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 BUROCRACIA E PODER: UM ESTUDO DE CASO EM UMA EMPRESA DE CRÉDITO AO CONSUMIDOR DO ESTADO DE SÃO PAULO Resumo Neste artigo aplicamos a Teoria de Michel Crozier, importante sociólogo francês, ao estudo do funcionamento de uma empresa de crédito ao consumidor do estado de São Paulo. Os pressupostos da análise crozeriana embasam-se no conceito de que as regras e estruturas organizacionais operam de modo indireto e não determinam o comportamento dos atores sociais, mas induzem jogos de poder e comportamentos. Os atores sociais podem colaborar ou não, buscando negociar melhores condições de inserção no sistema, para obter um maior controle de recursos, atendendo aos seus objetivos e interesses pessoais. No entanto, ao lutarem pela realização desses inter esses, os atores devem jogar a partir das opções fornecidas pelo sistema e, dessa forma, estarão, mesmo dentro de um nível mínimo, cumprindo em parte os objetivos organizacionais. Mostramos como, nessa organização, os interesses de um grupo específico se sobrepõem aos da própria organização que, adotando um sistema ineficaz para garantir interesses de um grupo de atores sociais específicos e ganhos a curto prazo, não considerou o planejamento a méd io e longo praz os e quase foi à falência. Palavras-Chave: buroc raci a; organi zações ; poder. Abstract In this article we define social actors interests as a complex set of predisposition embracing goals, values, desires, expectations and other orientations and inclinations that lead a person to act in one direction rather than another. Organizations rules define areas of concern that social actors wish to reserve or enlarge, positions that they wish to protect or achieve. In our article we show that conflict of interest arises whenever interests collide. W e show in our study that an organization is a political arena that define “areas” where social actors interests collide. Fortunate social actors are able to control fundamental resources for the organization they belong. They have some kind of knowledge or know- how the organizational group need for its survival. In this case, these social actors earn more power in the organization and they are able to negotiate advantages and benefits. Our study show how information systems can be used for a group of social actors to preserve their interests and to increase its power in the organization. Key words: bureaucracy; organizations; power. HÉLIO BATISTA Mestrando pelo Programa de A dministração da UNINOVE ISABELLA FREITAS GOUVEIA DE VASCONCELOS Doutora em Administração de Empr esas -EAESP/FGV e professora do P rograma de Mestrado Profissional em A dministração da UNINOVE 

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Estudo de caso.

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  • BUROCRACIA E PODER: UM ESTUDO DE CASO EMUMA EMPRESA DE CRDITO AO CONSUMIDOR DO

    ESTADO DE SO PAULO

    ResumoNeste artigo aplicamos a Teoria de Michel Crozier,

    importante socilogo francs, ao estudo do

    funcionamento de uma empresa de crdito ao

    consumidor do estado de So Paulo. Os pressupostos

    da anlise crozeriana embasam-se no conceito de

    que as regras e estruturas organizacionais operam de

    modo indireto e no determinam o comportamento

    dos atores sociais, mas induzem jogos de poder e

    comportamentos. Os atores sociais podem colaborar

    ou no, buscando negociar melhores condies de

    insero no sistema, para obter um maior controle

    de recursos, atendendo aos seus objetivos e

    interesses pessoais. No entanto, ao lutarem pela

    realizao desses interesses, os atores devem jogar a

    partir das opes fornecidas pelo sistema e, dessa

    forma, estaro, mesmo dentro de um nvel mnimo,

    cumprindo em parte os objetivos organizacionais.

    Mostramos como, nessa organizao, os interesses

    de um grupo especfico se sobrepem aos da prpria

    organizao que, adotando um sistema ineficaz para

    garantir interesses de um grupo de atores sociais

    especficos e ganhos a curto prazo, no considerou o

    planejamento a mdio e longo prazos e quase foi

    falncia.

    Palavras-Chave: burocracia; organizaes; poder.

