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Universidade Federal do Rio de Janeiro Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Diego A. Galeano 2012

Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Criminosos viajantes, vigilantes modernos.

Circulações policiais entre Rio de Janeiro e

Buenos Aires, 1890-1930.

Diego A. Galeano

2012

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em História Social

Criminosos viajantes, vigilantes modernos.

Circulações policiais entre Rio de Janeiro e

Buenos Aires, 1890-1930.

Diego A. Galeano

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientador: Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca

Rio de Janeiro Julho de 2012

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Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre

Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930.

Diego A. Galeano

Orientador: Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História

Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor

em História Social.

Aprovada por:

_______________________________

Presidente, Prof.

_______________________________

Prof.

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Prof.

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Prof.

_______________________________

Prof.

Rio de Janeiro

Julho de 2012

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GALEANO, Diego A.

Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930/ Diego Antonio Galeano - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2012.

x, 384 f.: Il.; 31 cm.

Orientador: Marcos Luiz Bretas da Fonseca

Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-Graduação em História Social, 2012.

Referências Bibliográficas: f. 346-384.

1. História da polícia. 2. História social do crime. 3. História transnacional. 4. Cooperação policial sul-americana.

I. Fonseca, Marcos Luiz Bretas da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930.

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RESUMO

Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais entre Rio de Janeiro

e Buenos Aires, 1890-1930

Diego A. Galeano

Orientador: Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em História Social.

A tese analisa as trocas formais e informais entre as polícias metropolitanas do Rio de Janeiro e Buenos Aires, consolidadas durante as primeiras duas décadas do século XX. A rede de cooperação surgiu em um momento em que estas polícias estavam atravessando profundos processos de reforma institucional. Estas reformas buscavam soluções para problemas comuns em ambas as cidades, desafios provenientes dos intensos processos de urbanização pelo fluxo maciço de imigrantes europeus. Estas cidades portuárias foram se tornando conglomerados metropolitanos onde as pessoas mal se conheciam umas a outras e os Estados tiveram que desenvolver novas tecnologias para governar as sociedades: um dos principais desafios foi controlar uma população em constante movimento, bem como com novos fenômenos de criminalidade que adquiriram um caráter transnacional. Para enfrentar estas questões, foram feitas propostas para coordenar as forças policiais, iniciando um período de reuniões, viagens, intercâmbios de informação e tecnologias. O ponto culminante deste processo foi a organização de duas conferências policiais sul-americanas, reunidas em Buenos Aires em 1905 e 1920, encontros onde a categoria de "criminoso viajante" ocupou um lugar central.

Palavras-chave: História da polícia; História social do crime; História transnacional;

Cooperação policial sul-americana.

Rio de Janeiro

Julho de 2012

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ABSTRACT

Traveling Criminals, Modern Cops. Police circulations between Rio de Janeiro and

Buenos Aires, 1890-1930

Diego A. Galeano

Orientador: Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em História Social.

The thesis looks into formal and informal exchanges between the urban police forces of Rio de Janeiro and Buenos Aires, which were consolidated over the first two decades of 20th century. This network developed over a period during which policing institutions had undertaken considerable internal reforms, which shared common problems in the kinds of urban development experienced by port cities with an influx of European immigrants. These cities were becoming conglomerates where people hardly knew each other and the State had to develop new technologies to manage urban society: one of the main challenges was to control a population in constant movement, as well as with new crime phenomena that acquired a transnational status. In order to deal with this problem, proposals were made to coordinate urban police forces, starting a period of meetings, trips, information and technological exchange. The culmination of this process was the organization of two Police Conferences in Buenos Aires in 1905 and 1920, meetings in which the category of "traveling criminal" occupied a more central place.

Key-words: History of Police; Social History of Crime; Transnational History; South

American Police Cooperation.

Rio de Janeiro

Julho de 2012

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A Giuseppe Galeano, inmigrante italiano que, procedente del puerto de Génova, desembarcó en Buenos Aires el primero de mayo de 1909. Día turbulento, célebre por los disparos policiales contra la multitud anarquista. A Bartolo Galeano, el hijo que Giuseppe gestó en Argentina aunque nació en Italia por un cisma sentimental. Luego de viajes y guerras, embarcó hacia Buenos Aires en diciembre de 1949, para reencontrarse con su hermosa enamorada, Carmela Ruggieri. A Antonio Faustino Galeano, hijo de Bartolo y Carmela, mi padre, mi más fiel lector.

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Agradecimentos

Em 1956, cheio de saudades de sua família na Argentina, o escritor Manuel

Puig escreveu-lhes uma carta do porto de Santos. O texto terminava assim: “en los

momentos que extraño mucho, me pongo enseguida a hablar con alguien o a hacer

algo, sino es cuestión de tirarse al agua y volver a nado”. Não foram poucas as

vezes que, por saudades, e até pela sensação de que a tese era uma coisa pesada

demais, senti vontade de entrar na água e fugir nadando. Mas, como Puig, optei por

ficar no porto e continuar a viagem. Assim como os ladrões desta tese, a pesquisa se

passou numa viagem constante entre Buenos Aires e Rio de Janeiro. Muitos são os

que ainda não acreditam que a viagem possa ser um modo de vida e alguns

desconfiam até hoje dessa conversa do doutorado no Brasil. Outros, com o tempo,

aprenderam a me entender. A todos esses quero dedicar esta tese, porque souberam

estar ao meu lado quando necessitava de distração e me entenderam quando

precisava submergir na escrita.

Ao bando de gatunos transnacionais que me acompanharam estes anos no Rio

de Janeiro, em especial: à Juliana Barbassa, oriunda de Minas Gerais, mas quem sabe

melhor do que eu o que é se mudar para viver em outro lado; a Daniel Silva, o

primeiro a me ensinar, por suas pesquisas e pela vida, tudo o que devia desconfiar na

violência de certas palavras; à Ruth Goldstein, por muitas noites cariocas, por me

abrir as portas de sua casa nos Estados Unidos e por facilitar meu acesso à biblioteca

da Universidade de Berkeley, onde por casualidade terminei algum capítulo da tese;

à Ana María Pérez, seleta colega em conversações de café (provedora, ainda, de

seletos cafés colombianos); à Rachel Cardoso, historiadora da Fiocruz, a quem

conheci em uma tarde no Itamaraty, por sua enorme generosidade nestes últimos

meses e pela noite de tangos com Kelin no portenhíssimo “bar de Roberto”. À Belén

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Hirose, Flora Charner, Yon Asdks, Tuomas Saikkonen e aos Fernandos, Borbolleto

Iaderosa e Sathler Breder, que também foram grandes companheiros de banquetes,

dias de praia e carnavais.

À minha família e amigos paulistas, aos que devo muito do que aprendi do

Brasil. Bernadete Fadel, Luciana Fadel, Tibor Hary e Gustavo Fadel Hary que se

converteram em uma parte fundamental da minha vida nesses últimos cinco anos. A

chácara de Itanhaém foi, sem dúvidas, o melhor lugar para escrever. Em cada um dos

dias que passei no litoral de São Paulo, conheci pessoas maravilhosas que hoje são

grandes amigos: quero agradecer particularmente a companhia e amizade de Viviane

e Monique. E no interior de São Paulo, em Santa Rita do Passa Quatro, muitas foram

as pessoas que rapidamente me trataram como parte da família: Erika, Paulinho,

Victor, os tios Nim, Vera, Paulo, Neuza, Nenê, Carmen e Alba Puig. Obrigado a

todos. A Vinícius Fadel, meu companheiro, por suportar todas as loucuras que

rodeiam meu trabalho de historiador e, em particular, a escrita de uma tese. Foi meu

grande suporte nestes anos em que transitei pelo doutorado com constantes mudanças

de ânimo, e também algumas perdas de seres queridos. Sua perseverança e

estabilidade se converteram em colunas fundamentais.

Ao meu círculo íntimo de La Plata, que segue sendo, mesmo à distância, outro

grande suporte. A meus pais, Antonio Galeano e Alejandra Graiver, e à minha irmã

Victoria Galeano, nunca deixarei de os agradecer pela absoluta incondicionalidade.

À Lucía, Vicky, Ana, Caro, Toto, Ramiro, Martín e Juan, amigos de tantos anos, que

souberam – mesmo com algumas inevitáveis reclamações – transmitir a certeza de

que ali estão, apesar das distâncias que o doutorado e a vida em outro país impôs. À

minha tia Andrea, Nito e María Elina, meus tios Susana e Nenel, quem têm sido,

cada um a sua maneira, absolutamente vitais. À minha avó Carmela, que desde

criança me contava histórias sobre o navio que a trouxe da Itália, e nessas histórias

leio muito das minhas fascinações atuais com as viagens e os viajantes. A ela dedico

especialmente esta tese, agora que perdeu sua filha, a querida tia Chicha, cuja morte

foi um golpe muito duro para mim nos trechos finais da tese.

Aos colegas e amigos da Universidade Nacional de La Plata: Tomás Bover,

Agustina Ugolini, Osvaldo Barreneche, Antonio Camou, María Eugenia Rausky,

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Mariana Di Bello, Luis Santarsiero e, em especial, à minha pequena debilidade,

Sabrina Calandrón. Também à própria universidade onde me formei em sociologia e

onde fui docente pela primeira vez, além de dar meus primeiros passos como

pesquisador: a ela, a seus espaços, à sua biblioteca, às livrarias que a rodeiam, aos

livreiros que as habitam, a meus bares favoritos, devo muito do que hoje sou.

Às instituições que financiaram distintos aspectos do trabalho de pesquisa. À

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do

governo brasileiro, que me concedeu uma bolsa de doutorado através do Programa de

Estudante-Convenio de Pós-graduação (PEC-PG). Ao programa CIRSAP

(Circulation et construction des savoirs policiers européens, 1650-1850), patrocinado

pela Agence Nationale de la Recherche, que custeou minha viagem para participar

nas Jornadas de Estudo “Polices et savoirs policiers: Europe méridionale, espaces

coloniaux, Amérique du Sud”, realizadas em junho de 2008 na Maison

Méditerranéenne des Sciences de L’homme de Aix-en-Provence, França. Também à

Fundação SEPHIS (South-South Exhange Programme for Research on the History of

Development), dos Países Baixos, que financiou minha participação no XIII Annual

Cultural Studies Workshop “Urban Cultures”, organizado pelo Centre for Studies in

Social Sciences, Calcutta, India, em fevereiro de 2009. E finalmente, à Latin

American Studies Association (LASA), por me outorgar uma bolsa de viagem para

participar de um simpósio no marco do XXIX Congress of the Latin American

Studies Association, celebrado em Toronto, Canadá, em outubro de 2010.

Aos bibliotecários e arquivistas das distintas instituições a que esta tese foi me

levando. Estou agradecido pelo tempo dedicado por muitos funcionários dos

arquivos nacionais da Argentina e Brasil, do Arquivo Histórico do Itamaraty e de

diversas seções da Biblioteca Nacional Argentina. Seria difícil mencionar a todos,

mas sem eles, nunca é demais dizer, este trabalho teria sido impossível.

Aos meus amigos da Universidade de San Andrés e da “policiologia”

argentina: Eduardo Zimmermann, Ana Cecchi, Fernando Casullo, Melisa Fernández

Marrón, Cecilia Allemandi, Mercedes García Ferrari, Mariana Nazar, e a todos os

demais integrantes do grupo, com quem organizamos em 2008 as primeiras jornadas

sobre a polícia em perspectiva histórica. Todos eles conformam um espaço que não

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x

para de crescer e acolher novos colegas. Dentro deste grupo, uma menção particular

merece minha mestra, conselheira e camarada de infinitas aventuras policiais: Lila

Caimari, a quem devo grande parte da minha formação como historiador e, por que

não, como pessoa.

A meu amigo Cristian Alarcón e às suas águilas humanas, porque

compartilhamos, ele como cronista, eu como historiador, uma mesma paixão pela

literatura e pela imprensa policial. Aos diversos colegas que leram, comentaram e

criticaram avanços deste trabalho: além das pessoas já mencionadas, José Murilo de

Carvalho, Felipe Magalhães, Leonardo Pereira, Piroska Csuri, Sandra Gayol, Ricardo

Salvatore, Diego Armus, Mariano Plotkin, Anirban Das, Ryan Centner, Brigitte

Marin, Catherine Denys, Dominique Kalifa, Vincent Denis, Pierre Piazza e, claro, a

meu orientador, Marcos Bretas, que sem tal generosidade para receber-me em sua

casa, emprestar-me livros, me escutar e incentivar a escrever, esta tese não teria

chegado nunca ao seu fim. Entre todos estes leitores, a colaboração de Cristiana

Schettini, e sua capacidade aguda de ler e realizar comentários precisos, além de seu

carinho permanente comigo, são das melhores recordações que tenho desta tese.

Impossível fechar este agradecimento sem mencionar uma pessoa. O

reconhecimento do lugar que teve neste processo é também impossível, porque

necessitaria redigir outra tese para explicar tudo o que fez por mim. Cobriu todos os

problemas que a distância com Buenos Aires podia suscitar, leu e releu cada coisa

que escrevi, discutiu comigo cada ideia com entusiasmo que às vezes disputava meu

próprio encantamento com a tese. Esteve, ainda, ao meu lado quando a odiei, nos

inevitáveis momentos de fúria. Fez isso e muito mais. É para mim um amigo, um

irmão, um companheiro de galáxia. Essa pessoa se chama Juan Pablo Canala.

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Sumário

Abreviaturas ....................................................................................................... 4

Lista de ilustrações ............................................................................................. 5

Nota sobre as traduções ..................................................................................... 9

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10

Um objeto (cada vez menos) opaco ...................................................................... 14

Arquivos e bibliotecas nacionais ......................................................................... 20

Histórias transnacionais ...................................................................................... 29

PARTE I. CARTOGRAFIAS DO CRIME SUL AMERICANO ................... 35

CAPÍTULO 1. Rotas indesejáveis ..................................................................... 36

1.1. O espaço atlântico sul americano .................................................................. 42

1.2. A circulação de modelos policiais ................................................................. 50

1.3. Reincidentes, incorrigíveis e ladrões profissionais ........................................ 58

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CAPÍTULO 2. Capitais em movimento ........................................................... 71

2.1. Cidades e cobiças .......................................................................................... 79

2.2. Uma Belle Époque delitiva ............................................................................ 88

PARTE II. TECNOLOGIAS E CIRCULAÇÕES ........................................... 99

CAPÍTULO 3. As polícias estrangeiras ............................................................ 100

3.1. As visitas de estudo ....................................................................................... 111

3.2. Modelos para armar: fascinação e desencanto ............................................... 126

CAPÍTULO 4. O bureau e o laboratório .......................................................... 138

4.1. Simulações e identidades ............................................................................... 144

4.2. Os gabinetes antropométricos ........................................................................ 154

4.3. A linguagem universal ................................................................................... 170

CAPÍTULO 5. Encontros de policiais ............................................................... 181

5.1. Congressos, Convênios, Conferências ........................................................... 192

5.2. Expulsões, telegramas e receios ..................................................................... 208

PARTE III. LA CHASSE À L’HOMME ........................................................... 226

Interlúdio: bandidos e detetives ........................................................................ 227

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CAPÍTULO 6. A sociedade dos malfeitores ..................................................... 241

6.1. A Maffia Criolla e os gatunos internacionais ................................................ 247

6.2. Histórias de punguistas viajantes ................................................................... 260

6.3. O calão dos delinquentes ............................................................................... 275

CAPÍTULO 7. A aristocracia do roubo ........................................................... 285

7.1. Cenas do rato de hotel ................................................................................... 293

7.2. A performance dos trapaceiros ...................................................................... 307

EPÍLOGO ........................................................................................................... 329

“Aquellos solitarios lunfardos internacionales...” ............................................... 329

Considerações finais ............................................................................................. 338

FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................ 346

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Abreviaturas

� AGN. Archivo General de la Nación, Buenos Aires, Argentina.

� AHC. Archivo Histórico de la Cancillería, Buenos Aires, Argentina.

� AHI. Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro, Brasil.

� AN. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Brasil.

� BNA. Biblioteca Nacional Argentina, Buenos Aires, Argentina.

� BNB. Biblioteca Nacional do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil.

� CEHP. Centro de Estudios Histórico-Policiales “Francisco Romay”, Policía Federal Argentina, Buenos Aires, Argentina.

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Lista de ilustrações

1. “Fotografia ao interior de um dos quartos”. Fonte: AN, Fundo IJJ7, Caixa 133, Processo de Expulsão de Francisco Barbieri, 1928 [pag. 40].

2. Mapa do espaço atlântico sul-americano. Fonte: “South America”, Americanized Encyclopedia Britanica, Vol. 1, Chicago, 1892 [pag. 44].

3. Caricatura de Deodoro da Fonseca. Fonte: BNA, Don Quijote, Buenos Aires, 15 fev. 1891 [pag. 81].

4. “Avenida Central” (Rio de Janeiro, 1906) Fotografia de Augusto Malta. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro [pag. 91].

5. “Buenos Aires. Os Palácios da Avenida de Mayo”. Fonte: Arthur Dias, Do Rio a Buenos Aires, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1901, p. 90 [pag. 91].

6. “El Canfinflero”. Fonte: BNA, Sherlock Holmes, Año II, n. 58, Buenos Aires 6 ago. 1912, p. 29 [pag. 96].

7. Viagem a Paris de Manuel Mujica Farías. Fonte: Revista de Policía, Año IV, n. 80, Buenos Aires, 16 set. 1900, p. 117 [pag. 129].

8. “Modelo de cartão antropométrico”. Fonte: João Brasil Silvado, O serviço policial em Paris e Londres, 1895, p. 95 [pag. 136].

9. “Tomada do assignalamento anthropométrico”. Fonte: João Brasil Silvado, O serviço policial em Paris e Londres, 1895, p.113 [pag. 149].

10. Fotografia Judiciária da Polícia da Capital Federal (1896). Fonte: AN, Fundo GIFI, 6C8 [pag. 152].

11. Manuel Rossi, retratado em agosto de 1889. Fonte: BNA, Galería de Ladrones, 1888-1891. Buenos Aires, 1892, ficha 34 [pag. 152].

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12. Ficha antropométrica de Justino Carlo, vulgo Carletto (frente). Fonte: BNB, Hermeto Lima, A identidade do homem pela impressão digital, 1908, p. 16 [pag. 163].

13. Juan Vucetich. “Ficha de canje universal”. Fonte: IV Congreso Científico Latinoamericano (1º Panamericano), Santiago de Chile, 1908 [pag. 174].

14. Luciano Ludueña, retratado em julho de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 40 [pag. 188].

15. Alberto Gomensoro, retratado em junho de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 84 [pag. 188].

16. “El Doctor Beazley, por Mayor”. Fonte: BNA, Caras y Caretas, n. 22, Buenos Aires, 4 mar. 1899 [pag. 189].

17. “La Policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”. Fonte:BNA, Revista de Policía, n. 55, Buenos Aires, 1 sep. 1899 [pag. 191].

18. “Despedida del Presidente Campos Sales – Grupo de Comisarios”. Fonte: BNA, Revista de Policía, n. 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 81 [pag. 192].

19. “Os Srs. Vucetich e Felix Pacheco trabalhando no Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro”. Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49, Rio de Janeiro, 1908, p. 89 [pag. 201].

20. “Dr. Félix Pacheco”. Fonte: BNA, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 1 [pag. 202].

21. “Congreso Internacional Dactiloscópico – La primera sesión”. Fonte: BNA, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 oct. 1905, p. 8 [pag. 204].

22. “Conferencia internacional entre as polícias”. Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49, Rio de Janeiro, 1908, p. 88 [pag. 204].

23. Ficha individual dactiloscópica. Frente e verso. Fonte: AN, IJJ7 179, 1927 [pag. 211].

24. Prontuário de Cayetano Amadeo Piaggio. Fonte: AN, GIFI 6C 454, 1913 [pag. 218].

Page 18: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

7

25. Conferencia Sudamericana de Policía (1920). Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv. 189.824 [pag. 221].

26. “Discurso del delegado paraguayo” (1920). Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv. 92.640 [pag. 223].

27. “Fotografia da Wild Bunch”. Fonte: Forth Woth Five, fotografia de John Schwartz, Texas, 1900 [pag. 229].

28. Cartaz com pedido de captura da Wild Bunch. Fonte: BNA, Boletín de Policía, jan. 1906, s/n. [pag. 234].

29. Manuel Aróztegui, “El apache argentino” (circa 1913). Fonte: BNA, Coleção de Partituras, Inv. 179639 [pag. 246].

30. “La Mafia Criolla”. Fonte: BNA, Sherlock Holmes, año III, n. 80, 9 ene. 1923, p. 32 [pag. 250].

31. Feliciano Mauriño, retratado em junho de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 202 [pag. 252].

32. Retrato do “Rusito de Palermo”. Fonte: BNA, Magazine Policial, Año II, n. 9, Buenos Aires, abr. 1923, p. 24 [pag. 253].

33. “Ladrões batedores de carteiras”. Fonte: BNB, Revista Criminal, ano II, n. 18, Rio de Janeiro, jul. 1928, p. 73 [pag. 259].

34. Retrato fotográfico de Almada ou Melgarejo ou Mujica. Fonte: BNA, Magazine Policial, Año IV, n. 45, Buenos Aires, jun. 1926, p. 10 [pag. 262].

35. Retrato fotográfico de Almada ou Melgarejo ou Mujica. Fonte: BNB, Revista Policial, ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 11 [pag. 262].

36. Ficha de identificação de Angelo Funes. Fonte: AN, Fundo IJJ7 139, 1922 [pag. 267].

37. Retrato de Arthur Narbona. Fonte: AN, Fundo IJJ7 142 (1927) [pag. 269].

38. Retrato de Arthur Narbona. Fonte: BNB, Revista Criminal, Ano I, n. 8, Rio de Janeiro nov. 1927, p. 33 [pag. 271].

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39. Retrato de Alfredo Sinquetti. Fonte: AN, Fundo IJJ7 126 (1927) [pag. 274].

40. Sir John Bulner. Fonte: BNA, Boletín de Policía, Ano I, n. 11, Buenos Aires, 30 sep. 1905, p. 22 [pag. 289].

41. “ Juan Smith”. Fonte: BNA, Boletín de Policía, año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago. 1905, p. 19 [pag. 298].

42. “Dr. Antônio”. Fonte: Memórias de um rato de hotel (seg. ed.), p. 293 [pag. 298].

43. Ángel Artire (a) Minga-Minga. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 1 [pag. 310].

44. Ángel Artire (a) Minga-Minga, retratado em abril de 1889. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 171 [pag. 310].

45. Retrato de Minga-Minga. Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 140 [pag. 313].

46. Emilio Salvanasqui (a) Narigueta. Fonte: CEHP, Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 100 [pag. 314].

47. Retrato de Narigueta. Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 141 [pag. 314].

48. Nota falsa de duzentos mil réis. Fonte: Elysio de Carvalho, A falsificação dos nossos valores circulantes, 1912 [pag. 317].

49. “Trun- trun. Álbum da Seção de Fraudes y Estelionatos da Polícia da Capital. Fonte: BNA, Colección Fotografías, c. 1912 [pag. 324].

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Nota sobre as traduções

O texto da presente Tese de Doutorado foi escrito originalmente em espanhol e

traduzido ao português. Durante o processo de tradução, o autor optou por preservar

as citações de fontes brasileiras em seu idioma original, atualizando-as, em alguns

casos, no uso corrente do português do Brasil. Aquelas que se encontravam em

outros idiomas, foram todas traduzidas pelo autor. No que se refere aos textos em

espanhol, o critério empregado foi traduzi-los a fim de não dificultar a leitura.

Apenas se preservaram algumas palavras ou expressões castelhanas naqueles casos

cuja tradução faria confusa a exposição de ideias.

Page 21: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

Introdução

Há alguns anos, quando Buenos Aires começava a sair da última crise

argentina, recebi uma notícia: a Divisão de Museus e Pesquisas Históricas da Polícia

Federal autorizou-me a consultar seus arquivos. Era a porta de entrada para um

pequeno território que, embora com o tempo tenha revelado suas lacunas e misérias,

pareceu-me absolutamente fascinante ao primeiro dia. Esse arquivo policial sofreu

uma série de dispersões e perdas, aparentemente irreparáveis. O acervo de

documentação produzida pela antiga Polícia de Buenos Aires, desde sua criação na

década de 1820 até que se transformou em polícia metropolitana em 1880, foi

transferido ao Archivo General de la Nación. As centenas de documentos e caixas

com papéis foram guardados sob um critério quase indecifrável, mas ao menos

ficaram a salvo da trama desidiosa que ditou a evaporação do resto da documentação.

O Arquivo da Polícia da Capital (1880-1943), no entanto, seguiu um caminho

confuso. Pouco depois da celebração do primeiro Centenário da República

Argentina, o delegado Leopoldo López publicou a obra que inaugurou uma linhagem

de historiografia endógena, institucional e panegírica, que em nossos dias ainda tem

seus herdeiros.1 Em 1962, seus defensores conseguiram uma significativa conquista

quando a chefatura fundou o “Centro de Estudos Históricos Policiais” e o deixou em

mãos do principal historiador da polícia argentina, Francisco Romay, que pouco

1 LÓPEZ, Leopoldo. Reseña Histórica de la Policía de la Capital. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1911. Estudei a tradição dos historiadores da policía argentina em: GALEANO, Diego. “El ojo y la pluma. La cultura narrativa de la policía en la ciudad de Buenos Aires”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 214-220.

Page 22: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

11

depois doou à polícia sua biblioteca pessoal.2 O manuseio da documentação do

arquivo ficou reservado ao círculo de policiais escritores nucleados em torno da

figura do Romay. Depois de sua morte, o Centro de Estudos – que agora leva seu

nome – passou a depender da Divisão de Museus e Pesquisas Históricas.

Alguns anos antes de ser iniciada essa pesquisa, ao menos dois historiadores

tiveram acesso ao arquivo policial, localizado num edifício à Rua Chacabuco, em

Buenos Aires.3 Lá estavam os livros de registros de ocorrências e a documentação

das seções de Investigação, Ordem Pública e Ordem Social da Polícia da Capital. No

entanto, quando pedi para ter acesso ao acervo, me explicaram que o material se

havia perdido numa inundação. O que estava ao meu alcance era a biblioteca de

Romay, engrossada por doações posteriores, diminuída também por algumas

“perdas” e guardada nos altos de uma delegacia do bairro Once. Além dos policiais

aposentados que a cada tanto visitavam o lugar, a biblioteca é atendida por agentes

em atividade que sofreram algum tipo de incidente, histórias cujas filigranas tive que

escutar, contra minha vontade, durante os meses em que a frequentei.

Pela repentina desaparição das fontes manuscritas, a tese de mestrado que

então eu começava teve que se concentrar no período compreendido pela

documentação do Arquivo Nacional.4 No entanto, o acervo da biblioteca seguia

sendo útil para reunir fontes impressas, fundamentalmente as revistas policiais e os

relatórios anuais do Departamento de Polícia. A coleção de livros e folhetos foi, com

o tempo, mostrando também alguns de seus tesouros. Se nas primeiras visitas eu

devia pedir aos empregados o material, sem possibilidade de me aproximar das

prateleiras, em algum momento – não sei se por ganhar confiança ou simplesmente

por cansá-los – pude começar a revisar as estantes.

2 Ver a disposição circulada pela ordem do dia 3 de outubro de 1962 em: ROMAY, Francisco L. Historia de la Policía Federal Argentina. Orígenes y evolución, Tomo 1, 1580-1820. Buenos Aires: Biblioteca Policial, 1963, p. 7-8. 3 Refiro-me aos trabalhos de GAYOL, Sandra. Sociabilidad en Buenos Aires. Hombres, Honor y Cafés (1862-1910). Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2007; e MOYA, José. Cousins and strangers. Spanish immigrants in Buenos Aires, 1850-1930. Berkeley: University of California Press, 1998. 4 GALEANO, Diego. La policía en la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880. Buenos Aires, Tesis de Maestría en Investigación Histórica, Universidad de San Andrés, 2010.

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12

Certo dia, encontrei uma fileira de livros que me chamou especialmente a

atenção. A biblioteca tem duas salas conectadas, sendo uma ocupada por leitores e

outra reservada aos empregados. Na parede do fundo dessa segunda sala havia várias

estantes com tratados e manuais de criminalística escritos em diversos idiomas. Mais

abaixo, empilhavam-se obras vinculadas à Interpol, delitos complexos e

criminalidade transnacional. No extremo dessa fila, havia uns vinte livros sobre as

polícias sul-americanas, em particular do Brasil e do Uruguai. Vários textos escritos

por funcionários da polícia carioca (Vicente Reis, Félix Pacheco, Aurelino Leal)

conseguiram nesse dia desviar minha atenção do objeto de tese. Nesse momento,

porém, nada me inquietou mais que as atas de duas conferências sul-americanas de

polícia celebradas em Buenos Aires em 1905 e 1920.5 Saí da biblioteca com cópias

dessas atas em minha máquina fotográfica e com a intenção de produzir um trabalho

sobre as conexões entre os vigilantes do sul. Não imaginava, então, que era o

primeiro passo para minha pesquisa de doutorado e, muito menos, que por isso

terminaria vivendo no Brasil.

Essa ideia apareceu um pouco mais tarde quando, por recomendação de Lila

Caimari, minha orientadora no mestrado, consultei uma obra chamada Galería de

Ladrones de la Capital. Era uma coleção de duzentos retratos de indivíduos

fotografados e detidos em diversas ocasiões pela polícia. O compilador era o

Comissário de Pesquisas José S. Álvarez, que pouco depois, sob o pseudônimo de

“Fray Mocho”, ficaria conhecido no ambiente das letras como escritor e diretor da

famosa revista ilustrada Caras y Caretas. Cada um desses retratos estava

acompanhado por uma descrição dos antecedentes e da carreira delitiva. O semblante

do primeiro surpreendeu-me muitíssimo. Esperava encontrar ladrões de aspecto

lastimoso, os gatunos que muita bibliografia apresenta como clientes fixos dos

xadrezes policiais. Mas Ángel Artire (vulgo, Minga-Minga), o retrato número um,

5 CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital Federal, 1905.CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Paraguay, Perú, Uruguay: Convenios y Actas. Buenos Aires: Imprenta J. Tragant, 1920.

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13

ostenta um elegante penteado, bigodes prolixamente cortados e um olhar sedutor que

bem poderia ser o de um retrato artístico.6

Segundo as folhas de antecedentes, Minga-Minga havia nascido na Itália, tinha

28 anos e, havia quinze, vivia em Buenos Aires. Tinha a pele branca, os olhos azuis,

a barba e os bigodes loiros. Entre 1875 e 1886, acumulava trinta e nove entradas na

polícia – muitas das quais, por roubo, haviam terminado com alguns meses de

reclusão na Penitenciária Nacional. Ao final da lista de detenções, o Comissário de

Investigações ensaiava uma breve descrição do retratado:

É um hábil punguista, quer dizer, um indivíduo apto para inspecionar bolsos alheios sem ser notado. Nunca se arrisca em empresas grandes e perigosas. Viajou pelo Brasil e pelo Uruguai durante alguns anos e é de maneiras um tanto cultas. Agora costuma trabalhar também como vigarista, pois o fato de ser demasiado conhecido da polícia o impede circular pelas ruas.7

Um ladrão hábil, culto e viajante, colocava novamente o foco da minha atenção

sobre esses países sul-americanos. Poucas páginas adiante, o retrato número quinze

pertencia a outro italiano, Ángelo Locio (Socio ou Giambedi), quem viajava pelo

Brasil aplicando os “contos do vigário” que lhe haviam deixado “uma herança para

repartir entre os pobres”.8 Então voltei às atas das conferências policiais. Detive-me

nas palavras de um delegado chileno que, na reunião de 1905, advertia seus colegas

sobre a presença de “criminosos viajantes”, que aproveitando os “fáceis meios de

transporte”, circulavam entre o Rio de Janeiro, Buenos Aires, Montevidéu e Santiago

do Chile.9

A maior surpresa, no entanto, apareceu ao se revisar outro dos livros que

estavam naquela estante da biblioteca policial: Os ladrões no Rio (1903), do

6 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 6. 7 Idem, p. 8. 8 Idem, p. 40. 9 CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit., p. 20.

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14

delegado carioca Vicente Reis. Não apenas topei com relatos sobre criminosos

viajantes num tom muito similar aos anteriores, como no caso de Adolpho Silva,

“filho de uma grande família de artistas do conto do vigário”, vinculado a outros

célebres “gatunos” que chegaram na década de 1880 “pelo Rio da Prata”.10 Além

disso, numa seção dedicada a enumerar os vigaristas que atuavam no Rio de Janeiro,

aparecia Minga-Minga, o mesmo ladrão e estelionatário que dava início à galeria de

ladrões portenhos. Quem era este protagonista dos relatos de policiais argentinos e

brasileiros? Uma extravagância da memória policial pinçada da categórica maioria

de ladrões comuns? Ou acreditamos na hipótese do delegado chileno sobre a

presença de uma verdadeira casta de criminosos viajantes? O que buscavam os

policiais com estas conferências sul-americanas? E teve o convênio que firmaram

algum efeito sobre o trabalho cotidiano de vigilância?

Mesmo tomando com extremo cuidado as acusações que estes textos faziam

sobre sujeitos como Minga-Minga, essa primeira coincidência – ver seu rosto

estampado em livros daqui e de lá – era um forte indício da efetiva mobilidade

territorial de certas práticas delitivas na América do Sul. A figura do criminoso

viajante se insinuava além das acusações e fantasias policiais. Assim que fiquei

sabendo que a documentação manuscrita da polícia carioca durante a Primeira

República, diferentemente da situação que havia encontrado em Buenos Aires, era

conservada no Arquivo Nacional, foi apenas questão de cruzar a fronteira. Era

possível se aventurar numa história social dessas práticas.

Um objeto (cada vez menos) opaco

Policiais cruzando fronteiras nacionais para enfrentar um conjunto de práticas

criminais territorialmente elusivas: eis aqui o objeto da tese. A formação de uma rede

de cooperações entre as forças policiais da América do Sul envolveu diferentes

10 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 150-155.

Page 26: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

15

países, mas a intensidade dos intercâmbios concretos variava muito de acordo com as

contingências dos laços bilaterais. Desde finais do século XIX, o vínculo entre as

polícias das capitais da Argentina e Brasil foi um dos mais fortes da região. De fato,

a conferência sul-americana de 1905 foi decidida no Rio de Janeiro, durante o

Congresso Científico Latino-americano, por representantes de ambos os países.

A abolição da escravatura e a proclamação da República mudaram a visão que

uma fração das elites brasileiras tinha sobre a Argentina. O fim da escravidão foi

celebrado com manifestações populares nas ruas de Buenos Aires. Em resposta, a

imprensa carioca falou, como nunca antes, da “irmandade” entre Brasil e Argentina.

Assim se iniciou um processo de aproximação que teve como ponto mais alto a

majestosa visita do presidente Roca à capital brasileira, em 1899, e a viagem de

Campos Sales a Buenos Aires no ano seguinte, retribuindo as gentilezas. Embora as

relações diplomáticas entre os dois países tivessem seus altos e baixos naqueles anos,

essas aproximações mobilizaram uma circulação maior de informações e contatos em

diferentes registros institucionais.11

Quando descemos às catacumbas da burocracia – neste caso, aos intercâmbios

efetivos entre funcionários policiais – notamos que, mesmo os processos mais

cordiais, e inclusive declaradamente amistosos desde a retórica consular, estão

abarrotados de desconfiança, manigâncias, tensões mais ou menos silenciosas. Por

isso o escrutínio das cartas, telegramas e ofícios, junto a uma infinidade de

observações anotadas pelos funcionários policiais são um contrapeso iniludível dos

discursos solenes em visitas protocolares, congressos e conferências; embora estes

últimos, lidos e relidos criticamente, possam também manifestar – segundo uma

expressão de Carlo Ginzburg – “elementos não controlados”, alheios às intenções do

produtor de um relato.12

A decisão de escolher a rota entre Buenos Aires e Rio de Janeiro dentro do

amplo mapa da cooperação policial sul-americana se justifica por vários motivos. A

11 Esta aproximação foi trabalhada recentemente por PREUSS, Ori. Bridging the Island. Brazilian´s Views of Spanish America and Themselves, 1865-1912. Frankfurt/ Madri: Iberoamericana-Vervuert, 2011, p. 47-115. 12 GINZBURG, Carlo. El hilo y las huellas. Lo verdadero, lo falso, lo ficticio. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010, p. 15.

Page 27: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

16

intensificação dos vínculos entre ambos os países é, sem dúvida, um dado decisivo.

Também foi determinante a disponibilidade de um arquivo no Brasil com fontes

manuscritas da Polícia da Capital Federal. No entanto, o Arquivo Nacional do

Uruguai também conserva a documentação de sua polícia metropolitana. Nesse

sentido, um estudo sobre os intercâmbios entre Montevidéu e Rio de Janeiro teria a

vantagem relativa de contar com as vozes de ambos os lados. Mas na posição na qual

me encontrava, uma pesquisa assim apresentava outros contratempos. Seria

necessário assimilar a história de dois países (e a organização de dois arquivos

nacionais) que, em comparação com a Argentina, eu conhecia bem pouco. Além

disso, teria que lidar com uma desproporção enorme entre os estudos históricos sobre

as polícias no Brasil e no Uruguai.13

Há muito tempo, historiadores, sociólogos e antropólogos que tomaram a

polícia como objeto de seus estudos iniciaram suas publicações com

questionamentos sobre a relutância da pesquisa universitária com esta instituição

incômoda, esquiva e opaca, ainda que essencial para compreender o Estado moderno

como uma máquina viva.14 Este juízo está baseado ao menos em duas constatações: a

resistência dos policiais a serem estudados por pessoas alheias ao “mundo policial”, e

a própria apatia do mainstream universitário em relação a esta força estatal,

imaginada como uma mera instância de execução mecânica de ordens procedentes

das altas esferas do governo. Evidentemente, muitos policiais seguem resistindo às

etnografias intrusas em seus espaços profissionais. Muitos arquivos ainda são

inacessíveis, mas hoje seria exagerado generalizar o argumento da opacidade da

polícia a todos os lugares e áreas do conhecimento.

A história das polícias do Brasil e da Argentina é um campo de estudos cada

vez mais frutífero. Uma primeira série de trabalhos se iniciou na década de 1980,

num clima intelectual atravessado pelo final das ditaduras militares. O foco de

13 Até onde chega nosso conhecimento, apenas uma obra, escrita em três volumes por um delegado, oferece um panorama da história da polícia no Uruguai: RODRÍGUEZ, José A. Evolución histórica de la policía uruguaya. Montevideo: Byblos, 2005. 14 Ver, por exemplo: BAYLEY, David H. Patterns of Policing: A Comparative International Analysis. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1985. REINER, Robert. The Politics of the Police. Londres: Wheatsheaf, 1992. MONJARDET, Dominique. Ce que fait la police. Sociologie de la force publique. Paris: La Découverte, 1996.

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17

análise centrava-se então em perguntas sobre a organização dos aparelhos

repressivos no processo de construção dos Estados nacionais e o papel da polícia nos

projetos de disciplinamento das classes populares concebidos pelas elites urbanas.15

Mais tarde, num diálogo crítico com esses trabalhos, outros autores acharam

necessário apresentar os policiais como sujeitos capazes de atuar, reconhecendo

interesses próprios e uma visão do mundo particular. Os conflitos entre distintos

corpos policiais, enfrentamentos nas ruas de vigilantes com militares e tensões com o

campo judiciário numa luta pelo monopólio da força pública foram questões que

adquiriram maior visibilidade.16

Outras linhas historiográficas prestaram atenção à polícia como um ator social

e politicamente relevante. É o caso da história dos trabalhadores, os sindicatos e o

movimento operário. Uma boa parte das pesquisas se concentrou nos períodos de

greves, estados de sítio e sanção de leis que em ambos os países foram lidas como

reações repressivas ante o avanço da organização política do proletariado.17 Porém o

escasso contato que muitas destas pesquisas tiveram com as fontes policiais,

concentrando-se quase exclusivamente na análise da imprensa operária, produziu

uma chave de leitura bastante instrumentalizada e maniqueísta das práticas policiais.

Sem voz própria nem maior entidade que a de ser o “polo oposto” da classe

15 Para o Brasil: NEDER, Gizlene (et. al.). A Polícia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1981. CRUZ, Heloisa. “Mercado e Polícia: São Paulo, 1890-1915”, Revista Brasileira de História, Vol. 7, n. 14, São Paulo, 1987, p. 115-130. HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. No caso argentino: KIRK BLACKWELDER, Julia. “Urbanization, Crime, and Policing. Buenos Aires, 1880-1914”. In: JOHNSON, Lyman (ed.). The Problem of Order in Changing Societies: Essay on Crime and Policing in Argentina and Uruguay. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 65-87. RUIBAL, Beatriz. Ideología del control social: Buenos Aires, 1880-1920. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992. 16 GAYOL, Sandra. “Entre lo deseable y lo posible. Perfil de la Policía de Buenos Aires en la segunda mitad del siglo XIX”, Estudios Sociales, año VI, n. 10, Santa Fe, 1996, p. 123-138. BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. 17 MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor: de la Ley de Residencia a la Ley de Defensa Social (1902-1910). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1988.

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18

trabalhadora, o mecanismo da polícia é assumido como natural: uma ferramenta das

classes dominantes voltada à vigilância dos subalternos.18

Uma visão mais matizada da relação entre as autoridades policiais e os setores

populares surge dos trabalhos que utilizaram os arquivos judiciais e, em particular, os

processos criminais, como fontes para a história social.19 Esse caminho ampliou o

olhar para a experiência dos trabalhadores situados fora do espaço do movimento

operário politicamente articulado. Além disso, permitiu incorporar novas perguntas

sobre os modos de ação da autoridade pública nas ruas e as negociações cotidianas

nas fronteiras da legalidade. Estudos sobre a defesa da honra, as modulações do

masculino, a prostituição e o jogo clandestino, enriqueceram muito nossa

compreensão do território onde se desenvolve a atividade policial.20

Nos últimos anos, a produção historiográfica sobre as instituições policiais da

Argentina e do Brasil cresceu em outras duas direções. Por um lado, se os primeiros

trabalhos estavam centrados nas polícias das capitais, cada vez mais historiadores se

voltavam aos Estados provinciais.21 Nos países com territórios destas dimensões,

18 Uso a expressão “polo oposto” de MATTOS, Marcelo Badaró. “Greves e repressão policial aos sindicatos no processo de formação da classe trabalhadora carioca (1850-1910)”. In: MATTOS, Marcelo Badaró (coord.). Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Rio de Janeiro: Bom Texto/Faperj, 2004, p. 52. 19 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque: Campinas: Editora da Unicamp, 2001. SALVATORE, Ricardo. “Violencia sociopolítica y procesamiento judicial en la Argentina (1890-1920)”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 293-311. 20 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. CAULFIELD, Susan. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1949). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma historia social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. GAYOL, Sandra. Honor y duelo en la Argentina moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008. CHAZKEL, Amy. Laws of Chance. Brasil´s Clandestine Lottery and the Making of Urban Public Life. Durham: Duke University Press, 2011. MAGALHÃES, Felipe. Ganhou, Leva! O jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 2011. 21 Para o caso brasileiro, ver: NETO, Francisco Linhares F. Vigilância, impunidade e transgressão. Faces da atividade policial na capital cearense (1916-1930). Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Lei, cotidiano e cidade: Polícia Civil e práticas policiais na São Paulo republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2009. ROSEMBERG, André. De Chumbo e Festim. Uma história da polícia paulista no final do Império. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010. MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1896-1929. Tese de Doutorado em História,

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19

nenhuma uniformidade pode ser aceita sem cautela. Essa ampliação do espaço

abrangido permite desencadear novas perguntas sobre as formas de articulação entre

as polícias das províncias ou estados e, dentro desse mapa, o rol desempenhado pelos

corpos de segurança das capitais, antes da formalização das polícias federais a

década de 1940.

Por outro lado, vários estudos se focaram nos processos de especialização e

profissionalização do ofício policial, materializados nas seções de Investigações,

Ordem Política e Ordem Social, incluindo a aparição de arquivos com prontuários

pessoais e laboratórios de polícia científica.22 Embora ainda reste muito a se

investigar nesse terreno, o olhar sobre as seções especiais é vital para se entenderem

as formas de organização, as fraturas e as tensões internas que atravessaram as

polícias no século XX. Igualmente, ainda é preciso traçar pontes entre esta

bibliografia e a renovação dos estudos de “história recente” depois da abertura dos

chamados “arquivos da repressão”, correspondentes à polícia política das ditaduras.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Na Argentina: RAFART, Gabriel. Tiempo de violencia en la Patagonia. Bandidos, policías y jueces, 1890-1940. Buenos Aires: Prometeo, 2008. BOHOSLAVSKY, Ernesto. “El brazo armado de la improvisación. Aportes para una historia social de los policías patagónicos”. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; SOPRANO, Germán. Un Estado con rostro humano. Funcionarios e instituciones estatales en Argentina (desde 1880 a la actualidad). Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 215-242. FERNÁNDEZ MARRÓN, Melisa. “Éramos Robinsones que, en lugar de quedar atrapados en una isla, estábamos aislados en nuestro propio territorio: la institución policial pampeana en los inicios del siglo XX”. In: DI LISCIA, María Silvia; LASALLE, Ana María; LLUCH, Andrea (eds.). Al oeste del paraíso. La transformación del espacio natural, económico y social en la Pampa Central (siglos XIX y XX). Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa/Miño y Dávila, 2007, p. 155-178. BARRENECHE, Osvaldo. “Construyendo la Casa de Piedra. La Policía de la Provincia de Buenos Aires durante la primera mitad del siglo XX”. In: GALEANO, Diego; KAMINSKY, Gregorio (Coord.). Mirada (de) uniforme. Historia y crítica de la razón policial. Buenos Aires: Teseo, 2011, p. 153-184. 22 KALMANOWIECKI, Laura. “Origins and Applications of Political Policing in Argentina”, Latin American Perspectives, Vol. 27, n. 2, Mar. 2000, p. 36-56. CUNHA, Olívia M. Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. RODRIGUEZ, Julia. “South Atlantic Crossings: Fingerprints, Science, and the State in Turn-of-the-Century Argentina”, The American Historical Review, Vol. 109, n. 2, 2004, p. 387-416. FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos Autos da Cova Rasa. A identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008. GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos / sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010. GALEANO, Diego; GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Cartographie du bertillonnage. Le système anthropométrique en Amérique latine: circuits de diffusion, usages et résistances”. In: PIAZZA, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique. Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime. Paris: Karthala, 2011, p. 308-331.

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20

Os acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), recolhidos em

diferentes arquivos estaduais e bibliotecas públicas do Brasil, mobilizaram uma

importante quantidade de trabalhos sobre a polícia no período de Vargas, a República

Nova e os posteriores governos militares.23 Mais recentemente, na Argentina, foi

aberto o arquivo da División de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos

Aires (DIPBA) e algumas pesquisas baseadas em sua documentação foram

difundidas.24 Embora a conquista de novos arquivos, postos ao alcance das mãos

acadêmicas, seja por vezes acompanhada de retóricas iluministas, cobertas de

esperanças sobre a possibilidade de revelar verdades ocultas pelas trevas ditatoriais, é

muito importante não perder de vista um princípio: a melhor forma de inquirir nas

impressões que os arquivos policiais nos deixaram é compreender cabalmente a

instituição produtora desses papeis.

Arquivos e bibliotecas nacionais

“O arquivo supõe o arquivista: uma mão que coleciona e classifica”, observava

Arlette Farge, num arrazoado que mesmo sendo circular continua indicando a

presença de um problema complexo.25 As selvas de papeis que se nos apresentam

como arquivos policiais devem ser interpeladas em sua estrita materialidade. No

Brasil e na Argentina, estes arquivos nasceram no espaço da burocracia estatal, junto

com a própria figura do arquivista. A Polícia de Buenos Aires regulamentou em

23 Alguns exemplos, sem considerar a profusa bibliografia sobre a ditadura militar: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, idéias malditas: o DEOPS e as minorias silenciadas. São Paulo: Ateliê, 2002. ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a polícia política (1930-1945). São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2006; MAGALHÃES, Fernanda Torres. O suspeito através das lentes: o DEOPS e a imagem da subversão (1930-1945). São Paulo: Humanitas/Imprensa oficial/Fapesp, 2006. 24 FUNES, Patricia. “Los libros y la noche. Censura, cultura y represión en la Argentina a través de los servicios de inteligencia del Estado”, Dimensões, n. 19, Vitória, 2007, p. 133-155. KAHAN, Emmanuel. Unos pocos peligros sensatos. La Dirección de Inteligencia de la Provincia de Buenos Aires ante las Instituciones Judías de la Ciudad de La Plata. La Plata: Edulp, 2009. 25 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009, p. 11.

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21

1868, pela primeira vez, as funções do “encarregado do arquivo” e os procedimentos

rotineiros para ordenar documentos, expedientes, ofícios e livros com índices para

facilitar a busca nas estantes.26

Em compensação, o primeiro regulamento do serviço policial do Rio de

Janeiro, após a proclamação da República, nada dizia sobre o arquivista.27 Logo

depois da reforma policial de 1900, o novo decreto mencionava, sem dar muitos

detalhes, a necessidade de se organizar o arquivo como parte das tarefas dos

escreventes.28 Porém, Cardoso de Castro, quando assumiu como chefe de polícia em

1902, descrevia a paisagem desoladora que encontrou ao entrar nas salas do arquivo:

Visitei o Arquivo logo aos primeiros dias da minha administração e causou-me péssima impressão o abandono a que ele se achava reduzido. Instalado em duas salas, aliás amplas, mas acusando em cada canto um desasseio e uma incúria completos, não poderia ser aquela a repartição de consulta e guarda de papeis por mim desejada para a Repartição Central de Polícia. Os documentos, uns nas prateleiras, amarrados com cordéis e epigrafados com um quadrado de cartão e um número, outros distribuídos a granel por sobre o chão e as mesas desconjuntadas que constituíam o escasso mobiliário dessa dependência, pareciam pedir mão misericordiosa que os cuidasse e arrumasse metódica e convenientemente. O soalho, velho e podre, oscilava quando se dava um passo numa das salas, ameaçando desabar na ocasião menos esperada.29

Não se lê nessas palavras nenhuma inquietude pelo valor histórico da

documentação, embora a questão não fosse alheia às preocupações das elites

republicanas, que já estavam organizando o Arquivo Público Nacional e produzindo,

em diálogo com outros intelectuais sul-americanos, relatos sobre as origens da

26 GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p. 58-59. 27 Decreto n. 1.034A – de 1 de setembro de 1892, en: Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil, Ano XXI, n. 250, 14 set. 1892. 28 Regulamento para o serviço de Polícia do Distrito Federal. Decreto n. 3.640 – de 14 de abril de 1900, Diário Official dos Estados Unidos do Brasil, ano XXIX, n. 107, 21 abr. 1900, art. 40. 29 Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal A. A, Cardoso de Castro, Anexos ao Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, p. 137.

