Costa.t Memorias e Harmonias Da Banda Da Lapa Experiencia Metodologica de Historiadores Em Campo

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    Memrias e harmonias da Banda da Lapa: experincia metodolgica audiovisual de

    historiadores em campo (Ribeiro da Ilha, Florianpolis, 2010-2011)

    Memories and harmonies of the Banda da Lapa: methodological audiovisual experience of

    historians in the field (Ribeiro da Ilha, Florianpolis, 2010-2011)

    Tati Loureno da CostaMestre em Histria, PPGH-UDESC

    Cmara Clara Instituto de Memria e [email protected]

    Resumo: Aspectos metodolgicos e sensveis do trabalho do historiador, com foco nacomposio de acervos audiovisuais sobre narrativas de memria e a produo dedocumentrios para difuso. Parte-se do projeto Memrias e harmonias da Banda da Lapa

    para analisar as indagaes metodolgicas: Como mapear temas e personagens? Comoelencar e selecion-los? Quais as sutilezas e cuidados ao se trabalhar com os colaboradores ecom acervos pessoais? Como traduzir dados de pesquisa em narrativa audiovisual? Emcontinuidade a discusses iniciadas no mestrado sobre especificidades e desafios dacomposio audiovisual de carter histrico com qualidade tcnica e esttica, afinada aocontemporneo regime de udio-visualidade.Palavras-chave:bandas de msica, memria, audiovisual

    Abstract: Methodological aspects and sensitive work of the historian, focusing on the

    composition of audiovisual collections on memory narratives and producing documentariesfor broadcast. Starting from the project Memories and harmonies of the Banda da Lapa to

    review methodological questions: How to map themes and characters? How to list and select

    them? What are the subtleties and care when working with employees and personal

    collections? How to translate research data into visual narrative? It continues discussions

    initiated in the Master about the specificities and challenges of historical audiovisual

    composition keeping technical and aesthetic quality, tuned to contemporary audio-visual

    system.

    Keywords: musical bands, memory, audiovisual.

    Este trabalho tem por objetivo refletir sobre aspectos metodolgicos e sensveis do

    trabalho do historiador, tendo como foco a composio de acervos audiovisuais sobre

    narrativas de memria e a produo audiovisual de documentrios para difuso destes

    acervos.

    Parto da experincia do projeto cultural Memrias e harmonias da Banda da Lapa1,

    1A realizao integrou programa da FUNARTE (Fundao Nacional de Artes/Ministrio da Cultura) voltado

    realizao de Residncias Artsticas e Interaes Estticas em Pontos de Cultura. Vdeos e resultados acessveisem http://www.camaraclara.org.br/pesq_banda_da_lapa.htm. Acesso em 20/09/2011.

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    em que coordenei a pesquisa histrica, ao lado do documentarista Daniel Choma. De

    setembro de 2010 a maro de 2011 acompanhamos as atividades da Sociedade Musical e

    Recreativa Lapa, sediada h 115 anos, no distrito do Ribeiro da Ilha, em Florianpolis. Alm

    da Banda, que se apresenta em diversos locais e eventos da cidade, a Sociedade mantm uma

    escola de formao musical popular, que oferece, gratuitamente, aulas de teoria e prtica

    musical acompanhadas do emprstimo de instrumentos para estudo.

    O objetivo do projeto cultural era reunir elementos da memria da banda - at ento

    dispersos nas experincias rememoradas pelos diversos personagens que fizeram e fazem

    parte de sua trajetria histrica. Pesquisar documentos, fotografias e partituras musicais

    expressivas da historicidade da centenria banda e que estavam espalhados por diversas

    residncias, guardados em lbuns, pastas e caixas de acervos pessoais.

    Foram entrevistados 41 colaboradores e colaboradoras, entre msicos da Banda em

    atividade, antigos integrantes e moradores da comunidade ribeironense. O material foi

    reunido, reproduzido e organizado em acervo digital. E os mais representativos materiais de

    registro e difuso destas memrias e harmonias foram editados em 5 documentrios,

    totalizando 67 minutos. Confeccionou-se, ainda, um Livro-DVD para circulao dos vdeos e

    amostras da pesquisa.

    O relato, anlise e debate sobre as experincias do projeto trazem contribuies

    metodolgicas para pensar a atuao do historiador, em crescente demanda por pesquisas de

    campo e com acervos memoriais, e que tem como um recurso de grande potencial a

    acessibilidade das mdias audiovisuais. Concordo com a proposta interdisciplinar de que:

    Letras, msicas, performances, diferentes contextos de execuo, tudo passa a interessar ao

    historiador que toma o universo musical como expresso cultural de um tempo, o que nos

    coloca, inevitavelmente, em dilogo com outras reas de estudo (BRITO, 2007, p.213).

