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Contents Introduction p2 Child-carers in Angola Nigeria, Uganda and Zimbabwe – a summary of research and policy p3 Child-led research p7 Findings p12 Multiple and repeated caring Economic responsibility Household and caring work Why children are caring Problems with schoolw Support and discrimination Relationships in the child-carer household Resilience and stress Recommendations for policy and programming p23 Crianças prestadoras de cuidados Investigação conduzida por crianças prestadoras de cuidados quatro estudos de caso: Angola, Nigéria, Uganda e Zimbabué

Crianças prestadoras de cuidados · participativas, estes jovens relataram a história da sua vida como cuidadores. Os jovens aprenderam, também, a usar uma máquina fotográfica

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ContentsIntroduction p2

Child-carers in Angola Nigeria,

Uganda and Zimbabwe – a summary of research and policy p3

Child-led research p7

Findings p12Multiple and repeated caring

• Economic responsibility

• Household and caring work

• Why children are caring

• Problems with schoolw

• Support and discrimination

• Relationships in the child-carer household

• Resilience and stress

Recommendations for policy and programming p23

Crianças prestadoras de cuidados

Investigação conduzida por

crianças prestadoras de cuidados

quatro estudos de caso: Angola, Nigéria,

Uganda e Zimbabué

Siglas e AcrónimosSiDA Síndrome de Imunodeficiência Adquirida

ESRC Conselho de Investigação Socioeconómica (Economic and Social Research Council)

ViH Vírus da Imunodeficiência Humana. Também conhecido por HIV (sigla inglesa)

ONG Organização Não Governamental

COV Criança Órfã e Vulnerável

RiATT Grupo-Tarefa Interagencial Regional

UK Reino Unido

ReconhecimentosPesquisa encomendada por Save the Children UK Revisão da literatura pela Dr.ª Rachel Bray, Universidade do Cabo ([email protected])Pesquisa participativa por Glynis Clacherty, Clacherty & Associates ([email protected])

Os quatro estudos de caso em que se baseia o presente relatório e a revisão da literatura sobre crianças prestadoras de cuidados podem ser obtidos contactando:

Save the Children UK, Southern AfricaTel: +27 012 342 0235Endereço postal: PO Box 14038, Hatfield, Pretoria, 0028, África do Sul

Todas as fotografias incluídas no presente relatório foram tiradas pelos investigadores-crianças. Os fotógrafos concederam-nos autorização para usar as fotografias no relatório. Foram escolhidas apenas fotografias que não permitem identificar as crianças estudadas.

Os nossos agradecimentos à Fundação Ford pelo financiamento da investigação.

ff The Ford Foundation

Aos jovens que, de tão bom grado, partilharam connosco a história das suas vidas, muito embora por vezes o seu relato os fizesse sentirem-se tristes, o nosso profundo agradecimento. Gostaríamos de expressar um agradecimento muito especial pela forma como realizaram a investigação, e pela incisiva informação e compreensão que nos facultaram sobre a vida das crianças prestadoras de cuidados no Uganda, na Nigéria, em Angola e no Zimbabué.

Sinceros agradecimentos também a:Kurt MadöerinLucy CluverLucie HillierBrenda Yamba

No Uganda:Germina Sebuwufu (Senga)Lydia NabulyaCharlene SsaliAnnette Kobusingye

Na Nigéria:A Fundação Fantsuam em KafanchanKennedy Ambrose da Save the Children na NigériaMercy Assac da Fundação FantsuamDeanne Evans da Save the Children

No Zimbabué:A “Environment Africa Organisation” na área da cidade de Victoria Falls Foster Matyatya da Save the ChildrenEuphrasia Mwembe da Environment AfricaBarbara SikanyisiweChristine Lipohar da Save the Children

Em Angola:Adelino Sanjombe do gabinete da Save the Children no HuamboGideão Minta e Jacinta GeraldoGaspar SicatoMaria Gertrudes – Departamento responsável pelas COV do Ministério da Previdência Social no Huambo

Produção de Rodney Knotts, Edição de Danya RisticDesign e produção de HPG Advertising

© Copyright | Save the Children 2010

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A investigação usou uma abordagem inovadora na medida em que a pesquisa foi conduzida por crianças. Em cada localidade, e a fim de participarem num workshop, reuniram-se crianças e jovens adolescentes que prestam cuidados a adultos doentes ou incapacitados, a avós idosos ou a crianças pequenas. Nesse workshop, através de várias actividades participativas, estes jovens relataram a história da sua vida como cuidadores. Os jovens aprenderam, também, a usar uma máquina fotográfica e um gravador e a realizarem entrevistas. Usando inquéritos compostos de perguntas formuladas por eles próprios, estes jovens regressaram às suas casas para entrevistar e fotografar outras crianças prestadoras de cuidados e suas conhecidas. A informação recolhida foi registada posteriormente, durante um segundo workshop . De seguida, os dados recolhidos pelas crianças foram compilados em forma de estudos de caso, os quais resumem as características principais do quotidiano das crianças prestadoras de cuidados numa determinada área. O uso desta abordagem, em que as crianças conduzem a investigação, resultou na recolha de informação muito valiosa e pormenorizada, caracterizada por uma acuidade que não teria sido possível obter com investigadores adultos. Um total de 124 crianças (61 raparigas e 63 rapazes), com idades compreendidas entre os 8 e os 17 anos, participaram nos estudos de caso nas quatro localidades.

As constatações da investigação revelam que as crianças têm vários recursos interiores: um sentido de responsabilidade muito forte; capacidade para pedir ajuda aos poucos adultos compreensíveis que conhecem; capacidade de resolução de problemas que lhes permitem ganhar a vida através de várias tarefas; e a capacidade para resolver as disputas que surgem entre as crianças, no lar. A forma como cuidam das crianças mais jovens revela grande maturidade e força emocional.

Muitas das crianças têm uma relação positiva e carinhosa com as pessoas sob o seu cuidado, e algumas contam com o apoio de amigos e de outras crianças cuidadoras que conhecem.

Mas, na grande maioria dos casos, a situação é caracterizada pela ausência dos recursos necessários para incutir força e ânimo para perseverar. Na maioria, estes jovens não têm qualquer assistência para poderem avaliar as necessidades do dia-a-dia e é sobre eles que recai a enorme responsabilidade de ganhar dinheiro e de arranjar alimentos. Os jovens contam

Documento

de sínteseO presente relatório é uma síntese da fase de pesquisa de um projecto de análise das necessidades mais prementes das crianças prestadoras de cuidados em quatro países africanos: Nigéria, Uganda, Angola e Moçambique. A investigaçãoconsistiu de uma revisão da literatura e investigação participativa conduzida por crianças numa ùnica localidade em cada um dos quatro países.

Esta é a nossa casa. Sou eu que trato da casa. Aminha mãe está doente.

(Rapariga, 9 anos, Zimbabué)

com pouco apoio de pessoas adultas e de outras crianças na comunidade. Não têm acesso fácil a serviços de saúde ou a informação que poderia facilitar o assumir da responsabilidade de cuidar dos seus familiares. Estas crianças demonstram grande interesse em frequentar a escola, mas a própria instituição coloca-lhes barreiras intransponíveis – bem como desnecessárias e incompreensíveis.

Além dos problemas acima delineados, estes jovens enfrentam vários factores de risco. O trabalho pesado que realizam cria riscos físicos e emocionais. A discriminação de que são alvo, sobretudo a discriminação que ataca a sua identidade sexual, afecta a sua auto-estima. Estas crianças manifestam sinais de tensão emocional: por exemplo, muitas delas têm problemas com o sono e outras sofrem de pesadelos. Muita da tensão identificada parece estar relacionada com a dor do luto, um luto que não foi devidamente processado dadas as múltiplas perdas que sofreram. Muitos destes jovens sentem-se totalmente soterrados pelas responsabilidades que carregam.

Não têm acesso a informação fidedigna para se protegerem, nem a informação sobre as doenças de que os pais sofrem e seu prognóstico. As instituições governamentais apropriadas pouca ajuda lhes concedem no desempenho da responsabilidade que assumiram como prestadores de cuidados. O apoio que recebem de outros jovens é de natureza informal e criado por eles próprios. Além disso, estes jovens têm muito poucos modelos ou conselheiros adultos.

A exiguidade de recursos externos destinados a apoiar as crianças cuidadoras deve, pois, ser o fulcro de acções de advocacia que visem colmatar esta escassez. Tais acções devem ter lugar a nível regional – através de iniciativas como o Grupo-Tarefa Interagencial Regional (RIATT) que trabalha em prol de COV, e a nível nacional – junto aos órgãos governamentais nacionais, distritais e comunitários, bem como junto a ONG locais. É essencial que as mensagens que se transmitem incluam a necessidade fundamental de se prestar apoio psicossocial adequado às crianças cuidadoras; a necessidade de se lhes proporcionar informação sobre como prestar cuidados e sobre o VIH e a Sida; e a necessidade impreterível de conceder a estas crianças acesso a subvenções, transferências de dinheiro e educação.

"Esta fotografia mostra a

casa da Natalie. A avó dela

está na imagem. Está a

comer papa com o irmão

mais novo. Tanto a avó como

o mais novo estão doentes.

Nesta casa, vivem nove

crianças. São todas muito

novas. A Natalie toma conta

de todos. Ela tem 16 anos."

(Criança-investiga-

dora, 16, Ugan

da)

Casa da Natalie

A evidência obtida indica que as crianças da região assumem um papel dominante como prestadores de cuidados nas seguintes circunstâncias:

quando vivem com pais infectados pelo VIH com •uma doença crónica e debilitante, e que se encon-tram muitas vezes à beira da morte; quando vivem e são responsáveis por prestar as-•sistência a avós cada vez mais débeis, que muitas vezes teriam eles próprios zelado pelo bem-estar da criança; quando são chefes de família responsáveis por cui-•dar de irmãos mais novos, sendo eles os filhos mais velhos, embora eles próprios sejam ainda crianças ou jovens adolescentes.

Desconhece-se o número exacto de crianças prestadoras de cuidados, mas é provável que seja um fenómeno muito disseminado e distribuído de forma desigual. Presume-se que exista um maior número de crianças nestas circunstâncias em áreas caracter-izadas há vários anos por elevadas e crescentes taxas de infecção pelo VIH, com fracas fontes de receitas a nível local (o que leva os adultos jovens e as crianças saudáveis a migrarem em busca de trabalho), com elevado número de lares monoparentais, com serviços

de saúde e de provisão social mínimos (incluindo fraco acesso a Terapia Anti-Retroviral), e onde compete à comunidade, quer intencionalmente, quer não, proporcionar assistência no lar aos familiares doentes.Os dados recolhidos indicam que há crianças com apenas oito anos de idade responsáveis por cuidar de adultos doentes ou de irmãos, um papel que pode durar vários anos, com o cuidado em cadeia de um adulto doente ou débil, um a seguir a outro. Sabe-se muito pouco sobre os impactos psicossociais que as crianças africanas sujeitas a este tipo de vivência sofrem, na sequência dos cuidados emocionais por elas prestados, e pela tomada da responsabilidade e do papel de progenitor assumidos em tão tenra idade. As crianças mais velhas que se vêem obrigadas a abandonar os estudos para poderem cumprir as obrigações assumidas no agregado familiar têm consciência das consequências a longo prazo no que respeita o seu próprio bem-estar.Parece haver um maior número de raparigas do que de rapazes responsáveis pela prestação de cuidados primários a irmãos e a adultos doentes ou débeis. Contudo, a divisão do trabalho de acordo com o sexo revela que existe uma grande sensibilidade relativamente a preferências socioculturais – por exemplo, a preferência que o adulto seja cuidado por uma criança do mes-mo sexo – e à precariedade dos recursos humanos existentes.