Page 33: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

22

nação.30 Ao contrário, Cardoso de Castro explicava como havia melhorado a situação

desde a incorporação de um arquivista, com quem o próprio chefe acertou os “meios

de aliviar o arquivo da pletora de papéis ali amontoados, eliminando-se para isso os

lá guardados sem utilidade alguma”; isto é, uma parte dos documentos da época do

Império, desde 1842 até 1889, “verdadeiras carradas de papéis inúteis” que foram

descartados por falta de espaço.31 Também se excluiu uma série de objetos

acumulados nas salas do arquivo, outrora utilizadas como depósito de “máquinas de

jogo, camisas de força, padiolas, estandartes carnavalescos, carabinas imprestáveis,

pandeiros, cornetas, alfarrábios sem préstimo”.32

O que preocupava o chefe eram a desordem e a entropia de um arquivo

concebido com fins administrativos bastante precisos. Durante o século XIX, os

arquivos públicos foram incorporando ferramentas bibliográficas (repertórios,

índices, catálogos) que buscavam ajustar um critério de ordenamento espacial para o

acesso à documentação. Deste modo, outros dispositivos – como os ficheiros, as

caixas e as estantes – apontavam para a colossal tarefa de estabelecer um sistema de

registros que permitisse, de uma vez, o movimento e a localização dos documentos.

O arquivista deveria conseguir a quimera de converter um aparelho em constante

transformação e incorporação de novos papéis em um espaço fixo, previsível, onde

cada coisa estivesse e pudesse ser encontrada.33

É importante levar em conta essa dimensão cinética do mundo dos arquivos

policiais. Nos projetos de códigos para a polícia portenha de 1894 e 1911, o arquivo

aparecia como o núcleo de um vasto sistema de circulações. Em primeiro lugar, se

ocupava da conservação e classificação de todos os ofícios que o Departamento

Central recebia das delegacias seccionais. O mesmo valia para os expedientes, notas

e informações enviadas pelas demais repartições públicas, incluindo a Justiça.

30 DEVOTO, Fernando. “La construcción del relato de los orígenes en Argentina, Brasil y Uruguay: las historias nacionales de Varnhagen, Mitre y Bauzá”. In: ALTAMIRANO, Carlos (dir.); MYERS, Jorge (ed. vol. 1). Historia de los intelectuales en América Latina: 1. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 269-289. 31 Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Op. Cit., p. 137-138. 32 Idem, p. 137. 33 PODGORNY, Irina. “Fronteras de papel: archivos, colecciones y la cuestión de límites en las naciones americanas”, Historia Crítica, n. 44, Bogotá, may.-ago. 2011, p. 56-79.

Page 34: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

23

Acumulava também as filiações dos criminosos, fichas de identificação, fotografias e

prontuários pessoais, e coordenava a “troca de retratos, coleções ou reproduções de

objetos com as demais polícias nacionais e estrangeiras”.34

Esta tese tratará de analisar toda uma série de objetos localizados nos arquivos

que podem ser interpretados como vestígios materiais da circulação internacional de

saberes policiais. Não se trata unicamente de testemunhos que falam de outras coisas:

eles mesmos são elementos cujo processo de produção merece ser explicado.

Telegramas, retratos e álbuns fotográficos, fichas antropométricas e datiloscópicas,

instrumentos para medições corporais, manuais de criminalística: estamos diante de

“artefatos portáteis”, concebidos para se inserir numa densa rede de intercâmbios.

Igualmente às bibliotecas públicas e às coleções dos museus de história natural, os

cartões com fichas individuais e os sistemas de classificação materializados em

ficheiros, como veremos a propósito dos gabinetes de identificação policial, surgem

como artefatos ligados a certas práticas de tráfico de objetos e informações.35

As técnicas da polícia científica que desembarcaram em Buenos Aires e no Rio

de Janeiro no final do século XIX acarretaram, além disso, um fetichismo em torno

dos objetos do mundo delitivo. Se, na cena do crime, todo rastro – por mais trivial

que pareça – pode nos conduzir à reconstrução dos fatos, nenhum objeto devia ser

descartado a priori.36 Em estreita conexão com as práticas criminológicas da Escola

34 Artigo 365 do Proyecto de Código de Policía para la Capital de La Nación. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894, p. 97. Artigos 1038 e 1043 do Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico Colón, 1911, p. 278-279. 35 Um estado da bibliografia sobre a noção de “artefato” sob o ponto de vista da arqueologia e da história cultural pode ser encontrado em HENARE, Amira; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. Thinking through things: theorising artefacts ethnographically. Londres: Routledge, 2007. Sobre a ideia da portabilidade dos objetos arquivísticos e museológicos: PODGORNY, Irina. “Antigüedades portátiles: transportes, ruinas y comunicaciones en la arqueología del siglo XIX”, História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 15, n. 3, Rio de Janeiro, jul-set 2008, p. 577-595. Sobre as fichas de identificação policial como artefatos: CUNHA, Olívia M. Gomes da. “La existencia relativa de las cosas (que reposan en los archivos): prácticas y materiales en relación”: In: SIRIMARCO, Mariana (comp.). Estudiar la policía. La mirada de las ciencias sociales sobre la institución policial. Buenos Aires: Teseo, 2010, p. 97-138. 36 Este “paradigma indiciário” baseado numa hermenêutica dos sinais, tal como explicaram Foucault e Ginzburg, era um fenômeno que excedia amplamente o campo policial: FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Dits et Écrits, 1954-1988, Vol. 1. Paris: Gallimard, 1994, p. 592-607. GINZBURG, Carlo. “Indicios. Raíces de un paradigma de inferencias indiciales”. In: Mitos, emblemas, indicios: morfología e historia. Barcelona: Gedisa, 1989, p. 138-175.

Page 35: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

24

Italiana e com os avanços da criminalística europeia, apareceram os primeiros

“museus policiais” em Buenos Aires (1899) e no Rio de Janeiro (1912).37 Em ambos

os casos, as coleções se aparelharam com objetos sequestrados pela polícia – armas

brancas, chaves, armas de fogo, máquinas para falsificar dinheiro, maletas com fundo

falso, bigodes postiços etc. – e não eram pensadas como exposições para o público

curioso, mas como instrumentos didáticos para os alunos das novas escolas de

polícia.38 Muitas desses itens também aparecem nos arquivos (entre as caixas de

documentação policial do Arquivo Nacional, encontrei bilhetes e cheques falsos,

fotos pornográficas e até um pequeno pacote com cocaína apreendido no início do

século XX), mas sobretudo se fazem presentes através de reproduções fotográficas

que se anexavam aos processos. Esses objetos podem ser lidos em sua dupla

historicidade: são ao mesmo tempo impressões das práticas criminais e das formas de

ação policial.

Da mesma maneira, os materiais manuscritos e impressos manifestam outro

lado da mobilidade espacial das fontes que manipulamos. Não obstante a maior parte

de os arquivos e bibliotecas aqui consultados terem um critério “nacional” de

organização de seus fundos, ao menos três tipos de documentação puderam ser

reconhecidos como testemunhos da circulação internacional entre as polícias da

América do Sul. Em primeiro lugar, documentos diretamente concebidos para cruzar

fronteiras: pedidos de extradição, missivas diplomáticas, mensagens telegráficas,

livros e folhetos traduzidos para idiomas estrangeiros para a difusão em outros

países. Em segundo lugar, outro conjunto de escritos brotados da importante

quantidade de visitas institucionais, viagens de estudo, conferências policiais e

congressos científicos, celebrados nas capitais sul-americanas desde finais do século

XIX. Por último, múltiplos indícios dos intercâmbios entre as polícias de Argentina e

Brasil que foram aparecendo no interior de publicações institucionais

37 Sobre a aparição dos primeiros museus do crime na Europa ver: REGENER, Susanne. “Criminological Museums and the Visualization of Evil”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime, History & Society, vol. 7, n. 1, 2003, p. 43-56. 38 Sobre o museu da polícia portenha: RODRIGUEZ, Adolfo E. Historia de la Policía Federal Argentina. Tomo IV, 1880-1916. Buenos Aires: Editorial Policial, 1975, p. 214-215. MUSEO POLICIAL. Museo Policía Federal: 75 aniversario. Buenos Aires: Policía Federal Argentina, 1974. E sobre a experiência carioca: CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910, p. 133. LOCARD, Edmond. A Escola de Polícia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1913.

Page 36: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

25

(fundamentalmente memórias e revistas policiais) e na abundante produção

bibliográfica dos policiais escritores.

Esses três tipos de fontes foram produzidas tanto por policiais brasileiros como

argentinos, mas o acesso à documentação foi diferente no Rio de Janeiro e em

Buenos Aires. Para o período que abrange esta tese, como expliquei anteriormente, o

arquivo policial portenho está perdido. A ausência do arquivo é um grave obstáculo

para qualquer pesquisa sobre o cotidiano do trabalho policial em Buenos Aires, mas

isso não significa que não existam fontes. O principal acervo que ainda pode ser

consultado é a documentação institucional impressa, fundamentalmente a Revista de

Policía, que – diferente das revistas produzidas pela polícia carioca – teve uma

notável continuidade desde a década de 1890 até os anos 1930. Outra fonte impressa

utilizada foi a série de relatórios anuais do Departamento de Polícia, publicados

descontinuamente nas três últimas décadas do século XIX. Esses relatórios, e as

diferentes publicações oficiais da polícia portenha (desde galerias fotográficas de

criminosos até livros de instruções para policiais), foram consultados no acervo da

Biblioteca Nacional e no Centro de Estudios Históricos Policiales “Francisco

Romay”.

Mesmo assim, a ausência de documentação manuscrita em Buenos Aires

coloca os arquivos brasileiros num lugar de grande importância para a reconstrução

das redes de cooperação policial. Uns dos acervos consultados foi o Fundo

GIFI/Polícia (documentação do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores,

1895-1924), na sede Rio de Janeiro do Arquivo Nacional. A partir de uma revisão

geral do conteúdo das caixas fiz uma seleção de aproximadamente quarenta pacotes

que continham documentação do Corpo de Investigação e Segurança Pública, do

Gabinete de Identificação e Estatística, da Inspetoria de Polícia Marítima e da própria

chefia. Intercâmbios formais entre as polícias sul-americanas, com intervenção de

autoridades consulares, trocas informais por via telegráfica, circulação de

informações sobre “indesejáveis” expulsos e “criminosos viajantes” para impedir o

desembarque nos portos, permutas de fichas de identificação sobre “ladrões

conhecidos” e suspeitos vários: são os documentos do Arquivo Nacional que

utilizaremos ao longo da tese.

Page 37: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

26

Uma explicação à parte merece a documentação sobre a expulsão de

estrangeiros. Consultei, no Fundo IJJ7 (Seção de Documentos do Executivo e do

Legislativo), uma série de cinquenta e três pacotes com os processos de expulsão de

estrangeiros e, muitas vezes, os pedidos de habeas corpus escritos por advogados.

Para aprofundar o estudo das práticas de cooperação policial entre Buenos Aires e

Rio de Janeiro, resolvi analisar uma figura específica no universo dos chamados

“gatunos internacionais”, segundo o jargão dos policiais cariocas. Primeiramente

excluí os processos de expulsão por lenocínio, que foram já estudados por alguns

pesquisadores.39 Também decidi deixar de lado as expulsões de vadios e batedores de

carteiras, para me concentrar numa figura que circulava com frequência no espaço

das cidades atlânticas sul-americanas: os vigaristas ou passadores do “conto do

vigário” (cuento del tío, no espanhol do Rio da Prata). Realizei uma seleção de vinte

expulsões de vigaristas, vários deles argentinos e uruguaios, embora as

nacionalidades dos acusados sejam, às vezes, difíceis de determinar.

Para complementar a informação sobre a cooperação policial no contexto dos

processos de expulsão de estrangeiros na Argentina e no Brasil, consultei também o

Arquivo Histórico do Itamaraty, onde estão as listas de expulsos, que oferecem um

panorama quantitativo mais completo. Finalmente – embora na Argentina não

fossem recolhidos nos arquivos públicos os processos de expulsão de estrangeiros no

início do século XX – achei, no Arquivo Nacional, um relatório escrito na década de

1950 em resposta a um juiz que pedia a revisão de vários processos de expulsão das

primeiras décadas do século XX.40 Este relatório permite, ao menos, reconstruir os

mecanismos das expulsões na Argentina, e estabelecer uma comparação com a

documentação brasileira.

Os primeiros estudos históricos sobre as leis de expulsão de estrangeiros

sancionadas na Argentina e Brasil no início do século XX concentraram sua atenção

no espaço que estas medidas ocupavam como parte de uma escalada repressiva

39 Por exemplo: SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo. Op. Cit. MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio. Op. Cit.. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996. 40 AGN, Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados, Caja n. 14.

Page 38: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

27

contra a militância operária comunista e anarquista.41 O acervo de processos de

expulsão do Arquivo Nacional e outras fontes mostram, no entanto, que as leis foram

aplicadas (com muitas arbitrariedades) contra uma multiplicidade de práticas sociais

que a polícia buscava controlar. Até o final da tese, tratarei de reconstruir diferentes

histórias de “criminosos viajantes” como Minga-Minga, que caíram nas malhas

policiais. Alguns dos quais, inclusive, foram expulsos de Buenos Aires, do Rio de

Janeiro e outros portos brasileiros.

Os processos de expulsão incluíam relatórios incriminatórios, declarações de

falsas testemunhas (quase sempre policiais, apresentados como “funcionários

públicos”), folhas de antecedentes e, às vezes, retratos fotográficos dos acusados. Ao

ver cada um desses rostos retratados de frente e perfil pela câmera policial, muitas

vezes me perguntei sobre implicações éticas deste trabalho. Se por acaso esses

sujeitos não prefeririam ser esquecidos, a reaparecerem resgatados por um

historiador, a partir das palavras acusadoras dos vigilantes e daquelas duvidosas

testemunhas. Não era a veracidade do relato o que me preocupava, porque as

autobiografias de criminosos ou as narrativas da imprensa operária não resultam,

nesse sentido, menos problemáticas. Era essa aparição (tão poderosa) do olhar de

uma pessoa estampada num retrato fotográfico, recordando-me que esses fragmentos

do arquivo policial não eram nada mais que “vestígios brutos de vidas que não

pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira”.42

Como escrever então a história desses criminosos viajantes sem ouvir suas

próprias vozes? Como contá-las sem cair no que Gilles Deleuze chamou de

“indignidade de falar pelos outros”?43 O que me autoriza a reconstruir o que resta de

uma biografia quase perdida, a não ser pelos registros policiais e judiciários? Estas

perguntas se fizeram presentes cada vez que tive que decidir entre incluir um nome,

41 MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário, 1890-1920. Op. Cit. SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor. Op. Cit. ZIMMERMANN, Eduardo. Los liberales reformistas. La cuestión social en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 1995. VILLAVICENCIO, Susana (ed.). Los contornos de la ciudadanía. Nacionales y extranjeros en la Argentina del Centenario. Buenos Aires: EUDEBA, 2003. 42 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Op. Cit., p. 13. 43 Ver ARTIÈRES, Philippe. “La sombra de los prisioneros sobre el tejado: las herencias del GIP”. In: ERIBON, Didier (ed.). El infrecuentable Michel Foucault: renovación del pensamiento crítico. Buenos Aires: Letra Viva, 2004, p. 148.

Page 39: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

28

reproduzir um retrato fotográfico ou citar as palavras de uma autoridade estatal.44

Uma opção sempre à mão para moderar essas inquietudes era a possibilidade de

mudar os nomes, empregar somente as iniciais, talvez os pseudônimos, ou

diretamente inventar nomes fictícios para personagens do arquivo. No entanto, ao

transtorno que eu poderia provocar a qualquer historiador que quisesse revisar o

mesmo processo (afinal, é para isso que devemos citar a fonte), somava-se a

incerteza sobre a veracidade dos nomes.

Não existiam, naquela época, registros civis que pudessem garantir, com um

mínimo de certeza, se Minga-Minga havia sido registrado ao nascer como Ángel

Artire, ou se este era um dos tantos nomes que podia ter inventado, ao longo de sua

vida, para escapar das perseguições policiais. Raramente algum dos expulsos

aparecia registrado com menos de três nomes diferentes; em alguns casos, nem

sequer se sabia exatamente onde haviam nascido, e as informações vacilavam

também sobre a idade ou o estado civil. Alfred Matfeld, José Ritter, Fritz Steinhoff,

Alberto Routho e Alberto Landi eram, para a polícia carioca, a mesma pessoa. Mas

em nenhum momento se esclarecia, e nem podia se esclarecer, qual era o “nome

verdadeiro”. Ora registrado como holandês, ora como argentino; ora viúvo, ora

solteiro: o fato é que nenhuma dessas incertezas impediu que ele fosse expulso em

1907, embarcado para Buenos Aires no porto de Santos.45 Inventar um nome a mais

para Alfred, José, Fritz ou Alberto seria da minha parte quase um ato de arrogância.

Simplesmente tratarei de narrar – com a maior honestidade possível – as deliciosas

espertezas desse punhado de ladrões viajantes.

44 Uma profunda reflexão sobre a escrita da história de um indivíduo desconhecido, que não deixou registros em arquivos policiais e judiciais, pode ser encontrada em: CORBIN, Alain. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur lês traces d’un inconuu (1798-1876). Paris: Flammarion, 1998. 45 Ver AN, IJJ7 130; AN, GIFI 6C 222 (1907); e AHI, Ofícios de Polícia, 300-3-6 (1907).

Page 40: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

29

Histórias transnacionais

Arquivos e bibliotecas nacionais forneceram então as fontes necessárias para

narrar uma história transnacional. De fato, a periodização delimitada entre as décadas

de 1890 e 1930 não corresponde a cortes da história política dos dois países,

tampouco está atada estritamente ao arco diacrônico das fontes consultadas. A tese

inicia-se com uma série de viagens de policiais sul-americanos à Europa e uma

intensificação do tráfico mundial de saberes policiais, onde as tecnologias para a

identificação de pessoas tiveram grande destaque. A essa via de intercâmbios

transatlânticos estão dedicados os capítulos que compõem a primeira parte do

trabalho.

Embora o vínculo com as polícias europeias nunca tenha cessado, as três

primeiras décadas do século XX foram marcadas pela auge da cooperação entre as

polícias da América do Sul, consagrada nas conferências de Buenos Aires de 1905 e

1920. Numa época de conflitos bélicos agudos no mundo ocidental, não foram

poucos os especialistas europeus que consideraram o espaço atlântico sul-americano

um terreno propício para o crescimento da polícia internacional. O ponto de vista dos

“criminalistas” Edmond Locard e Rudolph Archibald Reiss, como estudaremos na

segunda parte da tese, expressaria esse novo olhar sobre os países sul-americanos.46

Por último, tratarei de mostrar, utilizando os processos de expulsão e outras

documentações do arquivo policial, que a aproximação entre os policiais da

Argentina e do Brasil não ficou limitada à celebração de reuniões e à retórica dos

discursos solenes. Intercâmbios concretos de informação, circulação de telegramas,

controles nos portos e também receios, mais ou menos dissimulados, entre as polícias

de ambos os países serão objeto dos capítulos da terceira parte, que termina com uma

análise sobre o controle da mobilidade territorial dos “criminosos viajantes”.

46 Usarei a noção de “criminalista” no sentido que esta expressão adquiriu na primeira metade do século XX, é dizer, para falar destes especialistas nos estudos de “polícia científica”, e distingui-los dos “criminologistas” da escola positiva de “antropologia criminal” do último quarto do século XIX.

Page 41: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

30

O tema da tese, as circulações policiais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires,

está enfocado aqui sob um ponto de vista da história transnacional. No entanto, tal

perspectiva de análise dista de ser inequívoca e pressupõe a construção de um

problema que, por atravessar as fronteiras de um Estado nacional, envolve ao menos

dois países, mas não deve ser confundida com os métodos da “história comparada”.

Ao comparar, assumimos que as unidades de estudo confrontadas, submetidas a um

jogo de operações analógicas, à busca de contrastes, isomorfismos e correlações, são

na verdade unidades perfeitamente distinguíveis. Nesse sentido, a história comparada

tende a ser internacional, assim como a história diplomática e a militar: se às vezes

reconhece a existência de contatos e interfaces entre as unidades, a perspectiva

comparada as interpela como formas de vínculo entre os Estados. A história

transnacional, no entanto, trabalha com unidades que são, ao mesmo tempo, mais

amplas e mais estreitas.47

Embora nenhuma dessas operações comparativas seja necessariamente

infrutífera, e nem serão descartadas como ferramentas de análise neste trabalho, a

história transnacional tenta principalmente mostrar as fissuras que se abrem nas

fronteiras dos países. Aqui, essas fronteiras não são entendidas como um marco

estável a partir do qual se delimita o objeto de estudo: elas mesmas são uma questão

problemática a ser estudada. Não pensamos o objeto desta tese como um modo de

analisar as relações internacionais entre a polícia brasileira e a argentina,

simplesmente porque não existia, em nenhum dos dois países, um sistema nacional

de polícia ao qual poderíamos atribuir capacidade de ação.

Se alguma vez empregamos expressões como “policiais brasileiros” ou

“vigilantes argentinos”, é porque esse rótulo nacional estava presente como categoria

identitária. Mas quando dizemos que o olhar está depositado sobre um espaço de

interações entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, esse recorte deve ser tomado ao pé

da letra. A rota entre essas capitais formava parte de um território que optei por

chamar “espaço atlântico sul-americano”, conceito que discuto no primeiro capítulo,

dedicado integralmente a reconstruir o marco geográfico e histórico que será o

47 SIEGEL, Micol. “Beyond Compare: Comparative Method after the Transnational Turn”, Radical History Review, n. 91, Winter 2005, p. 62-90.

Page 42: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

31

cenário da tese. Esse território estava habitado por uma multiplicidade de sujeitos

cujos laços sociais, trajetórias de vida e construção de identidades coletivas tomam

como ponto de referência aquilo que autores vinculados aos estudos migratórios

denominam “espaço social transnacional”.48

A partir desta perspectiva partilho com vertentes da literatura sociológica sobre

a mundialização um olhar crítico para as limitações do “nacionalismo

metodológico”.49 Porém, isso não implica liquidar a dimensão nacional até fazê-la

desaparecer na linguagem abstrata da fenomenologia global. Estudar relações sociais

que atravessam fronteiras, redes de vínculos de longa distância e de cabotagem, fluxo

de pessoas, objetos e informação através dos mares, diversos processos nos quais o

local e o mundial se articulam de forma complexa: nada disso implica, como

corolário forçado, uma afirmação do caráter obsoleto dos Estados e das nações. De

fato, veremos que as fronteiras nacionais e as autoridades que as custodiam podem

constituir também sérios obstáculos para a mobilidade territorial de certos sujeitos.

As expulsões de estrangeiros no Brasil e na Argentina, no início do século XX,

mostram que as nações e os nacionalismos, ainda que invenções frágeis e

“comunidades imaginadas”, podiam ser traduzidas em mecanismos coercitivos

concretos para a regulação das relações sociais.

No campo da história da ciência, dos intelectuais e das elites técnicas, os

estudos transnacionais têm apontado algumas discussões também relevantes para

desta tese. Interessam-me especialmente as críticas ao “modelo difusionista”, isto é, a

chave de leitura que interpreta o movimento mundial de ideias como um processo de

transmissão do centro à periferia. Esta matriz de pensamento gira em torno da noção

de “influência”: as ideias viajam de um lugar a outro, mas se trata de uma viagem de

mão única partindo de um centro produtor de conhecimentos até uma periferia

48 FAIST, Thomas. The volume and dynamics of international migration and transnational social spaces. Oxford: Claredon/ Oxford University Press, 2000. PRIES, Ludger. “The disruption of social and geographic space: US-Mexican migration and the emergence of transnational social spaces”, International Sociology, vol. 16, n. 1, 2001, p. 55-74. 49 BECK, Urich. “La sociedad civil trasnacional: cómo se forma una visión cosmopolita”. In: ¿Qué es la globalización? Barcelona: Paidós, 1998, p. 99-126. WIMMER, Andreas, GLICK SCHILLER, Nina. “Methodological nationalism and beyond: nation-state building, migration and the social sciences”, Global Networks, vol. 2, n. 4, 2002, p. 301-304.

Page 43: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

32

receptora.50 Estudos sobre a organização de conferências internacionais, missões

científicas, viagens e migrações de intelectuais em diversos espaços do saber,

mostraram a emergência de redes transnacionais, tráficos de ideias com múltiplos

destinos e processos de hibridação de conhecimentos.51 A dimensão transnacional

das reformas institucionais e o deslocamento de técnicos especialistas entre os países

foram objeto de várias investigações sobre planificação urbana, políticas sociais,

econômicas e sanitárias.52

A circulação de ideias criminológicas, projetos de reforma penal, policial e

penitenciária recebeu também uma maior atenção dos historiadores nos últimos anos.

Os congressos internacionais penitenciários e de antropologia criminal, celebrados

desde o último quarto do século XIX, criaram um marco inédito de intercâmbios

entre especialistas em escala mundial.53 Essa época foi marcada por uma crescente

50 Uma crítica pioneira a esse modelo da difusão foi feita pelo sociólogo norte-americano Edward Shils num trabalho publicado em 1961, onde argumenta que a mundialização do campo intelectual não deve ser pensada como a conformação de uma “comunidade intelectual transnacional”. Essa comunidade tem múltiplos centros de atração (Shils os denomina “metrópoles”), ao redor dos quais giram diferentes círculos de “provincialismo intelectual”. SHILS, Edward. “La metrópoli y la provincia en la comunidad intelectual”. In: Los intelectuales en los países en desarrollo. Buenos Aires: Ediciones Tres Tiempos, 1981, p. 42-63. Na América Latina, os críticos literários e historiadores da cultura discutiram esta questão na segunda metade do século XX, por exemplo: RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. Cidade do México: Siglo XXI, 1982. RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1989. 51 CHARLE, Christophe; SCHRIEWER, Jürgen; WAGNER, Peter (eds.). Transnational Intellectual Networks. Forms of Academic Knowledge and the Search of Cultural Identities. Frankfurt/ Nova Iorque: Campus Verlag, 2004. ZIMMERMANN, Eduardo. “Global Intellectual Elites”. In: IRIYE, Akira; SAUNIER, Pierre-Ives (eds.). The Palgrave Dictionary of Transnational History. Londres: Palgrave/ Macmillan, 2009, p. 547-551. 52 RODGERS, Daniel T. Atlantic Crossings. Social Politics in a Progressive Age. Cambridge: Harvard University Press, 1998. DEZALAY, Yves; GARTH, Bryan G. The Internationalization of Palace War. Lawyers, Economists, and the Contest to Transform Latin American States. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. Veja também os trabalhos incluídos no dossiê “Transmissão e herança científica: Europa y América Latina”, na revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 15, n. 2, Rio de Janeiro, abr.-jun. 2008, p. 433-557. Também é importante a discussão sobre os casos de reformas urbanas de “inspiração haussmaniana”, ver: NEEDELL, Jeffrey. “Rio de Janeiro and Buenos Aires: Public Space and Public Consciousness in Fin-de-Siècle Latin America”, Comparative Studies in Society and History, vol. 37, n. 3, 1995, p. 519-540. GORELIK, Adrián. La grilla y el parque: espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 1998, p. 115-124. 53 KALUSZYNSKI, Martine. “The International Congresses of Criminal Anthropology. Shaping the French and International Criminological Movement, 1886-1914”. In: BECKER, Peter; WETZELL, Richard F. (eds.). Criminals and their Scientist. The History of Criminology in International Perspective. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2004, p. 301-316. Diversos trabalhos deram conta do impacto desses congressos na América Latina, em especial: OLMO, Rosa del. América

Page 44: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

33

inquietação com a existência de novas formas de criminalidade internacional,

vinculadas ao que Peter Hungill denominou “época neotécnica”, em referência a

proliferação das tecnologias de transporte e comunicação baseadas na eletricidade.54

Nas polícias da Europa e das Américas se propagou um discurso sobre a suposta cara

sinistra da modernização técnica, refletida nos múltiplos usos “criminais” das

inovações tecnológicas, desde o mercado de tráfico de mulheres até os atentados

anarquistas e os bandos de ladrões viajantes.55

Essa preocupação encontra-se nos fundamentos das primeiras iniciativas de

cooperação policial transnacional. Desde a Conferência Internacional para a “defesa

social” contra o anarquismo (Roma, 1898) até a consolidação definitiva da

Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) ao se finalizar a Segunda

Guerra Mundial, estende-se um complexo processo de aproximação entre as polícias

do mundo, sobre o qual ainda sabemos bem pouco.56 Algumas investigações

dedicaram-se ao lugar ocupado pelo movimento internacional de ideias, técnicas e

especialistas para a modernização das polícias sul-americanas no século XX, dando

ênfase à transmissão de saberes e treinamento para a repressão política.57 No entanto,

Latina y su criminología. México: Siglo XXI, 1999. Trabalhos mais recentes têm criticado a visão de Rosa del Olmo e de outros criminologistas críticos latino-americanos que leram a relação com a Europa sob a chave da teoria da dependência cultural, ver por exemplo: SOZZO, Máximo. “Traduttore Traditore. Importación cultural, traducción e historia del presente de la criminología en América Latina”. In: SOZZO, Máximo (ed.). Reconstruyendo las Criminologías Críticas. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 353-431. Ver também: MELOSSI, Dario; SOZZO, Máximo; SPARK, Richard. Travels of the Criminal Question. Cultural Embeddedness and Diffusion. Oxford/Portland Oregon: Hart Publishing, 2011. 54 HUGILL, Peter. Global communications since 1844: geopolitics and technology. Baltimore: John Hopkins University Press, 1991. 55 DEFLEM, Mathieu. “Technology and the internationalization of policing: a comparative- historical perspective”, Justice Quarterly, vol. 19, n. 3, sept. 2002, p.453-475. KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. Basingstoke: Palgrave/Macmillan, 2009. 56 Os estudos, além do mais, têm sido muito descontinuados no tempo, ver: BACH JENSEN, Richard. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of Interpol, Journal of Contemporary History, vol. 16, n. 2, apr. 1981, p. 323-347. NADELMANN, Ethan. Cops Across Borders. The Internationalization of US Criminal Law Enforcement. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1993. DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police Cooperation. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004. 57 Ver CANCELLI, Elizabeth. De uma sociedade policiada a um Estado policial: o circuito de informações das polícias nos anos 30, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 36, n. 1, 1993, p. 67-86. HUGGINS, Martha. Polícia e política. Relações Estados Unidos/América Latina. São Paulo: Cortez, 1998. MARTINS, Marcelo T. Quintanilha. “Policiais habilitados não se improvisam: a

Page 45: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

34

falta examinar outras direções desse mesmo processo, começando por revisar o

próprio peso da América do Sul na rede mundial da cooperação policial. Pensar as

polícias do Rio de Janeiro e Buenos Aires como simples receptoras periféricas de

ideias produzidas nas regiões centrais (seja nos países da Europa ocidental até

meados do século XIX, ou nos Estados Unidos na segunda metade do século XX)

impede análise do nascimento de um espaço transnacional irredutível a olhares de

mão única.

Depois de uma série de encontros entre policiais sul-americanos na primeira

década de 1900, o jurista argentino Luis Reyna Almandos, discípulo devoto de Juan

Vucetich, apresentava no Congresso Científico Americano de Buenos Aires um

projeto curioso. Convocava os distintos países a formarem uma polícia mundial

mediante a firmação de um tratado de defesa social, inspirado no funcionamento da

União Postal Universal. O núcleo da proposta era formar uma rede de trocas

internacionais de antecedentes, baseando-se nas informações das novas fichas

datiloscópicas. Para Reyna Almandos, a origem dessa ideia era latino-americana,

embora aceitasse que outros lhe reclamassem uma paternidade europeia. Ao fim e ao

cabo – dizia – não importava tanto “a procedência das ideias quando as consideramos

úteis”.58 Nesse tom vacilante, entre a piscadela fraternal da colaboração e a querela

vaidosa do protagonismo mundial, vão se acomodando os discursos da cooperação

policial sul-americana.

modernização da polícia paulista na Primeira República (1889-1930)”, Revista de História, São Paulo, n. 164, jan.-jun. 2011, p. 243-269. 58 REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. La Plata: Talleres Gráficos Christmann & Crespo, 1910, p. 6.

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PARTE I

CARTOGRAFIAS DO CRIME SUL AMERICANO

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Rotas indesejáveis

Nós os americanos, se desejarmos cumprir a missão histórica que temos reservada, precisamos fechar as portas aos malfeitores proscritos em outras regiões. (...) Todo trabalho feito no sentido de libertar à jovem América do flagelo do crime, constitui uma obra meritória.

Rosendo Fraga, chefe da Polícia de Buenos Aires (1905).1

Na primavera de 1894, Buenos Aires permaneceu agitada algumas semanas por

um crime misterioso. A polícia havia encontrado um cadáver esquartejado, ninguém

sabia quem era o morto e, claro, menos ainda quem era o assassino. A descoberta

macabra ocorreu em diferentes dias, à medida que as partes do corpo iam aparecendo

espalhadas pela cidade. Em um primeiro momento foi a vez do tronco desprovido de

membros e de cabeça. O médico da polícia, Agustín Drago, analisou o fragmento,

observando que o assassino havia cuidadosamente colocado sal grosso e serragem

nas articulações para estancar o sangramento. Pela ausência de marcas no corpo,

sugeriu a hipótese de estrangulamento, mas pouco poderia ter certeza sem o resto da

vítima. Apesar dos avanços no campo da medicina legal e dos primeiros passos da

polícia científica, que Drago rapidamente percebeu quando criou o Gabinete de

Identificação Antropométrica, somente um torso, nesse momento, era uma

pista muito fraca. Por isso, as especulações se focaram, como de costume, nos

preconceitos policiais contra o lugar da descoberta, as tavernas e bordéis da área, os

suspeitos de costume.

1 “Después de la conferencia interpolicial”, Revista de Policía, Año IX, n. 204, Buenos Aires, 16 nov. 1905, p. 95.

Page 48: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

37

No dia seguinte à descoberta do tronco, apareceu um pacote com os braços e as

pernas enrolados em papel de jornal; enquanto a cabeça foi encontrada algumas

semanas depois por duas crianças que brincavam perto do Rio da Prata. O enigma

correu pela imprensa de imediato, não faltaram comparações com Jack, the ripper, e,

a cada dia que passava, aumentava a pressão sobre as autoridades para revelar o

mistério. A polícia aproveitou o clamor popular e organizou uma exposição pública

no Departamento Central: durante vários dias, os portenhos puderam desfilar diante

de fotografias da cabeça, um retrato a óleo em que se reconstruía o rosto da vítima,

um busto de gesso esculpido por um escultor famoso e vários objetos encontrados

junto aos pacotes que continham as partes do cadáver.

Foi assim que se começou a descobrir o crime. Um grupo de franceses

assegurou que se tratava de François Farbos, um carteiro recém-chegado de Burdéus.

Em pouco tempo, o grupo desvendou a identidade do assassino, outro francês

chamado Raoul Tremblié. Não eram exatamente imigrantes que vinham para

ingressar no mercado de trabalho e “fazer a América”. Farbos e Tremblié se

conheceram ainda na França, cruzavam com frequência o atlântico e costumavam

alugar quartos para passar dias em Buenos Aires usando nomes falsos. Eram sócios

em um negócio bastante rentável: se dedicavam ao contrabando de moedas de cobre.

Essa era uma das tantas artimanhas nascidas da desvalorização do papel moeda na

Argentina, logo após a crise financeira de 1890, que havia provocado um incessante

aumento na cotação do ouro.

Segundo explicava um policial em um livro que dedicou ao caso, um dos

franceses enviava ao outro dinheiro que permitia-lhe adquirir certa quantidade de

moedas argentinas de um e dois centavos. O carregamento de moedas viajava por

mar até a França dentro de baús construídos com fundo e paredes falsas, para burlar

os controles aduaneiros. Na Europa, as moedas podiam ser vendidas fundidas como

cobre, e se obtinha por ele um capital consideravelmente maior ao gasto na

Argentina, contemplando, ademais, os custos da viagem de navio.2

2 UN ANTIGUO COMISARIO DE POLICÍA. El descuartizador. Historia íntima de un asesino. Buenos Aires: s/m, 1894, p. 78-79.

Page 49: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

38

Aparentemente, uma briga entre Farbos e Tremblié, talvez a ambição do

segundo para ficar com todo o ganho ou evitar pagar uma dívida a seu companheiro,

terminou nesse esquartejamento. A polícia recolheu provas bastante contundentes

contra Tremblié e soube que ele havia embarcado com destino a Dunkerque pouco

depois do crime. Embora as viagens em navios a vapor houvessem diminuído

consideravelmente o tempo da travessia transatlântica, outro avanço tecnológico do

oitocentos foi fatal para o destino de Tremblié. Um telegrama para a polícia francesa

foi o suficiente para que o esperassem no porto de Dunkerque, o detivessem e

confiscassem seus baús, nos quais encontraram a carga de moedas argentinas. O

governo francês recusou um pedido de extradição da justiça argentina e submeteu o

assassino a julgamento em sua terra natal. Condenado à morte, sua sentença terminou

sendo comutada e passou o resto de seus dias na prisão de Saint-Omer.3

Três décadas mais tarde, a polícia da capital brasileira solicitava a seu governo

a expulsão dos italianos Francisco Barbieri e Vicente Perniconi, acusados de integrar

um grupo dedicado a diversos tipos de roubos. No começo do século XX, tanto

Brasil como Argentina sancionaram uma série de leis de expulsão de estrangeiros

que previram procedimentos sumários, sem intervenção do Poder Judiciário (salvo

em casos de pedido de habeas corpus), fundamentados em frágeis depoimentos,

poucas testemunhas e alguma informação elaborada pela polícia. No caso de Barbieri

e Perniconi, esta informação era – em relação à média – bastante abundante. A folha

de antecedentes, várias fichas datiloscópicas e retratos fotográficos produzidos pelo

Gabinete de Identificação, estavam acompanhados por um anexo da Seção de

Investigações. Nele se explicava como havia sido detido no Rio de Janeiro, dentro de

uma casa, um arsenal de utensílios para a arte de roubar:

Uma pistola Colt calibre 38, número 50.585; uma pistola Colt calibre 45, número 149.037; uma pistola Parabellum calibre 45, número 5.649, modelo de 1916, sendo de cano longo; cinco pentes pertencentes à mesma arma; sete pentes da pistola Colt calibre 38; uma máquina portátil própria para furar ferro; um arco de pua de carpinteiro, para furar madeira; uma chave inglesa; uma grifa de ferro para segurar encanamento; (...) um alicate; um lima murça;

3 Sobre o affaire Tremblié, ver: GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p. 129-142.

Page 50: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

39

14 brocas de diversas dimensões para furar ferro; um parafuso de ferro e para torno; oito parafusos de ferro; uma chapa de ferro para experiência; dois pares de luvas; uma lata pequena contendo ela: duas blusas zuarte, uma gorra de casimira, um mapa das cidades de Rio e Niterói, um mapa da Viação Férrea de Brasil; um mapa de Brasil, da República Oriental de Uruguai, de Paraguai.4

Por que junto a todos estes objetos, além dos mapas do Rio de Janeiro e

arredores, guardavam um da rede ferroviária brasileira e outros de países sul-

americanos? Os testemunhos recolhidos nos expedientes nos dão alguns indícios para

responder a esta pergunta. Quando os detiveram, Francisco tinha 33 anos, havia

nascido em Catanzaro, estava casado e declarava ser sapateiro. Vicente era dois anos

mais novo, solteiro, nascido em Regalbuto e dizia ser pedreiro. Ambos sabiam ler e

escrever. Quando perguntaram a eles quando e como chegaram ao Brasil,

coincidiram na data (havia uns três meses que estavam no país), mas divergiam no

meio de transporte: segundo Vicente, chegaram por via marítima, em um navio

procedente de Buenos Aires; enquanto que para Francisco tinham ingressado por

trem, também desde a Argentina, atravessando a fronteira na altura do Rio Grande do

Sul.5

A pista que seguiam os investigadores da polícia carioca era que Vicente e

Francisco formavam, junto a um argentino chamado Emilio Uriondo, uma quadrilha

de “gatunos internacionais” que roubava em vários países. Esses gatunos eram –

iguais a muitos dos anarquistas expulsos por essas mesmas leis – sujeitos nômades,

que circulavam com frequência tanto entre Europa e o continente americano como

entre os próprios países sul-americanos. Mas, diferentemente de seus colegas

libertários, não os interessava lutar contra o status quo, mas aproveitar as múltiplas

rotas criminais que esse status quo tornava possível.

A polícia os prendeu, os retratou e tirou suas impressões digitais, práticas que

os vigilantes repetiam com o resto dos ladrões e trapaceiros. No entanto, não era

possível amalgamar tão facilmente Francisco e Vicente com todos os personagens do

4 AN, IJJ7 133. Expulsão de Francisco Barbieri (1928). Cópia do Auto de apresentação e apreensão. 5 AN, IJJ7 133. Expulsão de Francisco Barbieri (1928). Auto de Qualificação. AN, IJJ7 142. Expulsão de Vicente Perniconi (1928). Auto de Qualificação.

Page 51: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

40

mundo do delito urbano. O estereótipo de ladrão pobre, analfabeto e desordeiro, cuja

existência nos confirma grande parte da historiografia do crime na América Latina,

pouco nos serve para pensar quem eram estes dois italianos, a quem vemos nos

retratos de frente e perfil arrumadamente penteados, ambos vestidos com terno, um

com gravata, o outro com laço.

Dificilmente um gatuno do submundo sul-americano usaria estas vestimentas,

teria a barba e a costeleta rigorosamente aparadas, e acumularia tantas milhas de

viagem marítima como Francisco e Vicente. E menos ainda viajaria com o arsenal

que a polícia encontrou na casa que ocupavam no Rio de Janeiro, enumerado no

inventário e registrado pela fotografia, incluída nos expedientes.

“Fotografia ao interior de um dos quartos”

Fonte: AN, Fundo IJJ7, Caixa 133, Processo de Expulsão de Francisco Barbieri (1928).

Na imagem, podem ser vistos outros instrumentos não inclusos no inventário,

como um par de bigodes falsos, usados para mudar o aspecto físico nos roubos ou

nas viagens. Em outra fotografia anexada, podem ser vistas duas camas do quarto

Page 52: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

41

que dividiam, cada uma com uma maleta de viagem ao lado. Como os baús de

Tremblié, equipados com fundo falso, as malas de Francisco e Vicente eram uma

ferramenta a mais em seu instrumental de ladrões profissionais. Dessa vez, tiveram

que usá-las para abandonar o Brasil forçados pela polícia. Segundo o procedimento

de expulsões, o Ministro de Justiça os declarou “elementos nocivos à sociedade e

prejudiciais para os interesses da República” e decretou que abandonassem o

território nacional. Em 8 de janeiro de 1929, Francisco foi embarcado rumo a

Gênova no vapor Conte Verde e, separadamente, Vicente regressou a Itália no vapor

Arlanza.

Embora separados entre si por muitos anos, os casos de Tremblié e dos

italianos expulsos sugerem secretas ligações. Uma densa rede de circulações

transatlânticas e regionais, alimentadas por um contexto geral de migrações maciças

que sacudiam cidades e sociedades. Tecnologias que mudavam a duração das

viagens e os tempos da comunicação. Sujeitos que transformavam essas tecnologias

em novos modos de roubar onde a mobilidade territorial passava a ser fundamental.

Pedidos de extradição, pedidos de expulsão: múltiplas respostas,

frequentemente insuficientes, para conter essas práticas delitivas que inquietavam

cada vez mais aos leitores de jornais. Estes leitores consumiam uma renovada

imprensa policial que usava o telégrafo para difundir crimes de outros países, em

uma circulação que se movia não somente desde o Norte ao Sul (sem ir tão longe, o

affaire Tremblié foi seguido pela imprensa parisiense e Albert Bataille o incluiu na

sua prestigiosa recopilação de Causes Criminelles et Mondaines). Por último, a

incipiente polícia científica, desde as técnicas mais artesanais empregadas para saber

quem era Farbos até as fichas datiloscópicas estandardizadas que se usavam nas

expulsões, foi o resultado de uma densa trama de intercâmbios internacionais. Desde

Paris até Buenos Aires e do Rio da Prata até os principais portos brasileiros,

escutava-se o mesmo clamor: aí onde havia ladrões viajantes, as polícias

necessitavam vigilantes cada vez mais modernos.

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42

O espaço atlântico sul-americano

Os criminosos e os policiais que, com especial atenção, este trabalho seguirá

circulavam em um espaço transnacional: a rota ultramarina que unia aos dois grandes

portos do Rio da Prata (Buenos Aires e Montevidéu) com as cidades portuárias

brasileiras e, atravessando o oceano atlântico, com Lisboa, Porto, Vigo, Barcelona,

Génova, Nápoles e outros destinos europeus. Durante o século XIX, o Brasil imperial

e as “Repúblicas do Prata” estreitaram vínculos, firmaram tratados de paz, comércio

e navegação, intensificando, dessa forma, a circulação de pessoas e mercadorias. O

grande fluxo de migrantes europeus e a modernização dos transportes incentivaram o

crescimento dessas rotas.

As distâncias são algo mais que uma realidade física, segundo insistiu Braudel,

o grande historiador do Mediterrâneo: têm uma dimensão temporal que depende

diretamente da capacidade tecnológica para viajar no espaço.6 Na historiografia

extensa sobre as migrações internacionais muito se discutiu sobre os fatores que

impulsionaram o deslocamento de europeus e asiáticos para a América. Embora haja

divergências sobre o peso concreto das inovações no transporte marítimo na decisão

de emigrar, ninguém duvida das transformações que o navio a vapor provocou nas

viagens.

Os avanços na indústria naval levaram a uma substituição paulatina dos

veleiros pelos vapores que, somado ao melhoramento dos motores, reduziram muito

o tempo da travessia. Nas décadas de 1850 e 1860, ao embarcar em um veleiro, o

emigrante da Península Ibérica encarava uma viagem de aproximadamente cinquenta

dias; duração sujeita às inclemências do tempo e da sorte das correntes marítimas.

No entanto, desde inícios dos anos 1870, um vapor que partia de Lisboa com destino

ao Rio de Janeiro, sem escalas, demorava quinze dias e desde o noroeste espanhol até

o Rio da Prata, uns vinte dias. Estas cifras se reduziram um pouco nas primeiras

6 BRAUDEL, Fernand. La méditerranée et le monde méditerranéen a l’époque de Philippe II. Paris: Librairie Armand Colin, 1979, p. 10-15.

Page 54: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

43

décadas do século XX, mas ainda estavam longe do grande salto que provocou a

introdução do navio a vapor.7

A incorporação de novos materiais na construção dos cascos aumentou a

capacidade de carga e também os preços da passagem, embora os historiadores

tenham mostrado a existência de flutuações nas tarifas e tenderam a enfatizar mais –

como variável explicativa para a decisão de migrar – o peso da diminuição dos

custos da viagem pela redução dos dias de trabalho perdidos a bordo. A isso se

somava a crescente comodidade que os navios ofereciam aos viajantes. Não apenas

pela previsibilidade na duração do trajeto, mas pelo conforto a bordo, que até para os

passageiros de terceira classe chegava a ser consideravelmente melhor que nos

veleiros.

As bases materiais do transporte ultramarino, o comércio e os circuitos de

emigração delineavam, assim, este espaço atlântico sul-americano, que deve ser

entendido como uma região historicamente constituída e não como um território

dado pelas características naturais, as divisões políticas ou administrativas dos

estados. Constitui uma “região” no sentido que este termo adquire para a

historiografia regional, embora frequentemente seus estudos tendam a se identificar

com a história agrária e incluam poucas análises transnacionais.8

Aqui se trata de capitais, grandes cidades e portos, em um fragmento da rota

marítima que se estende desde Buenos Aires até o Rio de Janeiro. Espaço

dinamizado por práticas sociais, agitado por um intenso movimento de homens e

mulheres que convertiam as cidades em territórios de interação entre anônimos.

Tanto no Brasil como na Argentina, os policiais advertiam sobre novas experiências

delitivas que muito tinham a ver com estas vicissitudes.

7 COSTA LEITE, Joaquin da. “O transporte de emigrantes: da vela ao vapor na rota do Brasil, 1851-1914”, Análise Social, Lisboa, v. XXVI, n. 112-113, 1991, p. 741-752.

MOYA, José C. Cousins and Strangers. Spanish Immigrants in Buenos Aires, 1850-1930. Berkeley: University of California Press, 1998, p. 35-43. 8 Ver LINHARES, Maria Y.; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco C. “Região e História Agrária”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 17-26. BLACHA, Noemí M Girbal de. “La historia regional hoy: balances y perspectivas con enfoque agrario”. In: GELMAN, Jorge (Coord.). La historia económica argentina en la encrucijada. Buenos Aires: Prometeo, 2006, p. 411-423.

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44

Mapa do espaço atlântico sul-americano

Fonte: “South America”, Americanized Encyclopedia Britanica, Vol. 1, Chicago, 1892.

O recorte geográfico reforça, então, a hipótese de uma rota de circulações

delitivas e policiais, construída a partir das fontes documentais. Indagar os vínculos

entre Buenos Aires e Rio de Janeiro implica, ao menos, três coisas. Em primeiro

lugar, a delimitação de um espaço que constitui, ao mesmo tempo, algo mais e algo

menos que um território cercado por fronteiras nacionais: algo mais, porque

ultrapassa as linhas jurídicas que separam os países; algo menos, porque deixa de

fora grande parte do imenso território da Argentina e do Brasil (neste caso, não

Page 56: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

45

apenas no interior como também os importantes portos de Salvador e Recife).9 Em

segundo lugar, entre Buenos Aires e Rio de Janeiro alude a um ponto de vista:

analisaremos os fluxos da rota traçada desde estas capitais sul-americanas, através

dos escritos de seus políticos, jornalistas, literatos, mas também dos policiais e das

vozes de diversos sujeitos que ficaram registrados na documentação policial. Por

último, apesar destes recortes, abundam no relato as menções a outras cidades

abrangidas nessa rota: Montevidéu, Porto Alegre, São Paulo e seu porto de Santos

serão frequentes coprotagonistas, devido à espessa trama de relações que unia estas

cidades com Buenos Aires e o Rio de Janeiro.

Se delimitar o espaço implica uma operação de recorte, inevitavelmente surge

uma série de exclusões geográficas nada irrelevantes. Recordemos que os ladrões

italianos expulsos em 1929 guardavam em um quarto mapas da rede ferroviária

brasileira, do Paraguai e do Uruguai. Este simples dado é um indício, entre tantos

outros, da existência de outras duas rotas frequentadas por criminosos viajantes,

trajetos que ainda constituíam um desafio para os mecanismos de vigilância policial.