    AbstractIn this article we define social actors interests as a

    complex set of predisposition embracing goals,

    values, desires, expectations and other orientations

    and inclinations that lead a person to act in one

    direction rather than another. Organizations rules

    define areas of concern that social actors wish to

    reserve or enlarge, positions that they wish to protect

    or achieve. In our article we show that conflict of

    interest arises whenever interests collide. We show in

    our study that an organization is a political arena that

    define areas where social actors interests collide.

    Fortunate social actors are able to control

    fundamental resources for the organization they

    belong. They have some kind of knowledge or know-

    how the organizational group need for its survival. In

    this case, these social actors earn more power in the

    organization and they are able to negotiate

    advantages and benefits. Our study show how

    information systems can be used for a group of social

    actors to preserve their interests and to increase its

    power in the organization.

    Key words: bureaucracy; organizations; power.

    HLIO BATISTAMestrando pelo Programa de Administrao da UNINOVE

    ISABELLA FREITAS GOUVEIA DE VASCONCELOSDoutora em Administrao de Empresas -EAESP/FGV e professora do Programa

    de Mestrado Profissional em Administrao da UNINOVE

  • 1. A Teoria da Burocracia e os pressupostos da Anlise dePoder de Michel Crozier

    No seu estudo sobre a burocracia francesa,Crozier mostra como as caractersticas dasorganizaes que ele estuda (as regrasimpessoais, a centralizao do poder dedeciso, a estratificao dos indivduos emgrupos homogneos e fechados etc.) induzemcomportamentos nos grupos que reforamainda mais estas mesmas regras e estruturas,em um crculo vicioso. Tal fato ocorreindependentemente da vontade dos grupos demudar ou no o sistema. (CROZIER, 1964)

    Crozier salienta ainda uma outra funoda burocracia, especialmente marcante naFrana: evitar as relaes pessoais eespontneas, suscetveis de produzir conflitos.A regra estrutura as relaes entre os grupos,reforando a impessoalidade na organizao.Desta forma, mesmo se a regra provocadisfunes, a despersonalizao e aestruturao das relaes asseguram ofuncionamento do sistema, evitando conflitos.Segundo o autor, independentemente dosproblemas e disfunes do sistema, aburocracia seria um sistema que teriafuncionalidade e lgica prprias; seria umasoluo organizacional que tentaria evitar aarbitrariedade, o confronto entre os indivduose grupos e os abusos de poder. Crozier foca aorganizao como um sistema que estruturajogos de poder entre os atores sociais,expresso utilizada dentro do paradigmaweberiano para expressar a concepo do serhumano enquanto ser analtico, que ageestrategicamente, de modo poltico, a partir daanlise das opes em jogo, podendo sempreescolher mais de uma alternativa de ao,desde que esteja disposto a pagar o preo desuas escolhas dentro da estrutura do jogosocial. Adota-se o pressuposto daracionalidade limitada de Simon (1947), bemcomo o conceito de que o homem nonecessariamente precisa estar consciente de

    suas estratgias de ao. Alguns elementos daanlise crozeriana so os seguintes:

    a) Ao coletiva

    Para Crozier, a ao social em grupo no um fenmeno natural. Trata-se de umconstruto social. A organizao umaestruturao da ao coletiva que visa aoferecer solues especficas para aconcretizao de objetivos do grupo social. Asregras burocrticas correspondem a soluescriadas por atores sociais relativamenteautnomos, que buscam regular e instituir acooperao a fim de atingir objetivos e metascomuns ao grupo social. As soluesorganizacionais so contingentes (indeter-minadas e arbitrrias), mudam com o tempo eso relativas a cada grupo organizacional.Generalizaes e modelos so limitados. Deve-se sempre observar as regras, caractersticasculturais e os jogos de ator de cada sistemaorganizacional.

    b) Efeitos inesperados (effets pervers)

    Os efeitos inesperados correspondem descrio das disfunes burocrticas feitaspor outros autores como Merton (1950),Gouldner (1954) e Selznick (1955). Essesefeitos inesperados devem-se ao fato de queexistem, nas organizaes, indivduos cominteresses mltiplos e divergentes, vriasracionalidades e lgicas de ator igualmentevlidas. No sistema organizacional,cotidianamente, os atores sociais tomaminmeras decises de acordo com seusinteresses especficos. Cada deciso, em suaesfera, perfeitamente racional, dentro dopressuposto da racionalidade limitada (o queno quer dizer necessariamente consciente).O conjunto de decises, no entanto, produzincoerncias e incertezas no sistemaorganizacional. So estes os efeitosinesperados que, segundo Hischmann (1970),