1 Bray, R (2009). A literature review on child-carers in Angola, Nigeria, Uganda and Zimbabwe. Save the Children UK: Pretoria. Este é um resumo da revisão de literatura citada anteriormente e a qual contém todas as referências.

3

investigação existente1

O presente estudo debruçou-se sobre o tipo de vida e o papel desempenhado no seio do agregado familiar de crianças cuja experiência é comum a muitas outras crianças dos seus bairros e dos seus países que se vêem a braços com a pobreza e com a presença do VIH/Sida nos seus lares. Contudo, a literatura existente aponta consistentemente para algumas distinçõesfundamentais entre estas crianças que cuidam dos familiares, distinções essas que têm que ver, em primeiro lugar, com a natureza ou a qualidade do papel desempenhado enquanto cuidadores, e em segundo lugar com a enormidade desse papel.

Crianças prestadoras de cuidados em Angola, Nigéria, Uganda e Zimbabué - resumo da

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Isto significa que existe um número crescente de rapazes que presta cuidados a tempo inteiro, mas o papel desempenhado por estes rapazes pode passar despercebido nos bairros locais e ser descurado pelas políticas.Um exame minucioso dos resultados das pesquisas sobre a dinâmica da prestação de cuidados no seio das famílias e nos bairros onde vivem revela o seguinte:

As crianças estão a desempenhar tarefas extremamente pe-•nosas em termos físicos, mentais e emocionais durante um período da vida em que a criança passa por transformações profundas. Na análise sobre a ‘prestação de cuidados’, é necessário •integrar a experiência da criança relativamente à sua vivência com um progenitor ou outro familiar que sofre de uma doença aguda e debilitante, e de incluir as implicações que essa vivência tem para a criança, assim como a sua experiência de perda e de luto. Não se deve presumir que exista uma relação linear entre •as doenças causadas pela Sida, o papel da criança como prestadora de cuidados, a orfandade e outros papéis desempenhados pelas crianças que cuidam dos seus familiares. Tanto para as crianças como para os adultos, a prestação de •cuidados é uma relação de reciprocidade, embora haja uma inversão de alguns aspectos da prestação de cuidados. Os adultos doentes que são cuidados por crianças esforçam-se por continuar a cuidar dessas mesmas crianças de formas significativas. É preciso compreender melhor os papéis da ‘criança’ e do ‘progenitor’, a fim de se obter clareza sobre a forma como a reciprocidade nos cuidados pode fazer aumentar a resiliência da criança. A qualidade da relação entre a criança e a figura paterna •ou materna é a melhor forma de prever a saúde mental da criança. Os diferentes factores que permitem melhorar a qualidade de vida dos adultos – por exemplo, a terapia anti-retrovírica, os cuidados de saúde, e uma fonte de rendimentos segura – aumenta o nível dos cuidados que o adulto pode prestar às crianças, melhora a qualidade da relação entre criança e adulto doente e cria benefícios indirectos mas importantes para o bem-estar da criança. As crianças geralmente assumem a responsabilidade de •cuidadores na altura em que o lar está em grave declínio económico e carece do capital humano necessário para manter redes sociais de reciprocidade. A doença dos adultos do agregado familiar pode atrair o estigma ligado à Sida, ou resultar na incapacidade do lar em contribuir para as redes sociais. O isolamento social coloca imensa tensão na relação entre o adulto e a criança, e cria um grande risco em termos de sustento, pois não há partilha de alimentos e de outros bens básicos. As crianças prestadoras de cuidados geralmente •conseguem manter-se na escola, mas o seu desempenho sofre devido às muitas faltas, ao cansaço excessivo, e à impossibilidade de completar as tarefas escolares. As políticas governamentais que se concentram apenas em aumentar o número de órfãos e crianças vulneráveis que se matriculam nas escolas não podem resolver este problema. O papel de cuidador pode tornar a criança mais forte em •termos psicológicos e sociais, uma vantagem que se não apresenta às crianças que testemunham os efeitos de uma doença debilitante no próprio lar mas que não são respon-sáveis pela prestação de cuidados. Nesse aspecto, os irmãos

mais novos das crianças prestadoras de cuidados podem ser muito vulneráveis, sobretudo após a morte do adulto doente, no que se refere ao luto, à possível transferência para a casa de um parente, ou à permanência com um irmão mais velho cuja capacidade para cuidar dos mais novos é bastante precária.

Eis alguns dos factores que contribuem para fortalecer as crianças cuidadoras, ou outras crianças que vivem com familiares doentes ou que são órfãs:

a qualidade da relação entre a criança e o adulto, quer em •termos do valor intrínseco dessa relação, quer como media-dor da inclusão das crianças nas redes sociais; o acesso a cuidados de saúde e a subvenções sociais;• a capacidade das redes sociais em oferecer alimentos, em •suster os meios de vida, e em garantir que as crianças e os adultos sejam incluídos na comunidade.

Considerando os cenários delineados anteriormente, existem semelhanças espantosas entre os mecanismos que abalam o bem-estar das crianças. Esses mecanismos negativos incluem:

o empobrecimento económico devido à dificuldade em •gerar rendimentos ou recursos; o comprometimento invisível do bem-estar emocional e da •saúde mental da criança, e o risco que existe de que estes aspectos sejam negligenciados nas políticas e nas interven-ções; a grave doença do adulto que pode interferir na relação do •adulto com a criança, e na saúde mental e física da criança; a falta de conhecimento por parte das crianças sobre a •natureza da doença e seu provável prognóstico, a exclusão das crianças das decisões que são tomadas sobre o local onde passarão a viver e sobre a sua educação, por exemplo; a discriminação sexual e etária, e a exploração.•

Os dados recolhidos em investigações recentes apontam para alguns aspectos singulares que têm um impacto muito forte, quer negativo, quer positivo, no bem-estar das crianças prestadoras de cuidados:

uma maior interdependência entre a criança e o adulto •doente como resultado da natureza recíproca dos cuidados prestados; um maior sentido de responsabilidade, sobretudo a nível •emocional e em termos de se encontrar resposta para as necessidades diárias do lar; a antecipação da morte do progenitor, ou de outro familiar •próximo, muitas vezes sem pleno conhecimento da doença, da forma como esta é transmitida, ou das implicações que a morte terá para o resto da família; imposições excessivas, em termos de tempo, sobre as crian-•ças, o que as impede de finalizarem os trabalhos de casa, de frequentarem a escola com assiduidade, e de passarem de ano.

Três dos quatro mecanismos acima identificados, e a maioria dos factores de protecção de natureza geral, anteriormente listados, funcionam a nível das relações interpessoais. Esta constatação sugere a importância de se definirem políticas e intervenções que permitam amparar a relação entre as crianças e os adultos, já que, com o correr do tempo, existe a possibilidade de os últimos poderem ser destinatários dos cuidados das crianças.

55

A questão das crianças prestadoras de cuidados não

é contemplada especificamente por nenhum dos documentos

definidores de políticas dos quatro países, permanecendo antes

como uma componente oculta da vulnerabilidade criada pela

Sida, e à qual se alude velada e esporadicamente. Quando o assunto

é mencionado, é no contexto de ‘agregados familiares chefiados por

crianças’ que são responsáveis por cuidar dos irmãos mais novos. Existem,

contudo, várias políticas nacionais que destacam a vulnerabilidade das

crianças que vivem com adultos doentes pelo que tais casos devem ser qualificados de alta prioridade.

Os pontos fortes destas políticas residem na ênfase que colocam sobre a necessidade de se melhorar o acesso

a serviços básicos por parte de adultos e crianças, bem como a qualidade dos mesmos e, nesse sentido,

oferecem um alicerce forte para se defender o acesso aos recursos identificados por parte das crianças

cuidadoras. Subsistem, porém, quatro questões de importância substantiva:

1. A falta de uma estratégia que permita lidar com o bem-estar psicossocial: Existem várias políticas que

chamam a atenção para esta área prioritária mas que não especificam como lhes dar corpo. Tal significa

que há um conhecimento limitado sobre como proporcionar a natureza e o âmbito do apoio psicossocial

necessário. 2. Inconsistências e contradições relativamente aos direitos que assistem a criança em receber cuidados

paternais: As políticas da Nigéria e do Uganda para órfãos e crianças vulneráveis declaram explicitamente

que é necessário reunificar a família ou criar formas alternativas de oferecer cuidados familiares às crianças

em agregados familiares chefiados por crianças. No Uganda, o segundo grupo-alvo de crianças vulneráveis

é composto de crianças que vivem com pais doentes. Estas políticas declaram que o seu objectivo é garantir

que as crianças vivam no seio de ‘famílias afectuosas’ embora não definam o que caracteriza uma família

afectuosa. É possível que as políticas – talvez não intencionalmente – defendam a remoção de crianças

de lares onde estas crianças são responsáveis por cuidar dos pais doentes. No Uganda, a constituição, que

consagra o direito da criança em conhecer os pais biológicos e em ser criada por eles, poderá proteger as

crianças neste sentido, mas estes direitos precisam de ser integrados nas políticas existentes que definem

como lidar com crianças órfãs e vulneráveis.3. Falta de clareza sobre se a prestação de cuidados por parte de crianças constitui ou não uma forma de

‘trabalho infantil’: O único país que fez investigação sobre o trabalho infantil no contexto dos elevados

índices de Sida foi o Uganda. Contudo, mesmo no Uganda, não se chegou a nenhuma conclusão que

indique claramente se as actividades que as crianças têm de desempenhar para cuidar dos seus familiares, e

as condições em que o fazem, constituem ‘trabalho’ ou se podem ser categorizadas como ‘trabalho perigoso’

de acordo com as normas da Organização Internacional do Trabalho. Além disso, as implicações legais e

práticas que advirão de a prestação de cuidados por parte de crianças ser classificada como trabalho infantil

não foram devidamente ponderadas.4. Abordagens à prestação de serviços: A Nigéria identifica as crianças órfãs e vulneráveis que necessitam

de receber assistência de natureza específica. Esta abordagem foi posta à experiência noutros contextos

africanos mas, de uma forma geral, acabou sendo rejeitada, devido ao seu insucesso em dar resposta a

vulnerabilidades mais generalizadas que assolam uma grande percentagem dos jovens, sendo que muitos

deles acabarão por ficar órfãos. O Uganda e o Zimbabué defendem uma abordagem mais integrada para

melhoramento da provisão de serviços. A política de oferta de serviços de Angola é menos detalhada no que

diz respeito à Sida, e a tónica é colocada em abordagens voltadas para a reabilitação pós-conflito. Haverá,

provavelmente, razões válidas para esta situação, mas não existe evidência no documento que aponte

para qualquer ligação entre recuperação pós-guerra e as taxas crescentes de Sida, em termos do seu efeito

respectivo ou interactivo nos cuidados no lar e no bem-estar da criança.

"A qualidade da relação entre a criança e a figura paterna ou materna é a melhor forma de prever a saùde mental da criança.

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Mais pertinente, mas menos visível neste âmbito, é o grau de compromisso político para com estas e outras políticas que visam proteger as crianças e as suas relações de afecto mais chegadas, sobretudo em países onde práticas antigas dão prioridade a outros ideais tais como o sistema jurídico dual ou misto que existe no Zimbabué e a tendência que existe para que a lei tradicional domine, geralmente em detrimento das mulheres e das crianças.