A primeira dessas rotas está desenhada pelo que alguns autores chamam de “espaço

fluvial platino”: os dois grandes rios que formam a Bacia do Prata, o Paraná e o

Uruguai confluem no grande estuário chamado Rio da Prata, por cujas águas esses

rios têm saída para o Atlântico. Navegável em quase todo seu trajeto e ramificações,

suas águas conectam cidades portuárias do litoral argentino (Rosário, Paraná. Goya,

entre outras) e uruguaio (Salto), com os estados brasileiros do Rio Grande do Sul

(Itaquí e São Borja) e Mato Grosso (Corumbá), e com cidades da Bolívia e Paraguai,

começando pela capital do país, Assunção.10

9 A tese de Cleide de Lima Chaves, ainda que centrada nas relações comerciais e no controle de epidemias de doenças infectocontagiosas, em um período anterior, oferece um panorama sobre o espaço atlântico sul-americano através de uma rota mais ampla, que se estende desde o Rio da Prata até a Bahia. CHAVES, Cleide de Lima. De um porto a outro: a Bahia e o Prata (1850-1889). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. 10 MEDRANO, Lilia Inés Zanotti de. “Un ciclo comercial en la Cuenca del Plata (1850-1920)”, Revista Complutense de Historia de América, Madrid, n. 18, 1992, p. 219-239. Ver também o trabalho de Keila Grinberg sobre as fugas e a passagem de escravos as áreas de fronteira entre o Brasil e o Uruguai no século XIX: GRINBERG, Keila. “Escravidão e liberdade na fronteira entre o Império do Brasil e a República do Uruguai: notas de pesquisa”, Cadernos do CHDD, vol. 5, número especial, Brasília, 2007, p. 89-112.

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46

Durante a segunda metade do século XIX, este espaço de intensa

movimentação cresceu como articulador da economia regional devido à exportação

de produtos primários para a Europa e também pelas próprias relações comerciais

entre os países da região. Junto com o comércio legal, contrabandistas, ladrões de

gado e bandidos escolheram essas cidades de fronteiras elásticas para desenvolverem

suas atividades, muitas vezes protegidos por fazendeiros e coronéis. Os ladrões

viajantes utilizavam estas rotas fluviais para escapar da perseguição policial e

também para buscar novos rumos em cidades onde o dinheiro circulava com força.11

Tanto o “espaço fluvial platino” como o “espaço atlântico sul-americano”

constituem regiões históricas delineadas pelo comércio, pela circulação de pessoas e

por uma infinidade de práticas que levavam os sujeitos a atravessarem as fronteiras.

Evitaremos o recurso a outros conceitos mais utilizados entre os historiadores das

relações internacionais, em particular a noção de “Cone Sul”. Esta enteléquia

geopolítica tem fronteiras muito confusas, que incluem os territórios da Argentina,

do Chile e do Uruguai, embora alguns autores adicionem Bolívia e Paraguai, e às

vezes também o sul do Brasil. A debilidade do conceito de Cone Sul para a história

transnacional não se limita à indefinição de seus limites, mas é aprofundada pelo

caráter a-histórico deste espaço marcado por profundas assimetrias e durante muito

tempo atravessado por territórios fracamente conectados entre si.12

A isso se soma o problema das categorias identitárias, já que até o segundo

pós-guerra não existia a ideia do Cone Sul. Em troca, a expressão “sul-americano”

havia adquirido uma força especial nos países meridionais, em oposição ao

“panamericanismo” promovido pela política exterior dos Estados Unidos com a

intenção de tirar a Grã Bretanha de sua posição privilegiada no continente. Quando

policiais de países, como Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai, Peru e Bolívia

11 A centralidade econômica do “espaço fluvial platino” foi analisada por duas teses de doutorado focalizadas em problemas e períodos diferentes: MEDRANO, Lilia Inés Zanotti de. A livre navegação dos rios Paraná e Uruguai. Uma análise do comércio entre o Império Brasileiro e a Argentina (1852-1889). Tese de Doutorado em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. E por: OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Nas águas do Prata: os trabalhadores da rota fluvial entre Buenos Aires e Corumbá (1910-1930). Campinas: Editora da Unicamp, 2009. 12 Um bom panorama da historiografia do Cone Sul pode ser consultado nos diversos trabalhos que integram o volume coletivo: RAPAPORT, Mario; CERVO, Amadeo Luiz (Comps.). El Cono Sur. Una historia común. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.

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47

se reuniram em 1920 para discutir um convênio para o intercâmbio de informações,

chamaram a reunião “Conferência Sul-Americana de Polícia”. Esta iniciativa de

aproximação entre as polícias foi concebida nos Congressos Científicos Latino-

Americanos, realizados em Montevidéu (1901) e Rio de Janeiro (1905). Neste

último, o argentino Juan Vucetich havia proposto criar uma “polícia internacional

sul-americana”, baseada em um convênio entre as dez repúblicas existentes, não

obstante Equador, Colômbia e Venezuela nunca participaram nas conferências.13

Nesse mesmo ano, foi publicado um livro inovador intitulado La Policía en

Sudamérica. O autor era Alberto Cortina, embora fosse patrocinado pela chefia da

Polícia da Província de Buenos Aires e pelo próprio Vucetich, que então dirigia o

Gabinete de Identificação Dactiloscópica, na cidade de La Plata, capital daquela

província. Além de incluir uma explícita diatribe contra a Doutrina Monroe e os

interesses norte-americanos sobre a América Latina, Cortina expunha os motivos do

caráter “sul-americano” destas reuniões:

Cada instituição policial sul-americana tem que ser como uma porção de uma corrente de segurança pública, de alguma forma encadeada às demais; a corrente poderá ter anéis bem diferentes, segundo a organização e os meios, mas o fato de que se consiga encurralar com ela a delinquência sul-americana, será um sucesso honroso e útil para todos.14

Polícia sul-americana, criminalidade sul-americana. Apesar da aparente

abstração, essas categorias giram, ao longo do livro, em torno da existência de um

problema concreto: “hoje os maiores criminosos cuja vida é impossível em um país,

mudam com surpreendente facilidade graças aos cada vez mais fáceis e rápidos

meios de transporte” – escreve Cortina.15 Esta hipótese sociológica anunciava a

presença dos ladrões viajantes que, a par dos anarquistas transumantes, tinham um

13 VUCETICH, Juan. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera de promoverlo”. In: AAVV. Terceiro Congresso Científico Latino-Americano: a polícia argentina e a polícia brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 53-79. 14 CORTINA, Alberto. La Policía en Sudamérica. La Plata: Talleres Gráficos La Popular, 1905. p. 21. 15 Idem, p. 21.

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48

alto grau de mobilidade entre os países sul-americanos aos que o livro prestava maior

atenção (Argentina, Uruguai, Brasil e Chile).

A presença do Chile indicava que a inquietação policial não se esgotava no

espaço atlântico. De fato, outra das rotas sugeridas pelos mapas que tinham guardado

os ladrões italianos era a rede ferroviária. O trem conectava os grandes portos

ultramarinos com cidades do interior, mas também com cidades de países vizinhos,

como Santiago do Chile, em especial depois da inauguração do Ferrocarril

Transandino, em 1910. Essa via de transporte, por exemplo, foi usada por uma

mulher chilena que a Polícia de São Paulo acusou em 1930 de “gatuna internacional”

para iniciar o processo de expulsão. Adquiriu esse qualificativo não apenas por ser

estrangeira no Brasil, mas pelas informações que a polícia paulista recolheu através

da permuta de fichas de identificação com seus pares de Buenos Aires e Santiago do

Chile. Se confiarmos no pressuposto que guiava esta rede de inteligência policial

(quer dizer, que se tratava em cada caso da mesma pessoa), ela havia nascido em

Valparaíso, esteve detida quatro vezes em Santiago, acusada de diversos roubos, e

ainda havia passeado com sua profissão por Buenos Aires, Rio de Janeiro e São

Paulo. Tinha então 27 anos e nos arquivos policiais estava anotada com cinco nomes

diferentes.16

A questão é que os criminosos viajantes se moviam por navios e trens, com

frequência combinavam diversos meios de transporte. A rede ferroviária unia os

grandes portos a cidades do interior, que como sugerem as crônicas da época serviam

muitas vezes de refúgio para ladrões perseguidos pela polícia. Há que se ter em conta

a dimensão quantitativa da extensão desta rede. Se na década de 1850 o Brasil tinha

cerca de 16 quilômetros de vias férreas, nos primeiros anos da república, essa cifra

aumentara a 10.000 quilômetros e, até a década de 1930, superaria os 30.000. A

malha ferroviária argentina era ainda mais significativa. Enquanto em 1870,

começava a se estender ao Sul e ao Oeste de Buenos Aires com mais de 700

quilômetros de vias, até o final do século, incentivada pelos investimentos britânicos,

16 AN, IJJ7 131. Expulsão de Aminta Victoria Palma (1930).

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49

estava em torno dos 17.000 e, no início da década de 1930, chegava a quase 40.000

quilômetros.17

Considerando que o território do Brasil é o triplo da República Argentina,

podemos dimensionar melhor os alcances da densa rede ferroviária que tinha Buenos

Aires como eixo e que a meados do século XX era uma das mais importantes do

mundo. Na Divisão de Investigações da Polícia da Capital, existia uma “Seção de

Embarcadouro” ocupada da vigilância dos portos e estações de trens. Um informe de

1914 brinda uma radiografia do uso destes meios de transporte ao longo de um ano.

Nesse período, haviam ingressado ao porto 1.510 vapores de ultramar que

transportaram 503.062 passageiros (somando entradas e saídas) e 4.565 navios

procedentes do sistema fluvial em que viajaram 406.028 pessoas. Entretanto, o

Ferrocarril del Sud – somente – somava 10 milhões de passageiros que entravam e

outros 10 milhões que saíam da capital por ano. Pelo Ferrocarril del Pacífico haviam

entrado 2 milhões de passageiros e um milhão havia saído. No total, somando

também o movimento do Ferrocarril del Oeste, Central Argentino, o Central

Córdoba e outras linhas menores, o volume global de viagens em trem era de

aproximadamente 45 milhões anuais.18

Transatlânticos, navios fluviais, trens: entre finais do século XIX e começos do

XX, o espaço atlântico sul-americano aparece como um território assinalado pela

mobilidade. Muitos eram os que percorriam grandes distâncias, viajavam, buscavam

novos rumos, instalavam-se em outro lugar. Embora os luxuosos vapores que

chegavam aos portos e a extensão da rede ferroviária fossem percebidos como

indiscutíveis sinais de progresso, os policiais levantavam a voz para advertir sobre os

efeitos não desejados da modernização que se manifestavam no mundo criminal. Em

1895, o futuro chefe da polícia carioca, João Brasil Silvado, narrava esta

preocupação de uma forma certamente elegante. Assegurava que na Europa havia

visto como os criminosos aproveitavam as “vantagens dos trens de ferro, da

abundância e velocidade destes”, conectando facilmente vários países, neste

17 CARDOSO, Ciro F. S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Historia económica de América Latina. Vol. 2: Economías de exportación y economía capitalista. Barcelona: Crítica, 1999, p. 69-75. 18 POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. La Policía de Investigaciones: su misión, organización y funcionamiento. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1914, p. 34-36.

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50

continente onde “a locomoção é coisa facílima” e um passageiro podia “tomar um

café em Berlim, almoçar em Liège e jantar em París, tudo no mesmo dia”.19

Essa modernidade cinética foi chegando à América do Sul, desafiando,

inclusive, suas colossais distâncias. E com ela foram aparecendo diversas práticas

delitivas que incorporavam os transportes ao modus operandi dos criminosos. Mais à

frente, veremos que a cooperação internacional e a adoção de novas tecnologias,

como o telégrafo, foram vistas pelos policiais como respostas necessárias ante o

avanço técnico da “criminalidade profissional”. Mas parte da sensação de

descontrole das forças policiais emanava das próprias dificuldades para vigiar

cidades que atravessavam transformações demográficas profundas, nas quais a cada

dia se viam circular rostos novos por suas ruas.

A circulação de modelos policiais

O momento da história europeia conhecido após a Primeira Guerra Mundial

como Belle Époque esteve marcado por um profundo “mal estar da segurança

pública”.20 Não era a primeira vez que as ansiedades sociais e políticas se

expressavam pela via do medo do crime, mas dessa vez o fenômeno adquiriu uma

dimensão mundial. O advento da imprensa popular, o uso do telégrafo como

ferramenta para noticiar delitos provenientes de remotas latitudes e a consolidação da

figura do repórter detetive internacionalizaram a circulação de novidades sobre o

mundo criminal. Sherlock Holmes, Monsieur Lecoq e Auguste Dupin passeavam

pelos jornais de distintos países, atravessavam continentes e inspiravam ficções

detetivescas locais. As novidades sobre Jack, the ripper e os últimos atentados

anarquistas na Europa chegavam aos jornais sul-americanos anunciados com os

19 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 112. 20 KALIFA, Dominique. L’encre et le sang. Récits et société à la Belle Époque. Paris: Fayard, 1995, p. 235.

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51

cabos telegráficos de reluzente instantaneidade. Nessas fronteiras elásticas entre a

ficção e a realidade, o temor (e a fascinação) frente ao delito instalou-se como um

dado recorrente nas conversações cotidianas.21

A polícia não ficou imune a essa época de mal estar. Ao contrário, a imprensa

se converteu também num espaço de críticas ao desempenho policial e reclamações

por reformas urgentes, bem como num produtor e canal de denúncias. “O clamor

contra a polícia é quase universal”, escrevia Elysio de Carvalho, personagem singular

do mundo literário carioca, quando ainda era diretor do Gabinete de Identificação e

Estatística: “aqui, como em Londres, em Paris, como em Berlim, em Buenos Aires,

como em Roma, por toda parte, surge uma como espécie de revolta contra a

malsinada instituição”.22 Os nomes destas cidades não estavam escolhidos por acaso.

Carvalho, como muitos policiais brasileiros e argentinos, defendiam a instituição das

diatribes que evocavam distintos exemplos europeus (e no caso do Brasil

republicano, também a polícia de Buenos Aires) para questionar a organização local.

O commissaire de police e o sergent de ville franceses, o policeman de

Scotland Yard, o guardia civil espanhol e os carabinieri italianos, apareciam

frequentemente na imprensa sul-americana despojados de qualquer defeito. Num

gesto admonitório contra os vigilantes concretos do Rio de Janeiro e Buenos Aires, o

jornalista moderno extraía observações de suas viagens a Europa para construir estes

relatos de oposição. Do outro lado do oceano, todo policial era mais esbelto,

elegante, educado no trato ao cidadão e preparado para descobrir o autor de qualquer

crime. Provavelmente, muitos sabiam que os jornais europeus não eram tão

benevolentes com suas próprias polícias. Mas isso não tirava força desse objeto

cultural tão efetivo que era o agente policial de ultramar.

21 Sobre a centralidade do crime na história da cultura popular na Argentina e no Brasil, ver: PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 303-382. PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil, (1870-1920). Tese de Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da imprensa. Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009. 22 CARVALHO, Elysio de. “Repressão e criminalidade nos Estados Unidos”, Boletim Policial, Ano V, n. 16/17, Rio de Janeiro, jul.-set. 1911, p. 476. Sobre a figura de Elysio de Carvalho, ver: SANT´ANA, Moacir Medeiros de. Elysio de Carvalho, um militante do anarquismo. Maceió: Arquivo Público de Alagoas, 1982.

Page 63: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

52

Para os escritores mais afeitos à literatura especializada, o mito do policial

profissional se organizava em torno de dois grandes modelos. O primeiro procede de

uma tradição anglo-saxônica difundida na Inglaterra vitoriana: a “New Police” de

Robert Peel, o criador da Polícia Metropolitana de Londres (1829). A

excepcionalidade do modelo britânico se reunia na figura do Bobby. Este agente

policial condensava o imaginário de uma força eminente civil, livre de determinações

políticas, respeitosa dos direitos e liberdades dos cidadãos. Era sem dúvida um

estereótipo que, aliás, funcionava em conjunto com outro: o do modelo francês (às

vezes chamado “continental”), ao qual os mesmos ingleses atribuíam um caráter

totalitário e verticalista, próprio de um poder exercido de cima para baixo e

controlado por uma autoridade central, parisiense, herança do Lieutenance Générale

de Police (1667).23

Se a polícia francesa tinha má fama por aquilo que um historiador chamou de

“síndrome Fouché” – em alusão à imagem do vigilante como um espião ou agente

secreto ao serviço dos mais obscuros fins estatais – também era portadora de outra

qualidade que a colocava no centro da discussão: a “síndrome Vidocq”, que

distinguia os policiais parisienses como mestres na arte de encontrar os autores de

um crime, embora tivessem que empregar recursos de legalidade duvidosa.24 Na

América do Sul, a imprensa periódica ecoava esses modelos e estereótipos, mas os

usava um tanto do seu jeito.

De fato, não importava muito se os policiais franceses e ingleses representavam

tradições antitéticas. Quando queriam questionar o escasso profissionalismo dos

vigilantes vernáculos, denunciar abusos de autoridade e recrutamentos motivados por

interesses políticos, lá estava o imaculado policeman, sempre disponível para a

comparação, como se fosse um irmão mais velho a quem tudo tivesse saído bem na

23 Historiadores das polícias inglesas e francesas questionaram este mito dos modelos.Ver, por exemplo: EMSLEY, Clive. The English Police: A Political and Social History. London/New York: Longman, 1996. LAWRENCE, Paul. “They have an admirable police at Paris, but they pay for it dear enough: attitudes towards continental policing in nineteenth-century England”. In: Construction et circulation des savoirs policiers en Europe centrale et septentrionale, XVIIIe-XIXe siècles, IV Journées CIRSAP, Lille, 4-6 dez. 2008. DELUERMOZ, Quentin. “Circulations et élaborations d'un mode d'action policier: la police en tenue à Paris, d'une police londonienne au modèle parisien (1850-1914)”, Revue d'Histoire des Sciences Humaines, n. 19, 2008/2, p. 70-90. 24 A ideia das síndromes Fouché e Vidoqc é de BERLIÈRE, Jean-Marc. Le Préfet Lépine: vers la naissance de la police moderne. Paris: Denoel, 1993, p. 118.

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53

vida. De outro modo, quando se tratava de lamentar um novo crime não resolvido, a

inoperância das investigações policiais e a forma desonrosa com que eram burlados

por astutos criminosos, aí estava o argumento afrancesado, à mão, para mostrar quão

longe estava Paris.

Os apologistas da polícia não paravam de se queixar dessas imposturas.

“Creiam-me que Paris está passando por uma má época na sua criminalidade”,

escrevia em 1905 um hierarca da polícia portenha. Não lhe chamava a atenção a

situação que observava na França, enquanto viajava por razões de saúde. Oyuela já

conhecia as deficiências da polícia parisiense e dizia que cada vez que escutava as

“acusações contra nossa instituição, opondo aquela outra como modelo”, mastigava

com bronca o sabor da injustiça.25 Algo parecido afirmava na mesma revista policial

outro argentino em viagem, desta vez a Londres. “Pelo que tenho visto, os londrinos

se rendem a um verdadeiro culto aos seus bobbies”, e sobre isso refletia:

Creio que a nós, o público, tão somente nos faltaria um pouco de boa vontade, disposição e simpatias com os bobbies argentinos (...) para conseguir esse mesmo juízo dos estrangeiros que diariamente nos visitam, porque para dizer a verdade, em todo o resto, relacionado com a organização e desenvolvimento funcional, em nada temos que imitar as repartições similares do continente europeu.26

Os modelos de polícia formavam parte de um espaço de lutas simbólicas. Eram

uma potente ficção que apagava a diversidade de instituições policiais, muitas das

quais, de fato, coexistiam no interior da França e Grã-Bretanha. A historiografia mais

recente sobre as polícias europeias tem mostrado que nem sequer nesses países é

possível distinguir claramente algo parecido com um modelo nacional. Clive Emsley

descreve três tipos de organizações policiais que se repetem em vários Estados

europeus. Em primeiro lugar, as polícias metropolitanas, como as de Londres e Paris,

localizadas nas capitais e dirigidas por autoridades designadas diretamente pelo

25 “Sueltos. Policía de París. Impresiones de un profesional”, Revista de Policía, Año IX, n. 204, Buenos Aires, 16 nov. 1905, p. 100. 26 “La policía de Londres”, Revista de Policía, Año XVI, n. 374, Buenos Aires, 16 dic. 1912, p. 123-124.

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poder central: embora seu território de ação seja sobretudo uma cidade, estão

separadas das instâncias locais do governo e constituem uma força civil a serviço da

nação. Em segundo lugar, aparecem as polícias locais que, em cada país, dependem

da esfera municipal ou provincial e são financiadas com recursos desses distritos.

Finalmente, essas duas forças convivem com diferentes corpos de caráter militar

destinados à segurança interior, entre os quais se destaca a Gendarmerie francesa,

um estilo de policiamento armado estendido no século XIX à Bélgica, Itália, Espanha

e outros países da Europa.27

Na América Latina, os regimes coloniais e republicanos combinaram também

distintas modalidades de organização de suas polícias. Até o início do século XIX, as

autoridades policiais tinham um caráter eminentemente local, eram eleitas pelos

vizinhos e exercidas em forma honorífica. Tal era o caso dos alcaldes de barrio, um

dispositivo madrileno de controle territorial espalhado por diferentes países hispano-

americanos à época das reformas bourbônicas.28 As primeiras polícias metropolitanas

apareceram com as Repúblicas independentes: o Departamento Central de Polícia de

Buenos Aires (1822), ou o Cuerpo de Celadores Públicos (1826) da cidade de

México são exemplos disso.29 No Brasil, a Intendência Geral de Polícia (1808)

remonta à chegada da família real ao Rio de Janeiro, seguindo – assim como na

América hispânica – o modelo parisiense do Lieutenance Générale que se havia

imposto na Península Ibérica em finais do século XVIII. 30 Estas experiências tinham

algo em comum: as novas instituições eram forças de polícia estatais, sob certo

controle do governo central, mas também encarregadas da vigilância dos três

distritos mais populosos do México, Argentina e Brasil.

27 EMSLEY, Clive. “A typology of nineteenth-century Police”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime, History & Society, vol. 3, n. 1, 1999, p. 29-44. 28 MARIN, Brigitte. “L’ alcalde de barrio à Madrid. De la création de la charge à l’amorce d’une professionnalisation (1768-1801)”. In: AAVV. Métiers de police: être policier en Europe, XVIIIe-XXe siècles, Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, p. 165-174. 29 MINA, Jorge Nacif. “Policía y seguridad pública en la ciudad de México, 1770-1848”. In: FRANYUTI, Regina Hernández (comp.). La ciudad de México en la primera mitad del siglo XIX. Tomo II, México: Instituto de Investigaciones Mora, 1994, p. 9-50. GALEANO, Diego. La policía en la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880. Buenos Aires, Tesis de Maestría en Investigación Histórica, Universidad de San Andrés, 2010, p. 30-36. 30 BRETAS, Marcos Luiz. “A Polícia carioca no império”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 12, n. 22, 1998, p. 222-226.

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“Alta” e “baixa” polícia articulavam-se com dificuldades e tensões. A

jurisdição da polícia portenha, por exemplo, foi motivo de debates que seguiram o

percurso das lutas entre Buenos Aires e as províncias. Desde a união definitiva dos

Estados numa confederação que incluía Buenos Aires, no início da década de 1860,

essa polícia aglutinou um triplo estatuto de força de segurança municipal, provincial

e, até certo ponto, nacional. Isso mudou com a federalização da cidade de Buenos

Aires em 1880, quando o velho Departamento Central foi dividido em dois: a Polícia

da Capital Federal, subordinada ao poder executivo nacional por intermédio do

Ministério do Interior, e a Polícia da Província de Buenos Aires. Até a criação da

Gendarmeria Nacional (1938) e, depois, da Polícia Federal Argentina (1944) essa

força de segurança com sede na cidade de Buenos Aires foi a única que respondia às

ordens do governo central. Todas as demais polícias eram provinciais.31

A vigilância das ruas da capital, proteção da segurança das autoridades

nacionais, polícia política, investigação de delitos complexos ao longo do território

do país e relações com as polícias estrangeiras: tudo isso concentrava a Polícia da

Capital da República Argentina. Em outras capitais sul-americanas, como a brasileira

e a uruguaia, a jurisdição da polícia também coincidia com os distritos federais, mas

não havia uma centralização tão grande de funções sob um comando único. Como na

França e na Itália, no Rio de Janeiro se instituiu um esquema de gestão que separava,

de um lado, uma Brigada Policial – herdeira da Guarda Real de Polícia, estruturada

sob critérios militares e encarregada do patrulhamento ostensivo da cidade – e de

outro lado, uma Polícia Civil que reunia as funções de investigação criminal e

auxiliar de justiça.32

31 Há que destacar, no entanto, a especificidade dos “territórios nacionais” no extremo noroeste e sul do país (Chaco, Formosa, Misiones, La Pampa e toda a região da Patagônia), cujos governadores eram designados diretamente pelo Poder Executivo Nacional, embora as polícias – criadas nos finais do século XIX – tivessem na prática uma ampla margem de autonomia. Ver: RAFART, Gabriel. Tiempo de violencia en la Patagonia. Bandidos, policías y jueces, 1890-1940. Buenos Aires: Prometeo, 2008, p. 155-167. BOHOSLAVSKY, Ernesto. “El brazo armado de la improvisación. Aportes para una historia social de los policías patagónicos”. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; SOPRANO, Germán. Un Estado con rostro humano. Funcionarios e instituciones estatales en Argentina (desde 1880 a la actualidad). Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 218-228. 32 Tanto o chefe da Polícia Civil quanto o comandante da Brigada Policial eram nomeados pelo Presidente da República sob indicação do Ministro da Justiça. BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 38-51.

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56

Em contraste, a polícia portenha, mesmo havendo perdido recentemente seu

poder sobre a Província de Buenos Aires, continuava sendo um monstro

administrativo. Além de reunir todas as tarefas que no Rio de Janeiro se dividiam

entre a polícia civil e a militar, ainda absorvia outras áreas – por exemplo, o Corpo

de Bombeiros, que na capital brasileira dependia da esfera municipal. Essas

diferenças resultam significativas para explicar a região do trabalho policial que será

objeto desta tese. Não se trata de um estudo sobre o serviço de segurança, a

vigilância preventiva nas ruas, nem sobre o cotidiano das delegacias. O interesse está

depositado sobre a arquitetura das modernas seções de investigação reformadas,

entre finais do século XIX e começos do XX, pelo advento de uma gama eclética de

técnicas que começará a receber o nome de “polícia científica”.33 Nesse espaço –

como veremos – se desencadeou um processo inédito de aproximação e cooperação

entre as polícias sul-americanas.

Em Buenos Aires a Polícia de Investigação foi criada em 1897, acumulando

atividades que até então eram dispersas. Abrangia treze seções: a primeira, “Ordem

Pública”, exercia o papel de polícia política e à custódia do Presidente da Nação; a

segunda, “Ordem Social”, apontava para a vigilância do movimento operário, em

especial da militância anarquista e comunista; a terceira, “Segurança Pessoal”,

buscava evitar os “atentados contra a vida e a moral”, mas seus recursos estavam

voltados quase exclusivamente ao combate da prostituição e ao tráfico de mulheres; a

quarta e a quinta, “Roubos e Furtos” e “Fraudes e Estelionatos”, destinavam-se aos

delitos contra a propriedade; a sexta, “Leis Especiais”, lidava com a falsificação de

moeda e o jogo clandestino; as três seguintes, “Informações”, “Identificações” e

“Fotografia Judicial”, expediam documentos de identidade individual e auxiliavam a

Justiça na tarefa de determinar os antecedentes criminais dos detidos; a décima,

“Índice Geral e Livros”, administrava o arquivo policial; a décima primeira,

“Embarcadouros”, tinha a cargo o controle da circulação no porto e nas estações de

trem; a penúltima, “Bancos e Teatros”, embora conservasse essa denominação, na

realidade vigiava todos os estabelecimentos públicos em que havia certa

33 Ver QUINCHE, Nicolas. Sur les traces du crime. De la naissance du regard indicial à l’institutionnalisation de la police scientifique et technique en Suisse et en France. Genebra: Slatkine, 2011. E também os trabalhos compilados em PIAZZA, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique. Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime. Paris: Karthala, 2011.

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57

aglomeração de pessoas; e, finalmente, “Vigilância Geral” era um serviço

complementário encaminhado a seguir de perto, inclusive além dos limites da cidade,

certos sujeitos suspeitos de tramar ações delitivas.34

Nas primeiras décadas do século XX, a Divisão de Investigações converteu-se

numa verdadeira polícia dentro da polícia. “Sem limitações jurisdicionais, sua função

tutelar se inicia e perdura com as atividades externas suspeitas e prejudiciais do

componente malsão da população, para proteger a vida e a propriedade do conjunto”,

explicava um de seus chefes, Francisco Laguarda.35 Essa definição redundava no

palavrório abstrato da defesa do interesse comum. No entanto, um detalhe não deve

passar despercebido: “sem limitações jurisdicionais” era uma sentença que continha

o núcleo de sentido da Polícia de Investigações. Não respondia, como o sistema de

delegacias, a uma lógica territorial. Paradoxalmente, seu campo de ação era decidido

pela trama das práticas criminais, e se essa trama burlava as fronteiras nacionais,

segundo os investigadores policiais era preciso evitar qualquer trâmite diplomático

lento e pesado. Era necessário atuar em sigilo e jogar com as mesmas cartas dos

criminosos.

Na Polícia Civil da capital brasileira também se instituiu uma seção similar

que, após passar por diversas reformas e denominações, adotou o nome de “Corpo de

Investigação e Segurança Pública” (1907-1920), passando depois para “Inspetoria de

Investigação e Segurança Pública” (1920-1923) e, finalmente, para “Quarta

Delegacia Auxiliar” até que, em 1933, seus serviços fossem divididos entre a

“Delegacia de Ordem Política e Social” (DEOPS) e o “Departamento Geral de

Investigações” (DGI). A genealogia dessa seção está intimamente ligada à Argentina.

Depois de uma importante reforma na polícia carioca, em 1907, um de seus

inspetores viajou a Buenos Aires para estudar a organização da Polícia de

Investigações e propôs dividir o Corpo em seções análogas às portenhas, algumas das

34 POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. La Policía de Investigaciones. Su misión, organización y funcionamiento. Op. Cit., p. 17-39. 35 LAGUARDA, Francisco. “La Policía de Investigaciones: sus principios”, Revista de Policía, Año XXI, n. 469, Buenos Aires, 1 ene. 1918, p. 5.

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quais (Ordem Social, Leis Especiais) foram efetivamente colocadas em prática.36 No

entanto, em alguns aspectos, a polícia da capital brasileira manteve um maior grau de

descentralização comparativamente à argentina. Outras agências fundamentais, como

a Polícia Marítima e o Gabinete de Identificação e Estatística, continuaram

subordinadas diretamente à chefatura policial, mantendo certa autonomia em relação

ao Corpo de Investigação e à Segurança Pública.

Essa aproximação entre Rio de Janeiro e Buenos Aires não foi a primeira nem

seria a última. Formava parte de uma incipiente rede de contatos que envolvia os

policiais mais ilustres do Brasil e da Argentina. Essa inteligência policial se aferraria

a duas lutas paralelas e complementares. A primeira transitava num velho espaço de

atritos com a engrenagem judiciária, na disputa por maior autonomia para as tarefas

de investigação criminal, perseguição e captura de criminosos. No interior desse

espaço, a consolidação de uma “polícia científica” fornecia um argumento

excepcional para se discutir com os especialistas do mundo jurídico. A segunda luta

apontava para ganhar capacidade de deslocação territorial, apagar obstáculos

jurisdicionais, prerrogativas diplomáticas e óbices consulares, buscando abrir

múltiplas possibilidades de cruzar fronteiras. Os contatos internacionais entre as

polícias miravam diretamente esse alvo.

Reincidentes, incorrigíveis e ladrões profissionais

A imprensa carioca e portenha criticava frequentemente o péssimo treinamento

dos vigilantes sul-americanos, que eram comparados com os afáveis bobbies

londrinos, os educados sergent de ville e até com os rudes, porém inquebrantáveis,

carabinieri. Esta também era uma ideia dos policiais, quando em suas próprias

revistas reivindicavam uma melhora dos recursos tecnológicos da instituição. O

36 SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008, p. 179-180.

Page 70: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

59

raciocínio era simples e talvez servisse, em mais de uma oportunidade, como

escaramuça para reclamações orçamentárias. Para estes policiais escritores, os

criminosos utilizavam agora todos os inventos da modernidade: viajavam em trens e

transatlânticos, faziam uso do telégrafo para se comunicar entre eles, alguns

falsificadores incorporavam os avanços da química, e outros gatunos, mais temíveis,

renovavam armas com uma frequência desconhecida para o campo policial.

De que delinquentes estavam falando? Não eram, certamente, aqueles

assassinos monstruosos que os criminologistas do século XIX consagraram como

estereótipos de criminoso nato. Ainda que alguns se aventurassem a buscar

anomalias, a indagar sobre eventuais estigmas degenerativos, a leitura mais aceitada

foi a que os interpretava como profissionais do delito. Era um fenômeno que os

policiais consideravam endêmico às grandes cidades, berço desses sujeitos que

faziam do roubo, da fraude e da extorsão um modus vivendi. Em geral, pouco tinham

a ver com os fatos de sangue e sua existência, tampouco explicava as oscilações dos

pequenos furtos que, segundo mostravam algumas estatísticas, aumentavam em

períodos de escassez de oferta de trabalho. Por isso, esses “profissionais” não eram

os únicos que cometiam crimes na cidade, embora, como dizia o Comissário de

Investigações da polícia portenha, eram cada vez mais, ao ponto de constituir uma

“numerosa colônia lunfarda que mina nos submundos da população”.37

José G. Rossi escrevia isso na revista de criminologia mais importante da

América do Sul, publicação que era, então, dirigida por José Ingenieros. O tom do

artigo não era nada alarmista: a evolução da criminalidade em Buenos Aires parecia

de acordo com o próprio crescimento da cidade e suas tendências estavam em

sintonia com as principais capitais do mundo. A gatunagem era pensada aqui como

um fenômeno estacional, próprio da “fome e da escassez do inverno”, enquanto que

os ladrões profissionais trabalhavam todo o ano e inclusive aproveitavam

especialmente “os períodos de relativa abundância, quando sorri o bem-estar dos

bolsos”. E quantos eram estes ladrões?

37 ROSSI, José G. “La criminalidad profesional en Buenos Aires”, Archivos de Psiquiatría y Criminología, Buenos Aires, Año II, n. 1, 1902, p. 169.

Page 71: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

60

A Polícia de Buenos Aires conhece mais de dez mil lunfardos profissionais, aos que devem agregar os residentes desconhecidos e as colônias viajantes, hábil e magistralmente organizadas, que caem como enxames de gafanhotos, dão seus golpes e desaparecem da cidade. Somando os conhecidos e os desconhecidos, pode-se assegurar que a cifra de nossa população criminal oscila entre quinze e vinte mil ladrões profissionais.38

O cálculo era bastante curioso: subtraindo da cidade a população de mulheres,

crianças, idosos e deficientes, sobravam uns duzentos mil homens economicamente

ativos; então, Rossi concluía que em Buenos Aires havia um ladrão profissional para

cada 15 trabalhadores. Embora seja difícil avaliar essas estatísticas, a própria

inclusão do artigo nos Archivos de Ingenieros era um sinal da presença de um

verdadeiro tema de época que inquietava por igual a criminologistas e policiais.

Desde a criação do Compte Général de la Justice da França, em 1825, o registro de

delitos em série de estatísticas criminais foi uma prática estreitamente atada à

preocupação sobre a reincidência.39 Velho dilema jurídico, examinado pelos

codificadores sul-americanos, como se notava, por exemplo, no Código Penal do

Império (1830), em que uma das circunstâncias agravantes era “ter reincidido em

delito da mesma natureza”.40 Também o autor do primeiro Projeto de Código Penal

da República Argentina incorporou esta questão em sua argumentação sobre as

penas. Para Carlos Tejedor, o reincidente era alguém que depois de ter sofrido uma

condenação por um determinado delito, em um período menor a dez anos repetia

voluntariamente “um crime da mesma espécie”, e por isso deveria ser castigado com

uma pena maior do que a que foi recebida antes. Esta concepção punitiva da

reincidência, tomada de fontes diversas e em particular do Código de Baviera, estava

atada à ideia de consuetudo delinquendi. Segundo Tejedor, o agravamento do castigo

38 Idem, p. 172. Nesta época, a noção de lunfardo era usada, em Buenos Aires, como sinônimo de gatuno (esse era o significado que lhe dava aqui Rossi), mas também designava a gíria desses ladrões profissionais. 39 ALLINNE, Jean-Pierre. Gouverner le crime. Les politiques criminelles françaises de La Révolution au XXIe siècle. Paris: Harmattan, 2004, p. 192-195. 40 Art. 16. Código Criminal do Império do Brasil: anotado com as leis, avisos e portarias publicados desde a sua data até o presente. Recife: Typographia Universal, 1858, p. 17.

Page 72: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

61

por presunção de “hábito criminal” tinha uma longa linhagem no direito romano, que

remetia pelo menos ao Código de Justiniano.41

Durante duas décadas, o Projeto de Tejedor apenas conseguiu ser sancionado

em algumas províncias argentinas e, logo depois dos conflitos armados que

derivaram na federalização da cidade de Buenos Aires, foi aprovado como Código

Penal, entrou em vigência em 1887 e se manteve com algumas reformas até 1921.

Impôs-se, assim, um agravamento da pena por reincidências, cingido – como no

Brasil – a crimes do mesmo tipo, restrição à que se somava o período de dez anos

após o qual não se computavam condenações anteriores. No entanto, ao final do

século XIX, já se escutavam questionamentos a este critério restritivo. Os próprios

difusores da Escola Positiva tomavam a doutrina da defesa social para sustentar a

necessidade de uma profilaxia mais estrita apontada contra os reincidentes,

considerados, em grande medida, como sujeitos incorrigíveis.

A classificação proposta por Enrico Ferri, em sua Sociologia criminale (1884),

foi uma das mais aceitas pelos criminologistas sul-americanos: nela, as figuras do

delinquente nato e o louco criminal se distinguiam dos delinquentes passionais,

ocasionais e habituais.42 Sem aparentes estigmas hereditários, os criminosos

habituais eram, na classificação do brasileiro Cândido Motta, indivíduos que se

inclinavam aos delitos contra a propriedade, movidos mais por debilidade moral que

por tendências inatas ao crime.43 Muitas vezes essa situação de anomia os colocavam

no centro de uma trajetória iniciada com um delito de ocasião, que com o tempo se

tornava hábito e, ao longo de alguns anos, na formação do que Rossi chamava um

“ lunfardo profissional”.

O argentino Francisco de Veyga dedicou grande parte de seus escritos a este

tema e o fez, ainda, desde uma visão particularmente próxima ao olhar policial. Em

1899, a polícia havia criado no Depósito de Contraventores um observatório

41 TEJEDOR, Carlos. Proyecto de Código Penal para la República Argentina. Parte primera. Buenos Aires: Imprenta del Comercio del Plata, 1866, p. 193-197. 42 FERRI, Enrico. Sociologia criminale. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1900, p. 194-218. 43 MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos. Dissertação para o concurso à vaga de lente substituto de Direito Criminal na Faculdade de Direito de S. Paulo. São Paulo: Carlos Gerke & Cia., 1997, p. 72-77.

Page 73: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

62

criminológico. Esse espaço funcionou como um laboratório anexo à cátedra de

Medicina Legal, onde o professor Veyga e seus alunos estudavam os detidos.44

Frente ao escrutínio dos estudantes, desfilavam sujeitos que a Polícia da Capital

prendia por contravenções como embriaguez, desordem e uso de armas, mas segundo

criminologistas esta era uma porta de acesso privilegiada ao “mundo dos

delinquentes profissionais”.45 Em uma conferência intitulada “Los lunfardos”, Veyga

ensaiava uma radiografia deste tipo de criminalidade, que, segundo ele, tinha como

contrafigura os fatos de sangue. Enquanto no crime passional “tudo é dramático e

sempre original”, o delito habitual era visto como “um ato mecânico, de simples

execução e sempre motivados por uma mesma tendência”.46 Por isso, pensava-se que

a criminologia devia intervir por meio de uma dupla tarefa de observação do modo

de vida dos gatunos, e diagnóstico para a determinação de medidas de defesa social.

Todos esses criminologistas coincidiam em um ponto: a ineficácia do direito

penal frente ao delito profissional. A reclusão em prisões não era apenas insuficiente,

mas ainda havia se convertido em uma espécie de rito de passagem entre o criminoso

ocasional e o habitual. No lugar de regenerar o ladrão, a prisão o recebia ainda

imaturo, oferecia treinamento criminal com “lições dos mais execráveis bandidos” e

o devolvia à rua convertido em um verdadeiro incorrigível.47 A trilhada queixa sobre

os efeitos perniciosos das prisões, sua condição de escola informal para as carreiras

criminais, se aplicava, sobretudo, aos ladrões profissionais. “O novato ingressa na

cadeia com a mais grosseira ignorância sobre estes tópicos”, explicava um policial

argentino, “mas em breve um caridoso companheiro de desgraças, antigo hóspede do

estabelecimento, lhe ensina estas noções; um par de entradas mais e nosso sujeito se

torna criminoso e criminalista”.48

44 DEL OLMO, Rosa. Criminología argentina. Apuntes para su reconstrucción histórica. Buenos Aires: Depalma, 1992, p. 14. CREAZZO, Giuditta. El positivismo criminológico italiano en la Argentina. Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 169-172. 45 BARBIERI, Pedro. “La clínica criminológica del Depósito 24 de Noviembre”, Archivos de Psiquiatría y Criminología, Buenos Aires, Año V, n. 4, 1906, p. 297. 46 VEYGA, Francisco de. Los lunfardos. Psicología de los delincuentes profesionales. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1910, p. 8. 47 MOTTA, Cândido. Classificação dos criminosos. Op. Cit., p. 72. 48 “Necesidad de una ley de reincidencias”, Boletín de Policía, Buenos Aires, Año I, n. 4, 15 jun. 1905, p. 7-8.

Page 74: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

63

No último quarto do século XIX, esta preocupação pela reincidência era

compartilhada por vários países e havia ocupado um lugar central nos debates da

União Internacional de Direito Penal, cujos integrantes propunham incorporar a

noção de “estado perigoso” como fundamento do castigo. De acordo com os

seguidores de Prins, Van Hamel e Von Liszt, a única forma de combater a essa

“criminalidade ambiente”, de caráter endêmico, era deixar de sancionar o sujeito pelo

que fazia e começar a castigá-lo pelo que essencialmente era.49 E se ele fosse

incorrigível? Uma medida que começou a tomar força em diferentes países da

América Latina foi o confinamento de reincidentes em ilhas e colônias

penitenciárias. Esta prática não era uma novidade e havia sido empregada por

diferentes impérios desde o século XVI: a Grã-Bretanha deportava criminosos para

as suas colônias, especialmente para a Austrália; Portugal enviava prisioneiros ao

Brasil e, durante o Segundo Império, a França impôs penas de trabalho forçado para

povoar a Guiana e o arquipélago de Nova Caledônia.50 Também os países sul-

americanos empregaram na etapa independente a pena de desterro, seja para

reafirmar soberania nos confins de seus vastos territórios (o fizeram Chile e

Argentina com a região do Estreito de Magalhães e as Ilhas Austrais), ou deportar os

condenados por certos crimes – estupro, falsificação de moeda, ou inclusive

contravenções – às colônias penitenciárias, como sucedeu no Brasil com Fernando de

Noronha e Ilha Grande.51

Porém, a novidade finissecular foi a legislação sobre o desterro de reincidentes,

tendência iniciada em 1885 pelos republicanos franceses com uma lei que

49 ANCHORENA, José M. Paz. “La noción de estado peligroso del delincuente”, Revista de Criminología, Psiquiatría y Medicina Legal, año V, 1918, p. 129-157. Sobre os usos da noção de periculosidade na justiça argentina, ver: SALVATORE, Ricardo. “Sobre el surgimiento del estado médico legal en la Argentina (1890-1940)”, Estudios sociales, Buenos Aires, n. 20, 1er. semestre de 2001, p. 81-114. 50 EMSLEY, Clive. Crime, Police, & Penal Policy. European Experiences, 1750-1940. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 37. Ver também os trabalhos coletados em: GUESLIN, André; KALIFA, Dominique. Les exclus en Europe, 1830-1930. Paris: Les Éditions de l’Atelier, 1999. E também em: GODFREY, Barry; DUNSTALL, Graeme (Eds.). Crime and Empire, 1840-1940: Criminal Justice in Local and Global Context. Cullompton: Willan Publishing, 2005. 51 Sobre as deportações às Ilhas de Fernando de Noronha e Ilha Grande ver: COSTA, Marcos Paulo Pedrosa. “O Presídio de Fernando de Noronha no século XIX”, In: MAIA, Clarissa Nunes; BRETAS, Marcos L. (et. al.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. V. 1, p. 138-178. SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Os porões da república: a barbárie nas prisões da Ilha Grande, 1894-1945. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 109-118.

Page 75: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

64

determinava a relegação dos malfeiteurs d’habitude a destinos coloniais.52 Aqui não

se tratava tanto da questão jurídica do agravamento da pena por reincidência

(récidive), mas da afirmação do reincidente (récidiviste) como categoria autônoma

no campo das políticas criminais. O ladrão habitual e profissional se tornou a pedra

de toque dentro desse universo, o eixo das mais candentes reivindicações para

endurecer as penas. Se até então o vadio era um sujeito incorrigível por antonomásia,

o clima punitivo finissecular consagrou o reincidente como principal candidato a ser

embarcado pela força e desterrado para sempre.53

Esses ventos de mudança sopraram rapidamente na América do Sul,

especialmente nos países receptores de grandes ondas imigratórias. Acontecia que

uma das características distintivas atribuídas ao ladrão profissional era a capacidade

para escapar da justiça, uma habilidade que incluía, frequentemente, viajar até outro

lugar quando a polícia já conhecia seu rosto. Os reincidentes modernos eram temidos

pelo seu alto grau de mobilidade territorial, por suas astúcias para se disfarçarem,

alterar a fisionomia e ocultar a identidade. Para Elysio de Carvalho, esses sujeitos

constituíam um tipo de imigração paralela, um “êxodo sinistro” que apontava às

capitais sul-americanas como destinos privilegiados, por causa da liberalidade de

suas leis. O Rio de Janeiro havia se transformado em um “refúgio dos indivíduos

desclassificados”, em uma válvula de escape para os “incorrigíveis e inadaptáveis de

toda espécie, reincidentes, perseguidos da polícia estrangeira”.54

Durante a primeira metade do século XX, os debates sobre a legislação penal

envolveram frequentes reclamações para endurecer os castigos por reincidências,

uma batalha que os defensores da doutrina do estado perigoso travaram contra as leis

existentes. O Código Penal de 1890, sancionado no Brasil pouco depois da

proclamação da República, manteve a limitação de agravar apenas as recaídas em

delitos da mesma natureza, entendendo por isso as violações a um artigo idêntico do

52 KALUSZYNSKI, Martine “Le criminel à la fin du XIXe siècle: un paradoxe républicain”, In: GUESLIN; KALIFA, op. cit., p. 253-266. 53 SOULA, Mathieu. “Récidive et récidivistes depuis deux siècles”, In: ALLINE, Jean-Pierre; SOULA, Mathieu (Dir.). Les récidivistes. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011, p. 11-19. 54 CARVALHO, Elysio de. “A delinquência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 6, jun. 1913, p. 218.

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65

código.55 Na Argentina, esse mesmo critério restritivo plasmado no Código de 1886

foi objeto de dois questionamentos diferentes.56 Em primeiro lugar, os partidários da

doutrina da periculosidade argumentavam que os ladrões raramente se dedicavam a

uma especialidade apenas, entre as muitas que tinham à mão no mundo do roubo.

Deste modo, circunscrever o castigo a delitos da mesma natureza ou espécie era, para

eles, uma medida insuficiente.57 Em segundo lugar, aparecia uma crítica à decisão de

limitar o agravamento da pena aos delitos com condenação firme. Alguns críticos

usavam os prontuários policiais para explicar que 90% dos delitos cometidos por

ladrões habituais passavam pela justiça sem ser condenados e por isso pediam a

sanção de uma lei que, baseada no conceito de estado perigoso, permitiria “afastá-los

indeterminadamente do meio social”.58

De fato, apesar das resistências para reformar o Código Penal, o parlamento

argentino aprovou, em 1895, uma lei que habilitava a pena de deportação frente à

segunda reincidência em delitos contra a propriedade, inspirada na legislação

francesa de 1885. O lugar do exílio era a Ilha de Tierra del Fuego, um destino tão

distante de Buenos Aires que muitos dos prisioneiros terminavam cumprindo sua

pena somente com a duração da viagem de navio até o porto de Ushuaia.59 O

aguerrido jurista Enrique Zinny, partidário da pena de morte como medida de defesa

para os incorrigíveis, lamentava que para os criminosos profissionais esta forma de

deportação terminava sendo algo percebido como “um breve passeio pelas ilhas do

sul” antes de regressarem a Buenos Aires, verdadeiro “teatro de suas proezas”. Este

55 Código Penal dos Estados Unidos do Brasil: promulgado pelo decreto n. 847 de 11 de outubro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, art. 40. 56 Este ponto foi criticado por Piñero, Rivarola e Matienzo, os juristas argentinos que em 1891 revisaram o código vigente e fizeram uma proposta de reforma, embora ela não fosse aprovada e, como no Brasil, continuou em vigência o critério restritivo. Ver: CREAZZO, op. cit., p. 77-82. 57 Ver: ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Sus factores principales. Tesis presentada para optar por el Grado de Doctor en Jurisprudencia, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Ed. Adolfo Grau, 1903. 58 Ver: “Reincidencia”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXIV, n. 561, 1 nov. 1921, p. 505-506. ANCHORENA, op. cit., p. 138. Também: “La criminalidad en el reincidente”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año VI, n. 131, 1 nov. 1921, p. 165-166. DÍAZ, Emilio, “La reincidencia y el moderno concepto de la represión”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXI, n. 483, 1 ago. 1918, p. 317-318. 59 CAIMARI, Lila. Apenas un delincuente. Crimen, castigo y cultura en la Argentina, 1880-1955. Buenos Aires, Siglo XXI, 2004. p. 69.

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66

passeio, que também chamava “descanso obrigatório” (em forma maliciosamente

irônica, já que os presos viajavam entre dois e três meses no armazém do navio com

os pés acorrentados), devia, para este autor, ser substituído por uma deportação

indeterminada às colônias rurais, única maneira de “aliviar a capital” dessa “praga de

delinquentes de oficio”.60

Aos constantes pedidos de leis mais duras contra a reincidência, somaram-se,

na Argentina, reclamações para unificar os arquivos sobre antecedentes penais. O

jurista Ernesto Quesada apresentou um projeto para a criação de um Arquivo de

Reincidentes, dentro do Ministério da Justiça. Além das discussões sobre a definição

jurídica da reincidência, Quesada insistia sobre o problema da construção de uma

base de dados que os juízes pudessem usar para agravar as penas. Fazia tempo que

em Buenos Aires era difícil saber quem era quem e, apesar de alguns policiais ainda

se gabarem por reconhecer a maior parte de todos os criminosos habituais, a tática da

memória visual estava totalmente ultrapassada pela realidade demográfica. “Quanto

menos numerosa é a população de um lugar”, explicava Quesada, “mais viável é

aquele sistema paternal de reconhecimento, porque nos vilarejos se conhecem todos,

e a polícia, de olhos fechados, sabe qual é a vida e os milagres de cada um dos

habitantes”.61

Esse sistema de vigilância era usado informalmente desde o início da polícia

portenha. Os policiais depositavam certa confiança na capacidade institucional para

observar in extenso o mundo da “gente do mal-viver”, conhecer quem eram os

sujeitos que faziam do roubo sua forma de vida, registrar suas biografias em papéis e

reunir esses registros em arquivos. Sem dúvida, essa confiança se viu renovada nas

últimas décadas do século XIX pelas possibilidades que oferecia a fotografia. Os

livros usuais de detenções e as filiações de criminosos (em que se anotavam nomes,

pseudônimos, nacionalidades, idades, ocupações e descrições físicas) começaram a

60 ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Op. Cit., p. 36-37. 61 QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Proyecto de ley presentado al señor Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Doctor D. Osvaldo Magnasco. Buenos Aires: Imprenta y Casa Editora de Coni Hermanos, 1901, p. 57.

