopolita, sem contudo afastar ou desqualificar – bem ao
contrário – o deslumbrante banquete que era oferecido ao sensório do forasteiro,
que chegado, ficava absorto na contemplação de uma paisagem envolvente
encharcada de luz, pulsante de vida. E assim ficava rendido a uma ria trespassada
pelo sol, polvilhada de velas enfunadas de moliceiros, a cirandar, para lá e para cá
a catar a ria à procura do húmus acalentador para dar viço e verdura aos campos
da orla que na outra banda se debruçavam na laguna, com esta a polvilhar-se de
prata quando o sol se esconde, enternecido e meigo, lá para as bandas do mar
infindo, e a lua vem, ronceiramente, no silêncio da recolha, substituir o astro-rei.
Mas o bodo não se limita aos horizontes acanhados da ria. Ali ao lado, a Costa-
Nova não se cansa de florear gentilezas. Tempo de a paisagem no mar contra
atacar e deixar extasiado, o incrédulo e esparvado saltarilho, a olhar o turbulento e
5
arrebatador clímax da xávega: bois surrados com alguma ferocidade estramontada
para lhes sacar as últimas forças; vozearia, escalracho desalmado de homens e
mulherio carregados de salitre acudindo, aqui e ali, aonde são mais necessários.
Mais um puxão para calar a rede ou para ensacar a mão na arrecadação do peixe
que reluz no estertor, para o separar do mexoalho, numa azáfama desconforme por
entre olheiros espantados a rodear a sacada, e que num repente dão por si envoltos
no farfalho da vaga que lhes encharca sapatos e respinga o cheviote de ver a Deus.
Registei o tempo em que a Costa-Nova foi exaltada em fantasia romântica, laudas
e laudas de louvação cantadas por uma imensidão de poetas (?!) que ensaiavam o
estro a descrever a ria azul, as serranias lá longe, a água, e o céu que pareciam
não ter existência real, tela por onde a cada momento passa um pincel molhado
em tinta acabada de fazer (Saguncho) .
A Costa-Nova assumia um papel preponderante de pousio benfazejo para as
maleitas, panaceia para as moléstias provindas das canseiras do trabalho, quando
não dos excessos do prazer. Um céu esplendoroso, continuidade de um mar azul
infinito onde só o farfalho da onda destoa tingindo-o de branco vaporoso, produz
uma atmosfera fresca trazida na maresia salgada que penetra as profundezas
humanas, alentando os anémicos, despertando os moles e sustendo a melancolia
dos cismáticos.
(…)
Tinha por isso matéria mais do que suficiente para, ainda que canhestra e
desqualificadamente, fixar o retrato ao local, ou talvez e só, reter os tiques das
gerações que a foram fazendo crescer, depois da debandada.
Busquei em todo o lado impressões que me retratassem o essencial da mudança.
Dei comigo a catar, ajoviado, notícia de janotas de sapatinho caiado de branco,
calça afunilada, bordão encastrado a prata seguidos de mães de família actuosas
em preservar dos conspícuos olhares as suas meninas, que por detrás das
sombrinhas do esconde-esconde, iam dardejando gulosas, embebedas de amor,
promessas aos seus eleitos. Antevi eclesiásticos patuscos, libertos das das peias,
asceses ou êxtases dos que têm que regularmente botar «faladura» com o divino,
em férias de prática cerimoniosa, vasilhame argolado por cabeção que mais
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parecia aduela de pipa a segurar o esparrinhar do conteúdo, vindos a banhos para
cuidar, mais dos corpos viciosos corroídos e puídos de surtidas sentimentais, e do
bródio, do que da alma, acedendo aos convites para um escorropicho de um bom
Porto, néctar que mais parecia saído das vinhas abençoadas do Senhor! Pareceu-
me entreouvir gaiteiros, batedores de bombo ou tocadores de realejo, numa
zanguizarra medonha enquanto a turba se passeava, de cá para lá, em procissão,
ao longo do estreito carreiro onde batia a maré, pomposamente qualificado de
marginal.
Rebobinei, assim, o tempo. Desde o momento que abicado à praia, o Luis «da
Bernarda» sentenciou: «e aqui vai ser a costa nova da fartura prometida», até ao
dia em que surripiaram a ria, levando-a para longe, escondendo-a do olhar do
passante.
E então zanguei-me. Agarrei na «trouxa», rumei a norte e auto exclui-me. Aportei
a local onde ninguém ousasse roubar-me a ria, aonde pela noitinha lhe posso
oferecer, como vim ao mundo, o corpo a sentir a sua frescura. Para assim, nela,
dissolver a embriaguez da saudade. Saborear em noites cálidas o nascer da lua
cheia esparrinhando a serenidade prateada por uma ria onde o silêncio só é
ofendido pelo pio de uma gaivina perdida, tresmalhada do bando. E foi aí, no
silêncio das horas que são só minhas, que fui registando o sentir de um tempo sem
retorno.
(…)
Daí para a frente (1970) recusei-me a dar mais notícia. A história, essa, acabou.
Os clichés coloridos do que resta, registam de um modo redutor, mudo, apenas o
que sobrou do passado.
Por isso sem direito a História, mas tão só, a rodapé da mesma.
Senos da Fonseca
2009
7
200 Anos de Memórias da Costa- Nova- do- Prado
A lingueta de areias lassas criada pelas correntes, que no mar, neste ponto
do litoral, correm de Norte para Sul, foi, durante muitos anos, um pequeno
enclave, «quase» se podendo considerar ser, então, terra de ninguém. Mesmo após
a abertura da Barra, em 1808, a língua de areia que daqui se estendia até à
Vagueira, ficou durante anos, mais exactamente até 1855, administrativamente
incluída no Concelho de Ovar. Com a abertura da barra, estava impedida ou pelo
menos muito dificultada, a tarefa de fiscalização dos juízes daquele concelho,
muito embora, jurisdicionalmente, estivesse determinado que todos os
«acontecimentos» por aqui verificados, devessem ser, obrigatoriamente,
encaminhados para as autoridades concelhias de Ovar.
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fig. 1- A formação dos cordões Litorais
As condições jurisdicionais, seja no plano civil, na jurisdição própria do
aglomerado em formação como extensão do concelho de Ílhavo, seja no aspecto
religioso da sua ligação à freguesia de S.Salvador (1856), só a partir daquela
altura estiveram próximas de serem exercidas com eficiência, dada a proximidade
geográfica aos órgãos que as exerciam, tornando-se compreensíveis aos olhos das
populações. Até lá, e anteriormente à abertura da nova barra, a inexistência de
vida por esta língua de areia não justificava mais do que o exarado numa placa
colocada a norte do regueirão da Vagueira, onde se podia ler: - “VAR”,
assinalando desse modo, o limite do concelho ovarino.
1 - DESCOBERTA DA «NOVA PRAIA»
As Companhas de Ílhavo e de Aveiro trabalhavam à época na costa
«velha» de S. Jacinto, ao enfiamento da Capela da Senhora das Areias. A abertura
da nova Barra viria dificultar, em muito, a travessia dos pescadores e do restante
pessoal das artes, dadas as fortes correntes de água que se fizeram sentir logo após
a sua abertura, aquando da travessia do Forte Novo para a outra banda. Com a
9
necessidade de o acesso ao local de pesca ser feito, por vezes, de madrugada1,
antecedendo o nascer do sol, a travessia rodeava-se de extrema perigosidade,
muito especialmente se à correnteza das águas se viesse juntar a força do vento,
condição muito habitual nesta zona, em determinados períodos do ano.
Luís dos Santos Barreto2 e seu irmão, José, procuraram então novas
zonas de pesca. Enquanto o segundo rumou para sul, até à Costa de Lavos, o Luís
varou ali bem perto, uma milha a sul, no areal deserto da costa, impressionado
pelo voo das gaivotas que, inquietas, descreviam círculos apertados sobre os
cardumes que boiavam, ali, no mar, no recesso da corrente que enrodilhava a sul
da barra. Luís Barreto sentiu o arfar da vaga e foi-se a ela, ainda que algumas
nuvens sombrias se enrolassem ao largo a prenunciar fortes chuvadas (o que era
de bom agoiro para a pesca); e certo é que as capturas foram desde a primeira
hora excelentes, tão prodigiosamente fartas que nos primeiros lanços o arrais foi
mesmo obrigado a perder muito peixe por não ter condições para proceder à sua
salga.
Fig2- Pescadores da Xávega (C.N)
2 -TOPÓNIMO
1 A chegada de madrugada ,era feita no sentido de assumir o direito de primazia. A primeira
Companha a ir para o mar, tinha direito a escolher o pesqueiro. 2 Ou Luís «da Bernarda», alcunha vinda de sua Mãe, Ti Bernarda «a Victória» - Cunha, Cons.
José Ferreira da.
10
Desde sempre se discutiu a origem do topónimo. Quanto a Costa-Nova,
não há qualquer dúvida, por contraponto a «Costa Velha», a de S. Jacinto. Mas
porquê Costa-Nova do Prado?
Dois séculos passados de iniciada a labuta exsudada do galefenho a
investir contra as crostas arenosas e sáfaras, da Maluca, pertinaz a revolver-lhes
as entranhas para lhes adoçar o ventre a fim de lhes conferir qualidades maternais
para gerar vida, seriam certamente já no início do Séc.XIX, visíveis terrenos de
onde romperia o «viço» de uma prometida fertilidade. Toda essa extensão a perder
de vista, planura longínqua, estreme, onde se descortinavam, ali e acolá alapados
na duna, um ou outro casebre de foreiro, era já um verdadeiro prado de verdura,
tenra e fresca, a despontar nas quintas dos Gramatas.
fig. 3- Os campos já esverdeavam
Estas lonjuras eram obrigatoriamente atravessadas nas idas e vindas «pelas
levas» de pessoal para a labuta no novo local de pesca. Que necessariamente lhes
não poderiam ser indiferentes, impressionadas com o navegar diário em mar tão
verde, tão quieto, tão doce para a vista como doce para o pé descalço, e já tão
cheio de vida prometedora. Certamente que esta paisagem diariamente cruzada
pelos passantes do areal, lhes despertaria o êxtase, quando em dias primaveris
sorviam em golfadas o fresco perfume que deles ressumava, ao tempo que lhes
11
encarniçava o olhar espreguiçado sobre a imensidão verde, a perder de vista. Teria
pois lembrado àqueles primeiros andarilhos - pescadores descalços e em mangas
de camisa, pescadeiras asseadonas e trabuqueiras, de pernas lestas e
fig.4- Pescadeiras(C.N.)
cinta bamboleante, aos almocreves escancha-pernas a tocar as pilecas que
naqueles areais nem precisavam de ferraduras - apadrinhar o novo pesqueiro na
pia baptismal, juntando o “do Prado” à designação da nova costa então
«achada», para desse modo melhor ser identificada, distinguida da anterior, da
velha costa, conhecida a da Sr.ª das Areias.
E assim se ficou a designar o que é hoje um maravilhoso pousio, delícia
assombrosa para o olhar que resta subjugado aos cambiantes cromáticos de
larguezas benfazejas, que nos endrominam os sentidos antes de a eles nos
acostumarmos. Picardia pródiga da natureza impossível de ser descrita, apenas e
só pelas palavras, a quem na pia baptismal deram as mãos aqueles seus primeiros
demiurgos, para a crismarem de COSTA-NOVA- DO- PRADO.
12
fig. 5- Costa-Nova início Séc. XX
3- ARTE DE XÁVEGA
A circunstância que deu origem à Costa-Nova- do- Prado.
A Costa-Nova teve pois a sua origem, quando as artes de Xávega assentaram
arraiais, tralhas e embarcações, na beirada da costa, varando o mar a sul da nova
barra, aberta em 1808. Nasceu, pois, há duzentos anos; tantos quantos leva aquela
embocadura feita pelo génio do homem a permitir, diariamente, que o mar se
espraie e descanse na extensão lagunar, nela adormeça e logo desperte para ir
deambular lá para os longes de todo o mundo.
Quer por razão de acesso ao pessoal e animais, quer por razões de
escoamento do pescado, a costa de S. Jacinto onde desde há muito as referidas
«artes grandes» se vinham praticando, era, até ali, de fácil acesso por simples
atravessamento de um braço da ria encurralado e aquietado, onde havia séculos
que as suas águas eram, praticamente, paradas. Com a abertura da nova barra, a
facilidade viraria dificuldade extrema, e ou até, obstáculo intransponível.
13
fig. 6- Plano da Ria, junto à nova Barra
A arte de Xávega, oriunda da xábéga catalã, terá sido trazida para esta
zona do litoral aveirense pelos galegos, gentes que assiduamente e desde os
tempos que remontam à fixação das comunidades no litoral, sempre mantiveram
regular contacto com os portos da região norte. Muito especialmente no período
áureo do tráfico intenso do sal produzido na laguna ( Séc.XV / XVI), de que
chegaram a deter o monopólio do transporte, e da sua comercialização3.
Também designada por NOVA ARTE ou, como acima referido,
simplesmente ARTE GRANDE, o termo enxávegas é-nos, contudo, já
referenciado no Séc.XV, pois já então o Infante D. Henrique cobrava imposto
sobre as referidas enxávegas que vinham de Castela.
Mas o que esta arte teve de singular nesta zona de mar desabrigado, e por
isso de vaga descabelada e puxada, foi a utilização para a sua prática de uma
3 Na Galiza foi estabelecida uma rede de armazéns - alfolias - para dar cumprimento ao
monopólio do comércio de sal estabelecido por Filipe II - Amorim, Inês, in «Aveiro e a sua
Provedoria», pp.361
14
singular e desafiadora embarcação - o «Meia-Lua» -, produto da arte naval
lagunar que teve as suas raízes numa prática antiquíssima4, e que desde muito
cedo se impôs pela soberba e genial adequação dos barcos saídos das mãos das
suas mestranças, à especificidade do meio onde iriam desempenhar a sua tarefa.
Afeiçoados ao fim pretendido: no caso do «xávega», o ser suficientemente
possante para galgar a pancada do mar e levar a pesada rede até pousio bem longe
da costa (cerca de 2 milhas mar adentro, senão até mais). Mas desafiador na
forma, para , «ousado» e «atrevido», às vezes «demente», se atirar ao mar
trepando e tombando na rebentação, saltitando lesto de vaga em vaga, como que
obedecendo à exaltação e o clamor dos que nele vão embarcados, a que se junta o
tumulto dos que ficam na praia a olhá-lo, especados, embriagados pela exaltação
daqueles irredutíveis intimoratos rompendo o mar à má cara
fig. 7- O Xávega encabritado na vaga
4Na expedição a Ceuta é referenciada uma frota de Naus e Barcas, construída e aparelhada em
Aveiro
15
A Xávega era (e é, porque ainda hoje é praticada) uma arte do tipo varredoura,
advindo esta tipologia do modo como a rede arrasta pelo fundo plano da
plataforma costeira (por efeito das pandas5 fixadas no prume
6), levando a bocada
do saco (a coada) aberta para dar entrada do cardume de peixe, por efeito do
levantamento da sua parte superior, a corche, onde se fixa a cortiçada7.
Provavelmente este tipo de arte terá sido utilizado, desde tempos muito
remotos em outros pontos do país; pelo menos em 1443, temos já conhecimento
da palavra enxauega.8
Sabemos que este tipo de pesca foi trazido no reinado de Filipe II, da
Catalunha para a Galiza, dada a abundância da sardinha que se constatou existir
na costa noroeste da Península. E daí trazida, como referimos, para a costa de
Aveiro, no Séc.XVIII.
A crise instalada na laguna vinha já dos fins do Séc.XVII, consequência do
facto das águas se verem impossibilitadas de renovação por mau posicionamento
da ligação ao mar9. Esta ligação, situada muito a sul, tornava o canal muito longo,
inviabilizando o efeito das marés que só se fazia sentir muito próximo da abertura,
sendo praticamente nulo no interior da ria. No Inverno, os caudais engrossados
dos rios não tinham escoamento, provocando uma diminuição drástica da
salinidade das águas;no Verão, perante continuados assoreamentos das línguas de
areia, o efeito era muito idêntico. Em todas as circunstâncias as águas apodreciam
no interior lagunar.
Esta estagnação das águas levou ao seu inquinamento, com a consequente
destruição de toda a fauna piscícola; inclusivamente destruiu toda a produção de
moliços, e até acabou com a produção do sal, pois que este não só era fraco na
5 Pandas eram pequenas malhas cerâmicas, feitas de barro, com cerca de oito centímetros de
diâmetro, tendo dois furos para a sua fixação à rede. Mais tarde substituídas pelas chumbadas. 6 Parte inferior da bocada do saco. 7 Cortiçada, assim era designado o conjunto de peças de cortiça, de forma trapezoidal, fixadas na
tralha superior, produzindo o efeito de abertura (bocada) do saco da rede. 8 Determinação para o apuramento dos mareantes para a vintena do mar em vários lugares, entre
os quais Aveiro e Verdemilho - in, Colectânea de Documentos Históricos «Milenário de
Aveiro», pp.189 9 A ideia que deu origem ao actual posicionamento da Barra, era a de que a mesma não deveria
situar-se para baixo do paralelo das gafanhas.
16
qualidade (sal negro), como, mesmo o que era produzido10
, era-o em muito baixa
quantidade, derivado da impossibilidade de se conseguirem índices de salsugem11
adequados para a sua produção.
Os tempos foram então de miséria e de morte; pestilências propagaram-se
às populações, cobrindo de luto a região lagunar, dizimando-as, elegendo as suas
vítimas de entre os mais novos e os mais velhos, sem que a saúde pública
conseguisse fazer, fosse o que fosse, para estancar as terríficas e pavorosas
pandemias. Para lhes pôr cobro não bastavam recomendações de higiene,
impossíveis de cumprir dadas as condições primárias, de habitação e vivência,
destas gentes, de recursos muito limitados.
Não se colocou outra alternativa ao homem da laguna, pescador ou não
pescador, que a de saltar com os seus bateirões para a beira do mar, para aí se
dedicar às artes, utilizando a «arte pequena do chinchorro», pequena rede
varredora já utilizada nas águas interiores, e que apenas poderia ser lançada no
dobrar da pancada do mar, limitação imposta pela pequena posse das
embarcações usadas na faina: - as «ílhavas» e os «chinchorros». Nesse período
em que se pescou com o «chinchorro», a rede, de pequena dimensão, era alada
(para terra), ligando o reçoeiro ( ou rossoeiro) e o cabo de mão da barca, ao cinto
dos pescadores, que lenta e penosamente, num esforço desarcado, a iam fazendo
subir até a pousar no areal da praia.
Em 1773 um facto viria alterar profundamente este estado de coisas. De
Languedoc, França, apresentou-se em Ovar um tal Mijoulle (acompanhado de um
grupo de catalães) que se dizia ser conhecedor de uma nova técnica de
conservação da sardinha, assegurando poder mantê-la por muito mais tempo em
condições de utilização. Mijoulle instalou uma unidade de salga (então designada
por fábrica do estranjeiro) em Ovar, e, perante os bons resultados obtidos, logo a
sua técnica se começou a espalhar pelos locais de pesca, vizinhos. Mijoulle viria a
atingir uma posição destacada no meio, chegando a ser nomeado vice-cônsul do
10 Quando as águas se não renovavam, o grau de salinidade era baixo, e o sal produzido era
preto. 11 Salsugem era o grau de salinidade da água. Para fazer Sal ela deveria atingir 7,5º à entrada da
marinha, podendo subir por evaporações sucessivas, até aos 25º.
17
seu País, no porto de Aveiro, com todas as regalias materiais daí advindas. E
chegará a ser recomendado pelo poder Central junto da vereação de Aveiro,
louvado por Pina Manique que então afirmou recomendar o francês, pela pronta
extracção das pescarias que muitas vezes se perdia pelas praias por falta de
compradores
D. José irá mesmo proibir a importação de sardinha vinda da Galiza, pois
que a apanhada e conservada na nossa costa, era, já então, suficiente para a
procura verificada.
O segredo de Mijoulle acabou por ser conhecido -foi rendeiro dos oitavos
do distrito da Srª das Areias13
-, generalizando-se a nova técnica de salga por todos
os locais onde se praticavam as artes,tendo chegado a correr a versão, na altura,
que as unidades fabris do francês teriam sido objecto de espionagem com a
finalidade de lhe roubar o segredo.
E que técnica era essa?!
A sardinha depois de ser esventrada e após lhe ser retirada a cabeça, era,
de seguida, metida em tinas (ou dornas), com água e sal suficientes para que se
produzisse uma salmoira, aí permanecendo o tempo adequado, para
seguidamente ser prensada, e de seguida empilhada em barricas, borrifada de sal,
acondicionada para suportar longos períodos até ser consumida.
Da salmoira era extraído o sil, óleo utilizado para iluminação, e que
misturado com o zarcão servia para impregnar a madeira utilizada na construção
dos palheiros, conferindo-lhe um tom ocre, funcionando como um óptimo
conservante.
As tripas e as cabeças, retiradas, eram juntas aos caranguejos, os pilados,
formando o escasso. Fertilizante de grande qualidade, que era adicionado ao
moliço para serem «adoçados» com o tempero do sol, vindo a constituir o remédio
adequado para as maleitas das terras gafas lagunares. Assim ajudando o lavrador a
transformá-las nos viçosos campos de pão, verdejantes, milagre da pertinácia da
intervenção humana sobre a paisagem, criando imensas planuras banhadas
expostas ao odor da maresia que as refresca e alenta, enquanto as vai esgodando.
13 AMORIM,P Aires de, in Da Arte de Xávega de Ovar a Mira(ed. CMO)
18
Pretende-se que a arte de xávega tenha sido só iniciada, aquando da
chegada de Mijoulle à região. Não será totalmente correcto: aquele francês
chegou, como dito acima, em 1773. Ora há referências, sem margem para dúvidas,
que em 1751, 1764 e 1765, existiriam, já, companhas a pescar em S Jacinto.
Certamente utilizando técnicas de salga mais rudimentares (o escorchado).
Companhas referidas nos livros de notário de Aveiro
Ano Mês Nome NºHms Origem Destino Anos 1751 6 ---- 19 Aveiro Costa ----
1761 1 Barga 21 Aveiro Rio Douro ----
1763 1 ---- 27 Aveiro Nazaré 3
1764 1 Enxada 38 Aveiro Costa ----
1764 4 ---- 29 Aveiro/Ílhavo Nazaré 3
1765 4 ---- 25 Aveiro Nazaré 3
1765 5 Enxada 38 Aveiro Costa ----
1766 1 ---- 22 Aveiro/Ílhavo S.Jacinto/Torreira ----
1766 8 Enxada 38 Aveiro Costa ----
1767 3 Branco 27 Aveiro/Ílhavo NªSªAreias/Costa ----
1769 4 Mantas 12 Aveiro/Ílhavo Toda Costa 3
1771 11 Tamanca 12 Esgueira S.Jacinto/Costa 1
1772 1 ---- 31 Aveiro Costa ----
1774 5 Enxada 43 Aveiro Costa ----
1792 6 Companha
Nova
9 Ílhavo Costa ----
1798 1 Enxada 62 Aveiro Costa ----
1801 5 Enxada ---- Aveiro S.Jacinto ----
fig 9-Fonte :ADA,Aveiro,ANTT-DP pag 510 ,Amorim ,Inês in Aveiro e a Sua Provedoria no séc.XVIII
A Companha de José Simões Estriga, de Ílhavo, já ali pescava em 1766,
bem como a de Manuel da Cruz Patacão.
Então, parece-nos correcto apontar que na costa de S. Jacinto, a pesca da
Xávega é anterior a 1751 - pelo menos - e que, portanto, esta costa que ia de Ovar
a S.Jacinto, teria sido, provavelmente, a primeira a praticá-la com o « meia-lua».
Em 1774 é referido que um arrais de Ílhavo teria sido contratado para a
pesca no Algarve, tendo sido acompanhado por toda a Companha. Aqui a arte de
Xávega era praticada com um tipo de barcas –lanchas - completamente diferentes,
19
longas de quilha, casco redondo, que tomavam designações variadas.: calão,ilhe14
etc 15
Do mapa abaixo, pode ser extraída uma noção do que teria representado a
arte de Xávega, da sua importância como geradora do intenso e brusco
povoamento que teria provocado na Costa-Nova, conferindo-lhe dimensão, e
dando-lhe suporte sustentado para o seu crescimento, ao contribuir para o
despontar de novas actividades. Sendo certo que estas por sua vez acarretaram
novas necessidades, assim se gerando o ciclo de desenvolvimento que
transformou aquele local, num dos mais afamados e referenciados da orla costeira
portuguesa.
fig.10- A Xávega
Em termos directos, o mapa abaixo, dá-nos uma ideia da dimensão da
colónia piscatória envolvida, directamente e contratualmente, nas artes de pesca
na beira do mar, em finais do Séc.XIX e primeiro terço, do Séc.XX.