Dada a falta geral de conhecimentos sobre o tema das crianças prestadoras de cuidados que ressaltou da revisão da literatura feita no contexto do presente estudo, uma recomendação óbvia aponta para a necessidade de realização de investigação adicional. Mas o tipo de estudo prospectivo e longitudinal em grande escala, que seria necessário para investigar a fundo a dinâmica e os resultados da prestação de cuidados por parte de crianças, não é prático pois seria muito intensivo, em termos de recursos humanos e outros, e precisaria de ser repetido em diferentes locais. Por conseguinte, recomenda-se que se façam avaliações específicas a determinadas áreas, em cada um dos países, em zonas onde a prestação de cuida-dos por parte de crianças seja, possivelmente, causada pela vulnerabilidade criada pela Sida. Um perfil de risco e de resiliência, uma análise de vários factores relativos ao ambiente envolvente, tais como padrões de migração, fontes de rendimentos e obstáculos à obtenção de rendimentos, e um mapeamento dos serviços de apoio existentes, tanto para adultos como para crianças, deverão fazer parte de tal avaliação.

A investigação sobre as crianças cuidadoras nos quatro países ilustra claramente a grande importância que tem a prestação de apoio generalizado a crianças e a famílias que vivem em bairros pobres com elevadas taxas de infecção por VIH. Nesse apoio, deve ainda ser incluído o apoio psicossocial apropriado no seio das famílias – quer dizer, um tipo de apoio que fortaleça os meios disponíveis para as crianças ganharem dinheiro e assim poderem suprir as necessidades básicas (um aspecto importante na protecção da sua saúde mental), bem como a oferta de apoio psicossocial específico a crianças e adultos que permita tornar mais fácil a comunicação sobre doença, perda, luto, e planeamento futuro.

"O fabrico de tijolos é um trabalho

pesado." (Rapaz, 17, Uganda)

A investig

ação sobre

as

crianças cu

idadoras n

os

quatro pa íses

ilustra

claramente

a grande

importância q

ue tem

a prestação d

e apoio

generalizad

o a crianças

e a fam ílias

que vivem

em bairros p

obres

com elevadas

taxas de

infecção por VI

H.

Quatro Estudos de Caso

Nigéria

Zimbabué

7ZimbabuéA investigação foi feita na cidade de Victoria Falls que se situa na fronteira setentrional com a Zâmbia. A cidade é um pequeno centro turístico que acolhe os milhares de turistas que a visitam para ver as famosas cachoeiras. As crianças que integraram o estudo eram provenientes de um bairro da cidade e de uma aldeia rural ali próxima.

UgandaA pesquisa teve lugar na cidade de Nakasongola, na região Central do Uganda. Metade das crianças que participaram do estudo vivia nos arredores da cidade e a outra metade numa vila próxima do Lago Kyoga. A maior parte das famílias da área vive da agricultura de subsistência, embora algumas famílias que vivem próximo do lago recorram à pesca, enquanto outras, mais próximas da cidade, aproveitam as oportunidades que têm para vender os produtos informalmente.

NigériaA investigação foi realizada em Kafanchan, uma cidade no Estado de Kaduna, na Nigéria. Kafanchan é uma cidade com aproximadamente 83 000 habitantes, situada a 100 km a nordeste da capital, Abuja. Foi, em tempos, uma estação de comboios terminal, com muito movimento, mas após o colapso dos serviços ferroviários na Nigéria, tornou-se num centro comercial e agrícola. Metade das crianças que integraram o estudo provinha de um bairro, nos arrabaldes da cidade, originariamente construído para alojar os trabalhadores dos caminhos-de-ferro. As restantes crianças eram de uma vila onde as pessoas vivem da agricultura de subsistência.

AngolaA pesquisa teve lugar na cidade do Huambo, em Angola, cidade que foi assolada pelo conflito durante a guerra civil no país. Muita da população rural das zonas circundantes refugiou-se na cidade e ali permaneceu. Não há uma única família que não tenha sido afectada pela guerra. Desde o fim da guerra, foi feito muito trabalho de reconstrução na cidade propriamente dita, mas o desenvolvimento da zona agrícola circundante tem sido muito mais lento. As crianças que integraram o estudo provinham de pequenas casas nos arredores da cidade, construídas pelas populações deslocadas.

a razão pela qual as crianças assumem o papel de •cuidadorasa sua experiência e percepção relativamente ao •papel de cuidadorasa percepção que têm do efeito que a sua função •de cuidadoras terá tido na sua relação com os adultos do seu agregado, se estes estiverem presentes

Os estudos de caso tiveram como propósito específico descobrir:os desafios e dificuldades que enfrentaram enquanto •cuidadoraso apoio que elas terão recebido•os factores de resiliência e de pressão que elas foram •capazes de identificar como estando presentes nas suas vidasas ideias que as crianças possuem sobre apoios e •intervenções que poderiam ajudá-las

8

A pensar sobre as fotografias

de que preciso para contar

como é a minha vida

2 Doze das crianças que fizeram parte do estudo de caso na Nigéria tinham recentemente entrado para o projecto da Fundação Fantsuam de Apoio aos Órfãos. Estas crianças recebem assistência que lhes permite frequentar a escola e também recebem alguma ajuda em termos de alimentação.

3 Boyden, J and Ennew, J (eds) (1997). Children in Focus: A Manual for Participatory Research with Children. Stockholm: Save the Children Sweden.

Clacherty, G and Donald, D (2007). Child participation in research: Reflections on ethical challenges in the southern African context. African Journal of AIDS Research, 6(2): 147–56.

Schenk, K and Williamson, J (2005). Ethical Approaches to Gathering Information from Children and Adolescents in International Settings: Guidelines and Resources. Washington DC: Population Council.

A olhar pelo visor

Uso de feijão para ilustrar o

trabalho realizado a fim de se

ganhar dinheiro

Abordagem da InvestigaçãoPara este fim, em cada uma das localidades estudadas, uma organização não governamental local identificou uma amostra de 12 crianças (seis raparigas e seis rapazes), todas elas com menos de 18 anos de idade e todas elas responsáveis pela prestação de cuidados a adultos doentes, a adultos muito idosos, ou a crianças. A maior parte das crianças seleccionadas não recebia qualquer assistência de nenhuma organização de apoio a crianças2. Estas 12 crianças inicialmente seleccionadas foram incumbidas de entrevistar duas ou três outras crianças prestadoras de cuidados que vivem na mesma área. Um total de 124 crianças (61 raparigas e 63 rapazes), com idades com-preendidas entre os 8 e os 17 anos, participaram do estudo nas quatro localidades em que a investigação foi realizada.

As primeiras 12 crianças em cada localidade participaram de um primeiro workshop introdutório. Durante esse workshop, elas tomaram parte de uma série de actividades que lhes per-mitiu contar aos investigadores como era a sua vida enquanto prestadores de cuidados. Desenharam todas as pessoas que viviam sob o mesmo tecto e retrataram o seu trabalho diário. Fizeram um mapa de todos os lugares que visitavam num só dia e nele assinalaram os lugares onde recebiam apoio e ajuda. Através de dramatizações e jogos, identificaram os seus proble-mas e preocupações bem como as capacidades adquiridas no exercício das suas funções de cuidadores.

Cada uma das crianças identificou duas outras crianças presta-doras de cuidados e suas conhecidas que poderia entrevistar. As crianças receberam máquinas fotográficas descartáveis para registar as suas observações. Para a realização das entrevistas, foram concedidas duas semanas às crianças investigadoras. Volvida essa quinzena, as criançasparticiparam num segundo workshop, durante aqual apresentaram o relatório das entrevistas e descreveram as fotografias que tinham tirado.

A informação do primeiro e do segundo workshop foi gravada e transcrita. As transcrições foram analisadas segundo o método da análise temática. Alguns dos temas que emergiram são apresentados na Secção 3, a seguir.

Durante a realização da presente investigação, foi assegurado o devido cuidado por forma a que o trabalho efectuado respeitasse os princípios éticos. As directrizes da Save the Children sobre como salvaguardar o bem-estar das crianças e sobre políticas de participação de crianças (“Save the Children Child Safeguarding – Safe Child Participation Policy”) foram aplicadas antes de a investigação ter tido início. Um conjunto de princípios éticos gerais, assentes em diversas directrizes, foi igualmente aplicado. 3

Investigação conduzida por criançasExiste um interesse crescente em incluir as crianças em processos de investigação que as afectam directamente4. A

participação das crianças é extremamente importante porque permite aceder a informação essencial que, de outra forma,

não seria obtida. Ultimamente, tem havido um apelo para aumentar o envolvimento activo das crianças nos processos de

investigação. Conforme Kellett (2005: 4)5 salienta:… muita da investigação participativa continua a ser liderada por adultos, planeada por adultos, e concebida a partir de

um prisma adulto. As crianças fazem parte da subcultura da infância e isto dá-lhes uma perspectiva de dentro singular e

crucial para compreendermos o seu mundo. No entanto, existe muito pouca investigação feita por crianças...

Numa tentativa de alargar a natureza participativa da investigação, o presente estudo incorporou, na sua metodologia,

investigação conduzida pelas próprias crianças. As crianças prestadoras de cuidados que estiveram presentes durante a

primeira oficina de trabalho identificaram as perguntas que seriam usadas durante a investigação através de um exercício

de classificação ordenada. Em seguida, aprenderam a realizar inquéritos; a pedir autorização para fazer a pesquisa; quais

os métodos que deveriam adoptar para se manter a confidencialidade dos dados recolhidos, e o modo como deveriam

formular as perguntas. Por meio do uso de máquinas fotográficas descartáveis, tiveram oportunidade de examinar de que

forma as fotografias podem contar uma história. Munidas desses instrumentos e conhecimentos, entrevistaram crianças

conhecidas prestadoras de cuidados e tiraram fotografias para registar o que observaram.A informação recolhida pelas crianças investigadoras concedeu maior profundeza aos dados recolhidos durante o estudo. As

crianças entrevistadas falaram mais abertamente com as crianças investigadoras do que teriam feito com um adulto, tendo

revelado detalhes muito íntimos da sua vida. Acresce notar que a actividade de pesquisa também beneficiou as crianças

investigadoras, como revelam as citações apresentadas em seguida: aumentou a sua auto-estima, permitiu-lhes estabelecer

uma relação com outros prestadores de cuidados e ajudou-as a compreender que não estão sozinhas neste tipo de situação.

“Este trabalho que vocês nos confiaram é muito importante. Vamos fazê-lo com muito cuidado para que muitas outras

pessoas passem a ter conhecimento sobre as crianças que se encontram na nossa situação. Eu acho que é bom nós irmos

falar [com as outras crianças] porque elas sabem que nós somos como elas e vão abrir-se connosco.” (Rapariga, 14 anos,

Uganda)

“Das observações que fiz, descobri que as duas crianças têm problemas parecidos com os meus. As condições em que eles

se encontram são praticamente iguais às minhas. Também fiquei a saber que não sou a única pessoa com problemas. Há

outras crianças que estão a sofrer como eu. Isto fez-me sentir mais forte e mais resiliente.” (Rapariga, 17 anos, Uganda)

Uma das lições aprendidas com esta experiência foi que as crianças mais novas tinham muitas vezes dificuldades em

explicar por que razão queriam tirar determinada fotografia. A presença de um adulto da localidade, que estava informado

sobre o processo e o compreendia, foi muito importante, pois houve vários casos em que o adulto teve de mediar o acesso

da criança investigadora às crianças que ela queria entrevistar. As crianças investigadoras também precisaram de recorrer à

ajuda do adulto para explicar que não podiam tirar fotografias ao acaso, mas que as fotografias deveriam permitir fazer um

registo das actividades diárias do inquirido.“Um grupo de raparigas no poço queria que eu lhes tirasse uma fotografia. Quando recusei, elas começaram a gritar contra

mim.” (Rapariga, 17 anos, Zimbabué)“Um dia juntei os meus amigos para os entrevistar. Estava a pedir-lhes que fizessem desenhos das tarefas que fazem

diariamente como nós fizemos durante o primeira workshop. Nesse dia, o tio do M ficou muito zangado comigo por eu ter

reunido as crianças e acusou-nos de estarmos só a brincar. Fiquei muito surpreendido por o tio dele ter ficado tão zangado,

mas mais tarde soube que o M tinha feito o trabalho a correr e tinha saído de casa para vir ter connosco. Foi por isso que o

tio ficou tão zangado. Fui então falar com a tia R, que depois falou com o tio e ele compreendeu porque é que eu estou a ter

reuniões com as crianças. Foi assim que eu pude entrevistar o M.” (Rapaz, 15 anos, Nigéria)O uso de fotografias como ferramenta de investigação teve muito sucesso. As fotografias deram às crianças uma forma

tangível de registar eventos sem exigir grandes competências em termos de leitura e escrita. Permitiram também às

crianças registar pequenos detalhes e matizes do quotidiano que nos permitem compreender melhor os problemas por

elas enfrentados.