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67

se nutrir de retratos fotográficos.62 Esta técnica foi utilizada para formar o que na

Argentina chamaram de “galerias de ladrões conhecidos”, coleções de retratos

acompanhados de uma breve resenha da biografia delitiva, que inclusive chegaram a

ser objetos de troca com outras polícias.

A categoria de “ladrão conhecido” teve um rol importante nas rotinas policiais

desde a incorporação da fotografia, mas sua presença na Ibero América era de

longuíssima data. Inclusive aparecia nas Siete Partidas do Rei Alfonso X, em que se

impunha pena de morte ao “ladrão conhecido” que havia cometido vários roubos.63

Esta expressão nunca adquiriu um estatuto jurídico no período independente, nem

formou parte de nenhum Código Penal, mas a polícia portenha a incorporou em suas

regulamentações internas. Em 1880, por exemplo, um decreto da chefia observava

que, para “efeitos policiais”, se considerariam ladrões conhecidos àqueles sujeitos

sentenciados por dois ou mais delitos contra a propriedade. Esse rótulo outorgava aos

policiais o poder de submeter estes sujeitos a uma “vigilância estrita e severa”,

fotografá-los, distribuir seus retratos nas delegacias e pendura-los nas paredes das

repartições.64 Na década seguinte, essas prerrogativas foram ampliadas, permitindo

que guardassem nos arquivos da Alcaldía de Policía (a cadeia da polícia)

informações sobre sujeitos que tiveram “o hábito de se juntarem com indivíduos

retratados na galeria pública”. Além disso, cada vez que prendiam um ladrão

conhecido (“L.C.”, segundo a sigla que começou a se popularizar para nomeá-los), a

polícia devia os expor ao escrutínio de seus vigilantes, em uma ronda de

reconhecimentos visuais para memorizar os rostos.65

62 No final do século XIX apareceram os primeiros álbuns fotográficos de criminosos no Brasil e Argentina. Ver, para o caso argentino: FERRARI, Mercedes García. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010. p. 55-111. E para o Brasil: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo. Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas: Unicamp, 2010, p. 205-259. E também: PESAVENTO, Sandra J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009. 63 Las Siete Partidas del Sabio Rey D. Alfonso el X. Tomo IV. Barcelona: Imprenta de Antonio Bergnes, 1844, p. 252. 64 FARÍAS, Manuel Mujica. Repertorio de policía. Compilación de las disposiciones vigentes comunicadas por la “orden del día” de la Policía de la Capital, 1880-1899. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1899, p. 303. 65 Idem, p. 304. RODRÍGUEZ, Adolfo E. Historia de La Policía Federal Argentina, Tomo VI, 1880-1916. Buenos Aires: Editorial Policial, 1975, p. 177. Os policiais brasileiros também usavam as

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68

O projeto de Quesada apontava diretamente contra as limitações destes

registros de informação, aos quais via demasiado emaranhados com a mecânica tão

pouco legalista das suspeitas policiais. Além disso, existia um problema de alcance

territorial dos arquivos. Por um lado, no caso dos imigrantes, era impossível agravar

a pena, computando condenações recebidas em seus países de origem, porque não

havia um mecanismo confiável e simples para conseguir essa informação. E ainda a

própria Alcaldía de Policía apenas registrava os fatos delitivos da capital e isso

significava que nem sequer os crimes sancionados em outras províncias contavam na

hora de ponderar a reincidência de um acusado.66 O problema é que esta proposta

significava a construção de um arquivo que diminuía os privilégios da polícia e,

como tal, foi uma das tantas disputas que a instituição manteve com o poder

judiciário. Esta batalha se prolongaria, ao menos, até a década de 1930, quando se

conseguiu criar o Registro Nacional de Reincidência graças ao sucesso da

datiloscopia.67

O novo projeto obrigava aos juízes remeter uma cópia de suas sentenças ao

Ministério da Justiça, nesta nova repartição que ainda teria a seu cargo a elaboração

de estatísticas criminais e carcerárias. Fora do alcance da polícia, o Registro

guardaria esta informação com caráter estritamente “reservada” e apenas poderia ser

usada para responder pedidos formais da justiça. Embora os vigilantes não pareciam

ter posto muita resistência, pediram através de suas revistas que o chefe de polícia

fosse designado como diretor “natural” da repartição, considerando que o arquivo

policial reunia, nesse momento, mais de um milhão de prontuários com informações

sobre reincidentes e profissionais do delito, “minuciosas biografias com infinidade de

pormenores, utilíssimos, das atuações desses sujeitos”.68 Mas ao mesmo tempo o

escritor deslizava um argumento adicional que respondia diretamente ao problema do

alcance territorial desses arquivos. Os prontuários e as fichas datiloscópicas que a

expressões ladrão conhecido e gatuno conhecido, ver: BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 105. 66 QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Op. Cit., p. 55-57. 67 “Proyecto de Ley. Registro Nacional de Reincidencia”. In: Memoria presentada al Honorable Congreso de la Nación por el Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Dr. José S. Salinas, año 1920, tomo I. Buenos Aires: Rosso y Cia., 1921, p. 11. 68 “El registro nacional de reincidencia y su instalación”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXI, n. 481, 1 jun. 1918, p. 271-271.

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69

polícia acumulava em seus armários não se limitavam, como se afirmava, a

indivíduos domiciliados na cidade de Buenos Aires. Ainda que essa fosse a

jurisdição que a correspondia, a Polícia da Capital trocava periodicamente

informações com outras províncias e inclusive, “à maneira de gabinete central”,

coordenava as permutas com países europeus e sul americanos.69

Assim chegamos a um ponto crucial para este trabalho. Muitos desses ladrões

profissionais formavam parte dessas “colônias viajantes” as quais Rossi se referia,

uma forma de migração derivada da lógica que governava suas práticas delitivas.

Dedicados quase exclusivamente aos atentados contra a propriedade, estavam longe

daquilo que os criminologistas definiam como “delinquentes ocasionais”. Ao

contrário, os roubos eram para eles uma forma de vida, um ofício que se ensinava e

se aprendia. Mover-se de um país a outro podia ser nesse contexto uma estratégia

para buscar melhores oportunidades, escapar da perseguição judicial ou, ainda, ser

parte do próprio modus operandi da especialidade, tal como sucedia com o tráfico de

mulheres e com certas formas de estelionato.

As redes internacionais tecidas pela polícia constituíam um tipo de

modernização paralela, informal na maior parte dos casos, quase sempre às costas da

justiça e dos consulados. Sem dúvidas, a circulação transnacional de certos delitos

foi o argumento privilegiado para justificar o avanço da cooperação entre policiais da

América do Sul. Quando em 1899 o presidente Roca empreendeu uma pomposa

visita ao Brasil, Francisco Beazley, chefe da Polícia da Capital, formou parte da

comitiva que o acompanhou ao Rio de Janeiro. A chefia aproveitou esta festiva

ocasião para aproximar posições com a polícia carioca, um diálogo que pretendia

ampliar por fora da via diplomática. Frente à imprensa local, Beazley explicava uma

tese de vital importância para a racionalidade que governaria os intercâmbios

policiais. As capitais do Brasil e da Argentina eram para ele “os dois grandes centros

de ação de delinquência sul-americana” e quando em um país os vigiavam com rigor,

“os amigos do alheio” decidiam migrar para refugiar-se em outro.70

69 Idem, p. 272. Ver também: “Registro nacional de reincidencia”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XXI, n. 487, 1 oct. 1918 p. 420-421. 70 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899.

Page 81: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

70

Esta tese de soma zero explicava a intensa circulação de criminosos no espaço

atlântico sul-americano, algo que o chefe de polícia e outros vigilantes portenhos

diziam ter confirmado com seus próprios olhos no Rio de Janeiro, quando da visita à

Casa de Detenção da capital brasileira, encontraram vários ladrões bem conhecidos

em Buenos Aires.71 Esses eram os reincidentes, incorrigíveis e delinquentes

profissionais que os policiais do Brasil e da Argentina começaram a perseguir com

estratégias de colaboração internacional, envolvendo ainda outros países sul-

americanos. As leis de expulsão de estrangeiros, sancionadas no começo do século

XX, se converteriam em uma ferramenta de incomparável arbitrariedade, porque

tornaria possível o velho sonho de se desfazer literalmente de uma parte dos viajantes

indesejáveis. A mecânica concreta dessas expulsões abriu uma época de cooperação

sem precedentes, coroada por aquelas duas conferências sul-americanas que tiveram

lugar em Buenos Aires, em 1905 e 1920. A cooperação policial sul-americana era um

fato inédito, não apenas na região, mas no mundo todo.

71 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 13 ago. 1899.

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Capitais em movimento

O conto do vigário no comercio é o bluff; na indústria o sucedâneo; na literatura o folhetim; na pintura o cubismo; no meio da rua o conto do vigário; na música a opereta; na guerra a vitória; na estratégia a camouflage; na política a democracia; na metafísica o além; na poesia o penumbrismo; no positivismo o Borges de Medeiros; na imprensa, a imprensa; no jogo a loteria nacional; na candidatura presidencial a plataforma

Mendes Fradique, Contos do vigário (1922).1

Nos primeiros anos do século XX, os leitores de folhetins e romances

policiais sabiam das aventuras dos criminosos viajantes. Talvez nunca houvessem

visto um, mas conheciam as preocupações de Sherlock Holmes e os roubos de

Arsène Lupin, o famoso cambrioleur gentleman criado pelo escritor francês Maurice

Leblanc. Fora do mundo das ficções, embora totalmente articulada com ele, a

imprensa sul-americana oferecia notícias sobre estes ladrões cosmopolitas que

percorriam o mundo.2 Os delitos contra a propriedade, segundo diziam os

especialistas, haviam se convertido também em uma profissão internacional.

A criminalidade viajante nascia da revolução nos transportes, do incremento

da mobilidade territorial e do desenvolvimento das cidades. As capitais situadas

sobre a rota atlântica sul-americana eram nesta época espaços habitados por

1 MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Rio de Janeiro: Soria & Boffoni Ed., 1922, p. 18-19. “Mendes Fradique” era o pseudônimo usado pelo caricaturista José Madeira de Freitas, ver: MENDES FRADIQUE. História do Brasil pelo método confuso. Organização de Isabel Lustosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 9-26. 2 CARVALHO, Elysio de. “Arsène Lupin, cambrioleur gentleman”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 139-142.

Page 83: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

72

imigrantes de distintos países, desembarcados há anos, meses ou dias, mas sempre

acostumados ao anonimato como um dado da vida cotidiana. A figura do “recém-

chegado” era central para a experiência urbana do Rio de Janeiro e Buenos Aires

durante a Belle Époque, como era também fundamental a preocupação sobre a

suposta cara perversa das imigrações massivas: o sujeito se infiltrava nas multidões

migrantes para ganhar muito dinheiro com pouco trabalho.

“Somos hospitaleiros até a imprudência, e por isto mesmo, e porque a vida é

fácil, a vigilância pequena e a tolerância excessiva, o Rio vai se tornando um refúgio

de criminosos escorraçados de todas as partes do mundo”, escrevia o literato

brasileiro Elysio de Carvalho, sendo diretor do Gabinete de Identificação e

Estatística da polícia carioca.3 Esta “invasão sinistra” – acrescentava – “exige que a

nossa hospitalidade seja mais circunspecta e que os nossos portos não se abram

facilmente a estes imigrantes heterogêneos que, longe de representarem a elite dos

países donde procedem, são o rebotalho, a ralé, o excremento das populações

estrangeiras”.4

Os temores sobre os criminosos viajantes se alimentavam em um discurso

mais amplo sobre os efeitos nocivos da imigração descontrolada, uma preocupação

fin-de-siècle, que raramente apareceu nos intelectuais liberais que projetaram as

políticas populacionais para as novas repúblicas sul-americanas, em particular os

argentinos, que tinham sido especialmente otimistas com a chegada dos imigrantes

europeus.5 As estratégias restritivas e seletivas do início do século XX apontavam

precisamente a mudar as regras do jogo de um processo que já levava várias décadas.

Ao longo do século XIX, a migração transoceânica adquiriu dimensões até então

inéditas. Em particular, o fluxo de migrantes da Europa às América manteve cifras

bem altas até a Primeira Guerra Mundial, e um pouco mais baixas na década de 1920

até a sua eventual paralisação, logo depois da crise internacional de 1929. Apesar das

diferenças entre as estatísticas dos países de emigração e os receptores, desde 1815

3 CARVALHO, Elysio de. “A delinqüência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 222-223. 4 Idem, p. 223. 5 HALPERIN DONGHI, Tulio. “¿Para qué la inmigración? Ideología y política inmigratoria la Argentina (1810-1914)”. In: El espejo de la historia. Buenos Aires: Sudamericana, 1998, p. 191-238.

Page 84: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

73

até 1930, mais de cinquenta milhões de pessoas deixaram a Europa rumo ao

continente americano. Os Estados Unidos foi o país que registrou mais imigrantes

nesse período (32,6 milhões), seguido por Canadá (7,2), Argentina (6,4) e Brasil

(4,3).6

A presença da América Meridional como horizonte para este movimento

migratório foi ainda mais significativa a partir do último quarto do século XIX.

Durante a etapa que ganhou o epíteto de “migrações maciças”, os portos do atlântico

sul-americano se posicionaram como destinos bem atrativos. Embora os Estados

Unidos mantivesse seu claro predomínio sobre os mais de 30 milhões de migrantes

que chegaram às Américas entre 1881 e 1915 (recebeu cerca de 70%), a Argentina

passou a ocupar o segundo lugar acumulando quase 14% da imigração europeia, e o

Brasil ocupou o terceiro com 9%, pouco acima do Canadá. No entanto, se

excetuarmos os países da América do Norte, Argentina e Brasil receberam neste

período quase a totalidade dos europeus que elegeram migrar para a América Latina.7

A maior parte desses imigrantes não eram os camponeses das Ilhas Britânicas e

da Europa setentrional que se orientaram em primeiro lugar aos Estados Unidos, mas

tampouco os alemães e italianos do Norte que povoaram as colônias agrícolas de São

Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul antes de 1880. Nessa nova etapa,

predominaram os imigrantes do Sul e Leste da Europa, a maior parte deles homens

jovens, pouco qualificados, que buscavam mercados com maior demanda de mão de

obra e eventualmente melhores salários. “Fazer a América” era o lema que abreviava

a expectativa de acumular economias para regressar com dinheiro a seus países de

origem. Em muitos casos, esse retorno foi uma realidade: mais da metade dos

italianos e algo menos da metade dos espanhóis que ingressaram na Argentina entre

1861 e 1920 voltaram a Europa; e no Brasil, tomando um período mais curto (1899-

1912), retornaram 65% dos imigrantes desembarcados.8

6 BAINES, Dudley. Emigration from Europe, 1815-1930. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 1-2. 7 KLEIN, Herbert S. “Migração Internacional na História das Américas”. In: FAUSTO, Boris (Org.). Fazer a América. A imigração em massa para a América Latina. São Paulo: Edusp, 2000, p. 13-31. 8 DEVOTO, Fernando. Historia de la inmigración en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 73.

Page 85: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

74

Este ciclo esteve marcado por outros contrastes significativos comparando os

casos de Argentina e Brasil. Em primeiro lugar, as imagens que circulavam na

Europa sobre as condições de vida em ambos os países eram bem diferentes. À

volumosa informação sobre maiores oportunidades de trabalho e melhores salários

no litoral argentino, se somavam a ciência de achar em Buenos Aires um clima mais

parecido com o europeu, o temor às doenças contagiosas no Brasil e o comentário

espalhado sobre o trato quase escravista que denunciavam os trabalhadores das

fazendas de café. Esses fatores motivaram uma forte política de propaganda e

subsídios à imigração organizados pelo estado de São Paulo, enquanto na Argentina

a política de passagens subsidiadas esteve limitada a um breve período na década de

1880.9

Por outra parte, a imigração europeia impactou de forma desigual nas

mudanças demográficas. Entre os censos de 1890 e 1940, o Brasil passou de 14,3 a

41,2 milhões de habitantes, pode-se dizer que o país quase triplicou sua população;

enquanto a Argentina passou de 3,9 milhões, em 1895, a 14,1 milhões, em 1940. Isso

significava um aumento maior, mas a distância parecia mais ampla considerando a

participação dos imigrantes no crescimento vegetativo, que entre 1840 e 1940 foi de

58% na Argentina e 15% no Brasil. Isso fica claro na disparidade entre as taxas de

imigrantes sobre o total de habitantes segundo os censos nacionais: se, em 1914,

representavam 30% da população argentina e 50% dos habitantes da cidade de

Buenos Aires, em 1920, apenas superavam 5% da população do Brasil, alcançavam

15% dos habitantes da capital, Rio de Janeiro, e 35% da cidade de São Paulo (cujo

estado concentrava mais da metade dos imigrantes do país).10

Nas últimas décadas do século XX, foi tomando força um discurso que

associava o aumento da população estrangeira com a presença de uma criminalidade

nova e a cada dia mais robusta. Esta ideia circulou – com diferentes nuances – desde

Buenos Aires até o Rio de Janeiro, abrangendo, obviamente, São Paulo. No Brasil,

desde os primeiros anos republicanos já se ouviam vozes de advertência sobre os

9 BERNASCONI, Alicia; TRUZZI, Osvaldo. “Las ciudades y los inmigrantes: Buenos Aires y São Paulo (1880-1930)”. In: FUNCEB/FUNAG. Brasil-Argentina: a visão do outro. Brasília: FUNCEB/FUNAG, 2000, p. 205-242. 10 FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São Paulo: Editora 34, 2005, p. 174-178.

Page 86: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

75

efeitos da imigração europeia no crime urbano. A construção de estatísticas criminais

que desagregavam as taxas por nacionalidade era um sintoma desta preocupação. De

fato, dois dos difusores da criminologia no Brasil, José Viveiros de Castro e Cândido

Mota, publicaram estudos que leriam nessas estatísticas claras tendência nas taxas

delitivas do Rio de Janeiro e de São Paulo: os espanhóis e os italianos se destacavam

entre as ofensas físicas e os crimes contra as pessoas; os russos, os alemães e os

polacos dominavam o lenocínio, os portugueses costumavam ser golpistas hábeis e a

população negra se impunha no mundo da gatunagem.11

Na cidade de São Paulo, a primeira década republicana sofreu um visível temor

devido ao aumento dos delitos. Nas estatísticas publicadas pela Secretaria de Justiça

entre 1894 e 1916, os números de aprisionamentos coincidiam com a proporção de

estrangeiros e nativos que mostravam os censos. Mas a imprensa insistia no perigo

dos “alienígenas” e das “etnias indesejáveis”, especialmente os italianos do Sul e os

judeus russos, que os jornais imaginavam infiltrando entre os trabalhadores honestos

que entravam em massa pelo porto de Santos.12 A produção de veracidade por meio

de números estava presente também nos relatos do Boletim Policial, publicado no

Rio de Janeiro pelo Gabinete de Identificação e Estatística. No primeiro número,

depois de analisar a informação recolhida, o chefe da polícia concluía: “A nossa

estatística criminal é tristemente desfavorável aos estrangeiros”.13

Em Buenos Aires, essa sentença era muito mais enfática e sua pregnância se

notava na imprensa, na literatura e nos círculos científicos. Desde a década de 1870,

a polícia difundia, em seus relatórios anuais, estatísticas criminais separadas por

nacionalidade e até finais do século manteve um discurso institucional que

frequentemente acusava os imigrantes pelo aumento dos delitos urbanos.14 Tema

11 CASTRO, José Viveiros de. Ensaio sobre a estatística criminal da República. Rio de Janeiro: Tipografia Leuzinger, 1894. MOTA, Cândido N. Nogueira da. A justiça criminal na capital do Estado de São Paulo. São Paulo: Espíndola, Siqueira & Cia., 1895. 12 FAUSTO, Boris. Crime a cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Edusp, 2001, p. 71-81. 13 Boletim Policial, Ano I, n. 1, Rio de Janeiro, mai. 1907, p. 4. Ver também: BRETAS, Marcos. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997, p. 87. 14 Alguns historiadores mostraram que o nexo entre crime e imigração não se sustentava nem sequer nos próprios dados difundidos nas publicações da polícia, em que os argentinos estavam

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76

privilegiado também pelos textos criminológicos, entre eles um livro de Moyano

Gacitúa, que Lombroso qualificou – depois de sua publicação em 1905 – como “o

trabalho mais importante de sociologia e antropologia criminal surgido nestes dois

últimos anos e em ambos os mundos”.15 Tratava-se, ao menos, de um minucioso

estudo das estatísticas que girava em torno ao espinhoso problema do vínculo entre

crime, raça e imigração. O corolário do livro dirigia um questionamento à política

imigratória projetada pelos intelectuais liberais, founding fathers da nação argentina,

em particular a Juan Bautista Alberdi. Para Moyano Gacitúa, pouca atenção havia se

prestado à necessidade de selecionar os estrangeiros que chegavam ao país, levando

em conta que a raça latina (italianos, espanhóis, portugueses) era mais propensa a

cometer delitos. Embora o diagnóstico indicasse que a sociedade argentina ainda não

apresentava realidades criminais “aberrantes e irreversíveis”, era preciso ficar alerta

porque “tudo que se conhece hoje como provocação atrativa do delito está aqui

latente ou militante em palpitação”.16

A tese da periculosidade da raça latina tinha sido difundida, paradoxalmente,

por criminologistas italianos cujos textos, em especial os de Enrico Ferri, foram lidos

na Argentina com muito entusiasmo. As teorias da degeneração e o atavismo

criminal inclusive tiveram ressonâncias na imprensa, nos folhetins e nos romances

populares. ¿Inocentes o culpables? (1884) de Antonio Argerich e En la sangre

(1887) de Eugenio Cambaceres narravam histórias de italianos que se infiltravam na

sociedade portenha, ascendiam socialmente à base de enganações e simulações,

sobrerrepresentados em relação às estatísticas populacionais. Ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 73-75. BLACKWELDER, Julia Kirk. “Urbanization, Crime and Policing. Buenos Aires, 1880-1914”. In: JOHNSON, Lyman (Ed.). The Problem of Order in Changing Societies: Essays on Crime and Policing in Argentina and Uruguay. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 65-87. Uma das análises estatísticas mais minuciosas entre as publicadas pela polícia na década de 1880 foi: CASARIEGO, Alberto Méndez. La criminalidad en la ciudad de Buenos Aires en 1887. Informe oficial. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía de la Capital, 1888. 15 GACITÚA, Cornelio Moyano. La delincuencia argentina ante algunas cifras y teorías. Córdoba: Casa Editora F. Domenici, 1905, p. VI. 16 Idem p. 23. Elysio de Carvalho defendia a mesma ideia que Moyano Macitúa: “são estas nações precisamente”, escrevia apontando Portugal, Espanha e Itália, “as que ocupam os três primeiros lugares na estatística de homicídios na Europa”. CARVALHO, Elysio de. “A delinquência dos estrangeiros”, Op. Cit., p. 218. A mesma hipótese era fortemente defendida pela tese doutoral: CORDERO, Clodomiro. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires en la última década, 1904-1913. Tesis presentada a la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales para optar por el grado de Doctor en Jurisprudencia, Universidad Nacional de Buenos Aires, Buenos Aires, 1915.

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77

casavam-se com argentinas e passavam a seus filhos as características mais brutais

de sua raça.17 No entanto, além destas ficções condenatórias e das frequentes

paródias da imprensa satírica, houve vozes que se levantaram contra essas leituras,

desde romances que narravam histórias de pacíficos e laboriosos imigrantes, até

visões dissonantes de criminologistas que refutavam as estatísticas desfavoráveis aos

italianos e espanhóis.18

Ainda assim, a massa de discursos técnicos e populares que apontavam a

imigração europeia como a responsável por uma eventual escalada do crime, serviu

de base para a discussão das políticas de atração e recepção de migrantes. Em

particular, será aberta uma lacuna entre a noção de “imigrante” (apontada na

República Argentina pela Lei de Imigração e Colonização de 1876) e de

“estrangeiro”, termo com conotações cada vez mais pejorativas que será protagonista

das leis de expulsão sancionadas no início do século XX.

O imigrante era visto como uma pessoa nascida em outro país, mas

transplantada para essas terras sul-americanas que devia laboriosamente cultivar,

incorporando-se ao mercado de trabalho. Em troca, o estrangeiro era representado

como um sujeito errante, sem pátria, domicílio fixo, nem intenção de se fixar. Por

isso, os esforços se concentraram em separar com clareza estes dois universos (os

imigrantes dos estrangeiros, os desejáveis dos indesejáveis), embora ambos

viajassem nos mesmos navios e chegassem pelos mesmos portos.

Na Argentina, a ideia do “aluvião” foi uma metáfora potente para dar conta da

massa humana que ingressava nos países do atlântico sul-americano. Metáfora

carregada de simbologias marítimas, aludia a esse fluir de corpos cujo principal

defeito não era que fossem muitos, mas fundamentalmente que eram anônimos,

desconhecidos, estranhos. Nos fluxos aluviais, cada sujeito perdia singularidade,

tornava-se parte de uma multidão na qual, segundo opinião dos policiais, era muito

17 Ver: ONEGA, Gladys. La inmigración en la literatura argentina (1880-1910). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1982, p. 58-90. LAERA, Alejandra. “Representaciones obliteradas: inmigrantes y extranjeros en la romance popular argentina del siglo XIX”. In: BRAVO, A. Fernández; GARRAMUÑO, F.; SOSNOWSKI, S. (Eds.). Sujetos en tránsito: (in)migración, exilio y diáspora en la cultura latinoamericana. Buenos Aires: Alianza, 2003, p. 231-253. 18 SCARZANELLA, Eugenia. Ni gringos, ni indios. Inmigración, criminalidad y racismo en la Argentina, 1890-1940. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003, p. 36-37.

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difícil distinguir os trabalhadores dos perigosos. A amalgamação era um desses

símbolos que acompanhava a imagem do aluvião.

Outra ideia era a da ressaca que deixa a maré. Os indesejáveis eram como as

impurezas abandonadas pela água quando se retira. A imigração “como a ressaca que

as ondas lançam às praias do mar, com espólios bons e ruins, também traz de tudo,

bons e maus elementos”.19 Assim, pensava também o policial carioca Vicente Reis

sobre os crimes cometidos por “mão de estrangeiros, na maior parte evadidos das

prisões” e “impelidos pela enxurrada imigratória”.20 Reis, igual a Moyano Gacitúa,

entendia que os indesejáveis ainda não constituíam um mal irreversível. Mas, como

em qualquer aluvião, o perigo latente era que se instalassem na terra como uma

inundação perene. Esse “transbordamento caudaloso”, escrevia o jurista argentino,

essa “invasão dominadora do crime”, podia se derramar furiosamente pelo solo dos

países sul-americanos.21

Este era um dos discursos sobre os efeitos não desejados das imigrações

maciças. Mas não era o único. Junto à ideia da penetração de sujeitos perigosos

arrastados pelo mesmo aluvião que trazia os trabalhadores honestos, a partir da crise

financeira de 1890, irrompeu uma visão mais abrangente, que arremetia contra o

mesmíssimo conceito de “fazer a América”. Não apenas o delito, mas o culto

desmedido ao dinheiro, a motivação do lucro e da cobiça apareciam como

consequências de uma sociedade cosmopolita desprovida de valores nacionais. O

burguês especulador, o advogado inescrupuloso, o jogador compulsivo e o agiota

judeu estariam agora sentados no banco dos acusados.

19 Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 1, jun. 1910, p. 8. 20 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 2. 21 GACITÚA, Cornelio Moyano. La delincuencia argentina. Op. Cit., p. VII.

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Cidades e cobiças

“Quando a parteira atira neste vale de lágrimas um homo sapiens, não vem ele

munido de carteira ou livro de cheques”, ironizava um escritor e caricaturista

brasileiro com pseudônimo de Mendes Fradique. “Traz para a função de apropriação

apenas dois elementos: miolo e gadanho, que, segundo o grau de perfeição a que

atinjam, podem dar um pick-pocket, um banqueiro ou um cavalheiro da indústria”.22

A massa encefálica, em alusão à astúcia, e as garras das aves de rapina, cuja própria

existência depende da destruição dos outros, eram duas potentes figuras entre os

textos que condenavam a libertinagem da vida metropolitana. No início do século

XX, a denúncia sobre os efeitos devastadores do dinheiro tinha essa tônica

niveladora que podia igualar um ladrão com um homem das finanças: a avareza – se

dizia – pouco distingue entre ricos e pobres, nacionais e estrangeiros, homens e

mulheres. Tudo se misturava ao ritmo da circulação do dinheiro, “igual às vitrines

desrespeitosas dos cambalaches”, segundo protestava o tango de Santos Discépolo,

em 1934, comparando o século XX com as lojas nas quais se trocavam bugigangas.

Muitos eram os elementos que nutriam essa sensação de decadência. Mas

nenhuma genealogia local deste fenômeno pôde evitar o impacto da crise financeira

de 1890. As economias do Brasil e da Argentina cresceram à mão de exportações de

produtos primários, fornecidos pelos setores mais dinâmicos, como o café, no caso

do Brasil, e a produção pecuária no litoral ribeiro da Argentina. O período de apogeu

do modelo agroexportador teve sua base expressa no lema “ordem e progresso”

proclamado por republicanos e liberais. No entanto, existiram também vozes críticas

que apontavam seus dardos contra a “dominação estrangeira” e a cultura materialista

de elites mesquinhas, representadas especialmente pelos fazendeiros do Vale do

Paraíba e a “burguesia da lã” argentina.23

22 MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Op. Cit., p. 96. 23 Esta visão tomou força depois da crise de 1890 e se materializou em uma infinidade de intervenções escritas de um incipiente nacionalismo de direita. Sobre o tema, ver: DEUTSCH, Sandra McGee. Las derechas. La extrema derecha en la Argentina, el Brasil y Chile, 1890-1939. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2005, p. 49-85.

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Essas ideias encontraram no crack de 1890 uma conjuntura ideal para serem

escutadas. A crise financeira se desencadeou em Buenos Aires e teve como efeito

mais visível a quebra da companhia bancária Baring Brothers, provocada por seus

investimentos no Rio da Prata e pela suspensão de pagamentos do estado argentino.

Embora a companhia tenha sido resgatada pelo Banco da Inglaterra, evitando que a

crise se expandisse, teve um forte impacto na economia argentina, com a depreciação

da moeda e revogação dos créditos.24 O impacto chegou ao Brasil no final desse ano,

derrubando os preços das ações e agravando uma instabilidade financeira que se

arrastava desde 1886. Rui Barbosa, primeiro Ministro da Fazenda da República,

continuou a política de créditos outorgando a diversos bancos o poder de emitir

papel-moeda, o que provocou uma febre especulativa similar a de Buenos Aires. Este

processo foi conhecido no Brasil como “encilhamento”, uma analogia com a

preparação que se dá aos cavalos antes das corridas.25

Alguns monarquistas denunciavam a especulação financeira como um sintoma

da degradação moral do novo regime, apesar de a crise ter tido suas raízes nos

últimos anos do Império e a “febre do ouro” fosse bem conhecida já na década

anterior. De fato, em uma reunião da Associação de Homens de Letras, o argentino

Ernesto Quesada havia pronunciado – ante a presença de Don Pedro II – um discurso

enfurecido contra essa “sede absorvente do ouro”, que tornava os homens

“insaciáveis e insensíveis a todos os demais” e os levava ao extremo de “embotar os

sentidos, sem nunca conseguir satisfazer a seus fanáticos adoradores”.26 O destino

comum de Argentina e Brasil, ligados fatalmente às incertezas dos mercados

internacionais, era material cotidiano nas paródias da imprensa satírica, com suas

ilustrações em que apareciam caricaturas de ingleses que, luzindo suas costeletas

inconfundivelmente britânicas, sorviam o ouro argentino. Em um número da revista

24 ROCCHI, Fernando. “El péndulo de la riqueza: la economía argentina en el período 1880-1916”. In: LOBATO, Mirta (Comp.). El progreso, la modernización y sus límites. Nueva Historia Argentina, vol. 5. Buenos Aires: Sudamericana, 2000, p. 37-40. 25 Sobre o “encilhamento”, ver: SCHULZ, John. A crise financeira da abolição, 1875-1901. São Paulo: Edusp, 1996, p. 75-100. 26 QUESADA, Ernesto. “Discurso pronunciado por el doctor Ernesto Quesada, con motivo de fundarse la Asociación de los Hombres de letras del Brasil”. Nueva Revista de Buenos Aires, año III, tomo 8, Buenos Aires, Imprenta y Librería de Mayo, 1883, p. 477. Sobre as consequências da crise de 1890 e a “especulação desenfreada”, ver do mesmo autor: QUESADA, Ernesto. Dos novelas sociológicas. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1892. p. 7-8.

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portenha Don Quijote, o presidente brasileiro Deodoro da Fonseca aparecia gordo e

inflado pela emissão monetária, enquanto um burro argentino gargalhava gritando

“como a mí te pondrá el oro”.

Caricatura de Deodoro da Fonseca

Fonte: Don Quijote, Buenos Aires, 15 de Fevereiro de 1891.

Nos anos imediatamente posteriores à crise, produziram-se relatos ainda mais

suculentos sobre a voracidade da cobiça nas grandes cidades. Rio de Janeiro e

Buenos Aires não apenas haviam se convertido em capitais republicanas e

cosmopolitas, mas também no epicentro das especulações bursáteis. Não é casual que

a Bolsa de Comércio fosse o lugar referido como metonímia de todos os males e o

cenário de narração de romances que ofereciam uma espécie de assimilação literária

da crise. Em primeiro lugar, La Bolsa, um folhetim que apareceu no jornal La Nación

entre agosto e outubro de 1891, escrito por um autor até então desconhecido, José

María Miró, com o pseudônimo de Julián Martel.27 Este romance se destacou entre

uma produção narrativa vertiginosa que a crítica literária argentina chamou

27 MARTEL, Julián. La Bolsa. Estudio social. Buenos Aires: Imprenta Artística Buenos Aires, 1898, p. 173.

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precisamente “ciclo da bolsa” e que compreende outras obras como Quilito de Carlos

María Ocantos e Horas de fiebre de Segundo Villafañe, todas publicadas em 1891,

que tiveram sempre o motor da trama na ânsia de obter dinheiro.28

Nesse mesmo ano, apareceu L´Argent, romance inspirado na quebra do banco

francês Union Général, em que Émile Zola dramatizava os efeitos devastadores da

especulação e reconstruía o ambiente das altas finanças em Paris. Sem atribuir a este

romance uma influência modeladora sobre aqueles que abordaram a mesma

problemática em outros países, alguns estudos preferiram ver aí a emergência de um

corpus de “ficções financeiras” que apareceram simultaneamente com a obra de

Zola: os romances argentinos do “ciclo da bolsa”, Abismos (1890) do escritor

uruguaio Manuel Bahamonde, ou alguns anos depois O Encilhamento (1893) do

brasileiro Alfredo de Taunay, Contra la marea (1894) do chileno Alberto del Solar,

Humo (1900) do guatemalteco Enrique Martínez Sobral e The Pit (1903) do norte-

americano Frank Norris.29

Esses romances se disseminaram mundialmente para dar conta, cada um deles,

de um fenômeno global por antonomásia. Não no sentido universalista de algo que se

repete em cada parte da terra, mas de uma geografia constituída por espaços que,

ainda sendo muito distantes entre si, experimentam processos simultâneos,

instantaneidade possibilitada pelos novos meios de transporte e comunicação.30

Submersos na febre da bolsa, vários dos personagens desses romances liam nos

jornais notícias telegráficas sobre os movimentos financeiros em cidades remotas,

conscientes da nova mecânica bursátil na qual um sacolejo em qualquer bolsa do

28 Sobre esses romances, ver: LAERA, Alejandra. “Danza de millones: inflexiones literarias de la crisis de 1890 en Argentina”, Entrepasados, Buenos Aires, n. 24-25, p. 135-147, 2003. BIBBÓ, Federico. “Dinero, especulación y pobreza: las novelas de la crisis en los límites de la modernización”. In: LAERA, Alejandra (Dir.). El brote de los géneros. Historia crítica de la literatura argentina. Buenos Aires: Emecé, 2010. V. III, p. 535-553. 29 WASSERMAN, Renata Mautner. “Financial Fictions: Émile Zola´s L´Argent, Frank Norris´ The Pit, and Alfredo de Taunay´s O Encilhamento”, Comparative Literature Studies, Penn State University Press v. 38, n. 3, p. 193-214, 2001. 30 Esta ideia da emergência de uma “sociedade mundial” foi desenvolvida pelas teorias sistemáticas da globalização, ancoradas na noção de interdependência das nações. Veja um panorama dessa perspectiva em: IANNI, Octavio. Teorías de la globalización. México: Siglo XXI, 2006. p. 44-58.

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planeta podia repercutir imediatamente em outra.31 Essa circulação mundial do

dinheiro terá seu episódio mais dramático no crack de 1929, contudo seus contornos

estavam claramente delineados nesses romances financeiros do oitocentos tardio.

A “febre do ouro” provocava uma forma particular de delírio afundando os

personagens dessas ficções em uma busca desenfreada por dinheiro que sempre

terminava na ruína, econômica e somática (enlouqueciam, se enfermavam ou se

suicidavam). Por isso, esses romances continham uma forte crítica à cidade moderna

ou, melhor dito, à “vida espiritual” das metrópoles, usando uma expressão de Georg

Simmel. No mesmo momento em que se publicavam romances bursáteis, Simmel

colocou em prova a hipótese da “intensificação da estimulação nervosa” para

explicar a conexão entre o estilo de vida citadino e as interações monetárias. A

cidade, sede indiscutida das finanças, incrementava os processos mentais do cálculo

abstrato, incitava consumo e excitava o sistema nervoso.32 A essa dimensão

neurológica da modernidade aludia Taunay em seu relato sobre a Bolsa de Comércio

do Rio de Janeiro: “a questão principal para os augures lá dentro dos bastidores era

agitarem freneticamente os papeis e ações, excitarem a vertigem dos ânimos e

provocarem no encilhamento nevrótico paroxismo”.33

A aceleração do ritmo da vida era também central no relato de Julián Martel

sobre a crise argentina. No romance, um advogado de origem inglesa se entrega aos

negócios especulativos da bolsa, enriquecendo-se de maneira superlativa. Conseguiu

comprar uma mansão na glamorosa Avenida Alvear e se relacionava com toda a alta

sociedade portenha. Associado a uns estelionatários obscuros, criam algo que

denominam “Sociedade Enganadora”, para lucrar com ações da venda de terras,

difundir rumores falsos na bolsa, aumentar seu valor e logo vendê-las por um preço

31 Taunay, por exemplo, inclui no relato o texto de um telegrama publicado na imprensa carioca, anunciando uma nova companhia de pesca nos Mares do Sul. “estourou o telegrama como uma bomba na bolsa do Rio de Janeiro e as ações da companhia tão favorecida pularam logo a $60”. TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891 e 1892. São Paulo: Melhoramentos, 1923. p. 258. 32 SIMMEL, Georg. “Las grandes urbes y la vida del espíritu”. In: El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 247-261. 33 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 223-224. A ideia de “modernidade neurológica” foi tratada por: SINGER, Ben. “Modernity, Hyperstimulus, and the Rise of Popular Sensationalism”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (Eds.). Cinema and the Invention of Modern Life. Berkeley: University of California Press, 1995. p. 72-99.

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inflado. Mas o crack de 1890 prejudicou o advogado até colocá-lo perto da ruína e

seus espúrios sócios desapareceram deixando numerosas dívidas. Para pagar os

credores e salvar sua honra, termina apostando o pouco que lhe resta em uma corrida

de cavalos, supostamente combinada, em que, no entanto, perde todo o seu dinheiro.

O panorama que Martel descrevia na Buenos Aires do final do século XIX bem

poderia sintetizar-se com uma frase que José Murilo de Carvalho usou para o Rio de

Janeiro desses mesmos anos: “os heróis do dia eram os grandes especuladores da

bolsa”.34 Nos romances de Martel e Taunay, a Bolsa de Comércio era uma metáfora

do colapso geral das cidades e também de sua essência trapaceira. As capitais

pareciam como grandes montagens cenográficas nas quais o dinheiro transmutava

todo o tempo (de papel e moeda a títulos e ações), exibindo seu caráter artificioso:

Tudo burlado, iludido, ilaqueado, postergado, mistificado, falsificado: o número e o nome dos subscritores; o capital integral tomado; a autenticidade das assinaturas; a prestação de contas das diretorias; [...] as atas de instalação e das assembleias gerais ordinárias e extraordinárias; o quorum dos acionistas; as transferências de títulos; [...] os balanços e inventários; as vendas e compras das próprias ações; o seu valor negociável; os fundos disponíveis; tudo, tudo serviu de base às mais grosseiras embaçadelas e patranheiras espertezas.35

Menezes, o protagonista de O Encilhamento, também investia dinheiro em

ações da bolsa impulsionado por conselho de más companhias. É que já não podia se

confiar em ninguém. Aqui apareciam exageradas muitas das denúncias que Taunay

havia antecipado em outro romance (Ouro sobre Azul, 1875), em que o ambiente

urbano da capital do Império estava marcado pela presença de medíocres burgueses

obcecados por escalar socialmente a qualquer preço, incorrendo em traições e

casamentos por mero interesse.36 O problema era que a avareza destruidora excedia

34 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 27. 35 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento, Op. Cit., p. 224-225. 36 CÂNDIDO, Antonio. “Visconde de Taunay e os fios da memória”. In: Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2000. p. 275-282. Sobre Taunay e o encilhamento ver

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agora o universo dos arrivistas rastaquoères. A febre bursátil era um

“indecorosíssimo e frenético jogo que, debaixo das mais variadas formas,

ultimamente se implantou no Rio de Janeiro e em muitos pontos do país, penetrando

no seio das melhores famílias”.37

Os adventícios cariocas e portenhos apareciam nestes romances representados

por uma burguesia desprezível, vulgar, maniacamente voltada à busca de dinheiro e

ao cultivo das aparências. Taunay zombava das formas ridiculamente estúpidas e

fúteis de imitar os costumes da aristocracia europeia. Burgueses insaciáveis,

buscadores de enriquecimento fácil e rápido, que o Visconde vinculava ao furor

republicano por transformar de súbito as velhas estruturas imperiais: tudo se

submetia à lógica imediatista do “agora e agora!”.38 Estes protagonistas do

“arrivismo usurpador”, como chamava Martel, perambulavam também pelas ruas de

Buenos Aires. Frequentavam uma cadeia de epicentros cinzentos da economia

monetária e da febre dos negócios: escritórios de leilões, agências de credores,

escritórios de advogados que se dedicavam a proteger aos especuladores, abdicando

de qualquer filosofia da justiça aprendida na universidade.39

Igualmente à Bolsa de Comércio, quase todos esses tugúrios estavam situados

na city, aquela selva de tijolos e de estridente agitação no horário comercial, onde ao

anoitecer se acendiam as luzes dos bordéis. Na topografia urbana da cidade da

cobiça, tudo girava em torno ao parasitário centro financeiro. Era o cenário inicial

dos romances sul-americanos. Esses “parasitas da riqueza” que segundo o escritor

portenho trazia a imigração “desde as regiões mais remotas” (“turcos sujos”,

“charlatões ambulantes”, “falsos mendigos”), constituíam um cenário da avareza que

se concentrava ao redor da bolsa. 40 Imã da perdição dos cariocas e fluminenses,

também: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1995. 37 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 301. 38 Idem, p. 20. Existem estudos sobre esses conflitos entre aristocratas e adventícios para as capitais de Argentina e Brasil na Belle Époque: NEEDELL, Jeffrey D. A Tropical Belle Époque: Elite, Culture and Society in Turn-of-the Century Rio de Janeiro. Princeton: Princeton University Press, 1987. p. 82-115. LOSADA, Leandro. La alta sociedad en la Buenos Aires de la Belle Époque. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008. p. 319-340. 39 MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 173. 40 Idem, p. 7.

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vistos por Taunay como “enorme massa passiva e hipnotizada nas mãos de quatro ou

cinco dezenas de ávidos bolsistas”, todos caiam sucumbidos por investir em ações de

novas e duvidosas empresas que “surgiam como irisados e radiantes cogumelos após

chuvas”.41

A multidão congregada no centro bursátil representava o mesmíssimo

emaranhado da cidade fenícia, “mar revolto em que se misturam e confundem todas

as classes”, opinava Martel, “desde a mais alta até a mais abjeta”.42 O faustuoso

banqueiro e o proprietário rico caminhavam junto ao humilde intermediário, o

aventureiro descarado e o agiota insaciável. “Todas as classes da sociedade

misturadas”, assinalava Taunay, “senadores, deputados, médicos de nota ou sem

clínica, advogados bem reputados ou desprestigiosos, magistrados de fama, militares,

um mundo de desconhecidos, outros infelizmente demasiado conhecidos”.43 Nesse

universo confuso, o prestígio que outorgava o dinheiro se impunha ante qualquer

linhagem e misturavam-se todos os idiomas, entrelaçados pelo vocabulário comum e

internacionalista do argot da bolsa.

Esses romances protestavam contra os novos costumes e, por sua vez,

revelavam que as fraudes e a simulação não eram vícios exclusivos dos ladrões

propriamente ditos. Os falsários, os vigaristas e os impudicos “traficantes de carne

humana” eram comparados aqui com as imoralidades dos novos ricos, os trabalhos

sujos elaborados nas elegantes corridas do hipódromo, os sportmen que traíam uns

aos outros, as vivezas dos corredores da bolsa. Denunciavam, em suma, a atitude

acolhedora com que a alta sociedade financeira recebia estes adventícios

inescrupulosos, a esta “multidão de especuladores, celebridades de um dia, formadas

do nada graças as colossais e fáceis operações bursáteis”.44

Os escritos dos policiais davam conta de um análogo temor ante a proliferação

de figuras quase-criminosas, nascidas deste mesmo apetite pelo lucro. O delegado

Vicente Reis, por exemplo, advertia sobre a necessidade de punir aos “compradores

41 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 20; 235. 42 MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 11. 43 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 16. 44 MARTEL, Julián. La Bolsa. Op. Cit., p. 152.

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de roubos e furtos, para os quais as leis em vigor são de uma brandura irrisória”. A

esses personagens dava o nome de receptadores, uma “corja daninha que estende seu

manto protetor sobre a gatunagem”.45 Junto aos compradores de coisas roubadas,

apareciam outras figuras que os policiais desvendavam, como o advogado de gatunos

e, em especial, o agiota:

Como abutres famintos, estes usurários ao 100/100, chegam em bandos ao Departamento Central nos dias de pagamento de salários. Para estes lobos insaciáveis, devem fechar as portas da Casa Grande, se não deseja ver os empregados e agentes capturados nas redes sinistras desses eternos abusados, que ainda estando à margem da lei, desenvolvem tranquilos suas nefastas atividades.46

Esta nota da revista portenha Magazine Policial advertia aos próprios

vigilantes de rua que evitassem ser seduzidos pelos agiotas, “praga mais perniciosa

que as dos cafetões, búzios, curandeiros, ladrões, jogadores”, e que apareciam às

dezenas, impunemente, anunciando-se nas listas telefônicas.47 Em um tom

paternalista, os policiais escritores chamavam frequentemente a atenção sobre um

fenômeno que no início do século XX imaginavam incontrolável. Do mesmo modo

que as especulações bursáteis, a usura era “explorada infamemente por elementos

importados ou pelos seus próprios filhos corrompidos em um ambiente de tramoias”,

e até as pessoas “de tradição e ancestralidade, nascidas de famílias ilustres”,

sucumbiam à tentação de emprestar dinheiro com más intenções.48 O sórdido agiota,

especialmente o credor judeu,49 acabava junto ao jogador desenfreado, o advogado

45 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 7-10. 46 “Los usureros”, Magazine Policial, Buenos Aires, Año 2, n. 9, abr. 1923, p. 41. 47 “La usura en Buenos Aires. Crecimiento prodigioso de los Bancos de Préstamo”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año III, n. 88, 4 mar. 1913, p. 23. 48 “La usura en Buenos Aires”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año III, n. 100, 27 may. 1913, p. 8-12. A condenação moral dos usurários, pela revista, chegou até o ponto de justificar a ação de uma mulher que assassinou um agiota. Ver: “Bajo las garras del águila negra. Las víctimas de la usura”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año III, n. 104, 24 jun. 1913, p. 12-16. 49 Nestas notícias sobre a usura se criticava o credor judeu, mencionado também nos romances de Martel e Taunay. Ver: BAGÚ, Sergio. “Julián Martel y el realismo argentino”, Comentario, Buenos Aires, oct. 1956, p. 9-15. Um antissemitismo ainda mais violento aparece em um livro dedicado

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inescrupuloso e o financista corrupto, engrossando as fileiras da aristocracia criminal

nestas cidades da cobiça.

Uma Belle Époque delitiva

Os romances bursáteis realizavam uma crítica que não se centrava nos vícios

da plebe nem das chamadas “classes perigosas”. Embora o cenário narrativo fosse

totalmente metropolitano, os cortiços, prostíbulos e tugúrios do submundo brilhavam

por sua ausência. Seu lugar era ocupado por entidades bancárias, salões de baile,

clubes e hipódromos, portadores de uma forma diferente de imoralidade. Nesse

território, a Bolsa de Comércio era o eixo nevrálgico de todos os males ou, em

palavras de Taunay, o “centro miasmático” do qual emanavam todas as pestilências

da febre do ouro.50 A literatura modernista do século XIX soube elaborar um relato

crítico do culto ao dinheiro e o consumo desenfreado, instalando uma suspeita sobre

o próprio caráter civilizatório das grandes cidades.51

As metrópoles sucumbiam à “febre imoderada dos desejos” e suas estruturas

rachavam ante uma cobiça que, segundo o criminologista Miguel Lancelotti, estava a

beira das práticas criminosas. “As quebras fraudulentas, as falsidades de toda

espécie” não tinham para ele outra explicação que “essa forma especial da vaidade

humana que se traduz no amor ao luxo, ao toilette, às exibições aparatosas e

deslumbrantes”.52 Por isso advertia que a civilização moderna havia acarretado um

tipo peculiar de miséria que não se esgotava nos infortúnios da pobreza. Esta

integralmente à usura, escrito por um oficial da polícia portenha: BARRÉS, Manuel. Males sociales. Buenos Aires: Imprenta López, 1939. 50 TAUNAY, Visconde de. O Encilhamento. Op. Cit., p. 301. 51 SCHORSKE, Carl E. “The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spengler”. In: HANDLIN, Oscar; BURCHARD, John (Eds.). The Historian and the City. Cambridge: The MIT Press, 1966, p. 103-104. Ver também: SCHORSKE, Carl E. La Viena de fin de siglo: política y cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2011. 52 LANCELOTTI, Miguel A. “El factor económico en la producción del delito”, Criminalogia Moderna, Buenos Aires, Año III, n. 16, feb. 1900, p. 496.