Fig 11-Mapa Evolutivo da Xávega – Costa-Nova
Ano Nº Comp Nº barcos Nº Pescadores
1837 6 - 636
1866 8 16 600
14 Para este assunto ,consultar Ana Maria Lopes,in «Vocabulário Marítimo Português» ed Coimbra
1975 15 E ainda SILVA,A A Baldaque in O Estado das Pescas em Portugal –Lisboa 1891
20
1890 5 10 475
1925 18 42 1192
1937 10 -
Em 1935 é apenas registada a existência de duas Companhas: a da Srª da
Saúde e a de Stº Amaro16
.
A estes pescadores, directamente inscritos no rol das Companhas, juntava-
se todo um magote de gentes para o desempenho de actividades complementares
ao exercício da pesca; abogueiros, ajudantes, tocadores, escolhedores, salgadores,
redeiros e encascadores17
, mestres de calafate, e outros. E ainda aqueles que
faziam chegar o produto ao mercado; mercanteis, almocreves, peixeiros e
peixeiras etc.
Números estimados, fazem prever que cerca do ano de 1900, a população
que girava em volta das Companhas se aproximava dos 1.500 indivíduos, número
considerável se admitirmos que no mesmo ano se avaliava em 2.500 almas, o total
de habitantes no agregado urbano.
Em 1900 referenciam-se os seguintes valores para as capturas de pescado,
levadas a cabo na Costa-Nova (fig 12):
VALOR CAPTURAS 1900
Espécies Costa Ria Totais
Receitas Despesas
Sardinha 32:692$000 32:692$000
Peixe Chato 42$000 42$000
Robalos 2:490$000 2:490$226
Caranguejos 2:318$000 2:318$000
Berbigão 125$000 942$500 1:067$500
Camarão $540 185$450 185$990
Diversos 2:537$710 2:537$710
41:333 $426 37:559$798
16 Resende ,P.J.V. in« Monografia daGafanha»,2ª ed,1944, pp178 17 Pessoal cuja função consistia em preparar a infusão de casca de salgueiro (ou pinheiro manso),
onde se mergulhavam as redes, que ficavam com o tom arroxeado, conferindo-lhe óptima
conservação e maior resistência.
21
distribuição em % das espécies apanhadas
58%39%
Sardinha
Peixe Chato
Robalos
Caranguejos
Berbigão
Camarão
Diversos
Fig 13
Era uma correnteza diária de gentes necessitando de tudo o que fosse
básico para a sua manutenção. A que se viria juntar as provocadas pela população
sazonal, provocando a necessidade de instalar um diversificado tipo de tendas
comerciais, especialmente de vendeiros do ramo do pasto. E neste, muito em
particular, os dedicados ao fornecimento de vinho, mercancia que se
transaccionava em elevadíssimas quantidades, no local, como era habitual nas
colónias de pesca, no reconforto da alma ou para esquecimento da desdita, e que
tinha a virtude de ungir os cofres municipais, com um elevadíssimo e utilíssimo
arrecadamento do imposto de sisa18
.
Rapidamente muitos dos pescadores - por falta de afoiteza, ou por gosto
individualista, ou ainda pela idade -, voltaram-se para a ria, que se mostraria de
fig.14- Uma «Chincha»
18 Sisa era, naquele tempo, o imposto que recaia sobre todas as transações de produtos
produzidos fora do concelho.
22
novo, logo que permitida a renovação das suas águas, farta e rica, pródiga no
repovoamento das espécies piscícolas. Em 1900 são (já) registadas capturas
levadas a efeito na ria, que ascendem a 3.665$676 (três milhões, seiscentos e
sessenta e cinco mil, seiscentos e sessenta e seis) réis.
fig 15 – Uma «Labrega»
Curioso é que desde logo, a apanha de bivalves concorreu com importante fatia
para o referido valor, oficialmente (!) registado (porque já então a fuga ao
imposto sobre o pescado era prática habitual, que nascia e crescia com estas
gentes, muito facilitada pelas condições de laboração).
Foi Manuel Firmino19
quem experimentou, em S. Jacinto, nas suas
Companhas, o puxar pela soga os soberbos animais, atando-os pelo chicote ao
cabo do alar de redes, deste modo retirando ao «homem» essa tarefa extenuante20
.
Desde logo a
19 Manuel Firmino (Almeida Maia,1824) foi regedor de Avanca com 19 anos;fundou o jornal
«Campeão das Provincias»,foi Presidente da Câmara Municipal de Aveiro,e esteve na Câmara
Constitucional .Organizou as Companhas de pesca em S.Jacinto. 20 Este alar ocupava pescadores, mulheres e até crianças, que ao compasso do rufar compassado
do tambor, iam puxando (alando) a rede para fora do mar.
23
fig.16- A lavra do mar
experiência foi positiva. Os animais habituados a entesteferrar com o areão, foram
capazes de entrar mar adentro até ao joelho, parecendo não entojar com a vaga.
Até ali, a rede era puxada por pessoal contratado para o efeito que se vinha juntar
ao pessoal que tinha ido ao mar, num arraial de gentes em vozearia de trovejo, no
alar da rede, feito em sofrido e penoso arrastar . A um cinto (?) largueirão que
envergavam à cinta, cingido por alças, era fixa uma ponta de cabo - o chicote -
que ia enlaçar por detrás, ora no rossoeiro, ora no cabo da mão. Dobrados ao
esforço, lá iam duna acima, duna abaixo, até depositarem a sacada no areal. Era
um trabalho fatigante, descomedido, quase alucinante, muito demorado. Por isso
se revelaria muito positiva a experiência de levar os bois à beira-mar para o
desempenho de tal tarefa, aplanando o fardo de tão exaustiva faina.
Na Costa-Nova, concedida a facilidade em levar os animais às
Companhas, e porque das galefenhas era fácil carrear alimento, que ali sendo
farto, permitia mantê-los em abegoarias, a recompor forças entre lanços, a sua
utilização foi simultânea à instalação das Companhas, logo que varadas nesta zona
do litoral. Para recolher os animais construíram-se na beira-mar grandes
barracões, suficientemente espaçosos para os albergar, mas e também para
enceleirar pastagem para seu sustento.
A chegada de bois conduzidos pelos rústicos lavradores, à borda do mar,
veio dar um tom de ruralização ao areal, como aliás o notou e expressou Miguel
24
Unamuno, quando por aqui passou e registou o ardego, nas suas «Viagens por
Portugal».
fig.17- O «tocador» das juntas
O lavrador deixou-se cativar por aqueles terrenos - o mar - onde se colhe
sem ser preciso semear. Revolvidas as areias, esquentado o seu interior pelo
escasso, depositada a semente, havia tempo para esperar que o pão medrasse. O
chamamento à borda foi, pois, irrecusável. Muitos viram no mar o complemento
para engorda do magro pecúlio familiar, pretensão que perseguiam desde que os
seus ancestrais tinham vindo lá das gândaras, dispostos a construírem uma nova
terra de oportunidades. O rústico, habituado a dar fundura ao rego, a fazê-lo e a
refazê-lo, a recompor as suas vertentes sempre que desmoronadas, ganhou
coragem e foi lavrar o mar, mas agora sem o arado, acorrendo à borda na
esperança de juntar um pouco mais ao rendimento da leira que tinha deixado
entregue aos cuidados da mulher.
Aquela vinda à borda teve, ainda, outro efeito. O lavrador vira pescador da
borda.
25
Inicialmente estes rústicos vieram com os animais, servindo-lhes de
tocadores, no aproveitamento dos intervalos da lavra.
fig.18- O «boi» chegou à borda
Mas depois, quando o pessoal começou a ser escasso na Companha, o
lavrador -gafanhão não hesitou em dar o braço ao remo do meia-lua, saltando-lhe
para o bojo, fincando bem os pés nas recoveiras21
, aventurando-se com ele mar
adentro. Primeiro, sem ainda lhe apanhar o jeito, botou a mão ao
cambão22
enquanto rezadeiro orava pelo seu destino naquele inquieto mar . Mas
logo percebendo que remar é tão só como afundar o enxadão no ventre da areia e
logo o levantar para o voltar a enterrar uns passos a vante, foi rápido e ágil
enlaçando a mão ao punho do remo maião23
E mais tarde, até, desfraldilhando a
arte no cadenciar da saída do reçoeiro, à falta de outros maiores que tinham já
debandado para outras paragens mais promissoras.
21 Pranchas aonde os remadores de pé, fazem apoio. 22 Cabo fixado ao remo, à sua proa, que permite ajudar a impulsioná-lo. 23 No meia-lua de 4 remos, o maião é o segundo remo a contar da proa ,e o que requer mais força.
26
Porque em verdade, em fins de 80024
, já os «ílhavos» teriam, de há muito,
iniciado a migração pelo litoral abaixo25
em procura de novos pousios, envolvidos
numa verdadeira aventura mitológica, produto da irrequietude daquelas gentes,
numa atitude que lhes era peculiar e os levaria a escrever páginas brilhantes de
uma história singular, e até grandiosa, numa migração interna com lugar
relevante na história sociológica do nosso País. Com eles levaram bem aferrados
os hábitos, os costumes26
, e até os tiques, culturais e religiosos.Com com eles
ciosamente aferrados, resistiram a uma aculturação exterior, preservando-os,
levando a que perdurassem traços indeléveis, referenciais da sua específica e
proeminente cultura marítima, gravados no historial das regiões por onde
assentaram arraiais.
fig. 19- O «meia lua» passada a pancada do mar
4- ENCLAVE
24 E até em 1771 são já presentes na Costa da Caparica os arrais de Ílhavo, Joaquim Pedro e José Rapaz, iniciadores do povoamento da Caparica. 25 No «Periódico dos Pobres», Porto de 1855, referia-se em meados do Séc.XX, a ida de uma
grande quantidade de pescadores de Ovar e Ílhavo, para Lisboa, acabada a safra no litoral. E no
«Campeão de Aveiro», noticiava-se que quase todos os pescadores, de Ovar e Ílhavo, têm ido
para Lisboa. 26 “a vida, é toda a vida intensa dos pescadores do Norte, transportada para este rincão do sul;
nele se reproduzem os costumes, todos os processos de pesca daquela região» - FERREIRA,
Manuel de Agro in «Costa da Caparica-Terra de Pescadores»
27
«Arribados» à praia em local um pouco mais a norte onde um século mais
tarde se instalaria a que foi chamada, Quinta do Cravo, posta a notícia a circular,
a boa nova correndo mais rápida do que o vento, logo novos grupos de pescadores
se virão juntar aos que primeiro ali tinham desembarcado; num curtíssimo lapso
de tempo, Luís Barreto - ou Luís da «Bernarda» - terá por camaradas a
Companha do Salvador, do Arrais José Fernandes Batata; a Companha dos
Capotes, do Arrais Marçalo Francisco Capote, e a Companha do Galo, do Arrais
Manuel Fernandes Bagão. Em S.Jacinto só ficaram as Companhas da Enxada e
a da Canária.
fig. 20 - A Xávega
E foi assim, que de imediato cerca de um milhar de deslocados procuraram
pousio, para si, famílias, e para a tralha das artes, no areal deserto em frente à
Maluca, assentando arraiais na lingueta que o mar tinha engordado e o vento
consolidara, e dera forma.
Desde logo se iniciaram os trabalhos de construção dos armazéns para
guarda dos apetrechos de pesca e pernoita dos pescadores. Por entre as dunas onde
despontavam a medo, os braços verdes e túmidos do «chorão» a rodear a flor
amarela brotada do seu figo, ou descorçoados, tímidos e acinzentados
carneirinhos, perfumados, em local mais achegado à beira da ria, começaram a
surgir, para sul, uns pequenos palheiros, pouco mais altos que uma pessoa,
assentes em estacaria enterrada e com tabuado fixo nos prumos. Poderiam ser
cobertos de tabuado e colmo, ou, como aconteceu mais tarde, de telha vã.
Dispersos ao deus dará com a autorização do Arrais e consentimento da Câmara,
na condição de a qualquer momento poderem ser postos abaixo. Tinham em
norma três a oito metros de frente, e quatro a seis, de fundo.
28
Tratava-se de simples tugúrios que mais pareciam vindos da origem do
mundo, pardieiros que pouco mais abrigavam que a corcova da duna do areal. Nas
noites arrastadiças de invernia, o zunzunar do vento a entrar pelas frinchas, fazia
tilintar os canecos de esmalte pendurados no padial da lareira. Aqui e ali,
despontavam outros palheiros, mas de maior dimensão, para onde se levaram os
tanques e as «dornas» para a salga do peixe. O negócio da venda e distribuição
deste pertencia a gentes de Aveiro e de Águeda (e interior), mercantis27
que
«geriam» os grupos de «almocreves», verdadeiras companhias de transporte, a
quem era remetida a tarefa de fazer chegar o peixe, lá para o interior do país, para
as beiras profundas. Peixe do último lanço da tarde era lavado e escorchado, para,
ao outro dia de manhã, ser vendido em Águeda, Viseu, Tondela, etc.
Junto das Companhas, José Luís Barreto - o patriarca da Costa-Nova
tornado negociante de peixe, mas e também importador de sardinha de Lisboa, e
que mais tarde abriu negócio de aprestos de pesca, em Aveiro - montaria o seu
«palheiro»28
, ali ao lado, a norte do local onde hoje se situa a «casa referida
como sendo de José Estêvão»29
, anteriormente propriedade de Manuel de Moura
Marinho30
, negociante de peixe, de Viseu.
fig. 21 - Palheiro «dito» de José Estêvão
A norte desta apenas existia o palheiro do Padre José Bernardo de
Sousa. Outros palheiros começaram, entretanto, a alapar-se por ali à volta: foi o
27 Também chamados mercantéis 28 Termo que deriva do facto de estes incipientes abrigos, serem, inicialmente, cobertos de junco. 29 Para este assunto consultar www.senosfonseca.com 30 CUNHA, Cons José Ferreira - Subsídios para a História da Ílhavo, Gafanha e Costa-Nova
29
caso do de Manuel da Maia Vieira, Capitão-mor, chefe das Ordenanças e Juiz
Ordinário de Ílhavo, do de José Ferreira Félix, Sargento-mor, Tenente das
Milícias e Vereador da Câmara de Ílhavo, do de José Gomes dos Santos, o
«Rigueira», feitor do Capitão-mor e o de João de Azevedo Júnior, feitor do
Sargento-mor. Neste primeiro agregado, o palheiro situado mais a sul era o
referido, pertença de Manuel Marinho, limitando o núcleo fundador, que se
dispersava todo para norte.
Inicialmente os primeiros banhistas - começados a chegar a partir de 1822
-, ocuparam os pisos de areia dos palheiros de salga, cobrindo-os com esteiras
onde alinhavam as trouxas, por ali pernoitando depois de terminada a lufa-lufa da
entrega do peixe, finda a azáfama do dia.
A vinda a banhos, prática que a Realeza inspirara, tornara-se moda nos
meados do Séc.XIX, fazendo acorrer à beira-mar uma burguesia com posses e
tempo, suficientes, para se entregar à prática de lazer e à recolha das virtudes que
se descobriam existir no mergulho do corpo, nas águas frias do oceano. Parece
terem sido os clérigos, quem, aqui, na Costa-Nova, inauguraram o novo hábito,
procurando a praia para revigorar o corpo - antes que a alma se «fosse» …-
escoando os dias nas brequefestas dos panelos da caldeirada bem regada por
néctar bairradino, longe do esparto do serviço espiritual.
5- INTEGRAÇÃO NO CONCELHO DE ÍLHAVO
A praia iria progredir e crescer. De ano para ano atrairá um sempre maior
número de banhistas que se vieram misturar à azáfama das Companhas.
Administrativamente, o local, foi finalmente integrado no Concelho de Ílhavo, por
decreto de 24 de Outubro de 185531
; e por portaria de 10 Setembro de 1856
passaria à jurisdição espiritual da Freguesia de S. Salvador, Ílhavo.
31 Decreto de Rodrigo da Fonseca Magalhães e Frederico Guilherme da Silva Ferreira, respectivamente
Ministro do Reino e da Justiça, do Ministério Regenerador.
30
fig. 22- Palheiros do início
6- ESTRADAS:
COSTA-NOVA / AVEIRO e ÍLHAVO / COSTA-NOVA
De entre os factores que tiveram grande importância para o desenvolvimento da
Costa-Nova, sobressaem as ligações rodoviárias que se estabeleceram, primeiro
com Aveiro (1855) através da ponte no Forte da Barra (1861)32
.
fig. 23–Construção da ponte das duas águas
32 Esta ponte, também conhecida por «Ponte das Duas Águas», foi de novo construída em
madeira, em 1934.
31
fig. 24– Ponte das duas águas
e da Cambeia (1865). E posteriormente, a ligação de Ílhavo à Mota da Srª da
Maluca (1900).
Foi então que a C.M.I sentiu a necessidade de elaborar posturas para a
resolução de litígios que foram grassando, e de tomar algumas medidas de
controlo das concessões de terrenos para edificação de palheiros.
Fonte: A.C.M.I. – Livro de Sessões 1836-1840
fig.25-Licença concedida para construir um Palheiro
Licença concedida a
Manoel Oliveira Lopes
de AGUEDA, construir
um Palheiro ao longo
do rio;
(….)
32
fig. 27- Mapa de 1902 onde se pode apreciar o traçado
do «Caminho Velho» e a «nova ligação ao Farol».
(Arq. A.P.A)
A primeira das ligações referidas só foi possível, graças à intervenção
política de José Estêvão.
Em atenção a esses relevantes serviços, a C. M. I. concederia por
aforamento, a José Estêvão, em 1860, todo o areal que ia da Costa-Nova à Barra,
compreendido entre o mar e a ria33
, pela módica quantia de 1$250 réis/ano.
A segunda daquelas estradas, iniciada em 1893, passaria por diversas
dificuldades, arrastando-se a sua conclusão durante alguns anos. Tomada a
decisão de avançar com a ligação logo que foi construída, na Gafanha de Aquém,
a ponte de Juncal Ancho (1865) - também esta por influência de José Estêvão34
- a
estrada seguiu um percurso praticamente paralelo ao caminho pedonal até ai
existente, vindo a situar-se um pouco a norte daquele. A construção foi
interrompida em 1895, quando da anexação de Ílhavo, por Aveiro. Durante o
referido período, praticamente nada foi construído (para além de uns escassos
33 No Doc. do Anexo 9, pp.479 do «Ensaio Monográfico de Ílhavo - Séc.X - Séc.XX», é transcrito
este aforamento. 34 Chegou a ser questionada - e objecto de polémica - a questão de saber se a influência teria
sido de José Estêvão ou de Manuel Firmino
33
1.200 m). E será em 1898, pós desanexação, que a C.M.I. por proposta do Dr.
Moura35
, decidiu contrair um empréstimo36
no valor de 1.400$000 réis para a
terminar, tal a percepção que se tinha da sua importância, e, por isso a urgência
em a construir. Os direitos da passagem da barca que se calculavam poderem vir a
atingir os 400$000/500$000 réis, eram - entendia o proponente -, suficientes para
a amortização do empréstimo. E ainda suficientes para acorrer a um ou outro
melhoramento (mercado, início de arruamentos, etc.) de que havia necessidade, e
era urgente iniciar, conferindo ao agregado um princípio de textura urbana, pois
que para lá dos palheiros, nada mais existia, pese embora que o mesmo estava a
crescer em ritmo acelerado. Em 1900 a ligação ficaria pronta.
Fig 28-O desembarcadouro do lado da Costa-Nova
E tornar-se-ia uma levada por onde diariamente corria em magotes, uma
gentana.
Ainda o sol não despertara lá para as bandas da serra e já um povoléu de
pescadores, pescadeiras, moços e ajudantes se metia ao caminho em alegre
35 Médico de Partido em Ílhavo 36 Este empréstimo foi feito pelo Dr. Manuel da Rocha Madail, a uma taxa de 5%
34
palanfrório, a galrichar, percorrendo a passo miúdo, saltitante e lépido, a légua
que lhes permitia embarcar na passagem para a outra banda. De tarde, ou já noite
no regresso, se a maré botava tardia, em grupo ou isolados, desfilava todo um ror
de afadigados e pressurosos passantes que se misturava na estrada, par a par, com
a correnteza de apressados jericos. Que seguiam derreados, com os alforges e
canastros a abarrotar de sardinha ainda vivinha, que até parecia desejosa de ouvir
elogios quando chegada à mesa dos desquebrados beirões, ávidos de tão ditosa e
paladosa vitualha. Era tal o movimento de pessoas e animais, e incertos os
horários, que desde logo se percebeu da necessidade de abrir balcão, ali no final
da estrada, nas imediações da mota da barca da passagem, para dessedentar os
viandantes e lhes aconchegar os estômagos mais esgalfos, com um caldo de
conduto, ou com um escabeche, em reparo urgente. E com esse acomodamento
libertá-los dos maus humores, conferindo-lhes apetite para a dureza da jorna,
apenas interrompida num breve espaço de tempo, o estritamente suficiente para
recobro de ânimo capaz de se atirar ao estirão que se seguiria. E ao lado da tasca
abriu portas, também, uma «loja», para descanso e refastelamento dos rucilhos,
esfalfados com o trotear das esguelhadas veredas serranas, concedendo-lhes
tempo de repouso para o exercício superior da arte de asnear, pois que sendo
burros, não o eram tanto que não sentissem no corpo - e quem sabe se na alma! -
quão dura era esta vida de sardinheiro, para cá e para lá num desaforo a jornadear
por terras serranas esquarrosas, sem tempo para se ajeitarem com as suas burricas,
que deixadas lá na serra em trabalhos menos esfalfantes, folgadas do corpo e do
vício, estavam prontas a recebê-los de «pernas abertas» (aqui, mais tersa não
pode ser a imagem).
Por cima da «loja» havia um celeiro de palha extreme, amplo dormitório
comunitário a servir de albergue em noites de descambada invernia, daquelas em
que mais parece que todas as guerras deste mundo emigraram lá para cima. E mais
acautelado será a um pobre passante interromper jorna e esperar que os santos se
ponham de acordo. Noites em que o troar dos canhões é substituído pelo ribombar
infernal do entrechoque das negras e convulsas nuvens, em escarapela atiradas
umas contra as outras pela trabuzana desarcada. Noites em que o céu se
35
escarcalha, deixando passar em jorro as bátegas de água, que batidas pelo vento
fustigam o viandante desprevenido, sem tempo para se espirar e acolher, a tecto
condigno.
Mais aconselhado era ficar com um caldinho de feijocas que a «ti Norta»,
boa apousante, fornecia a troco de umas bilhas de azeite lá da serra.Ou de um
fumeiro emprazado, bem regado, finado com um mata bicho de rija e agreste
cachaça, daquela que entibece o espírito e o liberta das agruras da vida, a preparar
o corpo para uma ressega noitada.
fig. 29- Peixeiro
Mais tarde se chamaria a esta venda, «A Bruxa». Adiante contaremos
porquê.
36
fig.30- Peixeira
7- PRIMEIRO AGREGADO URBANO
O agregado urbano assumiu desde o início a sua característica notória, ao
desenhar-se como uma linha de palheiros debruçados sobre a concha que a ria ali
caprichosamente tinha desenhada, dispostos na sua borda em correnteza
circundante.
37
Fig 31 - Os palheiros em volta da concha
Fila de casebres sombrios, monótonos na cor e nas formas, construídos ao
sabor dos altos e baixos das dunas, dispostos para norte e para sul da mota das
barcas da carreira. (que até 1932 se situou frente, ao que é hoje, café Atlântida),
respeitando o alinhamento que lhe era dado pela borda da preia-mar ,que lhe
beijava a soleira.
fig. 32- Primeira Mota das Barcas
38
Toda a actividade piscatória foi, por via desse desenvolvimento,
afugentada, empuxada lá para o sul, para detrás de um palheirão que parecia ser -e
foi-o durante muito tempo - o «fim da linha».
fig. 33- O palheirão de salga no local onde viria a ser edificada a
Casa «Pinto Basto»
Por detrás deste palheirão, à medida que o agregado crescia, foram-se,
naquela área, fixar vários armazéns de tratamento de peixe ,na frente dos quais
fig. 34- Os armazéns de salga a Sul, e os botirões
ancoravam os botirões da chincha, embarcações dos pescadores que pela idade,
ou por aproveitamento dos intervalos da xávega, mau tempo ou defeso,
39
procuravam na laguna, em actividade menos perigosa e esfalfante, a captura de
peixe variado -a caldeirada - que depois vendiam com facilidade directamente aos
mercantéis, ou no mercado avulso.
Fig 35 – O sul da Costa-Nova
Pela duna, naqueles palheiritos alapados nas suas corcovas, casebres
rudimentares que em alguns casos mais pareciam cortelhas para guardar animais,
foram-se acolhendo, ao seu abrigo, os familiares daqueles pescadores da beira ria.