    Ao buscar as memrias e harmonias da Lapa encontramos um universo desociabilidade ilhu. Pontuado pelas festas tradicionais religiosas e profanas, pela cultura de

    tradio oral e por laos colaborativos comunitrios. Observe-se, em relao a isso, que foi o

    prprio nome da santa padroeira do Ribeiro da Ilha que batizou, em 15 de agosto de 1896, a

    Sociedade Musical Nossa Senhora da Lapa.

    Vale situar que a Freguesia do Ribeiro da Ilha o segundo distrito mais antigo de

    Florianpolis (criado em 1809), abrange uma rea de aproximadamente 52 km2,

    compreendendo 9 bairros/localidades do extremo sudoeste da ilha e concentra uma populao

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    de 20 mil habitantes. Na regio, expressam-se tenses e transformaes contnuas que

    entrecruzam questes acerca do turismo, meio ambiente, ocupao do territrio e

    deslocamento populacional. Com especificidades em relao ao lugar que a comunidade

    ribeironense ocupa em relao cidade de Florianpolis. Ali os modos de viver e as formas

    de sociabilidade mantm ainda bem prximas e presentes as relaes de vizinhana e laos de

    amizade. Em contraponto, no atual momento histrico, esta comunidade vive um processo de

    transformaes nos modos de vida, aonde os contrastes de uma crescente urbanidade da ilha

    vo de encontro s prticas que, historicamente, caracterizaram a localidade: cotidianos

    voltados agricultura, pesca e maricultura.

    Neste espao geogrfico e social, a Banda da Lapa se apresenta como um ncleo de

    convergncia de prticas culturais em torno da msica e das festividades comunitrias.

    Principalmente as festas tradicionais religiosas, que marcam a constituio e manuteno da

    Banda e representam suas principais apresentaes musicais. A exemplo da Festa do Divino e

    da Festa de Nossa Senhora da Lapa (padroeira da comunidade), que ocorrem anualmente.

    Outras comemoraes, em especial o carnaval, com a prtica do Z Pereira, marcam a

    trajetria de apresentaes musicais e de sociabilidade.

    A relevncia histrica e expressividade da atuao da Banda da Lapa no mosaico

    cultural de Santa Catarina representativa para pesquisas sobre a atuao de bandas

    instrumentais desde o sculo XIX, e converge com vrios aspectos identificados em outros

    trabalhos desta vertente (SCHNEIDER,2010; PIRES e HOLLER, 2008). Com destaque para

    o fato de ter surgido e se manter at hoje com participaes voluntrias, motivadas pelo

    sentimento de amizade em torno das celebraes. E promover, ao longo de toda a sua histria,

    a formao musical de novos msicos atravs dos msicos mais experientes, de gerao em

    gerao.

    Algumas anlises a respeito da historicidade do acervo reunido foram apresentadas noartigo A msica como memria na trajetria histrica da centenria Banda da Lapa de

    Florianpolis-SC2. Para o presente momento detenho-me ao aspecto das contribuies

    metodolgicas para o trabalho de campo dos historiadores concentrados na pesquisa com

    histria oral, arquivos pessoais e produo audiovisual.

    Com ateno ao potencial da difuso de narrativas memoriais por mdias audiovisuais,

    2

    Apresentado no 7 Encontro de Msica e Mdia: Msica, memria Tramas em trnsito, realizado naUSP/2011.

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    afinadas ao contemporneo regime de udio-visualidade e continuando algumas discusses

    iniciadas no mestrado (COSTA, 2010; MENESES, 2003; MAUAD, 2008; COUTINHO,

    1997). A anlise desta experincia ser conduzida pelas indagaes metodolgicas: Como

    mapear temas e personagens? Como elencar e selecion-los? Quais as sutilezas e cuidados ao

    se trabalhar com os colaboradores e com acervos pessoais? Como traduzir dados de pesquisa

    em narrativa audiovisual? Enfim, especificidades e desafios da composio audiovisual de

    carter histrico e com qualidade tcnica e esttica.

    Como mapear temas e personagens?

    Durante o acompanhamento das atividades rotineiras da Banda da Lapa, que levaram

    um perodo de dois meses antes das entrevistas, pudemos mapear o universo sensvel da

    Banda, e foi possvel compreender como operam as relaes intergeracionais, os laos de

    parentesco e de amizade entre os membros. Rascunhamos, ainda, um panorama histrico das

    transies e transformaes deste grupo artstico que, devo concordar com um dos depoentes,

    pode ser compreendido como um organismo vivo3!

    Trabalhamos no percurso do que os antroplogos denominam observao participante.

    Sempre com uma caderneta, conversando, trocando idias, tomando notas. Neste momento,

    procuramos conversar com o maior nmero de pessoas. Ao apresentar nossa proposta de

    trabalho era comum recebermos indicaes de pessoas a entrevistar. Ademais, em tais

    momentos, tomvamos contato com vises sobre memria e histria elaboradas por pessoas

    de diversas idades. Ao que vale considerar o que Ecla Bosi observa a respeito da tendncia

    da mente de remodelar toda experincia em categorias ntidas, cheias de sentido e teis para o

    presente (1994, p. 419), um mpeto pelo desejo de explicao tanto do presente quanto do

    passado. Observa-se, por exemplo, variaes sobre as noes de tempo. Para as pessoas dafaixa etria de 15 a 17 anos, algum que integrava a banda h nove anos era considerado estar

    h muito tempo na banda.

