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Estudo de caso.
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BUROCRACIA E PODER: UM ESTUDO DE CASO EMUMA EMPRESA DE CRDITO AO CONSUMIDOR DO
ESTADO DE SO PAULO
ResumoNeste artigo aplicamos a Teoria de Michel Crozier,
importante socilogo francs, ao estudo do
funcionamento de uma empresa de crdito ao
consumidor do estado de So Paulo. Os pressupostos
da anlise crozeriana embasam-se no conceito de
que as regras e estruturas organizacionais operam de
modo indireto e no determinam o comportamento
dos atores sociais, mas induzem jogos de poder e
comportamentos. Os atores sociais podem colaborar
ou no, buscando negociar melhores condies de
insero no sistema, para obter um maior controle
de recursos, atendendo aos seus objetivos e
interesses pessoais. No entanto, ao lutarem pela
realizao desses interesses, os atores devem jogar a
partir das opes fornecidas pelo sistema e, dessa
forma, estaro, mesmo dentro de um nvel mnimo,
cumprindo em parte os objetivos organizacionais.
Mostramos como, nessa organizao, os interesses
de um grupo especfico se sobrepem aos da prpria
organizao que, adotando um sistema ineficaz para
garantir interesses de um grupo de atores sociais
especficos e ganhos a curto prazo, no considerou o
planejamento a mdio e longo prazos e quase foi
falncia.
Palavras-Chave: burocracia; organizaes; poder.
AbstractIn this article we define social actors interests as a
complex set of predisposition embracing goals,
values, desires, expectations and other orientations
and inclinations that lead a person to act in one
direction rather than another. Organizations rules
define areas of concern that social actors wish to
reserve or enlarge, positions that they wish to protect
or achieve. In our article we show that conflict of
interest arises whenever interests collide. We show in
our study that an organization is a political arena that
define areas where social actors interests collide.
Fortunate social actors are able to control
fundamental resources for the organization they
belong. They have some kind of knowledge or know-
how the organizational group need for its survival. In
this case, these social actors earn more power in the
organization and they are able to negotiate
advantages and benefits. Our study show how
information systems can be used for a group of social
actors to preserve their interests and to increase its
power in the organization.
Key words: bureaucracy; organizations; power.
HLIO BATISTAMestrando pelo Programa de Administrao da UNINOVE
ISABELLA FREITAS GOUVEIA DE VASCONCELOSDoutora em Administrao de Empresas -EAESP/FGV e professora do Programa
de Mestrado Profissional em Administrao da UNINOVE
1. A Teoria da Burocracia e os pressupostos da Anlise dePoder de Michel Crozier
No seu estudo sobre a burocracia francesa,Crozier mostra como as caractersticas dasorganizaes que ele estuda (as regrasimpessoais, a centralizao do poder dedeciso, a estratificao dos indivduos emgrupos homogneos e fechados etc.) induzemcomportamentos nos grupos que reforamainda mais estas mesmas regras e estruturas,em um crculo vicioso. Tal fato ocorreindependentemente da vontade dos grupos demudar ou no o sistema. (CROZIER, 1964)
Crozier salienta ainda uma outra funoda burocracia, especialmente marcante naFrana: evitar as relaes pessoais eespontneas, suscetveis de produzir conflitos.A regra estrutura as relaes entre os grupos,reforando a impessoalidade na organizao.Desta forma, mesmo se a regra provocadisfunes, a despersonalizao e aestruturao das relaes asseguram ofuncionamento do sistema, evitando conflitos.Segundo o autor, independentemente dosproblemas e disfunes do sistema, aburocracia seria um sistema que teriafuncionalidade e lgica prprias; seria umasoluo organizacional que tentaria evitar aarbitrariedade, o confronto entre os indivduose grupos e os abusos de poder. Crozier foca aorganizao como um sistema que estruturajogos de poder entre os atores sociais,expresso utilizada dentro do paradigmaweberiano para expressar a concepo do serhumano enquanto ser analtico, que ageestrategicamente, de modo poltico, a partir daanlise das opes em jogo, podendo sempreescolher mais de uma alternativa de ao,desde que esteja disposto a pagar o preo desuas escolhas dentro da estrutura do jogosocial. Adota-se o pressuposto daracionalidade limitada de Simon (1947), bemcomo o conceito de que o homem nonecessariamente precisa estar consciente de
suas estratgias de ao. Alguns elementos daanlise crozeriana so os seguintes:
a) Ao coletiva
Para Crozier, a ao social em grupo no um fenmeno natural. Trata-se de umconstruto social. A organizao umaestruturao da ao coletiva que visa aoferecer solues especficas para aconcretizao de objetivos do grupo social. Asregras burocrticas correspondem a soluescriadas por atores sociais relativamenteautnomos, que buscam regular e instituir acooperao a fim de atingir objetivos e metascomuns ao grupo social. As soluesorganizacionais so contingentes (indeter-minadas e arbitrrias), mudam com o tempo eso relativas a cada grupo organizacional.Generalizaes e modelos so limitados. Deve-se sempre observar as regras, caractersticasculturais e os jogos de ator de cada sistemaorganizacional.