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“miséria dourada” alcançava a todos os estratos da alta sociedade, disposta a

“recorrer a artifícios ilícitos e ilegais” para satisfazer seus inescrupulosos luxos.

Durante a Belle Époque, os cronistas da imprensa portenha e carioca

ofereceram imagens de cidades certamente preocupadas com a ostentação. Se Paris

era o modelo a seguir, a modernização chegou muito mais cedo a Buenos Aires, em

meados da década de 1880, quando o prefeito Torcuato de Alvear iniciou uma série

de inovações cirúrgicas que lhe valeu o nome de “Haussmann argentino”.53 A

abertura da Avenida de Mayo, grande bulevar de inspiração parisiense, com suas

largas calçadas e seus cafés afrancesados, avançou graças à demolição de uma parte

do centro colonial.54 Logo da inauguração, em 1890, foram sendo construídos, ao seu

redor, hotéis luxuosos desenhados por arquitetos europeus e, com o tempo, a avenida

se converteu em um verdadeiro postal da modernidade portenha.

Também se destacava Florida, a rua das lojas mais sofisticadas, que em 1900

recebeu o presidente Campos Sales com uma deslumbrante instalação de iluminação

elétrica. Se prestarmos a atenção aos relatos de brasileiros que viajaram a Buenos

Aires nas três primeiras décadas do século XX, além de reafirmar a fama de cidade

europeia, sobressai admiração que provocava sua fachada mais aristocrata. “A capital

platina caracteriza a sua equiparação aos grandes centros cosmopolitas do globo:

seus hotéis são monumentos” escrevia Arthur Dias, jornalista integrante da comitiva

que acompanhou a Campos Sales em sua visita.55 Inclusive Mario Cattaruzza, em um

livro que construía uma visão muito mais crítica de sua estadia na Argentina, opinava

que ao lado da Avenida de Mayo, “os grandes boulevards de Paris não têm nada de

superior”.56 A mesma impressão teve outro jornalista em 1916, quando viajou junto

53 Embora o mito da cidade europeia estivesse fortemente ligado às reformas de Alvear, a inspiração francesa na trama urbana de Buenos Aires existia desde muito antes. Uma genealogia desse mito pode se encontrar em: GORELIK, Adrián. “¿Buenos Aires europea? Mutaciones en una identificación controvertida”. In: Miradas sobre Buenos Aires: historia cultural y crítica urbana. Buenos Aires: Siglo XXI, 2004, p. 71-94. 54 BRAUN, Carla; CACCIATONE, Julio. “El imaginario interior: el intendente Alvear y sus herederos. Metamorfosis y modernidad urbana”. In: VÁZQUEZ-RIAL, Horacio (Dir.). Buenos Aires, 1880-1930. La capital de un imperio imaginario. Madrid: Alianza, 1996, p. 32-71. 55 DIAS, Arthur. Do Rio a Buenos Aires. Episódios e impressões d´uma viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1901, p. 90. 56 CATTARUZZA, Mario. Buenos Aires: aspectos da cidade, o Congresso Pan-Americano. Rio de Janeiro: s/n, 1906, p. 24.

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com uma delegação diplomática encabeçada por Rui Barbosa para assistir os festejos

pelo centenário da Independência. “Há certamente em Buenos Aires um pouco de

ostentação de riqueza”, concluía após um passeio pela Avenida Alvear, Palermo e

seu Hipódromo, cujos passeantes lhe outorgavam “um aspecto tão distinto como as

dos prados de Paris e Londres”.57 Por último, Luiz Amaral revelava em 1927 a

persistência deste olhar:

Luxa-se muito em Buenos Aires. Os homens apuram os trajes, exigindo grandes esforços dos alfaiates. As senhoras ostentam-se engalanadas com os melhores tecidos e demonstram gosto apurado. É muito importante a indumentária na capital portenha. A falta de elegância deixa qualquer pessoa em situação de desprezível inferioridade. À primeira vista, tem-se a impressão de que em Buenos Aires só vivem milionários.58

Mas ao contrário do que sugeria o relato de Arthur Dias, neste momento o Rio

de Janeiro não parecia estar tão atrasado em suas pretensões de metrópole moderna.

Igual a Buenos Aires, havia passado comodamente a faixa de um milhão de

habitantes e podia se orgulhar de ter seu próprio Haussmann: sob a mesma

racionalidade política que orientou as reformas urbanas de Paris e Buenos Aires

(edificar uma cidade moderna a partir dos seus escombros), o prefeito Francisco

Pereira Passos iniciou uma série de demolições no velho centro, prolongando ruas e

abrindo amplos bulevares.59 A glamorosa Avenida Central inaugurada em 1905 nada

tinha que invejar sua antecessora portenha com seus edifícios de estilo eclético que

se construíram ao longo de seu trajeto.

57 BRANT, Mario. Viagem a Buenos Aires. Rio de Janeiro: Tip. Martins de Araujo & Cia., 1917, p. 70. 58 AMARAL, Luiz. A mais linda viagem. Um “raid” de vinte mil kilómetros pelo interior brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1927, p. 51. 59 BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos, um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992.

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“Avenida Central” (Rio de Janeiro, 1906) Fotografia de Augusto Malta

Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

“Buenos Aires. Os Palácios da Avenida de Mayo” Fonte: Arthur Dias, Do Rio a Buenos Aires, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1901, p. 90.

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Era precisamente o aspecto ostentoso que envolvia estas artérias e seus

aristocratas caminhantes o que incomodava a alguns escritores, fundamentalmente

aos críticos das políticas urbanas que modernizavam expulsando as classes populares

do centro. Era o caso de Lima Barreto: em 1915, condenava essas “elegâncias

idiotamente binoculares” que se multiplicavam junto com os bulevares. Para este

flâneur dos subúrbios cariocas, o Rio de Janeiro corria atrás da ilusão de parecer a

Paris ou, o que era ainda pior, a versão sul-americana de Paris. “A obsessão de

Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas”, insistia enfurecido

ante as fantasias de imitar a essa cidade de longas ruas retas, realidade que julgava

impossível para a geografia local interrompida por gigantescos morros.60 Por isso

ironizava sobre os discursos que enalteciam a “rainha do Prata”, essa “verdadeira

capital europeia”, essa cidade tão “limpa, bonita, elegante”, frente a qual o Rio de

Janeiro ficava reduzido a uma mísera “estação de carvão”.61 Edificar uma cidade

europeia as custas da destruição e negação de outra cidade que agora sobrevivia nos

subúrbios da capital: essa era a denúncia dirigida por Lima Barreto contra o culto às

aparências.

Mas Buenos Aires também teve seus cronistas maldizentes da Belle Époque.

Inclusive no momento de maior otimismo, em plenos festejos pelo primeiro

Centenário da Revolução de Maio, enquanto ilustres visitantes franceses, como

Georges Clemenceau ou Jules Huret, estavam cheio de elogios em relação à

Argentina, o jornalista espanhol Miguel Toledano (com pseudônimo de Miguel Gil

de Oto) chamava o país de “nação da quimera e da mentira”.62 Para Toledano,

Buenos Aires vivia um “delírio de grandeza”, imensa mise-en-scène pronta para

desmoronar-se em pedaços a qualquer momento. O suporte era, por enquanto, essa

60 BARRETO, Lima. “A Volta”, In: Toda crônica. Vol. 1 (1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 166. 61 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 136. 62 GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2010, p. 151. Sobre Buenos Aires e os festejos do Centenário, ver: SALAS, Horacio. “Buenos Aires 1910: capital de la euforia”. In: GUTMAN, Margarita; REESE, Thomas (Eds.). Buenos Aires 1910: el imaginario para una gran capital. Buenos Aires: Eudeba, 1999, p. 41-54.

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grande montagem construída sobre o luxo fictício, por uma aristocracia rural que da

crise de 1890 não havia podido extrair nenhuma lição.

Argentina é um país onde a confiança e o crédito são a base e essência da prosperidade e da vida. O governo, os bancos, os comerciantes atacadistas, os bolicheros, os grandes fazendeiros, os pequenos capitalistas, os empregados, o operário, em uma palavra, todos, necessitam inspirar confiança e conseguir empréstimos. Nada mais lógico, portanto, que o governo, o comércio, as indústrias, os que têm algo e os que carecem de tudo, necessitam fingir um bem-estar que não gozam, para conseguir grana em relação com sua aparente solvência. O dinheiro, como a mulher, não se entrega aos ousados e os astutos.63

Algo não se pode negar: desde Julián Martel até Alfredo de Taunay, desde

Lima Barreto até Gil de Oto, a inquietação pelos modos de circulação do dinheiro

nas cidades estava vinculada à questão da “simulação”. Na Argentina, converteu-se

em um verdadeiro tema de época, tratado com igual fervor em textos científicos de

criminologia e ensaios de interpretação nacional. A onda imigratória havia

convertido Buenos Aires em um cenário de interações entre desconhecidos, uma

massa confusa em que se misturavam todos os tipos de sujeitos. Assim imaginava

José María Ramos Mejía, em Las multitudes argentinas, quando descrevia esta

tipologia de arrivistas na qual despontavam duas variedades dos chamados

guarangos: o canalha (“que ascendeu pela escada do bom vestir ou do dinheiro”) e o

burguês (“milionário improvisado nascido do sortilégio da loteria”).64 Mais

preocupado ainda se mostrava Manuel Gálvez sobre a simulação: o argentino era

“superficial e exibicionista, tem a arrogância do ignorante metido e pratica um

arrivismo desenfreado, ostentando seus desejos de rastaquouère e sua forçada

teatralidade”.65

Os “vícios da cosmopolita Buenos Aires” faziam da cidade um teatro de

simulações em que se usavam “todos os meios fraudulentos possíveis”: para Gálvez,

63 GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Op. Cit., p. 44-45. 64 RAMOS MEJÍAS, José M. Las multitudes argentinas. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1899, p. 320. 65 GÁLVEZ, Manuel. El diario de Gabriel Quiroga. Opiniones sobre la vida argentina. (1910). Buenos Aires: Taurus, 2001, p. 122.

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simulavam-se o talento, a honestidade, os vínculos sociais e políticos, a riqueza, o

estudo, a fortuna com as mulheres, a fama literária ou científica.66 A sombra do

adventício atravessava todas as conversações do patriciado portenho, se infiltrava em

bailes e revelava que seus espaços de sociabilidade eram mais permeáveis do que a

elite desejava. De fato, apesar de um dos seus filhos prediletos, Miguel Cané, sugerir

maliciosamente que reconhecia os adventícios nos salões porque entravam

“tropeçando com os móveis”, os contornos da alta sociedade eram certamente mais

borrados.67

Assim entendeu um espanhol que chegou a Buenos Aires em 1912, disposto a

desfrutar de sua afamada vida noturna. O “Conde Terol de Palma” havia tomado no

porto de Vigo o vapor Cap, ocupando um luxuoso apartamento de primeira classe

junto a duas mulheres, aparentemente sua esposa e sua sobrinha. O cronista da

revista Sherlock Holmes conta que, desde a viagem, já começou a fazer bons contatos

com cavalheiros portenhos, ante os quais demonstrou “atitudes de causeur e

esportista insuperável”. Chegado a Buenos Aires, instalou-se em um dos melhores

hotéis da Avenida de Mayo e, pouco depois, embarcou as mulheres que o

acompanhava com destino ao Peru, onde dizia ter ações em minas de metais

preciosos. Nesse momento, iniciou uma conquista da noite portenha que, graças à sua

vestimenta e a certo ar de nobreza europeia, abriu-lhe as portas dos grandes salões.

Aí se mostrou pouco preocupado com o que gastava, comprou custosos presentes a

cantoras de cabaré e perdeu fortunas nas mesas de jogos dos clubes.68

Talvez esse caso nunca tivesse repercutido se um empregado do hotel não o

descobrisse uma noite, depois das três da madrugada, tentando roubar o quarto de

outro hóspede. Na realidade, o suposto Conde era o que os franceses chamavam de

“ rat d’hôtel”, ladrão especializado em desfalcar habitações do próprio lugar em que

se hospeda. O criminalista Edmond Locard o definia como um delinquente com

66 Idem, p. 122-123. Esta visão ampla da simulação também aparece em INGENIEROS, José. La simulación en la lucha por la vida. Buenos Aires: Spinelli, 1903. 67 CANÉ, Miguel. “De cepa criolla” (1884). In: Prosa ligera. Buenos Aires: La cultura argentina, 1919, p. 124. 68 “Los bribones aristocráticos”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 68, 15 oct. 1912, p. 22-25. Outro exemplo, neste caso chego da Alemanha, em: “Notas del extranjero. Aristócrata ladrón”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 75, 3 dic. 1912, p. 59.

Page 106: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

95

aparências de verdadeiro “homme du monde”, habituado a chegar a destinos com

malas cobertas dessas etiquetas de cores que indicavam a frequentação dos hotéis

mais luxuosos da Europa.69 A imprensa fez eco deste curioso ladrão aristocrata, uma

“encarnação do banditismo cavalheiresco” que o cronista imediatamente associava a

essa “malandragem de alto tom que desfilava ante os olhos atônitos dos espectadores

de cinematógrafos”.70 Na realidade, os delinquentes gentleman alcançariam uma

fama especial na indústria do cinema, em que se trasladou a devoção da literatura do

novecentos pelos assassinos seriais, estelionatários e ladrões viajantes que faziam uso

dos mais modernos transatlânticos, telégrafos e, a partir do século XX, também de

telefones, automóveis e aeronaves.

Fantômas foi, sem dúvidas, a série mais famosa e – como mostrou Dominique

Kalifa – em seu êxito estava cifrada uma mutação na topografia dos imaginários

criminais. Paris estava perdendo sua condição de capital mundial da ladroagem, não

apenas pela emergência dos Estados Unidos e seus gangsters, mas também pela

aparição de inumeráveis histórias que falavam de um universo mais policêntrico, um

espaço mundializado com gatunos que passeavam suas ações por vários

continentes.71 No entanto, apesar da complexidade da relação entre as representações

do crime e o seu devir concreto como prática social, abundam os indícios sobre a

existência destas novas formas delitivas, além de suas manifestações literárias e

cinematográficas. Embora frequentemente incorram em excessos e dramatizações

monumentais, jornalistas e literatos davam conta de algumas mutações efetivas nas

trajetórias criminais.

O rato de hotel era uma das figuras estereotípicas do ladrão viajante, junto ao

punguista internacional, o falsificador e alguns vigaristas. Além de certo nível de

mobilidade territorial, era identificado por duas qualidades, que, ao mesmo tempo, o

separava do universo dos pequenos punguistas urbanos. Em primeiro lugar, o aspecto

físico, em particular a vestimenta: “o ladrão dos nossos dias é um tipo como qualquer

um de nós”, opinava o escritor brasileiro Elysio de Carvalho, já que “vestindo-se

69 LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Paris: La Renaissance du Livre, 1925, p. 100-104. 70 “Los bribones aristocráticos”, Op. Cit., p. 22. 71 KALIFA, Dominique. “La fin des classes dangereuses? Ouvriers et délinquants dans la série Des Fantômas (1911-1913)”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris: Perrin, 2005, p. 116-129.

Page 107: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

96

com apurada elegância” conseguia “todas as aparências de um verdadeiro

gentleman”.72 Similar impressão causava ao delegado Alberto Dellepiane o

canfinflero, palavra da gíria portenha que aludia aos exploradores de mulheres. O

policial arremetia contra este personagem, cuja elegância não negava, dirigindo

igualmente seu discurso a uma cidade que apenas exigia construir um semblante

atraente, apresentar ante o olhar dos demais como “elementos triunfadores” e, no

possível, “sem ostentar o menor sinal de pobreza, único e exclusivo sinal que a

sociedade rejeita”.73

“El Canfinflero” Fonte: Sherlock Holmes, Año II, n. 58, Buenos Aires, 6 ago. 1912, p. 29.

72 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 143. 73 DELLEPIANE, Alberto. “El canfinflero”, Sherlock Holmes, Buenos Aires, Año II, n. 58, 6 ago. 1912, p. 29. Ver também: MARIUS, Hugo, “Plagas sociales. El canfinflero”, Revista de Policía, Buenos Aires, Año XV, n. 357, 1 abr. 1912, p. 186.

Page 108: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

97

A segunda qualidade distintiva dos criminosos viajantes era dada pelos seus

modos. Certo physique du rôle delicado era necessário para ingressar em hotéis sem

inspirar desconfiança, estabelecer conversações na primeira classe dos transatlânticos

ou se aproximar de um cavalheiro para propor algum negócio. No Brasil, inclusive,

vários deles ostentavam o título de “doutor” como forma de iniciar alguns dos

múltiplos pseudônimos que acompanhavam uma carreira delitiva. “Dr. Antônio” era

o nome mais conhecido de Arthur Antunes, um rato de hotel que passou à fama

porque publicaram suas memórias.74 Dr. Anísio e Dr. Cornélio eram outros dos

ladrões a quem Carvalho chamava de “moços bonitos” quando em 1913 anunciava –

com certo ar de paródia – que haviam acabado os tempos dos “ladrões de galinhas,

sujos e repelentes”.75 Ainda na década de 1930 se viam os retratos de José Augusto

Braga (Dr. Braguinha) e Paulo Alves Ferreira (Dr. Junqueira) vestidos com elegantes

trajes em uma galeria fotográfica de ladrões cariocas.76

O Dr. Antônio e o falso Conde Terol de Palma, do mesmo modo que o

esquartejador Raoul Tremblié, a quadrilha de ladrões viajantes italianos e outros

tantos personagens cujas histórias iremos reconstruindo neste trabalho não

integravam as fileiras dos desclassificados da modernidade, essas “classes perigosas”

que, junto aos anarquistas e comunistas, pareciam monopolizar a atenção das polícias

latino-americanas. Se seu status social era difícil de definir, não se pode duvidar da

atitude blasé frente às lutas políticas. De todos eles, pode-se repetir o que se disse da

camorra, Al Capone e os pistoleiros de Chicago: “em geral, para eles eram

indiferentes os movimentos revolucionários”.77 Ao contrário, sem ser burgueses nem

proletários, dedicavam-se a aproveitar das estupendas oportunidades delitivas que o

estilo de vida capitalista e urbano faziam possíveis, condição que provavelmente os

relegou a uma categoria residual para a sociologia e a história.

74 DR. ANTÔNIO. Memórias de um rato de hotel. A vida do “Dr. Antônio” narrada por ele mesmo. Rio de Janeiro: s/d, 1912. 75 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 58-65. 76 Ver os retratos, sem numeração de páginas, ao final do livro: PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática (seguida de uma galeria dos principais habitués das prisões do Distrito Federal). Rio de Janeiro: Ed. da Gazeta Policial, 1935. 77 ENZENSBERGER, Hans M. “La balada de Chicago: modelo de una sociedad terrorista”. In: Política y delito. Barcelona: Seix Barral, 1968, p. 105.

Page 109: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

98

De qualquer maneira, devemos ser cautelosos em um ponto: que se haja

prestado escassíssima atenção a esta sorte de Belle Époque do crime, não implica que

os contemporâneos tivessem poucas notícias sobre o fenômeno. Junto aos poeirentos

papéis dos arquivos policiais, muitos são os documentos impressos que testemunham

a existência desta aristocracia do roubo tão frutífera no início do século XX e, além

disso, as vozes não são desconhecidas. Cronistas prestigiosos na imprensa carioca,

como Elysio de Carvalho e João do Rio, narraram tantas histórias de ladrões

viajantes, como os argentinos Eduardo Gutiérrez, Fray Mocho ou Roberto Arlt, e

nenhum deles o fez com uma frase tão requintada como a que o poeta Olavo Bilac

escreveu para a Gazeta de Notícias de 10 de novembro de 1907:

Nesta época de hiper-civilização, em que os gatunos e os meliantes de toda espécie deixam de ser maltrapilhos e pés-no-chão, e apresentam-se como cavalheiros de mais fina sociedade, seria injusto que não lhes déssemos uma polícia digna deles, uma polícia tão... (como é que se diz agora?)... tão smart, tão dernier bateau, tão up-to-date como eles.78

78 BILAC, Olavo. “Crônica. 10 nov. 1907”, In: DIMAS, Antonio (Ed.). Bilac, o Jornalista. Crônicas. Vol. 1. São Paulo: Edusp/Unicamp, 2006, p. 850.

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PARTE II

TECNOLOGIAS E CIRCULAÇÕES

Page 111: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

As polícias estrangeiras

Às nações poderosas, enquanto não haja um

congresso supremo do mundo, está

encomendada a polícia da terra.

Domingo F. Sarmiento, Viajes (1846).1

Em 1902, a editora “Sáenz de Jubera Hermanos” lançou no mercado espanhol

um novo livro de Marie-Françoise Goron: Las policías extranjeras.2 Goron era um

famoso chefe da Brigada de Segurança francesa, mais conhecida como Sûreté, que

depois de seu afastamento da polícia virou um prolífico escritor, celebrizado em

diferentes países por suas memórias policiais, das quais a editora espanhola traduziu

e publicou vários volumes.3 Impresso em Madri, o exemplar que consultamos

sobrevive na Biblioteca da Polícia Federal Argentina e era um dos tantos livros que

circulavam na América Latina desde o século XIX, divulgando formas de

organização das burocracias policiais europeias. De fato, a biblioteca policial

portenha teve seus inícios em 1875 com uma pequena coleção de obras francesas,

espanholas e italianas, que despertou o interesse dos agentes mais eruditos. Aos

textos europeus em suas versões originais e às edições espanholas, somaram-se

algumas traduções feitas de forma artesanal por policiais argentinos. Um catálogo

1 SARMIENTO, Domingo F. Viajes por Europa, África i América, 1845-1847. Madrid: Edición Crítica ALLCA XX, 1996, p. 35. 2 GORON, Mr. Las policías extranjeras. Madrid: Sáenz de Jubera Hermanos, 1902. 3 Sobre as memórias policiais como prática de escrita, ver: KALIFA, Dominique. “Les mémoires de policiers: l’émergence d’un genre?”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris: Perrin, 2005, p. 66-103; e os trabalhos reunidos em: MILLIOT, Vincent (dir.). Les mémoires policiers, 1750-1850. Écritures et pratiques policières du Siècle des Lumières au Second Empire. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2006.

Page 112: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

101

publicado em 1929 já indicava a existência de um rico acervo com milhares de

livros, folhetos e revistas especializadas.4

Ainda que por intuição se associe a polícia com o uso da força, como uma

atividade eminentemente muscular, o certo é que ela constitui, antes que nada, um

saber: conhecimento sobre o território, seus habitantes e seus costumes. A “cultura

policial” foi assinalada por sociólogos e historiadores como um dos nós centrais para

entender esta instituição, muito mais que sua organização formal e seus fundamentos

jurídicos.5 Essa cultura tem, ao menos, duas dimensões entrelaçadas. Em primeiro

lugar, ela existe cristalizada em aquilo que os policiais exibem orgulhosamente como

a “experiência”, um savoir-faire informal, aprendido nos anos de carreira e nas suas

escolas prediletas (a delegacia e a rua). Em segundo lugar, existe também refletida

em um saber técnico, frequentemente chamado “científico”, de corte erudito,

transmitido através de livros, manuais, revistas e, a partir do século XX, ensinado por

professores nas academias de polícia.6

Tanto na Argentina como no Brasil esta segunda forma cultural teve seguidores

e diferentes vias de difusão. A Polícia de Buenos Aires foi pioneira neste sentido,

visto que desde a década de 1870 se nota a reprodução de uma verdadeira linhagem

de policiais escritores que lançaram os primeiros periódicos policiais da região. La

Revista de Policía e sua continuação Anales de Policía (1871-1872) iniciaram uma

série que – com algumas breves interrupções – se estendeu até a primeira metade do

século XX. O maior de todos estes empreendimentos, Revista de Policía (1897-

1939), foi publicada quinzenalmente durante mais de quarenta anos e se consolidou

4 POLICIA DE LA CAPITAL. Oficina General de Estadística y Biblioteca: Catálogo General de la Biblioteca. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Policía, 1929. 5 Ver REINER, Robert. The Politics of the Police. London: Wheatsheaf, 1992, p. 107-137. MONJARDET, Dominique. Ce que fait la police: sociologie de la force publique. Paris: Éditions La Découverte, 1996, p. 155-165. 6 Estas duas dimensões refletem os significados da noção de cultura aos que se referem Pierre Bourdieu e Roger Chartier: a cultura em sentido amplo, “sem qualidades”, ou seja, o conjunto de práticas que dão conta do modo em que um grupo representa o espaço social e seu próprio papel dentro dele, e a cultura “distinguida” como aquela à qual atribuímos um sentido refinado, não apto para profanos, cuja compreensão profunda está reservada aos especialistas. Ver CHARTIER, Roger; BOURDIEU, Pierre. “A leitura: uma prática cultural”. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 231-253. Também: CHARTIER, Roger. El orden de los libros. Lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVII. Barcelona: Gedisa, 2005, p. 19-22.

Page 113: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

102

como a tribuna de opiniões iniludíveis para qualquer debate policial. Nesta

publicação, se difundiam os textos dos principais escritores da polícia portenha

(autores como Antonio Ballvé, Leopoldo López, Manuel Mujica Farías, Luis Albert

o Ernesto de Mendizábal), que ainda se preocuparam por sistematizar esses

conhecimentos em manuais de estudo e livros de instrução para os vigilantes.7

No Rio de Janeiro, existiram algumas publicações análogas, embora tenham

aparecido mais tardiamente e publicadas por períodos mais breves.8 A primeira delas,

a Revista Policial (1903-1904), foi lançada por um pequeno grupo de policiais

militares, integrantes da então denominada Brigada Policial. A revista tinha algumas

semelhanças com a portenha, principalmente o fato de estar orientada à leitura dos

agentes subalternos. Uma boa parte dos artigos visava melhorar a educação dos

soldados, insistindo sobre os hábitos de higiene, o correto uso do uniforme, os bons

modos no trato com o público e o respeito às hierarquias internas da instituição.9 Não

eram poucas as críticas que a imprensa jornalística dirigia contra os vigilantes de rua

por sua falta de cortesia, suas indisciplinas e tendências ao jogo e ao álcool. Em

suma, por diferenciar-se muito pouco dos costumes daqueles setores populares que

supostamente deviam controlar.

Era difícil para a Brigada Policial lutar contra essas inclinações, porque os

soldados – como escrevia um redator da revista – provinham “dessa própria camada

social, densa e inculta, que constitui o proletariado da nossa terra”.10 Esse problema

7 Por exemplo: MENDIZÁBAL, Ernesto de. Memento policial: o Breve manual del empleado de la policía. Buenos Aires: J. Peuser, 1897. BALLVÉ, Antonio. Manual de instrucción policial para sargentos, cabos y vigilantes. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1898. BALLVÉ, Antonio. Texto de Instrucción Policial (primera edición). Buenos Aires: La Revista de Policía, 1899. LÓPEZ, Leopoldo. Texto de Instrucción Policial. Buenos Aires, 1910. Sobre os policiais escritores de Buenos Aires ver: GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009. 8 México teve revistas policiais anteriores às de Brasil, mas também foram publicadas por breves períodos. Ver: SPECKMAN GUERRA, Elisa. Crimen y castigo. Legislación penal, interpretaciones de la criminalidad y administración de justicia (Ciudad de México, 1872-1910). México: El Colegio de México/UNAM, 2002, p. 115-136. 9 Ver sobre esta revista: BRETAS, Marcos L. “Revista Policial: formas de divulgação das polícias no Rio de Janeiro de 1903”, História Social, n. 16, Unicamp, primeiro semestre de 2009, p. 87-104. 10 C.A.C. “O soldado de polícia”, Revista Policial, Ano I, n. 3, Rio de Janeiro, 25 out. 1903, p. 21. O principal redator da revista, Cruz Sobrinho, havia publicado alguns anos antes um guia de procedimentos voltada aos agentes da Brigada: CRUZ SOBRINHO. Guia processual para a Brigada Policial. Rio de Janeiro: Pap. L. Macedo, 1896.

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103

da base social dos vigilantes de rua esteve também presente na Polícia de Buenos

Aires, durante toda a segunda metade do século XIX.11 No entanto, no início de

novecentos, o panorama começava a mudar. Aparecia as primeiras escolas de

formação de agentes e a Revista de Policía se posicionava como um aliado vital na

tarefa de educação dos vigilantes, que podiam conseguir uma assinatura especial por

trinta centavos mensais.

A existência de academias policiais em Buenos Aires era elogiada pelos

policiais civis brasileiros. Como exemplo disto, temos o fato de que uma das revistas

de maior duração, o Boletim Policial (1907-1918), anunciava, em um de seus artigos,

que os argentinos haviam criado uma escola de agentes de investigações. Nesta

instituição se ensinavam noções básicas de datiloscopia e policia científica, coisa que

o redator desta nota considerava “um certo luxo de administração e organização do

serviço policial”.12 Boletim Policial era o órgão de difusão do Gabinete de

Identificação e Estatística da Polícia do Distrito Federal, uma repartição por onde

passaram os nomes mais seletos da intelectualidade policial brasileira.

O jornalista e poeta Félix Pacheco a dirigiu desde sua criação em 1903, e logo

ocuparam a chefia o advogado Edgard Costa, autor de várias obras sobre

jurisprudência criminal, e o polifacético escritor Elysio de Carvalho.13 Este último

marcou o ritmo da revista, estabelecendo um diálogo estreito com as discussões

internacionais sobre as técnicas de identificação e polícia científica, mas

simultaneamente dando certo espaço a um saber policial mais profano e até a um

certo relato literário sobre a criminalidade, desde uma perspectiva que denominou

“história natural dos malfeitores”.14 Ao mesmo tempo, Carvalho dirigiu a “Biblioteca

11 Ver GAYOL, Sandra. “Entre lo deseable y lo posible: perfil de la policía de Buenos Aires en la segunda mitad del siglo XIX”, Estudios Sociales, Año VI, n. 10, 1996, p. 123-138. GALEANO, Diego. La policía en la ciudad de Buenos Aires, 1867-1880, Tesis de Maestría en Investigación Histórica, Universidad de San Andrés, Buenos Aires, 2009, p. 156-198. 12 “Escolas de Agentes”, Boletim Policial, Ano I, n. 3, Rio de Janeiro, jul. 1907, p. 17-18. 13 Sobre a ligação entre a elite intelectual e a polícia carioca, ver: BRETAS, Marcos L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 67-68. 14 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Ano VII, n. 4, Rio de Janeiro, abr. 1913 p. 58-65. CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 143-155.

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104

do Boletim Policial”, uma coleção de mais de trinta folhetos com textos de policiais

brasileiros e traduções de criminalistas estrangeiros.

Pouco depois do desaparecimento do Boletim, os policiais lançaram um outro

periódico, a Revista Policial (1919-1920), que abordou temas mais amplos e teve

também um arco mais extenso de colaboradores locais. Encabeçava a lista de

redatores o advogado Aurelino Leal, que como chefe de polícia havia organizado,

nas instalações da Biblioteca Nacional, uma Conferencia Jurídico-Policial (1917) na

que dissertaram os mais seletos emissários do endurecimento punitivo e das

prerrogativas policiais.15 Muitos dos nomes que apareciam como conferencistas

completavam o elenco de redatores da revista: eram mais de vinte policiais, seis

deles delegados, a maioria ostentando o título de Doutor devido à formação

universitária em Direito − requisito obrigatório para as hierarquias policiais na

capital brasileira.

As revistas foram para estas elites um espaço de reafirmação do caráter

profissional e do saber específico que envolvia a polícia como métier. Entre suas

páginas, difundiam imagens que tentavam compensar o panorama de descontrole

criminal retratado pelos cronistas policiais da imprensa.Como parte de seu conteúdo,

encontramos: prontuários com delinquentes que pareciam estar submetidos desde

muito tempo a uma estreitíssima vigilância, alguns quadros com retratos de “ladrões

conhecidos” e “exploradores do lenocínio”. Havia também várias fotografias das

seções mais modernas da Policia Civil: desde o laboratório químico até a sala de

autopsias, desde a biblioteca até o museu criminal, desde a seção de identificações

até o arquivo de informações judiciais. Tudo resplandecia entre móveis elegantes e

artefatos tecnológicos de recente aquisição; sinais do ingresso da ciência na

instituição.

Estas revistas sul-americanas transitaram em um percurso similar ao fenômeno

das memórias policiais na indústria cultural francesa e inglesa. Ambas cresceram

junto ao boom do delito na imprensa sensacionalista e à popularização das ficções

detetivescas, intentando por sua vez diferenciar-se delas. Os policiais escritores

15 Annaes da Conferencia Judiciaria-Policial, convocada por Aurelino de Araujo Leal, 2 vols. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918.

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105

tentavam oferecer ao grande público sua “verdade” sobre o crime e também sobre o

próprio mundo daqueles que perseguiam criminais. Até fins do século XIX

começaram a revelar que tal perseguição se regia por técnicas cada vez mais

rigorosas, cientificamente validadas e praticadas por agentes policiais

profissionalizados. A investigação criminal, ou seja, os saberes orientados a desvelar

a trama de um delito, estavam se convertendo em um objeto de fascinação para os

leitores das novelas de enigma, e as memórias policiais conseguiram oferecer um

relato que as editoras souberam igualmente capitalizar. No período de maior

popularidade, quando Goron publicou suas memórias, algumas saíram em três ou

quatros edições, várias foram traduzidas a distintos idiomas e outras apareceram

como folhetins em jornais de tiragem massiva.16

Estas memórias europeias eram lidas na Argentina e no Brasil, como podemos

notar no catálogo da biblioteca policial portenha: vários títulos de Goron apareciam

em suas traduções espanholas, também um livro de Gustave Macé (Le service de la

Sûreté, 1884), junto a numerosíssimas obras francesas sobre crime, polícia e

justiça.17 Graças a estes tipos de catálogos, à bibliografia citada nos textos de autores

vernáculos, e inclusive aos títulos que ainda se conseguem em algumas livrarias de

antiquários, não é difícil traçar um mapa de leituras dos policiais sul-americanos. Os

volumes de “causas célebres” em francês e espanhol, por exemplo, eram um material

de consulta bastante difundido, do mesmo modo que os tratados e manuais de

polícia. Os criminologistas italianos (Lombroso, Garofalo, Ferri, Niceforo, Sighele) e

franceses (Lacassagne, Tarde) foram tão lidos nas últimas décadas do século XIX

como na primeira metade do XX os pioneiros da polícia científica, especialmente

Alphonse Bertillon, Edmond Locard e Archibald R. Reiss.

Além disso, na medida em que os policiais argentinos e brasileiros começaram

a se aproximar, primeiro nos Congressos Científicos Latino-americanos e em seguida

nas conferências policiais de 1905 e 1920, intensificaram-se os intercâmbios

16 LAWRENCE, Paul. “Scoundrels and scallywags, and some honest men… Memoirs and the self-image of French and English policemen, c. 1870-1939”. In: EMSLEY, Clive; GODFREY, Barry; DUNSTALL, Graeme (eds.). Comparative Histories of Crime. London: Willan Publishing, 2003, p. 128. 17 POLICÍA DE LA CAPITAL. Oficina General de Estadística y Biblioteca: Catálogo General de la Biblioteca. Op. Cit., p. 11-26.

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106

regionais de materiais impressos. No catálogo argentino figuravam várias obras de

Elysio de Carvalho, outras de Eurico Cruz e Aurelino Leal, assim como também

compêndios de estatísticas criminais e alguns números do Boletim Policial.18 Por sua

vez, no relatório que o chefe da polícia carioca apresentou ao Ministro de Justiça a

começos do século, se incluíram alguns informes sobre a secção de “Arquivo” e

“Biblioteca” que permitem reconstruir a circulação de obras estrangeiras. Quando

assumiu a chefia de polícia, como mencionamos na introdução, Cardoso de Castro

tentou melhorar essa seção incorporando a figura do arquivista, do tradutor e do

intérprete, a quem encarregou a tarefa de estabelecer um serviço regular de permuta

bibliográfica com outras polícias. A ideia era pedir “qualquer publicação impressa

sobre o serviço policial”, enviando correspondência ao exterior e aos demais estados

brasileiros, para formar a “primeira Biblioteca Policial do Brasil”.19

De fato, essa biblioteca já recebia algumas séries de publicações periódicas,

entre as quais havia compêndios anuais de causas célebres: o Journal des

Commissaires de Police; os também franceses Archives de l’Anthropologie

Criminelle; a Rivista di Diritto Pena e Sociologia Criminale , da Itália; e os Archivos

de Psiquiatría y Criminología, da Argentina. Segundo o chefe, as revistas

“começavam a ser consultadas pelos funcionários da polícia com grande beneficio

para sua preparação profissional” e essa aprendizagem por meio da leitura lhe

parecia indispensável, mais ainda em um país como Brasil, onde o ensino técnico não

existia para os policiais e era “de certo modo suprida pelas revistas

completíssimas”.20

18 Consultei a maior parte destes livros em Buenos Aires, em duas bibliotecas pertencentes à Polícia Federal Argentina (o Centro de Estudios Históricos Policiales “Comisario Inspector Francisco L. Romay” e a Biblioteca del Instituto Universitario de la Policía Federal Argentina). Nestas instituições localizei vários dos exemplares mencionados no catálogo de 1929, geralmente com dedicatórias manuscritas de seus autores brasileiros, por exemplo: CARVALHO, Elysio de. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910. LEAL, Aurelino. Polícia e poder de polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. CRUZ, Eurico. Relatórios policiais e sentenças criminais. Rio de Janeiro: Typographia dos Annaes, 1914. 19 “Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal A. A, Cardoso de Castro”. In: Anexos ao Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, p. 137-140. 20 Idem, p. 138-139. No relatório do ano seguinte já apareciam os primeiros livros recebidos de diferentes países europeus (Francia, Inglaterra, Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha, Holanda, Suécia e

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107

Provavelmente estas palavras de Cardoso de Castro foram otimistas em

demasia, se ponderarmos o alto nível de analfabetismo dos agentes policiais

brasileiros − problema de longa data que se arrastava desde os tempos do Império.21

No entanto, a aposta às revistas policiais ia muito além dessa esperança de convertê-

las em um instrumento de instrução para o pessoal subalterno. Uma análise

diacrônica do corpus total, desde as publicações argentinas da década de 1870 em

diante, revela uma tendência a diversificar seus conteúdos, incorporando ficções

detetivescas escritas por policiais e um grande caudal de artigos dedicados ao

entretenimento que, embora nunca chegaram a substituir completamente às notas de

análise técnica, mudaram totalmente o foco e a relação com uma comunidade ampla

de leitores que transcendia a esfera policial. As revistas dos anos 1920 (como

Magazine Policial e Gaceta Policial em Buenos Aires, ou Vida Policial no Rio de

Janeiro) já incluíam poesias, histórias em quadrinhos e uma forte aposta à

iconografia, começando pelas capas ilustradas em cores. Estes magazines circulavam

no mercado geral de publicações periódicas da época, se comercializavam por

assinatura e por venda livre nas ruas, e eram lidas com igual paixão tanto pelos

vigilantes como pelos amadores devotos da literatura policial.22

Alguns dos policiais locais, inclusive, se aventuraram a escrever suas

memórias. Entre os argentinos, o delegado Laurentino Mejías foi um precursor,

porque além de colaborar com a Revista de Polícia e com Magazine Policial, se

lançou, após sua jubilação, a publicar uma série de livros que ele mesmo reconhecia

como uma escrita amarrada à tradição dos memorialistas europeus.23 De qualquer

Noruega) como resposta ao pedido da polícia brasileira: “Anexo G. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Dr. A. A, Cardoso de Castro, Chefe de Polícia do Distrito Federal”. In: Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1905. Vol. I. Diretoria da Justiça. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 101-104. 21 BRETAS, Marcos L. “A Polícia carioca no Império”, Revista Estudos Históricos, vol. 12, n. 22, Rio de Janeiro, 1998, p. 219-234. ROSEMBERG, André. De Chumbo e Festim: uma história da polícia paulista no final do Império. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2010, p. 130. 22 Sobre Magazine Policial e Gaceta Policial ver o capítulo 4 de CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-1945. Buenos Aires: Siglo XXI, 2012; e sobre Vida Policial: CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002, p. 197-208. 23 GALEANO, Diego. “El decano de la policía. Laurentino Mejías y la autoridad del comisario en la ciudad de Buenos Aires, 1870-1930”, Signos, segunda época, vol. 5, Buenos Aires, 2011, p. 137-161.

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108

forma, os primeiros volumes das memórias, tituladas La policía por dentro, apenas

encontraram uma saída ao público por uma editora espanhola, e somente em 1927,

data próxima de sua morte, conseguiu que uma companhia argentina de livros

populares imprimisse seus novos textos. Até meados do século XX não existiu uma

indústria de livros que, como na Inglaterra, França ou Espanha, cobiçara a estes

policiais escritores, pela própria fraqueza do mercado editorial em geral.24 Por isso,

da mesma forma que os literatos, os policiais utilizaram a imprensa jornalística como

via de difusão de seus escritos. As revistas policiais constituíram, sem dúvida, a

principal saída para a narrativa local.

Ao longo de todo este período, os vigilantes tentaram mostrar ao público a

existência de um saber policial cada vez mais sofisticado. O enigma de um crime,

todo esse universo de sinais a interpretar edificado pela literatura detetivesca do

século XIX, foi o espaço que tentaram conquistar para reafirmar a legitimidade do

oficio policial. Nesse sentido, a relação com as novelas de detetives teve algo de

ambivalência. Às vezes, os policiais recomendavam sua leitura, inclusive como

material didático para seus colegas: por exemplo, em 1908, o Boletim Policial

começou a publicar fragmentos de “Aventuras de Sherlock Holmes”, sugerindo que

devia ser leitura obrigatória para os agentes de investigações.25 Outros, sem negar

talento a Conan Doyle, pretendiam corrigir suas imprecisões, baseados na

experiência outorgada pelo contato direto com o crime assim como se apresentava na

esfera do real. Um delegado da polícia portenha, Alberto Dellepiane, publicou em

1912 uma série de relatos de crimes misteriosos, supostamente baseados em fatos

verídicos, onde negava a eficácia que os romancistas davam aos raciocínios

dedutivos de uma mente brilhante. Os delitos na vida real, segundo contava o

delegado, comumente se resolviam pelos erros de seus autores e pelo avanço do

conhecimento cientifico aplicado às pesquisas. A série de Sherlock Holmes era

24 A fragilidade do mercado editorial na capital brasileira foi analisada por: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 101-102. Na Argentina, esse mercado começou a decolar a começos do século XX: ROMERO, Luis Alberto. “Una empresa cultural: los libros baratos”. In: GUTIÉRREZ; Leandro; ROMERO, Luis Alberto. Sectores populares, cultura y política. Buenos Aires: Sudamericana, 1995, p. 47-71. Ver também: DE DIEGO, José Luis (ed.). Editores y políticas editoriales en Argentina, 1800-2000. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006. 25 “A obra de Conan Doyle”, Boletim Policial, Ano II, n. 4, Rio de Janeiro, jun. 1908, p. 174.

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109

engenhosa, sem dúvida, mas se sustentava em uma “falsa arquitetura”, em uma “base

inverossímil”, convertendo seus episódios em uma “peripécia que tem muito mais de

fantástico que de real”.26

A singularidade deste livro era que, após formular todos estes questionamentos

na introdução dirigida aos leitores, logo, no interior de cada um dos relatos,

Dellepiane utilizava vários recursos narrativos da novela de enigmas, até o ponto de

escolher como personagem principal um detetive de nome anglo-saxão – chamado de

William Kurts – e reservar sempre a resolução do crime para o final de cada história.

Esse jogo vacilante de reverência da novela policial, mas ao mesmo tempo um

protesto para que sejam reconhecidos os verdadeiros especialistas da investigação

criminal, estava presente em uma compilação de textos de Elysio de Carvalho,

originalmente publicados na imprensa e editados em volume único com o título

Sherlock Holmes no Brasil. Para o escritor brasileiro, a obra de Conan Doyle não era

produto da pura imaginação, mas uma “pálida cópia da realidade palpitante”.

O tipo de “detetive” criado pela imaginação de Conan Doyle não é uma ficção. (...) Na realidade, na prática policial, não faltam criminalistas práticos, peritos, investigadores que excedam em saber, em inteligência e em argúcia, a Sherlock Holmes. Haja vista Reiss, Bertillon, Minovici, Locard, Ottolenghi, Stockis, Balthazard e outros muitos técnicos policiais e médicos-legistas, que, recorrendo a noções científicas e métodos positivos, fizeram da investigação criminal uma ciência experimental, fecunda e ativa.27

A aposta era bastante clara: o público leitor, tão afeito às ficções policiais,

devia reconhecer o trabalho dos policiais reais, e estes últimos deviam se preocupar

por estudar os notáveis avanços destes criminalistas dos laboratórios franceses,

belgas, suíços, italianos e romanos. Não é casual que a biblioteca do Boletim

Policial, impulsionada por Carvalho, tenha traduzido em 1914 um ensaio de Alfredo

Niceforo sobre a novela policial e a investigação judicial; e que o livro de Edmond

Locard, Policiers de roman et policiers de laboratoire, fosse o primeiro título

26 DELLEPIANE, Alberto. Memorias de un Detective. Buenos Aires: Imprenta Roma, 1912, p. 5-6. 27 CARVALHO, Elysio de. “Sherlock Homes não é uma ficção”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 37.

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110

publicado pela Biblioteca Policial portenha (uma editora da própria polícia, fundada

na década de 1930 e que existe ainda hoje).28 Estes livros não desconheciam o mérito

e o encanto de Dupin, Lecoq, Sherlock Holmes, nem nenhum outro detetive de papel.

Mas, segundo escrevia Locard, “à sombra do policial de romance que inquietava

todos os cérebros”, o criminalista, na obscura sala do laboratório, “realizava as

fantasias dos escritores”.29 A premissa sobre a que se sustentava toda a arquitetura da

polícia cientifica rezava que nenhum delinquente, por mais esperto que fosse,

cometia um crime sem deixar algum vestígio. A tarefa do investigador não apenas

consistia em fabricar raciocínios dedutivos, mas em observar uma infinidade de

indícios e interpretá-los empregando certas técnicas.

O gesto de cobrir o trabalho policial com as roupagens de um métier

cientificamente validado converteu-se em uma estratégia vital para apaziguar as

inquietudes da imprensa, discutir as prerrogativas dos juízes e até dar certa

popularidade às pesquisas. E nada melhor que trazer esses saberes do outro lado do

atlântico, em uma época em que as elites sul-americanas miravam com especial

admiração às capitais europeias e bem particularmente a Paris.

Se na segunda metade do século XIX se importavam livros, se mais tarde as

revistas policiais começaram a resenhá-los e traduzi-los, se as chefias enviavam

cartas à Europa pedindo detalhes sobre a organização de suas instituições, agora, nas

vésperas do século XX, os intercâmbios faziam-se mais sistemáticos, até o ponto de

mandar emissários em viagens de estudo e receber as visitas de ilustres criminalistas

na América do Sul. Estas questões serão objeto de atenção das páginas seguintes.

28 LOCARD, Edmond. Policías de novela y policías de laboratorio. Buenos Aires: Biblioteca Policial, 1935. NICEFORO, Alfredo. O romance policial e a investigação judiciária científica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914. 29 LOCARD, Edmond. Policías de novela y policías de laboratorio. Op. Cit., p. 11.

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111

As visitas de estudo

As revistas dedicaram uma grande quantidade de artigos a relatos sobre as

polícias estrangeiras. A maioria falava de Paris e de Londres, cujas forças

metropolitanas eram consideradas “modelos” nos países sul-americanos.30 A

imprensa argentina e brasileira arremetia muitas vezes contra suas polícias com um

olho na Europa. Em fevereiro de 1875, um jornal criticava o vigilante portenho por

seu comportamento militar, seus “hábitos violentos de soldado” que o levaram a

perder “a cortesia, a urbanidade, a paciência, a doçura, enfim, as altas qualidades que

fazem do guarda civil espanhol um herói e do policeman inglês um modelo”.31 No

mesmo mês daquele ano, um cronista carioca, sob o pseudônimo Argos, se queixava

da polícia organizada pelo Império no Brasil, “onde não há instituição perniciosa

europeia que não lhe seja imposta sem inquirirem do seu clima e das suas

circunstâncias, no entanto bem iria se sobre a polícia sorvesse a longos tragos os

princípios da Inglaterra: é ela o governo, o Estado, a lei!”.32

Outro jornal de Buenos Aires contava que no início da década de 1870, o

governo nacional “tinha resolvido enviar à Europa um delegado especial encarregado

de estudar a instituição nos seus mais acabados modelos da França e da Inglaterra.”

Mas duvidava muito do costume de copiar as polícias estrangeiras e, em geral, da

“mania de imitar a tudo”: “o que faríamos com modelos importados da Europa?”,

30 O mesmo acontecía nos Estados Unidos e em outros países europeus. Ver: MONKKONEN, Eric H. Police in Urban America, 1860-1920. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 41-49. Nas IV Jornadas de Estudo da rede CIRSAP (Circulation et construction des savoirs policiers européens, 1650-1850), realizadas na Université de Lille 3 entre os dias 4 e 6 de dezembro de 2008, se apresentaram alguns trabalhos que demonstram a amplitude da circulação internacional ds “modelos policiais”b, por ejemplo: DENYS, Catherine. “Paris ne jouit peut-être pas à cet égard d’une police ni plus méditée ni mieux combine: la police parisienne vue de Bruxelles au XVIIIe siècle”. JOHANSEN, Anja. “Lost in Translation: the English Bobby seen through a German monocle”. (Disponíveis em linha: irhis.recherche.univ-lille3.fr/ANR-CIRSAP). Ver também: LEVY, Noémi. “Modalités et enjeux de la circulation des savoirs policiers : un modèle français pour la police ottomane?”, Revue d'Histoire des Sciences Humaines, Paris, n. 19, 2008/2, p. 11-27. LUCREZIO MONTICELLI, Chiara. “La policía moderna en Roma: entre la matriz francesa y el modelo eclesiástico”. In: GALEANO, Diego; KAMINSKY, Gregorio (coord.). Mirada (de) uniforme: Historia y crítica de la razón policial. Buenos Aires: Teseo, 2011, p. 69-85. 31 “Noticias Policiales”, La Prensa, Buenos Aires, 4 feb. 1875, p. 1. 32 “A nossa polícia”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 fev. 1875, p. 2.

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112

perguntava o redator. “Temos os elementos morais e materiais para lhes imitar?