    Outra experincia fundamental deste perodo de observao foram as caminhadas pela

    freguesia do Ribeiro da Ilha, acompanhadas de registros fotogrficos e em vdeo. Ora, se

    tnhamos por hiptese e por alguns relatos informais, a ntima relao entre a Banda da Lapa e

    3

    Depoimento de Joo Pedro G. de Souza gravado em vdeo para Tati Costa e Daniel Choma. Florianpolis,09/11/2010. Acervo: Cmara Clara / Projeto Memrias e harmonias da Banda da Lapa.

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    a comunidade de pertencimento do Ribeiro da Ilha, ento, conhecer as paisagens do local era

    imprescindvel para realizar as entrevistas. Afinal, as recordaes, alm de tempo, falam de

    espaos.

    Caminhar pelo bairro, deste modo, permitir-nos-ia compor uma cartografia

    sentimental cujos detalhes perceberamos mais tarde , representariam pontos diferenciais

    no momento da edio do documentrio e da traduo dos dados de pesquisa em narrativa

    audiovisual.

    Na aparentemente descompromissada caminhada, vimos e fomos vistos.

    Identificamos alguns personagens da comunidade que, mais adiante, tornar-se-iam

    colaboradores. Em contrapartida, fomos tambm observados por eles, tornamo-nos, portanto,

    personagens passantes desta comunidade! E algo em comum nos uniu: o interesse pelo

    passado, presente e futuro da Banda da Lapa.

    Quando da elaborao do projeto, as pesquisas preliminares identificaram algumas

    temticas que pautaram as observaes. A partir dos prprios personagens, algumas delas se

    mostraram mais fortes, como a questo da trajetria histrica que narra as motivaes para a

    construo da Banda e os desafios ao longo do tempo para sua manuteno. Com destaque

    para alguns marcos temporais e de geraes na composio do grupo. Vinculado a isso est

    tambm a questo do voluntariado e do envolvimento comunitrio, caracterstica fundamental

    em relao s motivaes e ao espao social de prtica musical onde se inclui a relevncia das

    execues em festas religiosas e no carnaval do tradicional Z Pereira. Do tema do

    envolvimento comunitrio, emergiu tambm a importante caracterstica da formao musical

    realizada pelos prprios msicos, de modo intergeracional. Por sua vez, as questes

    geracionais sinalizam para aspectos de repertrio e explicam, em certa medida, modificaes

    na composio dos integrantes da Banda, ao longo do tempo. Uma temtica que apareceu

    destacada por integrantes de geraes mais jovens da banda foi a diviso de gnero, j que aintegrao de mulheres ao corpo de musicistas s acontece a partir de 2000. A questo

    motivou investigao do tema nas entrevistas e resultou na edio do curta de 4 minutos:

    Toque Feminino.

    Como elencar e selecionar temas e personagens?

    Em relao s temticas observadas acima destaquei aquelas que se mostraram mais

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    significativas e que foram utilizadas como substrato para a elaborao do roteiro de

    entrevistas. Deste modo, os dados de observao poderiam ser transpostos para as entrevistas

    e ganhariam novos coloridos com as narrativas dos depoentes. Alguns debates fundamentais

    da rea da histria oral deram o tom da elaborao do roteiro e da conduo das entrevistas.

    Para as consideraes deste momento do texto, valho-me do dilogo com alguns tericos que

    se dedicaram s questes das sensibilidades e das relaes interpessoais na pesquisa com

    narrativas de memria, como Ecla Bosi e Alessandro Portelli (2004), complementam a

    sensvel abordagem benjaminiana: Quem escuta uma histria est em companhia do narrador.

    A fim de abrir um campo de cumplicidade entre os pesquisadores e colaboradores, o

    roteiro de entrevistas tinha incio com algumas questes de histria de vida, passando pelos

    locais de nascimento dos depoentes, e algumas informaes sobre seus antepassados.

    Seguidos por questes abertas de uma cronologia bsica a respeito da infncia, juventude e

    maturidade. Em mdia as entrevistas duraram de uma hora e meia a trs horas. A conduo

    era aberta, procurando valorizar a composio narrativa e observar nuances tocantes

    construo de si narrada por cada colaborador. A percepo destas elaboraes orientava qual

    caminho seguir com a entrevista, assim como permitia aprofundar-se nas sensibilidades e no

    aspecto qualitativo das narrativas. Uma questo sutil e fundamental para a composio

    audiovisual.