4 Boyden, J and Ennew, J (eds) (1997). Children in Focus: A Manual for Participatory Research with Children. Stockholm: Save the Children Sweden. Grover, S (2004). Why won’t they listen to us? On giving power and voice to children participating in social research. Childhood, 11: 81–93.

5 Kellet, M (2005). Children as active researchers: A new research paradigm for the 21st century? NCRM Methods Review Papers: NCRM/003. London: ESRC National Centre for Research Methods.

9

10

Estou

a lavar

a minh

a irm

ã mais

nova. Ela

está

doente

e vou

levá-

la

ao hos

pital

(Rapariga, 14 anos, Uganda)

Estou a sair para a escola. Passei a ferro a farda do meu irmão. A farda está artrás da porta.(Rapaz, 11 anos, Zimbabué)

Eu lavo a

roupa dos

vizinhos par

a ganhar

dinheiro. C

ompro sal,

meio quilo de

feijão,

parafina, ca

dernos e

canetas. Uso

parafina à

noite, porqu

e a minha a

tem ataques m

uito fortes

durante a n

oite e preci

sa

de luz. (Rap

az, 12

anos,

Ugan

da)

As fotografias também permitiram às crianças entrevistadas relacionar directamente as questões que estavam a discutir

com o seu quotidiano; elas viram as fotografias como uma forma muito útil para contarem a história do seu dia-a-dia. O

extracto apresentado a seguir, uma transcrição de uma criança investigadora em Kafanchan, na Nigéria, ilustra como as

fotografias são uma ferramenta eficaz para recolha de dados.

Uma criança investigadora da Nigéria apresenta a

um investi-

gador adulto (IA) o relatório da

entrevista que realizou a um

amigo que também é criança cuidadora

“A criança que eu entrevistei chama-se V. Ele tem 15 anos e tanto o pai como a mãe já morreram. Ele está no Segundo Ano da

Escola Secundária. São quatro irmãos. O V toma conta dos três irmãos. É como se ele fosse o pai e a mãe dos seus três irmãos.”

IA: Fala-me um pouco das fotografias que tiraste sobre o dia-a-dia do V.

“O V disse-me que esta fotografia serve para mostrar o trabalho que ele faz para cuidar dos seus irmãos e ter as roupas dele sempre

limpas. Nesta fotografia ele está a lavar a roupa dos irmãos. Ele também tem de ir buscar água para eles todos os dias.”

IA: E nesta foto, o que é que ele está a fazer?

“O V pediu-me para tirar esta fotografia para mostrar que ele empurra um cangulo (carrinho de mão) nos dias em que há mercado. Ele

diz que todas as quartas-feiras (o dia do mercado) aluga um cangulo por N50 (50 Naira), e se trabalhar muito consegue levar para casa

N300 (USD2) ou N400 (USD2.67) Nairas.

IA: E o que é que esta foto mostra?

“Esta foto mostra o V a vender tomate e pimento fresco frente à casa. Debaixo da árvore estão os irmãos dele. Ele diz que com o dinheiro

que ganha com o outro trabalho que faz, compra tomates frescos e pimentos e vende-os em frente à casa. Por vezes, pode pedir aos

irmãos para tomarem conta dos produtos enquanto vai fazer outras coisas que lhe permitem ganhar mais dinheiro. Diz que não tem

ninguém para o ajudar a pagar as propinas na escola, a comprar os livros ou as fardas. Diz que também tem problemas em comprar

sapatos para a escola. Ele disse que houve um período em que ele não pôde frequentar a escola porque estava doente e não podia

trabalhar para ganhar dinheiro para fazer face às despesas escolares. Ninguém o ajuda, e ele teve de perder um período inteiro de aulas.”

IA: E esta foto?

“Ele diz que todos os dias lava o chão da casa por ser ele o mais velho. Os irmãos não sabem lavar o chão, e para manter a casa limpa

ele lava o chão todos os dias. Esta fotografia mostra o V a dar banho à irmã pequenina, a Jane. Isto é parte do trabalho que ele faz

como cuidador dos seus irmãos. Ele quer que eles se apresentem lavados e limpos todos os dias.”

IA: Que história é que esta fotografia conta?

“Ele disse que ele é o único dos irmãos que sabe cozinhar e que tirou esta fotografia para mostrar como é que ele cozinha

para os irmãos, quando têm comida em casa. Disse que é muito difícil porque seja o que for que estiver a fazer, tem de

parar e vir para casa para preparar a comida.”

IA: E esta foto?

“Nós jogamos futebol no campo todos juntos. Ele pediu-me para tirar esta fotografia dele a jogar futebol porque

o futebol é uma maneira de se esquecer de todos os problemas que tem, é uma maneira de ele se rir e de brincar

com os amigos.”

1111

Esta é a irmã do meu avô a plan

tar

jinguba (amendoim). Quand

o ela se

sente bem ajuda-m

e

(Rapaz,

17 anos,

Uganda)

Eu tenho de lavar os cobertores do meu tio. Tenho de os lavar quase todos os dias.(Rapaz, 10, Zimbabué)

Quando me sinto

muito triste e

preocupado

por causa da f

alta de comida e d

a doença

da minha mãe, vou trabalh

ar para a hort

a.

Depois, sinto-m

e calmo. (Rap

az, 16,

Zimbabué)

11O meu irmãomais novo ajuda-me a lavar roupa. Mas as minhas irmãsmais novas ainda sãomuito pequenas e por isso eu sou a ùnicaque cozinha. Eu sou a ùnica rapariga que pode tomar conta delas.(Rapariga, 16 anos, Uganda)

12

Resultados

Desenho da menina de 14 anos citada anteriormente

Quando se examina o tipo de cuidados prestados pelas crianças dos quatro países, um dos aspectos que ressalta imediatamente é que a maior parte destas crianças é responsável por cuidar de muitas pessoas ao mesmo tempo, algumas delas cuidando de mais de um adulto doente ou idoso, e todas elas olhando por crianças pequenas. Muitas das crianças também já tinham cuidado de doentes repetidas vezes. A maior parte das crianças que cuidavam agora dos avós, e todos os que eram chefes de famílias constituídas apenas por crianças, tinham cuidado de um ou de ambos os pais antes da sua morte.

"Eu tenho o problema de ter de cuidar dos meus avós e da minha mãe doente. E nós somos 10 crianças. A minha irmã mais nova também está doente" (Rapariga, 17 anos, Uganda)

Prestação mùltipla e repetida de cuidados

"A minha mãe e o meu pai m

orreram.

Eu cuidei do m

eu pai e da minha

mãe ao mesmo tempo, depo

is cuidei

da minha mãe, depois a m

inha irmã

voltou para casa

e ela também es-

tava doente. El

a já morreu. Agora, eu

cuido da minha irmã mais nova

e do

meu irmão, e também do meu prim

o.

A minha tia também morreu. T

ambém

tenho de cuidar

da minha bisavó, do

meu avó e da minha avó."

(Raparig

a, 14 an

dos,

Zimbabué)

Os seguintes temas surgem como resultado da investigação conduzida por crianças prestadoras de cuidados

Cuidados prestados por rapazes e raparigasAs crianças que participaram no primeiro workshop de trabalho constituíram uma amostra intencional – havia números iguais de rapazes e de raparigas – mas as declarações que fizeram deixaram bem claro que tanto as raparigas como os rapazes seus conhe-cidos eram responsáveis pela prestação de cuidados. Este grupo inicial não teve qualquer dificuldade em identificar rapazes e raparigas cuidadores para as entrevistas. Na Nigéria, 12 das 19 crianças cuidado-ras que foram escolhidas pelo grupo inicial eram rapazes, e no Uganda 14 das 24 crianças entrevista-das pelo grupo inicial eram rapazes. Na opinião das crianças, os rapazes e as raparigas têm as mesmas probabilidades de serem cuidadores.

“Tanto os rapazes como as raparigas são prestadores de cuidados.O filho mais velho tem de tomar conta dos mais novos.Se és o único filho, tens de tomar conta da tua avó – sejas rapaz ou rapariga.Eu sou rapaz, mas cuido do meu pai que está doente e do meu irmão mais novo, e quando o meu tio nos visita, às vezes também tenho de cuidar dele.” (Rapazes, Nigéria)

“Mesmo sendo rapaz, se a minha mãe está doente eu tenho de cuidar dela. Não há mais ninguém. Ela é minha mãe.” (Rapaz, 17 anos, Zimbabué)

Responsabilidade financeiraUm outro tema surpreendente foi a forma como as crianças definem a sua própria identidade como cuida-dores. Para eles, uma criança prestadora de cuidados

é uma criança que trabalha arduamente para garantir que o agregado familiar tenha comida e outros pro-dutos essenciais – para estas crianças, as tarefas que desempenham na prestação de cuidados propriamen-te dita são tarefas secundárias.

IA: O que é que uma criança prestadora de cuidados faz?“Tem de trabalhar para ganhar dinheiro para a família.” (Rapaz, 14 anos, Nigéria)“Nós temos de trabalhar duramente para ganhar dinheiro para comer porque a nossa avó está muito velha e não consegue ganhar dinheiro para nos sustentar.” (Rapariga, 16 anos, Uganda)

As crianças deixaram bem claro que quando têm de tratar de uma pessoa doente ou muito idosa, o fardo financeiro é ainda mais pesado pois estas pessoas precisam de alimentos especiais e de medicamentos.

“Eu acho que a pior coisa que eu faço é comprar me-dicamentos para a minha avó. Porque nós gastamos todo o dinheiro em medicamentos. Os medicamentos são muito caros. Precisamos de andar sempre a tentar arranjar mais dinheiro para poder comprar comida.” (Rapariga, 16 anos, Uganda)

“Às vezes, no balcão do hospital, dão-nos uma receita para medicamentos para o mais novo, mas não nos dão os medicamentos. Nós temos de levar a receita e ir comprar os medicamentos. Eu tenho de trabalhar para juntar dinheiro para poder comprar os medicamentos.” (Rapariga, 13 anos, Angola)

A tabela a seguir apresenta um esboço do tipo de actividades que quatro crianças que participaram nos estudos de caso na Nigéria e no Uganda fazem para ganhar dinheiro. Estas crianças são exemplos típicos das crianças nas quatro localidades onde foram realizados os estudos, pois ilustra que desempenham várias tarefas para ganhar dinheiro de forma a poderem suprir as necessi-dades básicas do agregado familiar. Nos quatro exemplos, as crianças fazem todas estas tarefas e ainda frequentam a escola.

Rapariga, 17, Uganda

Buscar água para os vizinhos. Cavar a terra dos vizinhos. Ajudar o vizinho que faz cerveja local Fazer carvão

13

Eu trato dos animais de criação de um vizinho

(Rapaz, 11 anos, Uganda)

Rapaz, 14 an

os,

Nigéria

Empurrar cangulos de

mercadorias até à cidade

Buscar água para os

vizinhosApanhar lenh

a para os

vizinhosBuscar areia

do rio

para vender

Lavrar a terra de

outras pessoas

(Rapaz, 14 a

nos,

Uganda)

Fazer carvão

Fazer cordas

Cavar a terra dos

vizinhosTrabalhar c

omo

carregador nas

obras

Rapariga, 12 anos, NigeriaVender jinguba cozidaComprar e vender cana-de-açùcarFazer e vender burukutu (cerveja local)

Buscar água e venderCozer inhame para vender

14

Eu pesco peixes e vendo. Um senhor

bondoso que eu conheço empresta-me

o barco dele para eu poder pescar.