b) Efeitos inesperados (effets pervers)
Os efeitos inesperados correspondem descrio das disfunes burocrticas feitaspor outros autores como Merton (1950),Gouldner (1954) e Selznick (1955). Essesefeitos inesperados devem-se ao fato de queexistem, nas organizaes, indivduos cominteresses mltiplos e divergentes, vriasracionalidades e lgicas de ator igualmentevlidas. No sistema organizacional,cotidianamente, os atores sociais tomaminmeras decises de acordo com seusinteresses especficos. Cada deciso, em suaesfera, perfeitamente racional, dentro dopressuposto da racionalidade limitada (o queno quer dizer necessariamente consciente).O conjunto de decises, no entanto, produzincoerncias e incertezas no sistemaorganizacional. So estes os efeitosinesperados que, segundo Hischmann (1970),
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so compensados pelo slack organizacional ou
reserva de recursos de que a organizao
dispe e pode utilizar para compensar as
incoerncias do sistema.
c) Problemas da ao coletiva
Como vimos, para Crozier as
organizaes so solues institucionalizadas
e construdas por um grupo com interesses
comuns. Trata-se de solues artificiais que
geram problemas de coordenao (os efeitos
inesperados ou disfunes). A obteno da
cooperao entre diferentes atores sociais
um dos problemas principais da organizao.
Para o autor, a integrao dos indivduos e
grupos organizao se faz normalmente de
trs formas:
coero quando os atores sociais se
submetem s regras organizacionais por serem
obrigados a tanto ou por se submeterem s
presses do sistema organizacional;
manipulao afetiva ou ideolgica;
negociao entre os grupos organizacionais.
d) Conceito de organizao
A organizao um sistema de jogos
estruturados. As regras e estruturas
organizacionais operam de modo indireto e
no determinam o comportamento dos atores
sociais; no entanto, induzem jogos de poder e
comportamentos. Os atores sociais podem
colaborar ou no, buscando negociar
melhores condies de insero no sistema e
obter um maior controle de recursos,
atendendo aos seus objetivos e interesses
pessoais. Entretanto, ao lutarem pela
realizao desses interesses, os atores sociais
devem jogar a partir das opes fornecidas
pelo sistema e, dessa forma, estaro, mesmo
dentro de um nvel mnimo, cumprindo em
parte os objetivos organizacionais.
e) As incertezas e o poder
O controle dos recursos organizacionais distribudo de modo desigual. As organizaesdependem de recursos materiais, tecnolgicose de certos tipos de competncia tcnica para oatingimento de suas metas formais. Algunsdestes recursos so fundamentais para ofuncionamento do sistema e os atores sociaisque os controlam detm maior poder estesrecursos constituem zonas de incertezapertinentes. Os atores sociais que as controlam,ou seja, que possuem as competnciasfundamentais para o funcionamento elucratividade da organizao, podem decidircolaborar e, assim, disponibilizarem essesrecursos, competncias tcnicas econhecimento. Sempre existe, no entanto, aameaa velada de estes profissionais nocolaborarem e privarem o sistema de seusrecursos fundamentais. Os atores sociais que oscontrolam, na organizao, podero impor-seaos outros, influenciando os rumos do sistemaorganizacional, ganhando mais poder.