    Um caminho para elencar e selecionar personagens significativos foi observar as

    reincidncias do perodo de aproximao, levando em considerao tambm o aspecto das

    temticas de abordagem. Momento em que pudemos diferenciar trs categorias: msicos

    atualmente em atividade na Banda da Lapa, msicos ex-integrantes da Banda e comunidade

    do Ribeiro da Ilha. Outro caminho complementar foi o mapeamento durante a realizao das

    conversas iniciais, coletando sugesto de indicaes, que eram cruzadas para se chegar a

    novos depoentes.Por se tratar de um projeto destinado s Memrias e Harmonias da Banda da Lapa,

    que tinha um objetivo direto de produo audiovisual, fundamental considerar que as

    entrevistas constituram a base narrativa dos documentrios. Com estes dois focos em mente,

    seguiu-se o critrio de recortar, como depoentes, as pessoas mais antigas que j integraram a

    banda (das quais, poucas ainda esto vivas) e as pessoas que atualmente fazem parte da banda.

    Sempre respeitando, como princpio, o desejo da pessoa em conceder a entrevista.

    Antes de seguir, vale pontuar alguns dados em relao s caractersticas do pblico

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    colaborador. A idade variou entre 15 e 87 anos, dos quais 17 entrevistados tinham at 25 anos

    e estavam acima desta idade. A partir da ficha de entrevistas, onde coletvamos os dados

    pessoais do entrevistado, pudemos observar, o perfil profissional e a escolaridade bem

    variada. O que conclumos, para alm dos dados sistemticos, que a histria da Banda da

    Lapa est intimamente ligada s relaes por redes de sociabilidade. Ou seja, os ingressantes

    na escola de formao musical e que se tornam, posteriormente, msicos da Banda, procuram

    a formao, na maioria das vezes, por indicao de parentes ou amigos.

    a partir da que se revela uma trajetria comunitria para esta organizao social e

    cultural. Neste sentido, pode-se tambm explicar a regionalizao das comunidades de

    abrangncia de atuao majoritariamente na regio do Ribeiro da Ilha ou de outras

    comunidades bem prximas, todas parte da regio de Florianpolis denominada sul da ilha.

    As comunidades da Caieira da Barra do Sul e Tapera so bairros vizinhos ao Ribeiro, e, na

    medida em que nos afastamos desta localidade, encontram-se Carianos e Campeche.

    Dois entrevistados residem fora dessa regio. Um o professor universitrio Nereu do

    Valle Pereira, entrevistado a fim de investigar alguns referenciais histricos acerca da

    significncia da Banda da Lapa para a cidade e da perspectiva histrica sobre as bandas de

    msica e as tradies culturais. De qualquer forma, o professor est ligado e presente no

    bairro atravs do Ecomuseu do Ribeiro da Ilha, sob sua coordenao. O outro um antigo

    Maestro da banda, entrevistado pela sua experincia significativa, tanto na regncia da Banda

    da Lapa, quanto nas duas outras bandas mais antigas de Florianpolis, com destaque para o

    fato citado por ele, da importncia da formao musical, uma qualidade especfica que

    caracteriza a Sociedade Musical e Recreativa Lapa.

    imprescindvel destacar que o objetivo do projeto um critrio fundamental para

    orientar a seleo de temticas e, principalmente, personagens. Se o objetivo uma produo

    audiovisual j algumas opes de linguagem para a narrativa audiovisual que se almejacompor devem guiar a seleo de temas e personagens. Acontece, por exemplo, de fazer

    opes a respeito da caracterstica do narrador, pois bons contadores de histria sero

    fundamentais para o resultado audiovisual.

    Sem desconsiderar a questo da sensibilidade e de alguns acasos escapam a

    metodologias rigorosas, e so felizes sincronicidades. Considero, portanto, um aspecto

    metodolgico crucial o comprometimento com o carter humano do trabalho em campo. A

    questo ficou latente no momento da seletividade em relao aos msicos atualmente em

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    atividade na Banda. Como pensamos que o compromisso humano deva estar acima do prprio

    projeto, e na impossibilidade de estabelecer critrios objetivos, a fim, tambm, de dar conta

    do colorido de tons que mantm a banda em atividade, convidamos a todos, de acordo com

    sua vontade. Claro que isso representou um aumento de nosso trabalho, pois de 25

    entrevistados previamente propostos para o projeto, realizamos o total de 41 entrevistas.

    Trabalho extra que foi gratificado por depoimentos que no poderamos prever numa

    seletividade meramente estrutural ou racional, como o garoto de 15 anos que define a banda

    como um organismo vivo, cujo corao bate no ritmo da percusso. Pelo critrio original de

    seletividade e uma lgica entre idade e experincia, ele provavelmente no seria entrevistado.