(Rapaz, 10 anos, Uganda)

É isto que o B faz para ganhar dinheiro e se sustentar. Ele é mecânico de motorizadas. Geralmente vai para a oficina todos os dias depois da escola e depois de ter completado todas as tarefas que precisa de fazer em casa.(Crianca investigadora a fazer o relatório sobre um rapaz de 12 anos,

Nigéria)

Cavo a lavra do vizinho e ele

dá-me comida (Rapaz, 15

anos, Zimbabué)

Aqui estou a lavar a roupa de uma vizinha e ela paga-me

(Rapariga, 14 anos, Angola)

15

Um dos problemas mencionados pelas crianças é que o trabalho que têm de fazer para ganhar dinheiro é muito duro e pesado.

“O transporte de areia é muito pesado. Eu fico tão deprimido que até fico doente e a carga é muito dura.” (Rapaz, 13 anos, Nigéria)

No Zimbabué, onde o colapso da economia tornou o trabalho informal quase impossível, as crianças têm de trabalhar arduamente para conseguirem suprir as necessidades mais básicas, como a obtenção de alimen-tos (geralmente suficientes apenas para uma refeição). Gastam também muito tempo a mendigar comida.

“Eu vou de porta em porta a pedir aos vizinhos.Nós mendigamos e pedimos emprestado aos vizinhos.Se eles não têm, ficamos sem nada.Às vezes os vizinhos dão-nos alguma coisa, outras vezes não.Os vizinhos dizem que estão cansados de nós lhes pedir-mos comida.” (Rapazes e raparigas, Zimbabué)

O estudo revelou claramente que todas as crianças que participaram da presente investigação não conseguem suprir as necessidades básicas do agregado familiar. Não obstante trabalharem para isso, não conseguem ganhar o suficiente, nem mesmo para os alimentos. A fome foi uma questão que foi levantada por todas as crianças.

“Esta gravura conta a minha história e mostra uma das actividades que faço para cuidar da família. Eu tenho de cozinhar para todos os membros da família. Eu cozinho uma vez por dia, e nós comemos uma refeição de manhã e outra à noite. Geralmente, nós não comemos à tarde, e às vezes não comemos nenhuma refeição durante todo o dia quando não temos comida em casa.” (Rapaz, 13 anos, Nigéria)

“Às vezes, nós passamos uma semana inteira sem comi-da. A estação mais importante para nós é a estação das mangas porque podemos simplesmente apanhar uma manga da mangueira e comer.É tão bom. [Todas as crianças concordam]Eu estou desejoso que chegue a estação das mangas.Às vezes não há comida nenhuma.Há outras crianças que comem três boas refeições por dia, mas há dias em que nós não comemos nem sequer uma refeição.” (Rapazes e raparigas, Nigéria)

Mencionaram, também, que não têm dinheiro para comprar sabão, roupas ou cobertores. Confessaram que têm muita dificuldade em fazer as reparações neces-sárias às casas, que muitas vezes deixam entrar a água das chuvas, e que têm muitas dificuldades em obter o dinheiro de que precisam para a escola. Uma outra questão levantada foi que muitos dos órfãos perderam as terras da família quando os pais morreram, pelo que agora não têm terra suficiente para cultivar os alimentos para consumo próprio. Algumas destas crianças tinham ainda de arranjar dinheiro para pagar renda.

“Quando os meus pais morreram, o meu avô tinha um terreno. Depois, veio uma pessoa dizer que a minha avó já não falava, que nós devíamos deixar a nossa terra e a nossa casa e ir viver para uma casa alugada para tratar da minha avó. E agora nós não temos terreno.” (Rapari-ga, 16 anos, Angola)

“Houve uma pessoa que veio comprar. Deram-nos uma porção mais pequena, com um quarto e uma casa de banho, mas nós tínhamos uma lavra grande da família. É por isso que a renda é um problema. Nós agora temos de lhes pagar renda.” (Rapaz, 12 anos, Uganda)

16

Lavar a roupa e os cobertores dos doentes

Preparar alimentos especiais para os doentes e para os idosos

Ficar perto dos doent

es e

contar-lhes histórias

A lida da casa e a prestação de cuidadosPara além de serem forçadas a trabalhar para colmatar as necessidades básicas, todas as crianças tinham de fazer a lida da casa e ir buscar água e lenha. No caso das crianças responsáveis por crianças muito novas, o trabalho é bastante pesado pois as crianças pequenas não os podem ajudar muito. Os desenhos a seguir ilus-tram o trabalho que uma rapariga faz logo de manhã, antes de ir para a escola.

IA: Mas as crianças não são todas obrigadas a fazer tarefas caseiras?“Nós estamos a fazer mais do que as outras crianças por causa dos nossos familiares doentes – como por exemplo lavar os cobertores.Nós não temos ninguém para nos ajudar com este trabalho.

Comprar os medi-camentos e certi-ficar-se de que os doentes os tomam

Dar de beber aos doent

es

Esta gravura

mostra...

que eu estou

a lavar

o chão do quart

o

onde dormimos por

que

quando a minha mãe

está muito f

raca, ela

vomita no quarto

, e eu

tenho de lava

r o chão

constantemente p

ara o

quarto ficar

limpo e

arrumado.

(Raparig

a, 15 an

os,

Nigéria)

1717

Dar banho aos mais novos

Como, por exemplo, a recolha de lenha para o fogo, ou dar banho aos mais novos.”IA: Quem é que geralmente ajuda com estas tarefas?“São os pais.” (Rapazes e raparigas, Nigéria)

Um dos maiores problemas que ascrianças identificaram, relacionados com as suasobrigações como prestadores de cuidados, tem que ver com a prestação de assistência a adultos do sexo oposto. Os rapazes explicaram que não gostam de dar banho às avós e as raparigas disseram que não gostam de dar banho aos pais e aos irmãos rapazes.

“B trata da mãe que está incapacitada, mas diz que é difícil tomar conta dela, que é do sexo oposto, porque ele às vezes, ou muitas vezes, tem de lhe dar banho.” (Criança-investigadora a apresentar relatório sobre uma entrevista com uma criança de 8 anos, Zimbabué)

“Eu só lavo os pés e as mãos da minha avó. Mas é muito difícil lavar o corpo todo. E não podemos dizer a ninguém.” (Rapaz, 16, Zimbabué)

“É muito difícil quando uma pessoa está a tomar conta da mãe e ela tem de ir à casa de banho e a pessoa tem de a acompanhar. Eu estou sozinho e sou rapaz, mas tenho de lavar a roupa da minha mãe. Não há mais ninguém em casa. Sinto-me muito perturbado porque acho que se a minha mãe não estivesse nesta situação eu não me ia sentir assim. Se a minha mãe tivesse saú-de, ela é que ia tomar conta de mim e não ao contrário como acontece agora.” (Rapaz, 15, Angola)

As crianças sentem-se preocupadas por não saberem como devem tomar conta dos doentes. Uma outra questão que foi levantada muitas vezes foi o medo que elas têm de contrair VIH. Muito poucas crianças sabiam ao certo se os pais tinham Sida, mas muitas delas suspeitavam que sim.

“A mãe não lhes disse, mas eles ouvem os vizinhos a falar sobre eles.” 6 (Rapariga, 16, Uganda)

“Um outro problema é que nós não sabemos como tratar de pessoas doentes.”

IA: O que gostavas de saber?“O tipo de medicamentos que eles precisam de tomar e como tratar das pessoas doentes ou idosas.

Algumas pessoas vêm cá e falam sobre o VIH e a Sida, mas vão de um sítio para o outro, falam e vão-se embora. Ninguém me mostrou como se cuida de uma pessoa com VIH. Eu gostava de saber sobre o tratamento.” (Rapazes e raparigas, Uganda)

“Como ela não sabe, ela tem medo de apanhar a mes-ma doença. Talvez seja Sida.Ela parece que tem medo. Ela também tem medo da hepatite”7. (Rapazes e raparigas, Nigéria)

Nas quatro localidades onde o estudo foi realizado, as crianças não demonstraram qualquer ressentimento relativamente ao pesado fardo que carregam. Pelo con-trário, orgulham-se de cuidarem bem dos irmãos mais novos, e muitos disseram que gostavam de cuidar das avós velhinhas e dos pais doentes porque os amam.

“Nós vivemos neste quarto com a minha avó. Eu estou a lavar o quarto para ficar limpinho e a minha avó se sentir feliz porque ela passa a maior parte do tempo dentro de casa.” (Rapariga, 12 anos, Nigéria)

“Nós gostamos muito delas e por isso damos comida, damos banho e lavamos a roupa delas. Nós também as levamos à latrina porque elas não podem ir sozinhas. Precisam de ajuda. Elas são as nossas avós e nós temos de as amparar.” (Rapaz, 17 anos, Uganda)

“Eu tenho de tentar, de todas as maneiras possíveis, arranjar comida para a minha avó porque ela é muito velhinha.” (Rapaz, 17 anos, Zimbabué)

Quando questionadas sobre as tarefas que queriam deixar de fazer, nenhuma das crianças das quatro loca-lidades estudadas disse que queria deixar de prestar os cuidados pessoais. Consistentemente, o trabalho que estas crianças não querem fazer é o esforço terrível e inexorável de procurar ganhar dinheiro.

“Logo de manhã cedo eu sinto-me muito mal porque não fiz nenhum trabalho, mas estou sempre a pensar nisso. A pessoa sente o peso. Sim, era bom não ter essa responsabilidade. Mesmo quando estou na cama, não consigo dormir a pensar em todo o trabalho que tenho de fazer. Às vezes não durmo só a pensar nestas coisas.” (Rapazes e raparigas, Angola)

6 A fim de manter a confidencialidade, permitimos que as crianças discutissem o medo que têm quando tratam de uma pessoa com Sida, através do uso de silhuetas. Embora as crianças se referissem a outras crianças nas declarações que faziam, é muito provável que estivessem a contar experiências pessoais.

7 O mesmo se aplica a esta situação.

"Eu tenho de tentar, de todas as maneiras possíveis, arranjar comida para a minha avó porque ela é muito velhinha."(Rapaz, 17 anos, Zimbabué)

Esta gravura

mostra...

que eu estou

a lavar

o chão do quart

o

onde dormimos por

que

quando a minha mãe

está muito f

raca, ela

vomita no quarto

, e eu

tenho de lava

r o chão

constantemente p

ara o

quarto ficar

limpo e

arrumado.

(Raparig

a, 15 an

os,

Nigéria)

18

Razões pelas quais as crianças se responsabilizam pelos familiaresDo ponto de vista das crianças, a principal razão pela qual assumiram a responsabilidade de ganhar dinheiro para a família e de realizar as tarefas no lar, era porque não havia mais ninguém para o fazer.

“A pessoa não tem escolha. Porque se a mãe está doente a pessoa não tem outra opção. Não pode dizer que não pode fazer porque o trabalho tem de ser feito.Não posso escolher porque não há outra pessoa para fazer o trabalho a não ser eu. É uma obrigação. Porque se eu não preparar a comida eu posso morrer de fome e a minha avó também pode morrer.” (Rapaz e rapariga, Zimbabué)

Os adultos com quem falámos nos quatro locais onde os estudos de caso foram realizados8 disseram claramente que a situação que se vive, em que as crianças desempenham sozinhas o papel de cuidadores, não é uma norma cultural, mas sim o resultado da perda da geração intermediária, devastada pelo VIH e Sida.