As mulheres e o rapazio ora davam uma ajuda na chincha ou se ocupavam
nos armazéns de salga.
fig. 36- Vendeiras
40
Eram gentes que se não diferenciavam em nada dos pescadores das
companhas, exteriorizando o mesmo tipo de viver e sofrer, alardeando os mesmos
hábitos e iguais costumes, pois eram gentes da mesma gente. Dispersos por aqui e
ali, acantonaram-se no extremo sul do povoado, dali praticamente só saindo em
dias de festa, ou para ir à Capela em visita prometida ao orago.
fig. 37- Preparando a caldeirada no Bico.
Consolidado o arruamento que vinha terminar, ali junto ao palheirão, logo
se percebeu - e reclamou -, a necessidade de ser criado um espaço para descarrego
das tralhas (pipos, lenha, redes, vinho etc.). Que fosse suficientemente amplo para
permitir que as carroças que começaram, depois da construção daquele, a servir de
alternativa às barcas - até ali a única via de acesso para fazer chegar, o necessário
e o indispensável, à vida na Costa-Nova- dessem a volta. A Câmara de Ílhavo
então presidida pelo Dr. António Cerveira, para criar o citado terrado público,
levou a cabo a
41
Fig38 - Zona onde se fez o terrado
expropriação litigiosa37
de um palheirão em ruínas, da firma Bastos & Bastos (
pertença da Companha da Srª da Saúde), libertando desse modo um espaço
amplo, desimpedido, precisamente o mesmo que mais tarde, em 1933, veio a ser
escolhido para a implantação do mercado da Praia (que aí funcionaria até aos
finais do Séc.XX)
37 Em 10/5/1899 o povo de Ílhavo foi convocado pela C.M.I, para decidir sobre a expropriação
42
A primeira ligação da beira da ria, em direcção do mar, foi levada a cabo, a
sul, após a expropriação de uns terrenos à Sr.ª Pauseira, permitindo desse modo o
acesso à Lomba, e logo dali, às Companhas
.
fig 40 - Costa-Nova cerca de 1920
Até princípios do Séc.XX não existiu em todo o aglomerado urbano
qualquer tipo de iluminação pública, nocturna38
. Tal benfeitoria só viria a
acontecer na segunda década do referido século, como referiremos em particular,
adiante.
38 Em 1935 foi autorizado o prolongamento da linha de alta tensão, que passando à Barra,
alimentava a Costa-Nova. Anteriormente, a partir de 1926, tinham sido instalados candeeiros a
querosene.
43
fig. 41- Os primeiros candeeiros na Costa – Nova.
A água doce, essencial à urbe, era retirada de poços abertos na areia. A
uma determinada profundidade era fácil, dada a capacidade filtrante do terreno,
obtê-la em condições satisfatórias, quer em qualidade quer em quantidade. De
facto, estranhamente, a determinada profundidade, variável de local para local,
existiam na Costa-Nova veios de água doce de assinalável qualidade e frescura,
contrariados por outros de sabor salobro, impróprios para qualquer tipo de
utilização. Só na década de trinta do Séc.XX, se viria a erigir um fontanário na
praceta Arrais Ançã .
fig.42- Costa-Nova (anos 20)
8- A PRESENÇA DE JOSÉ ESTÊVÃO
José Estêvão tinha uma predilecção muito especial por esta praia para onde
vinha descansar de uma tumultuosa actividade parlamentar. Era no recolhimento
do seu quarto que sentia entrar a brisa fresca do norte e lhe chegava o sussurro
do mar que rebentava e espraiava de encontro às dunas da costa39
; aí recuperava
forças, ânimo, e lastro para a palavra, fluente, corajosa, firme e torrencial de
39 Magalhães, Luís in «José Estêvão - Discursos Parlamentares», ed. Câmara Municipal de
Aveiro
44
tribuno insigne - o maior! - da história pátria. E era aqui- na Costa-Nova- que
José Estêvão aquietava o seu temperamento e o seu feitio combativo, o credo da
sua fé, e repousava a sua brava condição de soldado da liberdade, como nos
disse seu filho, Conselheiro Luís Magalhães. Hoje, a sua estátua na Assembleia
da Republica, homenageia o bravo que sob a metralha na linha da frente,
continuou bravamente, sem recuar, a descarregar o arcabuz sobre os miguelistas
sitiadores. E também exalta o insigne parlamentar -o seu maior como nos disse
Camilo- que do alto da tribuna, jorrou das mais límpidas e cristalinas palavras,
sublinhadas pelo gesto acusador, impiedosamente dirigido aos inimigos da
liberdade constitucional, fazendo jus ás duas Torres e Espadas com que o
Imperador lhe pregou ao peito.
Ora este José Estêvão passava, aqui, na Costa-Nova, regularmente, largas
temporadas na companhia de sua esposa, D. Rita Moura Miranda, para quem teria
comprado (1840) o palheiro que fora pertença do comerciante Manuel Marinho,
mercantil de sardinha, rico proprietário que em Aveiro tinha uma outra mansão,
ali na Rua M. Sacramento (R Direita) mais tarde pertença dos «Rebochos».
O Tribuno tinha o hábito de receber no seu palheiro, em que introduziu
algumas melhorias depois de o adquirir - se bem que muito diferente do actual -,
muitos dos seus amigos, figuras gradas da política e das letras, locais e nacionais.
Seroavam, habitual e familiarmente consigo, os Mourões, os Alcoforados,
os Visconde de Almeidinha, o Arcebispo Bilhano, o José Ferreira, os Pinto Basto,
os Regalas e muitos outros.
45
fig. 30- O seroar naquele tempo (Família Pinto Basto)
Vindos de Lisboa para o visitar, estiveram na sua casa muitos dos seus
amigos e correligionários: Mendes Leite, Freitas de Oliveira, Sebastião Lima e
Agostinho Pinheiro, que por aqui demoraram para desfrutar com José Estevão as
habituais visitas diárias às Companhas de xávega, cujos arrais, o politico conhecia
pelos nomes próprios (ou alcunhas), e a quem, tantas vezes, concederia auxilio.
Fosse o simples amparo humano em momentos de infortúnio - que nesta labuta
eram vulgares -, fosse solidariedade política, intercedendo junto da Governo, e até
da Coroa, para obter os costumados privilégios que habitualmente eram
choramingados - e por norma concedidos - a esta gente; ou, ainda apoio jurídico
como brilhante e impulsivo advogado, não desdenhando envergar a toga e ir à
barra dos tribunais com a sua brilhante oratória, defender estas humildes criaturas,
sempre que se sentiam espoliadas dos seus direitos, muitas das vezes baseados
numa lei que não era mais do que a tradição consuetudinária
46
fig. 31- Velha família de pescador
Frequentemente o tribuno embarcava para as terras da Joana Maluca de
quem era muito próximo, para lhe render visita. Com ele levava os seus
convidados, que Joana recebia com o apreço e a alegria de uma briosa e esmerada
anfitriã. Singular mulher de forte arcabouço, faladura varonil desembaraçada,
muito expressiva, verdadeira matriarca da Gafanha da Encarnação, Joana fazia
gala em bem receber o político e seus amigos, organizando para o efeito opíparas
jantaradas. Findas as vitualhas, era costume refastelarem-se nas espreguiçadeiras
colocadas sob o vasto telheiro da quintarola dos Gramatas, entretidos na conversa
enquanto saboreavam longos charutos de que Joana era, estimável e insaciável,
fumadora. Chalaceavam ao tempo em que deixavam correr o olhar contemplando
a ria a agasalhar-se num imenso cobertor de neblina rasteira, enquanto o sol,
enorme disco de fogo se esgueirava em fim de tarde por detrás dos palheirinhos,
na outra banda, desenhando-lhes os contornos no vermelhão afogueado que ia
tingindo o céu. E logo surgia a lua por detrás das serranias a esparramar o
prateado sobre a ria, reflectido nas tainhas que em saltos encabritados se atiravam,
imolando-se, contra os saltadores. Estas armadilhas montadas pelos pescadores
ribeirinhos tinham a forma de caracol, para onde as taínhas entravam, mas já não
saíam.
47
Findo o dia, era tempo de desmoirar a barca para, bem dispostos e
faladores, bem aconchegados, voltarem à Costa-Nova, para se recolherem ao
conforto do palheiro do anfitrião, em retempero das fadigas da jorna
gastronómica.
fig.32- Lavagem e embarque da Sardinha
Destas presenças e andanças, destas incursões marialvas, faziam de
«búzio» os jornais e revistas da época, locais e nacionais. A Costa-Nova
começaria em meados do Séc.XIX a ter estatuto, referenciada pelo charme e
autenticidade da sua paisagem,e ainda, pela rusticidade do perfil humano que lhe
dava vida. Elogiada pela bondade da sua natureza geográfica, encravada entre
uma ria povoada por centenas de embarcações com longos pentes amarrados á
borda, a catá-la, à procura de moliço, e o mar onde na borda, os bois investiam
por ele adentro, penetrando-o até a água lhes fustigar o ventre, participando
activamente na faina piscatória a que conferiam a sensação estranho de
ruralidade transmitida ao areal inerte.
9- RETRATO (Final Séc.XIX)
48
Nos meados do século não havia, ainda então, qualquer arruamento digno
desse nome que conferisse um carácter urbano ao aglomerado de construções.
Existia, tão só, um simples carreiro que contornava a enseada, e que sendo um
pouco mais consistente que os areais que o rodeavam, se interpunha entre os
palheiros das tendas, e a ria. Carreiro que nas marés vivas era totalmente
Fig 33-Marés vivas
submergido, mas que apesar disso, definia, ainda que toscamente, uma linha de
crescimento mais ou menos respeitada, pois era ao longo dele que as toscas e
incipientes habitações se iam alinhando.
Quando chegada a lua plena, a água roçava e até batia nos degraus dos
palheiros, que empoleirados na duna se julgavam longe da invasão da maré.
Nivelado o trilho, como as habitações tivessem sido construídas ao sabor do
ondulado das lombas do areal, seguindo as suas formas, deu-se que uns estariam
mais abaixo, e outros mais acima.
49
.
fig 34 – Os terraços
Daí a necessidade de se construírem terraços -que ainda hoje perduram! - a
diferentes níveis, com a finalidade de possibilitar acesso, dos palheiros ao
caminho público.
Em 1873, João Maria Garcia abriria uma sala de teatro para entretenimento
dos veraneantes, o que no tempo estava muito em moda40
. Na sessão de
apresentação toda a high life da praia compareceu, fazendo deste acto o primeiro
dos muitos que se iriam seguir, na intenção de criar uma motivação que rompesse
com o simples ócio, transformando estas zonas de lazer em locais privilegiados de
promoção das preocupações culturais - e recreativas - que começavam a emergir
ao tempo, fazendo parte do cardápio de escolhas das elites oriundas de uma
pequena burguesia desejosa de se afirmar nos salões .
Muitos outros botequins foram abrindo as suas portas. Debruçados sobre a
laguna, serviam de locais por onde se ocupava o lazer no intervalo das banhocas,
40 Almeida Garret já os referia em 1843, a trabalharem no areal da Póvoa do Varzim. AMORIM,
Sandra in «Vencer o mar; ganhar a terra» ed. Câmara Municipal da Póvoa do Varzim.
50
Fig 34- A zona das «vendas»
a mirar as deambulações ronceiras dos moliceiros que enfeitados com as cores
vivas dos seus ramalhetes, deslizavam sobre as águas da ria, que de tão mansas
reflectiam, qual espelho, a paleta de cores que aquelas embarcações exibiam nos
fig. 35- Moliceiro a catar o moliço
seus costados. E a voz de comando do «vai à forcada», dada pelo arrais ao moço,
parecia ganhar eco no ar leve do dia reslumbrante.
51
Fig 36 -Costa-Nova na viragem do século
9.1- Capela de S.Pedro
Enquanto uns se divertiam, outros davam expressão ao sentimento de fé.
Muito intenso na classe piscatória, o transcendente e a glória às alturas, eram
necessários para submissão e aceitação de destino tão acre. Por isso o pescador
tinha uma prática, quase diária, dessa exaltação devota.
Assim que varavam e se alapavam em novo pousio de pesca, era sua
primeira preocupação, depois de instalados, a da construção de uma pequena
Capela laborada em tabuado surripiado nas redondezas, coberta a caniço. Palheiro
acachapado, era por norma tão exíguo que mais parecia apropriado para lá meter o
Menino e a Família, do que albergue para S.Pedro e seus devotos, que o eram toda
aquela gente das companhas, a que se juntavam mais uns achegados, convidados
pelo hausto da maresia a evocar protecção e boas pescarias, para o grupo. Na
Costa-Nova terá sido o frade «jerónimo», Frei Pachão, quem, em 1822, ergueu
uma dessas
52
fig. 37- Capela da Srª da Saúde
Capelinhas. Que embora tosca, serviria para deixar o santinho e os crentes ao
abrigo do fustigo da nortada, o suficiente para emblecar aquela gente no
cascabulho das palavras da fé, ditadas pelas matinas em sermonário diário,
tonitruante e ameaçador, para lembrar que a protecção deveria ter tornas
adequadas na largueza do dízimo. Ainda o sol se não erguera e já a sineta
bimbalhava, estrídula, a chamar à oração toda a Companha, que em cordão
humano marcava presença, a atear o lume vivo da crença.
Só mais tarde, em 28 de Outubro de 1889, foi decidido construir no areal,
ali logo abaixo da «Lomba», em situação estrategicamente escolhida para servir
pescadores e veraneantes, «a capelinha branca» de culto à Nª. Sr.ª da Saúde(fig
37), com compostura e dimensão, suficientes, para o tagaté à alma, em serena
cruzada evangélica.
53
fig. 38- Acta do pedido feito à Câmara, para construção da Capela
No sentido nascente-poente, já o referimos anteriormente, não havia, até
ao Séc.XX, qualquer arruamento digno desse nome. Pretendendo aceder à corcova
da lomba, para de lá se observar a paisagem, era preciso subir ladeiros, pequenas e
tortuosas congostas de chão de areia lassa, sujas pelo escasso, mal cheirosas,
fétidas do pez vertido, enfeitadas por peixotas dos cações ou de raias estripadas,
postas a torrar ao sol, para gáudio de um ou outro pardalito que nelas
depenicavam, esfomeados e glutões.
10- COSTA-NOVA princípio Séc.XX (1900-1940)
10.1- Alterações do agregado urbano
Com o início do novo século, e mesmo perante as dificuldades de um país
a viver numa verdadeira turbulência politica, que de convulsão em convulsão
social levava a augurar uma mudança radical do regime, para breve,estes lugares
de lazer afirmaram-se. Estava definitivamente adquirido o hábito do gozo
campestre, ou o dos banhos, mezinha em moda para tratamento das moléstias dos
humores que se iam acumulando ao longo do ano, desde que o bolso do paciente
suportasse o dispêndio de tal receituário.
Às vigílias, às noitadas, aos abusos emocionais próprios de um tempo de
convulsão onde se discutiam ideias novas que pretendiam - nem sempre com
modos cordiais - dar um novo rumo ao País, juntavam-se os excessos das tomadas
de posição na catrefa de ideologias importadas, que logo eram dadas a conhecer
de um modo apaixonado, por vezes conturbado. Um ror de vezes dentro de salas
enfumaradas ou nos clubes entre jogatina e diversão até altas horas. Todo este
fervilhar de vida corroía o ânimo, depauperava o sistema nervoso, e enfezava o
corpo. O País parecia ser dos tristes, dos ensimesmados, dos cismáticos e
choramingas. Nada melhor para mudar esta paisagem humana, que lhes incutir a
54
ideia da benfeitoria que era o ir a banhos, para a praia, ou a ares, para o campo,
quando não a águas para as estâncias termais para uma recomposição interior.
fig. 39- Marginal no início Séc. XX
Ir para o campo e ou aproveitar as águas medicinais, eram assim
prescrições do receituário do tempo; ficavam contudo dispendiosas às nossas
gentes. Para estas, o ir para a praia e mergulhar nas águas frias do mar e desse
modo encontrar recobro, aqui, à porta, saía muito mais em conta. E sendo chic! -
dando estatuto de high life - tinha ainda uma grande vantagem: se o pecúlio não
desse para suportar o preço de estadia em uma das muitas pensões que
começavam a pulular pela Costa-Nova, instaladas nas redondezas da mota da
barca da passage, sempre se poderia ir e vir, diariamente, num simples, agradável
e muito convivial e galhofeiro passeio, feito em bicicleta - e até a pé -, pela
estrada que ligava o centro da Vila à Costa-Nova. Num exercício que em si
mesmo era já parte integrante do receituário, complemento da mezinha milagreira.
55
fig. 40- A Costa-Nova (início Séc. XX)
Muito embora o ir a banhos fosse, para muitos, apenas um motivo
acessório - por vezes simbólico - do tratamento preceituado, o que se pretendia,
no ror das vezes, era, afinal e tão só, o divertimento para descontracção do espírito
corroído pela cisma. Fosse a do próprio ou a de quem com ele compartilhasse da
vivência enfadonha.
A Costa-Nova, em 1900, para os que vinham de fora, desconhecedores do
bulício que ia na mesma, tinha, ainda no início do novo século, um aspecto de
urbe velha, algo desolador, correnteza de palheiros escuros sem fundo, sem
perspectiva, à beira-ria especados, parecendo amparados uns nos outros,
encostados beiral com beiral. Valia, pois e só, o deslumbre da paisagem natural.
56
Fig 41 –A paisagem
fig. 38- A Costa Nova, e a antiga mota das barcas (início Séc. XX)
Dizia o Bispo Trindade Salgueiro, quando vinha para o seu palheiro, o
«paquete»:
Tão linda é a Costa-Nova - acampamento ligeiro e garrido, erguido entre
o céu e o azul do mar, o azul da ria, o azul do céu.
fig.39- O «Paquete» refúgio de Trindade Salgueiro
57
Mas para os que estivessem de dentro, e procurassem melhor, havia nela,
uma vida em início, já buliçosa, viva. Uma subida à lomba para daí dar um olhar
fundo, a observar ainda que de longe, a azáfama das Companhas, era sustento e
regalo, interiores. Um bordo até lá ao norte, seguido de uma popada em direcção
ao sul, a bordejar a ria, com atracação obrigatória na Praça para dois dedos de
conversa, era o bastante para um recém-chegado imbricar o desejo de aqui ficar.
fig. 40- O areal frente ao «Coração da Praia»
Rapidamente a urbe evoluiria.
Nos primeiros decénios do Séc.XX a distribuição do agregado urbano
estava já definido: - à beira- .ria, com a água a beijar-lhe os pés, alongava-se um
cordão de palheiros de madeira já ocupados pelos proprietários com as suas
vendas; na lomba começava a surgir um novo pólo de crescimento urbano,
iniciando uma diversificação na tipologia do casario, aqui mais variado, menos
monótono que na frente ribeirinha, pois a construção em alvenaria começaria a se
generalizar, embora a grande maioria das edificações fosse ainda de madeira, de
tabuado.
58
f ig. 41- O início da «Boa-Vista». A nascente uma única casa
Praticamente todos (?) os palheiros situados à borda tinham um sobrado -
normalmente destinado a aluguer – exibindo, a grande maioria deles, o tom ocre
do sil (óleo de peixe misturado com zarcão). Mas se atentarmos em fotos do
tempo, notamos que alguns já se apresentam em tons claros, algo envergonhados
do destoo, mas já expondo o seu tabuado às riscas, brancas e escuras, embora não
tão cromáticas como o virão a ser na segunda metade do Séc.XX.
fig. 42- Os primeiros palheiros já com cor clara (cerca 1930)
Iriam ser os percursores dos risquinhas que no Séc.XX se viriam a tornar o
ex-libris da Praia, exibindo as riscas estereotipadas, em intensos e contrastantes
59
tons de um cromatismo muito forte, muito vivo, muito apelativo a registo de
clichés.
fig. 43- Costa-Nova início Séc. XX
Na correnteza que se postava para norte da casa «Pinto Basto», seguindo
até ao Bico, e por onde pululavam as tendas de comércio, o aspecto exterior dos
alçados dos palheiros, e até a sua divisão interior, eram muito idênticos.Na
marginal as edificações tinham, em norma, o rés-do-chão a que se acedia por uma
porta ao centro, ladeada por duas janelas de guilhotina, aos vidrinhos, e um
primeiro andar (chamado sobrado) com varanda de balaústres, suspensa,
pendurada do beiral e enquadrada por duas janelas, também elas de guilhotina e
aos vidrinhos. O beiral saía cerca de um metro da empena, sendo embelezado por
cachorros, que mais não eram que o prolongamento das vigas de suporte do
telhado, que lhe davam consistência e amparo. Era forrado interiormente por
tabuado. Alguns beirais, no seu frontal, eram enfeitados com entabuladuras de
fino recorte - as grinaldas41
-
41 Ouvimos diversas nomenclaturas para designar estes enfeites. De entre outras a do Arq.Óscar
Graça que lhes atribui a designação «rendas do beiral», «zona dos tímpanos»
60
fig. 44- Palheiro com Grinaldas
que lhes conferiam uma certa individualidade e graça. O tabuado de capa e
camisa, dispunha-se no alçado, na vertical, enquanto nos laterais era disposto
horizontalmente, por razões de equilíbrio (travamento) estrutural.
fig. 45- Costa–Nova início cerca 1900
Os novos palheiros, inicialmente pousados sobre o areal, sem outra
fundação que não fosse uma estacaria verde cravada na areia e pedra, e que era
envolta em sal para não apodrecer, começaram a incluir uma caixa de ventilação
debaixo do tabuado, com cerca de 0,50 metros, com a finalidade de evitar o
apodrecimento rápido do mesmo; o referido tabuado era apoiado em vigas de
madeira, escoradas em fiadas de adobes deitados, a servir de fundação.
61
De uma maneira geral, os palheiros da referida zona - a que poderíamos
chamar nobre (apenas para os distinguir da zona dos tugúrios) -, tinham corredor
ao meio, e incluíam cozinha no piso inferior e no sobrado, pois que este era
habitualmente alugado a veraneantes42
. A tendinha das necessidades era exterior,
deitando para uma fossa rota.
10.2- As primeiras construções em alvenaria
O custo da madeira e principalmente a sua manutenção, acabaria por tornar mais
fácil a construção em alvenaria, com a utilização de adobes de que havia fartura
de produção nos barreiros de Ílhavo e arredores. Interiormente era utilizada uma
técnica de construção de argamassa com ripado chamado «chamel».
A primeira construção43
do agregado urbano, executada em alvenaria, que
tinha uma dimensão exagerada e até um pouco chocante, terá aparecido no final
do Séc.XIX. Outras se seguiriam, interpondo-se entre os palheiros de tabuado. De
entre elas a mais notável, virá a ser a que, ao sul, se dispôs no sentido nascente -
poente, pertença de Alberto Pinto Basto. Que como anteriormente referimos, veio
substituir o palheirão de salga que naquele local estava implantado com a mesma
orientação. A sua posição perpendicular ao aglomerado urbano parecia pretender
opor-se a qualquer crescimento da praia ribeirinha, para sul, barrando olhares e até
a passagem, pois ali vinha embater o caminho que ligava a Costa-Nova à Barra
(1866)44
.Construção polémica, só possível pelo ascendente político do
proprietário.
42 Em 1936 dava-se conta que um sobrado de um palheiro era alugado por 600$00 mês. 43 Numa viagem pela borda em que o «ti Ricoca» na sua bateira Senhora da Saúde, levava consigo o doutor Moura, partidista (médico de partido) em Ílhavo, e o Sr. Mesquita, de Aveiro,
perante a surpresa do doutor à primeira casa de alvenaria avistada da ria, o Ricoca informou:
- Saiba Vossa senhoria, senhor doitor, que o palácio é de um brasileiro de Tràz-os-Montes, lá pró
pé de Sangalhos… (Dinis Gomes, in «O Ilhavense» de 4/8/1935) 44 Após a construção desta estrada surge na Câmara (27/06/1899) uma petição que solicitava a
expropriação do palheiro da firma Basto & Comp. para se abrir um largo onde se pudessem
descarregar tralhas, lenhas, colchões etc. Ficava no final da mesma e teria dado origem ao largo
onde mais tarde se construiu o mercado.
62
Mas o seu aparecimento iria alimentar uma outra polémica, muito
referenciada na época, já que o pequeno palacete se viria a tornar, rapidamente, o
centro de reunião das elites mais abastadas, a nata da society em gozo de férias,
provocando uma certa debandada dos notáveis, das festas da Assembleia, até ali o
centro do divertimento que albergava todas as camadas sociais. Para os salões
daquela avantajada casa, trespassou-se o sarabandear louco das nádegas mais
escorchadas da praia. Por detrás das suas paredes servia-se chá em baixela de
filete dourado, V.A, ou vertia-se champanhe francês em taças acristaladas da
mesma origem. A norte, no salão Arrais Ançã, aconchegava-se uma mais prosaica
pequena burguesia, em diversão mais variada e próxima, mas não menos ruidosa.