    Trata-se de uma questo de sensibilidade. Palavra e critrio metodolgico difcil de

    definir por que no dizer, impossvel de dar um fim. Difcil de ser medida em termos

    quantificveis, mas que deve ser parte integrante da metodologia, em especial neste momento

    de composio de um quadro de dados. O dilogo, neste caso, pode ser citado em foco

    interdisciplinar com a idia de Roland Barthes a respeito do studium (ordem do intelecto) e

    punctum (ordem do afeto) que operam nas relaes entre lembranas e imagens; assim como

    as propostas de Sandra Pesavento (2007) por uma histria das sensibilidades e de educao de

    nossos sentidos, por Joo-Francisco Duarte Jr (2006).

    Outro caso do acaso o encontro com Non, um personagem fundamental das

    memrias e harmonias da Lapa, mas que no havia sido mencionado por nenhum

    personagem. Ele traduz a parte extra-oficial, o esquecimento desejado, o botequim onde a

    banda se reunia quando no tinha sede de ensaios! Este personagem e a temtica do lugar de

    ensaios explicam muito sobre o ambiente de sociabilidade e as caractersticas das prticas

    culturais musicais em torno da Banda da Lapa. O acaso que fez com que ele passasse em

    frente sede da Banda, o local de entrevistas, justamente quando nos despedamos de Edinho,

    um dos colaboradores, ao trmino de sua entrevista. Ele nos apresentou Non, queimediatamente concordou em ceder-nos entrevista. Foi ele quem nos permitiu o acesso a

    vrias fotografias memorveis daquele perodo, que ele celebrava penduradas nas paredes do

    bar, ao mesmo tempo, um arquivo privado e pblico!

    Sutilezas e cuidados ao trabalhar com os colaboradores e com acervos pessoais

    Guardei para esse momento a narrativa sobre a primeira entrevista realizada no

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    projeto, que seguiu uma unanimidade, sinalizada repetidamente: Sr. Alcio Heidenreich. De

    fato, foi um personagem parte de representatividade significativa: neto de um dos

    fundadores da Banda, ingressou como msico em 1951 e tocou at 2005, quando se afastou

    por motivos de sade. Ele guarda criteriosamente diversos documentos e fotografias da Banda

    e mantm sua pasta de partituras, uma testemunha do repertrio de mais de meio sculo. Com

    uma memria visual impressionante, foi colaborador importante para o processo de

    organizao dos materiais de acervo. E na indicao dos contatos de alguns msicos antigos

    que se mudaram do Ribeiro da Ilha, os quais, por estarem longe dos olhos, tinham sido

    esquecidos de serem sugeridos. A exemplo do Maestro Mario Joo Daniel, que mantinha a

    partitura do Ressurgimento. Vale uma pausa do texto para detalhar a experincia para pensar

    sobre acervos pessoais.

    Alcio conta que em 1951 a Banda no pode tocar na festa da padroeira por falta de

    instrumentos. A mobilizao comunitria e a velocidade do aprendizado dos jovens msicos

    compem uma narrativa digna de cinema, e j no ano seguinte, em 1952, a Banda inaugura

    sua retomada de apresentaes exatamente na Festa da Nossa Senhora da Lapa, executando

    um dobrado especialmente composto para a ocasio: Ressurgimento, de autoria do ento

    maestro regente Braslio Machado.

    Ao iniciarmos a pesquisa documental, em busca de partituras significativas para a

    memria da Banda e, em especial, de composies originais de autoria de seus integrantes,

    soubemos da existncia do dobrado atravs da narrativa de Alcio. Ao longo das entrevistas

    identificamos que apenas os msicos mais antigos sabiam da existncia do dobrado e nem

    todos sabiam ter sido composto especialmente para a Banda. Foi ento que contatamos o

    Maestro Mrio Joo Daniel, que regeu a Banda nas dcadas de 1980-90. Ele havia guardado a

    partitura completa em seu acervo pessoal e gentilmente a reproduziu, para que o dobrado

    pudesse ser reintegrado ao repertrio. De fato, foi apresentado no jantar anual da SociedadeMusical e Recreativa Lapa, em novembro de 2010.

    Vale ressaltar que a garantia de uma perenizao das msicas que marcam a memria

    deste grupo musical ao longo dos tempos est profundamente vinculada manuteno dos

    acervos pessoais, como testemunha o caso do Ressurgimento. O passeio pelos acervos

    pessoais permitiu identificar tambm um Hino Banda do Ribeiro (como a Lapa conhecida

    at hoje em vrios lugares da cidade) e o costume, poca do regente Braslio Machado, da

    composio de msicas inspiradas nos personagens da prpria histria da Banda da Lapa.

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    Encontramos, por exemplo, uma marcha religiosa nomeada D. Tide (a me de Alcio), um

    dobrado em nome de seu av, Paulo Pedro Heidenreich, um dos fundadores da Banda, e o

    Hino do Carlito (seu irmo).

    Compe parte da experincia de Alcio a atuao como um guardio da memria da

    Banda da Lapa. No ano 2000 ele escreveu o texto Ribeiro da Ilha e suas bandas. Cuja

    narrativa praticamente a mesma quando narrada oralmente! Uma vez mais devo lembrar os

    j citados autores que se dedicaram temtica da memria associada narrativa, esta forma

    artesanal de comunicao, considerando a experincia subjetiva daquele que narra: Assim se

    imprime na narrativa a marca do narrador, como a mo do oleiro na argila do vaso.