“Não é nossa prática cultural [as crianças terem de zelar pelos avós]. A tradição é os pais cuidarem dos seus filhos. Esta situação resultou da morte dos pais que deixaram os filhos ao cuidado dos avós.As crianças não têm outra opção.Esta situação deve-se à Sida.” (Adultos que integram um grupo de apoio numa vila na Nigéria)

Problemas com a escolaDepois do problema que têm em obter o dinheiro necessário para suprir as carências quotidianas, a maior dificuldade que as crianças prestadoras de cuidados enfrentam tem que ver com a obtenção dos recursos necessários para poderem frequentar a escola. Este é um desafio tanto para as crianças que frequentam a escola como para as crianças de quem tomam conta. Muitas vezes as crianças cuidadoras são mandadas para casa por não terem dinheiro para as propinas, os materiais escolares ou o vestuário exigido sendo esta a principal razão pela qual faltam à escola.

“O J contou-me os problemas que tem na escola. Às vezes ele é mandado para casa por causa das propinas e da farda. Também não tem os livros de que precisa. Não tem ninguém para o ajudar. Faz tudo sozinho. Por vezes vende uma galinha, quando há uma crise. Ou trabalha uns dias para ter dinheiro para poder voltar para a escola.” (Rapariga, 16 anos, a apresentar o relatório sobre a entrevista que fez a um rapaz de 12 anos, Uganda)

Um dos rapazes mais velhos revelou que o motivo pelo qual abandonou a escola foi para ganhar di-nheiro para que os mais novos pudessem continuar a frequentar a escola. Um outro rapaz disse que muitas vezes pensa em abandonar a escola para poder ga-nhar dinheiro para a família. Ele tirou uma fotografia a um amigo que o tem ajudado e que o persuadiu a permanecer na escola.

As crianças também faltam à escola porque têm de ficar em casa a tomar conta do doente ou ir ao hospital buscar medicamentos. Um outro proble-

8 Em cada localidade onde foram realizados os estudos de caso, falámos com um grupo de entre 15 a 20 adultos da comunidade local sobre as crianças que conheciam que cuidavam de alguém.

Uma criança investigadora de 1

2

anos apresenta o relatór

io de uma

entrevista que realizo

u com uma

rapariga de 15 anos

“A M é uma jovem que toma conta da avó. Ela teve de

abandonar a escola quando acabou a sexta classe na

escola primária, porque não tinha dinheiro para pagar

as propinas para a escola secundária. Antes disso, na

época da cana-de-açúcar, ela vendia cana pelas ruas,

mas a avó viu como era penoso o trabalho e pediu-lhe

que deixasse de vender cana e passasse a trabalhar como

doméstica para uma família que vive perto delas.”

IA: Agora que ela já não frequenta a escola, ela disse-te

como é que se sente por isso?

“Quando eu lhe perguntei sobre a escola, ela começou a

chorar, e eu tive de parar de lhe perguntar.”

IA: Oh, lamento imenso. Foi bom não teres feito mais

perguntas. Que trabalho é que ela faz?

“Ela trabalha numa casa como doméstica até ao meio

dia. Depois vem para casa e cozinha, dá banho ao

irmão mais novo, vai buscar água para a avó e para

toda a casa. Com o dinheiro que ganha, ela compra

medicamentos para a avó e ainda a comida. Ela diz que

ninguém a ajuda, a não ser uma amiga que vive perto e

que às vezes lhe dá comida.”

"A segunda foto é do meu amigo que me aconselha e me dá apoio moral. Nesta foto, nós estávamos a conversar. Nós frequenta-mos a mesma escola. Houve um dia em que eu quis desistir da escola por causa dos problemas, mas o meu amigo aconselhou-me a não fazer isso. Ás vezes, quando tenho uma crise financeira, ele dá-me dinheiro. Ele não é como eu, ele tem pais."

(Rapaz, 16 anos, Nigéria)

1919

ma que muitas das crianças enfrentam consiste em chegarem atrasadas à escola e não terem tempo para estudar e para fazer os deveres de casa por causa da lida da casa e dos cuidados que têm que dispensar aos outros membros do agregado familiar. Além disso, a maior parte das crianças só consegue começar a estudar muito tarde porque quando chegam a casa têm muitas outras tarefas para cumprir..

Apoio e discriminaçãoPoucas pessoas sabem que as crianças são prestadoras de cuidados. Durante o primeiro workshop, as crianças fizeram um desenho de um mapa da área onde vivem e depois assinalaram as pessoas que sabiam que eles cuidavam dos seus familiares. A maior parte das crianças identificou apenas duas ou três pessoas (ou grupos de pessoas): o vizinho do lado, um amigo (que muitas vezes é, ele próprio, prestador de cuidados) e a igreja. Algumas crianças tinham um parente que as ajudava quando podia.

Por vezes, os vizinhos ajudam, geralmente com ofertas pequenas, como sal. Houve várias ocasiões em que as crianças mencionaram que os vizinhos lhes dão comida, ou que lhes pedem para fazerem alguns trabalhos em troca de comida. O apoio institucional varia de país para país. Na Nigéria e no Zimbabué algumas crianças recebiam apoio das ONG locais mas não havia ONG no

Esta fotografia mostra que eu estava a fazer os deveres de casa para a escola. Eu tenho muito pouco tempo para estudar. Eu tenho muito trabalho todos os dias e só depois de o acabar é que posso estudar.(Rapaz, 17 anos, Zimbabué)

Uganda, e as ONG que trabalham em Ango-la não estão vocacionadas para auxiliar a criança prestadora de cuidados. As igrejas são a forma mais comum de apoio institucional às crianças. Muitas das crianças divulgaram que as igrejas lhes davam apoio prático e emocional. Algumas crianças também tinham professores e directores

Este desenho é paradigmático

de todos os grupos. O desenho

revela todos os lugares

visitados pela criança durante

a semana. O círculo preto

indica as pessoas que sabem

que a criança é prestadora

de cuidados - a igreja. O X

indica aqueles que sabem da

situação e prestam auxílio -

a casa do amigo da criança.

O desenho a preto dentro de

um círculo representa uma

outra criança, também ela

prestadora de cuidados, e que

sabe que o autor do desenho

é prestador de cuidados.

escolares que lhes prestavam auxílio. Contudo, algumas crianças não recebiam qualquer tipo de apoio.

“Ninguém me ajuda. Cada pessoa tem os seus problemas. As pessoas na comunidade mudaram de atitude. Cada um preocupa-se apenas consigo mesmo. Ninguém me ajuda.” (Rapaz, 17 anos, Uganda)

As crianças estavam todas de acordo em como os seus amigos da mesma idade eram o seu maior apoio. Muitos destes amigos também eram crianças prestadoras de cuidados, que compreendiam bem a sua situação. Estes amigos não só lhes dão apoio moral, como também lhes dão apoio prático. “Eles sentem pena de nós. Por vezes, se há algum evento na escola, eles pagam a nossa parte.Também nos dão conselhos.

20

“Eles sentem pena de nós. Por vezes, se há algum evento na escola, eles pagam a nossa parte.Também nos dão conselhos.Eles dizem-nos, ‘Não te preocupes demais. Um dia, vais ter oportunidade de descansar como as outras crianças.’A minha amiga dá-me conselhos sobre a forma como devo usar o dinheiro. Ela diz que se a minha tia me der dinheiro, eu devo comprar comida e se sobrar dinheiro então posso comprar roupa.Às vezes os nossos amigos ajudam-nos a ir procurar lenha e a ir buscar água.A minha amiga também toma conta da avó dela e quando a minha avó está doente, ela ajuda-me.Sim, se eles também são prestadores de cuidados, eles compreendem.” (Rapazes e raparigas, Zimbabué)

Todas as crianças disseram que são vítimas de discri-minação por parte de adultos e de outras crianças. São discriminadas por serem pobres, por terem roupas velhas e por não terem dinheiro para comprar sabão, por algumas não frequentarem a escola, e por terem de tomar conta de pessoas idosas ou doentes. Houve muita discussão sobre discriminação relacionada com os papéis tradicionais dos dois sexos.

“As condições em casa de N não são boas. Riem-se dela por ter de cuidar da família, por ser rapariga e ter de fazer trabalhos diferentes para manter a casa. Ela faz trabalhos que são considerados trabalhos de homem, como fazer carvão. As crianças perguntam-lhe porque é que ela não sai de casa e arranja marido. O que é que esperam? Que ela abandone os irmãos e as irmãs mais novos e a mãe ao sofrimen-to?” (Rapaz, 16 anos, Uganda)

“O fabrico de carvão é trabalho de homem. Eles riem-se de mim. Eles riem-se e dizem: ‘Olha para esta mulher. Deixa de fazer esse trabalho. Vem, nós damos-te dinheiro.’ Mas esse dinheiro não é dado, não é uma oferta [eles querem sexo].” (Rapariga, 17 anos, Uganda)

O outro principal aspecto discriminatório resulta do facto de, muitas vezes, estas crianças estarem a cuidar de pessoas com Sida.

“Eu fico muito zangado quando me insultam.”IA: Como é que te insultam?“Eles dizem, ‘A tua mãe está doente com Sida.’Sim, eu fico zangado quando eles dizem, ‘A tua mãe costumava frequentar as boîtes e agora está doen-te.’ As pessoas dizem, ‘Vai-te embora com a tua mãe que está doente.’Sim, algumas pessoas dizem-me, ‘A cova da tua mãe

já está pronta.’ Outros dizem, ‘Quando a tua mãe morrer, nós queremos comer carne e não repolho [referência à comida que é servida nos funerais].’Na escola dizem que somos estúpidos, que estamos a tomar conta de um doente e por isso somos estúpidos.Alguns dizem, ‘Tu estás a tratar de uma pessoa doente e por isso tu também vais ficar infectado.’”IA: Diz-me, este problema dos insultos é um problema grande ou pequeno? (A investigadora põe as mãos muito próximas e depois afastadas para servir de escala) “É muito grande!” [Todas as crianças mostram as mãos muito afastadas para indicarem que o problema é muito grande.] (Rapazes e raparigas, Zimbabué)

Relações nos agregados familiares com crianças prestadoras de cuidadosA relação mais forte na família parece ser a que existe entre os irmãos. Todas as crianças falaram do apoio mútuo que os irmãos se dão para ganhar dinheiro e cuidar dos familiares. Os irmãos também se amparam emocionalmente.

“Nesta fotografia, os meus irmãos, as minhas irmãs e eu estamos a regressar a casa com a água que fomos buscar. Nós também cultivamos a lavra todos juntos para ganharmos algum dinheiro para poder comprar roupa.” (Rapariga, 15 anos, Uganda)

“A minha irmã mais nova ajuda-me a fazer o trabalho. Às vezes ela lava a roupa e ajuda-me a ir buscar água.” (Rapariga, 15 anos, Zimbabué)

A relação com os adultos de quem cuidam é muito importante. A maior parte falou do amor que tem pelas pessoas de quem cuidam e de como tentam cuidar também das suas necessidades emocionais, falando com elas e dando-lhes notícias do que se passa no exterior. Discutiram também as estra-tégias que empregam para que eles comam ou tomem os medicamentos.

“Nós conversamos com eles enquanto eles estão deitados. Sim, damos-lhes informação sobre aquilo que se passa na comunidade, não necessariamente histórias – coisas que nos disseram que aconteceram, por exemplo, o nome de uma pessoa que tenha adoecido, ou de alguém que tenha morrido.” (Rapariga, 15 anos, e rapaz, 17 anos, Uganda)

"A minha irmã mais nova ajuda-me a fazer o trabalho. Às vezes ela lava a roupa e ajuda-me a ir buscar água."