No entanto, as situaes so contingentese mudam. As zonas de incerteza de hoje no soas mesmas de amanh. Quando uma tecnologia substituda e um novo sistema implementado,ou quando ocorre a mudana organizacional eum novo sistema de regras e normas criado.Novas competncias tornam-se essenciais paraa organizao, e o novo sistema de regras devecontemplar o novo sociograma (alianaspolticas e coalises locais), ou seja, conferirmaior poder aos indivduos que detm osrecursos essenciais para o funcionamento daorganizao. A mudana organizacionalredistribui as zonas de incerteza pertinentes e ocontrole de recursos, provocando resistnciados que se vem privados deles. A disputa poresses recursos na organizao acaba porconstituir um jogo de soma zero: como estesso limitados, quando alguns ganham, outrosnecessariamente perdem. A direo daorganizao deve gerir a mudana com
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cuidado, negociando solues com os atores
organizacionais que continuam detendo poder
no sistema. Estas solues so sempre
contingentes e especficas, porque os cenrios e
a distribuio de poder mudam. O impacto da
resistncia mudana dos atores sociais ser
proporcional sua importncia para o
funcionamento do sistema como um todo.
f) A mudana organizacional e a aprendizagem
A mudana, dentro da perspectiva
crozeriana, no a implantao de um modelo
mais racional, uma vez que todas as
racionalidades so igualmente vlidas e
correspondem a interesses de jogo concretos.
Para o autor, a mudana um processo de
criao coletiva por meio do qual os membros
de uma dada coletividade inventam e fixam
novas maneiras de jogar o jogo social da
cooperao e do conflito, negociando
interesses e instaurando uma nova estrutura e
uma nova ordem social. No se trata de uma
mudana tcnica, mas da instaurao de novos
jogos polticos, novas formas de controle de
recursos, hbitos e prticas sociais que
favoream a implementao efetiva da nova
tecnologia, ferramenta ou modelos de gesto.
Trata-se da construo de um novo sistema
organizacional.
A contradio fundamental que o novo
sistema s pode ser construdo a partir do
sistema anterior, com o qual, no entanto, deve
romper ao menos parcialmente, para instaurar
uma nova distribuio de recursos e poder. O
sistema anterior fornece a maioria das
competncias disponveis para a criao do
novo. Deve-se, pois, coordenar a transio dos
atores sociais para o novo sistema
organizacional, negociando solues com os
diversos grupos de atores sociais, dependendo
da importncia dos recursos que eles
detenham. O modelo poltico de gesto de
pessoas busca inspirao neste tipo de
anlise. A implementao de uma novatecnologia, por exemplo, implica mudana dehbitos, comportamentos e prticas sociais.Em uma organizao onde os indivduos seestruturam em grupos fechados e feudos eno trocam informaes, no havendo de fatointegrao horizontal, a implementao de umsistema integrado de gesto (EntrepriseResource Planning ERP), por exemplo, podeser v, caso no se estruturem novas regrasorganizacionais e sistemas de recompensa quefaam ser um bom negcio para os atoresorganizacionais mudarem o seucomportamento e suas estratgias anteriores. Anova tecnologia pode ser implantada,viabilizando uma comunicao eficiente,porm os atores organizacionais podem resistir sua implantao, no disponibilizando asinformaes necessrias ao sistema.
Na impossibilidade de controlar a todos otempo todo, o sistema pode, ao menos emalguns setores, no ser efetivamente utilizado,existindo apenas para constar, para ingls ver,como descrevem Caldas e Wood Jr. (1999) emsuas pesquisas. Os estudos do Neoinsti-tucionalismo aplicado s organizaes relatama funo da ferramenta, modelo de gesto outecnologia que existe apenas para adequar aorganizao s presses isomrficas de seuambiente institucional, auxiliando a obterlegitimidade externa. A inovao tecnolgica ea implementao efetiva de sistemas deinformao, gerando aprendizado de circuitoduplo (questionamento do sistema anterior,seu redesenho e criao de um sistema novo),dependem da criao de um sistema de regrasque favorea a mudana comportamental dosatores sociais, a partir de seus interessesestratgicos. S assim o sistema convencionalanterior poder ser questionado e um novosistema proposto. Sem inovao organizacionalno se efetiva a inovao tecnolgica e aimplementao de ferramentas administrativase modelos de gesto novos. Conforme mostram
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as pesquisas de Shoshana Zuboff (1984) sobre
burocracias, no caso de o grupo organizacional
resistir inovao tecnolgica, no ocorrer o
aprendizado em circuito duplo e a tecnologia
cumprir apenas sua funo de mecanizao
(automatizar procedimentos) e no sua funo
informacional (gerar informao nova).