    (BENJAMIN, 1987, p.205).

    Trata-se de narrativas que contam como se tivesse sido vivida uma experincia sobre

    um tempo distante, que nomeei como mtico, s conhecido por ter sido ouvido contar. Cuja

    compreenso vem amparada por trabalhos com as mincias que envolvem os processos de

    rememorao e de composio narrativa. justamente a narrativa que carrega o vestgio de

    presena da experincia longnqua. Por tratar de histrias ouvidas e re-ouvidas, narradas,

    transcritas, re-escritas, acabam por ser to prximas das pessoas que as contam, mesmo que

    vividas por avs ou geraes ainda mais distantes com as quais o narrador nem teve contato

    pessoal, mas que podem ser narradas como se tivessem sido vividas, somente por terem sido

    ouvidas. Afinal, uma vez mais o clssico autor: O narrador retira da experincia o que ele

    conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas

    experincia dos seus ouvintes. (BENJAMIN, 1987, p.201)

    A narrativa de Alcio registrada em vdeo impressiona pela fluncia e propriedade.

    Sua fala a de quem a voz autorizada para contar e re-contar, e assemelha-se quase que

    literalmente a um registro escrito por ele h uma dcada.

    Tanto o trabalho com depoentes, quanto com os arquivos pessoais exigemcomprometimento. Se uma foto foi emprestada, a devoluo deve ser feita no menor tempo

    possvel. Uma proposta metodolgica facilitada pelas novas tecnologias o recurso cmera

    digital. Para as incurses em campo, levvamos nossa PENTAX K-7, equipada com lentes

    macro e 50 mm e procurvamos, sempre que possvel, reproduzir os acervos pessoais no

    prprio momento das entrevistas. Quando era o caso de um acervo muito amplo, cuja

    reproduo levaria muito tempo, fazia-se necessrio leva-lo emprestado. Neste caso, era

    preenchido um termo de compromisso assinado por ns, onde detalhvamos os materiais

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    levados e a data para a devoluo, reservando um envelope especfico para armazenamento e

    transporte, exclusivo de cada colaborador.

    Ocorre que quando trabalhamos com acervos pessoais, encontramos acervos hbridos,

    com tipologias variadas de materiais. E com alguns pequenos pedaos de papis ordinrios,

    aparentemente insignificantes. Mais uma vez, uma questo sutil de sensibilidade, para se

    deixar impregnar pela curiosidade e correr o risco de ter revelado, por eles, informaes

    preciosas. Trago o caso do acervo de Alcio Heidenreich onde nos deparamos com a papeleta

    cuja fotografia se tornou a capa do Livro DVD: so as entradas de diversas marchinhas de

    carnaval, usadas durante as execues de Z Pereira.

    Historicizar tal pedao de papel, cuidadosamente desenhado e guardado, vale um

    estribilho deste texto, por abrir um leque para processos mnemnicos musicais e das

    caractersticas de estruturas relativamente parecidas que compem as marchinhas de carnaval.

    Para alm disso, este vestgio foi selecionado para a capa porque, historicamente, o carnaval

    marca as memrias e harmonias da Banda da Lapa e foi o que deu reconhecimento a este

    grupo dentro do mapa musical de Florianpolis. Foi como Banda do Z Pereira que a Banda

    do Ribeiro da Ilha, freguesia longnqua, ganhou reconhecimento no centro da cidade. A

    papeleta , ainda, representativa da relao com a prtica musical de ouvido ou de partitura,

    que marca as diferenas geracionais da Banda.

    Esta brevssima narrativa a respeito da papeleta ordinria, j serviu como preldio

    quarta questo, da traduo de dados de pesquisa em narrativa audiovisual. Onde, uma vez

    mais, devem se unir as ordens do intelecto e do afeto simultaneamente, como opo

    metodolgica.

    Como traduzir dados de pesquisa em narrativa audiovisual?

    O que contar uma histria? E o que contar a histria? (GAGNEBIN, 1994, p.2).

    A interrogao de Jeanne Marie Gagnebin bem apropriada ao momento da composio

    narrativa audiovisual. No momento da edio deve-se re-olhar, distanciado espao-

    temporalmente, todas as imagens e sons coletados no campo. o momento de caminhar

    novamente pela freguesia, atravs do que se registrou dela. O que se v no apenas uma

    igreja, algumas casas, ou uma rede de pesca pendurada numa rvore sobre o mar. Aps a

    pesquisa, caminha-se cumprimentando pelo nome as senhoras que esto na janela, e os

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    homens que jogam domin na pracinha. Sabemos quem o Cid Heidenreich, que, segundo a

    plaquinha, foi quem plantou aquela rvore que d suporte tarrafa. E podemos imaginar que

    esta rede pertena ao seu filho Paulinho, que j tocou trompete na Banda e hoje cultiva ostras.