Nossas práticas administrativas não fariam de todo ponto impossível sua

execução?”.33

Estas perguntas estavam instaladas na tribuna política e policial desde meados

do século XIX. Os modelos de polícia constituíam, antes que nada, uma polêmica. O

fundador da primeira revista policial portenha tomava posição com veemência na

discussão. Atacava os intelectuais que viajavam pela Europa e Estados Unidos, para

depois regressar explicando o que era uma “boa polícia”. Expunham as bondades do

policeman e do sergent de ville, descreviam seus detalhes, se tinham “tantos pés de

altura e tantos de circunferência”, se usavam “paus, cassetetes ou pistolas”: tudo isso

lhe parecia uma impostura e um total afastamento do “terreno da prática”, o único em

que podiam dirimir-se as reformas policiais destas latitudes.34

Três décadas mais tarde, o Major João Bernardino da Cruz Sobrinho, redator

chefe da primeira revista policial carioca, mostrava a vigência no tempo deste debate,

manifestando algumas dúvidas sobre as comparações que se faziam com Paris.35

Outro redator admitia que o soldado da Brigada Policial não era “o ideal dos policiais

e nem sabemos de outro que tal possa considerar-se, a não ser o policeman londrino,

aliás, subordinado a uma organização muito diferente da que aqui temos”; mas sentia

na obrigação de recordar que no Rio de Janeiro, ao contrário de Londres, os agentes

eram recrutados nos setores mais baixos da sociedade.36 Apesar destas cautelas, em

seus dois anos de existência a revista publicou numerosos artigos sobre a polícia

metropolitana de Londres, a Gendarmerie francesa, a Guardia Civil de Madri, a

polícia de San Petersburgo e até a do longínquo Japão, que “embora afastado, como

se acha, do convívio social, mantém uma polícia moralizadora, como não tem, por

certo, nenhum país de Europa”.37

33 “La Policía de Buenos Aires”, La Prensa, Buenos Aires, 26 jul. 1874, p. 2. 34 FLORES BELFORT, Daniel. “Organización de la policía”, Anales de Policía, Buenos Aires, entrega II, 15 set. 1872, p. 37. 35 CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Revista Policial, Ano I, n. 2, Rio de Janeiro, 25 set. 1903, p. 11. 36 C.A.C. “O soldado de polícia”, Op. Cit., p. 20-21. 37 CRUZ SOBRINHO. “No Japão”, Revista Policial, Ano II, n. 9, Rio de Janeiro, 25 abr. 1904, p. 71-72. Véase también del mismo autor: Polícia de Espanha, Revista Policial, Ano I, n. 5, Rio de Janeiro,

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113

Como chegavam aos redatores destas revistas as notícias sobre as polícias

estrangeiras? Os canais de comunicação eram múltiplos: traduções de textos

publicados na imprensa europeia e de memórias de policiais escritores, muitas vezes

divulgadas nos folhetins; informações intercambiadas via postal entre as autoridades

policiais e que chegavam às mãos dos editores das revistas; tecnologias, artefatos e

invenções da modernidade policial que contavam com um mercado de difusão a

nível internacional; viagens transatlânticas de intelectuais e funcionários públicos,

visitas de estudo e treinamento de policiais que viajavam a outros países como

comissionados oficiais. Vejamos alguns exemplos.

Em 1888 aparecia na revista portenha a primeira entrega de uma série sobre a

polícia parisiense. No começo, se anunciava a procedência do texto: a tradução de

uma obra escrita por um redator do jornal Temps, “com um espírito de crítica

imparcial que nos faz notar os grandes defeitos que tem a atual organização da

polícia de Paris”.38 Como se percebe aqui, as instituições conhecidas no mundo como

“modelos de polícia”, em especial a francesa, eram difundidas mais pela força

inercial de sua fama que por ser universalmente inquestionáveis. O lugar ocupado

pelos commissaires de police, a relação da chefatura com os demais serviços, as

atividades da Sûreté e a polícia política, na França, eram submetidos a uma bateria de

críticas que apareciam refletidas na informação que circulava na América do Sul.39

As trocas diretas entre as polícias eram também moeda corrente. Nos arquivos

da Préfecture de Police de Paris, existe uma série de correspondências enviadas pelas

autoridades da Argentina, Brasil e Uruguai, solicitando informação sobre a

25 dez. 1903, p. 36-38. “A Guarda Civil de Madrid”, Revista Policial, Ano II, n. 6, Rio de Janeiro, 25 jan. 1904, p. 43-46. “A Gendarmerie”, Revista Policial, Ano 2, n. 14, Rio de Janeiro, 25 ago. 1904, p. 133-135. 38 “La Policía de París. Su organización, su funcionamiento”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n.7, Buenos Aires, 1 set. 1888, p. 83. Desde o número 7 até o número 30, foi publicada a obra, cujo original – segundo a aclaração dos editores – constava de 191 páginas. Outra tradução, desta vez sobre Scotland Yard, mas redigida por um colaborador da Revue belge de la police administrative et judiciaire, apareceu em: “La policía inglesa”, Revista de Policía, Año V, n. 106, Buenos Aires, 16 oct. 1901, p. 153-155; e “La policía inglesa (conclusión)”, Revista de Policía, Año V, n. 107, Buenos Aires, 1 nov. 1901, p. 170-172. 39 Sobre as críticas à polícia francesa na segunda metade do século XIX, ver: DELUERMOZ, Quentin. “Images de policières en tenue, images de gendarmes. Vers un modèle commun de représentants de l’ordre dans la France de la seconde moitié du XIXe siècle”, Sociétés & Représentations, n. 16, 2003/2, p. 197-211.

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114

organização burocrática e o funcionamento da polícia francesa.40 Mas não era o

único destino que interessava. Em 1887, o chefe da polícia da capital argentina,

Aureliano Cuenca, escreveu uma carta ao médico e escritor Eduardo Wilde, então

Ministro de Relações Exteriores. Pedia que enviasse uma circular aos cônsules em

diferentes capitais europeias para coletar informações sobre as organizações policiais

dos países em que eles residiam. O Ministro recebeu um extenso relatório do

embaixador em Londres, que em 1901 a Revista de Policía reproduziu integralmente

em diferentes números.41 Outro chefe de polícia, Francisco Beazley, solicitou em

1900 informações à chefia de Hamburgo e recebeu como resposta um pacote com

regulamentos, decretos, estatísticas, retratos de delinquentes, fichas antropométricas

e detalhes sobre o Museu Criminal dessa cidade. Em troca, os alemães pediram que

lhes enviassem fotografias dos uniformes policiais usados em Buenos Aires.42

A questão dos uniformes era um tópico constante nos debates sobre os modelos

policiais. Neste tema jogava-se boa parte da definição do caráter das forças que

patrulhavam as cidades. De forma geral, o divisor de águas está entre os partidários

de uma polícia “cidadã” (opção que tinha a figura do Bobby inglês como paradigma

indiscutível) e os defensores da “militarização”, que elegiam o gendarme francês

como exemplo dos valores, práticas e esprit-de-corps necessários para garantir a

segurança nestas repúblicas jovens onde – se dizia – havia pouco apego às leis.

Para estes últimos, o uniforme era um símbolo de distinção do vigilante na via

pública, um modo de hierarquizá-lo para induzir o respeito à autoridade. Um policial

argentino comentava a impressão que lhe provocava ver uma galeria de uniformes

policiais franceses, frente aos que “abriam-se os olhos da pura inveja”. Opinava que

essas roupas eram simples e elegantes, obtendo o efeito de impor respeito e simpatia.

40 ROSEMBERG, André. De chumbo e festim. Op. Cit., p. 43. 41 DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un informe interesante”, Revista de Policía, Año V, n. 99, Buenos Aires, 1 jul.1901, p. 38-39; DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un informe interesante (continuación)”, Revista de Policía, Año V, n. 100, Buenos Aires, 16 jul. 1901, p. 59-61. DOMÍNGUEZ, Luis L. “La policía de Londres. Un informe interesante (continuación)”, Revista de Policía, Año V, n. 101, Buenos Aires, 1 ago. 1901, p. 73-75. 42 “Sueltos. La policía de Hamburgo”, Revista de Policía, Año IV, n 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 205. “Carta de Alemania. La policía de Hamburgo. El Doctor Roscher. El museo criminal”, Revista de Policía, Año IV, n. 90, Buenos Aires, 16 feb. 1901, p. 277-278. “Sueltos. Policía de Hamburgo”, Revista de Policía, Año V, n. 104, Buenos Aires, 16 set. 1901, p. 123-124.

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115

No entanto, o delegado Laurentino Mejías desconfiava da paixão pelas vestimentas

copiadas da esfera castrense no início do século XX:

Começou a latir em cérebros dirigentes a ideia da militarização, que não implicava outra coisa que principiar pelo uniforme; devido ao passeio pela Europa de um funcionário superior que regressa encantado da postura do policial monárquico belga, e no próprio Departamento Central, exibiu fotografias espécimen do uniforme. Nós, que havíamos usados vários uniformes em distintas épocas e hierarquias, nos permitimos repugnar esta recidiva, o que nos valeu que nos apontassem um raio, ocasionando-nos cair na graça de Deus. 43

Esse “passeio pela Europa” a que ironicamente Mejías se refere, havia se

convertido, ao final do século XIX, em uma atividade frequente para as elites das

polícias sul-americanas. Em rigor, há que reconhecer que não era um costume

exclusivamente policial. Os setores da alta sociedade portenha e carioca, tanto os

membros das famílias tradicionais como os que eles denunciavam como adventícios,

usavam a viagem europeia para se colocar a tom com as modas e adquirir todo tipo

de artigos de consumo que ajudavam a preservar certo status social.44 Por outra parte,

escritores, cientistas, artistas e funcionários em comissão, empreendiam longas

viagens para instruir-se, atualizar-se nas últimas tendências e observar de perto os

modelos institucionais, ou para entrar em contato com a rede de intelectuais que

haviam elegido a Europa como lugar de residência. Igual aos jornalistas que nesta

mesma época começavam a trabalhar como correspondentes, para estes viajantes, o

deslocamento territorial estava intimamente ligado às práticas de escrita.45

O mesmo sucedia com os funcionários que realizavam visitas de estudo às

polícias europeias, comissionados pelos governos ou enviados diretamente pelas

chefaturas. O destino privilegiado era Paris, mas as viagens raramente eram a um

43 MEJÍAS, Laurentino. Policíacas: mis cuentos. Buenos Aires: Tor, 1927, p. 9-10. 44 NEEDELL, Jeffrey D. A Tropical Belle Époque: Elite, Culture and Society in Turn-of-the Century Rio de Janeiro. Princeton: Princeton University Press, 1987. p. 125-126. LOSADA, Leandro. La alta sociedad en la Buenos Aires de la Belle Époque. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008, p. 149-166. 45 Ver COLOMBI, Beatriz. Viaje intelectual. Migraciones y desplazamiento en América Latina (1880-1915). Rosario: Beatriz Viterbo, 2004. FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de la época modernista. Rosario: Beatriz Viterbo, 2005.

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116

único lugar e, além disso, nem sempre tinham um caráter oficial. Em 1900, por

exemplo, outro alto funcionário da polícia portenha estava na Europa por motivos de

saúde, quando enviou uma carta à Revista de Policía com observações feitas “por

vício”.46 Também havia escritores que, enquanto trabalhavam para a polícia,

incursionavam no gênero de livros de viagem, mas sem centrar o relato em temas

afins ao métier. Era o caso de Evaristo da Veiga: em 1903, sendo chefe do Gabinete

Antropométrico da polícia paulista, publicou o livro Notas de viagem, recompilando

uma série de cartas enviadas ao Correio Paulistano desde diferentes cidades da

América do Norte e Europa, entre março e outubro desse mesmo ano.47 Pouco tempo

antes, esse jornal divulgou outra correspondência que Evaristo mandou desde Paris.

O estilo era completamente diferente ao do livro, não narrava as impressões gerais de

um “gentleman viajante”, mas uma visita ao serviço de identificação da polícia

parisiense.48

Caso parecido foi o do policial portenho Miguel Denovi, outro dos tantos

escritores dessa instituição.49 Em 1925, as páginas de Magazine Policial começaram

a publicar umas “crônicas de viagem”, enviadas por Denovi da Europa e

acompanhadas por reproduções de cartões postais que anexava a suas cartas. Embora

fossem textos literários sob a forma de relato de viagem, igual a seu antecessor,

tampouco conseguia evitar o “vício” de comparar sua experiência como policial

portenho com as observações dos vigilantes europeus. Assim, detinha-se nos mais

ínfimos detalhes dos uniformes policiais de distintas cidades. Na Itália, apesar da má

fama do povo napolitano, conhecido pelos mitos da máfia e da camorra, se

assombrava com a tranquilidade pública obtida pelos rigorosos Carabinieri. Em

46 “Sueltos. Policía de Paris. Impresiones de un profesional”, Revista de Policía, Año IX, n. 204, Buenos Aires, 16 nov. 1905, p. 100. 47 VEIGA, Evaristo da. Notas de viagem. São Paulo: Duprat & Comp., 1903. 48 VEIGA, Evaristo da. “Identificação Anthropométrica”, Correio Paulistano, São Paulo, 5 jan.1903. A ideia de “gentleman viajante” foi desenvolvida pelo crítico literário argentino: VIÑAS, David. “La mirada a Europa: del viaje colonial al viaje estético” (1964). In: Literatura argentina y política: I. De los jacobinos porteños a la bohemia anarquista. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2005, p. 43-67. 49 Nesse lapso, Denovi assumiu duas vezes a chefia em forma provisória, pela crise desatada à raiz dos enfrentamentos com o movimento operário. Denovi havia estudado no prestigioso Colégio Nacional e entrou na polícia com 18 anos como “oficial escrevente”, enquanto estudava Ciências Jurídicas na Universidade Católica. Ver: SILVA, Hernán (recopilación y prólogo). La obra institucional y literaria del Comisario de Órdenes Dr. Miguel Luis Denovi. Buenos Aires: Maucci Hermanos e Hijos, 1920, p. 5-13.

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117

contraste, não ocultava o desgosto que lhe provocou contemplar, no bairro parisiense

de Montmartre, o espetáculo que rodeava o Moulin Rouge, onde ao compasso do

“tango argentino” e do “maxixe brasileiro” a mulher branca se mercantilizava em

braços de homens negros. E finalmente, na Espanha, se maravilhava com um passeio

pelo Departamento de Polícia de Madri, que lhe causou uma excelente impressão. 50

As “visitas de estudo” stricto sensu tinham um formato totalmente diferente.

Em princípio, não se originavam em viagens recreativas, por motivos de saúde ou

reencontros com familiares. Eram financiadas com fundos públicos e recebiam

instruções, mais ou menos precisas, sobre os lugares que deviam percorrer, as

entrevistas com funcionários policiais e os assuntos a serem tratados.51 Neste caso, as

práticas de escrita relacionadas à viagem eram um produto obrigatório, condição

implícita no “contrato” com o organismo do governo que autorizava a missão e

custeava os gastos. Os quatro casos que narrarei a seguir deixaram como resultado

relatórios, assim como também numerosos estilhaços em publicações da época, que

permitem reconstruir o olhar dos policiais brasileiros e argentinos sobre as

instituições europeias.

Os dois primeiros pertencem a juristas brasileiros, ambos formados na

Faculdade de Direito de São Paulo, que ocuparam a chefatura da Polícia da Capital

Federal durante a primeira década republicana: João Brasil Silvado viajou em 1893

para América do Norte e Europa, enviado pelo Ministério de Justiça e Negócios

Interiores; e João Batista de Sampaio Ferraz, aproveitou uma longa estadia na

Inglaterra para estudar, por encargo do governo do Estado de São Paulo, os serviços

50 Estas cartas foram publicadas em Magazine Policial entre 1925 e 1926. O diretor da revista, Ramón Cortés Conde, as compilou mais tarde em um livro: DENOVI, Miguel L. Impresiones de viaje: Italia, Francia y España. Buenos Aires: Editorial Verbum, 1929. 51 No Arquivo Nacional, por exemplo, encontra-se a documentação manuscrita sobre um encargo que em1891 o governo federal fez ao professor da Faculdade de Direito de Recife, Joaquim de Albuquerque Barros Guimarães para estudar o sistema antropométrico de identificação de criminosos da polícia parisiense. A documentação oferece detalhes sobre o financiamento da viagem, cujo orçamento Barros Guimarães achava insuficiente. AN, GIFI, Gabinete do Ministro, 8N-80, Despacho do Sr. Ministro da Justiça, 5 de fevereiro de 1892. Houve outras viagens de sul-americanos ao serviço antropométrico de Paris: o médico de polícia argentino Agustín Drago (1887), o médico carioca Henrique Monat (1889), o criminologista brasileiro José A. de Souza Gomes (1900), o próprio Evaristo da Veiga (1903) e o chefe da Seção de Estatística do Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro, Hermeto Lima (1910). Estas viagens serão analisadas no próximo capítulo, quando trataremos o nascimento dos primeiros serviços de identificação de criminosos na Argentina e no Brasil.

Page 129: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

118

de Scotland Yard, apresentando seu relatório em 1898.52 Os outros dois casos

correspondem a viagens das primeiras décadas do século XX, realizadas por

argentinos que trabalhavam nas altas esferas policiais de Buenos Aires, uma espécie

de legião erudita que trabalhava no Departamento Central: o advogado (e Secretário

Geral de Polícia) Manuel Mujica Farías visitou as polícias de Paris e Bruxelas em

1900,53 e o Delegado Inspetor José Vieyra percorreu instituições policiais italianas e

belgas em 1912.

A primeira viagem, a de Brasil Silvado, resultou na publicação do livro O

serviço policial em Paris e Londres (1895), originalmente apresentado como

relatório ao Ministro de Justiça.54 O encargo inicial havia sido muito mais amplo:

estudar nos Estados Unidos e na Europa os sistemas de ensino público e a

organização das polícias.55 No entanto, para este último objetivo decidiu restringir a

exposição a Londres e Paris, porque entendia que eram os “modelos mais completos

no assunto” e que, de certa forma, todas as outras polícias eram simples variações

das arquiteturas institucionais destas duas grandes capitais. O estudo de Brasil

Silvado, cada uma de suas descrições e as propostas de reformas, se sustentava sobre

um princípio anunciado no início, na carta ao Ministro que acompanhava o relatório:

52 João Batista de Sampaio Ferraz foi o primeiro chefe de polícia da capital republicana (1889-1890) restituído por Campos Sales em 1898 e permaneceu até 1899, sendo substituído precisamente por João Brasil Silvado, chefe até princípios de 1900. Ver: BRETAS, Marcos L. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 40. 53 Mujica Farías embarcou para Europa em 15 de fevereiro de 1900 e regressou desde o porto de Barcelona em 16 de julho do mesmo ano, como noticiava a revista policial portenha, da qual era assíduo colaborador: “En viaje de estudio”, Revista de Policía, Año III, n. 65, Buenos Aires, 1 feb. 1900, p. 289; e “El Doctor Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 77, Buenos Aires, 1 ago. 1900, p. 76. 54 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895. 55 No momento de começar a missão, Brasil Silvado trabalhava para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, como inspetor do terceiro distrito escolar. O prefeito, Cândido Barata Ribeiro, autorizou um pedido de um ano de licença para cumprir com a viagem encomendada pelo governo federal, mas pediu que entregasse também ao Conselho Municipal os informes sobre os sistemas de ensino público: INTENDENCIA MUNICIPAL. Secretaria da Prefeitura do Distrito Federal. Secreto n. 36 – de 1 de maio de 1893, Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil, n. 119, Rio de Janeiro, 2 mai. 1893.

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119

“nem tudo o que se vê no estrangeiro é adaptável ao nosso meio, às nossas

circunstâncias ou aos nossos costumes”.56

O livro oferecia descrições gerais das polícias de Paris e Londres. Não prestava

atenção apenas aos aspectos que, segundo sua opinião, deviam ser reproduzidos na

capital brasileira, senão também sobre questões que podiam merecer uma reflexão

crítica. Os modelos de polícia da França e Inglaterra não eram tratados no relatório

como alternativas antitéticas. Pelo contrário, o plano de reformas esboçado nas

conclusões combinava, com certa dose de heterodoxia, algumas virtudes da polícia

parisiense com outras vantagens de Scotland Yard.

A proposta de Brasil Silvado se concentrava em três aspectos diferentes. O

primeiro apontava diretamente a necessidade de mudanças legislativas. Neste

terreno, o autor entendia que o Brasil deveria seguir o exemplo francês da lei de

relegação de reincidentes de 1885, enquanto que os princípios britânicos podiam

orientar uma imprescindível reforma do sistema penitenciário, incorporando

inovações como a liberdade condicional e as escolas correcionais “à inglesa”. O

segundo núcleo de reformas se focalizava na esfera regulamentária. A “polícia

sanitária” e a “polícia de costumes” – especialmente os dispositivos de controle

territorial da prostituição – eram instituições francesas que o Rio de Janeiro deveria

adotar urgentemente. Em troca, outras questões de ordem urbana, como o controle do

trânsito de veículos ou a repressão da vadiagem, podiam se ajustar misturando ideias

de Paris e Londres.57

O terceiro aspecto era o que ocupava mais espaço no livro: as reformas na

estrutura administrativa da polícia. Brasil Silvado sugeria a adoção de um sistema

centralizado de inspeção dos diferentes serviços policiais, ao modo do Contrôleur

Géneral parisiense, mas ao mesmo tempo pedia um maior nível de descentralização

(área em que a França não tinha absolutamente nada a ensinar). Era necessário

combinar certa delegação de mando nas autoridades policiais de cada distrito, para

descongestionar a atrofia na chefatura, mas manter um olho vigilante e fiscalizador

sobre suas atividades. Isto ia de encontro com uma reclamação de ampliar as

56 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. IV. 57 Idem, p. 237-249.

Page 131: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

120

exigências na hora de engajar pessoas para o cargo de delegado, já que até esse

momento, no Rio de Janeiro, “o bacharel em direito, o médico, o negociante ou o

funcionário público, são por igual julgados aptos para exercer as melindrosas funções

policiais”.58

Em relação ao serviço de rua, também era imperioso ajustar os critérios de

admissão dos agentes, pedindo a comprovação efetiva de um prontuário sem

manchas. A profissionalização marcava uma distância enorme entre estes dois países

europeus e o Brasil, cujo corpo de agentes era um “refugium peccatorum” onde iam

parar “todos os desocupados protegidos pelas influências de ocasião”.59

Profissionalizar não significava unicamente aumentar os requisitos para o ingresso,

mas também melhorar a instrução, implementar incentivos salariais e aposentadorias,

como existia na França e na Inglaterra, porque a vida do vigilante estava sempre

exposta a “mil perigos” e sua honestidade provocada por “mil tentações”.

Este tipo de comparação entre a qualidade técnica dos vigilantes europeus e

brasileiros provocava certa desconfiança em alguns policiais cariocas. Desde as

páginas da revista da Brigada Policial, Cruz Sobrinho dedicava uma nota crítica ao

livro de Brasil Silvado, que recordava que o Rio de Janeiro, diferentemente de Paris,

contavam com poucos agentes para cobrir um território extenso. Mas, além disso,

parecia-lhe difícil manter uma tropa estável e capacitada em um corpo que devia

expulsar constantemente a seus soldados por indisciplinas reiteradas.60 Brasil Silvado

não desconhecia estes problemas, mas era mais otimista: “essas medidas e reformas

serão de fácil adaptação ao nosso meio social?”, se preguntava. “Umas dependem de

simples regulamentos e de mão hábil e forte que os faça executar; outras dependem

de algum tempo de propaganda e estudo: quase nenhuma, porém, é impossível de ser

posta em prática entre nós”.61

58 Idem, p. 235. 59 Idem, p. 233. 60 CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Op. Cit., p. 11. 61 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 248-249.

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121

Em seu relatório de viagem, João Batista de Sampaio Ferraz tratava de

responder este mesmo interrogante, quando estudava o funcionamento de Scotland

Yard:

Nem tudo pode ser transportado de uma sociedade para outra e funcionar igualmente, tanto à beira do Tamisa como nas regiões tropicais. Entretanto, com conhecimento de causas, saberemos tudo examinar, promovendo “quantum satis” as providências de adaptação.62

Adaptação era a palavra que sempre moderava até as mais ambiciosas

esperanças modernizadoras baseadas em exemplos europeus. Logo após encabeçar

uma estrondosa campanha contra os Capoeiras, sendo o primeiro chefe de polícia do

período republicano, Sampaio Ferraz pensava que grande parte do êxito de qualquer

reforma policial dependia da dissolução de práticas incrustradas nas altas esferas

políticas e judiciais.63 A predileção pelo paradigma inglês se entendia no marco de

uma disputa contra intelectuais, jornalistas e funcionários que pretendiam limitar as

prerrogativas arbitrárias da polícia. Em 1898, pouco depois de apresentar o relatório

e tomar posse no segundo mandato à frente da Polícia da Capital Federal, Sampaio

Ferraz enfrentou fortemente a juristas que – como Rui Barbosa – defendiam o

recurso do habeas corpus: “instituição sábia que já sagrou os foros de liberdade e

tolerância de um grande país que o instituiu como suprema garantia do direito

individual ofendido, não poderá ser almejado pelos delinquentes como uma bandeira

de misericórdia”.64

62 SAMPAIO FERRAZ, João Batista de. “Do delito, Código Penal e Organização Policial na Inglaterra: Intróito do Relatório apresentado ao Governo do Estado de São Paulo”, Separata da Revista do Arquivo Municipal, n. CXXVI, São Paulo, 1949, p. 51. Esta é a única fonte encontrada sobre o Relatório de Sampaio Ferraz, apresentado em 1898, cuja versão completa não pude localizar no próprio Arquivo Municipal, nem no Arquivo do Estado de São Paulo. 63 Sobre Sampaio Ferraz e a campanha contra os capoeiristas em 1890 ver: BRETAS, Marcos. “A queda do império da navalha e da rasteira (a República e os capoeiras), Estudos Afro-Asiáticos, n. 20, jun. 1991, p. 239-256. DIAS, Luiz Sérgio. Da “Turma da Lira” ao Cafajeste. A sobrevivência da capoeira no Rio de Janeiro na Primeira República. Tese de Doutorado em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. 64 Citado em BRETAS, Marcos L. A guerra das ruas. Op. Cit., p. 65.

Page 133: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

122

Esse “grande país” era Inglaterra, cuja realidade mostrava, segundo Sampaio

Ferraz, que o cuidado dos direitos do cidadão não era incompatível com medidas

rígidas contra o crime, sempre que estivessem guiadas por um espírito pragmático. O

equilíbrio estaria dado pela balança da experimentação cotidiana: “em outros países

os problemas da criminalidade estão a agitar os filósofos e os pensadores, enquanto

na Inglaterra o principal objetivo é bater o crime com medidas práticas”.65 A polícia

apenas podia trabalhar sobre o terreno barroso das “eventualidades da vida”, usando

como ferramenta um cardápio flexível de medidas repressivas, aplicadas quando

fosse necessário, e pouco contestadas por outras autoridades. Nisso os britânicos

tinham muito a ensinar aos juristas brasileiros, a quem Sampaio recomendava uma

saudável “viagem de observação e estudos nesse país”.66

O argentino Manuel Mujica Farías compartilhava esta visão sobre a utilidade

das visitas de estudo à Europa, mas era cauteloso na discussão sobre a possibilidade

de exportar modelos policiais a um contexto diferente:

Eu sempre acolhi a convicção de que os estudos desta classe devem ter um fim essencialmente prático, e que as reformas em qualquer instituição dever ser paulatinas, sem jamais perder de vista as condições do meio em que se atua. Se se buscasse como modelo uma organização completamente diversa, o fim ao que fiz referência ficaria frustrado. 67

Esta era a forma em que justificava o recorte de seu estudo. Em 1900, Mujica

Farías possuía um alto cargo na polícia portenha, quando o chefe Francisco Beazley

autorizou uma missão de estudo sobre as polícias das principais capitais europeias.68

65 SAMPAIO FERRAZ, João Batista de. “Do delito, Código Penal e Organização Policial na Inglaterra”. Op. Cit.,. p. 40. 66 Idem, p. 50. 67 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 10. 68 O cargo de Secretário Geral de Polícia havia sido criado em 1880 e ocupado por diferentes juristas e homens de letras de Buenos Aires. De tal modo, Mujica Farías não era um policial “de carreira”, mas um advogado que foi convocado para desempenhar esse posto, em que permaneceu desde 1898 até 1902. Ver: CORTÉS CONDE, Ramón. Historia de la Policía de la Ciudad de Buenos Aires. Su desenvolvimiento, organización actual y distribución de sus servicios. Buenos Aires: Imprenta López, 1937, p. XVI. O Secretário Geral era o sucessor imediato do chefe, de fato, Mujica Farías substituiu a Francisco Beazley quando este acompanhou o presidente Roca em sua visita ao Rio de Janeiro.

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123

Segundo a Revista de Policía, o plano original de viagem incluía visitas a Paris,

Londres, Roma, Viena, Nápoles, Bruxelas, Madri e Frankfurt.69 Contudo, depois da

viagem, Mujica Farías decidiu concentrar o relatório apenas nas polícias de Paris e

Bruxelas, porque entendia que tanto as instituições como as sociedades dessas duas

capitais europeias tinham maiores “pontos de semelhança” com Buenos Aires.

Considerava que buscar exemplos em outras latitudes, como os países saxões,

implicaria mergulhar em realidades por demais alheias para encontrar algum

aproveitamento possível. Para Mujica Farías, esse erro de cálculo estava na base do

fracasso de muitas “reformas absurdas”.70

A polícia londrina, em particular, havia lhe parecido uma força de segurança

municipal com atribuições muito estreitas, voltadas a casos de delitos in fraganti.

Este “sistema limitativo” podia se ajustar bem à idiossincrasia, caráter e costumes do

povo inglês, mas era obsoleto para as turbulentas e babélicas capitais sul-americanas.

A conclusão do arrazoado apontava à polícia de Paris: “a que melhor presta para

servir de modelo à nossa, não apenas pelos méritos de seu aperfeiçoamento”, mas

também porque o sistema político, igual ao de Buenos Aires, atribuía a esta

instituição metropolitana “um vasto raio de múltipla ação, com variadas funções de

polícia municipal e judiciária, preventiva e repressiva”.71

Deste ponto de vista, Mujica Farías elaborou um plano de obra dividido em três

partes. A primeira, La Policía de París, foi apresentada em dezembro de 1900 ao

Ministro do Interior como relatório e publicada no ano seguinte como livro.72 A

RODRÍGUEZ, Adolfo E. Historia de La Policía Federal Argentina, Tomo VI, 1880-1916. Buenos Aires: Editorial Policial, 1975, p. 224. 69 “Al partir”, Revista de Policía, Año III, n. 66, Buenos Aires, 16 feb. 1900, p. 295. Efectivamente visitó alguna de estas policías, como las de Roma, Londres y Madrid, según noticiaba la revista en: “El Dr. Mujica Farías”, Revista de Policía, Año III, n. 69, Buenos Aires, 1 abr. 1900, p. 353; y “El doctor Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 76, Buenos Aires, 16 jul. 1900, p. 61. 70 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 11. 71 “Regreso del Dr. Mujica Farías. Sus impresiones de viaje”, Revista de Policía, Año IV, n. 78, Buenos Aires, 16 ago. 1900, p. 84. A exclusão das polícias espanholas e italianas como material de estudo se justificava diretamente em que eram vistas como organizações ao nível da polícia portenha, e inclusive inferiores, como parecia se deslizar em uma reportagem que fez o jornal El Español, reproduzido em: “Un reportaje interesante. El doctor Mujica Farías en Madrid”, Revista de Policía, Año IV, n. 79, Buenos Aires, 1 set. 1900, p. 102-104. 72 Antes da aparição do livro, a revista policial publicou avanços, e depois reproduziu comentários elogiosos: MUJICA FARÍAS, Manuel. “Dirección General de Investigaciones. Fragmento del

Page 135: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

124

seguinte estaria dedicada à polícia de Bruxelas e a última a uma comparação entre

ambas e Buenos Aires, mas aparentemente estes outros dois estudos não se

concretizaram. Por sua parte, a estrutura de análise da polícia parisiense adotada por

Mujica Farías no “livro-relatório” (como o chamava a revista policial) dedicava-se

mais às leituras que às observações in situ. Obras do prefeito Louis Lépine, Maxime

de Camp, Gustave Macé e Marie-Françoise Goron apareciam como referências

bibliográficas obrigatórias tanto no estudo de Mujica Farías como no de Brasil

Silvado, cujo livro, além disso, o argentino conhecia.73

Finalmente, a última das quatro viagens apresenta algumas características

distintas das anteriores. José Vieyra era Comissário Inspetor da polícia portenha,

quando em 1912 realizou uma série de visitas à Espanha e Bélgica. 74 Mas sua missão

tinha como objetivo principal uma inspeção dos policiais que estavam no velho

continente em “comissões especiais”.75 O que estavam fazendo esses agentes na

Europa? Após a precipitada sanção da lei de Defesa Social (1910), para a expulsão

de estrangeiros, a chefatura da polícia resolveu instalar uma série de delegacias nos

principais portos europeus onde embarcavam os imigrantes: Marselha, Génova,

Barcelona, Vigo, Trieste, Southampton, Hamburgo e Bremen. Os empregados dessas

repartições estavam encarregados de controlar, com o maior sigilo possível, a

circulação de pessoas para detectar “indesejáveis” nos contingentes dos barcos. Além

disso, tinham a cargo uma aproximação com as polícias dessas cidades, a fim de

estabelecer acordos informais e confidenciais para a troca de antecedentes,

Capítulo XIII del libro en prensa La Policía de París”, Revista de Policía, Año IV, n. 87, Buenos Aires, 1 ene. 1901, p. 230-232. “La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 88, Buenos Aires, 16 ene. 1901, p. 242-244. “Bibliografía policial. La policía de Paris y Falsificación de moneda. Juicios honrosos”, Revista de Policía, Año V, n. 99, Buenos Aires, 1 jul. 1901, p. 39-42. 73 “La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 88, Buenos Aires, 16 ene. 1901, p. 243. 74 Os comissários inspetores eram os funcionários encarregados de fiscalizar o trabalho das delegacias de distrito, mantendo informado o chefe de polícia através de uma rede telegráfica que tinha como centro o Departamento Geral. Ver “Orden del día 31 de agosto de 1899”. In: MUJICA FARÍAS, Manuel (dir.). Repertorio de Policía, 1880-1898. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1899, p. 575. 75 VIEYRA, José. “La policía italiana”, Revista de Policía, Año XVI, n. 379, Buenos Aires, 1 mar. 1913, p. 178.

Page 136: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

125

fotografias e fichas datiloscópicas de diversos “sujeitos perigosos para a ordem

social”. 76

Ao regressar da Europa, Vieyra elaborou um relatório, difundido pela Revista

de Policía em quarenta partes consecutivas, desde março de 1913 até outubro de

1914, onde os vinte primeiros artigos estavam dedicados à polícia italiana e os outros

à polícia belga. Neste caso, a opção por instituições policiais “similares a nossa”, não

reconhecidas como modelos internacionais, sugere a presença de outra relação com

as visitas de estudo. A vontade de conhecer a organização das polícias europeias e,

como veremos mais à frente, também as sul-americanas, respondia esta vez à

estratégia de extensão de uma rede de cooperações. Não era em vão que a chefia

portenha elogiava os primeiros resultados das repartições instaladas nos portos da

Europa, porque haviam conseguido mostrar nesses países “o grau de perfeccionismo

que havia chegado a polícia metropolitana argentina”. 77

Depois de uma série de reformas inspiradas, em muitos aspectos, nos exemplos

estrangeiros trazidos por estes ilustres viajantes, a polícia de Buenos Aires se via

como uma instituição consolidada. Fama reforçada, ainda mais, por seus países

vizinhos: no início do século XX, as polícias do Rio de Janeiro, Montevideo e

Santiago do Chile – como veremos – enviaram emissários à capital argentina para

estudar seus serviços policiais, em particular as áreas de investigações e identificação

de criminosos. Esta mudança não marcaria o fim das visitas de estudo a Europa,

como testemunharia alguns relatórios posteriores.78 Mas a relação com as polícias

europeias, especialmente com aquelas consideradas “modelos” desde o século XIX,

havia mudado.

76 REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de la Capital, 1911-1912. Jefatura del General Ingeniero Luis J. Dellepiane. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1912, p. 10-11. 77 Idem, p. 10. Ver também: “Las policías extranjeras”, Revista de Policía, Año XVII, n. 399, Buenos Aires, 1 ene. 1914, p. 166. 78 Ver: SALCEDO, Eugenio H. Las policías de Londres, París y Roma. Informe presentado a la Jefatura de Policía con motivo de una comisión oficial para estudiar la organización de las mismas. Buenos Aires: Biblioteca Policial, 1936. SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. A Polícia Metropolitana de Londres e a Polícia Italiana. Conferências realizadas pelos integrantes da Delegação Paulista enviada à Europa. São Paulo: Serviço Gráfico da Secretaria de Segurança Pública, 1958.

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126

O subdelegado Eugenio Salcedo, enviado em 1934 para visitar as polícias do

velho mundo, regressava satisfeito de haver conhecido pessoalmente a “famosa

Scotland Yard”, mas um deleite maior lhe provocava constatar o que já parecia um

axioma: “no momento atual nossa polícia se encontra em um nível de organização e

domínio de elementos de luta contra a criminalidade, que a coloca em situação

destacada em relação a qualquer das instituições visitadas”.79 A nova Guerra

Mundial ajudaria a reforçar esta suspeita. A essa altura das circunstâncias, não havia

muito que invejar da Europa.

Modelos para armar: fascinação e desencanto

Os escritos que deixaram estes policiais viajantes permitem responder algumas

perguntas sobre a dinâmica das visitas de estudo. Como eram estes passeios pela

Europa? Quem os recebiam? A que tipo de informação os hóspedes tinham acesso?

Brasil Silvado, Sampaio Ferraz, Mujica Farías, Vieyra e outros comissionados sul-

americanos percorreram trajetórias similares, entrevistaram os mesmos personagens

e leram um corpus parecido de obras. Isto não era produto de meras coincidências.

As polícias europeias, em especial as de Paris e Londres, estavam acostumadas a

receber visitantes estrangeiros e já tinham preparado um tipo de tour pelos labirintos

de suas respectivas burocracias. Durante sua visita à Prefeitura da Polícia de Paris,

Brasil Silvado comentava que ali se recebiam “comissões de todos os países”

atraídas pela “intensidade da admiração” ao modelo francês.80

Em geral, as chefaturas de polícia ativavam contatos usando os embaixadores

do governo nos países de destino. A revista portenha contava que Mujica Farías, no

momento de embarcar, levava com ele documentações para comprovar a “missão

oficial” e Brasil Silvado agradecia a colaboração das delegações brasileiras na França

79 SALCEDO, Eugenio H. Las policías de Londres, París y Roma. Op. Cit., p. 10. 80 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 3.

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127

e Inglaterra.81 Em Paris, ambos se encontraram com Louis Lépine, o prefeito que

durante duas décadas (quase sem interrupções desde 1893 até 1913), ganhou a fama

de grande modernizador da polícia francesa.82 Lépine se encontrou pessoalmente

com Brasil Silvado e Mujica Farías, mas, além disso, deixou os visitantes sul-

americanos em mãos de “guias” para o passeio institucional. O comissionado

argentino telegrafou à revista policial, pouco depois da primeira reunião com o

prefeito, contando que Monsieur Lépine havia designado “a um dos empregados

superiores da prefeitura para que o acompanhasse em suas visitas a todas as vastas

dependências da administração”.83 Brasil Silvado justificava a necessidade imperiosa

de contar com um guia na Prefeitura da Polícia:

É difícil de tornar-se conhecida do estrangeiro que quiser estudá-la. “Ella é um verdadeiro labirinto, enquanto não se alcança o fio condutor, diz Strauss, e o público se perde neste Dédalo de serviços esparsos, terrivelmente embaraçados uns com os outros.” Sem conversar previamente com alguma pessoa competente que nos dê indispensáveis explicações, é quase impossível pôr-se em condições de bem compreender. Inútil, para tal efeito, a leitura dos livros, por melhores que sejam, tão diferente e o organismo em ação do organismo apenas descrito!84

O brasileiro agregava o nome do guia que Lépine o concedeu. Tratava-se de

“Monsieur Le Roux”, subchefe do serviço de identificação dirigido pelo pai da

antropometria judiciária, Alphonse Bertillon.85 Por sua parte, Mujica Farías se

limitava a reconhecer, ao começo do livro, a cooperação dos diplomatas argentinos,

de Lépine e do chefe da polícia de Bruxelas, François Bourgeois.86 Mas as crônicas

81 “Al partir”, Revista de Policía, Año III, n. 66, Buenos Aires, 16 feb. 1900, p. 295. SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. IV. 82 BERLIÈRE, Jean-Marc. Le Préfet Lépine: vers la naissance de la police moderne. Paris: Denoel, 1993. 83 “El Dr. Mujica Farías en París”, Revista de Policía, Año III, n.71, Buenos Aires, 1 may. 1900, p. 387. 84 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 5. 85 Idem, p. 5-7. Analisarei o serviço de identificação antropométrica de Bertillon e suas relações com as polícias sul-americanas no próximo capítulo. 86 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 9.

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128

da Revista de Policía ofereciam maiores detalhes. Lépine e Mujica Farías foram

apresentados pelo embaixador argentino em Paris. “M. de Chabrol, chefe do gabinete

da prefeitura, foi designado como guia em sua longa visita” e outro funcionário

superior acompanhou-lhe na excursão pelas delegacias da banlieue, hospitais e

diferentes prisões.87 Somente essa visita parisiense consumiu dois meses da viagem,

em que – segundo a revista – Mujica Farías usou todos os dias para percorrer

repartições e acompanhar procedimentos nas ruas.

Em todas as partes, nosso Secretário Geral foi considerado como um funcionário da própria polícia francesa: em sua presença se realizaram os atos mais reservados do serviço policial, instruções para investigações, leitura e classificação de anônimos, recepção de denúncias. Assistiu também aos serviços externos, presenciando uma batida de ladrões e vagabundos, e visitando depois os bass-fonds, os antros do Paris criminal, e todos aqueles lugares em que a ação da polícia se faz sentir com maior eficácia.88

No final da visita, Lépine despediu o argentino com um grande banquete no

Palácio da Prefeitura. Estavam presentes todos os hierarcas da polícia parisiense,

entre eles o diretor geral de investigações, o chefe da Sûreté e o mesmíssimo

Bertillon. Ante a este público seleto, Mujica Farías ditou uma conferência na que

comparou os sistemas policiais de França e Argentina. Para o assombro dos

comensais, o visitante teve a ousadia de alternar elogios à polícia de Paris com

alguns questionamentos. Expôs argumentos críticos, aprofundados depois no livro,

sobre os dispositivos que lhe pareciam mais eficazes na polícia portenha (em

particular, o esquema descentralizado de delegacias seccionais) e outras inovações

argentinas que faltavam na capital francesa, como o uso do apito no serviço de rua.

Apesar das calorosas discussões desencadeadas pelo discurso, tudo terminou em um

cordial aplauso francês, enquanto o secretário geral, Monsier Laurent, lhe entregava

87 “El Dr. Mujica Farías en Europa. Honrosas demostraciones”, Revista de Policía, Año IV, n.73, Buenos Aires, 1 jun. 1900, p. 4-5. 88 Idem, p. 5.

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129

uma medalha de prata, reproduzida pela revista portenha como homenagem aos

anfitriões de Mujica Farías.89

Viagem a Paris de Manuel Mujica Farías

Fonte: Revista de Policía, Año IV, n. 80, Buenos Aires, 16 set. 1900, p. 117.

O modelo francês provocava fascinação, mas também alguns desencantos entre

estes visitantes. Brasil Silvado e Mujica Farías coincidiam em um ponto que lhes

parecia especialmente frágil: a centralização do mando na figura do prefeito. Ao

89 Idem, p. 5-6. A medalha foi reproduzida em “Nuestro grabado”, Revista de Policía, Año IV, n. 80, Buenos Aires, 16 set. 1900, p. 117-118, onde ainda se pediam desculpas pela ausência de um retrato do prefeito Lépine, que os editores da revista nesse momento não tinham.

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130

contrário dos comisarios portenhos e dos delegados cariocas, o commisaire

parisiense era um personagem cinzento, sem agentes subordinados para atuar em sua

jurisdição, quase sem interação com a Sûreté e a Polícia Municipal.90 Para pior dos

males, os delegados deviam se afastar de seus postos e comparecer periodicamente

na prefeitura para receber ordens diretas de Lépine. Em seu livro, Mujica Farías

questionava este mecanismo de forma muito enfática:

O cidadão de Buenos Aires não pode menos que olhar com estranheza, a situação equívoca, equilibrista, em que se encontram os funcionários correlativos da Polícia de Paris. Em nossa linguagem, a palavra comisario desperta a ideia do empregado superior da instituição policial, que tem em suas mãos a direção imediata da força pública, que está encarregado de prevenir os delitos, de apreender os criminosos quando a prevenção fosse impossível, de comprovar as contravenções, em uma palavra, exercer o imperium na via pública, de acordo com as leis e ordens da chefatura. Não sucede o mesmo na capital da França. Lá, o delegado de polícia não manda em nenhum agente; é um magistrado, um “homem de pena”, como o chama Puyberaud, e não um homem de ação.91

Os delegados portenhos também eram subordinados do chefe de polícia, mas

tinham uma margem de autonomia muito maior e contavam, ainda, cada um com

uma tropa de vigilantes a suas ordens para percorrer a “seção”. Nesse território, eram

a autoridade policial soberana, enquanto que em Paris, segundo Mujica Farías, a

capacidade do delegado para atuar ficava atrofiada por causa de uma centralização

mal entendida.92 Brasil Silvado opinava o mesmo. Os agentes de segurança

parisienses (inspecteurs de police) eram inteligentes, instruídos e engajados com os

90 Sobre esta condição incômoda do comissário parisiense, tensionada entre o poder central e o poder local, ver KALIFA, Dominique; KARILA-COHEN, Pierre. “L’homme l’entre-deux. L’identité brouillée du commissaire de police au XIXe siècle”. In: KALIFA, Dominique; KARILA-COHEN, Pierre (dir.). Le commissaire de police au XIXe siècle. Paris: Publications de la Sorbonne, 2008, p. 17-20. 91 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 178. 92 A concepção oficial da polícia portenha sobre o equilíbrio entre centralização e descentralização (um equilíbrio, por certo, mais retórico que efetivo), ficou plasmado no projeto de Código de 1911, quando definia os três princípios que sustentam a organização dos serviços policiais: unidade de direção focalizada na chefatura; descentralização dos serviços de acordo com a natureza de suas funções; e autonomia do funcionário. Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico Colón, 1911, p. VIII-IX.

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131

maiores escrúpulos, mas não produziam os resultados esperados por um “defeito de

administração bastante censurável em um sistema tão inteligente e completo”, ou

seja, “o hábito inveterado da centralização na França”.93 O comissionado brasileiro

julgava preferível guardar uma “pequena brigada de reserva” no edifício da

Prefeitura, distribuindo o resto da tropa nos distritos da cidade e na banlieue. Não era

suficiente ajustar os requisitos de ingresso e treinar melhor o vigilante de rua. Havia

que convertê-lo em “conhecedor cada vez mais completo dessas circunscrições” e

colocá-lo “sob as ordens imediatas dos chefes locais”.94

Vários anos depois destas viagens, as mesmas ideias persistiam em uma carta

que o Inspetor da Polícia Marítima do Rio de Janeiro, Trajano Louzada, enviava ao

chefe Leoni Ramos desde Paris. Louzada também havia percorrido Itália, Suíça,

Inglaterra, mas não se tratava de visitas oficiais. Mesmo assim, aproveitava a ocasião

para difundir no Brasil algumas observações:

O nosso corpo de agentes é ruim. O de Paris não é melhor (...). Fica-se aterrado ao se conhecer de perto a coisa tal como ela é. Quem vai ao Sr. Lépine, ou busca uma audiência do Sr. Hanard, volta encantado com o cavalheirismo desses senhores, que são gentilíssimos em nos contar anedotas sobre o secular serviço, cuja organização nos é mostrada com todos os remates do chic. Agora, venha ao quartier Montmartre à noite, gire sobre outros bairros inferiores e depois diga-me o que mais o apavorou, se a audácia dos caftens que em badernas, um por vez, esperam a escrava, lhe arrancam o dinheiro todo e lhe ordenam ir buscar mais, ou se os apaches, rapazes de 16 a 22 anos, todos franceses, que aparecem às dúzias em todos os recantos de Paris (...) Os estrangeiros mais animosos vão lá para conhecer a vida dos apaches!”. 95

Em Buenos Aires, os policiais escritores avançavam um passo mais. Não se

tratava apenas de desmitificar os modelos europeus, mas também de anunciar, em

muitos aspectos, a superioridade da própria instituição. O livro de Mujica Farías

ensinava aos portenhos que não havia “nada que copiar do estrangeiro, no que se

93 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 47. 94 Idem, p. 48. 95 LOUZADA, Trajano. “A nossa polícia e a polícia estrangeira. Uma carta interessante”, Boletim Policial, Ano IV, n. 2, jun.1910, p. 54.

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132

refere à organização policial, porque o sistema por nós adotado é bem superior ao

que rege nas mais afamadas polícias do velho continente”.96 No entanto, a “única e

relativa desvantagem” em relação à instituição que tinha a fama de “melhor polícia

do mundo” era a qualidade dos “elementos subalternos” disponíveis no mercado de

trabalho. Os agentes portenhos não se identificavam com o ofício, não estavam

dispostos a começar uma carreira policial, permanecer no posto e profissionalizar-se.

A organização policial de Buenos Aires parecia muito mais simples, racional e

eficaz. Mas o pessoal existente para executar as ações deixava muito que desejar.97

Se os inspecteurs de police e os gardiens de la paix eram admiráveis por suas

qualidades profissionais, o Great British Bobby constituía uma síntese de todas as

virtudes possíveis. Os relatos dos viajantes sul-americanos, policiais ou não,

lisonjeavam ao vigilante londrino de tal forma que pareciam apaixonados por sua

mítica figura. “A primeira impressão que o estrangeiro chegado a Londres recebe,

observando a polícia nas ruas, é excelente”, observava Brasil Silvado. “Os policiais,

extremamente corteses, senão amáveis, têm tal correção nas maneiras e no vestuário

que verdadeiramente seduz”.98 “Cortez, obsequiador, delicado, corajoso e tenaz”,

escrevia um jornalista carioca, o policeman mostrava um “aspecto sólido e vigoroso,

os modos lhanos mais imponentes”.99

Os exemplos argentinos podem se repetir até a saturação: “Todos sabem muito

bem o suave, o bem educado, o cavalheiro, para dizer em uma palavra, que são os

policeman. Qualquer pergunta que se faz a eles, as respondem apropriadamente,

demostrando preparação e inteligência”.100 Outro policial portenho, o delegado

Labanca, reproduzia em meados do século XX uma anedota que o próprio José

96 “La policía de París por el Dr. Manuel Mujica Farías”, Revista de Policía, Año IV, n. 88, Buenos Aires, 16 ene. 1901, p. 243. 97 Idem, p. 243-244. Os elogios ao caráter profissional do agente subalterno francês se repetem, no inicio do século XX, em outros artigos da revista. Ver por exemplo: MENDOZA, José T. “Modelos que hay que imitar. Las academias de Policía de París y Londres”, Revista de Policía, Año XXIII, n. 534, Buenos Aires, 16 set. 1920, p. 456-457. “La Policía de París y la de Buenos Aires”, Revista de Policía, Año XXIV, n. 557, Buenos Aires, 1 set.1921, p. 401. 98 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 154. 99 “A Polícia de Londres”, Boletim Policial, Ano II, n. 6, Rio de Janeiro, out. 1908, p. 247-248. Este artigo é uma reprodução de uma nota publicada no jornal O País, o dia 18 de set. 1908. 100 “El Policeman de Londres”, Revista de Policía, Año VII, n. 157, Buenos Aires, 1 dic. 1903, p. 201.