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  • so compensados pelo slack organizacional ou

    reserva de recursos de que a organizao

    dispe e pode utilizar para compensar as

    incoerncias do sistema.

    c) Problemas da ao coletiva

    Como vimos, para Crozier as

    organizaes so solues institucionalizadas

    e construdas por um grupo com interesses

    comuns. Trata-se de solues artificiais que

    geram problemas de coordenao (os efeitos

    inesperados ou disfunes). A obteno da

    cooperao entre diferentes atores sociais

    um dos problemas principais da organizao.

    Para o autor, a integrao dos indivduos e

    grupos organizao se faz normalmente de

    trs formas:

    coero quando os atores sociais se

    submetem s regras organizacionais por serem

    obrigados a tanto ou por se submeterem s

    presses do sistema organizacional;

    manipulao afetiva ou ideolgica;

    negociao entre os grupos organizacionais.

    d) Conceito de organizao

    A organizao um sistema de jogos

    estruturados. As regras e estruturas

    organizacionais operam de modo indireto e

    no determinam o comportamento dos atores

    sociais; no entanto, induzem jogos de poder e

    comportamentos. Os atores sociais podem

    colaborar ou no, buscando negociar

    melhores condies de insero no sistema e

    obter um maior controle de recursos,

    atendendo aos seus objetivos e interesses

    pessoais. Entretanto, ao lutarem pela

    realizao desses interesses, os atores sociais

    devem jogar a partir das opes fornecidas

    pelo sistema e, dessa forma, estaro, mesmo

    dentro de um nvel mnimo, cumprindo em

    parte os objetivos organizacionais.

    e) As incertezas e o poder

    O controle dos recursos organizacionais distribudo de modo desigual. As organizaesdependem de recursos materiais, tecnolgicose de certos tipos de competncia tcnica para oatingimento de suas metas formais. Algunsdestes recursos so fundamentais para ofuncionamento do sistema e os atores sociaisque os controlam detm maior poder estesrecursos constituem zonas de incertezapertinentes. Os atores sociais que as controlam,ou seja, que possuem as competnciasfundamentais para o funcionamento elucratividade da organizao, podem decidircolaborar e, assim, disponibilizarem essesrecursos, competncias tcnicas econhecimento. Sempre existe, no entanto, aameaa velada de estes profissionais nocolaborarem e privarem o sistema de seusrecursos fundamentais. Os atores sociais que oscontrolam, na organizao, podero impor-seaos outros, influenciando os rumos do sistemaorganizacional, ganhando mais poder.

    No entanto, as situaes so contingentese mudam. As zonas de incerteza de hoje no soas mesmas de amanh. Quando uma tecnologia substituda e um novo sistema implementado,ou quando ocorre a mudana organizacional eum novo sistema de regras e normas criado.Novas competncias tornam-se essenciais paraa organizao, e o novo sistema de regras devecontemplar o novo sociograma (alianaspolticas e coalises locais), ou seja, conferirmaior poder aos indivduos que detm osrecursos essenciais para o funcionamento daorganizao. A mudana organizacionalredistribui as zonas de incerteza pertinentes e ocontrole de recursos, provocando resistnciados que se vem privados deles. A disputa poresses recursos na organizao acaba porconstituir um jogo de soma zero: como estesso limitados, quando alguns ganham, outrosnecessariamente perdem. A direo daorganizao deve gerir a mudana com

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  • cuidado, negociando solues com os atores

    organizacionais que continuam detendo poder

    no sistema. Estas solues so sempre

    contingentes e especficas, porque os cenrios e

    a distribuio de poder mudam. O impacto da

    resistncia mudana dos atores sociais ser

    proporcional sua importncia para o

    funcionamento do sistema como um todo.

    f) A mudana organizacional e a aprendizagem

    A mudana, dentro da perspectiva

    crozeriana, no a implantao de um modelo

    mais racional, uma vez que todas as

    racionalidades so igualmente vlidas e

    correspondem a interesses de jogo concretos.