    Um terreno cheio de rvores por onde passvamos desavisados, descobrimos ser um

    lugar de memria, a grutinha onde fica a imagem da padroeira do Ribeiro da Ilha, Nossa

    Senhora da Lapa, santa que batizou a igreja onde a Banda, h mais de um sculo, faz pose

    para suas fotos oficiais.

    Portanto, a presena de tais imagens nos documentrios no diz respeito, meramente,

    ao aspecto geogrfico ou paisagstico, mas so resignificadas pelos trajetos sonoros da prpria

    Banda ao longo dos tempos.

    Alguns caminhos da Histria Visual sinalizam para o potencial da historiografia

    incorporar possibilidades de escrita que agreguem imagens, sons e outras narrativas para alm

    do texto escrito. (MENSES, 2003; MAUAD, 2008; CHOMA, 2010). Os recursos tcnicos e

    de linguagem das mdias audiovisuais, como registro e expresso de narrativas, oportunizam,

    alm da perenizao temporal, trnsitos no circuito cultural entre diversas geraes. Em

    relao memria social, tal recurso promove, alm da perenizao temporal, uma ampliao

    dos usos e dos sentimentos de apropriao nas identificaes do tempo presente.

    Neste sentido, vale agregar ao processo de produo historiogrfica em audiovisual,

    ferramentas e insights advindos da interao entre as reas do saber, ao que considero de

    grande contribuio as propostas para a narrativa cinematogrfica pensadas pelo

    documentarista brasileiro Eduardo Coutinho em dilogo com o cineasta iraniano Abbas

    Kiarostami (COUTINHO, 1997; COUTINHO, 2003; KIAROSTAMI 2004). Ambos levam

    em conta a simplificao da produo cinematogrfica em relao a equipes e aparatos

    tcnicos de produo, valorizando o recurso magia e ao mistrio da narrativa sensvel que

    composta no momento da edio.Para dar conta das especificidades e desafios da composio audiovisual de carter

    histrico e com qualidade tcnica e esttica as escolhas de edio tem que ser alm de

    racionais, tm que quebrar um pouco com as lgicas de anlises muito objetivadas de dados

    de pesquisas e depoimentos. Estas so primordiais, so princpios, mas os fins das escolhas

    devem ter fora esttica. Bons depoimentos, que por fatalidade tenham sido captados sem

    qualidade tcnica, tero de ficar de fora. Personagens, que num rol de representatividade no

    figurem como principais, podero ser escolhidos em virtude de uma fluncia narrativa.

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    H ainda as questes de linguagem, no cinema conta-se uma histria em audiovisual.

    Para o modo como se conta essa histria h vrios caminhos a seguir. Apostamos no poder da

    performance narrativa. Na proposta de que os narradores da vida real so bem melhores que

    qualquer narrador dito profissional, que narre um texto previamente escrito. Dizemos no a

    discursos explicativos de vozes autorizadas. Uma ou outra lacuna, pode ser completado por

    um texto, mas somente o mnimo necessrio. H que se compor o audiovisual pensando que o

    publico que a assiste tambm um pblico criativo, que se apropria da obra, que compe com

    ela a partir de suas prprias referncias, de suas experincias, de suas memrias e de sua

    imaginao. Razes pelas quais qualquer iluso de objetividade, verdade, realidade fica

    relativizada sem maiores crises do que aquelas que j nos foram colocadas pela virada

    epistemolgica da histria (CHARTIER, 2002; ALBUQUERQUE JR, 2007; SARLO 2007).

    A lio, neste caso, vem da msica, cuja estrutura meldica, harmnica e rtmica

    dada pela combinao de sons e pausas. Uma interessante obra audiovisual deve, do mesmo

    modo, compreender vazios, lacunas sensoriais a fim de harmonizar a fruio do pblico.

    Por tudo isso, que exemplificamos a produo de alguns curtas extras, como o

    Ressurgimento que narra o caso do dobrado reincorporado ao repertrio e o Toque Feminino,

    que aborda as relaes de gnero. Pois representavam temticas importantes a serem tratadas,

    no entanto, no ficaram adequadas rtmica narrativa do documentrio.

    A ltima considerao a respeito da mdia audiovisual diz respeito ao envolvimento

    entre a pesquisa e produo do documentrio e o retorno comunidade de onde se parte e

    para a qual se deve, em primeiro lugar, retornar.

    Banda da Lapa apresenta-se no Cine Som da Lapa, evento de lanamento dos documentrios.Centro Social Comunitrio do Ribeiro da Ilha. Maio de 2011.

    Foto do acervo da Cmara Clara.