2. Metodologia do estudo
Nesta pesquisa, fez-se um estudo
etnogrfico, pela observao participante
numa organizao. O estudo durou 3 meses e
foram entrevistadas 20 pessoas por meio de
entrevistas semidiretivas de, em mdia, uma
hora e meia. Estas entrevistas no foram
gravadas.
Analisaram-se tambm documentos da
Polcia Militar para complementar as
informaes obtidas pela observao
participante e entrevistas. Trata-se de uma
pesquisa longitudinal, que procurou
reconstituir a histria da organizao nos
ltimos 20 anos. O mtodo utilizado na coleta
de dados foi o da Grounded Theory, tambm
conhecido como mtodo da Anlise
Comparativa Contnua, desenvolvido pelo
socilogo norte-americano Anselm Strauss e
adaptado a estudos qualitativos de carter
etnogrfico. Strauss atribui esse nome ao
mtodo porque, ao produzir uma teoria, o
pesquisador reformula suas hipteses e
concluses na medida em que retoma e atualiza
o seu material de pesquisa, comparando
continuamente suas categorias de anlise. O
pesquisador mantm um caderno de pesquisa,
em que anota as informaes pertinentes,
classificadas em categorias, comparando
constantemente os fatos observados. De forma
progressiva, ele constri uma teoria que dever
explicar todos os fatos observados at o fim do
trabalho de campo. Neste mtodo, no h
hipteses anteriores coleta de dados. O
pesquisador inicia sua pesquisa de campo com
um tema, algumas premissas e idias, mas no
com hipteses fechadas. A construo da teoria
se faz progressivamente, medida que o
pesquisador observa novos fatos e desenvolve o
seu dirio de pesquisa. (STRAUSS, 1955;
STRAUSS, 1991)
O mtodo da Anlise Comparativa
Contnua se aplica a diversos tipos de anlises
qualitativas observaes participantes,
entrevistas, anlise de documentos e outros. Na
anlise, so levados em considerao todos os
elementos que possam contribuir para a
compreenso do universo simblico da
organizao e das interaes entre os atores
sociais. Strauss (1955, p.134) descreve quatro
etapas para este mtodo: comparar os fatos
relativos a cada categoria, integrar as categorias
e suas propriedades, delimitar a teoria e
escrev-la.
Considera-se, nesta metodologia, que o
observador externo deve procurar identificar as
formas de expresso caractersticas da viso de
mundo de cada grupo organizacional. Para
tanto, o pesquisador dever observar:
a prtica de ritos coletivos;
a perpetuao de mitos ou histrias sobre a
organizao, em particular sobre aqueles que
detm o poder;
a existncia de tabus;
as normas de comportamento e como cada
grupo reage a elas;
os valores e a tica que orientam a ao
concreta dos diversos grupos, muitas vezes
opostos aos divulgados oficialmente;
as comunicaes oficiais e os smbolos
associados a elas.
Linda Smircich (1983a, 1983b) trata deste
tipo de pesquisa salientando que o
conhecimento gerado por esta metodologia
pode ser classificado como conhecimento
subjetivo. Neste tipo de mtodo, as relaes
sujeito/objeto so substitudas por relaes
17
sujeito/sujeito, em que o pesquisador focalizasua ateno nos significados partilhadosintersubjetivamente, sob o pressuposto de queo conhecimento no independente dopesquisador. Este ltimo apreende assignificaes das aes do grupo por meio desua interao com os membros da organizao.Desta forma, ele tem uma viso global dossignificados e imagens partilhados pelosmembros do grupo organizacional.
importante ressaltar que um estudo decaso traz informaes vlidas, permitindoaprofundar certos aspectos de uma teoria ourefut-la, mas, por no obedecer a tcnicasestatsticas, no se pode fazer afirmaesgenricas. (SMIRCICH,1983a; 1983b)
A metodologia da Anlise ComparativaContnua se insere nos pressupostos doparadigma interpretativo definido por Burell &Morgan (1994), dentro da tradio sociolgicaweberiana. Este mtodo compatvel comcorrentes tericas como o InteracionismoSimblico e estudos culturais e etnogrficos,que seguem uma tradio fenomenolgica depesquisa.