(Rapariga, 15 anos, Zimbabué)

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“Às vezes sentamo-nos só a conversar. Depois chega a hora de tomar o medicamento e eu digo-lhe. E ela começa a refilar, ‘Porque é que me estás a lembrar para tomar os medicamentos?’ E eu digo, ‘Porque eu quero que fique forte e saudável.’ E pergunto, ‘Onde estão os compri-midos? Eu também quero tomar os comprimidos.’ Eu pego nos medicamentos e faço de conta que os estou a tomar, para ela tomar os medicamentos dela.” (Rapariga, 9 anos, Zimbabué)

De um modo geral, os avós e os pais das crianças retribuem o amor que recebem. Muitas das crianças disseram que os avós se preocupam por as crianças te-rem tanto trabalho, e por eles lhes estarem a dar ainda mais trabalho. Alguns contaram como os avós tentavam fazer algumas tarefas para os ajudar. As crianças notam estes gestos e sentem-se reconfortados com isso.

“Quando o avô não está doente, geralmente ajuda com algumas das tarefas. Por vezes quando o B chega a casa da escola, o avô já preparou a refeição.” (Criança investigadora a apresentar o relatório sobre a entrevista que fez a um rapaz de 16 anos, Zimbabué)

Encontraram-se provas de que os pais e as avós desem-penham o papel normal de pais – dando conselhos, contando histórias e trocando graças com as crianças.“A nossa avó conta-nos histórias.”

IA: Histórias! Muito bem. Sobre o quê?“Sobre os antigos líderes deste país, sobre a forma como eles governavam.Sobre a forma como trabalhavam e comiam.A minha avó diz-nos gracejos e faz-nos rir.”

IA: Ah sim?! Podes dar-me um exemplo?“Ela diz, por exemplo, ‘Vem cá, deixa-me levar-te ao colo’. Ela sabe muito bem que não pode connosco ao colo, por isso isto é um gracejo.” (Rapazes e raparigas, Uganda)

IA: Porque é que tiraste uma fotografia à tua mãe?“Porque a minha mãe é muito importante para mim, porque ela é o único sobrevivente adulto e ela dá-me muito apoio moral, embora esteja doente. Eu queria que as pessoas vissem a minha mãe doente e as condições em que ela está e aquilo que eu faço por ela. Nesta gravura estamos todos a comer com a minha mãe e à volta dela para que ela tenha apetite.” (Rapaz, 16 anos, Uganda)

“A minha avó pergunta-me o que foi que escrevi na escola, como correu a escola, pergunta-me tudo. Pergunta-me se eu tenho os livros.” (Rapaz, 10 anos, Zimbabué)

“A minha mãe dá-me conselhos como rapaz e diz-me para não ter pressa em casar porque posso fazer um erro. Ela diz-me que devo ser forte e procurar a pessoa certa, para evitar a infecção com o VIH.A minha mãe também. Ela fala sobre os meus sentimen-tos. Nós conversamos sobre assuntos importantes. Ela aconselha-me a zelar pelo meu bem para não ficar como ela, e diz-me que devo arranjar um bom marido.” (Rapari-ga e rapaz, Zimbabué)

No entanto, as crianças foram honestas relativamente à tensão que resulta de se ter de tomar conta de uma pessoa doente.

“As pessoas doentes são sempre difíceis de tratar. Ela é mui-to sensível e fica irritada. Tenho de ter muito cuidado no que faço para não a arreliar. Por exemplo, se não encontro os medicamentos no hospital, ela fica logo aborrecida.” (Rapariga, 15 anos, entrevistada por uma criança investi-gadora, Uganda)

A importância de uma boa relaçãoO J é um rapaz de 15 anos. Participou de um workshop com

uma intensidade tranquila, concentrando-se nos desenhos

e escutando tudo o que se dizia sempre que havia uma

discussão. Quando discutimos as tarefas desempenhadas

pelas crianças que cuidam de outras pessoas, falou da tia de

quem cuida.

“Eu vendo coisas para ajudar a minha tia. Todos os dias tenho

de andar de um lado para o outro a tentar vender coisas para

arranjar dinheiro para comida. Ela não pode fazer nada. Ela foi

lesada durante a guerra. Na cabeça e no estômago. Tem dores

de cabeça muito fortes e não pode carregar nada. Eu tenho de a

ajudar com a água, com tudo. Eu gosto de vender coisas porque

isso nos ajuda. Ajuda a minha tia.”Quando levámos as crianças para as suas respectivas casas, já

concluído o workshop, o J mostrou-nos a casa dele. Vive numa

cubata de barro, nos arredores da cidade do Huambo. Quando

chegámos, a tia saiu para nos vir cumprimentar. Passou o braço

pelos ombros do J. Vê-se claramente que são muito chegados.

Depois contou-nos como ele é bom rapaz, que o tinha encontrado

quando a aldeia e a casa dele tinham sido destruídas na guerra e que

desde então ele vivia com ela. Depois de ela ter sido lesionada, o J

passou a cuidar dela.“Se não fosse o J, eu já não estava viva!”Quando partimos, ficaram os dois ao portão do quintal a acenar

para nós.

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Resiliência e tensãoHá evidência tanto de resiliência como de tensão emocional nas crianças. Talvez a maior força revelada pelas crianças tenha sido o sentido de responsabilidade que sentem relativamente aos pequeninos, aos idosos e aos doentes por cujo bem-estar zelam. Preocupam-se com a falta de comida e com a falta de materiais escolares de que os mais novos precisam. Preocupam-se com a obtenção de medicamentos para os doentes, e querem ganhar dinheiro suficiente para poderem comprar aquilo de que necessitam.

Ao se compararem com outras crianças que não são responsáveis por prestar cuidados, estão de acordo quando afirmam que têm um maior sentido de responsabilidade. São também detentoras de mais competências. Estas crianças revelaram claramente que têm competências parentais, para além de terem dquirido estratégias específicas para lidar com as pessoas doentes ou idosas, sob o seu cuidado.

“Esta fotografia a seguir mostra o meu irmão mais novo a lavar a louça. Ele tem seis anos. Eu ensinei-o a lavar a louça para me ajudar com a lida da casa.” (Rapariga, 15 anos, Uganda)

“Se uma pessoa doente grita comigo, eu falo com ela com muita meiguice e a pessoa acalma.” (Rapaz, 16 anos, Nigéria)

IA: E se as outras crianças estiverem tristes, o que fazes?“A pessoa dá-lhes conselhos e elas ficam contentes.A pessoa prepara-lhes comida e a criança começa a falar, começa a contar o que sente. Às vezes ela sente a dor da situação, mas é preciso ver o que é que está a entristecer a criança.” (Rapaz e rapariga, Angola)

As crianças falaram também sobre o modo como enfrentam a responsabilidade, muitas vezes opressiva, que acarretam.

“Às vezes procuro pequenos trabalhos e as pessoas dão-mos. Mas, no dia seguinte, quando volto para pedir trabalho, dizem que não têm e eu fico triste. Quando me sinto triste, vou para o quintal.Vou para debaixo das árvores e sento-me ali.Ou vou para o pé dos meus amigos, brincar com eles, e depois sinto-me melhor.” (Rapazes e raparigas, Angola)

“Às vezes, quando há muito trabalho, eu tenho vontade de me esconder. Eu procuro um lugar onde me esconder longe de casa. Algumas horas depois, regresso. Faz-me bem esconder-me porque quando regresso sinto-me mais calmo.Às vezes, desabafamos com os nossos amigos e sentimo-nos melhor.” (Rapaz, 16 anos, Uganda)

“Eu sei o que fazer para me sentir melhor. Eu sinto-me feliz quando brinco com os meus amigos, quando tenho tempo para brincar e esquecer. Eu estou sempre a ouvir música na rádio e isso ajuda-me a sentir-me melhor. Quando um amigo me visita, também me sinto melhor.” (Rapaz, 10 anos, Zimbabué)

Para além destes mecanismos de resiliência, as crianças também possuem muitas fontes de tensão. Falaram de como se sentem zangadas e tristes quando pensam na situação em que se encontram e na sua responsabilidade como cuidadoras.

“É um conjunto de situações, como o avô que está doente, a mãe que está doente, nós não temos dinheiro, não há lenha. E as obrigações recaem todas sobre os nossos ombros, os ombros de uma só pessoa.Às vezes, tenho vontade de chorar quando chego da escola e me dizem que falta isto e falta aquilo.Às vezes, choramos mesmo. É porque a pessoa tem muita dor e não recebe ajuda de ninguém.” (Raparigas, Uganda)

“Às vezes, a pessoa tem vontade de fugir [da responsabilidade de prestar os cuidados] quando os nossos amigos nos vêm chamar para irmos brincar, mas não podemos porque se não ela [a mãe] vai ficar ainda mais doente por nossa causa.Às vezes, vamos brincar sem ter dado os comprimidos, mas estamos sempre a pensar que não demos os comprimidos ao doente. Não nos conseguimos esquecer.” (Rapariga e rapaz, Zimbabué)

“Fico muito preocupado quando preciso de alguma coisa e não sei onde arranjar. E penso, ‘O que hei-de fazer amanhã? Os outros têm sementes [para semear], mas eu não. O que devo fazer para arranjar semente?’ A minha preocupação é, ‘O que vamos comer? Quando é que vou ter as minhas coisas? Quando é que estes problemas vão acabar?’” (Rapaz, 15 anos, Angola)

As crianças descreveram que a tensão que sentem é geralmente mais acentuada à noite. Muitas confessaram que têm problemas a dormir e que sofrem de pesadelos, geralmente relacionados com a morte dos pais. Revelaram também que pensam muito sobre a morte dos pais. Um outro medo muito comum é a morte da pessoa de quem estão a cuidar no momento – o que será deles se essa pessoa morrer.

“A razão pela qual ela está preocupada é que quando o pai morrer, não vai haver mais ninguém para tomar conta dela e da família.” (Rapariga, 15 anos, Nigéria)

Todos disseram que não tinham discutido a morte ou o futuro com os pais ou com os avós, embora se sentissem preocupados com isto.

“As condições nesta casa não são boas porque a N me disse que está preocupada. O pai dela morreu e a mãe também está doente. A N está muito preocupada com a mãe. A mãe pode morrer e a N vai ficar sozinha. Ela não tem muitos parentes e os que tem não são bondosos. Não se preocupam com ela.”

IA: Perguntaste-lhe se ela fala com a mãe sobre a morte?“A N disse que não quer falar sobre isso. Quando conversámos ela disse que não podia falar sobre isso porque ia deixar a mãe preocupada. Eu também. Eu também não consigo falar sobre a morte com pessoas que estão doentes. Não é possível. Pode perturbar o doente e assustá-lo.” (Criança investigadora a falar sobre uma rapariga de 14 anos, Uganda)

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Com base em estudos recentes sobre a resiliência, sabemos que as crianças precisam de ter na sua vida determinados factores para poderem superar as circunstâncias difíceis em que vivem, de forma a tornarem-se adultos saudáveis10 Fergus e Zimmerman11 falam destes factores conducentes à resiliência em termos de activos e de recursos:

Os activos são factores positivos que fazem parte do indivíduo, tais como as suas competências, a capacidade inata de enfrentar situações difíceis, e auto-eficácia. Os recursos também são factores positivos mas externos ao indivíduo. Os recursos incluem o apoio parental, a orientação dada por adultos, ou as organizações comunitárias.

A maior parte dos factores de resiliência demonstrados pelas crianças prestadoras de cuidados são recursos interiores: um sentido de responsabilidade muito forte; capacidade para pedir ajuda aos poucos adultos compreensíveis que conhecem; capacidade de resolver problemas de modo a poderem ganhar a vida fazendo tarefas diferentes; e a capacidade para resolver os prob-lemas que surgem no lar entre as crianças. A forma como cuidam das crianças mais jovens revela grande maturidade e força emocional.