Eles, bebericando um ou outro tinto bairradino por caneco de esmalte,
embornalando umas folarengas fatias vindas de Vale d’Ílhavo; elas, debruçadas
nas limonadas servidas em plebeus púcaros alavários, refresco sempre útil para
arrefecer dos jucundos amorosos e a desse jeito bem suportar o abafadiço do
salão.
Mais tarde, no edifício Pinto Basto, viria a ser instalada a Pensão
«Astória», gerida por Ana dos Santos Figueiredo, a que se seguiu a
«Marisqueira», do galego Otero.
fig. 46- Pensão Astória
63
Empurrados e acantonados lá para o sul, por detrás da casa «Pinto Basto»,
por ali se foram concentrando os palheirões de salga e comércio do peixe,
Fig 47-Palheiros no Sul
ladeados por uns tugúrios muito simples, muito toscos, uns desconjuntados
palheiros distribuídos no areal sem obedecer a qualquer tipo de alinhamento,
agregados como se fossem ilhas. Por vezes com uma única porta brochada a óleo
e zarcão, e um postigo espreitando no alçado. A deixar entrar luz para o interior,
onde na mor das vezes, apenas havia uma cozinha (com uma pedra de 1x1metro
para a lareira) e um quarto onde se estirava toda a família. Outras vezes todo o
refúgio se resumia a uma única divisão onde se consumia toda a vida familiar.
Esta simplicidade extrema estava em consonância com a pobreza das
famílias que abrigavam, gentes muito simples e humildes, sem outras aspirações
ou desejos que não os da sobrevivência ao sabor da prodigalidade ou da avareza,
incertas, concedidas pela natureza. Pelo areal que rodeava as toscas habitações,
viam-se, dependuradas a secar, estendais de roupas, suestes e redes, misturadas
com raias e cações a crestar ao sol; na borda, podia-se encontrar escaço
amontoado, à espera de ser misturado com o moliço que ali se vinha descarregar
destinado às glebas do sul, que no início do novo século começaram a receber o
esforço do homem na tentativa de as tornar terras de pão.
64
fig.47- Palheiros a Sul
Por detrás do referido edifício «Pinto Basto», no seu resguardo, ficava o
fundeadouro, o mar da palha dos chinchorros, onde um ou outro moliceiro fazia
a sua mota de descarrego das ervagens.
fig.48 - Zona a sul com os Palheiros da salga. Local de descarga do moliço
Mesmo defronte do referido prédio, do lado nascente, foi construída uma
lingueta, local onde se embarcava o peixe nos «mercantéis», depois de o lavar e
tratar.
65
fig.49- Lingueta a sul (cerca 1920)
10.3 - Primeiro arruamento em direcção ao mar
Já no terceiro decénio (1934) foi, finalmente, aberto um arruamento que
saindo do mercado, subia à Lomba, e daí dava acesso ao «caminho das
Companhas» com os seus barracões à beira-mar. Na mesma altura, fez-se a
ligação do «Bico», ao mar.
fig.50- Os Palheirões das Companhas
66
Em 1907, a Companha da Sr.ª da Encarnação pediria autorização para
construir uma linha férrea que ligasse a Costa-Nova à praia da Barra, com o fim
de melhorar o escoamento de peixe para o mercado de Aveiro. Pedido que dizia,
ter feito ao Governo e que estaria em vias de concessão. Era uma petição que já
vinha de há muito. De facto, já em 1895 teria sido concessionada a Francisco
Castello Branco uma licença para uma linha férrea que ligasse o Farol ao extremo
do Concelho, e que continuasse até Mira, projecto que nunca passou do papel,
pois apenas foi construído o troço para vagonetes, entre a Quinta do Inglês e a
Vagueira. Há referências de que também perto de Mira foram encontradas linhas
férreas.
De notar que até 1915 a barca da passagem foi explorada por conta da
Câmara.45
fig. 51- A primeira mota da barca da passagem
Logo nos primeiros passos do povoamento, aquando da ocupação do areal
deserto daquela nesga de costa, o serviço de carreto de uma margem para a outra,
de pessoas e tralhas, foi feito a expensas das Companhas, em enviadas, tendo
passado a serviço público em meados do Séc.XIX. E assim continuaria até 1915.
A partir daí, e até 1918, aquele serviço seria concessionado a particulares,
passando a ser feito em barcas mercantéis46
. Descortina-se, todavia, que sem
45 A Estrada Ílhavo Costa- Nova (mota), no seu último lanço foi construída pela contracção de um
empréstimo de 1.4000,000 réis, amortizável em sete anos. Para o pagar contava-se com o
rendimento da barca da passagem avaliado em 400,000 réis ou até 500.000. (ACMI)
67
grandes resultados, pois que no referido ano voltaria a ser solicitado que o mesmo
retornasse para encargo camarário.
fig. 52- Pedido para a «barca» passar novamente para a posse da Câmara
(acta 1918)
Foi com a importância recolhida dessa exploração, que atingia um valor de
cerca de 500.000 réis/ano, que a Câmara suportou a despesa da iluminação a
queroseno, de dois candeeiros colocados em 1907 nas imediações da Mota,
reivindicação que vinha de há muito a ser solicitada pela população.
fig 53 - O primeiro candeeiro
E terá sido ainda desta receita, que sairia o capital que permitiu amortizar o
empréstimo feito para terminar a estrada que ligava, Ílhavo à Mota da Gafanha. E
seria tão positiva a sua exploração, que com parte da receita provinda da mesma,
adicionadas às taxas cobradas no mercado, permitiria instalar, em 1904, o
46 Em 1935 havia 8 (oito) barcas «da passage», propriedade de: João Cirino, Manuel Cirino,
António Cirino, Tomaz Figueiredo, Manuel Cova e Joaquim Ameixa. Cada passageiro pagava
2$50; se levasse um acompanhante, este pagaria 1$00.
68
estradão de tabuado que ia da lomba até ao mar, numa extensão de 600 metros,
para uso dos banhistas.
Este estradão, colocado na lomba, ao endireito da mota das barcas, foi alvo
de reclamação por parte dos moradores do norte, que entendiam que ele deveria
situar-se mais para o «centro do povoado».
10.4- A primeira ligação por camioneta a Aveiro
Em 1905 foi inaugurada a primeira carreira de camioneta com acesso à
fig- As primeiras camionetas
Costa-Nova, ligando-a a Aveiro. Naturalmente que esta facilidade melhorou
substancialmente a possibilidade de acesso à praia, o transporte de pessoas e
tralhas, fazendo com que a frequência da mesma sofresse um aumento notório.
69
fig. 54- Camioneta já no início Séc.XX
Entretanto, a «quinta no Farol», de Luís Magalhães, iria ser dividida em
duas, em 1922:
fig. 55- Por detrás da ponte em início, pode observar-se
a Quinta de Luís Magalhães
Uma parte , a do norte, foi vendida a Marques da Costa (170 000$00); a
outra parte foi entregue aos dois foreiros que lá trabalhavam desde a sua fundação.
70
Teria sido este Marques da Costa quem, em nome da Companhia das Lezírias,
solicitou à Câmara de Ílhavo o aforamento de toda a zona compreendida entre a
ria e o mar, desde a Barra até Vagos, à excepção da Costa-Nova. Uma imensidão.
Intenção que não foi por diante.
fig. 56- Pedido de aforamento de Marques da Costa à CMI (19/06/1922)
Em 1914, o empresário António Pericão pede para instalar, a norte da
Costa-Nova, uma fábrica de guano. Felizmente, por razões óbvias, o projecto que
teria efeitos catastróficos sobre a qualidade da praia, foi liminarmente reprovado.
10.5- A barca da passagem foi concedida aos murtoseiros
Em 1926, levantar-se-ia uma intensa polémica derivada do facto da barca
da passagem ter sido concessionada, também, aos murtoseiros, decisão agravada
por o facto de lhes ter, ainda sido concedido o monopólio do transporte do peixe,
entre as duas margens. Tal permissão ter-lhes-ia sido atribuída pelo Capitão do
Porto de Aveiro, Comte. Tavares da Silva47
,oriundo daquelas bandas, lá do norte
da Laguna. Tal facto, considerado gravoso para os naturais, originaria uma
verdadeira revolução, levando a que a Câmara de Ílhavo apresentasse uma petição
a Lisboa no sentido de tais direitos serem entregues à Misericórdia de Ílhavo.
47 Que substituiu o Comte Rocha e Cunha
71
fig. 57- Moliceiros na Costa-Nova
fig. 58- Costa-Nova no início do séc XX (cerca anos 30)
10.6- Criação da Comissão de Turismo
A década de 20-30, do novo século, teria feito sentir a necessidade de se
encontrar um novo rumo para o agregado urbano, até ali a nascer e a desenvolver-
se um pouco sem regras, dum modo anárquico, para desse modo fazer um melhor
aproveitamento das condições naturais, locais, que era praticamente tudo quanto
72
até ali lhe dava carácter e forma; sente-se, pois, necessidade de levar a cabo uma
intervenção profunda, para lhe desenhar um perfil urbano minimamente atractivo:
criar arruamentos transversais facilitando os acessos, proceder a alinhamentos das
construções existentes, procurar resolver a grave questão da iluminação e tornar
mais atractivo o seu centro cívico, dando-lhe um aspecto moderno.
Antevistas as potencialidades da Costa-Nova (e até da Barra), no sector do
lazer, é constituída em 1929 uma Comissão de Turismo com a finalidade de
estabelecer as bases de uma programação que as dinamizasse. São nomeados os
Drs. Emanuel Rebocho e José Rito, para presidente e vice-presidente da referida
Comissão.
Na praia, nas cercanias da mota das barcas, viriam a instalar-se várias
pensões de entre as quais se referem: «Astória»48
, «Zé das Hortas», «Azevedo»,
«Rafeiro», «Quintino», «Flor da Lomba»,« Malaca» e outras.
fig. 59- Grupo na «Astória»
48 No inicio do Séc.XX , os preços praticados na pensão eram: diárias completas 18$00 a 20$00;
jantares 11$00; pequenos almoços 2$50; camas 5$00.(em «O ilhavense de Agosto 1935)
73
fig. 60- Envelope da Pensão Malaca
No local onde mais tarde viria a fixar-se o restaurante «A Marisqueira»,
funcionou o café Central; e claro, o «Coração da Praia» de Amadeu Telles, de
todos o mais famoso e concorrido ponto de reunião dos veraneantes, local para
onde convergia a fina-flor do veraneio. Em 1929 «O Ilhavense» relatava a
abertura da época balnear, informando “que a Dona Maria da Conceição abria as
portas do Hotel Coração da Praia e o Amadeu, abria as portas da Assembleia”.
fig. 61- Costa Nova no início do Séc. XX
10.7- Abertura de alargamento da marginal.
74
Em 1930, sendo presidente Diniz Gomes, delibera-se, finalmente, abrir a
estrada que ia do palheiro de Luís Magalhães, ao edifício de Alberto Pinto Basto,
até ali uma estreita e desalinhada vereda; e logo de seguida é tomada a iniciativa
de construir um arruamento paralelo a esta marginal, na Lomba.
fig. 62- Acta da C.M.I. de 30/08/1930
Tal arruamento tinha sido delineado na Câmara49
do Dr. Cerveira, em
1898, tendo-se reservado uma faixa de 18metros para construção, a poente,
devendo ficar a seu lado um espaço de 8m para uma estrada, a fazer.
fig. 63- Rua da Boa-Vista
Ao novo arruamento deu-se o nome de Boa-Vista (só mais tarde, em
meados do século, esta designação passaria a Avenida da Bela-Vista). De imediato
alguns dos proprietários dos palheiros da beira-ria se propuseram adquirir os
areais das traseiras que confrontavam com o referido arruamento, a nascente; a
poente os terrenos são loteados e postos à venda pela Câmara, verificando-se uma
49 Reunião de 27/06/1898
75
verdadeira corrida aos mesmos. Constata-se um facto: nesta nova zona de
edificação os adquirentes já não são, só e apenas gentes de Ílhavo e suas
redondezas, pois muitos compradores são de fora do Concelho, especialmente de
Aveiro e Águeda.
fig. 64- A Bela-Vista e as suas casas em alvenaria
Este movimento de vendas de terrenos, pela Câmara, estendeu-se aos
terrenos sitos a norte do agregado urbano, na zona do «Bico». Aqui, as concessões
dadas pela Câmara de Aveiro durante a anexação do Concelho, levantariam fortes
problemas com o alinhamento que foi necessário levar a cabo, posteriormente,
para a finalização da estrada marginal50
.
No sul da praia, os areais que iam até à Vagueira, foram-se vendendo ou
aforando, transformados em glebas (com frente de 100 metros e com 200 metros
de fundo), com a ideia de transformar aqueles terrenos arenosos em terras férteis,
como as da
50 Como o refere a acta de 1898 (7/11) -.C.M.I.
76
fig. 65- Alienação de glebas ao sul da Costa-Nova (1913)
Gafanha; são referidos os aforamentos a Alberto P. Basto, Eduardo Leitão, Jacinto
Pata e Dr. Júlio Calixto, entre outros.
Na venda dos terrenos destinados a construção incluíam-se algumas
disposições curiosas. Os terrenos eram vendidos mas os proprietários não os
poderiam, por sua vez, vender a terceiros, sendo obrigados a construir51
. Só
depois, então, poderiam transaccionar a propriedade. Esta alienação intensa de
terrenos (aforamentos, cedências e outras) tornou-se uma fonte de rendimento
para os cofres da Câmara que assim começou a planear uma série de
melhoramentos na praia, canalizando para esta zona concelhia, anualmente, uma
fatia importante do erário camarário, já que a mesma era vital para o
desenvolvimento do Concelho.
fig. 66- Acta de 1898, proibindo alienação de terrenos
A Câmara de Diniz Gomes mete mãos à obra: a marginal é alargada.
51 Expresso na acta de 1898/11/7 da C.M.I
77
Para norte, na zona onde grandes proprietários tinham as suas mansões
(Taveira, Henriqueta Maia e outros) são definidos novos alinhamentos (passando
a ser dados pela Direcção de Estradas) que abriram o caminho para a
modernidade da Costa-Nova. Em 1934 será feita a ligação da Marginal, a norte,
com a Boa-Vista. Seria neste arruamento que em 1930 foi criado o lugar para a
primeira Escola Primária.
10.8- Instalação do Mercado a Sul
O largo da velha praceta, local onde funcionou o primeiro Mercado, ligado
pelas escadinhas à Lomba (1929), é alindado com o busto do heróico Arrais
Ançã,
fig. 68- Praceta Arrais Ançã
já então ícone da praia; com a ocupação do local, irá nascer um novo Mercado,
que se foi situar no terreiro, em frente do prédio «Pinto Basto», limitado a sul,
pela ligação da ma marginal com a Boa-Vista, e que virá a ser inaugurado
em1934.
78
Fig 69- O mercado antigo
10.9 - A Esplanada
A mota da barca da passagem é deslocada do seu primitivo local, para Sul,
postando-se em frente da nova praceta «Arrais Ançã».
Fig A «Mota» nova
Com vantagens evidentes: para lá de aproximar o local do desembarque,
do Mercado, melhorava-se o acesso às Companhas que passava, agora, a ser mais
directo; mas o certo é que a nova posição da atracação das barcas (mota),
79
facilitava aos barqueiros o bordo da Gafanha à Costa-Nova, quase sempre feito
com os ventos predominantes de NW. Mais ainda: - a mudança teria a sua
justificação dado o propósito de construir a Esplanada, pelo que era imperioso
retirar, dali, o local das cargas e descargas.
No local onde estava a primitiva mota, será levado a cabo um arranjo
urbanístico (1932), interessante, criando uma centralidade urbana à Praia, cujo
desenho sem ser inovador era um decalque do existente em outras praias do
litoral, próximas das grandes cidades.
fig. 69- A mota das barcas depois de mudada para sul, em 1932
E será então iniciada a construção de uma bonita e airosa esplanada
sobrelevada em relação ao arruamento, debruçada sobre a ria, e que assim restou
até ao segundo quartel do Séc.XX.
fig. 70- A Esplanada, passeio público, debruçada sobre a ria (1934)
80
fig. 71- A Esplanada vista da Ria.
Ponto de veraneio, passeio público obrigatório, num passa para lá e vem
para cá num chuchurreio de grupos em animado brincalhar,a esplanada, bem
iluminada, era a imagem da Costa-Nova moderna, com pretensões de se inserir no
roteiro dos locais de lazer que se iam afirmando ao longo do litoral português.
10.10- A quinta do «Cravo»
Desde 1933 que Manuel Cravo Júnior, habitual licitante da cobrança de
impostos indirectos no Concelho (só o do vinho lhe rendia 72 200$00, valor
notável) iniciou um processo para que lhe fosse atribuído o aforamento de uma
extensa área, situada a norte do agregado urbano, onde pretenderia implantar
-dizia- uma exploração agrícola. Sem ter sequer iniciado a mesma, pede logo o
acrescento de uma outra faixa de terreno contígua, confrontando com a anterior e
que a norte, confrontava com o arruamento que ia da «casa Taveira» em direcção
ao mar. O aforamento tinha o valor de 50$00 /ano.
10.11- O posto de telégrafo e telefones
81
Era notória e vital a necessidade da existência, na Costa-Nova, de um meio
de comunicação, expedito, com o exterior. Reclamava-se, para tal fim, uma
estação telegráfica e de telefones. Era urgente resolver a questão dos correios, pois
a vinda diária, a Ílhavo, de um carteiro para levantar a correspondência, não
satisfazia; e até o pequeno pormenor da venda de selos se levantou. Considerava-
se ser fundamental para quem vinha de férias, ter possibilidade de contactos,
rápidos e expeditos, com o exterior, facilidade que o progresso das comunicações
começava a estender por todo o País, vindo ao encontro das novas necessidades
do tempo.
Em 1936 a Câmara solicita - e é-lhe concedido - o estabelecimento de um
posto de correio, telefone e telégrafo, na Praia, tendo para o efeito cedido a casa,
para a instalação do mesmo. Plenamente justificada a iniciativa dos serviços
públicos, no encontrar de resposta para um problema insistentemente posto por
habitantes e veraneantes, porquanto no ano anterior, Amadeu Telles que efectuava
esse serviço no seu «Coração da Praia», recusara continuar o mesmo, obrigando
a deslocar a venda de selos para a pensão «Azevedo».
10.12 - Salas de Cinema
Em 1939, a firma Vizinhos & Filhos, inaugurará um salão cinema na Av.
da Bela Vista, a que deu o nome de Cine-Avenida. Já anteriormente, esta firma
tinha feito exibições de «sonoro» no Salão Rafeiro, sito por detrás da pensão com
o mesmo nome.
Seria posteriormente nesse local, que viria a ser construído o Cine Bela
Vista, pelo empresário António Félix (1943).
82
fig. 73- Uma imagem do que foi o Cine Avenida
A Costa-Nova, adquire, pois e definitivamente, até meados da década de
40, a sua estrutura urbana, que se manterá praticamente imutável ao longo dos
anos. Um ou outro arranjo, mas nada que lhe mude, estruturalmente, a forma e o
desenvolvimento, isto apesar de projectos, alguns de evidente delírio, que
felizmente não passaram do papel.
12- RETRATO SOCIAL (1900-1940)
12.1- A primeira geração
A presença, na Costa-Nova, no final do século, de figuras de topo do
panorama social, político e cultural do País, largamente noticiada nos jornais da
época, entre outros Eça de Queiroz, Antero de Quental, António Feijó, Alberto
Oliveira, Arcebispo Bilhano, Calixto Ferraz, Eduardo Mourão, José Maria Ançã,
Samuel Maia, e da escritora D. Antónia do Prado, visitas assíduas do Cons.Luís
Magalhães, despertaria a atenção para o local - que Eça52
dizia ser um dos mais
deliciosos pontos do Globo - conferindo-lhe lugar de relevo de entre os centros de
lazer que então se afirmavam, um pouco por todo o litoral norte. A Costa-Nova
52 Para melhor conhecer a estadia de Eça, na Costa-Nova, ver «Palheiro de José Estêvão» in
www.senosfonseca.com
83
assumir-se-ia como local privilegiado, preferido pelas elites, locais e distritais,
para encontro anual com os espíritos letrados da época, numa espécie de
vernissage cosmopolita. Os abastados proprietários, os comerciantes, os físicos,
os boticários, os políticos locais, os grandes lavradores e os clérigos,
fig. 74- Os abastados proprietários
vinham com as famílias para a praia - ou para lá as enviavam, rendendo-lhes visita
semanal - para gozo dos banhos. Mas não eram apenas as elites concelhias locais;
de fora, das redondezas, especialmente de Aveiro e Águeda, chegavam barcas
carregadas com utensílios, géneros, colchões, vinho, lenha e outros, e nelas
embarcadas vinham as famílias ávidas de tomar, senão os banhos gélidos, pelo
menos usufruir dos banhos de iodo do mar.
84
fig. 75- O Eucalipto53
Localmente uma nova burguesia culta afirmava-se com aspirações já
muito ousadas. Dela faziam parte, entre outros, João Carlos, Teodoro Craveiro,
Viriato Teles, João Quininha, Dinis Gomes, Victor Quaresma, Eduardo Craveiro,
Artur Razoilo, José Guerra, José Paradela, Américo Teles, José Guerra; António
Redondo, Evangelista Ramalheira, Guilhermino Ramalheira, Artur Sacramento,
Manuel Ramalheira, José Craveiro, David Rocha, João Telles (Saguncho),
Manuel Guerra, Manuel Mano, Manuel Marta..
fig. 76- Grupo do final Séc. XIX
53 Este eucalipto serve como grande referência à datação das fotografias. (antes e depois de 1920)
85
Do lado feminino despontavam muitas flores que cirandavam em volta
fig 77- Grupo na beira-mar
desta elite, oferecendo a beleza estonteante e provocante às chispas abrasadoras
provindas de olhares, que muito embora conspícuos, eram desafiadores. Eram
muitas as mais mimosas, as mais belas e mais sedutoras, de onde ressaíam:
Rosinha Vieira, Lourdes Chuva, Dadinha Lé, Benilde Lau, Felicidade Mano,
Ermenegilda Picado, Rosa Chuvas, Berta Ramalheira, Soledade Violante, Maria
Adelaide, Beatriz dos Santos e muitas, muitas (!) outras, pois se houve matéria em
que Ílhavo foi pródigo, terá sido no ramalhete farto de beldades femininas que
aqui foi gerado.
86
fig. 77- Imagens da Costa-Nova (1926)
11.2- Geração de vinte
Logo se seguiu a geração de vinte, importante grupo que fez a ponte com a
geração anterior, e que desta recolheu o bulício, mas que alargou o leque de
relacionamento, já que muitos que a ela pertenciam ou que a ela se juntavam,
frequentavam, ou tinham terminado os estudos universitários nas grandes cidades.
Com eles traziam colegas ou simplesmente amigos, o que dava nova vida ao
aglomerado urbano, gerando novas amizades, fortalecendo laços que perdurariam
vida fora, pois que construídos num ambiente de grande descontracção e de
grande intensidade emocional, tornavam-se fortes e duradouros. A estes grupos de
folgança estudantil, vinham-se juntar os funcionários públicos (autarquia,
tribunais, notariado etc), recriando um círculo de vivência muito amplo que
conferia inusitada animação ao local, e conduzia a novas pretensões de exigência
de um novo e mais adequado perfil urbano para a Costa-Nova. Nessa altura
estava a praia já definitivamente incluída na rota sazonal da ocupação dos tempos
de lazer, o que era importante, à medida que, definitiva e inexoravelmente, a
actividade piscatória, na borda, diminuía de importância e dimensão54
.
54 A partir de 1912 com o aparecimento dos «cercos americanos», a Xávega começou a
desaparecer do litoral português.
87
Fig 72 Passeio de Barca
Salientavam-se neste grupo: o Manel Grilo, o António Salgueiro, o
Eduardo Craveiro, o Manuel Balseiro, o Frederico de Moura, o Amadeu Cachim,
o Manuel Fonseca, os Ramalheiras, o Ângelo e o Paulo, o João Senos, os Ventura,
João e Manuel Ventura, os «Piorros», o Mário Graça, o Victor Regala, e muitos,
muitos!, outros.
fig. 78- Geração de 30
Tinham estes rapazes, para lá do veraneio errante, o desboiçar encontro
com alma gémea, na missão árdua, e não menos ardilosa, de barganhar, no bom
sentido, um bom partido. Não só porque a presença das meninas de boas famílias
não podia deixar de ser atracção natural, lógica, e presumível, mas porque para lá
88
disso, era interessante, pois que as ninfas, formosas umas, outras não tanto, eram
contudo, de um modo geral, herdeiras das novas e já sólidas fortunas dos seus
progenitores, condição que, se os olhos não viam, as bocas apregoavam. Elas
procuravam um letrado; eles um bom amparo para começo de vida.