3. Apresentao da empresa estudada
A empresa estudada Alpha era umaempresa de prestao de servios de crdito paralojas de departamento, lder de mercado. Estaempresa detinha, at o fim dos anos 80,aproximadamente 80% do mercado paulista, comum quadro de colaboradores em torno de 1500empregados; para a demanda extra (fim de ano eoutros perodos) eram contratados empregadostemporrios. Em 1994, praticamente foi falncia, demitindo 60% do seu quadro decolaboradores, que j estava reduzido aaproximadamente 1200 funcionrios. Atualmentea empresa deixou de atuar no mercado, pois foiabsorvida pelo Banco controlado pelos mesmosacionistas, e transformada em seu departamentode crdito pessoal.
Realizamos uma pesquisa longitudinal, na
qual estudamos a histria da empresa desde o
inicio dos anos 80 at 1994. Narraremos agora
como era o seu funcionamento nos anos 80,
quando detinha 80% do mercado de crdito
paulista.
3.1. O funcionamento da empresa nos anos 80
A prestao de servios de crdito para as
lojas de departamentos obedece ao que foi
estabelecido em contrato entre a prestadora de
servios de crdito, em nosso caso a empresa
Alpha, e as lojas interessadas nesse tipo de
servio. Neste contrato estava estipulada uma
taxa de servios, normalmente de 8% a 10%,
calculada com base no valor do crdito
concedido ao consumidor e cobrada sobre o
total mensal das compras a crdito, ou seja, a
prestadora de servios de crdito Alpha recebia
esta porcentagem do valor do contrato de
crdito, para intermedi-lo ao consumidor
final. Havia ainda uma clusula contratual que
determinava o valor mnimo mensal dos
contratos de crdito ao consumidor; caso o
valor mensal das vendas a crdito no atingisse
este mnimo, (sobre o qual eram cobradas as
taxas), a loja de departamento em questo
pagava a diferena.
Em cada local de venda das lojas
conveniadas, a empresa Alpha montava um
ponto de atendimento aos clientes para
fornecer o crdito. A loja de departamentos
fornecia a infra-estrutura, e a empresa Alpha, os
funcionrios. Estes trabalhavam de modo
estritamente metdico, seguindo as normas e
regras do manual para a concesso de crdito.
Para tanto, na avaliao do crdito solicitado,
obedeciam um check list; se no fossem
cumpridos todos os itens, o crdito no seria
liberado. A organizao era, assim,
extremamente burocratizada.
Para calcular o valor mensal das
prestaes, utilizava-se uma tabela de valores
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fornecida pela diretoria financeira da empresa.
Os funcionrios que recepcionavam os clientes
da loja de departamentos, apesar de serem
chamados de analistas de crdito, tinham a
nica funo de conferir o check list de
documentos e consultar a tabela em questo.
Aps todos estes procedimentos, com a
liberao do crdito, o consumidor, de posse de
uma cpia do contrato de financiamento e uma
autorizao de entrega, retirava a mercadoria,
deixando com a loja a cpia dessa autorizao.
Este ltimo documento era utilizado pela loja
de departamentos para receber da empresa
Alpha o valor da compra feita pelo cliente
consumidor. Do valor que a empresa repassava
para a loja de departamentos, era descontada a
taxa estipulada no contrato de prestao de
servios de crdito.
O contrato de financiamento, por sua vez,
era encaminhado ao departamento de contratos
da empresa Alpha, sendo digitado em seu
sistema de informaes para emisso do carn de
pagamentos. A loja de departamento poderia
demorar at 40 dias para receber por suas vendas.