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133

Vieyra lhe contou sobre sua viagem europeia na década de 1910. Em uma estação de

trens em Londres, um esbelto vigilante lhe havia advertido, com fabulosos modos,

que não se separasse da sua mala porque a podiam roubar, por aquilo de que “a

ocasião faz o ladrão”. Assim era visto o Bobby: “bastava simplesmente um toque

com seu bastão, todo um símbolo, para que se acatasse e respeitasse nele a lei”.101

Para Elysio de Carvalho, esse respeito à lei era uma prolongação policial de uma

característica essencialmente britânica:

Os povos, já o disse Ives Guyot, têm a polícia que merecem. O povo inglês, por exemplo, possui um instituto de polícia modelar, graças à sabedoria da nação e ao espírito de disciplina de sua gente. (...) Obsequioso e delicado, corajoso e paciente, austero e temido, a mais notável máquina humana que se inventou, o policeman, é não só o mais belo exemplo do que podem o exercício e a disciplina, como também uma espécie de símbolo da civilização britânica.102

Nem sequer o cop norte-americano, com toda sua herança anglo-saxônica,

podia ser comparado com o policial inglês. Inglaterra, segundo explicava Brasil

Silvado, não conhecia as demissões massivas e sistemáticas de agentes que

respondiam a interesses políticos adversos ao partido dominante: “infelizmente, a

grande república norte-americana não pode dizer o mesmo”.103 Essa suposta

neutralidade política dos policeman ingleses, assombrava a alguns viajantes

americanos. Segundo um cronista argentino em Nova York era “notório que a polícia

tomava parte ativa nas disputas eleitorais”, enquanto que em Londres qualquer

vigilante que se intrometer em questões partidárias, era imediatamente despedido do

serviço. “Bobby deixa de ser Bobby quando o descobrem”.104

101 LABANCA, Nicolás. Recuerdos de la comisaría 3º. Ambiente y acción policial hace 50 años. Buenos Aires: Ediciones Viomar, 1969, p. 29. 102 CARVALHO, Elysio de. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 28. 103 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 163. 104 “La policía de Londres. Un estudio curioso”, Revista de Policía, Año VI, n. 145, Buenos Aires, 1 jun. 1903, p. 395. Este argumento foi resaltado por um historiador que comparou o desempenho dos cops norte-americanos e os Bobbies londrinos do século XIX, assinalando ainda que os primeiros intervinham nos conflitos sociais (por exemplo, os enfrentamentos entre trabalhadores nativos e imigrantes em diversas cidades dos Estados Unidos) em qualidade de parte interessada. MILLER,

Page 145: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

134

Alguns policiais da Argentina e Brasil, no entanto, se irritavam com os elogios

ao policial inglês. Muitos apelavam a contra-argumentos estatísticos, revelando com

cifras que os vigilantes de Londres recebiam melhores salários, trabalhavam menos

horas e, dividindo a quantidade total de agentes pelos quilômetros quadrados da

cidade, resultava maior a extensão territorial que devia patrulhar cada policial carioca

ou portenho.105 Outros, talvez a maioria, pensavam que o Bobby podia ser muito

bonito, porém, assim como era, com sua elegância, não poderia sobreviver nem uma

tarde na selva urbana das capitais sul-americanas, entre tanta falta de respeito à lei,

tanta viveza criolla, tanta malandragem carioca, tanta desordem. Isidoro Nunes,

tenente da Polícia Militar do Rio de Janeiro, se referia a isso quando criticava uma

nota do jornal O Brasil:

Oxalá pudesse o policial do Rio de Janeiro imitar o policial londrino, não no ponto de vista da instrução, porque esta lhe é ministrada eficientemente nas Escolas da Polícia Militar, mas sim no tocante a deixar, filosoficamente, nos quartéis suas armas e sair como qualquer cidadão, em calmas atitudes de passeio, para exercitar sua dupla missão preventiva e repressiva nas ocasiões em que seja ameaçada a ordem pública na nossa capital, onde o clássico não pode! ainda conta alguns prosélitos nos momentos precisos.106

Não obstante, nestes livros de viagem havia uma região do trabalho policial

onde a Inglaterra parecia estar bastante atrasada, pelo menos em relação à França: a

“caça de delinquentes”, segundo a expressão que usava Brasil Silvado. O brasileiro

escrevia que em Londres os grandes crimes ficavam na impunidade e que “apesar do

orgulho britânico, a polícia inglesa consulta constantemente à Prefeitura de Paris”.

Quando os visitantes diziam-lhe isso, Monsieur Bertillon, “sorria maliciosamente”.107

Wilbur R. Cops and Bobbies. Police Authority in New York and London, 1830-1870. Chicago: Chicago University Press, 1977. 105 Ver: “Las policías de Londres y Buenos Aires. Comparación entre sus gastos y servicios”, Boletín de Policía, Año I, n. 8, Buenos Aires, 15 ago. 1905, p. 11-12. “Variedades”, Revista Policial, Ano II, n. 14, Rio de Janeiro, 25 ago. 1904, p. 140. 106 NUNES, Isidoro.“O elogio do policial londrino”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia Militar, Ano I, n. 8, Rio de Janeiro, ago. 1926, p. 244. 107 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 158.

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135

Como Auguste Dupin, o detetive imaginado por Edgar Allan Poe, o investigador

ideal, o descobridor de crimes da polícia, falava francês. Um folhetinista portenho,

autor de famosos romances populares sobre vigilantes e ladrões, se referia às técnicas

de investigação criminal como uma “especialidade da polícia belga”, em tempos que

em Buenos Aires os próprios delegados perseguiam aos autores dos delitos.108

Cruz Sobrinho reconhecia que esta linhagem francófona vinha de “épocas

remotas”, ao menos do início do século XIX, quando Vidocq começou a trabalhar na

Sûreté e a contratar criminosos, alguns velhos amigos dele, como espiões e agentes

infiltrados.109 Mujica Farías e Brasil Silvado rejeitavam esta tradição da “polícia

secreta” e asseguravam que tudo isso havia mudado na França. Sem recrutar antigos

criminosos, nem deixar as tarefas em mãos de informantes imorais, Paris soube se

manter como a capital mundial da investigação graças à inovação tecnológica. Os

agentes do serviço de segurança eram selecionados com critérios estritos e instruídos

em escolas de formação profissional.110 “O inspecteur francês é o nosso agente de

polícia, a quem o povo tão impropriamente chama secreta”, afirmava o comissionado

brasileiro.111 Em Paris eram agentes verdadeiramente secretos que manejavam com

maestria a técnica da camouflage: “uma verdadeira arte, ensinada, estudada e

praticada nos alojamentos da Brigada de Segurança, com essa finura, gosto e

perfeição peculiares ao inteligente povo francês”.112

Em 1894, Lépine havia criado uma Direção Geral de Investigações, a que

Mujica Farías dedicava três capítulos inteiros. As brigadas de polícia política, as

“brigadas de costumes”, a Sûreté, o arquivo com antecedentes criminais e o cada vez

mais poderoso Serviço de Identificação Judiciária de Alphonse Bertillon ficavam sob

a órbita desta enorme repartição. Tal como veremos no próximo capítulo, o bureau

de Bertillon era um dos passeios mais esperados pelos visitantes sul-americanos. Era

aí onde estava em jogo, mais que em nenhum outro lugar, o caráter científico da

polícia moderna. Mas, além disso, nesse espaço começavam a se tramar outras

108 GUTIÉRREZ, Eduardo. Amor funesto. Buenos Aires: La Patria Argentina, 1881, p. 6. 109 CRUZ SOBRINHO. “A Polícia de Paris e a nossa”, Op. Cit., p. 11. 110 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 257. 111 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 34-35. 112 Idem, p. 34.

Page 147: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

136

formas de intercâmbio entre os policiais, que iam muito além da comparação de

modelos institucionais.

O sistema de fichas de identificação antropométrica ideado por Bertillon

aspirava a internacionalizar-se e converter-se em um mecanismo de cooperação

policial. A “permuta de fichas signaléticas” já era uma realidade, segundo Brasil

Silvado, facilitada pelos rápidos meios de locomoção da Europa. E lamentava que o

Rio de Janeiro não houvesse implementado um Gabinete Antropométrico de acordo

com os princípios parisienses, como já o haviam feito Montevidéu e Buenos Aires, as

capitais vizinhas do Rio da Prata.113 O brasileiro saiu encantado de sua visita pelo

serviço de Bertillon e levou de lembrança uma ficha antropométrica com seu próprio

retrato de frente e perfil.

“Modelo de cartão antropométrico”

Fonte: João Brasil Silvado, O serviço policial em Paris e Londres, 1895, p. 95.

113 Idem, p. 112.

Page 148: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

137

Mujica Farías também destacava as possibilidades de cooperação internacional,

a propósito de outro invento de Bertillon, a técnica do “retrato falado” (portrait

parlé):

O dia em que a polícia internacional o tiver adotado definitivamente será como um olho universal que desmascarará os criminosos, apesar da perfeição de seus disfarces. A adoção deste elemento novo para a polícia, e a repressão internacional dos crimes graves, não deixaria de sinalar um progresso verdadeiro na caça ao homem culpável, que constitui talvez a parte mais importante e menos fácil da ação repressiva.114

As polícias das capitais brasileiras e argentinas começavam a se preocupar pelo

intercâmbio de informações com seus pares europeus, e também com as conexões

entre si. A organização de um sistema de investigações criminais ainda era uma

dívida, embora Brasil Silvado antecipasse em 1895 uma questão que estaria presente

nas reformas policiais cariocas no começo do século XX. Afirmava que Buenos

Aires já contava com um corpo de agentes de investigação e que, pela aproximação

territorial e os constantes fluxos de pessoas entre ambos os países, era lamentável

que o Rio de Janeiro estivesse tão defasado. Havia que entrar urgente na era da

polícia técnica. “No dizer de um escritor francês, o crime, tendo-se tornado

profissional, exige também uma polícia profissional e científica”.115

114 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Op. Cit., p. 306. 115 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 235.

Page 149: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

O bureau e o laboratório

Seria desejável que o nome de cada homem estivesse escrito em sua testa, bem como gravado em sua porta. Seria desejável que não existisse nenhum segredo, que a casa de cada homem fosse feita de vidro.

Jeremy Bentham, Deontology (1834).1

João Brasil Silvado e Manuel Mujica Farías não foram os primeiros nem os

últimos policiais em se interessar pelo bureau de Alphonse Bertillon durante uma

viagem de estudos. Nos primeiros anos de existência, esse serviço foi visitado por

delegados de vários países, inclusive alguns sul-americanos. Na França, Brasil

Silvado havia advertido que os modernos sistemas de identificação de pessoas

começavam a ser usados no campo da cooperação internacional entre policiais

europeus. Por sua parte, na segunda metade do século XIX as polícias da América

Latina haviam incorporado a produção de retratos fotográficos de criminosos, o que

foi percebido como um grande avanço em relação ao único método utilizado até esse

momento: a circulação de filiações escritas com dados pessoais.2

1 BENTHAM, Jeremy. Deontology or the science of morality. Vol 2. London/Edinburgh: Longman and William Taft, 1834, p. 100. 2 A historiografia das modernas técnicas de identificação ganhou densidade recentemente. Alguns autores têm mostrado que as práticas de vigilância baseadas na identificação individual apareceram em meados do século XVIII, em contextos de tentativas por controlar a aceleração da mobilidade territorial humana. Ver os trabalhos coletados em CAPLAN, Jane; TORPEY, John (eds.). Documenting Individual Identity. The Development of State Practices in the Modern World. Princeton: Princeton University Press, 2001; e também: ABOUT, Ilsen; DENIS, Vincent. Histoire de l’identification des personnes. Paris: La Découverte, 2010. Sobre os inícios da fotografia com fins policiais na Argentina, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 55-78. Sobre a fotografia de criminosos no Brasil: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo. Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas: Unicamp, 2010, p. 205-259; e PESAVENTO, Sandra J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Editora Zou, 2009.

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139

A fotografia policial foi rapidamente utilizada para intercambiar informações

sobre diversos tipos de criminosos que atravessavam as fronteiras dos países. Em

1887, o chefe da polícia portenha, Aureliano Cuenca, escreveu uma carta à chefia do

Uruguai, propondo que os departamentos de polícia de ambas as capitais do Rio da

Prata trocassem “retratos de ladrões conhecidos que houvessem sofrido uma ou mais

condenações”.3 Para isso, Cuenca havia encarregado ao Comissário de Investigações

a impressão de uma galeria fotográfica de ladrões, que nesse mesmo momento

enviava a Montevideo.4 O chefe acrescentava:

Seria também de suma utilidade que quando uma quadrilha ou ladrão tentasse mudar daquela cidade a esta, ou vice-versa, se desse recíproco aviso por telégrafo à chefia respectiva, indicando o ponto onde se dirige, informação que poderia obter-se facilmente por meio das Delegacias de Investigações.5

Duas invenções do século XIX, a fotografia e o telégrafo, se complementavam

para auxiliar as polícias na perseguição dos criminosos viajantes. Cuenca foi um dos

chefes mais interessados na incorporação de inovações tecnológicas e por isso

comissionou o médico da instituição, Agustín Drago, para estudar o sistema

antropométrico aproveitando uma viagem dele à Europa em 1887.6 O laboratório

3 Carta de 16 jul. 1887, reproduzida em: ROMAY, Francisco L. Extradición de delincuentes y cooperación policial. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1944, p. 13-14. E em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía de la Capital, 1888, p. 35-36. 4 Esta galeria foi publicada em dois volumes nesse mesmo ano: POLICÍA DE LA CAPITAL FEDERAL. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887. 5 REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888. Op. Cit., p. 35. 6 A viagem também havia sido uma visita de estudo encomendada pela chefia de polícia, embora originalmente tivesse propósitos mais amplos e envolvesse outras cidades europeias. Isso fica claro na carta que Cuenca entregou a Drago para que pudesse apresentá-la frente ao Prefeito Lépine: “Tenho a honra de me dirigir a V.Sa. solicitando sua valiosa cooperação para que o Doutor Agustín Drago, que apresentará pessoalmente esta nota, possa desempenhar com êxito a comissão que esta chefia lhe confiou. Creio que em nenhuma parte mais que nas grandes capitais europeias, e especialmente naquelas como Paris que tem reputação de contar com um excelente serviço de polícia, pode-se achar um modelo para a organização definitiva do serviço médico policial. É este estudo o que constitui a comissão encomendada ao Doutor Drago”. Drago levou à Europa cartas similares para apresentar nas polícias de Londres, Viena, Bruxelas e Madrid. Idem, p. 38.

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140

fotográfico, instalado na Polícia de Buenos Aires desde a década de 1870, era,

segundo Cuenca, uma “repartição de bastante movimento que, caso se estabelecesse

o Gabinete Antropométrico, duplicaria seu trabalho”.7 Drago regressou a Buenos

Aires em abril de 1888 e expôs ao chefe os resultados de suas observações em Paris.

Entusiasmado, Cuenca o autorizou a adquirir os instrumentos e aparelhos necessários

para o estabelecimento do serviço.8 Oficialmente, o Gabinete foi inaugurado um ano

depois, porque foi necessário instruir os funcionários na tomada de medições

antropométricas e no registro dos dados nas fichas. A “ordem do dia” da chefatura

que criou esta repartição por decreto, em abril de 1889, dizia:

Em vista do crescimento gradual da população e por consequência do aumento proporcional da criminalidade, é necessário adaptar o serviço da polícia a todas aquelas melhoras, cuja prática nas nações europeias tem alcançado excelentes resultados. (...) Não há atualmente base fixa para comprovação de identidade, nem se subordina a nenhum princípio científico, de onde resulta que a circunstância agravante da reincidência não pode, na maior parte dos casos, ser estabelecida com precisão, pelo cuidado que têm geralmente os criminosos de ocultar seus nomes e fornecer dados falsos.9

Nesse mesmo ano realizou-se em Paris o II Congresso de Antropologia

Criminal, que foi central para a difusão transnacional do sistema antropométrico. O

primeiro (Roma, 1885) havia consagrado a Scuola Positiva italiana, liderada pelo

grande professor de Turim, Cesare Lombroso. A própria exposição parisiense

dedicou à nova ciência um setor na seção de ciências antropológicas, onde se

exibiam fotografias de delinquentes, pedaços de peles curtidas para conservar

tatuagens, esqueletos humanos, crânios e cérebros. Podiam-se ver também alguns

instrumentos – antropômetros, catetômetros – empregados pelas disciplinas da moda,

como a frenologia e a craniometria. Uma verdade científica parecia emanar dos

7 Idem, p. XIV. 8 CONI, Emilio R. Código de Higiene y Medicina Legal de la República Argentina. Buenos Aires: Librería de Juan Etchepareborda, 1891, p. 392-393. 9 CEHP. “Orden del día 3 de abril de 1889”, Libro de Órdenes del Día 1889.

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141

próprios corpos dos criminosos para tirar o crime da obscuridade do enigma

metafísico.

No entanto, este segundo congresso foi testemunha da emergência de vozes

contrárias à ideia do homo criminalis. As diatribes partiram da Escola de Lyon, onde

se destacava o fundador da prestigiosa revista Archives d’Anthropologie Criminelle

(1885-1914), o médico legista Alexandre Lacassagne. Ele será um dos principais

opositores à teoria lombrosiana e difusor de outras chaves interpretativas, tais como

os estudos de Gabriel Tarde sobre a influência do meio social na formação de uma

carreira criminal. Mas, por sua vez, Lacassagne se encarregou de dar um grande

impulso a uma região diferente dos saberes sobre a questão criminal. Desde sua

cátedra na Faculdade de Lyon, organizou um Museu e um Laboratório de Medicina

Legal, deixando ainda uma fileira de discípulos como Edmond Locard, verdadeira

eminência do campo de conhecimentos que começara a institucionalizar-se sob o

nome de “polícia científica” ou “criminalística”, uma amálgama eclética de técnicas

aplicadas à investigação e à reconstrução das circunstâncias materiais que rodeavam

o delito.10

Por isso, pouco chama a atenção o fato de que Lacassagne, ao mesmo tempo

em que combatia as “teorias antropométricas” (como ele chamava as contribuições

dos criminologistas italianos), acolhia com entusiasmo os novos usos que o policial

francês Alphonse Bertillon inventou para a antropometria. Estas técnicas não

buscavam uma explicação científica da etiologia do delito; ao contrário, aplicavam a

ciência para resolver alguns problemas concretos das burocracias judiciais e

policiais. No momento do Congresso de 1889, Bertillon já era Chefe do Serviço de

Identificação na Prefeitura de Polícia de Paris e membro da Sociedade de

Antropologia. Essas conquistas, junto ao apoio de Lacassagne, foram suficientes para

que ele se imiscuísse na lista de médicos e advogados do comitê organizador, sem ter

ele próprio título universitário algum.

A aposta de Bertillon era difundir seu sistema pelas polícias do mundo, uma

ambição desmedida, sem dúvidas, mas que começava a dar seus primeiros frutos.

10 QUINCHE, Nicolas. Sur les traces du crime. De la naissance du regard indicial à l’institutionnalisation de la police scientifique et technique en Suisse et en France. Genève: Slatkine, 2011.

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142

Após uma conferência teórica e prática sobre a identificação antropométrica,

Bertillon sentou-se em uma mesa presidida por Lombroso, para escutar o discurso de

um dos representantes argentinos. O bacharel Cantilo explicou que o sistema já havia

sido adotado fora da França: as polícias de alguns estados norte-americanos e a de

Buenos Aires tinham serviços antropométricos instalados sob os lineamentos de

Bertillon. Ao final de sua exposição, Cantilo leu as seguintes palavras:

O Congresso Antropológico declara o sistema de Bertillon aceito para a determinação da identidade individual, por seus resultados práticos incontestáveis. Considera que sua generalização, sua instalação oficial em cada país, será de grande utilidade como auxiliar das leis penais para a repressão do crime, e proporcionará preciosos dados para os estudos de antropologia criminal.11

Nesta proposta, aprovada por unanimidade, continham-se as chaves do triunfo

internacional e das resistências imediatas ao sistema, assim como também parte dos

motivos de seu futuro declínio. Esta mesa no congresso de 1889 marca o início da

difusão transnacional do sistema de Bertillon, tanto ao interior da Europa como em

outros continentes. O caso da América Latina teve uma notável visibilidade: a partir

de viagens de estudo a Paris, traduções de artigos e manuais de Bertillon, formaram-

se especialistas em identificação antropométrica em países como México, Equador,

Peru, Chile, Uruguai, Argentina e Brasil.12 O próprio Bertillon reconhecia que a

polícia de Buenos Aires havia sido a primeira a adotar oficialmente seu método fora

da França. No entanto, o notável desenvolvimento de técnicos locais terminou

posicionando este continente, em especial a Argentina e o Brasil, como um dos

principais núcleos de oposição à antropometria judiciária, desde o momento em que

as polícias sul-americanas afirmaram a superioridade da datiloscopia.

11 CANTILO, M. “Sur le signalament anthropométrique”. In: Actes du Deuxième Congrès International d’Anthropologie Criminelle, Biologie et Sociologie, Paris, 1889, p. 379. 12 Sobre a difusão na América Latina ver: GALEANO, Diego; GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Cartographie du bertillonnage. Le système anthropométrique en Amérique latine: circuits de diffusion, usages et résistances”. In: PIAZZA, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique. Alphonse Bertillon, précurseur de la science du crime. Paris: Karthala, 2011, p. 308-331.

Page 154: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

143

No ano seguinte à inauguração do Gabinete Antropométrico de Buenos Aires e

à consagração internacional do método de Bertillon no congresso parisiense, o

médico carioca Henrique Monat enviava da França ao primeiro chefe de polícia da

República do Brasil, um relatório sobre o sistema antropométrico.13 A instabilidade

política dos primeiros anos republicanos impediu avançar com as diferentes

propostas que chegaram às mãos das chefias. Em 1891, por exemplo, o professor da

Faculdade de Direito de Recife, Joaquim de Albuquerque Barros Guimarães, viajou a

Paris para estudar o sistema antropométrico, comissionado pelo governo federal.14

No ano seguinte, apresentou um volumoso relatório cujos capítulos foram publicados

parcialmente, em 1900, pelo “Boletim do Serviço de Identificação Judiciária”. No

relatório, o jurisconsulto pernambucano argumentava que os “malfeitores

internacionais” estavam desaparecendo de Paris e se mudavam a outras cidades

europeias, com medo que o serviço de identificação demonstrasse sua condição de

reincidentes e, em consequência, a justiça os deportasse às colônias francesas.15

Além disso, Barros Guimarães acrescentava:

São numerosos os casos de reconhecimento por informações trocadas entre o serviço de Paris e o dos departamentos e dos países estrangeiros que já possuem esse melhoramento [o sistema antropométrico]. Em caso de urgência, as informações são pedidas e transmitidas pelo telégrafo. Tudo leva a crer que em pouco tempo será somente do domínio do romance o êxito feliz das declarações falsas de identidade pessoal.16

As falsas declarações de identidade eram parte de um amplo universo de

simulações que invadiam as capitais sul-americanas e surpreendiam inclusive muitos

policiais, cronistas da imprensa e escritores de literatura. “Abriu uma caixa de

papelão, da qual sacou três estojos e umas barbas postiças”, escrevia Martel em La

13 MONAT, Henrique. “Carta do Dr. Henrique Monat”, Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Ano XLII, n. 117, 1903, p. 17-18. 14 AN, Fundo GIFI, Gabinete do Ministro, 8N-80. Despacho do Sr. Ministro da Justiça, 5 fev. 1892. 15 BARROS GUIMARÃES, Joaquim de Albuquerque. “Efeitos da aplicação do Método Bertillon”, Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 2, Rio de Janeiro, mar. 1900, p. 2. 16 Idem, p. 5.

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144

Bolsa. “Pouco depois, ninguém, nem o policial farejador de melhor olfato, poderia

suspeitar quem se ocultava detrás daquele operário loiro, com óculos azuis e ar

cordial”.17 Mudança de nomes, emprego de um arsenal de pseudônimos e disfarces

de todos os tipos eram parte do trabalho dos ladrões viajantes, que aproveitavam uma

realidade urbana cada dia mais contundente: nas capitais sul-americanas, em especial

nas cidades que recebiam imigrações maciças, as interações cotidianas estavam

dominadas pelo anonimato.

Simulações e identidades

Em 1888, na revista policial de Buenos Aires, apareceram duas notas sobre o

serviço antropométrico de Paris, sem menção de autor, mas provavelmente escritas

pelo próprio Agustín Drago. Na primeira delas narrava-se o caso, observado na

repartição de Bertillon, de um criminoso francês que ao ser preso dizia se chamar

Pedro Durand, ter nascido na cidade de Nîmes e não ter antecedentes penais. Depois

de tomarem suas medições antropométricas e buscarem seu caso no arquivo, os

policiais franceses haviam conseguido demonstrar que se tratava de Louis Dubois,

um sujeito nascido em Bordeaux e que tinha seis condenações prévias. “E como à

ficha está anexada a fotografia”, não havia forma de negar sua verdadeira identidade:

“o malfeitor teve que confessar imediatamente que havia firmado o processo verbal

com falso nome, na delegacia de polícia”.18 Na segunda nota, o autor explicava:

Este sistema tem por objetivo determinar a identidade dos indivíduos reincidentes que pretenderem ocultar seu estado civil. (...) A fotografia, usada antes a esse efeito, não podia dar resultados positivos sobretudo nas grandes populações. Sendo muitos os

17 MARTEL, Julián. La Bolsa: estudio social. Buenos Aires: Imprenta artística Buenos Aires, 1898, p. 256. 18 “El servicio antropométrico de París”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n. 2, Buenos Aires, 15 jun. 1888, p. 22-23.

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145

indivíduos presos, as coleções fotográficas eram imensas (...). A única classificação que podia ser empregada era a ordem alfabética e bastava que o preso desse um nome falso para que o índice não tivesse nenhuma utilidade.19

Os policiais sul-americanos estavam fascinados com as promessas do sistema

antropométrico, sobre a possibilidade de resolver um problema que eles viviam no

cotidiano e na própria pele. Até pouco tempo, os vigilantes estavam habituados a

visitar os calabouços das delegacias e as prisões para realizar rondas de

reconhecimento de “ladrões conhecidos”, uma prática baseada na memória visual

que na gíria da polícia portenha se denominava “mangiamento”.20 Assim como a

fotografia, esta prática também era superada pela realidade demográfica e criminal.

Bertillon pretendia trocar a velha escola do reconhecimento visual por um tipo de

memória policial objetivada em papeis, fichas e arquivos. Mas quem era este

personagem? E como havia chegado a solucionar este problema?

Alphonse Bertillon pertencia a uma família de reconhecidos cientistas

franceses. Seu pai, Louis-Adolphe Bertillon, era Diretor de Estatística e um dos

fundadores da Sociedade de Antropologia de Paris. Em 1879, foi ele quem lhe

conseguiu um emprego na Prefeitura de Polícia, após uma frustrada tentativa de

seguir carreira de medicina. Começou a trabalhar como auxiliar escrevente e passou

em seguida a um bureau dedicado à cópia e ordenação das fichas de criminosos.

Esses documentos eram guardados na sala de sommiers, um arquivo que conservava

os dados pessoais dos indivíduos condenados pelos tribunais de justiça. As fichas se

acumulavam nas estantes seguindo a ordem alfabética dos nomes e eram consultadas

19 “Determinación de la identidad. Sistema de señalamientos antropométricos”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n. 3, Buenos Aires, 1 jul. 1888, p. 27-28. 20 DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al estudio de la psicología criminal. Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 118. No mesmo momento em que Agustín Drago estava estudando o sistema antropométrico na Europa, em Buenos Aires houve uma reunião dos funcionários superiores no despacho da chefatura, com a presença do Comissário de Investigações e dos vinte delegados da cidade. Um deles tomou a palavra para explicar que frequentemente levavam presos “indivíduos sobre cujos maus antecedentes se têm veementes suspeitas, e que não podem ser confirmadas pelos delegados porque eles dão nomes falsos”. A solução que propunha este delegado era de levá-los nos “carros de polícia” para uma ronda pelos cárceres e correcionais, de modo que os empregados dessas instituições os reconhecessem visualmente. REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-1888. Op. Cit., p. 187.

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146

pelos magistrados para saber se um acusado tinha antecedentes criminais, informação

que podia determinar um agravamento da pena por reincidência.

Desde a sanção de uma lei que em 1832 aboliu na França a prática de marcar a

pele dos reincidentes com um carimbo de ferro quente, o reconhecimento dos

reincidentes havia se tornado um processo burocrático bastante complexo. A busca

de um indivíduo no arquivo apresentava duas sérias complicações. Em primeiro

lugar, a quantidade de fichas crescia em ritmo constante e a averiguação fazia-se

cada dia mais dificultosa. Em segundo lugar, os chamados “malfeitores de profissão”

haviam aprendido um artifício para escapar à imputação de reincidência: bastava

trocar de nome, elegendo possivelmente um mais comum para aumentar a

dificuldade da procura na coleção alfabética, e desse modo a polícia não tinha forma

de demonstrar que esse nome era falso. Inclusive, essa artimanha tinha uma

expressão na gíria dos delinquentes franceses. Enganar a polícia e passar como um

novato sem antecedentes criminais era uma ação denominada “se blanchir”,

branquear-se.21

O problema da simulação de nomes era bem conhecido no século XIX. Em

vários romances de La Comédie humaine, Balzac criou um personagem chamado

Jacques Collin, um ex-presidiário que usava diferentes nomes falsos. Mas esta

questão excedia as ficções e o cotidiano dos policiais franceses. No Brasil, por

exemplo, o diretor do Gabinete Antropométrico do Rio de Janeiro explicava o

hipotético caso de um sujeito preso na Casa de Detenção sob o nome de Antônio,

logo depois condenado, mas posto em liberdade antes de ingressar na Casa de

Correção, pelo desconto de tempo da prisão preventiva. Se esse indivíduo fosse

novamente detido, mas desta vez declarasse chamar-se Pedro, como os registros de

condenações ficavam nos arquivos da Correção, ele seria “considerado como um

novo criminoso, quando não passa de um individuo insistente na prática do crime e,

muitas vezes, de um reincidente, nos restritos termos do nosso Código Penal”.22

21 KALUSZYNSKI, Martine. “Alphonse Bertillon et l’anthropométrie”. In: Vigier, Philippe; Faure, Alain (eds). Maintien de l’ordre et polices en France et en Europe au XIXe siècle. Paris: Créaphis, 1987, p. 270-272. 22 CARMIL, Renato. “Circular da Seção de Identificação Anthropométrica da Polícia da Capital Federal”, Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, Rio de Janeiro, mai.-jun. 1900, p. 10.

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147

Foi para esquivar-se deste mesmo problema que a polícia francesa resolveu

abonar uma gratificação de cinco francos a cada agente – policial ou penitenciário –

que reconhecesse um reincidente. Esta proposta confiava na capacidade dos

funcionários para memorizar os rostos dos criminosos, tradição que Macé, chefe da

Brigada de Segurança (Sûreté), chamava de “école de reconnaissance”. Bertillon,

acérrimo inimigo de Macé dentro da polícia parisiense, denunciava as deficiências

desta prática, pelos métodos violentos e truques ilegais que utilizavam para obter

uma confissão de reincidência. Segundo Bertillon, quando chegavam os carros com

detidos, estes eram submetidos, um por um, a interrogatórios que continham vários

tipos de emboscadas: “Ha quanto tempo não te vemos, meu velho!”, “Você de volta!

Como é mesmo que você se chama?”. E se o sujeito insistisse em afirmar um suposto

nome falso, os agentes empregavam uma armadilha um pouco mais sofisticada:

“Você afirma que seu nome é Bernard Paul, nascido em Paris tal ano! Bem, você está

sem sorte: aqui está a ficha desse tal Bernard que você pretende ser!”.23 Essa ficha

inventada continha supostamente uns antecedentes tão ruins que o preso preferia

retificar-se e confessar o verdadeiro nome, para evitar uma condenação maior.

Quando Bertillon começou a trabalhar na sala dos sommiers, as fichas incluíam

retratos fotográficos. Sem dúvidas, esta técnica brindava uma prova mais precisa em

relação às descrições que até então ajudavam ao reconhecimento (idade, cor de pele,

altura, cicatrizes, etc.). O problema era que o acervo de fichas fotográficas

aumentava tanto quanto os pedidos de comprovação de reincidência. Enquanto

estava sendo discutida a lei de relegação forçada de reincidentes às colônias

francesas, Bertillon interveio apontando um obstáculo burocrático ao que poucos

pareciam prestar atenção:

Não é suficiente fazer uma lei contra os reincidentes; é preciso também aplicá-la. Para condenar um reincidente à deportação, a primeira condição é reconhecer sua identidade. Se um indivíduo condenado certa vez sob o nome de Pierre afirma que se chama

23 BERTILLON, Alphonse. L'Identité des récidivistes et la loi de relégation. Paris: G. Masson, 1883, p. 4.

Page 159: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

148

Paul e que não tem condenação prévia, como podemos suspeitar de sua mentira? Como podemos demonstrá-la? 24

Os retratos fotográficos podiam completar a tarefa de reconhecimento de um

sujeito, em caso de encontrar sua ficha, mas o desafio era precisamente encontrá-la.

A classificação alfabética demonstrava uma enorme fragilidade ante a prática da

simulação de nomes e a fotografia, pois ela própria não permitia nenhum tipo de

classificação. O método criado por Bertillon oferecia um fio de Ariadne para se

orientar no labirinto desses arquivos criminais: tratava-se de um novo procedimento

para a elaboração e classificação das fichas. Este ponto é fundamental para entender

o sentido da identificação antropométrica: embora o sistema fosse se modificando

com os anos, Bertillon manteve desde o início uma ideia que estava presente em

1879, quando apresentou ao Prefeito Andrieux um primeiro ensaio de seu método

classificatório baseado nas medidas corporais dos detidos. Nessa ocasião, a chefia

recusou a proposta, qualificando seu invento de fumisterie.

Em que consistia exatamente esta inovação? Inspirado nas ideias da

antropologia física, fundamentalmente no pensamento de Paul Broca e Adolphe

Quételet, Bertillon experimentou métodos para classificar estatisticamente as

medidas do corpo humano. Os ensaios baseavam-se em duas premissas básicas: por

um lado, a fixidez quase absoluta da ossatura a partir do vigésimo ano de idade e, por

outro, a diversidade extrema das dimensões comparando as medidas de um indivíduo

com qualquer outro. Bertillon estabeleceu uma técnica baseada em nove medições

corporais: estatura, envergadura, altura do busto, comprimento e largura da cabeça,

comprimento e largura da orelha direita, comprimento do pé, dedo médio e antebraço

esquerdo. Estas medições eram realizadas com instrumentos bem simples (precisava-

se apenas de uma escala métrica fixa na parede, um tamborete, um cavalete e uma

série de compassos), mas a precisão milimétrica de cada uma das medidas era

essencial para o êxito da classificação.25

24 Idem, p. 1-2. 25 BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Instructions signalétiques. Melun: Imprimerie administrative, 1893.

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149

“Tomada do assignalamento anthropométrico”

Fonte: João Brasil Silvado, O serviço policial em Paris e Londres (1895), p.113.

A partir destas nove medidas se iniciava a classificação das fichas. O

procedimento estatístico se aplicava a um corpus de 120.000 sujeitos mensurados,

dos quais 20.000 eram mulheres e 10.000 homens menores de 21 anos. Descartando

essas duas populações, ficava então um conjunto de 90.000 homens adultos. O

primeiro passo era separá-los em três grupos de 30.000 fichas cada um, seguindo

uma tripla divisão das medidas da cabeça (comprimento pequeno, médio e grande;

categorias que eram determinadas por uma série de algoritmos). Cada um destes

grupos era subdividido em outros três de 10.000 fichas cada um, de acordo com as

dimensões da largura da cabeça. Estes nove conjuntos eram novamente divididos em

três, pelo comprimento do dedo, o que dava um total de vinte e sete subdivisões de

3.300 assinalamentos. Bertillon continuava esta lógica com outras medidas, até

Page 161: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

150

chegar finalmente a uma caixa que somente continha uma dezena de fichas, em uma

operação que demorava – segundo seu autor – apenas alguns minutos.26

Para Bertillon, dois indivíduos podiam ter algumas dessas medidas iguais, mas

em nenhum caso apresentariam as mesmas dimensões nas nove categorias. Dessa

maneira, o próprio corpo humano brindava os dados necessários para estabelecer

rigorosamente a “identidade”, entendida aqui como uma qualidade do indivíduo que

o faz absolutamente singular; característica em que se pode reconhecer sempre como

ele mesmo e como diferente, por sua vez, de qualquer outro indivíduo. Quando um

detido passava pelo Serviço de Identificação, tiravam suas medidas e as anotavam

em uma ficha junto com outros dados. As medições antropométricas permitiam por

em funcionamento o sistema de classificação de fichas, mas a comprovação direta da

identidade se completava com três conjuntos de informações adicionais.

O primeiro era o que se chamava “assinalamento descritivo”, um tipo de

racionalização das velhas filiações de criminais usadas para auxiliar os pedidos de

capturas. Bertillon codificou cada um dos dados resultantes da observação

morfológica e fisionômica de uma pessoa, até criar um esquema quase matemático

para explicação verbal da aparência física, conhecido como “retrato falado”. A

explicação da forma do nariz, orelha ou sobrancelhas deveria estar sujeita a uma

série de fórmulas descritivas precisas que poderiam ajudar na identificação de um

suspeito na via pública. Especial atenção dedicou à reconstrução do olhar e de toda a

fisionomia que rodeava aos olhos.27

O relevo de “marcas particulares” constituía um segundo conjunto de dados,

utilizado para comprovar a identidade individual, uma vez que se chegava, seguindo

a classificação, a uma quantidade manipulável de fichas. Neste caso, tratava-se de

uma localização e descrição minuciosa das cicatrizes, marcas e tatuagens localizadas

no corpo do sujeito mensurado. Finalmente, o processo de identificação concluía

com a incorporação da “fotografia judiciária”. Mesmo que os registros fotográficos

não tivessem nenhuma utilidade para a classificação, uma vez que o sistema

26 BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Op. Cit., p. XXI-XXV. 27 Dentro do kit de instrumentos para a identificação antropométrica, que os serviços policiais de vários países importaram de Paris, havia uma tabela com as variações cromáticas da pigmentação da íris. Idem, p. 137-140.

Page 162: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

151

antropométrico tornava possível chegar até uma ficha, a coincidência do retrato

estampado no papel com rosto do detido era uma prova mais que contundente.

De fato, a aceitação da antropometria na Prefeitura de Polícia de Paris chegou a

começos de 1883 através de uma identificação exitosa que combinou o método de

classificação com a fotografia. Depois do fracasso de 1879, um novo prefeito

concedeu a Bertillon dois empregados auxiliares e três meses para identificar um

reincidente, prazo em que ele chegou a acumular umas duas mil fichas. Certo dia,

após medir um detido por roubo, a classificação o conduziu a uma ficha

confeccionada pelo próprio Bertillon. O nome não coincidia e o preso negava esses

antecedentes por roubo, mas quando lhe mostraram a ficha acompanhada pelo seu

retrato fotográfico, ele terminou confessando a identidade.28

A partir desse momento, a carreira de Bertillon seguiu uma linha de ascensão

acelerada. A chefia resolveu criar um bureau de identificação anexo à Sûreté, que

entre 1882 e 1888 produziu 31.849 medições antropométricas com um saldo de 615

reincidentes identificados que usavam nomes falsos.29 Além disso, Bertillon

reformou completamente o modo de produzir fotografias na polícia, a partir de

instruções que buscavam evitar qualquer tipo de intervenção artística (os retoques na

imagem eram até então habituais inclusive na fotografia de criminosos), e estipular

condições rigorosas no ângulo e na posição do corpo.30 O efeito mais visível dessas

mudanças foi a estandardização da fotografia de frente e perfil, uma técnica que na

década de 1890 estendeu-se pelas polícias do mundo, incluindo as brasileiras e as

argentinas:

28 DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 218-220. 29 BERTILLON, Alphonse. Notice sur le fonctionnement du service d'identification de la Préfecture de Police: suivie de tableaux numériques résumant les documents anthropométriques accumulés dans les archives de ce service. Paris: G. Masson, 1889, p. 847. 30 BERTILLON, Alphonse. La Photographie Judiciaire en France: avec un appendice sur la classification et l’identification anthropométriques. Paris: Gauthier-Villars et fils, 1890.

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152

Fotografia Judiciária da Polícia da Capital Federal (1896)

Fonte: AN, Fundo GIFI, 6C8

Manuel Rossi, retratado em agosto de 1889

Fonte: BNA, Galería de Ladrones, 1888-1891. Buenos Aires, 1892, ficha 34.

Page 164: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

153

Uma vez consolidado o serviço de identificação na Prefeitura de Polícia,

Bertillon avançou na criação de um sistema nacional centralizado em Paris

(conquista concretizada em 1893), e ainda continuou estendendo suas investigações a

outros domínios da polícia científica: fotografia métrica no lugar do crime,

identificação de cadáveres, etc.31 Todo esse ensamble de técnicas foi batizado por

Lacassagne com o nome de bertillonnage, apelido que dominaria a cena na árdua

tarefa de difusão internacional que recém começava.32

Antes da irrupção de Vucetich no teatro mundial das técnicas de identificação,

Bertillon dominava a cena com relativa comodidade. Em 1893, quando acabava de

conseguir a aceitação do método em toda França, o pai da antropometria celebrava as

conquistas no mundo: Estados Unidos, Bélgica, Suíça, Rússia, Romênia e “grande

parte das repúblicas da América do Sul” haviam seguido o exemplo. Mas é preciso

compreender o que estava em jogo quando se discutia o alcance territorial do

sistema. Bertillon citava um documento difundido pelo Departamento de Polícia de

Genebra, onde se afirmava que desde a implementação da antropometria judiciária,

as “associações internacionais de malfeitores” e os “criminosos de profissão” dessa

cidade começavam a emigrar para Bélgica.33

Em sintonia com Barros Guimarães, Brasil Silvado destacava o efeito

produzido pelo método de Bertillon sobre a classe dos “ladrões internacionais”,

grupo que agora tratava de “evitar os lugares onde existe a identificação

antropométrica”. Porém, Brasil Silvado ainda adicionava outro argumento a favor da

implementação do sistema no Brasil. Da mesma forma que os criminosos de Genebra

migravam a Bruxelas para fugir da temível novidade policial, os ladrões do Rio da

Prata, cujo principal porto já contava com serviços antropométricos, poderiam

aproveitar a ausência de gabinetes de identificação nas cidades brasileiras.34 Por isso,

31 ABOUT, Ilsen. “Les fondations d’un système national d’identification policière en France (1893-1914). Anthropométrie, signalements et fichiers”, Genèses, Paris, n. 54, 2004, p. 28-52. 32 LOCARD, Edmond. “L’œuvre d’Alphonse Bertillon”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 243, 1914, p. 169. 33 BERTILLON, Alphonse. Identification anthropométrique. Op. Cit., p. LXXXII. 34 SILVADO, Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 106.

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154

logo após explicar cada um dos componentes do bertillonnage, recomendava

energicamente sua adoção no Brasil, para evitar a defasagem com a capital argentina.

Os gabinetes antropométricos

O que curiosamente Brasil Silvado desconhecia aqui era que enquanto ele

viajava pela Europa, o chefe da Polícia da Capital Federal, coronel Valladão, abria

no Rio de Janeiro um gabinete antropométrico. Diferente do caso argentino, aqui a

iniciativa provinha de fora da esfera policial: partiu do seio da Associação de

Antropologia e Assistência Criminal, fundada em 1892 por um grupo de médicos

legistas, juristas e criminologistas ligados à escola italiana, como Agostinho J. de

Souza Lima, Cândido Mendes de Almeida, José A. de Souza Gomes e Antônio

Maria Teixeira. Estes três últimos constituíram uma comissão que estudou o relatório

de Barros Guimarães e redigiram um parecer – datado de 20 de abril de 1893 – com a

ideia de persuadir o governo para que criasse o serviço. Nesse mesmo ano, antes de

fazer com que a Polícia da Capital aceitasse a proposta, Souza Gomes viajou ao

estado de Minas Gerais em nome da Associação e conseguiu que a chefia da polícia

instalasse um gabinete antropométrico na Cadeia de Ouro Preto. Dirigido por um

médico, segundo parece, o gabinete foi fechado antes de chegar a funcionar

regularmente.35

A presença de médicos e criminologistas marcou as tentativas burocráticas

destes anos. De fato, a entrada do bertillonnage no Brasil deve ser pensada no clima

de reformas institucionais durante os primeiros anos republicanos. O duplo estatuto

científico e técnico do sistema antropométrico foi bem recebido por uma fração das

elites urbanas que pretendia sustentar o exercício do poder político sobre as bases da

ciência moderna. Mas, ao mesmo tempo, foi objeto de uma multiplicidade de

35 CARMIL, Renato. “Relatório sobre o serviço de identificação antropométrica, apresentado ao cidadão Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo bacharel Renato Carmil, 4° adjunto dos promotores”, Diario Official da União, Ano XXXVI, n. 91, abr. 1897, p. 4537-4539.

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155

ataques, suspeitas e resistências. O bacharelismo vigente desde a época do Império

estava vendo como brotavam uma pletora de novos saberes – higienismo,

criminologia, psiquiatria, medicina legal – que começavam a disputar espaços no

campo estatal.36

O gabinete carioca, inaugurado em 12 de outubro de 1894, foi instalado no

laboratório de medicina legal e ficou a cargo de um antigo médico da polícia,

Thomaz Coelho. Por outra parte, todos os indícios parecem respaldar a suspeita do

escritor Félix Pacheco, quando acusava os membros da Associação de haverem

montado o serviço com maior interesse em realizar estudos de antropologia criminal

que em identificar reincidentes.37 Durante seus escassos meses de atividade efetiva,

apenas foram medidos dezessete homens e duas mulheres, entre eles um menor de

idade.38 As inclinações criminológicas de seus impulsores serviram de argumento

para questionar a legalidade do gabinete antropométrico, posição que tomaram

alguns juristas de tendência liberal, porque entendiam que este método podia ser um

vexame aplicado sobre indivíduos que ainda não haviam recebido condenação.39

36 Neste terreno, o rival mais forte dos juristas foram os médicos, cuja ascensão durante a Primeira República foi um processo bastante estudado pela historiografia brasileira Ver, por exemplo: CARRARA, Sergio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EdUSF, 1998. ÁLVAREZ, Marcos. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003. ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp, 1999. 37 PACHECO, Félix. “O problema da identificação: reforma do serviço anthropométrico”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 30 dez. 1902. Traduzido na Argentina em: PACHECO, Félix. “Identificación de los delincuentes. Ventajas del sistema dactiloscópico”, Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines, Buenos Aires, abr.-mai. 1903, p. 227-235. 38 Pouco depois da inauguração do gabinete carioca, Souza Gomes publicou um folheto em que mostrava os resultados de uma série de “exames antropométricos” sobre homicidas brasileiros, presos nas Casas de Detenção e Correção. SOUZA GOMES, José A. Crimes e criminosos: contribuição para o estudo da criminologia no Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Moraes, 1895. Em 1896 criou-se um gabinete antropométrico na Cadeia de Porto Alegre, cujo diretor, o médico legista Sebastião Leão, também incursionou em estudos de antropologia criminal empregando as medições antropométricas sobre os detidos. LEÃO, Sebastião. “Relatório do Doutor Sebastião Leão, Médico da Polícia”. In: Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: s/d, 1897, p. 213-225. 39 Sobre estas críticas ver: CUNHA, Olívia M. Gomes da. “The Stigma of Dishonor: Individual Records, Criminal Files, and Identification in Rio de Janeiro, 1903–1940”. In: CAULFIELD, Sueann; PUTNAM, Laura; CHAMBERS, Sara (org.). Honor, Status and Law in Modern Latin America. Durham: Duke University Press, 2005, p. 295-316.

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156

Mesmo que na capital argentina a proposta de criação de um serviço de

identificação antropométrico surgisse da chefatura de polícia, existia também uma

ligação estreita do serviço com os círculos médicos e criminológicos de Buenos

Aires. Em 1885, o primeiro Congresso de Antropologia Criminal havia contado com

a participação de Bertillon, que apresentou um trabalho sobre a aplicação da

antropometria para a comprovação de antecedentes penais nos casos de

reincidência.40 O impacto do triunfo da escola italiana de criminologia nesse

congresso chegou rápido a Buenos Aires, onde em 1888 se criou a “Sociedade de

Antropologia Jurídica”, por iniciativa de Luis M. Drago, irmão do primeiro diretor

do Gabinete Antropométrico.41 Nesse ano Drago publicou Los hombres de presa,

considerado o primeiro livro de criminologia na América Latina, onde dedicava

algumas páginas a explicar o sistema de Bertillon, utilizando as atas do Congresso de

Roma e, além disso, anunciava a instalação do serviço na polícia portenha.42

O Gabinete Antropométrico de Buenos Aires se instalou no palácio recém

inaugurado do Departamento Central de Polícia, em novembro de 1888. Cuenca já

havia sido substituído na chefia por Alberto Capdevilla, que curiosamente

apresentava a novidade como uma decisão própria:

Há bastante tempo que tinha o pensamento de criar o Gabinete de Identificação Antropométrica e não havia podido levar a cabo a ideia no antigo palácio da polícia por falta de local. Imediatamente instalado no novo, ordenei que trouxessem da Europa os instrumentos necessários e a regulamentação que se solicitou ao Dr. Alphonse Bertillon, Diretor do Gabinete Antropométrico de Paris e criador do sistema. Hoje se encontra funcionando e seus benéficos resultados não se farão esperar.43

40 BERTILLON, Alphonse. “Sur l'anthropométrie appliquée aux récidivistes”. In: Actes du Premier Congrès International d’Anthropologie Criminelle, Biologie et Sociologie. Rome, Nov. 1885. Turin: Bocca, 1886, p. 151-158. 41 DEL OLMO, Rosa. América Latina y su criminología. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 59. 42 DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1888, p. 183-188. 43 REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1888-1889. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1889, p. X-XI.