11.3- O Banho
Nos primeiros decénios de vinte, o banho do mar para os mais novos tinha
chamada madrugadora; por volta das seis da manhã, ou até antes, se a maré
madrugava. Findo o banho era encargo do banheiro (ti Ricoca, Galante, Pardal e
João Grande)55
dar uma cheirinho de bagaço (às vezes uma zurrapa), aos
banhistas, para que estes aquecessem. Às nove horas começava o banho dos
maiores, dos peraltas; a rapaziada, ainda ao tempo enfarpelados, casacos brancos
cingidos e sapatos a condizer, lá ia em bandos, pela estradinha de tabuado que
galgava os cerca de 600m que separavam a lomba, do mar. Estradão que tinha
sido colocado em 1904, na duna, ao endireito da mota. Calcorreando-a ia-se à
borda do mar, onde despegadas das famílias mas sempre sob olhar vigilante das
progenitoras, lá se encontravam em galreio alegre, as moças, com a fralda
revelada, sorrindo e gritos dando, predispostas a recolher as setas do Cupido, que
não matavam mas alvoroçavam, agitavam, e até amaleitavam. Que importa?! Se
até o coração em momentos desses, botoca, parecendo soltar-se do peito ferido.E
os olhos parecem querer oferecer o que o recato nega.
Curtido o olhar era tempo de mudar a farpela por um fato de banho largueirão,
com perna razando o joelho, e alçado bem até cima, e assim equipado se achegar
para perto do bando irrequieto e guloso, de avezitas ansiosas de depenicar com os
olhos o que ao corpo negavam. Corpos a chapinhar no espreguiçar da onda
estendendo os braços em procura de outros que os enleiem, grupo feminino da Ala
55 Em 1935 havia cinco banheiros na Costa-Nova: Domingos Agostinho, António Agostinho
Portugal, Luís Ferreira, Manuel Pardal e José Portugal. Cada banho com fornecimento de
barraca, custava $25. O banheiro podia encarregar-se de outros serviços como o de lavar roupa,
e eram eles que tratavam do arrendamento das casas e recoletas -.in «O Ilhavense» de 04/08/1935
89
dos Novos onde havia vestidos claros, «caules» simples - donde desabrocham
botões de flores de casto perfume. Há corpos virgens - açucenas a entreabrir,
para receberem o beijo cálido do sol. Rendas, gazes, sedas…caminham para o
mar nesta hora magnífica, hora de ambrósia (…) para que aquela carne rósea
seja beijada em rodilhões de espuma, assim o expressava um postal de 1925, em
«O Ilhavense».
A praia virava jardim, transformada num açafate contendo açucenas a
abrir para receber o beijo cálido do sol. Colos de carnes palpitantes que se
erguem como lírios brancos. E ombros tão braços e olorosos que lembravam as
alvas e embriagantes magnólias
Flores de terra dentro a mergulhar, envolvidas por rodilhões de espuma,
davam entrada no mar, aos pulinhos e às risadas, enquanto os olhos gulosos da
rapaziada mergulhavam no canistrel transbordante.
fig. 79- Banhistas
Terminado o banho, regressados à urbe, era hora da caldeirada. Ninguém
melhor para tal ajustamento de contas com o tempo, do que a «ti Tibajouja»,
mulher sempre na dilairada em volta da trempe, a dar forma, cor e tempero a uns
peixes a nadar num caldo de unto açafrado. Ou atracação à raia de pitáu da
90
Epifânea, onde a molhanca, uma papa apimentada de azeite avinagrado em que
ferviam os fígados do peixe, a que o alho emprestava um odor penetrante, era
vitualha capaz de dar quebranto à larica. A exigir sesta retemperadora em
cadeirão de verga, a olhar os longes do Caramulo, antes de um passar pelas
brasas, exercício útil para aqueles pagodeiros a quem sobrava dia e faltava noite.
11.4- Jornais Manuscritos
Mas se o estado do mar era ruim d’encantaria e não dava para ir ver sair a
rede, o veraneante ainda podia ir até à «coroa», a ver se apanhava um borrelho,
antes de se vir refastelar no palhinhas, para se entreter, como era moda, na feitura
Fig - nº1 do «Buzio»
de jornais manuscritos( «O Búzio», «O Berbigão» e outros).
Folhas manuscritas de chuchadeira, lacónicas, chistosas, de período curto,
cheias de chalaça e arrelia, ou de novidades actualizadas com as últimas do dia
(ou da noite anterior), e que passando de mão em mão iam servindo de motivo de
conversa aos magotes de circunstantes achegados, alertados pelos risos ou
comentários badalados à boa maneira local: em desusada festa, em alegre e
espalhafatosa galhofa, numa alarve e tonitruante vozearia.
91
fig. 80- A Marginal Frente Salão Arrais Ançã56
11.5- O Bico e a Biarritz
De qualquer modo lá pelas quatro horas era tempo de ir ao Bico, - essa
clara banheira de água salgada57
- por onde na altura se alinhavam já umas
fig. 81- O «Bico» e as primeiras canoas à vela
56 Impressionante o número de Moliceiros entrevistos nesta imagem. Chegavam a ser duas a três
centenas a fainar. 57 Saguncho & Tainha
92
barraquitas para resguardo do vento ou da canícula. As belezas, ali mais afoitas,
chapinhavam alegremente em grupo, parecendo pedir aconchego de braços
poderosos, para lhes transmitir segurança no atrevimento de ir fora de pé.
fig 82 –O Bico
No início dos anos trinta o Bico, um espraiado de areia até ali praia
Fig 83-O Bico
estuante de gozo, enamorada do sol, apaixonada da água e luz…ficou atolada no
lodaçal; foi hora de ir mais longe procurar praia, a que se deu o nome pomposo de
Biarritz. E logo os veraneantes da Barra, de tiques mais citadinos, agrupados em
93
torno da sua Assembleia, centro de toda a animação local, mais pretensiosa e
burguesa, com pretensões a ombrear com a singularidade da Costa-Nova, deram o
nome de S.Sebastian a uma praia arenosa, sita como a anterior à beira da ria,
junto ao canal do Desertas, e que lhes ficava mais à mão.
.
fig.83- O «Bico»
11.6- Passeio à «Bruxa»
Ia-se ao banho da ria. Enquanto alguns veraneantes de chapéu e guarda sol
aberto se passeavam pela borda de água, de polainas e paletó envergados, a malta
nova, mais atrevida, procurava com afã embarcar nos dinghies as beldades para
uma ida à bruxa, à vela ou a remos.
94
fig. 84- Passeio à «Bruxa»
E se não se procurava a «ti Norta» para a cura de qualquer malezinho,
procurava-se o jorpigão servido no altar da sua tasca, o qual tinha um efeito
demolidor sobre os corações das moçoilas, tornando-as mais doces e mais
participativas aos jogos amorosos, mais abertas ao enlevo, menos ariscas, mais
industriosas que ligeiras, mais macias que indinadas, fazendo-as por artes da
beberagem mais fermosas.
fig. 85- O passeio no «Laide»
95
Pela tarde era o regresso ainda a tempo de dar um salto à beira-mar para
assistir à saída do último arrasto.
Aí a azáfama era grande; no terceiro lanço o saco negro parecia uma baleia
encalhada de onde brotavam miríades de reflexos do carapau estreluzindo no
convulso estertor, ao sentir-se preso no seu interior. Junto aos barracões separava-
se o peixe para ser despachado. Os almocreves aguardavam nervosos, ansiosos
por apanhar a barca do «ti Ameixa» para, do lado de lá, carregarem os seus
burricos com os gigos de peixe, prenhes e, toque toque, a tropear velozes,
rumavam apressados a «caminhos de Cristo», trepando a esses montes lá bem
para cima, arrebentadinhos em perseguição da alva, levando a sardinha taluda
ainda vivinha para o interior das beiras, aonde chegará na manhã seguinte ainda
de olho transparente.
11.7- Os bailes da Assembleia
Chegado o fim de tarde, cansados do dia de tanto bulício, recolhiam-se os
veraneantes ao refastelo da ceia. Antes do repasto fumegante se alcandorar às
mesas dos comensais, era ainda momento para, às portas dos palheiros, se
entreterem com uma última bisca lambida.
Findo o refastelo, aperaltados, de camisa atada com gravata de seda sob
casaquinho cingido a acentuar a ombreadura de atletas, sapatinho caiado
amparando a calça janota afunilada, o palhinas pousado no cimo da cabeça
cobrindo um cabelo bem untado, era já tempo de acorrer à Assembleia. A um
canto o piano aguardava, parecendo ansioso da chegada da jazz-band do João
Pretinho para lhe acompanhar a voz roufenha vinda de uma garganta arranhada,
terminada por uma dentuça alva a parecer querer dar o fora quando o João saltava,
frenético e funambulesco ao ritmo convulsivo dos sons rechinantes provindos do
instrumental. Toda aquela juventude entrava a rodopiar de um modo agitado e
gralheiro, saracoteante ao ritmo da tungada que fixava o compasso dos acordes
96
que cruzavam o ar do salão. Muitos outros grupos de baile animavam os
bailaricos; o «Cartola», o «Ilhavense Jazz-Band», o «Rádio Jazz», todos eles eram
Fig 82 –Grupo Rádio Jazz
os assíduos animadores das noitadas trepidantes, vertendo enxurradas sonoras
provindas dos estridulantes metais, sobre os frenéticos bailões.
Uma ou outra vez, em noites mais calmosas, o trinado dolente do fado substituía o
frenesim musical da dança, e até, em uma ou outra noite, elegia-se a poesia
romântica da época, declamando-a com ardor, ênfase, olhares e gestos adequados
à pretensão de despertar os mais comovidos e ardentes enlevos, no intuito de
facilitar a circulação dos fluidos amorosos.
As raparigas tinham já atirado às malvas os trajos de tricana; agora, o
fatinho caído, cingido, desenhava-lhes já as formas; a perna esbelta, gentil, e bem
torneadinha, aparecia ao léu, antes do pézinho delicado calçar os sapatinhos de
meio salto, abotoados no artelho, indispensáveis para melhor escorregarem,
levezinhas, nos doces e lascivos shmmy’s ou nos ardentes one-steps. Ou para o
97
salteio nos mexidos charleston’s. Ferramenta indispensável, fosse para
cirandarem ao som dos cálidos e palpitantes maxixes, fosse para se entregarem aos
compassos boémios dos foxtrots. Bailações que integravam o cardápio das danças
em moda, em namoros a que só por irrisão se poderia chamar flirt, se ignorado o
que há de espiritual e gracioso no jogo de amor platónico59
.
Entre danças, conversas, namoricos, olhares dirigidos, fugidios ou
penetrantes, entrecortados por suspiros murmurados em sussurro proveniente de
almas apaixonadas, alinhavam-se concursos poéticos e de traje, récitas, fados,
jogos das prendas e das navalhinhas, tudo servindo de entretém a uma juventude
a despertar, maravilhada, para a vida.
11.8- Pic-nic’s
Era vulgar organizarem-se pic-nic’s, um dos mais habituais e mais
desejados acontecimentos da época estival, sempre esperados com grande
ansiedade e alvoroço, pelos grupos em veraneio. Em data aprazada, fretado um
mercantel, lá embarcava o grupo do folguedo, saindo logo de manhã,
acompanhado por uma qualquer jazz-band, desde que estridente, ressoante e
zunidora. Iam piqueniqueiros carregados com «as cestadas» que o esmero das
meninas tinha preparado, em grande (mas secreto) alvoroço. Qual delas melhor se
aprimorando para, no momento certo do repasto em grupo, desensacar as
melhores vitualhas, apresentando aos olhos cobiçosos de uns, e despeitados de
outras, os melhores e mais apetitosos petiscos, em cuja feitura, as mães tinham,
afadigadamente e cheias de brio, colaborado, dando-lhes o toque acurado da
experiência. Uma boa cestada era meio caminho andado para insinuar os dotes de
boa dona de casa junto dos putativos candidatos. Factor que muito podia
influenciar o potencial interessado, levando-o a declarar-se, sem mais espera.
O passeio era(normalmente) feito para a outra banda, para um terrado
situado junto da igreja Matriz da Maluca, um bom local para o aprazado bailarico,
59 «Saguncho» in «O Ilhavense» de 08/09/1929
98
ponto alto do programa; ou então para mais longe, ali à Senhora das Areias. Ao
fim do dia, os jucundos grupos eram esperados pelos familiares; e todos, em
verdadeiro farrancho, percorriam a praia acompanhados pela charamela
estridorosa, recebidos com esfusiante alegria ao longo da marginal com as
varandas dos palheiros engalanadas, criando uma onda festiva que animava e
envolvia toda aquela gente, em procissão galhofeira. Á noite, na Assembleia, não
faltava o bailarico para encerramento do dia, terminando só madrugada alta a
farrambamba.
11.9- Chinchada
Outro dia assinalado na época balneária, era o da chinchada. Promoviam-
se chinchadas com frequência. Mas uma vez por ano realizava-se a chinchada
monumental, quase sempre em meados de Agosto.
fig. 87- Chinchada Monumental
Constituído o grupo que vestia por um dia a pele duma companha da
borda, assumia-se a preceito o papel no fazer de conta de chincheiros a varrer a
beirada da ria à procura de caldeirada para a ceia. Contratava-se um arrais da arte
e lá iam todos embarcados nos chinchorros. Dado o lanço a tripulação varava a
99
bateira, e saltando em terra, entregava-se ao alar das redes, deixando descair a
manga a montante sobre a outra, até ao levantar do saco com o peixe capturado.
Em embarcações acompanhantes seguiam as chincheiras femininas , que lestas se
mostravam prontas para dar uma ajuda ao erguer as mangas para impedir o peixe
de fugir; ou ainda, atentas ao servir os esforçados pescadores de um gole de
bebida adequada para atenuar o esforço excepcional do dia, acompanhado de algo
sólido para aconchegar os estômagos mais engelhados.
fig.88- Chincha e Moliceiros
Finda a maré, enodoados do vinho, empanturrados com as talhadas de
melancia, pintalgados de areia lodosa, percorria-se a praia mergulhando-a numa
alegria esfusiante, quase se atingindo uma orgia colectiva, com os sons
provenientes da banda contratada para o efeito, a obrigarem os corpos à dança, a
chocarem-se na boémia.
Encarnadas, rubras e escaldantes, eram as horas em que os corações dos
dois sexos se fundem no rubro cadinho do delírio, a embriagarem-se mutuamente
no absinto da dança, no ópio dos olhares, na electricidade dos corpos, assim
descrevia Saguncho em «O Ilhavense» de 16/08/1925, o fim de uma dessas
chinchadas.
11.10- As touradas e as garraiadas
100
Desde 1904 que se vinham organizando garraiadas e até touradas, na
Costa-Nova e na praia do Pharol. Em 8 de Novembro de 1904, um grandioso
cartaz dava conta da realização na «Plaza di U Pharol» de uma tourada onde 7
cornúpetos seriam lidados. Estas organizações estavam cometidas ao Clube dos
Galitos ou ao Recreio Artístico,
fig. 89- Garraiada na Barra
e eram seus habituais organizadores, Lino Marques, Francisco Freire e Francisco
Encarnação.
O primeiro anteplano urbanístico da Costa-Nova, previa mesmo, a
construção de uma praça de touros, sendo certo que o referido plano, por
estranho que pareça, não contemplava qualquer local para a prática de desportos
náuticos:
(VER PLANO)
fig. 90-
101
11.11 - Regatas
Também datam desta altura (1904) as primeiras regatas, sendo a
organização destas cometida aos banheiros. Eram regatas em esquifes, ou outros
tipos de embarcações a remo, e moliceiros à vara. Em noticia da época (18
Setembro daquele ano), registam-se os nomes de figuras simbólicas da nova
sociedade pequeno burguesa que despontava em Ílhavo e em Aveiro, no
Fig -Regata de 18 Set 1904
início do novo século.
Em 1935 noticiava-se a realização de grandiosas regatas na Costa-Nova,
organizadas pelo Sport Club do Porto, onde para lá de 14 dinghies, competiram
bateiras, dóris, caçadeiras, moliceiros e mercantéis (à vara).
Registamos que :
102
-na caçadeira «Néné», Mário Graça ao remo e Soledade Mano ao leme,
competiram com a «MiMi», em que Victor Gomes dava mão ao remo, e Maria
Conceição Pinto lemava.
-na bateira «MariaTeresa» remava Ondina Mano e timonava Aníbal
Ventura, competindo com a «Ondina» de Ermelinda Picado e Victor Regala.
Já nos dóris, no «Catrineta», embarcaram João Ventura, João Piorro e João
Adriano, competindo com o «Maria da Glória», tripulado por José Calixto, Mário
Graça e Manuel Ventura. No «Freda» remavam Amadeu Cachim, Aquiles Bilelo
e Euclides Vaz, batendo-se com o «Marazul» de José Piorro, Victor Gomes e
Mário Júlio Freitas.
Nas regatas à vara, salientaram-se os moliceiros, «Arreda que tispeto», o
«Bamos lá cum Deus» e o «Talbês tiscreba».
À noite houve festa de arromba na distribuição dos prémios.
Madrugada, quem ia para os banhos, ouvia o ressonar nos beliches das
recoletas. A malta imigrante também ressonava alto na «terceira» dos palheiros
lá do sul. 60
fig. 91- Regata a Remo na Costa-Nova (1935)
60 «Saguncho» in «O Ilhavense»
103
Só a partir do primeiro quartel do século se realizaram as primeiras regatas
à vela, navegando-se em embarcações do tipo canoas com velas latinas
triangulares, as embarcações que antecederam o aparecimento dos Vougas.
O «Vouga» foi uma curiosa embarcação de recreio que apareceu na Costa-
Nova, com um desenho e características muito bem adaptadas para o passeio de
grupos, na Ria. Calando muito pouca água, ajustando o calado móvel à
profundidade encontrada, é capaz de transportar até 6/8 tripulantes. Sendo um
barco muito rápido, está muito bem adaptado aos ventos locais e à navegação
interior em águas por vezes agitadas por ventos fortes, habituais, do quadrante
norte.
Foi António Gordinho (engenhoso carpinteiro naval, autodidacta) quem
respondeu com mestria ao caderno de encargos, e às exigências postas, adaptando
às condições locais uma embarcação semelhante a «uma» que teria visto, ou que
lhe teria sido sugerida (segredo ainda hoje não esclarecido).
fig. 92- O «Vouga» Laide
Em 1925/26 António Gordinho começa na sua oficina a construir este tipo
de embarcação; trabalho complexo o arquear das cavernas inteiriças, para o efeito
104
mergulhando as peças em água quente, e depois, firmando-as por extensores de
rodilha, inserindo-as na quilha longa, até lhes sobrepor o costado feito de tabuado
encostado ,vedado por calafeto, mas e principalmente por inchamento das mesmas
depois de mergulhadas na água.
fig. 93- O «Vouga» Laurita
O «Vouga» foi o tipo de embarcação que fixou gerações e gerações de
jovens, à ria, e lhes permitiu visitar as cales mais recônditas, os veiros mais
esconsos, percorrendo nele toda a Laguna, do Carregado à Vagueira, de uma
ponta a outra. Das mãos daquele habilidoso carpinteiro-naval das horas vagas, que
no Inverno se dedicava á manutenção dos palheiros de madeira na praia, terão
saído cerca de quatro dezenas de Vougas.
105
fig. 94- O «Vouga» - vagabundo da Ria
Ponto alto da época estival, era a Regata da Srª da Saúde, onde os mais
hábeis e os mais afoitos competiam com os que tinham melhores barcos, tentando
suprir o handicape. Nas vésperas era hora de carenar as embarcações, no Bico,
ensebando o seu casco, reforçando os brandais, afagando o patilhão, cintrando o
mastro,ou ensaiando o velame. Procedendo às últimas afinações, na esperança de
ganhar uma competição que elegia o melhor cana até ao ano seguinte, facto que
os jornais locais destacavam com a devida amplitude, presenciado por assinalável
número de curiosos que da margem assistiam às manobras dos elegantes veleiros.
fig. 95- Regata de «Vougas»
106
fig. 96- Dois «Vougas» a rondarem a bóia
fig. 97- Lancha61
.
12- EVOLUÇÃO URBANA
1940-1970
61 Este tipo de lanchas de fragata foram as primeiras embarcações usadas na Costa-Nova para
lazer (Séc.XIX)
107
12.1- Hotel e Casino, «Beira-Ria»
Em Julho de 1947 será inaugurado um excelente Hotel, instalado em novo
edifício que veio substituir o antigo Salão Rafeiro62
.A seu lado viria instalar-se
um Café-Casino; ambos, fruto do espírito empreendedor de António Félix.
Tratou-se de uma unidade hoteleira que ombreava com o que de melhor existia na
região, soberanamente localizada, gozando de uma excelente vista, profunda,
larga e abrangente, sobre a ria, dotada de um serviço de que se disse, na altura, ser
verdadeiramente exemplar, para a época. Dava acesso ao hotel um espaçoso hall
que funcionava como sala de estar e convívio, ligado a uma sóbria, mas elegante e
ampla sala de refeições. Do hall saía uma larga escadaria muito bem lançada, em
com um corrimão de granito, dando acesso aos 30 quartos, de que retenho uma
vaga ideia de serem muito bem decorados. Ao lado do Hotel, e propriedade do
mesmo António Félix (que abriria também na Barra o belo e esplendorosamente
decorado, Café Farol), instalou-se, como referimos, o Café-Casino Beira Ria, um
bonito, amplo, airoso e muito confortável «café concerto» dos anos 50.
No seu interior, sobre a zona de serviço de balcão desenvolvia-se um piso
intermédio sobre-elevado. Local de acolhimento das várias orquestras da época,
com os seus elementos trajados a rigor, metidos em garridas, rebarbativas, e
exóticas vestimentas de lantejoulas, soprando em brilhante, polido e estrondoso
instrumental.
O referido café virou ponto de encontro das novas elites; o movimento era
intenso e o local viria a tornar-se o centro de diversão por excelência da praia
nocturna, rafinè, dos fins dos anos 50.
Havia no ambiente um certo charme de gente fina, de luva branca: uma
nova burguesia que se pretendia afirmar distinta, adoptando os estereótipos em
voga para assim se identificar. Nas mesas o vocabulário era cuidadoso, mas de
circunstância. Os clientes bem aperaltados, embora já um pouco leves no trajar à
inglesa, subiam ao primeiro andar para uma batidela de cartas. Enquanto isso, as
62 Neste Salão, a firma Vizinhos Irmãos e filhos, deu, em 39, as primeiras sessões de sonoro
108
matriarcas com os penteados de rodilhas, metidas em vestidos já graciosamente
decotados, abanavam os leques para fazer frente aos caloraços, matando o tempo
bebericando um chá, à espera do consorte.
A juventude feminina exibia os seus vestidos camiseiros de godé, nylons
ululantes, meia de seda realçando a curvatura da perna que se vinha calçar no
sapatinho preto, raso; cintura bem marcada( apertada e bem cilhada) de onde
saiam curvilíneas e pronunciadas ancas. Grande parte do rapazio trajava de
branco: calça, camisa e sapato.
No primeiro piso do Casino, pretendeu-se, aí, instalar um Casino de jogo.
Foram feitas diversas démarches para obter uma licença, tendo em vista criar uma
zona de jogo, alternativa às de Espinho e ou Figueira da Foz. Não foi, contudo,
obtida a necessária autorização, e rapidamente o local foi usado para levar a cabo
bailes de estação, com o que se pretendeu recuperar a belle époque dos anos
vinte, organizando-se para o efeito - com finalidade de recolha de dádivas para a
festa religiosa - vários concursos: da mais bela da praia, do vestido de chita, da
estação das vindimas etc. etc.
12.2- A presença dos Matolas
Ao esplendor desta sala, sucedeu a decadência da Assembleia Arrais Ançã,
que passou a ser pousio dos veraneantes bairradinos - os matolas - que vinham a
banhos em Outubro, depois de terminadas as vindimas, deixada a adega bem
arrumada, cestos lavados empilhados, pipas encanteiradas, aonde fervia o mosto à
espera de cura, as alfaias postas em descanso no esconso da eira . A Costa-Nova
perdia espavento burguês, ganhando, contudo, encanto rural, hábitos e tiques da
gente do interior, com uma vida mais calma, menos esfusiante, menos turbulenta
mais virada para o repouso à beira-mar. Estas gentes que vinham para a praia
tomar banho, de sol e de mar - e que continuavam a fazê-lo, ainda, completamente
vestidas dos pés à cabeça – chegavam para descansar depois de período
extenuante. Mantinham , contudo, os hábitos e costumes que lhes eram peculiares:
109
fazendo vida em grupo, à volta da mesa, refastelando-se com as boas vitualhas
que cada um primava trazer das suas abastadas casas de lavoura, da melhor cepa e
da melhor ceva, fazendo gala na chança com que as apresentar à mesa dos amigos
ou de simples conhecidos do momento.