At aqui compreendemos os passos
bsicos do funcionamento burocrtico da
organizao. Mostraremos agora como as
regras burocrticas eram seguidas estritamente
quando beneficiavam a empresa Alpha, mas se
aplicavam instrues mais flexveis quando
seguir estritamente as regras a prejudicava.
3.2. A reteno de informaes e a falta de
transparncia dos sistemas como estratgia
calculada a fim de obter-se lucro
Depois do cadastramento dos contratos de
financiamento no sistema da empresa Alpha,
estes eram processados e disponibilizados para o
departamento de faturamento, por meio de
listagens de computador e consultas a terminais
informatizados. Alm disso, emitiam-se os
carns para encaminhamento aos clientes, por
correio.
Com o documento de autorizao deentrega de mercadoria, os lojistas preparavam oborder de cobrana relativo ao perodo devendas e o enviavam ao departamento defaturamento da empresa Alpha. Os perodos devendas estavam determinados no contrato deprestao de servios firmado entre a prestadorae a loja de departamentos e eram assimdefinidos: vendas a crdito efetuadas entre o dia1(primeiro) e 7(sete) seriam pagas no dia7(sete) do ms seguinte; as vendas efetuadasentre o dia 8(oito) e 14(quatorze) seriam pagasno dia 14(quatorze) do ms seguinte; aquelasfeitas entre os dias 15(quinze); e 21(vinte e um)seriam pagas no dia 21(vinte e um) do msseguinte; aquelas efetuadas entre o dia 22(vintee dois) e o ltimo dia do ms seriam pagas noltimo dia do ms seguinte.
Os funcionrios do departamento defaturamento eram instrudos para conferir oborder de cobrana recebido do lojista comaquele registrado no sistema da empresa.Somente aps essa conferncia, efetuadas ascorrees necessrias e apurado o valor,emitia-se o cheque em favor do lojista.
No border estava estipulado o nmero docontrato, a data e o valor da venda, o valor totaldos contratos e o perodo ao qual as vendas sereferiam. Quando existia diferena entre o quefoi apurado pelo computador e o border decobrana, verificava-se a origem do erro. Noentanto, se o erro beneficiasse a empresa Alpha,o lojista no era contatado nem o erro corrigido.Esperava-se que o lojista percebesse que estavarecebendo menos do que lhe era devido econtatasse a empresa Alpha, pedindo acorreo do erro. Caso ele no o percebesse, asituao permanecia inalterada. Quando oborder de cobrana do lojista apresentava umvalor superior ao registrado nos computadoresda empresa Alpha, o gerente financeirocontatava o lojista e corrigia o erro para evitarque a empresa viesse a pagar um valor maior doque o devido.
19
Este um exemplo de que os funcionriosda empresa Alpha eram instrudos para seguirestritamente o Manual quando isso abeneficiasse e a desobedec-lo expressamente,buscando outras solues, se no ocorressemos benefcios. Mantinham-se conscientementeas disfunes burocrticas quando estas fossemfuncionais para a empresa. Em termos de ticapode-se falar em desonestidade, mas alm datica, interessante observar como as regrasestruturam espaos de interao que podemser utilizados na concretizao de interessesestratgicos de um grupo em relao a outro.Veremos outros exemplos deste tipo deconduta na organizao.
Os consumidores, de posse de seu carn,deveriam efetuar o pagamento em lojasautorizadas. Como a empresa tinha um grandenmero de clientes, em alguns casos, pordescuido, o caixa errava e recebia a menor ovalor devido. Quando isso ocorria, o sistema deinformao no dava baixa, na prestao, poisfaltava ainda pagar uma parte. A prestaocorrespondente permanecia no sistema comosendo devida; os juros moratrioscontinuavam a correr. Mesmo depois de serconstatado o erro do caixa, o consumidor noera prevenido disto. Quando o consumidorpagava a mais, a prestao era baixadanormalmente, mas a diferena no eradescontada na prestao seguinte. Oconsumidor s era avisado da pendnciaquando sua dvida fosse encaminhada paracobrana judicial (agora com juros moratrios).
Todos os problemas sempre eramatribudos aos erros do sistema, que, noentanto, s eram mantidos quando issobeneficiava a empresa Alpha.