    Para o autor, a mudana um processo de

    criao coletiva por meio do qual os membros

    de uma dada coletividade inventam e fixam

    novas maneiras de jogar o jogo social da

    cooperao e do conflito, negociando

    interesses e instaurando uma nova estrutura e

    uma nova ordem social. No se trata de uma

    mudana tcnica, mas da instaurao de novos

    jogos polticos, novas formas de controle de

    recursos, hbitos e prticas sociais que

    favoream a implementao efetiva da nova

    tecnologia, ferramenta ou modelos de gesto.

    Trata-se da construo de um novo sistema

    organizacional.

    A contradio fundamental que o novo

    sistema s pode ser construdo a partir do

    sistema anterior, com o qual, no entanto, deve

    romper ao menos parcialmente, para instaurar

    uma nova distribuio de recursos e poder. O

    sistema anterior fornece a maioria das

    competncias disponveis para a criao do

    novo. Deve-se, pois, coordenar a transio dos

    atores sociais para o novo sistema

    organizacional, negociando solues com os

    diversos grupos de atores sociais, dependendo

    da importncia dos recursos que eles

    detenham. O modelo poltico de gesto de

    pessoas busca inspirao neste tipo de

    anlise. A implementao de uma novatecnologia, por exemplo, implica mudana dehbitos, comportamentos e prticas sociais.Em uma organizao onde os indivduos seestruturam em grupos fechados e feudos eno trocam informaes, no havendo de fatointegrao horizontal, a implementao de umsistema integrado de gesto (EntrepriseResource Planning ERP), por exemplo, podeser v, caso no se estruturem novas regrasorganizacionais e sistemas de recompensa quefaam ser um bom negcio para os atoresorganizacionais mudarem o seucomportamento e suas estratgias anteriores. Anova tecnologia pode ser implantada,viabilizando uma comunicao eficiente,porm os atores organizacionais podem resistir sua implantao, no disponibilizando asinformaes necessrias ao sistema.

    Na impossibilidade de controlar a todos otempo todo, o sistema pode, ao menos emalguns setores, no ser efetivamente utilizado,existindo apenas para constar, para ingls ver,como descrevem Caldas e Wood Jr. (1999) emsuas pesquisas. Os estudos do Neoinsti-tucionalismo aplicado s organizaes relatama funo da ferramenta, modelo de gesto outecnologia que existe apenas para adequar aorganizao s presses isomrficas de seuambiente institucional, auxiliando a obterlegitimidade externa. A inovao tecnolgica ea implementao efetiva de sistemas deinformao, gerando aprendizado de circuitoduplo (questionamento do sistema anterior,seu redesenho e criao de um sistema novo),dependem da criao de um sistema de regrasque favorea a mudana comportamental dosatores sociais, a partir de seus interessesestratgicos. S assim o sistema convencionalanterior poder ser questionado e um novosistema proposto. Sem inovao organizacionalno se efetiva a inovao tecnolgica e aimplementao de ferramentas administrativase modelos de gesto novos. Conforme mostram

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  • as pesquisas de Shoshana Zuboff (1984) sobre

    burocracias, no caso de o grupo organizacional

    resistir inovao tecnolgica, no ocorrer o

    aprendizado em circuito duplo e a tecnologia

    cumprir apenas sua funo de mecanizao

    (automatizar procedimentos) e no sua funo

    informacional (gerar informao nova).

    2. Metodologia do estudo

    Nesta pesquisa, fez-se um estudo

    etnogrfico, pela observao participante

    numa organizao. O estudo durou 3 meses e

    foram entrevistadas 20 pessoas por meio de

    entrevistas semidiretivas de, em mdia, uma

    hora e meia. Estas entrevistas no foram

    gravadas.