Bray12 (2009) atesta que uma relação positiva com a pessoa cuidada é um factor de resiliência importante na vida das crianças cuidadoras. Torna-se aparente que muitas das crianças nas quatro localidades estudadas têm uma relação de um modo geral positiva e carinho-sa com as pessoas sob o seu cuidado. Presume-se que, pelo menos em parte, este recurso esteja na base da força interior que conseguiram desenvolver e que lhes permite seguir em frente. Significativamente, algumas

das crianças não têm este recurso, enquanto outras contam com o apoio de amigos e de outras crianças cuidadoras que conhecem.

Mas, na grande maioria dos casos, a situação é caracterizada pela ausência dos recursos necessários para incutir força e ânimo para perseverar. Na maioria, estes jovens não têm qualquer assistência para poderem avaliar as necessidades do dia-a-dia e recai sobre eles a enorme responsabilidade de ganhar dinheiro e arranjar alimentos. Os jovens contam com pouco apoio de pessoas adultas e de outras crianças na comunidade. Não têm acesso fácil a serviços de saúde ou a informação que poderia tornar mais fácil esse assumir da responsabilidade de cuidar dos seus familiares. Estas crianças revelam um grande interesse em frequentar a escola, mas a própria instituição coloca-lhes barreiras intransponíveis – bem como desnecessárias e incompreensíveis.

Recomendações para definição de

Políticas e de ProgramasNão existe qualquer sombra de dùvida de que as 124 criançasprestadoras de cuidados que participaram deste estudo arcam com um pesado fardo prático e emocional. Apesar disso, estas criançasdesenvolveram também uma certa resistência prática e emocional.

10 Fergus, S. and Zimmerman, M.A. (2005) Adolescent Resilience: A framework for understanding healthy development in the face of risk. Annual Reviews of Public Health 26: 399-419.

11 p39912 Bray, R. (2009) A literature review on child-carers in Angola, Nigeria, Uganda and

Zimbabwe. Save the Children UK: Pretoria.

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Além dos problemas já delineados, estes jovens enfrentam vários

factores de risco. O trabalho pesado que executam cria riscos físicos e emocionais. A discriminação de que são alvo, sobretudo a discriminação que ataca a sua identidade sexual, afecta a sua auto-estima. Estas crianças manifestam sinais de tensão emocional: por exemplo, muitas delas têm problemas com o sono. Muita da tensão identificada parece estar relacionada com a dor do luto, um luto que não foi devidamente processado dadas as múltiplas perdas que sofreram. Muitos destes jovens sentem-se totalmente soterrados pelas responsabilidades que carregam.

Não têm acesso a informação fidedigna para se prote-gerem, nem a informação sobre as doenças de que os pais sofrem e seu prognóstico. As devidas instituições governamentais pouca ajuda lhes facultam no desem-penho da responsabilidade que assumiram como prestadores de cuidados. O apoio que recebem de outros jovens é de natureza informal e criado por eles próprios. Além disso, estes jovens têm muito poucos modelos ou conselheiros adultos.

A exiguidade de recursos externos destinados a apoiar as crianças cuidadoras deve, pois, ser o fulcro de acções de advocacia que visem colmatar esta escassez. Tais acções devem ter lugar a nível regional – através de iniciativas como o Grupo-Tarefa Interagencial Regional (RIATT) que trabalha em prol de COV no contexto do VIH, e a nível nacional – junto aos órgãos governamen-tais nacionais, distritais e comunitários bem como junto a ONG locais.

As questões relativas àadvocacia são as seguintes:

A necessidade de intervenções que reduzam o 1. pesado fardo de responsabilidade económica que estas crianças carregam. Existem muitos exemplos de tais intervenções – transferências de dinheiro, micro-financiamento para iniciar projectos de geração de rendimentos, e formação profissionalizante são algumas das intervenções que foram experimentadas em vários contextos.

Dado que muitas destas crianças continuam a frequentar a escola e estão empenhadas em estudar, as transferências de dinheiro, seja qual for a modalidade adoptada, talvez sejam a melhor forma para aliviar o fardo destas crianças. O programa Humuliza (www.humuliza.org), que dá uma forma de transferência de dinheiro a crianças órfãs, e o programa KwaWazee13 (www.kwawazee.org) que concede uma pensão aos avós, funcionam num contexto semelhante ao dos quatro estudos de caso, pelo que podem ser modelos úteis a serem aplicados a nível local.

A necessidade de acesso mais fácil à escolaridade para 2. crianças vulneráveis. É necessário sensibilizar e informar os directores escolares e os professores sobre a vida das crian-ças cuidadoras. Além disso, deveria ser efectivada legislação (e garantido o seu cumprimento) que obrigasse a que as escolas fossem mais acessíveis.

A necessidade de oferecer educação e informação 3. às crianças prestadoras de cuidados sobre os modos de cuidar de pessoas idosas e com Sida, e de dar apoio a essas crianças com a prestação de cuidados. As crianças prestadoras de cuidados devem receber formação e o apoio de programas comunitários para oferta de cuidados domiciliários. O acesso, por parte das crianças, a conhecimentos e a apoio prático diminuiria o peso do medo com que estas crianças vivem. O acesso a medicamentos é um outro fardo pesadíssimo para estas crianças. As organizações que defendem o acesso gratuito a tratamento (sobretudo para as pessoas com Sida) precisam de incluir nas suas acções de pressão e de influência o facto de o pagamento dos medicamentos estar a desviar dinheiro que deveria ser usado para aquisição de alimentos e outras necessidades básicas nos agregados familiares geridos por crianças.

A necessidade de programas que ofereçam apoio 4. psicossocial a famílias a cargo de crianças cuidadoras. Conforme o estudo da literatura indica, as relações no seio da família são um factor de protecção muito importante. As crianças também precisam dos seus próprios grupos de apoio. A investigação demonstra que as crianças já usam o amparo dos seus pares como estratégia para fazerem face às situações difíceis que enfrentam, e que, muitas vezes, este apoio é concedido por crianças também elas prestadoras de cuidados. A criação de grupos de apoio local, em que as crianças cuidadoras se reúnem com regularidade, seria uma intervenção eficaz.

É importante que os esforços de advocacia em torno das crianças vulneráveis contemplem as crianças prestadoras de cuidados – esse grupo especialmente vulnerável de crianças que, até há bem pouco tempo, tinha permanecido invi-sível. Espera-se que os programas piloto (vide a seguir) que surgirem como resultado desta pesquisa, nos quatro países, venham a proporcionar a organizações como a Save the Children a informação necessária para que sejam efectuadas acções de advocacia sobre as melhores formas de intervenção em prol das crianças prestadoras de cuidados.

13 Hofmann, S. Heslop, M. Clacherty, G. and Kessy, F. (2008) Salt, soap and shoes for school. Evaluation summary. The impact of pensions on the lives of older people and grandchildren in the KwaWazee project in Tanzania’s Kagera region. REPPSI, and World Vision International and Help Age International: Dar es Salaam

252514 Clacherty, G. and Donald, D. (2005). Impact Evaluation of the VSI (Vijana Simama Imara)

organisation and the Rafiki Mdogo group of the HUMULIZA orphan project Nshamba, Tanzania. Clacherty & Associates: Johannesburg

Um programa-piloto para testar um modelo sobre como proporcio-

nar apoio a cuidadores jovensUma subvenção da Fundação Ford permite implementar intervenções-piloto, com base nos resultados obtidos com

a presente investigação, nos quatro países onde o estudo foi realizado. A natureza da intervenção-piloto foi discutida

com o pessoal relevante da Save the Children. Seguem-se algumas recomendações para o estudo-piloto, com base nas

conclusões da pesquisa e dos debates acima descritos.Projectos para geração de rendimentos, competências profissionais, informação e apoio psicossocial

As crianças identificaram a necessidade de obterem ajuda imediata relativamente à situação financeira. O pessoal local

sugeriu que a melhor forma de o conseguir seria por intermédio de projectos para geração de rendimentos. Muitas das

crianças já estavam envolvidas em projectos desse tipo. Identificaram a criação de aves de capoeira – o que alguns já

faziam – como a melhor maneira de assegurarem rendimento.Mencionaram ainda a preocupação que sentem relativamente ao próprio futuro, devido à sua falta de escolaridade ou à

dificuldade que terão em aceder a qualquer outro tipo de formação após terem concluído a escola. Este aspecto aponta

para a necessidade de, no imediato, se oferecer formação profissionalizante às crianças prestadoras de cuidados, o que

lhes vai permitir zelar pelas suas famílias com maior eficácia, e enquanto crescem. Além disso, as crianças descreveram certos sintomas que são sinais de tensão emocional bastante elevada. A informação

indica que estas criança necessitam de receber assistência psicossocial que lhes permita fazerem face à difícil situação

em que se encontram. As crianças manifestaram ainda o seu desejo em obter informação adicional sobre como cuidar

melhor dos seus pais e avós. A proposta para a realização de um projecto-piloto inclui, pois, todos estes elementos.

Geração de rendaO projecto-piloto inclui a criação de grupos para apoio às crianças que fizeram parte da investigação (tanto as crianças

que foram inicialmente investigadas como as crianças que foram por elas investigadas subsequentemente).

Este grupo de apoio deverá incluir formação inicial sobre como dar início a um pequeno negócio. Estes negócios pre-

cisam de estar adequados à área onde as crianças vivem. Depois de terem recebido a formação necessária, as crianças

devem receber um empréstimo para começarem o seu negócio. Posteriormente, precisarão de monitorização e de

apoio, e necessitarão de reembolsar o empréstimo a prestações. Depois de terem reembolsado o primeiro empréstimo,

deverão ter oportunidade de contrair novo empréstimo. Este financiamento deverá ser estabelecido de acordo com os

moldes aplicáveis a projectos de micro-financiamento (para alguns exemplos, consultar Humuliza em www.humuliza.

org, KwaWazee em www.kwawazee.org na Tanzânia, e a Fantsuam Foundation em www.fantsuam.org na Nigéria).

Capacidades profissionaisNo momento em que os negócios estejam estabelecidos, as crianças que frequentam a escola devem receber apoio

para poderem obter formação profissionalizante. Na medida do possível, deverá tentar obter-se a colaboração de

organizações/instituições vocacionadas para a formação profissional. Se tais organizações ou instituições não existirem,

deverá investigar-se a possibilidade de inserir as crianças em empresas locais onde possam obter formação em contexto

de trabalho. As crianças deverão estar envolvidas nesse processo. Esta formação profissionalizante deverá prosseguir

para que as crianças que concluam o ensino escolar dentro de dois anos possam ainda ter acesso a ela.

Informação e educação É necessário criar-se um programa educativo que ofereça informação sobre como tratar de pessoas idosas, de pais

ou de irmãos doentes. O programa Symphasis para crianças cuidadoras, que se encontra em fase experimental neste

momento, ao cuidado de Kurt Madoerin, na Tanzânia, poderia servir de modelo. É necessário que as ONG locais, que

estão envolvidas em cuidados domiciliários na área, sejam incluídas no programa, pois deverão oferecer apoio regular às

crianças.

Apoio psicossocialO grupo deve reunir-se com regularidade. Inicialmente, as reuniões deverão ser estruturadas por um mediador adulto.

As actividades podem ser baseadas no modelo Symphasis, já referido. Após seis meses deste tipo de actividade, o grupo

deverá receber formação sobre como criar uma organização liderada por adolescentes, semelhante à organização da VSI

(Humuliza). Clacherty e Donald14 sugerem que este tipo de organização, por si só, tem impactos psicossociais signifi-

cativos. O mediador adulto deverá afastar-se lentamente para que o apoio adulto passe a consistir da monitorização e

reforço da capacidade dessa organização liderada pelas crianças.

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