Um dos aspectos mais interessantes desteestudo vem a seguir. A gerncia dedesenvolvimento e manuteno de sistemasno era autorizada a estudar os processos daempresa nem a pensar em propostas paramelhoria dos sistemas, a fim de corrigir estas
falhas. No estavam os tcnicos e
programadores autorizados a fazer
diagnsticos destas falhas a fim de supri-las e
eliminar estes erros, uma vez que a empresa
ganhava com a manuteno de sistemas
ineficientes. Certas ineficincias eram
corrigidas mo e alguns erros e equvocos
do sistema mantidos quando tais fatos
interessavam empresa Alpha.
4. Anlise crozeriana: as Zonas de Incerteza Pertinentes e afalta de transparncia de informaes como fonte de poder
No caso da empresa estudada, o
departamento financeiro era o nico que
possua informaes geradas pelo sistema de
cobrana. No havia transparncia organi-
zacional ou terminais em que os lojistas
pudessem consultar informaes do sistema de
Alpha. O acesso era restrito aos responsveis
pela cobrana. Os lojistas tinham de confiar na
exatido da quantia que recebiam ou amargar
um custo de transao ainda maior,
empregando pessoas para conferir os vrios
documentos relativos s vendas realizadas.
Sempre existia uma margem estatstica para
erros, e para que as lojas, sem perceber,
pagassem a mais. Na verdade, este era um
custo embutido que os lojistas no percebiam,
para manuteno desta empresa de crdito
terceirizada; evit-lo geraria mais custos. Os
lojistas deveriam solicitar a seus empregados
que conferissem venda por venda, em centenas
ou dezenas de milhares de operaes, o que
acabaria gerando mais custos.
Percebendo esta situao, a empresa
Alpha, por intermdios de seu departamento de
cobrana, tinha um poder derivado do
conhecimento. A empresa, ao controlar seus
sistemas, sabia das falhas e erros cometidos e
tinha um staff treinado para esta funo, que
constitua seu trabalho principal. Este
conhecimento, a deteno da informao e a
no transparncia organizacional, o no acesso
20
s informaes do sistema como se d, porexemplo, aos correntistas de um banco, por meioda internet era a zona de incerteza pertinenteque o departamento de cobrana da empresaAlpha detinha, explorando estas informaes eos erros para sua maior lucratividade.
Uma segunda anlise refere-se polticainterna da prpria organizao Alpha. Ogerente financeiro no deixava o departamentode informtica da prpria empresa realizardiagnsticos, estudar seus processos emelhorar os sistemas, pois estas falhasgeravam lucros e melhoravam o resultado dodepartamento de cobrana e de seu gerente,que aparentava ser mais eficiente do querealmente era. A ineficincia calculada lhepermitia ganhar mais dinheiro e dava aimpresso de que ele havia cobrado melhor, ourealizado mais vendas. Tais sistemasineficientes eram deliberadamente mantidospelo departamento de cobrana, mas estapoltica no era conhecida pelos outros setoresda organizao. Encontramos aqui aexplicitao do conceito crozeriano de interesseestratgico e ao estratgica: quando atecnologia, as regras, o conhecimento e outrosrecursos so utilizados expressamente parabeneficiar uma coaliso ou um grupo, sem oconhecimento dos outros. As regrasburocrticas tambm possuem esta funo.
A mdio prazo, porm, esta poltica deineficincia calculada deu errado. Quando tinhaum quase-monoplio, durante os anos deditadura militar da poltica de Delfim Netto, osistema desta empresa funcionou. Com o PlanoReal, a concorrncia neste mercado aumentou eo ambiente passou de estvel a turbulento,segundo classificao tpica dos estudossociotcnicos. Em razo disso, esta estruturaineficiente no se manteve e a empresapraticamente foi falncia.
O interessante desta pesquisa estudar asregras enquanto mecanismos que estruturamespaos de interao e poder entre os atores
sociais, e verificar como o conhecimento e os
sistemas de informao, alm da prpria
estrutura burocrtica, possibilitam a criao de
zonas de incerteza pertinente, gerando espaos
de negociao nas estruturas organizacionais.
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