    Analisaram-se tambm documentos da

    Polcia Militar para complementar as

    informaes obtidas pela observao

    participante e entrevistas. Trata-se de uma

    pesquisa longitudinal, que procurou

    reconstituir a histria da organizao nos

    ltimos 20 anos. O mtodo utilizado na coleta

    de dados foi o da Grounded Theory, tambm

    conhecido como mtodo da Anlise

    Comparativa Contnua, desenvolvido pelo

    socilogo norte-americano Anselm Strauss e

    adaptado a estudos qualitativos de carter

    etnogrfico. Strauss atribui esse nome ao

    mtodo porque, ao produzir uma teoria, o

    pesquisador reformula suas hipteses e

    concluses na medida em que retoma e atualiza

    o seu material de pesquisa, comparando

    continuamente suas categorias de anlise. O

    pesquisador mantm um caderno de pesquisa,

    em que anota as informaes pertinentes,

    classificadas em categorias, comparando

    constantemente os fatos observados. De forma

    progressiva, ele constri uma teoria que dever

    explicar todos os fatos observados at o fim do

    trabalho de campo. Neste mtodo, no h

    hipteses anteriores coleta de dados. O

    pesquisador inicia sua pesquisa de campo com

    um tema, algumas premissas e idias, mas no

    com hipteses fechadas. A construo da teoria

    se faz progressivamente, medida que o

    pesquisador observa novos fatos e desenvolve o

    seu dirio de pesquisa. (STRAUSS, 1955;

    STRAUSS, 1991)

    O mtodo da Anlise Comparativa

    Contnua se aplica a diversos tipos de anlises

    qualitativas observaes participantes,

    entrevistas, anlise de documentos e outros. Na

    anlise, so levados em considerao todos os

    elementos que possam contribuir para a

    compreenso do universo simblico da

    organizao e das interaes entre os atores

    sociais. Strauss (1955, p.134) descreve quatro

    etapas para este mtodo: comparar os fatos

    relativos a cada categoria, integrar as categorias

    e suas propriedades, delimitar a teoria e

    escrev-la.

    Considera-se, nesta metodologia, que o

    observador externo deve procurar identificar as

    formas de expresso caractersticas da viso de

    mundo de cada grupo organizacional. Para

    tanto, o pesquisador dever observar:

    a prtica de ritos coletivos;

    a perpetuao de mitos ou histrias sobre a

    organizao, em particular sobre aqueles que

    detm o poder;

    a existncia de tabus;

    as normas de comportamento e como cada

    grupo reage a elas;

    os valores e a tica que orientam a ao

    concreta dos diversos grupos, muitas vezes

    opostos aos divulgados oficialmente;

    as comunicaes oficiais e os smbolos

    associados a elas.

    Linda Smircich (1983a, 1983b) trata deste

    tipo de pesquisa salientando que o

    conhecimento gerado por esta metodologia

    pode ser classificado como conhecimento

    subjetivo. Neste tipo de mtodo, as relaes

    sujeito/objeto so substitudas por relaes

    17

  • sujeito/sujeito, em que o pesquisador focalizasua ateno nos significados partilhadosintersubjetivamente, sob o pressuposto de queo conhecimento no independente dopesquisador. Este ltimo apreende assignificaes das aes do grupo por meio desua interao com os membros da organizao.Desta forma, ele tem uma viso global dossignificados e imagens partilhados pelosmembros do grupo organizacional.

    importante ressaltar que um estudo decaso traz informaes vlidas, permitindoaprofundar certos aspectos de uma teoria ourefut-la, mas, por no obedecer a tcnicasestatsticas, no se pode fazer afirmaesgenricas. (SMIRCICH,1983a; 1983b)

    A metodologia da Anlise ComparativaContnua se insere nos pressupostos doparadigma interpretativo definido por Burell &Morgan (1994), dentro da tradio sociolgicaweberiana. Este mtodo compatvel comcorrentes tericas como o InteracionismoSimblico e estudos culturais e etnogrficos,que seguem uma tradio fenomenolgica depesquisa.