A festa, essa, era feita pela rapaziada mais nova que acorria aos bailaricos
dos fins de semana, outonais, com a subida esperança de entabular faladura com
moçoila de carnes rijas e fartas, arejada e viçosa, tentando avaliar a dimensão do
dote da catrapiscada, muito especialmente quando chegada a hora de contabilizar
os pés de cepas, ou mais prosaica e directamente o numerário de cântaros do
Bairrada armazenado, de que elas com matreirice sugeriam ser herdeiras. A
bailação era de pega, corre e leva, sem a modernidade burguesa, mais cantiga de
roda, menos sensual, embora exigindo muito mais fôlego e muito mais arcaboiço
para conduzir nos braços verdadeiros bulldozers, que embalados, difícil era parar,
ainda que muito afinados fossem os travões.
12.3- O primeiro «biquini» na Costa-Nova
Zelava nos anos cinquenta pelos bons costumes na praia, o cabo do mar
Luís.
fig. 98- Cabo Luís
Era vê-lo pelas onze horas a chegar à Biarritz, montado na bicicleta,
pachorrento e gorducho, quase roliço, fardado a rigor, a suar as estopinhas.
110
Amoirada a bicicleta, ia o cabo colocar-se no alto da duna a observar a
juventude no banho da manhã (o da tarde era às cinco, no mar), à procura de
algum(a) que mais atrevido ousasse furar os regulamentos da moral e bons
costumes que o regime fazia questão de ver, bem respeitados e bem praticados,
em público. Que exigiam, em nome da dita defesa, que as raparigas fossem
obrigadas ao uso de fato de banho de uma só peça, escondendo dos olhos o que a
natureza tão pródiga concedera; enquanto uma saiinha defendia dos olhares
gulosos as partes íntimas entre coxas, em cima, um decote justo sustido pelos
ombros, tornava pouco permissível a olhares conspícuos os alvos peitos que
desabrochavam. Naquele tempo ainda não era chegada a hora das fausse-maigres,
e as mulheres «queriam-se» como a sardinha: pequeninas, cheiinhas e
redondinhas. A rapaziada era obrigada a usar calção largueirão, com perna de três
dedos a descer pela coxa, e camisola interior que lhes tapava o peito e ombros,
assim inibindo a prosápia de mostrar a sua parecença com um qualquer lutador
greco- romano.
fig. 99- O «chupa-chupa» e a bolacha americana
E quando um - ou uma - mais atrevido(a) ousava desafiar o regulamento, o
que era vulgar naqueles que de barco desembarcavam na praia e assim se faziam
desentendidos, lá vinha o cabo, de botifarras, a correr ofegante, aos baldões pela
111
areia, chanfalho a zangalhar na cinta, apito na boca fazendo um escarcéu, disposto
a cortar, célere, o abuso do impúdico(a) e desaforado(a) banhista. Atrás dele, no
intuito de amenizar os humores do cabo, lá ia a Zozó, moçoila muito bem
composta, filha do banheiro Abreu, que com o Portugal e o Maaia, eram os
banheiros de então.
fig. 100- O banheiro Maaia
fig. 101- O banheiro Abreu
Com uma ou outra brejeirice a Zozo lá acalmava o representante da
autoridade, que acabava perdoando ao atrevido desrespeitador das boas regras e
112
maneiras. Que o regime exigia para, dizia, manter a moral e os bons costumes,
refreando a licenciosidade e assim zelar pela imprudência humana que o desejo
sempre enleva, nas alvas carnes assim mostradas.
Em 1956, a rapaziada da Costa-Nova foi alvoroçada por uma notícia que
se propagou como o vento: umas franciùs estavam no mar a tomar banho, com
um simples e reduzido biquini, a tapar as suas vergonhas (?!). Houve uns que
pensaram que aquilo era uma patranha, tipo da baleia apregoada aos matolas pela
imparável dupla do Benjamim & Pitato, e deixaram-se ficar. Outros, crédulos, não
esperaram mais, e a corta mato pela duna, peregrinaram para a borda para assistir
a tal espectáculo. Sentados na areia, pareciam cães açulados à porta dum talho:
língua de fora numa cara alorpada, olhos afusilados que pareciam querer saltar das
órbitas para irem aterrar nos corpos abrasados das turistas. O espectáculo do
deslumbramento patético, de uma papalvice alarve não poderia ser maior, nem
mais descarado. Na lomba que dava acesso à borda, alguns mais atrevidotes logo
desombraram as inestéticas e redutoras camisolas interiores, parolas, ao tempo
que comentavam em galhofice imprópria para indígena, mas inofensiva para as
«françiùs», o que lhes era permitido ver. As francesas - essas! - sem se
importarem, ou talvez até apreciando o impacto que os seus belos corpos
produziam em tão especada assistência, lá continuaram com a banhoca .Que iria
acabar, breve.
Pois que o pior estava para acontecer. Não se sabe porque carga d’água,
uma delatora - quem sabe se por inveja ou por acinte zanaga - depois de
certamente se benzer três vezes, e exclamar que o mundo estava perdido, achou
ser sua missão cristã defender a rapaziada da perdição daquelas humanas rosas
que despindo-se, se faziam ,ainda por artes ,mais formosas. E dá de mandar aviso
ao cabo Luís, que acorreu afogueado ao chamamento, deixando a «mula», a
bicicleta, esparrinhada na areia. Solícito zelador da ordem e da moral da beira-
mar, veio lépido interromper o banho das divas, por entre gritos, assobiadelas,
uàhs ! e outros impropérios, avançados pela rapaziada. Que em farto alarido,
mostravam o seu desgosto pela interrupção da visão onírica das «virgens» no
banho, quem sabe a matar na água o fogo que as consome.
113
O insólito da cena sobreveio quando o cabo Luís quis falar, e pedir às
demoiselles para taparem as mamocas e os cùses, e elas espantadas a inquirir:-
Quoi? Quoi?
O pobre «cabo de ordens» bem se esforçava: - nem quá nem meio quá. A
pataria está lá no Sul, no Ferreira da Costa. Vá tapem-se… senão…e dá de fazer
com os dedos cruzados o sinal universal do a ver o sol aos quadradinhos.
Para o rapazio tinha chegado o momento da vingança. Aquilo não se
perdoava, mesmo que a «autoridade» fosse o bom cabo Luís. Que por cause veio,
nesse dia com a mula aos ombros, pois que os pneus da dita apareceram mais
vazios que a ria no baixa-mar em dia de maré viva.
12.4- Urbano, Gentes e Natureza
Em meados do século passado, a Costa-Nova, debruçava-se ainda então
sobre a ria, permitindo ao passante, gozar o espectáculo dos moliceiros que,
ronceiros, penteavam a Ria na recolha do moliço em deambulação contínua, ali à
vista de um olhar.
Certo é, porém, que a praia tinha já forma urbana esboçada, distribuída por
espaços já completamente definidos em meados do novo século, com identidade e
fins bem identificados.
fig. 102- Fig Costa-Nova anos 30
114
A norte instalavam-se as vendas (cafés, tascos, mercearias e de outras
tralhas) e os palheiros, aqui e ali já transformados em casarões que a modernidade
tinha consentido, embora que ainda nem sempre esteticamente valorativos da
paisagem urbana.
A sul, a classe piscatória imune a influências exteriores continuava
fechada em si mesma, como que enclausurada voluntariamente em gueto, vivendo
numa rusticidade assumida. Que mais parecia esconjuro de desígnio superior,
tanto era o seu suado, esfandegado e estrafegado labor para sobreviver. Vivia
praticamente alheada daquelas gentes da alta, amigas de luxar e pandegar, que
doidejavam lá para as bandas do norte, e que apenas de quando em vez apareciam
pela borda, a olhar, olhos espantados, o mourejo esgalmido que fazia escorrer o
suor em borbotões pelas levadas esculpidas nos rostos mortificados dos
pescadores, engolfados no ganho de uma parca, somítica e sofrida, sobrevivência.
Mas era certo: para os comensais do sensório, o bodo era de monta. De
manhãzinha já o barbazanas de fogo garimpava na serra, a espreitar por detrás da
paisagem recortada de onde se destacava o Caramulinho. E logo a ria se inunda de
um dourado afogueado a faiscar nas cintilações da mareta, que estremece como
que estremunhada, acordada pelo sopro estival. O tempo monta, e com ele monta
o astro rei para se ir empoleirar no meio-dia, de onde fuzila as águas,
encharcando-as de um prateado ardente. A causticá-las de fogo, num ardego de
que as próprias gaivotas fogem para encetar uma bordada lá pelos frescos do mar,
para irem debicar no remoalho do lanço esquecido no areal, tanta era a pressa para
acudir à sardinha, que urgia despachar. À medida que o dia se esvaía, o
esverdeado tomava posse das águas, reflectindo um dégradé que parecendo provir
dos pinheirais, se esbatia por entre os milheirais, até se esparramar pelas águas da
ria.
Apreciar à noitinha a paleta da Costa-Nova era (e é!) mergulhar numa
orgia incomparável: - o vermelhão do pôr-do-sol lá no horizonte, envolve toda a
praia e tinge as areias que à borda vão receber as queixas do mar; ou escorre nas
ondulações da lomba, encharcando-as de sombras e brilhos. É altura para lá de
longe, emergindo do escuro serrano, se soltar a lua para verter um prateado
115
maravilhoso sobre a superfície serena, quase vidrada, da ria. Que parece pronta
para o sono, a mirar-se ao espelho antes de se ameigar na almofada da neblina
que, rasteira, lhe vem servir de conforto ao codorno. A luz inunda o malhadal da
Maluca onde se destaca, na outra banda, a horda de maçaricos noctívagos que
debicam, sossegados mas irrequietos, à procura de uma «pulgão do mar» por entre
montículos de sargaços acamados, prontos para serem escarrapachados na padiola
do semeador, à espera de irem engordar as areias lassas, dando-lhes força para
gerarem vida.
E é então que o colimbo mergulhão aproveita para se banhar na ria de
prata, ondulando-a ao chapinhar nas suas águas, realçando-lhes o prateado
exuberante, que refulge, cintilante.
12.5- Destruição da Esplanada; Terraplanagem da ria
E foi então, em 1972, que a J.A.P.A. em acordo com a Câmara Municipal
de Ílhavo, provocou uma intervenção profunda e radical, e pouco justificada,
irracional, ao retirar a marginal de de defronte aos Palheiros, destruindo de uma só
vez, e para sempre, a esplanada, o altar onde gerações tinham pingado de amor e
promessas, nos enlevos do período estival.
Era ali, que às vinte e uma horas, pontualmente anunciadas na Rádio
Faneca, que depois de jantar, toda a juventude fazia caminho e carreira, em grupo,
deambulando entre o norte e o sul, de um ponto ao outro da esplanada; por ela ou
pela estrada que lhe era contígua, passeava um mundo de gente descontraída, para
encontro e conversa.
Havia quem optasse por ir ao Pardal buscar amendoins; ou à Srª Emilinha,
umas línguas de gato, para, sentados sobre a amurada da esplanada, por ali
ficarem a ouvir as músicas da moda: - as simones, os calvários, os mários simões,
os tony de matos e a coqueluche da época - o shegundo galarza - a fazer hora até
que a Rádio Faneca anunciava, às onze, a despedida. Era hora de acompanhar a
eleita a casa. Depois vinha-se novamente para a Esplanada, e por aí ficava a
116
rapaziada até um pouco mais tarde. Nos palheiros da marginal os terraços
enchiam-se de senhoras que iam tagarelando enquanto esperavam as filhas, ou
dando à agulha a tricotar mais uma piolheira63
, não perdendo a ocasião de pôr o
olho para os pretendentes que borboleteavam em torno das «suas» princesas.
fig. 103- O areal que destruiu a Esplanada64
A Costa-Nova pareceu ferida de morte com essa intervenção. Na altura - e
talvez ainda hoje - pouco compreensível, parecendo inútil quanto aos fins a que se
propunha, e até despropositada. Foi criada uma larga zona de areal, afastando as
águas da ria cerca de uma boa centena de metros para nascente, com o intuito -
dizia-se - de corrigir as margens. Depois de ensacado o areal, perante o
desconsolo e desencanto universalmente expressos, foram alvitradas várias
soluções para implantar um espelho de água naquele inestético areal. Não
passariam de promessas, mantendo-se praticamente um areal abandonado durante
largo tempo. A Costa-Nova perdia assim um dos seus mais belos atractivos.
Pareceu, então, que a praia não teria futuro.As muitas embarcações de
recreio que habitualmente fundeavam no Bico, ou até em frente da Esplanada,
deixaram de ter varadouro, desaparecendo quase que na totalidade, pois nem
sequer houve o cuidado de arranjar fundeadouro alternativo.
63 Piolheiras eram camisolas de lã grossa, muito adaptadas para vestir em dias de vento, e que
vulgarmente eram utilizadas pelos pescadores na faina. 64 Foto cedida por A.M.L.
117
A Biarritz acabou, dada a invasão do areal pelas águas da ria, deixando de
ter condições para receber os banhistas.
O que salvou a Costa-Nova da imediata exploração imobiliária,e da
inevitável e consequente destruição da sua imagem de marca, única no litoral
português, terá sido a existência e preservação dos palheiros anteriormente sitos
em frente da ria, no local mais nobre do agregado urbano, que por exuberantes na
garridisse das suas riscas, despertaram a atenção pela singularidade e exotismo do
seu visual, exortaram à manutenção -e até à recuperação - das suas formas. O
arquitecto urbanista de então, Samuel Quininha, repeliria todas as audácias de os
descaracterizar, protegendo e até lhes devolvendo os tiques vindo do passado. E
em madeira, ou já imitando as riscas brochadas sobre alvenaria - do mal o menos!
- a Costa-Nova recuperou o estatuto singular, pela visibilidade e referência
alcançados pela preservação do seu património histórico, os risquinhas, verdes,
amarelos, vermelhos e azuis, que passaram a merecer especial e carinhoso cuidado
por parte dos que se assumiram seus guardadores, e por aqueles que os
descobrindo, se apressaram a fixá-los -e divulgá-los – de tal modo que a Costa-
Nova se tornou ponto de visita obrigatório, a incluir nos roteiros turísticos.
fig. 104- Costa-Nova meados Séc.XX
118
13- AS GENTES QUE DERAM A IMAGEM À COSTA-NOVA
Julgamos ter ficado perfeitamente sublinhado que se foi a pequena
burguesia de cada época que deu estatuto à Costa-Nova, e transferiu a sua imagem
para o exterior, situando-a no mapa do litoral, apontando-a como um dos pontos
em que a natureza se deteve, pródiga e lassa, a derramar torrentes de luz sobre
uma ria encaixilhada por uma orla de jardins verdejantes65
,
Foi, contudo, o pescador da borda do mar, quem lhe deu o retrato.
InserirQuadro
fig.105- Gente da Borda
fig. 106- Grupo na beira-mar (Séc.XX)
13.1- O Lanço na Xávega
65 Moura, Frederico in «Ressonâncias», 1999
119
Era um espectáculo que atraía multidões, postadas ou alapadas no areal a
ver os preparativos, a observar, curiosas, as decisões tomadas pelos Arrais a olhar,
perscrutadores, o mar, tentando decifrar os seus arremessos e enleios. E que
depois, atónitas e espavoridas, e até incrédulas, observavam os empinanços do
meia-lua a romper a vaga por entre um coro de gritos e imprecações, vozearias e
esgares das mulheres especadas, hirtas, erguendo braços retesados e faces
espavoridas, a clamar piedade ao Divino, até que o mar deixasse de zangalhar o
barquito como se brincasse, subindo-o ligeiro ás alturas para logo o atirar á
profundeza da vaga.
fig. 107- «O Barco da Xávega»
Era deslumbrante no seu todo, e por vezes de loucura patética, o lanço da
Xávega. Começava com intenso movimento, uma espantável e louca azáfama,
enrolada no turbilhão dos gritos e imprecações das gentes. Continuada com o
portentoso clímax da entrada no mar, do meia-lua. Viviam-se momentos de ânsia
partilhada, aquando do «estripar» do saco permitindo ver o inebriante espectáculo
do peixe em «faiscante» estertor; e tinha momento de ingénua gratificação para os
mais novitos, com a «recompensa» de poderem encher o «baldito de lata da
praia», com um ou outro lacrau subtraído à rede. Para os graúdos ficava a
120
abundância do pilado fêmea, com que enchiam os nassos para à noite se
empanturrarem com o saboroso pitéu.
fig. 108- Carregando a rede no enxalavar
Mas tentemos a descrição do «Lanço na Xávega», ainda que sabendo
ficarmos longe de o retratar com rigor, por carência de fôlego e arte, para dele dar
a grandeza impressiva do estendal das emoções que perpassam ao longo do seu
desenrolar.
fig.109 - Carregando a rede
À ordem do Arrais, embarcadas as últimas voltas das «calas», trazidas em
rolos nos varapaus pelos ajudantes da Companha, desfilava a rede em «estranha
procissão», carreada aos ombros, por toda a tripulação.
121
fig. 110 - Procissão ombreando a rede
Entra primeiro «a manga», depois «o saco» e, finalmente, segue-se «a manga» de
retorno. É chegada a hora do meia-lua, com todo o aparelho a bordo, se fazer à
pancada do mar; para isso é puxado pelos bois para a sua beirada, deslizando
fig. 111- Retocando a malha da rede
122
fig. 112- Bois e homens na água
sobre tarolos que vão sendo sucessivamente apostos na sua proa. Chegado mais
perto da rebentação, os homens de terra metem-se pelo mar até aos joelhos e
colocam a embarcação já muito perto do farfalho da maré. O Arrais - que não tira
o olhar do mar esquadrinhando todo o seu movimento -, espera pelo período das
«três vagas sucessivas», a que se seguirá um espraiado. Passada a última vaga,
ouve-se o grito: é agora… é agora!…
123
fig. 113 - Homens e animais entrando mar dentro
A Companha em terra dá então o último empurrão com a muleta (vara
bifurcada na ponta) que enfia na bica da ré - ou à mão utilizando as bossas da
embarcação - num esforço hercúleo para desenvencilhar o meia-lua da areia, e,
desse modo, o colocar a flutuar. Com o cabo da fateixa enfiado nos «golfiões»,
evita-se a «atravessadela» fatal. Eis que a primeira vaga vem beijar a embarcação
enquanto se grita num esgar de vozes roufenhas: agora… agora !!!
… e lá vai o meia-lua, mar adentro …
fig. 114- E lá vai mar adentro
até se sentir que o barco já abóia. Os remos entram então na água tentando em
luta desesperada chegar o mais rápido possível à segunda vaga. O Arrais, que não
larga o «reçoeiro» já que este lhe serve de controlo para o correcto
posicionamento do barco, de frente para a vaga (evitando assim a «atrevessadela»
que seria fatal) ordena, invectivando: - temos maré… força… força… seus
calões… desse jeito «aguilhoando» o amor-próprio dos remadores e
«camboeiros». Por vezes o barco parte lesto demais; é preciso travá-lo; cia… cia,
ordena o Arrais, para que desse modo, «borregando», se espere pela vaga.
124
«Trilha!… trilha», grita então, dando a ordem para fixar o remo, e assim se
«amainar» o impulso.
E eis que a montanha de água se abate com fragor na proa recurvada,
altiva e desafiadora (!) do meia-lua, que se «encabrita» até às alturas num ângulo
medonho que chega a superar, por vezes, os 50/60 graus, ficando apenas apoitado
de ré. O farfalho da vaga despedaçada pelo encontrão com a proa que a rasga, faz
a água galgar e cobrir a embarcação, «esparralhando-se» sobre os homens que
não param de remar, pés retesados nas recoveiras, em derradeiro sopetão para
fugir da quebra do mar. O Arrais, de barrete em punho grita: rema, rema…
estamos safos. E o meia-lua, lesto, atrevido, toma o rumo do poente, lá para o
largo, deixando atrás de si o «reçoeiro» que ficará «preso», entregue aos
camaradas de terra.
fig. 115 - O meia-lua a romper
Passada a pancada do mar - o ponto crítico de toda a manobra – onde se
não percebe se é mais de enaltecer os bravos, se espantar com o seu demente
atrevimento, ou respeitar e admirar a intolerância da natureza agreste. Vencida
aquela, o barco navega então em águas calmas, avançando compassadamente,
parecendo espairecer do esfalfe da luta tremenda, desarcada, hercúlea; e lá vai,
empurrado pela força dos remos até ao calamento, momento em que, findo o
cambo do «reçoeiro» depois de largado o saco, é tempo de «abicar» à praia. Não
sem que antes se responda ao Pai Nosso reclamado pelo Arrais, que, cabeça
125
descoberta, em acto de fervorosa prece, roga a intercepção do «Altíssimo» para
que lhes conceda uma «boa pescaria», no que é imitado por toda a Companha.
Posta (toda) a rede na água ao correr do mar, está na hora de arribar. O
calador (espécie de segundo do Arrais, e seu prometido sucessor) vai largando o
«cabo de mão da barca» até se chegar à praia. A manobra de aproximação é
muito delicada, exigindo toda a atenção e destreza do Arrais, olhos
permanentemente postos nas vagas que lá vêm. Se o mar é de lama, o Arrais
ordena o volteio, e a embarcação vem nessa posição - de ré - varar (achapar-se) à
praia, ficando de novo voltada para o mar, pronta para nova sortida. Se o mar está
de «vagalhoça», o Arrais não arrisca; ferra «a volta na ré» e, de pulso firme, vai
folgando ou retesando o cabo, conduzindo habilmente a manobra, «guiando o
meia-lua» até encontrar a «folga da vaga» que permita varar de queixos, entrando
pela praia dentro. A tripulação, lesta, salta para a areia, esfusiante de alegria; as
parelhas de bois com o chicote solto - o «trambelho» - «chegam-se» para permitir
enlaçar as guias, e assim, «alar» a embarcação, puxando-a para cima sobre os
rolos. Para que depois de volteado - aproado ao mar - «descanse» bem lá no cimo
da duna. Onde a maré não tem «esfolfe» para lhe chegar.
fig. 116 - Meia lua varando de queixos
Começa o «ala arriba» da rede. Que demora um par de horas: - duas a
quatro, conforme a distância a que se largou a rede. As várias juntas de bois
126
fortemente aguilhoadas e impiedosamente batidas nos lombos com as varas de
tocar, são, pela laçada do chicote, «atadas» aos cabos do reçoeiro e da mão da
barca, que, inicialmente separados por umas boas centenas metros, pouco a
pouco, se vão «achegando», até que à vista dos primeiros «pipos»66
- as calimas -
fig. 117- As calimas ou pipos
66 Havia três pipos; dois no início das mangas, e um terceiro, o de maior capacidade na boca do saco.
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fig.118 - Ajeitando as mangas
(que indicam a posição das mangas da rede), não distam mais do que uns
cinquenta metros entre si. Os animais - uma boa dúzia de juntas -, libertos no
cimo da duna são largados em louca correria, em tumultuosa balbúrdia, passando
possantes por entre paisanos e «olheiros» que, de repente, se dão conta de estarem
na linha de corrida de uma parelha: é tempo de correr para escapar, lestos, aos
«cornigeros» animais. Os tocadores incitam-nos em gritaria alarve, fustigando-
lhes os costados dum modo violento. «foge... foge... arreda!...», é o grito que se
vai ouvindo no meio daquela confusão extrema.
Esforço supremo!..Ó!..Ó!.., arriba …riba …riba …vá .. vááá!. grita o
Arrais já rouco de tanto rojar…Eh!.. raios... diabos!... puxa... puxa, vá riba !
E os bois e homens, buscando as últimas migalhas de forças conseguem
tirar a sacada do mar que “lá aparece, qual ventre de enorme baleia agitada por
convulsivo tremor”.
Eis que o saco (a coada) sobe na areia; todos vão por detrás dele, pés na
água da arrebentação, dar-lhe uma espreitadela para avaliar da dimensão da
sacada.
fig.119 - A coada arriba à praia
128
Raramente o pescador se satisfaz, pois que espera - sempre !... - melhor
sorte.
É apenas um momento de ansiedade, tempo para um simples esgar e para
rogar a praga do seu desencanto, porque logo esquece a estiporada sorte para de
novo se envolver na árdua tarefa de levar a rede acima. O Arrais vem sobre o
saco, soberano, calcando a pesca até ao «local» onde grita: - alto!; e aí, de
navalhão em punho, corta-lhe «o porfírio» esventrando o «ajuntadouro da rede»,
deixando ver uma miríade de reflexos, provocados pelo sol a bater no peixe que
saltita num derradeiro esforço para se libertar da prisão.