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    O olhar documentrio audiovisual a respeito da trajetria histrica da Banda da Lapa,

    percebida sob seu pertencimento comunitrio ao Ribeiro da Ilha contribuiu para uma

    formao de pblico e foi facilitador da fruio audiovisual. Vale relatar a emocionante

    experincia da exibio do documentrio no evento Cine Som da Lapa, cujo pblico era

    diverso: familiares e pessoas prximas aos msicos da banda, alunos da escola de formao

    musical da Banda e seus parentes, idosos moradores do Ribeiro da Ilha, jovens msicos e

    produtores culturais de diversos grupos de Florianpolis, professores universitrios.

    Ao longo de toda a exibio, houve uma surpreendente interatividade entre o pblico e

    a narrativa audiovisual, via-se pessoas cantando junto msicas da trilha sonora, dialogando

    com as imagens e narrativas. Em vrios momentos, aplausos aos depoimentos mais

    emocionantes ou queles carregados de significncia comunitria. A experincia de um

    pblico to interativo e dialgico com uma exibio audiovisual era praticamente indita, na

    carreira de exibies j vivenciadas por mim e Daniel Choma. Uma das explicaes para essa

    reao de interatividade pode ser traduzida pela fora do audiovisual para a composio de

    auto-imagens e pelo potencial em gerar identificao e sentidos de pertencimento. Questo

    benjaminiana...

    Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esferado discurso vivo e ao mesmo tempo d uma nova beleza ao que estdesaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda umaevoluo secular das foras produtivas. (BENJAMIN, 1987, p.201)

    A necessidade de um registro da memria surge em face do afastamento das pessoas

    que representavam uma memria viva da Banda, aquelas que viveram as experincias e

    representam guardies da memria de tais eventos. Em suas rodas de conversas, por costume,

    mais do que por inteno, promoviam essa atualizao da memria, essa passagem de gerao

    a gerao. Tais espaos sociais de transmisso, atualizao e, por que no dizer, reinveno de

    memrias tornam-se escassos no final do sculo XX, e o registro mediado passa a ser mais

    sentido como necessrio, a fim de perenizar efmeros sentidos para as lembranas do passado

    vivido. Mesmo porque, de uma gerao a outra, modificam-se as formas de sociabilidade e de

    dilogo.

    Tal emergncia temtica sinaliza para a necessidade de qualificar e tornar acessvel o

    dilogo entre as geraes de uma cultura da tradio oral e outras de uma cultura que

    poderamos nomear como tradio mediada, principalmente audiovisual, h que se realizar

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    uma mediao cultural ou a prpria traduo de meios, ou de mdias!

    Dedinha, em performance na tumbadora, captado pela cmera filmadora digital.Ribeiro da Ilha. Primavera de 2010.

    Foto do acervo da Cmara Clara.

    Na proposta pelo o uso dos contemporneos meios audiovisuais para alm de objetos

    de pesquisas ou instrumentos de registro, mas como ferramentas de difuso dos

    conhecimentos, cabe problematizar o fato de que os documentrios e o prprio Livro-DVD

    resultantes do projeto cultural aqui narrado tornar-se-o um documento/monumento que, por

    certo momento, reuniu uma determinada memria documental, seleo, edio e

    conseqente esquecimento de outras. Foi, por certo, uma mediao social, cultural e tcnica!

    E revela-se um elemento para reflexo no coro do debate entre memrias e experincias

    mediatizadas (FISCHER, 2008; HUYSSEN,2000).

    A ttulo de concluso deste breve texto, vale destacar que dei mais ouvidos s

    experincias empricas vividas no processo de composio de um acervo memorial, a fim de

    trazer aos leitores e leitoras as especificidades de um tema e uma memria local, e no

    hegemnica. A fim de observar, com mais acuidade as operaes de memria que se

    processam com a ao de lembrar e com a presena das lembranas coladas ao esprito.

    Numa perspectiva de abordagem das relaes entre as lembranas singulares e ao

    mesmo tempo mltiplas das pessoas em interao com o contexto dos indivduos e com suas

    comunidades de pertencimento. Vale a proposta de Paul Ricoeur de uma relao dinmica

    constantemente em movimento (2007, p.141) entre o eu (memria individual), os prximos

    (memria compartilhada) e os outros (memria coletiva ou pblica). J que, como memria

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    compartilhada, a histria oferecer esquemas de mediao entre os plos extremos da

    memria individual e da memria coletiva. (BOSI, 2004, p. 141)

    Considera-se o valor do registro audiovisual, quando burilado na linguagem prpria

    desta narrativa, para o trnsito no circuito cultural entre diversas geraes. Conclui-se que os

    registros de narrativas de memria, mediados em audiovisual, atuam positivamente sobre a

    auto-estima e valorizao de temticas emergentes locais, diante de homogeneizaes

    disseminadas na cultura de massa globalizada. Outras minuciosas anlises poderiam ser feitas

    sobre as obras e os documentos do acervo propriamente dito. De qualquer modo, reunido e

    difundido o acervo, est lanado no espao, para reverberar outras exploraes e escutas

    possveis!

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