    3. Apresentao da empresa estudada

    A empresa estudada Alpha era umaempresa de prestao de servios de crdito paralojas de departamento, lder de mercado. Estaempresa detinha, at o fim dos anos 80,aproximadamente 80% do mercado paulista, comum quadro de colaboradores em torno de 1500empregados; para a demanda extra (fim de ano eoutros perodos) eram contratados empregadostemporrios. Em 1994, praticamente foi falncia, demitindo 60% do seu quadro decolaboradores, que j estava reduzido aaproximadamente 1200 funcionrios. Atualmentea empresa deixou de atuar no mercado, pois foiabsorvida pelo Banco controlado pelos mesmosacionistas, e transformada em seu departamentode crdito pessoal.

    Realizamos uma pesquisa longitudinal, na

    qual estudamos a histria da empresa desde o

    inicio dos anos 80 at 1994. Narraremos agora

    como era o seu funcionamento nos anos 80,

    quando detinha 80% do mercado de crdito

    paulista.

    3.1. O funcionamento da empresa nos anos 80

    A prestao de servios de crdito para as

    lojas de departamentos obedece ao que foi

    estabelecido em contrato entre a prestadora de

    servios de crdito, em nosso caso a empresa

    Alpha, e as lojas interessadas nesse tipo de

    servio. Neste contrato estava estipulada uma

    taxa de servios, normalmente de 8% a 10%,

    calculada com base no valor do crdito

    concedido ao consumidor e cobrada sobre o

    total mensal das compras a crdito, ou seja, a

    prestadora de servios de crdito Alpha recebia

    esta porcentagem do valor do contrato de

    crdito, para intermedi-lo ao consumidor

    final. Havia ainda uma clusula contratual que

    determinava o valor mnimo mensal dos

    contratos de crdito ao consumidor; caso o

    valor mensal das vendas a crdito no atingisse

    este mnimo, (sobre o qual eram cobradas as

    taxas), a loja de departamento em questo

    pagava a diferena.

    Em cada local de venda das lojas

    conveniadas, a empresa Alpha montava um

    ponto de atendimento aos clientes para

    fornecer o crdito. A loja de departamentos

    fornecia a infra-estrutura, e a empresa Alpha, os

    funcionrios. Estes trabalhavam de modo

    estritamente metdico, seguindo as normas e

    regras do manual para a concesso de crdito.

    Para tanto, na avaliao do crdito solicitado,

    obedeciam um check list; se no fossem

    cumpridos todos os itens, o crdito no seria

    liberado. A organizao era, assim,

    extremamente burocratizada.

    Para calcular o valor mensal das

    prestaes, utilizava-se uma tabela de valores

    18

  • fornecida pela diretoria financeira da empresa.

    Os funcionrios que recepcionavam os clientes

    da loja de departamentos, apesar de serem

    chamados de analistas de crdito, tinham a

    nica funo de conferir o check list de

    documentos e consultar a tabela em questo.

    Aps todos estes procedimentos, com a

    liberao do crdito, o consumidor, de posse de

    uma cpia do contrato de financiamento e uma

    autorizao de entrega, retirava a mercadoria,

    deixando com a loja a cpia dessa autorizao.

    Este ltimo documento era utilizado pela loja

    de departamentos para receber da empresa

    Alpha o valor da compra feita pelo cliente

    consumidor. Do valor que a empresa repassava

    para a loja de departamentos, era descontada a

    taxa estipulada no contrato de prestao de

    servios de crdito.

    O contrato de financiamento, por sua vez,

    era encaminhado ao departamento de contratos

    da empresa Alpha, sendo digitado em seu

    sistema de informaes para emisso do carn de

    pagamentos. A loja de departamento poderia

    demorar at 40 dias para receber por suas vendas.

    At aqui compreendemos os passos

    bsicos do funcionamento burocrtico da

    organizao. Mostraremos agora como as

    regras burocrticas eram seguidas estritamente

    quando beneficiavam a empresa Alpha, mas se

    aplicavam instrues mais flexveis quando

    seguir estritamente as regras a prejudicava.