Num primeiro acto, homens e mulheres mergulham as nassas (os
xalavares) na sacada, atirando «o peixe» para montes onde são separados por tipo,
e depois, metido em cabazes de vime, para, de seguida, ser apregoado.
fig.120 - Enchendo os nassos
Mulherio, curiosos, pescadores e «mercantéis», por razões diferentes,
começam a «cobiçar» os quinhões, que logo ali são leiloados à voz do pregoeiro -
do quem dá mais (?!) - sob o olhar atento do apontador do livro67
que regista as
vendas. Estes pregoeiros tinham com os «mercantéis» códigos estudados, sinais
67 E na presença obrigatória do Guarda-Fiscal que olhava pela recolha dos impostos
129
de licitação: - o piscar de olhos, o coçar a cabeça, o tirar do boné etc. -
inacessíveis aos curiosos que só participam na licitação do «restolho».
fig.121- O Guarda-Fiscal vigiando o apontamento das vendas
fig.122- O Peixe nos xalabares , alinhados para a venda
O peixe é então transportado em cabazes, nos enxalavares 68
, carros de
bois de duas rodas, muito largas, permitindo-lhes com mais facilidade se
deslocarem na areia, conduzindo o peixe para os barcos dos «mercantéis» ou para
68 GOMES, Marques doc. XXIII in «Campeão das Províncias» - o custo deste transporte, da Companha
para os armazéns de salga, era de conta da Companha, paga por fora ao pescador, valor guardado para a pinga “sem direito a que as mulheres o pudessem exigir”
130
os armazéns de salga, na beira-ria; ou para ser carregado por almocreves69
que o
irão levar, no mesmo dia, e nessa noite, percorrendo afadigados por entre vales e
serras, os caminhos da Beira interior para o entregar, ainda fresco, «amanhã»
para a venda.
fig. 123- O burrico o rapaz e o almocreve
Outra parte do lanço segue para os «gigos» (cabazes) do peixeiro
69 Os Almocreves funcionavam como uma verdadeira organização de transportes entre populações
afastadas, especializados na comercialização à distância. Cada cidade ou vila de alguma importância tinha os seus Almocreves, e tinham-nos também, os reis e os senhores. Grande parte do pescado salgado era levado por barca, da Costa-Nova para Águeda, entreposto de descarga e distribuição, de onde partia para toda a beira interior (Lamego, Viseu, Tondela). Pelo caminho iam suportando as sisas das portagens com que deparavam, impostas pelos forais (outras vezes esgueirando-se às mesmas), viajando em grupo (recova) para protecção contra intrusos. Era ao tempo um transporte rápido - o mais rápido - carregando por vezes para o Porto. Os almocreves podiam ser requisitados pela coroa, ou até pelos concelhos, por um número de dias estabelecido para transportar cargas de que aqueles
teriam extrema necessidade. Documento de 15 de Março de 1448 onde é autorizada a entrada de sal de Aveiro, dado os perigos da sua vinda por mar. MORENO, Humberto in «A Acção dos Almocreves» Brasilia Editora Porto.
131
fig. 124- O peixeiro de Ílhavo
«ombreados» numa vara de cerca de dois metros que leva, enfiados nas suas
pontas o par dos ditos «gigos», em que se carregam cerca de 50 kg de sardinha
para ser vendida no mercado da Vila, ou de Aveiro.
As «pescadeiras», depois de darem uma mão na «safa» do peixe, escolhido
132
fig. 125- A Peixeira da Costa-Nova
este e logo ali loteado, enchem as suas canastras «atapetadas» por um oleado que
evita o escorredoiro, e lá partem estugando o passo numa correria para apanhar a
barca da passagem que as levará ao outro lado, à Maluca, de onde partirão
ajoujadas ao peso do carrego. Que bem equilibrado sobre a rodilha ou sobre o
chapéu de «penache», não necessita sequer de mão para o ajeitar ou segurar.
Graciosas, descalças, mãos na cintura, seguem lestas em passo leve mas corrido,
até que as primeiras casitas da vila aparecem lá ao longe; é então que da garganta
fina, esbelta, orlada de belos cordões e libras d’oiro - seu único derriço! - sai o
grito em voz sonora, clara e apelativa, no pregão: “Olha a sardinha da nossa
costa! Freguesa!… venha «cumprar q’é do noisso mar”…. E assim vão
calcorreando todas as ruas das redondezas até de noite, tempo de chegar a casa
mortas de fadiga, mas ainda, com tempo, arte, e folguedo q.b., para fazer um
«trauto» com «seu Arrais» no folhelho aconchegado onde se fez mulher… vai
para um par de Invernos»…, (…“que mulher «d’íbalho» não casa de verão!... não
há tempo… nem homes em terra, para tal….”)
13.2- Os Borda-d’água
133
A discussão em volta do círculo onde se fazia o repasto: - porque aquela
gente das Companhas não se sabia fazer ouvir baixo, fosse porque quem fala alto
tem sempre razão, fosse com medo que o marulhar do mar lhe comesse os sons e
lhe «abortasse» a ordem, versava não só o azar ou a sorte da pescaria do dia, as
peripécias do lanço, mas e também, as previsões sobre o tempo que faria
«amanhã». O pescador sabia ler o tempo e ver nos sinais que vão acontecendo,
deles retirando as conclusões para o que o espera, amanhã, em nova arremetida. É
um saber adquirido - e transmitido - de geração em geração, passado de boca em
boca, de pais para filhos, expresso em rimas a preceito.
Absorto, perscrutando insistentemente o mar e o céu, barrete enfiado na
cabeça, escupindo a «sarreta» que lhe unguenta a boca, atento na «lua
trovejada» augoirando que «trinta dias será molhada», espera que não venha
com vento pois, é certo, «com vento do leste não dá nada que preste». A lua e
as suas posições servem-lhe para calcular a prenhez da companheira, mas e
também lhe indiciam o estado do mar: - «lua fraca»… «o tempo irá mudar»,
pensa… e logo inspira a cachimbada, sorrindo-se do tempo adivinhado.
Mas se o «vento norte é rijão, chuva virá à mão»; se for suão, «de
inverno sim, de verão não».
Se ao pôr do sol estiver «vermelho no mar»… certo que haverá «sol de
rachar».
Quando lá longe vê uma ave que se aproxima e lhe desperta a atenção,
logo siloqueia: «em terra a gaivota... é que o temporal a enxota»...; mas se
descortina «estrelas a brilhar», então, «marinheiro, vai p’ró o mar». Se «a
manhã vem com arco»… «mal vai o barco» e se há «miragem que espante»…
teremos… «vento de levante». À noite «trovão solto, no céu reboa»…
«violento temporal, nos apregoa»…
Dá de «emborcar» mais um copo, mas com tino, pois «quando ao
pescador, dão de beber», «ou já está moído, ou o vão moer».
134
Eis que a «aurora surge rubra»… é… «vento ou chuva»…; se
«primeiro chuva, e depois vento», «à cautela mete dentro»; mas se o «vento
vem antes da chuva»… «deixa andar que não tem dúvida»
Interrompe o linguajar para olhar o sopro do vento pois sabe que «volta
direita, vem satisfeita»… ao passo que… «volta de cão traz furacão». Não tem
muita importância, pois «sardinha de Abril, pega-lhe no rabo, deixa-a ir» e
mesmo «não é boa a solha que o pão não molha».
«O vento é de rachar»… aguarda, pois «depressa deve calar».
Dia para ele é aquele do «rosado sol-posto, cariz bem disposto», bem
diferente da «vermelha alvorada… que vem mal encarada», pois que «lua à
tardinha, com seu anel», «dá chuva à noite, ou vento a granel»; é tempo de
amarrar o barco e ir-se abrigar, que «barco amarrado não ganha frete».
Se há «arco-íris ao anoitecer», certo é termos «bom dia ao amanhecer»;
«arco-íris ao meio-dia», é certo, «chuva todo o dia».
Tudo ao pescador/Arrais serve para ajudar na previsão: o marulhar da onda, o
correrio das nuvens, o seu esfarrapar ou o seu engrossamento; os cinzentos claros
ou escuros das massas de algodão indicam-lhe as probabilidades do lanço de
amanhã. O Arrais é o guardador do rebanho. Inventar palavras para o
descrever(?!): para quê se já foram escritas as mais belas, por Maia Alcoforado 70
,
vertidas com o coração, pois, quando falava do mar, Alcoforado sentia o cachoar
enraivecido das suas águas batendo contra a muralha do peito, aniquilando-lhe
as saudades.
Do «arrais» disse:
70 ALCOFORADO, Maia in «Ílhavo Terra Maruja»
135
fig. 126- Arrais Ançã perscrutando o mar
“Barrete negro, da cor dos aguaceiros, encafuado na cabeça até à
encapeladura das orelhas, de borla caída a um lado sobre o ombro, a pendular
sorumbática despretensiosa ironia…
136
fig. 127- O Arrais (João Carlos)
Cachimbo à amurada golfejando novelos de fumo em espalhafatosas
cabriolas, que até pareciam de carvão a arder na fornalha enorme dum navio de
longo curso.
E a embrulhar-lhe o peito, mais rijo que um cepo, o blusão de flanela
salpicado de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço
d’Alcobaça - quase tão grande como as bandeiras do mariato”…
Triste é o dia em que o «Arrais» vê chegar o bando de Maçaricos, pois é
sinal dos céus a indicar que a faina está acabada, que o Inverno está a chegar.
Tempo pobre, de privações, de puxar o xávega para o cimo das dunas, recolher os
bois, e safar o cordame. E tempo para se agarrar ao remo do botirão, amanhando-
se na ria a pescar uns «xarabanecos» com que vai matando a fome aos seus.
Tempo de botar faladura na taberna, catando as agruras daquela vida
«estipurada» onde um «home bom… na medra»; vida de perigo, vida sofrida, de
dor e raiva, onde se praticaram actos de «demência» heróica que imortalizaram
137
esses seres «de forças hercúleas, figuras talhadas no cerne de pinheiro bravo de
onde são feitas as cavernas do seu meia-lua». «O ílhavo» da beira-mar que
escreveu as páginas mais brilhantes dessa Faina, que a alguns, hoje, parece «A
Menor», mas que - bem pelo contrário!!! - por ser tão grande, não caberia sequer
nas laudas da Maior.
Como diria o Ançã: «fraldocos»!...
13.3 - O Falar
Todas as comunidades piscatórias da beira-mar tinham um característico e
singular modo - e jeito - no falar, usando uma terminologia muito própria, com
dizeres familiares, simples e sadios (bem) adaptados às circunstâncias, por vezes
ornados de pitosa brejeirice num linguarejar fácil, pleno de vocábulos
«inquinados» pela ausência de outra instrução, que não a tida no mourejar de uma
vida de labuta.
Procuramos recordar alguns deles numa recriada conversa que duas
pescadeiras, a Rosa do Arnal e a Ti Maria «do Calatró» tiveram, quando no
esfalfo da lideira, de canastra à cabeça, de manhãzinha, vinham em passo lesto
vender à vila.
-Ah!, chopa,… Maria!… «atão» «disque» c’a Josefa do Tarinca lá de
cima, a «fidalgota», deu pra «contribar» o casório da sua Luísa com o «Toino»
Labareda?... aquilo é que m’a saiu uma «mancatufe»…
- Assim o dizes, rapariga… «Canté» (?!): - o que c’ria a «inchada»?!… o
rapaz a modos não é nada «cible», nem é nada «calamantrão», muito menos um
«simpras», pois inté nem parece nada um «caminé botadinho à boa parte»… Não
senhor, «crendas» lá ver o «estendal» que o pai do Toino fez ; «apracia banéga
ao rossaló»… o estipôr.
- S’ta p’rece…o coitado do rapaz não é um «mal catufo»… «nem ó
vida!»… mulher; e «inté» dizem que tem umas «ecolomias».
138
Fig Pescadeiras da Costa-Nova
- Tens rezão cachopa… O «Toino» Lav’reda não é nada «xana» n’a
senhor ; c’a o meu Zé, Deus lhe dê «voa biaje» - venza-o Cristo e S.Savastião, trê
abés e um pai nosso - diz, inté!, q’é um bom «reçoeiro», nada como «oitros
zamparilhas» que não maneiam o cú no safar da rede ; o arrais Tomé da catralga
já o embarcou de «camboeiro» e ele «astreveu-se na t’refa». A Luísa que parece
uma «tísica» - deus me perdoe!,… em nome do Pai, Filho Esp’rito Santo… - inté
ia «vem…vem». Quisera-o pr’á minha, que «vem» o merecia… que eu fazia uma
festa de «arromba» com «zabumba» e tudo…
- «Cal-te óspois» aí... vai mulher…, andas desocupada dessa cabeça...
deixa a cachopa q’ela chegada a hora tem muito quem lhe meta as três «cavernas»
adentro… «inté p’reces augada».
- Tendas razão - que ao «labaró» é que as coisas se fazem «d’reitas»… e
ele anda p’ra aí tanto «mancatrefe», tantos «langões»… nosso senhor, «libre-nos»
S. Bartolomeu e as Alminhas da Toira.
- É assim mesmo, anda p’aí a «inquisitar», ca qualquer dia, um
«zamparilho» apanha-a de costas, e vai com’a lâmpada : só «c’o viés» de ficar
limpa como a Igreja do Prior Zé, deixa-a de barriga maior que a sardinha da
«desoba» ; anda aí tanto «pixano» e ela parece bem «augada» do «ca tu sabes»…
É «simpras»,… mas gulosa.
- … «Mogadinha de mim» se isso «assuceder»… é uma «restrabulha»…
«astrevesse-se» algum, c’a o pai faz um «serrafaçal» que levava tudo na frente…
Olha c’a «fúfia» da Zefa lá de cima, quando o Pª Morgado lha disse c’o rapaz não
era um «probezinho», «quinté» tinha uma chincha, a «merdrosa arrespondeu-lhe»
“Olhe senhor abade, «inté o TI ESSE», tem uma chincha”… «asfazer» pouco dos
nossos homes, a «fúfia»! E não lhe deu mais «corrume» nenhum… c’o abade
desandou inxerido com o frieldade da Zefa.
- Olha sabas o que te digo : - A Zefa é uma «opiniática» mal “cosida”...
preceves?
- Ah mulher, cal’te sua desbocada : - «u c’astás» tu p’ra aí a dizer…
139
- É o que lhe digo Ti Maria, se fosse como aqui a cachopa “c’a té tenho
«calo» dos trimbaldes do meu Zé, de tanto me vaterem nas «náudegas»”…
- Ah! mulher de «labishomme» q’uessas coisas n’a se apregoam com’a
sardinha c’aí levas… depois, s’é fraca - dizem que é «ogalho» a ti…
- Conversas... sabe o «ca penso»?! ; a Luisinha na tinha era remada pró
Toino, «q’ué cá dos noissos», e quando chegada a hora de meter o remo ao
«escalamão», «aborregava». E o rapaz c’a dizem ser «píxaro» e «pediqueiro» de
saias, inda ficava a ver navios… «esmorcegava-se toido».
- «Cal-te aí…» oh! alma penada, não digas isso... que «t’a podem oibir»
raios… de estrafego!… olha vamos é «avusacar» aqui um bocado, aproveitar para
«escofenar» o peixe, «c’a óspois» na «benda» é uma «fona» e a «gadagem»
d’ibalho diz c’andámos ao «mal mainço» por aí, «inbez» de vir a «d’reito»…
- Olha, «cal’te» que vem ali a Josefa…
……………………………………………………………..………….
- Boas tardes Sra. Josefa… - sorri prazenteira a Ti Maria, chegada à
faladura com a Zefa … - «Nóis» a falar dos santos e eles «oprecem». «Vons olhos
a beijam»… a sua Luisinha?... cada vez mais bonita… a santa!… a Srª do Pranto
lhe dê um fidalgo da sua igualha, c’a bem «m’rece» a «coitadinha» : Olhe Srª
Zefa, quer sardinha da nossa, «bibinha a vrilhar» como um «buzelicum» - olhe
«c’inda ri» - viemos numa «corriola» p’rà trazer fresquinha «com’ àuga»…
-------------------------------------------------------------------------------------
Eram assim estas mulheres d’Ílhavo. Vivas, despachadas e asseadas; umas
«moironas de afadigação» p’ra chegarem aos primeiros lanços do «lusco fusco»,
mulheres com o seu «creto», tementes a Deus e aos Santos, humildes e honradas;
«faladeiras». Delas se dizia: “morrendas se não falendas”
13.4- A Fé e o Pagão
A todo este grupo de figuras míticas, deuses do mar, não faltava a Fé onde
depositavam todo o cabedal de esperanças numa boa pescaria, ou na salvação dos
140
perigos que correm, amiúde, pedindo, devotos, pela «fortuna» dos seus,
entregando-se crentes à missa diária na Capelinha da Nª Senhora da Saúde71
,
repetindo promessas de uma velinha aquando do último domingo de Setembro,
não vá a Senhora pensar que «Dela» se teriam esquecido. À cautela, crentes mas
desconfiados - não vão os outros oráculos das redondezas esquecerem-se, ou
tomarem-se de «ciumeira» -, vá de prometerem uma ida ao S.Paio - o cavaleiro
do mar! - na primeira semana de Setembro; e uma outra, à Srª da Maluca,
cumprindo a dádiva de uns parcos «reises» e uma visita à festa de arromba.
Assim, é cumprido o ciclo das festividades dos oráculos da ria, visitados
obrigatoriamente em dias em que se esquece a labuta e seus perigos, dias de
diversão, da cestada de boa traganeira e adequado conduto. Mai-lo capão bem
dourado no forno que irá ser regado a boa pinga verdasca - o vinho do
enforcado72
- levado em pipo ou garrafão, na bateira, que ficará fundeada ou
varada na praia, até ao «fogo de lágrimas» da despedida que marcará o
encerramento das festividades. Amanhã é novo dia de lanço... há que regressar
lesto… Três dias de festa rija… de estoiro…
71 Os pescadores, gente de grande devoção, iam nos primeiros tempos ouvir missa à Vagueira à Capela da
Nª Srª da Conceição. Em 1822(4) por iniciativa de Frei José Pachão, ergue-se por subscrição das gentes e das Companhas, uma primeira capela de tábuas coberta por colmo, que mais tarde será substituída pela
Capelinha da Srª da Saúde, erguida em 1890, desta vez por iniciativa de José da Graça, gerente de uma das Companhas, capela que ainda hoje existe. 72 O crisma advém de ser produzido em latadas, local onde muitos preferiram ajustar as contas finais com a
vida.
141
fig. 128- Ex-Votos73
Na Costa-Nova os festejos em honra da Srª da Saúde, iniciados em 1837,
fig. 129- Armações da Srª da Saúde
vieram substituir a primitiva festa de S. Pedro, em Ílhavo - tornando-se a festa das
Companhas - passando a ter data fixa, no último domingo do mês de Setembro.
Competia em popularidade com o S.Paio ou com o S Tomé, na magnificência da
animação dos festejos lagunares, no corropio de gentes, na algazarra, na
singularidade do encontro de gentes da borda-d’água que muitas vezes
aproveitavam a festa para «trautos» de picardia num «regabofe» tumultuoso que
invariavelmente terminava com um copo de três emborcado na venda mais
próxima. Do norte do «Bico» ao sul da «mota», o espraiado engalanava-se com o
«estendal» de Moliceiros carregados com gentio da laguna e seus familiares,
73 Ex-Votos eram quadros pintados de expresssão naif prometidos e entregues ao orago como
agradecimento de salvação durante situação vivida, de grande perigo
142
fig. 130- Moliceiros na Srª da Saúde
muitos deles transportando no seu bojo, melões e melancias, criadas lá para os
lados do canal de Ovar - nas «Quintas do Norte» - aproveitando-se a romaria para
os transaccionar.
Na Capelinha havia «Te Deum», missa solene e sermonário apropriado.
fig. 131- Arraial da Srª da Saúde
143
Reunidos e alinhados os andores dos santos no adro, no areal, organizava-
se uma concorrida procissão passeando os oragos postados lá no alto dos seus
fig. 132- A Srª da Saúde
andores, emergindo de um verdadeiro campo de flores, de cores muito vivas. O
séquito de fiéis devotos fazia-se acompanhar de filarmónica, que marcava o passo
e dava ênfase, cadência, e cerimonial, ao desfile, percorrendo as ruelas da praia
engalanadas por arcos, aqui e ali, o chão coberto de erva-doce à mistura com
junco. Das varandas caíam colgaduras adamadas. Debruçados, os proprietários e
convidados assistiam em lugar privilegiado, ao desfile. Um numeroso grupo de
fiéis fazia questão de se incorporar no mesmo; crianças empunhando símbolos
marítimos (ancoras, bóias, barquinhos), e ou até adultos em traje esmerado de
pescador, levando na mão espórtula prometida em momento de mais apuro. De
quando em vez subia no ar um foguete ribombando estrondosamente, conferindo
um aspecto festivo, alegre, à expressão pagã do desfile.
Dada a volta à praia recolhiam os santos aos seus altares.
Terminado o momento alto dos festejos, o passeio ribeirinho pejava-se de
gentiaga em passeio por entre as vendas de comes e bebes ou de doçaria local: -
suspiros, cavacas, regueifas, e muita outra de refinado e doce paladar.
À noite, a festa encerrava com deslumbrante fogo de artificio atirado sobre
a Ria, inundando-a com mil e uma cores fugidias que lhe envaideciam o estro,
144
fustigando os olhares enfeitiçados dos festejeiros, emprisionados nos cachos de
miríades de gotas estreladas que pareciam brotar dos céus, descendo em cascata
sobre as águas.
fig.134- Fogo de artifício na Srª da Saúde
A festa corria até altas horas.
Ao outro dia, enquanto os visitantes partiam recolhendo à canseira da vida,
era tempo dos veraneantes empacotarem a tralha preparando-se para um novo ano
de mourejo., depois de recompostos os humores pela cura estival, recuperados das
fadigas. A Costa-Nova, cansada de tanta orgia estival parecia querer empontar-se
daqueles figurantes, e deles se despedir: - até para o ano.
14 - Acontecimento insólito: O « DESERTAS»
Em finais de 1916 a «aterragem» de um navio de apreciáveis dimensões
(comp.112,4m, boca 12,7m e pontal 7,8m), com capacidade para embarcar nos
seus porões 6.700 tons de carga geral, veio alvoroçar os que na praia se
entregavam às diversas fainas, na borda; já terminada a época balnear, desde logo
o acontecimento, que ocupou primeiras páginas na comunicação social da época,
faria atrair muitos curiosos, interessados pelo insólito, atraídos pelo mistério que
145
se dizia envolver o navio, recentemente apresado pelo Estado português aos
alemães. Tal aprisionamento foi feito como despojo da primeira guerra mundial, a
decorrer, e em cujo esforço participávamos. O nome da embarcação foi então
mudado de “Hochfeld” para “Desertas”.
fig. 135- O «Desertas» encalhado na praia
A saga do «Desertas» sob a bandeira portuguesa estava praticamente a
começar, pois o navio com o mau tempo, tinha vindo a descair sobre a praia por
dificuldades de condições de navegabilidade, depois de se ter mantido ao largo de
Leixões, tentando a entrada naquele Porto. E sempre a descair tinha vindo meter-
se pelo areal dentro, evitando males piores à tripulação, que saltou para terra,
pondo-se a salvo.
O local do encalhe, situado a sul da Costa-Nova, distando cerca de meia
milha do local das Companhas e de fácil acesso, permitiu desde logo encarar
como viável o esforço para a sua recuperação, sendo para o efeito equacionadas
diversas soluções, assumindo-se que a mesma seria levada a cabo pela companhia
seguradora, em acordo com o armador (inglês). Seria encargo do nosso país,
apenas e só, o fornecimento de pessoal para a tarefa de salvamento, e para mais
uma ou outra facilidade. Algumas ténues e pouco esforçadas tentativas de safar o
navio, directamente para o mar, goraram-se, apesar de em determinada altura o
mesmo ter flutuado, o que não foi aproveitado para se proceder ao seu reboque
para o largo. O desinteresse dos ingleses, e o valor do navio em época pós-guerra,
em que o aço era matéria rara e cara, levou o Governo Português a assumir o seu
146
salvamento, usando para o efeito, técnicos e meios, nacionais. Abandonada a
hipótese de saída directa para o mar, gizou-se um plano que consistia estabelecer
um canal de ligação com a ria (que teria de ter uma dimensão de aprox. 1.000
metros, e uma largura não inferior a 30m), por onde o navio poderia alcançar a
Barra de Aveiro.
E enquanto se protegia o navio do assédio do mar, numa costa muito
fig. 136- O «Desertas» a ser fustigado
exposta a esse factor, eram criadas condições para o endireitar, afim de lhe tapar
alguns rombos, e dar início aos trabalhos de dragagem na língua de areia, feitos
com grande alvoroço pela draga «Mondego», requisitada para esse efeito. Todo
este estendal de máquinas, material e pessoal, atrairia centenas de curiosos que
vinham dar uma espreitadela ao decurso dos trabalhos, seguindo todos os passos e
as peripécias dos mesmos, pois que estes prosseguiam dia e noite, feitos sem
paragens, no intuito de não exceder o valor orçamentado para o custo dos
mesmos: 115.000$00 (cento e quinze mil escudos) para a libertação do navio e
160.000$00 (cento e sessenta mil escudos) para as primeiras reparações. Perante a
complexidade da tarefa, dava-se como provável o aparecimento de alguns
trabalhos, não previsíveis à partida, para o que se orçou um valor para os mesmos:
22.000$00 (vinte e dois mil escudos). Foram muitos imprevistos e por isso longa
147
-demasiadamente longa - a duração da operação.O que fez elevar para cerca de
700.000$00 (setecentos mil escudos!), os custos acima referidos.