    3.2. A reteno de informaes e a falta de

    transparncia dos sistemas como estratgia

    calculada a fim de obter-se lucro

    Depois do cadastramento dos contratos de

    financiamento no sistema da empresa Alpha,

    estes eram processados e disponibilizados para o

    departamento de faturamento, por meio de

    listagens de computador e consultas a terminais

    informatizados. Alm disso, emitiam-se os

    carns para encaminhamento aos clientes, por

    correio.

    Com o documento de autorizao deentrega de mercadoria, os lojistas preparavam oborder de cobrana relativo ao perodo devendas e o enviavam ao departamento defaturamento da empresa Alpha. Os perodos devendas estavam determinados no contrato deprestao de servios firmado entre a prestadorae a loja de departamentos e eram assimdefinidos: vendas a crdito efetuadas entre o dia1(primeiro) e 7(sete) seriam pagas no dia7(sete) do ms seguinte; as vendas efetuadasentre o dia 8(oito) e 14(quatorze) seriam pagasno dia 14(quatorze) do ms seguinte; aquelasfeitas entre os dias 15(quinze); e 21(vinte e um)seriam pagas no dia 21(vinte e um) do msseguinte; aquelas efetuadas entre o dia 22(vintee dois) e o ltimo dia do ms seriam pagas noltimo dia do ms seguinte.

    Os funcionrios do departamento defaturamento eram instrudos para conferir oborder de cobrana recebido do lojista comaquele registrado no sistema da empresa.Somente aps essa conferncia, efetuadas ascorrees necessrias e apurado o valor,emitia-se o cheque em favor do lojista.

    No border estava estipulado o nmero docontrato, a data e o valor da venda, o valor totaldos contratos e o perodo ao qual as vendas sereferiam. Quando existia diferena entre o quefoi apurado pelo computador e o border decobrana, verificava-se a origem do erro. Noentanto, se o erro beneficiasse a empresa Alpha,o lojista no era contatado nem o erro corrigido.Esperava-se que o lojista percebesse que estavarecebendo menos do que lhe era devido econtatasse a empresa Alpha, pedindo acorreo do erro. Caso ele no o percebesse, asituao permanecia inalterada. Quando oborder de cobrana do lojista apresentava umvalor superior ao registrado nos computadoresda empresa Alpha, o gerente financeirocontatava o lojista e corrigia o erro para evitarque a empresa viesse a pagar um valor maior doque o devido.

    19

  • Este um exemplo de que os funcionriosda empresa Alpha eram instrudos para seguirestritamente o Manual quando isso abeneficiasse e a desobedec-lo expressamente,buscando outras solues, se no ocorressemos benefcios. Mantinham-se conscientementeas disfunes burocrticas quando estas fossemfuncionais para a empresa. Em termos de ticapode-se falar em desonestidade, mas alm datica, interessante observar como as regrasestruturam espaos de interao que podemser utilizados na concretizao de interessesestratgicos de um grupo em relao a outro.Veremos outros exemplos deste tipo deconduta na organizao.

    Os consumidores, de posse de seu carn,deveriam efetuar o pagamento em lojasautorizadas. Como a empresa tinha um grandenmero de clientes, em alguns casos, pordescuido, o caixa errava e recebia a menor ovalor devido. Quando isso ocorria, o sistema deinformao no dava baixa, na prestao, poisfaltava ainda pagar uma parte. A prestaocorrespondente permanecia no sistema comosendo devida; os juros moratrioscontinuavam a correr. Mesmo depois de serconstatado o erro do caixa, o consumidor noera prevenido disto. Quando o consumidorpagava a mais, a prestao era baixadanormalmente, mas a diferena no eradescontada na prestao seguinte. Oconsumidor s era avisado da pendnciaquando sua dvida fosse encaminhada paracobrana judicial (agora com juros moratrios).

    Todos os problemas sempre eramatribudos aos erros do sistema, que, noentanto, s eram mantidos quando issobeneficiava a empresa Alpha.

    Um dos aspectos mais interessantes desteestudo vem a seguir. A gerncia dedesenvolvimento e manuteno de sistemasno era autorizada a estudar os processos daempresa nem a pensar em propostas paramelhoria dos sistemas, a fim de corrigir estas

    falhas. No estavam os tcnicos e

    programadores autorizados a fazer

    diagnsticos destas falhas a fim de supri-las e

    eliminar estes erros, uma vez que a empresa

    ganhava com a manuteno de sistemas

    ineficientes. Certas ineficincias eram

    corrigidas mo e alguns erros e equvocos

    do sistema mantidos quando tais fatos

    interessavam empresa Alpha.

    4. Anlise crozeriana: as Zonas de Incerteza Pertinentes e afalta de transparncia de informaes como fonte de poder

    No caso da empresa estudada, o

    departamento financeiro era o nico que

    possua informaes geradas pelo sistema de

    cobrana. No havia transparncia organi-

    zacional ou terminais em que os lojistas

    pudessem consultar informaes do sistema de

    Alpha. O acesso era restrito aos responsveis

    pela cobrana. Os lojistas tinham de confiar na

    exatido da quantia que recebiam ou amargar

    um custo de transao ainda maior,

    empregando pessoas para conferir os vrios

    documentos relativos s vendas realizadas.

    Sempre existia uma margem estatstica para

    erros, e para que as lojas, sem perceber,

    pagassem a mais. Na verdade, este era um

    custo embutido que os lojistas no percebiam,

    para manuteno desta empresa de crdito

    terceirizada; evit-lo geraria mais custos. Os

    lojistas deveriam solicitar a seus empregados

    que conferissem venda por venda, em centenas

    ou dezenas de milhares de operaes, o que

    acabaria gerando mais custos.

    Percebendo esta situao, a empresa

    Alpha, por intermdios de seu departamento de

    cobrana, tinha um poder derivado do

    conhecimento. A empresa, ao controlar seus

    sistemas, sabia das falhas e erros cometidos e

    tinha um staff treinado para esta funo, que

    constitua seu trabalho principal. Este

    conhecimento, a deteno da informao e a

    no transparncia organizacional, o no acesso

    20

  • s informaes do sistema como se d, porexemplo, aos correntistas de um banco, por meioda internet era a zona de incerteza pertinenteque o departamento de cobrana da empresaAlpha detinha, explorando estas informaes eos erros para sua maior lucratividade.

    Uma segunda anlise refere-se polticainterna da prpria organizao Alpha. Ogerente financeiro no deixava o departamentode informtica da prpria empresa realizardiagnsticos, estudar seus processos emelhorar os sistemas, pois estas falhasgeravam lucros e melhoravam o resultado dodepartamento de cobrana e de seu gerente,que aparentava ser mais eficiente do querealmente era. A ineficincia calculada lhepermitia ganhar mais dinheiro e dava aimpresso de que ele havia cobrado melhor, ourealizado mais vendas. Tais sistemasineficientes eram deliberadamente mantidospelo departamento de cobrana, mas estapoltica no era conhecida pelos outros setoresda organizao. Encontramos aqui aexplicitao do conceito crozeriano de interesseestratgico e ao estratgica: quando atecnologia, as regras, o conhecimento e outrosrecursos so utilizados expressamente parabeneficiar uma coaliso ou um grupo, sem oconhecimento dos outros. As regrasburocrticas tambm possuem esta funo.

    A mdio prazo, porm, esta poltica deineficincia calculada deu errado. Quando tinhaum quase-monoplio, durante os anos deditadura militar da poltica de Delfim Netto, osistema desta empresa funcionou. Com o PlanoReal, a concorrncia neste mercado aumentou eo ambiente passou de estvel a turbulento,segundo classificao tpica dos estudossociotcnicos. Em razo disso, esta estruturaineficiente no se manteve e a empresapraticamente foi falncia.

    O interessante desta pesquisa estudar asregras enquanto mecanismos que estruturamespaos de interao e poder entre os atores

    sociais, e verificar como o conhecimento e os

    sistemas de informao, alm da prpria

    estrutura burocrtica, possibilitam a criao de

    zonas de incerteza pertinente, gerando espaos

    de negociao nas estruturas organizacionais.

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