Só iniciados os trabalhos em 3 de Julho de 1918 (quase dois anos após o
encalhe), já depois da embarcação ter suportado violento temporal que a
danificou, o certo é que em 78 dias de trabalho o canal ficou apto para a segunda
fase dos trabalhos, que consistia no embarque do «Desertas», no mesmo.
fig. 137- O Desertas a entrar no canal
Inesperadamente - ou não tanto - pois constava que tinham sido por
diversas vezes avistados submarinos alemães a pairar ao largo, o navio seria
bombardeado do lado do mar. Para lá do estardalhaço da fuzilaria, logo foram
postas a correr as mais diversas e desencontradas noticias, que incluíam a hipótese
(que foi suportada ao longo dos anos) de o navio estar carregado nos seus porões
com bombas de um tipo ainda secreto, que os alemães não desejariam deixar cair
em mãos inimigas. O que era um perfeita especulação, pois o navio tinha sido
descarregado e reparado, após aprisionamento, em Lisboa.
148
fig. 138- O«Desertas» na «bacia»
A fuzilaria levou à debandada do pessoal e mesmo os veraneantes
(estávamos já então na época alta do ano seguinte ao encalhe) desataram num
frenesim de fuga, pois que entretanto, hidroaviões estacionados em S. Jacinto
tinham levantado voo, e vindo atacar um outro submarino que fazia parte a
matilha de submersíveis que pretendia destruir o «Desertas». Do mar as hipóteses
de um submarino acertar no navio eram restritas, e muito mais quando acossado; à
cautela e para defesa em caso de repetição da tentativa foi montada uma peça de
artilharia na praia, no local dos trabalhos, que poderia ser muito eficaz na
retaliação.
Bateiras, barcas ou a estrada para a Barra, todos os meios e caminhos
foram utilizados para fugir ao que se pensava poder redundar num ataque às
populações estacionadas na Costa-Nova, como retaliação, conforme constava nos
meios germanófilos.
149
fig. 139- O «Desertas» frente à Costa-Nova
Acalmada a situação e mesmo perante contrariedade de monta provocada
por forte temporal, verificado em Setembro do referido ano, e que obrigou a
novos trabalhos de recuperação na zona dragada, o certo é que em Novembro o
navio foi acolhido na bacia dragada, onde tudo estava preparado para o reparar e
preparar a sua estabilidade, para se iniciar a curta (dez a doze dias, previa-se)
viagem, até ao forte da Barra.
Constatado, entretanto - com algum espanto! - um erro na pré avaliação
do calado, verificou-se que mesmo na melhor das hipóteses haveria que levar a
cabo intervenções em diversos pontos da ria, especialmente em frente da Costa-
Nova (onde se encontraram fundos de 0,90m, quando eram precisos cerca de
3,5m), para que o navio chegasse à barra.
fig. 140- O «Desertas» visto do «Arrais Ançã»
Só em frente da praia foi preciso dragar numa extensão de cerca de dois
mil metros. Os dez a doze dias previstos para a curta viagem do Desertas até à
Barra, transformaram-se, assim, em longos oito meses, para gáudio de mirones,
fotógrafos, comunicação social e outros, que solicitados por um espectáculo
parecido ao de um elefante metido em jaula, acorriam, conferindo um movimento
desusado à praia, conferindo nome e notoriedade, e ainda mais peculiaridade, à
150
que, já era então, motivo de exalte pelas belezas naturais da sua paisagem: a
natural e a humana.
Ultrapassada a zona da praia em 5 de Outubro de 1919, foi só em fins de
Janeiro de 1920 que o navio chegou à ponte, que tendo já sido cortada para dar
passagem à draga «Mondego», foi de novo, em 20 de Janeiro do referido ano,
interrompida, para dar lugar, agora, à passagem do navio. Que finalmente foi
fundear em frente de S.Jacinto, e de onde levantou ferro, em 20 de Março de
1920, seguindo depois para Lisboa.
fig. 141- O «Desertas» finalmente fundeado em S. Jacinto
Terminara um episódio que iria ter muito importância para o
desenvolvimento da Costa-Nova. Por um lado o longo período em que se
desenvolveram os trabalhos trouxe movimento e gerou riqueza nos botequins
locais. Para lá dos que intervieram directamente nos trabalhos, juntaram-se ao
corrupio, os curiosos que permanentemente acorreram, motivados pelo insólito
dos trabalhos, e para admirar e registar um acontecimento histórico, irrepetível.
Mas se algumas contrariedades acarretou o salvamento do navio - como
foi, por exemplo, o depósito dos dragados - certo é que o «canal do Desertas»,
como se designou até à década de 70, foi o baú de riqueza de que se alimentaram
151
gerações de pescadores da chincha, na ria. E por ele passaram, mesmo nas marés
baixas, os «moliceiros» em demanda do norte para ao outro dia comparecerem à
faina, a fim de não faltarem aos lavradores da borda com o húmus que alimentava
e transformava as areias em verdadeiros campos de pão. E foi por ele, que mais
prosaicamente navegaram centenas de embarcações de recreio, elegendo a Costa-
Nova como um idílico local de lazer náutico, que fez acorrer gerações e gerações
à ria, para, quaisquer que fossem as condições de maré, velejarem à vontade com
os seus «Vougas» - parecendo feitos à medida do canal - em deambulações
vadias.
15- ÍCONES DA COSTA-NOVA
15.1- JOSÉ BARRETO ou LUIS DA BERNARDA
Foi o fundador da Costa-Nova e o seu verdadeiro Patriarca.
Fazia parte de uma família de pescadores, alguns dos quais migraram,
litoral abaixo, em procura de melhor pousio.
Ao tempo em que era Arrais da sua Companha José Barreto encetou
negociações com pescadores instalados em Lisboa, para a compra vinda de lá e
a sua distribuição na região .
Em Aveiro veio a abrir uma venda de aprestos navais.
O apelido Bernarda vem do lado de sua mãe, pescadeira, conhecida por Ti
Bernarda «a Victória».
Infelizmente não existe uma única menção que relembre o seu nome como
demiurgo do local.
15.2- ARRAIS ANÇÃ (1845-1930)
152
É Guilhermino Ramalheira que nos fala 74
desse herói:
- O arrais Ançã - que em Outubro de 1886 arranca trinta e uma vidas
francesas, subtraídas às garras do “cão danado”- era assim que o arrais tratava
o mar - feito que lhe mereceu a outorga da medalha de ouro concedida pelo
Governo Francês, e outras duas - a de prata e a de ouro -, que ao Ançã foram
atribuídas pelo Governo Português, e entregues pessoalmente por El-Rei D.
Carlos, como recompensa de tantos e tão enormes feitos praticados por aquele
«bravo». Que “à humanidade emprestou o mais brutal e formidável exemplo de
demência heróica”75
; de quem o mar nunca teria zombado.
E é já António Cértima que lhe acrescenta :
-Alto como um mastro de galera, carão moreno, tisnado pelo sol,
encardido pela maresia, cinzelado de sulcos que a barba calafetava
discretamente, sorriso doce e ingénuo como o de todas as crianças, de todos os
heróis .
74 Ramalheira ,Guilhermino in «Gabriel Ançã ,Simbolo do Heroismo dos Homens do Mar» ed
CMI 1962 75 Maia Alcoforado in Ílhavo Terra Maruja - Marujos da Terra dos «ìlhavos»
153
fig. 142- O arrais Ançã
Colega de carteira na escola primária, de Alexandre da Conceição, este
dedicava-lhe grande amizade visitando-o frequentemente. Pretendeu levá-lo para
remador do seu barco, quando o poeta foi Director do Porto da Figueira.
O arrais viria a falecer, pobre, em Ílhavo, a 23 de Fevereiro de 1930.
O seu busto foi, como referido, colocado no local do primeiro mercado da
Costa-Nova ali ao lado da Marisqueira.
15.3- ANTÓNIO GOMES DA BENTA
Em 18 de Setembro de 1876 um espesso nevoeiro enegrecia o céu e
impedia um barco da Companha, com 35 tripulantes a bordo, de varar na praia.
Eis que na tentativa de aproximação à praia, um vagalhão enorme, desmesurado,
cai sobre ele, alagando-o e quebrando-lhe o cabo da barca. Logo fica
desgovernado, e atravessando-se está prestes a virar. Foi então que o Benta, arrais,
arrojado intemerato e resoluto, se atira ao mar levando consigo um cabo que
pretende prender ao arganéo do meia lua em perigo. Luta gigante em que o Benta
mergulha, porfiando enlaçá-lo; mas quando volta à superfície uma vaga atira-o
contra o costado. Três companheiros (O Naia, o Patacão e o Francisco da Cruz),
atiram-se, eles também, ao mar, e amparam o António da Benta que salta para o
barco e dirige a manobra, até o varar na praia com toda a tripulação salva.
As honrarias são muitas: do Sr. Pinto Mesquita que lhe entrega 25$000
reis. A Associação de Instrução Popular de Coimbra que lhe atribuiu o titulo de
sócio benemérito.E de S.Alteza, o Senhor D.Luiz que por decreto o condecora
com uma medalha de ouro e tença anual.
Muitos outros arrais - «O Batata», «O Cajeira», «O Parracho», eram
homens de respeito na borda do mar: valentes a defrontá-lo, afoitos em dominar
os ventos, o braço forte, habituado a submeter ao seu poder varonil o arremesso
das tempestades. O Mar obedecia-lhes …”
154
E muitos… muitos outros, todos constituíram uma verdadeira plêia de
homens de arrojada audácia a desafiarem o endemoninhado Atlântico…
Mas se a maior parte eram homens, também a Costa-Nova tem as suas
figuras femininas. Umas em constante cirandar a dar braço à rede ou à soga dos
bois; outras metidas até ao joelho na sacada, a atulhar os xalabares na separação
do peixe.
Mas outras juntaram à presença o desempenho corajoso de tarefas onde
ombrearam com a firmeza daqueles bravos no mourejo, na ausência de temor, no
desembaraço do seu braço, como foi o caso da
15.4- JOANA CÀLÔA
…. que outorgou para si o epíteto de ARRAISA: a Joana Càlôa.
Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e
trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de arraisa - ou
governadora76
- de terra, a quem eram remetidas as tarefas de orientação da
Companha. Assim, era seu mister cuidar da reparação das redes, do barco e
aprestos, encascar o redame, olhar pelo tratamento dos animais, gerir o pessoal e,
prover dedicada e especial atenção a todas às tarefas concernentes à separação,
venda e despacho, do peixe capturado.
Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e
prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços
longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros,
profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande
coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma
mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a
embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos
quebreira, para o ir largando como mandavam as regras.
76 Os trabalhos das mulheres na Companha, eram vários, e alguns bem esforçados e penosos:
juntar as redes, levá-las para o barco, empurrar com a muleta, escolher o peixe, etc.
155
Naquele tempo havia o direito de primazia77
: - o da escolha do campo de
pesca, que era concedido ao primeiro barco que fosse para o mar. Joana - a
arraisa - mais do que uma vez não hesitou, perante a demora do seu arrais, em
desafiar três camaradas a embarcar com ela na robaleira e, levando a bandeira da
Companha, colocar-se no local que ficava, assim, reservado para os seus barcos.
Filha do António da «Quinta» (do Cons. Luís Magalhães, porventura?), era mãe
de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente: «Manuel da Barbeira», mais
tarde conhecido por cap. Pisco; Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão;
David - oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo - e uma única filha,
a Nazaré Marques. Todos filhos de seu marido, o João Simões da Barbeira («O
Pisco»).
.
fig. 143- Joana Càlôa
Mulher muito bonita e esmerada, era desempoeirada, muito mexida e ágil
na lide, além de ser mulher de enorme ânimo e decisão.
Conta-se dela a seguinte história.
A Joana Càlôa ia usualmente levar o peixe branco a uma pensão a Aveiro.
Debaixo dos Arcos, postava-se, por vezes, um senhor bem vestido, de paletó,
chapéu e bengala, a que não faltavam ares de alguma distinção. Sempre que a
Joana passava com a sacola do peixe, no regaço, o fidalgote não se escusava em
77 Dá-se conta que oficialmente o direito de primazia teria terminado em 1861. Contudo as
Companhas instituíam, e respeitavam, a costumeira, e nem o próprio Arrais podia mexer nos
hábitos, costumes e privilégios antigos, que assim se mantinham muitos anos para lá das posturas
camarárias.
156
dispensar um piropo atrevido à Joana. Que à primeira ouviu, o que pouco a
importunou, nem lhe deu créto, pois mulher séria não tem ouvidos. Só que a cena
repetiu-se, num escaramento atrevido, e era impossível à Càlôa fazer de conta que
não ouvia o peralvilho, quinté parecia augado, e já começava a inquisilar. Por
isso à terceira, parou, olhou o fidalgote de alto a baixo, desatou o lenço e foi-se à
bolsa de onde tirou a navalha de estripar o porfírio78
. E mostrando a lâmina
afiadinha disse:
«Crendas ver? Ó malino! Queras ficar com uma boca em baixo igual à de
cima, só que ao alto, seu desbocado simprinhas? Queras frescura?... olha aqui
vai -e agarrando na alcofa achapou o peixe para cima do mancatrufe, deixando-o a
escorrer nhanha.
E a Joana lá foi à Pensão contar o sucedido de, nesse dia, não haver peixe..
Só que passados uns tempos, o patrão da Companha , o Sr. Cruz, grande amigo da
família de Joana lhe veio dizer:
-Ah Joana!.., cachopa. Que fizestas tu ao Sr. Dr. Juiz, rapariga? Tu vais
presa!...,Pois atão não queiras lá ver que o pintiparado era o Dr Juiz, raios!…
- Ora… ora Ti Cruz: se é juiz que não achaque e falte ao respeito a quem
passa.
E o certo é que não houve qualquer atitude do Juiz sobre a Joana, antes
passou a olhá-la com o máximo respeito e educação.
Conta-se que durante uma ida a Lisboa numa representação da Companha,
o rei D. Carlos teria reparado na graciosidade da Joana, na beleza dos ombros bem
levantadas de onde se salientava uma linha do seio tão bonita como o da proa do
meia lua, logo pretendeu que ela ficasse açafata do Príncipe D. Manuel.
Joana não mostrou grande interesse no convite, apesar da Rainha, ao que
parece, ter prometido emprego ao marido da Joana, nos iates reais.
Mas era precisamente este, quem insistia com a Joana para não ela não
aceitar o cargo. E entre vários pedidos sempre lhe dizia:
- Não vás Joana. E ósdepois quem me faz o laço da gravata, mulher?!
78 Porfírio é o cabo que fechava a coada (saco da rede). Era ao arrais que competia esventrá-lo.
157
Joana não foi. E assentou para sempre arraiais na Costa-Nova, onde fez
palheiro. Que hoje ainda existe, pertença de uma sua bisneta, que o recuperou na
sua cor ôcre, de origem.
fig. 144- O Palheiro de Joana Càlôa ( Av da Bela-Vista)
De onde teria vindo a alcunha, que depois e seguidamente deu origem,
como tantas outras, a nome de família, mantido de geração em geração? Não se
sabe ao certo, mas não andará longe aquele que imaginar, possa, assim ter
acontecido:
- Eh Toino…Simprinhas de um raio; mexe-te raios!… esperneia79
aí esse
càlão80
.
- Esperneava, esperneava se fosse uma «càlôa» em vez do «càlão», «ti
Joana»…
- C’al-te, home…come auga e bebe areia p’ra matares a
fome…engelhado…
E assim foi bautizada, a Joana, no corrume da vida de pescadeira da borda.
79 Estender as alças do càlão. 80 Càlão - peça de madeira ligada às mangas da rede, com alça, onde se vão ligar o reçoeiro e ou
a mão da barca.
158
INDICE
Página
200 Anos de Memória da Costa-Nova do Prado
1 – DESCOBERTA DA «NOVA PRAIA»
2 – TOPÓNIMO
3 – ARTE DE XÁVEGA
A circunstância que deu origem à Costa-Nova do Prado
4 – ENCLAVE
5 – INTEGRAÇÂO NO CONCELHO DE ÍLHAVO
6 – ESTRADAS:
COSTA-NOVA / AVEIRO e ILHAVO / COSTA-NOVA
7 – PRIMEIRO AGREGADO URBANO
159
8 – A PRESENÇA DE JOSÉ ESTÊVÃO
9 – RETRATO (Final Séc. XIX)
9.1 – Capela S.Pedro
10 – COSTA-NOVA princípio Séc. XX (1900-1940)
10.1 – Alterações do Agregado urbano
10.2 – As primeiras construções em alvenaria
10.3 – Primeiro arruamento em direcção ao mar
10.4 – A primeira ligação por camioneta a Aveiro
10.5 – A barca da passagem foi concedida aos murtoseiros
10.6 – Criação da Comissão de Turismo
10.7 – Abertura de alargamento da marginal
10.8 – Instalação do Mercado a Sul
10.9 – A Esplanada
10.10 – A Quinta do «Cravo»
10.11 – O posto de telégrafo e telefones
10.12 – Salas de Cinema
INDICE
Página
200 Anos de Memória da Costa-Nova do Prado
11 – RETRATO SOCIAL (1900-1940)
11.1 – A primeira geração
11.2 – Geração de vinte
11.3 – O Banho
11.4 – Jornais Manuscritos
11.5 – O Bico e a Biarritz
11.6 – O Passeio à «Bruxa»
11.7 – Os Bailes da Assembleia
11.8 – Pick-nicks
11.9 – Chinchada
11.10 – As touradas e as Garraiadas
160
11.11 – Regatas
12 – EVOLUÇÃO URBANA
1940-1970
12.1 – Hotel e Casino, Beira-Ria
12.2 – A presença dos Matolas
12.3 – O primeiro «biquini» na Costa-Nova
12.4 – Urbano, Gentes e Natureza
12.5 – Destruição da Esplanada; Terraplanagem da ria
13 – AS GENTES QUE DERAM A IMAGEM À COSTA-NOVA
13.1 – O Lanço na Xávega
13.2 – Os Borda-d’água
13.3 – O Falar
13.4 – A Fé e o Pagão
14 – Acontecimento insólito: O «DESERTAS»
INDICE
Página
200 Anos de Memória da Costa-Nova do Prado
15 – ÍCONES DA COSTA-NOVA
15.1 – JOSÉ BARRETO ou LUÍS DA BERNARDA
15.2 – ARRAIS ANÇÃ (1845-1930)
15.3 – ANTÒNIO GOMES DA BENTA
11.4 – JOANA CÀLÔA
161
NOTA: Os capítulos nºs.13.1, 13.2, 13.3, 13.4 no que diz respeito ao texto são
transcrições integrais de «Ílhavo - Ensaio Monográfico do Séc.X - Séc.XX»
162
Indice de consultas
CONSULTA ARQUIVOS E JORNAIS :
ACMI- Arquivo C.M.I.
ADA – Arquivo Distrital de Aveiro
ABM- Arquivo jornal «Beira Mar»
A N - Arquivo jornal «O Nauta»
AI -Arquivo jornal «O Ilhavense»
ACP - Arquivo jornal «O Campeão das Províncias»
Nota: Este livro não justifica índice bibliográfico, pois não pretende servir de sebenta de estudo, para ninguém. Mas pode haver interessados em recolher
informação sobre autores, especialmente locais e ou regionais, que abordam
matéria correlacionada.
Assim aqui fica a título de informação:
ALCOFORADO, Maia - «Ílhavo Terra Maruja»-C.M.I 1997
AMORIM, Inês - «Aveiro e a sua Provedoria no Séc.XVIII (1690-1814)»
AMORIM, Pe Aires - «Esmoriz e a sua História» - Comissão de Melhoramentos
1986
AMORIM, Pe Aires - Para a História de Ovar “Aveiro e o seu Distrito» nº9 1970
163
ARROTEIA, Jorge - «Ílhavo e Murtoseiros na emigração Portuguesa»,
Universidade de Aveiro 1982
ATLAS del Rey Planeta
ATLAS dos Portos Marítimos de João Teixeira de 1648
BARATA, António Mendes –O Salvamento do Desertas -1920
Boletim de Trabalho Industrial- Monografia Estatisca Concelho de Ílhavo nº56
BRANCO, Manuel Castelo - «Embarcações e Artes de Pesca»
BRANDÃO, Raul - «Os Pescadores»
CALO, Francisco Lourido - «As Artes da Pesca» S.Tiago –Vigo 1980
CAVALHEIRO - «João Franco e Luís de Magalhães» pp.14 e 15
CERVEIRA, M. - «Glórias de Ílhavo »
CORREIA, António - «A Acção dos Pescadores de Ìlhavo na Costa da Caparica»,
ed.1967
COSTA, Carvalho - «Corographia Portuguesa»
CRUZ, Maria Alfredo - «Pesca e Pescadores de Sesimbra»
CUNHA, Pedro Serra – A.D.A., Vol. XL, pp. 38 – 46
CUNHA, Rocha e - «O Porto de Aveiro»
CUNHA, Rocha e - «Relance da História Económica de Aveiro»
ESTATÍSTICA Industrial de 1864
«Exposição de homenagem a HM Seixas»- ed Museu da Marinha 1988
FONSECA, Senos da - «Ílhavo, Ensaio Monográfico séc X-séc.XX»
GASPAR, Mons. João - «Aveiro na História»
GIRÃO, Amorim - Bacia do Vouga, pp 175
GOMES, Diniz - «Costumes e Gentes de Ìlhavo» Vol IeII
164
GOMES, Diniz - Ilustração Portuguesa de 20 de Setembro de 1915
GOMES, Marques - «Aveiro e o seu Distrito»
GRAÇA, Manuel Machado - «Falares de Ílhavo» - Maputo 1971
GRANDE Enciclopédia Luso Brasileira, Vol.19, pp. 296
LA ROERIE - «Navires et Marins à l’Hèlice», Paris 1946
LAMY, Alberto Sousa - «Monografia de Ovar» 1977 Cap.VII pp.153
LARANJEIRA, E. Lamy - «Furadouro, o Homem e o Mar» - 1984
LARANJEIRA, E. Lamy - «A Ria de Aveiro, Barcos e Artes de Pesca» C.P.C.
LIMA, Magalhães - «Os Povos do Baixo Vouga»
LIMA, Magalhães - «Episódios da minha vida», I Vol
LIVRO nº 10- L 2º do Almoxarifado de Aveiro – Portos Secos
LOPES, Ana Maria - «O Vocabulário Marítimo Português»
LOPES, Francisco - «Olhão Terra de Mistério, de Mariantes e de Mirantes»
LOPES, Helena - «A Safra», ed. Horizonte-1995
LOPES, Prof. António Maria - «Ílhavo»
MADAHIL, António Rocha - «Illiabum»
MADAHIL.António Rocha –Etnografia e História
MARQUES ,Silva- Descobrimentos Portugueses,I
MARTINS, Fernando - «A Configuração do Litoral Português no último quartel
Séc.XIV»
MILENÁRIO DE AVEIRO- Colectânea Documentos Históricos (cood. Rocha
Madahil) – ed CMA 1959
MORENO, Humberto - «No tempo dos Almocreves»
MOURA,Frederico -A Mão do Homem na Paisagem
165
1982
NEVES, Ferreira - «A Confraria de Pescadores e Mareantes - Nª Srª da Alegria -
Sá (1200-1885)»
OLIVEIRA;Veiga –Palheiros do Litoral Português
PERRY, Gèrard - «Uma viagem pelo distrito de Aveiro» 1860
RAMALHEIRA, Guilhermino - Gabriel Ançã
RAMALHEIRA, Guilhermino – A Canção do Mar
REGALLA, Francisco Fonseca - «A Ria de Aveiro»
REIS, Isaac da Fonseca – Museu Profissional da Marinha 1944
RESENDE, Padre - «Monografia da Gafanha»
SAMPAIO, Alberto «Estudos Históricos e Económicos», Vol.II- Póvoas
Marítimas
SEPARATA Arquivo Municipal de Aveiro – 1935
SOUSA, Arlindo de -Vocabulário Entre Douro e Vouga
SILVA, Maria João Marques - «Aveiro Medieval» ed C.M. A-1997
SOUSA, Alberto - «O Traje Popular em Portugal»
SOUTO, Alberto - «Origens da Ria de Aveiro»
TEIXEIRA, João - «Descrição dos Portos Marítimos do Reino de Portugal» 1648
TEIXEIRA, Pinho - «História de Ovar»
166