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157

Como ficava claro no orçamento da polícia, o Gabinete Antropométrico estava

subordinado ao Serviço Médico.44 Apesar de Drago ter enfrentado problemas

estruturais para a instalação da nova repartição (como, por exemplo, falta de

despesas e escassa instrução dos funcionários), havia algumas diferenças com relação

à experiência no Rio de Janeiro: o gabinete portenho manteve seu funcionamento

sem interrupções até princípios do século XX e conseguiu aumentar o nível de

produção de fichas de identificação. Ao passo que durante o primeiro ano se

mediram 582 indivíduos, em 1901 a cifra anual de sujeitos fichados chegava a 2.507

e, nesses trezes anos, o serviço acumulou 16.147 fichas. A capacidade de

identificação de reincidentes também cresceu: 30% dos indivíduos medidos em 1892

já contavam com fichas no arquivo e em 1899 essa cifra chegou a um pico de 80%.45

Estes avanços não impediram a chuva de resistências que se originavam

principalmente no poder judiciário, e inclusive algumas críticas provenientes das

fileiras da própria polícia. Nas páginas da revista policial portenha se dizia em 1897

que o Gabinete Antropométrico “não servia para nada” e que “passava ignorado”

entre os vigilantes. Não se pedia uma supressão do serviço, nem se considerava o

sistema antropométrico inútil, mas recriminava-se o escasso movimento do arquivo,

composto unicamente por fichas dos indivíduos que passavam pelos calabouços do

Departamento Central e que, por isso, o serviço não atingia a numerosa população de

contraventores e diversos sujeitos detidos nas delegacias.46

Era verdade que a produção de fichas no gabinete de Buenos Aires estava

longe dos desempenho de Paris, mas superava amplamente os números do Rio de

Janeiro, levando em conta não apenas os dezessete indivíduos medidos em 1894, mas

também a segunda experiência, iniciada em 1899. Desde 1895, o Gabinete

Antropométrico do Rio de Janeiro ficou em suspensão e os instrumentos adquiridos

44 O Serviço Médico da Polícia da Capital se dividia em duas repartições: o Gabinete Antropométrico, que contava somente com um “médico diretor” e um “ajudante de escritório”, e a “repartição de conservação e exposição de cadáveres”. Idem, p. 4. Dois anos depois, haviam-se agregado um “oficial primeiro”, um médico que atuava como subchefe, um fotógrafo e dois ajudantes. CONI, Emilio R. Código de Higiene y Medicina Legal de la República Argentina. Op. Cit., p. 393. 45 GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Op. Cit., p. 128-144. 46 “Oficina antropométrica”, Revista de policía, Año I, n. 15, Buenos Aires, 16 ene. 1897, p. 292-293.

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158

em Paris permaneceram guardados no depósito da sala de medicina legal.47 Em uma

série de cartas enviadas por Juan Vucetich à polícia carioca, em 1896, percebe-se a

desordem administrativa em relação ao problema da identificação. Vucetich tratava

de difundir no Brasil seu sistema de filiação “baseado nos sinais particulares e

cicatrizes do corpo humano, segundo o método dos professores Broca e Bertillon”,

como escrevia em uma destas cartas. Da chefia respondiam que o gabinete

antropométrico não havia passado de “simples ensaios” e que atualmente estava de

fato paralisado.48

Em 1898, outra missiva, desta vez do cônsul do Império austro-húngaro, fazia

chegar uma inquietude do chefe da polícia de Viena, quem queria saber se no Rio de

Janeiro se aplicavam aos detidos as “medições antropométricas segundo o sistema

inventado por Alphonse Bertillon” e, em tal caso, pedia que lhe mandassem fichas e

fotografias. A resposta afirmava que não existia nenhum serviço de identificação e

que apenas tiravam fotografias de “gatunos reincidentes”.49 Nesse momento

começava a funcionar um gabinete antropométrico no estado de São Paulo, o que

acentuava ainda mais o letargo carioca: em 1897 se adotou oficialmente o método

antropométrico e se instalou na prisão um gabinete, que nos primeiros anos do século

XX passou a depender da polícia, até 1906, em que foi substituído pela datiloscopia,

chegou a acumular quase cinco mil fichas de identificação.50

47 Em 1899, quando foi reaberto o serviço, um cronista do Jornal do Comércio que narrava a visita do chefe da polícia portenha ao Gabinete Antropométrico, escreveu sobre o destino dos instrumentos: “Ao tempo da administração do Coronel Valadão, cogitou-se da criação deste serviço e chegou-se mesmo a adquirir o material necessário e a efetuar diversas experiências. Sobreveio porém a revolta setembrina e todo o serviço ficou não só paralisado como também desorganizado. Os aparelhos voltaram para o depósito, onde ninguém mais se lembrou de retirá-los”. “Polícia Argentina”, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1-2. 48 Cartas de Juan Vucetich (10 de abril e 16 de outubro de 1896), Arquivo Nacional, Fundo GIFI, Documentos de Polícia, 6C8. Neste momento Vucetich era o chefe da Oficina Antropométrica na Província de Buenos Aires. Embora já incorporasse em seu sistema as impressões digitais, ainda não tinha descartado a antropometria, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Juan Vucetich. Una respuesta desde la dactiloscopia a los problemas del orden y la consolidación de la Nación Argentina”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 235-236. 49 AN, Fundo GIFI, 6C 23 (1898). Carta do Cônsul do Império austro-húngaro, 7 mai. 1898, e resposta da chefia da polícia, 11 mai. 1898. 50 SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Lei, cotidiano e cidade. Polícia Civil e práticas na São Paulo republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2009, p. 197-199.

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159

A possibilidade de estabelecer um mecanismo de trocas de informação entre as

polícias, sob um mesmo código, era uma das ambições que movia a difusão do

bertillonnage: “suprema aspiração da antropometria que é tornar-se um sistema

internacional, entendido em uma só linguagem escrita – a dos algarismos e a dos

sinais”, como observava Brasil Silvado.51 Foi precisamente ele quem resolveu

reestabelecer o serviço antropométrico, após ser designado chefe de polícia pelo

presidente Campos Sales. A rapidez com que o fez parece sugerir que a decisão

estava tomada de antemão: assumiu a chefia em 26 de julho de 1899 e nos primeiros

dias de agosto já começava a funcionar o novo gabinete.52

Em 1900, aparecia o “Boletim do Serviço de Identificação Judiciária”,

apresentado pelos diretores da repartição, Renato Carmil, um dos juristas que vinha

defendendo o bertillonnage como funcionário do Ministério da Justiça, e Souza

Gomes, que como vimos havia participado ativamente da experiência de 1894. No

primeiro número do Boletim, informava-se que o gabinete seguiu ordens da chefia

para estabelecer comunicação direta com as polícias estaduais e com os serviços

antropométricos estrangeiros. Durante os primeiros meses de funcionamento, o

serviço recebeu visitas pessoais de representantes dos estados do Pará, Bahia, Minas

Gerais e Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, o modelo de ficha utilizado no

gabinete foi enviado por correio às polícias da França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha,

Áustria-Hungria, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Argentina, Uruguai e

Chile. O próprio Bertillon respondeu à missiva, pedindo que lhe mandassem mais

informações para adicionar à seção que a Prefeitura de Polícia teria na Exposição

Universal de Paris, realizada em abril desse mesmo ano, onde se armaram uma série

de painéis com documentos dos gabinetes antropométricos de todo o mundo.53

Junto a essas tentativas para ingressar na rede internacional de trocas policiais,

o gabinete antropométrico avançou na tarefa de ampliar o universo dos identificados

51 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 105. 52 CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária. Apresentado ao Dr. Chefe de Polícia”, Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 1, Rio de Janeiro, jan. 1900, p. 4-6. 53 Ver a seção de Notas diversas no Boletim do Serviço de Identificação Judiciária n. 1, jan. 1900, p. 8-9; e no Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 2, mar. 1900, p. 14-15; Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, mai.-jun. de 1900, p. 11-12.

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160

e organizar o arquivo para reconhecer reincidentes. Para isso, os diretores contaram

com dois agentes a quem ensinaram tomar as medidas e a preencher as fichas. O

serviço foi instalado em uma sala da Repartição Central da Polícia e pôde incorporar

o instrumental fotográfico que já era empregado para retratar “gatunos conhecidos” e

cadáveres. De qualquer forma, os diretores pretendiam que o gabinete se realocasse

para a Casa de Detenção, para evitar o envio de presos até a polícia e unificar os

registros da prisão com o arquivo de fichas antropométricas.54 Isso foi contemplado

durante a reforma policial de 1900, em dois decretos do governo que regulamentaram

o funcionamento da Polícia da Capital e da Casa de Detenção.

Nestas regulamentações, declarava-se “instituída a identificação

antropométrica obrigatória dos réus presos, de acordo com o sistema de Alphonse

Bertillon”, serviço que devia ser feito nas instalações da cadeia. Os reclusos seriam

submetidos ao processo de identificação logo após a detenção ou no dia seguinte,

porém algumas categorias de detentos ficavam excluídas: os acusados por crimes

políticos, calúnia e injúria, duelos sem lesões corporais, adultério, as prostitutas e as

mulheres presas por infrações contra a moral pública e, em geral, todas as detenções

que não fossem propriamente criminais. Os outros presos podiam recusar as

medições antropométricas, mas nesse caso sofreriam uma pena disciplinar.

Finalmente, o serviço de identificação seria “secreto”, isto é, ninguém teria acesso às

fotografias e às fichas antropométricas. Somente as polícias do Brasil, do estrangeiro

e as autoridades judiciárias podiam solicitar informações sobre os sujeitos

identificados.55

Ao contrário do serviço antropométrico de 1894, desta vez as medições foram

feitas de forma mais sistemática. No segundo semestre de 1899 foram medidos 530

detidos, o que significou uma produção de 1.060 fichas, somando as antropométricas

e as alfabéticas.56 Dessa primeira leva, 89 sujeitos foram novamente detidos e

54 CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária”. Op. Cit., p. 4-5. 55 Atos do Poder Executivo. Decreto n. 3640 (Regulamento para o Serviço de Polícia do Distrito Federal), Art. 70, e Decreto n. 3641 (Regulamento da Casa de Detenção da Capital Federal). Art. 149-164. Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, Rio de Janeiro, mai.-jun. 1900, p. 3-8. 56 Tais estimativas pertencem ao relatório apresentado ao chefe de polícia: CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária”. Op. Cit. Em um relatório posterior,

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161

identificados, dois dos quais negaram ser reincidentes até que lhes mostraram o

retrato fotográfico tomado na detenção anterior. No entanto, os diretores aclaravam

que somente “estabeleceu-se a classificação alfabética, faltando apenas a

antropométrica, a qual depende de armários especiais que estão sendo

confeccionados”.57

E o que significava isso? No sentido estrito, as identificações não haviam sido

realizadas seguindo as regras do bertillonnage, mas revisando uma por uma as 530

fichas ordenadas alfabeticamente pelos nomes declarados, operação que em um

arquivo dessas dimensões ainda era possível. No ano seguinte, Souza Gomes viajou à

França para se atualizar sobre os instrumentos empregados no serviço parisiense.

Encomendou na Casa Saint-Laurent um jogo de aparelhos para tomar medições e

uma nova máquina fotográfica. E ainda, incorporou-se ao gabinete o armário que

permitia por em prática a classificação antropométrica stricto sensu.58 As

identificações, então, se multiplicaram: entre janeiro e dezembro de 1900 foram

medidos 1.633 detidos, dos quais 582 resultaram ser reincidentes cujas fichas

figuravam no arquivo.59

Em 22 de dezembro de 1900, os operadores do serviço antropométrico mediam

Carlos Justino, vulgo “Carletto”, que seis anos mais tarde se transformaria em um

personagem famoso, conhecido pelo “crime da Rua Carioca”, um roubo à joalheria

Jacob Fuoco e Cia, onde estrangulou duas pessoas.60 A ficha de Carletto revela qual

as cifras são um pouco diferentes: contabilizam-se 535 novas identificações e 87 verificações de identidade, ou seja, um total de 622 sujeitos mensurados. CASTRO, Antônio A. Cardoso de. “Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal”. In: Anexos ao Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904, p. 153. 57 CARMIL, Renato; SOUZA GOMES, José A. “Relatório da Seção de Identificação Judiciária”. Op. Cit., p. 6. 58 Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 3, Rio de Janeiro, mai.-jun. 1900, p. 2; Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 4, Rio de Janeiro, jul.-ago. 1900, p. 8. 59 CASTRO, Antônio A. Cardoso de. “Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal”. Op. Cit., p. 153. 60 Sobre Carletto e o caso do “crime da rua Carioca”, ver: DIAS, Allister A. Teixeira. Dramas de sangue na cidade: psiquiatria, loucura e assassinato no Rio de Janeiro (1901-1921). Dissertação de Mestrado em História das Ciências e da Saúde-Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010, p. 51-98. E também: OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos ladrões: crime e criminosos nas

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162

era o modelo adotado para realizar as identificações. Tratava-se da “ficha

parisiense”, um protocolo criado para unificar as informações na França que, a partir

de 1894, havia incorporado as impressões digitais da mão direita. Esta novidade era,

no interior do bertillonnage, uma tentativa de cooptação de uma técnica cada vez

mais ressonante, utilizada no mundo anglófono. Mas neste momento Bertillon não a

considerava uma peça do sistema classificatório, como mais tarde faria Vucetich,

porém uma prova suplementar de identificação, ao nível da fotografia e das marcas

particulares.61

Na parte superior da face frontal, a ficha tinha as observações antropométricas:

eram doze medidas, embora uma delas – a curvatura – estava neste caso em branco.

Também se registravam aí as notações cromáticas da íris esquerda, a cor da pele,

cabelo, barba e bigode. No centro se localizava o retrato fotográfico e na parte

inferior as cinco impressões digitais. Por seu turno, o verso era o espaço designado às

marcas particulares, cicatrizes e tatuagens. À direita, em cima de algumas linhas para

anotações diversas, constava o número da ficha e o nome do sujeito identificado.

reportagens policiais da imprensa. Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 169-175. 61 PIAZZA, Pierre. “Alphonse Bertillon face à la dactyloscopie. Nouvelle technologie policière d’identification et trajectoire bureaucratique”, Les Cahiers de la sécurité, Paris, n. 56, 2005, p. 251-270. ABOUT, Ilsen. “Naissance d’une science policière de l’identification en Italie (1902-1922)”, Les Cahiers de la Sécurité, Paris, n. 56, 2005, p. 167-200.

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Ficha antropométrica de Justino Carlo, vulgo Carletto (frente)

Fonte: Hermeto Lima, A identidade do homem pela impressão digital (1908), p. 16.

Incluída no mesmo livro, a ficha alfabética de Carletto fornece ainda uma pista

a mais. Neste cartão, registravam-se os dados de filiação e as “prisões verificadas”,

espaço onde aparecia anotada, abaixo da primeira detenção por roubo, a reclusão de

1906 pelos estrangulamentos da Rua Carioca.62 Isso mostra que o arquivo

antropométrico, enviado para a Casa de Detenção no final de 1900, continuou sendo

usado apesar da renuncia dos diretores, Carmil e Souza Gomes. Ainda assim, o

volume anual de identificações se manteve, e inclusive cresceu um pouco em 1901:

realizaram-se 1.770 medições, correspondentes a 751 verificações de reincidências e

1.019 novas identificações.63 Em agosto de 1901 havia assumido a direção do serviço

62 LIMA, Hermeto. A identidade do homem pela impressão digital (datiloscopia). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908, p. 21. 63 CASTRO, Antônio A. Cardoso de. “Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal”. Op. Cit., p. 154.

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164

antropométrico Félix Pacheco, que se converteria no principal promotor da

datiloscopia no Brasil e obstinado adversário do bertillonnage.

Pacheco daria um grande impulso ao gabinete. Em 1902, 3.740 detidos

passaram pelo processo de identificação, o que duplicava as cifras do ano anterior, e

em 1903 a quantidade subia a 6.290.64 Em fevereiro desse ano, no entanto, uma nova

reforma no regulamento da polícia carioca mudaria as regras do jogo. O serviço

passava a se chamar Gabinete de Identificação e Estatística, ao passo que a

identificação de criminosos ficava estabelecida como uma combinação de seis

procedimentos: exame descritivo (retrato falado); notas cromáticas; observações

antropométricas; sinais particulares, cicatrizes e tatuagens; impressões digitais;

fotografia de frente e perfil. Mas em seguida aclarava-se que todos esses dados

seriam “na sua totalidade subordinados à classificação dactiloscópica, de acordo com

o método instituído por D. Juan Vucetich, considerando-se, para todos os efeitos, a

impressão digital como a prova mais concluinte e positiva da identidade do

indivíduo”.65 Era o começo do final do bertillonnage no Brasil. Pacheco, e através

dele Vucetich, ganhavam a batalha. Mas quando havia começado? Sobre o que se

tratava essa guerra?

O congresso parisiense de 1889 havia marcado o início da consagração

internacional do bertillonnage, declarando sua suposta superioridade como método

de identificação, mas também sua contribuição “para os estudos de antropologia

criminal”. Embora esta técnica nascesse para resolver um problema específico de

organização dos arquivos policiais, durante seu apogeu passeou orgulhosamente

pelos encontros acadêmicos e publicações científicas. Deste modo, o sistema de

medições corporais inventado por Bertillon habitou uma região cinzenta e polêmica

nas fronteiras entre as ciências antropológicas e a burocracia judiciária. Esta vida

dupla teve suas ramificações no Brasil e foi precisamente o que gerou maiores

resistências locais à antropometria como sistema de identificação nas polícias.66

64 Idem, p. 154-155. 65 “Regulamento da Secretaria de Polícia do Distrito Federal”, aprovado por decreto n. 4764, de 5 de fevereiro de 1903. Diário Oficial da União, Ano XLII, n. 36, Rio de Janeiro, 12 fev. 1903. 66 Durante a Primeira República, cientistas como Edgard Roquette-Pinto usaram o bertillonnage no laboratório de antropologia física do Museu Nacional. KEULLER, Adriana Tavares do Amaral

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165

É preciso salientar que, apesar da sua inserção no mundo policial, Bertillon

nunca deu as costas às ciências antropológicas, com as quais estava vinculado desde

o início de sua vida profissional. Ao contrário, em 1909 publicou um tratado de

antropologia métrica junto a Arthur Chervin, cujo subtítulo era “conselhos práticos

para os missionários científicos sobre a forma de medir, fotografar e descrever

sujeitos vivos e peças anatômicas”.67 No livro, os autores difundiam um estojo

portátil com instrumentos para as medições antropométricas (denominado boîte de

mensuration), que havia sido utilizado uns anos antes por uma missão científica

francesa na América do Sul, especificamente nas regiões andinas do Peru, Bolívia,

Chile e Argentina. O estojo era composto por oito instrumentos para medições

antropométricas, três para as impressões digitais, uma tabela com a escala cromática

da íris humana e um livro de instruções.68

Estas derivações científicas do bertillonnage foram o eixo das críticas

encabeçadas pelos propagandistas brasileiros da datiloscopia no início do século XX.

Na principal acometida, Félix Pacheco protestava contra a intromissão da medicina e

da antropologia em um terreno que devia ser exclusivamente policial: a comprovação

da reincidência. O gabinete de identificação teria que se consolidar como um bureau

e não como um laboratório dedicado a estudos científicos, uma tendência que –

segundo Pacheco – havia dominado os ensaios de serviços antropométricos de Minas

Gerais, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Entre todos os possíveis usos

científicos, ao novo diretor do gabinete de identificação inquietava especialmente o

Martins. Os estudos físicos de antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro: cientistas, objetos, ideias e instrumentos (1876-1939). Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008, p. 162. 67 BERTILLON, Alphonse; CHERVIN, Arthur. Anthropologie métrique: conseils pratiques aux missionnaires scientifiques sur la manière de mesurer, de photographier et de décrire des sujets vivants et des pièces anatomiques. Paris: Imprimerie Nationale, 1909. 68 Idem, p. 9-11. Tudo isso era guardado em uma mala de madeira idêntica a que usaram os antropólogos brasileiros, cujo exemplar se preserva no Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional. Ver: SÁ, Guilherme José da Silva e; SANTOS, Ricardo Ventura; RODRIGUES-CARVALHO, Claudia; SILVA, Elizabeth Christina da. “Crânios, corpos e medidas: a constituição do acervo de instrumentos antropométricos do Museu Nacional na passagem do século XIX para o XX”, História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, Vol.15, n.1, jan-mar. 2008, p. 197-208.

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166

rizoma criminológico: “é curioso acentuar que andam sempre juntas a antropometria

do Sr. Bertillon e a antropologia do Sr. Lombroso”.69

O jurista argentino Ernesto Quesada, também partidário da datiloscopia no

começo do século XX, concordava com a crítica de Pacheco ao bertillonnage,

quando escrevia que o sistema antropométrico tomava “uma série exagerada de

dados complicados e desnecessários” que conduziam a se dedicar “às mais graves

especulações científicas”.70 Em algumas ocasiões, a confusão entre antropologia

criminal e antropometria judiciária alcançava até o próprio universo mental dos

delinquentes submetidos às medições corporais. H. H. Holmes, famoso falsário e

assassino serial de Chicago, condenado a morte em 1896, escrevia em suas

confissões uma defesa contra as acusações de degeneração física e atavismos que lhe

havia atribuído a imprensa, seguindo os conceitos dos criminologistas da moda:

“durante minha detenção – contestava – fui examinado pelo sistema Bertillon, mas

não descobriram em mim anomalias”.71

Esta declaração revelava também que, além da confusão entre os estudos

criminológicos e as práticas policiais de identificação, o sistema antropométrico

envolvia para muitos uma ofensa à honra. As resistências ao bertillonnage não se

restringiram ao cenáculo dos especialistas em identificação, e inclusive surgiram

antes que se desencadeasse a disputa com o sistema datiloscópico. Em 1897, Renato

Carmil se referia às objeções que até então haviam impedido a instalação do serviço

antropométrico do Rio de Janeiro:

Ele nada tem de estigma, não traz constrangimento a liberdade alguma, como procuram lobrigar seus antagonistas. (…) É muito mais degradante a longa prática de expor nos teatros, cafés, estradas de ferro e nos lugares mais públicos, retratos acompanhados da nota – gatunos, caftens, etc. – isso por uma

69 PACHECO, Félix. “O problema da identificação: reforma do serviço anthropométrico”, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 30 dez.1902. 70 QUESADA, Ernesto. Comprobación de la reincidencia. Proyecto de ley presentado al señor Ministro de Justicia e Instrucción Pública, Doctor D. Osvaldo Magnasco. Buenos Aires: Imprenta y Casa Editora de Coni Hermanos, 1901, p. 145. 71 HOLMES, H. H. “La confesión de un gran criminal”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 6, Buenos Aires, abr. 1899, p. 168.

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167

simples ordem do chefe de polícia. Entretanto, esse fato tem-se reproduzido inúmeras vezes, sem levantar protestos.72

Entre esses detratores estavam os nomes de políticos centrais na primeira

década republicana, como os abolicionistas Rui Barbosa e Cândido Barata Ribeiro,

zelosos de algumas intervenções estatais que puderam ser interpretadas como

vexames. A ofensa à honra pessoal foi uma acusação dirigida contra o sistema

antropométrico em outras grandes capitais latino-americanas, como Buenos Aires e

México.73 Em 1903, a meses da substituição da antropometria pela datiloscopia no

gabinete do Rio de Janeiro, o então senador Barata Ribeiro apresentou um projeto de

lei para regular as identificações na Casa de Detenção. O primeiro artigo do projeto

resolvia que somente seriam “submetidos aos processos de identificação os réus

condenados”, acrescentando além disso que a restrição era válida para qualquer

recluso “seja qual for a sentença, o sexo, a idade e a condição social”.74

Do ponto de vista jurídico, a crítica apontava contra a prerrogativa policial para

submeter a medições antropométricas e fotografar os indivíduos que não haviam

recebido condenação firme. No entanto, o parecer da Comissão de Justiça foi

totalmente contrário à opinião de Barata Ribeiro. Para eles, a identificação

antropométrica não era uma pena nem um atentado à liberdade que agravasse a

própria coação física de estar preso. Ainda, rotulavam o projeto de

“sentimentalismo”, porque a revolta do senador contra o bertillonnage teria

começado quando o gabinete submeteu a medições antropométricas um político

amigo de Barata Ribeiro que foi processado por um crime comum. “Só permitir a

72 CARMIL, Renato. “Relatório sobre o serviço de identificação antropométrica”. Op. Cit., p. 4538. 73 Sobre Buenos Aires, ver: RUGGIERO, Kristin. Modernity in the Flesh: Medicine, Law and Society in Turn-of-Century Argentina. California: Stanford University Press, 2004, p. 101-106. E sobre México: SPECKMAN GUERRA, Elisa. “En la inmensa urbe y el laberinto de los archivos: la identificación de criminales en la ciudad de México”. In: GALEANO, Diego; KAMINSKY, Gregorio (Coord.). Mirada (de) uniforme. Historia y crítica de la razón policial. Buenos Aires: Teseo, 2011, p. 142. Não faltaram nestas repúblicas comparações com velhas práticas punitivas que implicavam castigos corporais, tais como as marcas de ferro ou os açoites aos escravos. Ver: GALEANO, Diego; GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Cartographie du bertillonnage”. Op. Cit., p. 323-325. 74 SENADO FEDERAL. “Projeto n. 29, 15 de outubro de 1903”, citado em CARVALHO, Elysio de. A identificação como fundamento da vida jurídica. Biblioteca do Boletim Policial: VI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 17. Sobre este tema, ver: CUNHA, Olívia M. Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002, p. 17-20.

Page 179: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

168

identificação dos réus definitivamente condenados”, rematava o parecer, “é excluir

dessa medida uma porção da população adventícia, tão frequente nas grandes cidades

(...), que afluem às prisões e delas saem por motivos de segurança, mas sem que na

maior parte das vezes haja meios de processá-los”.75 Mesmo que o projeto do

senador Barata Ribeiro não fosse aprovado, a assimilação da antropometria com uma

prática vexatória é uma das chaves para entender o posterior sucesso das impressões

digitais.

Este receio frente ao possível caráter vexatório do bertillonnage estava também

presente em Buenos Aires. Uma nota da revista policial se queixava da atitude do

poder judiciário, principal responsável de que “se tenha discutido tantas vezes a

faculdade policial para medir os presos ou para conservar nos arquivos seus

antecedentes”.76 O redator exagerava muito quando acusava aos tribunais argentinos

de serem “os únicos, entre todas as demais nações que adotaram o sistema de

Bertillon, que tem dado curso a reclamações desta natureza”.77 Esta afirmação não

apenas desconhecia as críticas que havia recebido em outros países latino-

americanos, mas também os próprios questionamentos em Paris, a capital do sistema,

onde segundo Mujica Farías Bertillon era acusado de padecer de uma curiosa

“doença” que os jornais franceses haviam batizado “raiva antropometrômana”.78

Apesar das investidas contra o bertillonnage pelos seus usos cientificistas, a

explicação de sua futura derrota frente à datiloscopia não pareceria estar atada a esse

problema. No Brasil, de fato, a experiência do Gabinete Antropométrico de Renato

Carmil e Souza Gomes não estava tão perto dos “desvarios da escola italiana”,

segundo a expressão que empregava Pacheco.79 É verdade que os membros da

Associação de Antropologia e Assistência Criminal foram os responsáveis de dar-lhe

impulso. Mas não é menos certo que quando um de seus membros, o médico legista

75 Comissão de Justiça do Senado Federal, parecer n. 160, 22 de setembro de 1903 e parecer n. 22, 16 de agosto de 1906, citados em CARVALHO, Elysio de. A identificação como fundamento da vida jurídica. Op. Cit., p. 17-19. 76 “La oficina antropométrica. Carta de F. Beazley”, Revista de Policía, Año I, n. 6, Buenos Aires, 15 ago. 1897, p. 93. 77 Idem, p. 94. 78 MUJICA FARÍAS, Manuel. La policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 301. 79 PACHECO, Félix. “O problema da identificação”. Op. Cit.

Page 180: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

169

Souza Lima, elogiou as atividades do serviço antropométrico, seus diretores saíram a

responder que eles não pretendiam “meter a mão em seara alheia”. Que queriam

dizer com isso? Esclareceram no artigo com todas as letras:

O inventor do sistema usado na Seção de Identificação dos detentos, na Polícia da Capital Federal, Mr. A. Bertillon, não é médico. A ele jamais preocupou observar em um detento, para o fim da identificação, a que tipo pertence ele na família humana. Brachicephalo, dolichocephalo, pouco importa que seja um detento. O que se preocupa saber é se esse indivíduo já passou alguma vez pela prisão e por qual motivo. (...) Não temos, portanto, a pretensão de nos apresentarmos como nos dando a elevados estudos de antropologia.80

A mesma ideia repetiram Souza Gomes e Renato Carmil em agosto de 1901,

quando após renunciar ao Gabinete Antropométrico, que já estava nas mãos de Félix

Pacheco, compareceram a uma reunião ordinária do Instituto dos Advogados para

dissertar sobre os sistemas de identificação de Bertillon e Vucetich.81 A eficaz

propaganda do chamado “sistema argentino” havia começado nesse ano no II

Congresso Científico Latino-Americano, realizado em Montevidéu, e continuou no

seguinte, que teve lugar precisamente no Rio de Janeiro. Aí se reuniu a seção de

Ciências Jurídicas e Sociais para discutir uma pergunta: “qual o sistema preferível

em matéria de identificação de reincidentes – o sistema antropométrico de Bertillon

ou o sistema dactiloscópico de Vucetich?”.82 Pergunta certamente capciosa, cuja

resposta já estava decidida pelos congressistas, entre os quais estavam Vucetich e

Pacheco.

A decisão de considerar ambos como sistemas antitéticos e irreconciliáveis foi

muito exitosa, ao menos nos países da América do Sul. Contribuiu para retirar

totalmente a antropometria dos serviços de identificação, apesar de outros aspectos

do bertillonnage (o retrato falado, a fotografia de frente e perfil) terem uma notável

80 Boletim do Serviço de Identificação Judiciária, n. 5, Rio de Janeiro, set.-out.1900, p. 1-2. 81 Ver “Instituto de Advogados”, Jornal do Comércio, 6 ago. 1901. 82 TERCEIRO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 2.

Page 181: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

170

vigência nas polícias. Mas nenhuma explicação deste triunfo pode omitir a vantagem

relativa que as impressões digitais tinham sobre as medições antropométricas, por ser

uma prática que – inclusive utilizando uma parte do corpo dos identificados –

implicava um processo muito mais rápido, simples e, sobretudo, discreto.

É importante observar que a desaparição da antropometria judiciária não

significou, como presumia Pacheco, o fim das ambições científicas nos gabinetes de

identificação. Na primeira metade do século XX, em particular durante os anos do

Estado Novo, o médico legista Afrânio Peixoto e seu discípulo Leonidio Ribeiro, no

caso da polícia carioca, assim como Mario Guimarães em São Paulo, formaram parte

de seções que juntavam o serviço datiloscópico com laboratórios para estudos de

antropologia criminal.83 Porém, para esta época a datiloscopia havia avançado tanto

que os especialistas em identificação, longe das contendas sobre o estigma e o

vexame, discutiam sua extensão a diferentes domínios da vida civil. “Passou-se o

tempo em que a identificação era olhada como um meio oprobioso”, escrevia um

técnico em datiloscopia do Exército: “para os homens de moral elevada, de

princípios rígidos, a identificação consiste apenas numa formalidade”.84 A

identidade, cifrada no corpo, estava agora definitivamente localizada nas polpas dos

dedos.

A linguagem universal

Em 1914, a morte encontrou Bertillon em uma etapa de franca declinação. Esta

fase se iniciou durante o affaire Dreyfus (1899), no qual participou com uma perícia

grafológica muito questionada que provocou uma chuva de ataques a seu prestígio

83 FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos Autos da Cova Rasa. A identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (1920-1945). São Paulo: Alameda, 2009. 84 LORETO, Aliatar de Araujo. Lições de datiloscopia: a identidade do homem pela impressão digital. Juiz de Fora: Companhia Dias Cardoso, 1930, p. 19.

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171

pessoal. No entanto, outra corrosão, mais lenta, porém implacável, estava sucedendo

no terreno das técnicas de identificação. Longe de Paris, em cidades situadas fora do

mapa mental de muitos especialistas europeus, dois funcionários policiais

trabalhavam sobre novos sistemas baseados nas impressões digitais: Juan Vucetich,

na Província de Buenos Aires, e Edward Henry, nas Índias britânicas, desenvolveram

métodos de classificação de fichas datiloscópicas que rapidamente se expandiram

pelo mundo.85 Além da França, eram poucos os países que na década de 1910

mantinham ainda a antropometria judiciária. De fato, após a morte de Bertillon, a

própria Prefeitura de Polícia de Paris se rendeu ante a vitória incontestável das

impressões digitais.86

Mesmo assim, e como costuma suceder, sua morte acarretou uma série de

homenagens que tentaram reconhecer o lugar de Bertillon na história da polícia

científica e, inclusive, da ciência em geral. Lacassagne não duvidou em lhe dedicar

um dos últimos números de sua revista, onde Locard trazia as palavras do

antropólogo Léonce Manouvrier: “temos dois homens de gênio na França: Pasteur e

Bertillon”.87 No Brasil, a homenagem ficou nas mãos do escritor Elysio de Carvalho,

então Diretor do Gabinete de Identificação e Estatística. Embora esta instituição já

cumprisse uma década de forte defesa da datiloscopia, tampouco aqui se

economizavam elogios para este personagem considerado o “fundador da moderna

técnica policial”.88 Igualmente, para Carvalho, o triunfo do método datiloscópico era

uma realidade incontestável:

85 COLE, Simon A. Suspect Identities. A History of Fingerprinting and Criminal Identification. Cambridge: Harvard University Press, 2001. SENGOOPTA, Chandak. Imprint of the Raj. How Fingerprinting was born in Colonial India. London: Macmillan, 2003. RUGGIERO, Kristin. “Fingerprinting and the Argentine Plan for Universal Identification in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries”. In: CAPLAN, Jane; TORPEY, John (eds.). Documenting Individual Identity. Op. Cit., p. 184-196. RODRIGUEZ, Julia. “South Atlantic Crossings : Fingerprints, Science, and the State in Turn-of-the-Century Argentina”, The American Historical Review, Vol. 2, n. 109, 2004, p. 387-416. 86 PIAZZA, Pierre. “Alphonse Bertillon face à la dactyloscopie. Nouvelle technologie policière d’identification et trajectoire bureaucratique”, Les Cahiers de la sécurité, Paris, n. 56, 2005, p. 251-270. 87 LOCARD, Edmond. “L’œuvre d’Alphonse Bertillon”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 243, 1914, p. 167. 88 CARVALHO, Elysio de. Alphonse Bertillon. Biblioteca do Boletim Policial: XXVI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 6.

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172

Antigamente o criminoso ficava aterrorizado, quando se falava em deixar o retrato na polícia, em ser escrachado. Tudo fazia para não ser fotografado. Hoje ele se submete, sem protesto, facilmente, e até com um sorriso nos lábios, a esta operação. Mas quando tem de dar os dez dedos das mãos para serem tomadas as impressões, protesta, discute, grita e até chora. (...). Não só os boçais, os gatunos idiotas e os bandidos ignorantes sofrem o pavor da ficha.89

Os principais criminalistas europeus, em particular os discípulos de Lacassagne

(Edmond Locard e Archibald R. Reiss), haviam aceito no começo do século XX,

ainda com Bertillon em vida, a primazia da datiloscopia sobre o bertillonnage. Para

estes especialistas, as vantagens de um sistema sobre o outro eram várias. Em

primeiro lugar, as impressões digitais não apresentavam limitações etárias para a

identificação, porque eram imutáveis desde os últimos meses de vida intrauterina até

a decomposição cadavérica. Por isso, ao contrario da antropometria, a datiloscopia

permitia identificar menores e restos mortais não reconhecidos. Em segundo lugar,

não havia dois indivíduos no mundo com a mesma combinação de desenhos

papilares, por isso a busca de fichas no arquivo não tinha o caráter probabilístico do

sistema de Bertillon. Por último, existia um conjunto de melhorias práticas que

tinham a ver com os operadores dos serviços de identificação, já que tomar as

impressões digitais era mais simples e rápido que realizar as medições corporais,

além de ser menos ofensivo para o identificado. Quase não havia margem de erro no

procedimento, portanto se requeria menor capacitação aos funcionários policiais que

integravam os gabinetes.90

A partir destas ideias elementares, Vucetich lançou-se a disputar com Bertillon

o campo da polícia internacional. Assim como seu colega francês, tinha a aspiração

de que seu método se convertesse em um mecanismo estandardizado para

intercambiar antecedentes criminais entre os países, por via postal ou telegráfica.

89 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 145. 90 VUCETICH, Juan. “Evolução da Datiloscopia”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Op. Cit., p. 3-13. VUCETICH, Juan. Dactiloscopia. Cuál debe ser la idoneidad del identificador. Su prueba legal en la reincidencia. Congresos Científicos. La Plata: Joaquín Sesé Ed. 1909, p. 21-23.

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173

Após inventar um sistema para a classificação de impressões digitais no arquivo,

Vucetich buscou a forma de criar um código para a transmissão dos dados

datiloscópicos, uma cifra que se converteria em uma “verdadeira linguagem

universal”.91 Para discutir este ponto, Locard escreveu da Suíça uma carta a

Vucetich, em 4 de agosto de 1905:

Existe um projeto que considero de maior importância. O senhor não acha que seria possível provocar a reunião de um congresso de polícia científica, em que você e eu proporíamos um modelo de ficha, idêntico para todos os países civilizados e que serviria para as trocas internacionais em uma época onde os criminosos vão constantemente de uma região a outra e se tornam inapreensíveis mediante uma viagem perpétua? Não lhe parece indispensável organizar de maneira estável o serviço de troca de fichas?92

Vucetich ficou seduzido com esta ideia, mas também era consciente da

dificuldade da missão. O principal obstáculo era a diversidade de sistemas e critérios

de classificação utilizados nas distintas polícias do mundo, como ficava claro no

trabalho que o próprio Locard publicou, no ano seguinte, aprofundando a ideia da

ficha internacional.93 O criminologista de Lyon analisava os serviços de identificação

em dezenove países: onze da Europa, cinco da América Latina (México, Argentina,

Brasil, Chile e Uruguai), Egito, Indochina e as Índias inglesas. Desses países, doze

ainda empregavam o sistema antropométrico, as quatro repúblicas sul-americanas

haviam incorporado a datiloscopia de Vucetich e os restantes adotavam o sistema de

impressões digitais sob a classificação inglesa (Galton-Henry).94

Esta diversidade de sistemas e combinações contrastava com a homogeneidade

conquistada pelas polícias da América do Sul, após uma trabalhosa tarefa de

propaganda dos vucetichistas, onde – como veremos no próximo capítulo – as

conferências policiais jogaram um papel primordial. Sem renunciar às aspirações

91 Idem, p. 23. 92 “Cartas de dos sabios”, Boletín de Policía, Año I, n. 10, Buenos Aires, 15 set. 1905, p. 22. 93 LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 147, 1906, p. 145-206. 94 Idem, p. 153-201.

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174

megalômanas da conquista universal, Vucetich apostou em uma estratégia que

consistia em mostrar ao mundo as maravilhas da cooperação policial com o exemplo

dos países sul-americanos. As palavras usadas pelos vucetichistas em suas

exposições em congressos internacionais sugerem que realmente acreditavam estar

falando ao mundo, e em cada resposta de uma eminência europeia interpretavam que

o mundo os estava escutando.

No Congresso Científico Americano de 1910, o discípulo preferido de

Vucetich, Luis Reyna Almandos, lia uma tese sobre as bases do que chamava “União

Policial Universal”. “O estabelecimento de uma polícia universal mediante um

tratado internacional não é uma utopia”, opinava Reyna Almandos.95 Desde o

surgimento dos sistemas modernos de identificação de pessoas, a ideia percorria o

pensamento de criminologistas e policiais, entre os quais estava, em primeiro lugar,

Vucetich. O pai da datiloscopia havia apresentado no Congresso Panamericano de

Santiago de Chile um projeto de ficha de troca universal.96

Juan Vucetich. “Ficha de canje universal”

Fonte: IV Congreso Científico Latinoamericano (1º Panamericano), Santiago de Chile, 1908.

95 REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. Tesis presentada a la Sección de Ciencias Jurídicas, Congreso Científico Internacional Americano, Buenos Aires, 10 a 25 de Julio de 1910. La Plata: Talleres gráficos Christmann & Crespo, 1910, p. 5. 96 VUCETICH, Juan. “Necesidad de crear en cada país una Oficina Central de Identificación”, Boletín de la Policía de Santiago, Número especial, dedicado a los estudios y trabajos sobre Policía en el IV Congreso Científico (1º Panamericano), Año IX, n. 79, Santiago de Chile, Enero de 1909, p. 60-66.

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175

A ideia da “União Policial Universal” era um jogo de palavras com a “União

Postal Universal”, o organismo que regulava, desde a década de 1870, o intercâmbio

de correspondências entre os países. Esta comparação tinha muitos significados: no

século XIX, o telégrafo havia permitido unir as diferentes repartições policiais, no

sonho de instantaneidade que mais tarde a radiocomunicação ajudaria a reforçar.

Agora, os fios telegráficos se uniam aos métodos de identificação para produzir a

ficção de uma polícia universal. A cooperação internacional entre as forças da ordem

era uma velha aspiração, mas – segundo dizia o Comissário de Investigações da

polícia portenha – ainda não havia encontrado uma saída para o “problema de sua

praticabilidade”, que a datiloscopia resolvia convertendo-se na “linguagem de nossos

futuros alertas”.97

Se Vucetich chamava sua ficha de “modelo argentino 1908”, era porque

estavam circulando pelo mundo propostas paralelas. Sob a ideia da linguagem

universal, havia muitas linguagens possíveis, que estabeleciam entre si uma discreta

disputa. De fato, Reyna Almandos citava alguns dos modelos alternativos,

começando pela proposta de Locard, e outras “invenções admiráveis”, como o “Code

Signalétique International” do criminalista marselhês Séverin Icard.98 Mas não

entrava em detalhes sobre as diferenças que estes autores tinham com Vucetich.

Locard, por exemplo, aceitava a incorporação da datiloscopia em seu projeto

de ficha internacional, mas entendia que era necessário complementá-la com uma

técnica do bertillonnage: o “retrato falado”.99 Apesar de seu rápido apoio ao sistema

de Vucetich, em seus primeiros escritos sobre o assunto Locard havia sustentado a

ideia de incorporá-lo aos serviços de identificação junto com o método de

assinalamento inventado por Bertillon para auxiliar às capturas dos criminosos.100

Félix Pacheco publicou um folheto com uma tradução sua de um destes textos de

97 “Convención Internacional de Policía”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 out. 1905, p. 13. 98 REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Op. Cit., p. 12-13. 99 LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Op. Cit., p. 202-206. Sobre los usos del retrato hablado en Francia, véase: LÓPEZ, Laurent. “Alphonse Bertillon dans l’ombre des récidivistes et le bertillonnage dans l’œil des forces de l’ordre de la Belle Époque”. In: Piazza, Pierre (dir.). Aux origines de la police scientifique. Op. Cit., p. 102-111. 100 LOCARD, Edmond. “L’identification par les empreintes digitales. L’emploi de la dactyloscopie en Amérique du Sud. Le procédé Vucetich ”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1903, p. 145-206.

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176

Locard, onde o professor de Lyon aceitava as vantagens da datiloscopia sobre a

antropometria. Porém, ao chegar ao tema do retrato falado, o tradutor incluía, em

nota rodapé, uma discussão com o autor traduzido:

Não negamos a utilidade que existe em ensinar aos agentes ou em geral aos funcionários de polícia um método mais racional de descrever as pessoas: isso facilita as capturas e reduz bastante os casos de engano e confusão, sempre que os gabinetes técnicos não possuírem outros elementos para intervir e auxiliar a diligência. O velho sistema empírico devia naturalmente ceder lugar a outros menos imperfeitos. Mas, se aqui, como aliás acontece em toda parte, os indivíduos presos são fotografados de frente e de perfil, não compreendemos aquele retrato falado, construído sobre a base insegura do critério individual, pretenda ser mais fiel e mais digno de apreço do que essas duas chapas apanhadas de súbito, num flagrante vivo, pela objetiva que não falha e que não mente. Excluídas as notas cromáticas, que a fotografia ainda não está habilitada a fornece-nos, que vantagem restarão para que o retrato falado possa ocupar assim o primeiro plano?101

A resposta a essa pergunta estava nos trabalhos de Reiss e de Icard. Em 1907,

Reiss publicou o folheto “Un code télégraphique du portrait parlé”, onde expunha a

ideia de estabelecer um sistema para transmitir o retrato falado através do telégrafo.

O invento baseava-se em um código decimal, e cada uma das qualidades individuais

estabelecidas pelo assinalamento descritivo de Bertillon estava representada por uma

cifra: se 0.3 significava “orelha”, 0.31 era a borda da orelha e 0.32 o lóbulo,

enquanto 0.321 fazia referência à “forma da borda livre do lóbulo”, e assim

sucessivamente.102 O código apresentava duas vantagens para a prática da

transmissão telegráfica. Em primeiro lugar, reduzia muito a quantidade de caracteres

que deviam ser usados para descrever um sujeito em um telegrama (no exemplo que

101 LOCARD, Edmond. A identificação pelas impressões Digitais. O emprego da datiloscopia na América do Sul. O processo Vucetich (Trad. Félix Pacheco). Rio de Janeiro, Typ. Rebello Braga, 1904, p. 23. Outro questionamento de um vucetichista brasileiro, dirigido contra a defesa que Locard fez do retrato falado, pode ser visto em: LIMA, Hermeto. “Retrato falado”, Boletim Policial, Ano III, n. 8, Rio de Janeiro, dez. 1909, p. 183-185. Neste caso, a crítica se baseava em argumentos mais técnicos que os de Pacheco, já que Hermeto Lima argumentava sobre as falhas do método quando dois indivíduos pareciam-se fisionomicamente e, inclusive, se referia à possibilidade de um indivíduo modificar seu rosto com cirurgias estéticas. Ver: LIMA, Hermeto. A identidade do homem pela impressão digital (datiloscopia). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908, p. 15-18. 102 REISS, R.A. Un code télégraphique du portrait parlé. Paris: A. Meloixe, 1907, p. 9.

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177

dava no texto, Reiss reduzia um retrato falado de 75 caracteres em letras a 29

caracteres em números).103 Em segundo lugar, ao ser um código numérico, não

necessitava de traduções quando as mensagens se intercambiavam entre dois países

que falam idiomas distintos. Reiss explicava:

Este código é absolutamente internacional porque as cifras são as mesmas para todos os países e podem facilmente ser traduzidas para todas as línguas a partir do código francês; de modo que as mesmas cifras signifiquem para todos os mesmos caracteres. Advertir-se-á que, depois da aceitação do código, haveremos dado um grande passo na internacionalização da polícia.104

Seguindo esta mesma ideia, Séverin Icard começou a publicar em 1909 seus

trabalhos difundindo uma “fórmula cifrada” que reduzia os custos da transmissão

telegráfica e fazia, supostamente, mais simples as traduções da linguagem

numérica.105 Enquanto Reiss continuava com sua obra de difusão e sistematização da

criminalística, Icard dedicou a este tema vários trabalhos, onde foi aperfeiçoando

cada vez mais a proposta.106 Mas o núcleo original da ideia de Reiss se mantinha

intacto. Se conseguisse instalar uma linguagem universal para a transmissão

internacional do retrato falado, a captura dos criminosos viajantes seria cada vez

mais simples e menos lenta.107 Estava claro que esse era o problema que Reiss

apontava:

Os bandos internacionais de estelionatários, ladrões de hotéis, falsos jogadores, anarquistas etc., se fazem, pelas facilidades nos transportes, cada dia mais numerosos, e é muito difícil, se não

103 Idem, p. 22-23. 104 Idem, p. 23. 105 ICARD, Séverin. “La formule chiffrée du portrait parlé. Application de la méthode aux marques particulières”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1909, p. 783-790. 106 ICARD, Séverin. “Nouvelle méthode pour obtenir la formule chiffrée du portrait parlé. Le nombre signalétique international”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1909, p. 123-131. ICARD, Séverin. “Code signalétique international”, Archives d’Anthropologie Criminelle, 1912, p. 561-615. 107 No campo dos estudos da datiloscopia também buscaram-se formas diferentes de transmitir internacionalmente as fichas de identificação, ver: ROMAY, Francisco. Teledactiloscopia. Identificación a la distancia. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1928.

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178

impossível, vigiá-los pela polícia de um país, se esta não é ajudada na tarefa por informações rápidas e precisas provenientes das polícias dos países ou lugares onde estes bandos operam com seus negócios delitivos.108

Apesar das lutas facciosas entre os partidários do sistema datiloscópico e os

defensores do bertillonnage, e contra suas tentativas de impor um conjunto de

técnicas de criminalística que excluíssem completamente as invenções do adversário,

a realidade dos serviços policiais tendia a ser muito mais eclética. Em 1907, por

exemplo, Elysio de Carvalho difundia no Boletim Policial uma notícia sobre a

criação da Escola de Agentes de Investigações na polícia portenha e explicava que os

estudantes eram instruídos em conhecimentos de datiloscopia, mas também na

técnica do retrato falado e em diversos métodos científicos de investigação

criminal.109

Como Locard e Reiss, Carvalho também era partidário deste ecletismo

tecnológico, princípio que aplicou ao criar sua própria escola de agentes de

investigação, em 1912.110 No ano seguinte, Reiss chegou ao Brasil convidado pela

polícia paulista e brindou conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro.111 Na

capital, dissertou sobre uma grande quantidade de técnicas da moderna polícia

científica: perícias no local do crime, impressões digitais, exames de roupas,

recomposição e reconhecimento de cadáveres, análise de manchas de sangue, estudos

de cabelos, perícias gráficas sobre papel moeda falsa, falsificações de documentos

escritos etc.112

Em São Paulo também falou sobre esta multiplicidade de saberes, mas agregou

uma lição sobre a necessidade de avançar no campo da polícia internacional. Embora

108 REISS, R.A. Un code télégraphique du portrait parlé. Op. Cit., p. 23. 109 CARVALHO, Elysio de. “Escolas de Agentes”, Boletim Policial, Anno I, n. 3, Rio de Janeiro, jul. 1907, p. 17-18. 110 CARVALHO, Elysio de. La Police Scientifique au Brésil. Biblioteca do Boletim Policial: VIII. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 15-19. 111 Ver: MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. A civilização do delegado. Modernidade, polícia e sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República, 1889-1930. Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2011, p. 227-234. 112 REISS, R.A. Polícia Technica. Resumo das conferências realizadas no Rio. Biblioteca do Boletim Policial: XXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914.

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179

Reiss entendesse a criminalística como um conjunto de técnicas diversas, a variedade

de procedimentos devia ter um limite: cada polícia tinha direito de organizar seus

serviços como quisesse, mas todas tinham a obrigação de encontrar uma linguagem

para transmitir informações e cooperar nas capturas dos criminosos transnacionais.113

Se no domínio das técnicas tinha se avançado muito, neste terreno da cooperação

policial estava tudo por ser feito. E, frente ao público brasileiro, Reiss realizava uma

observação curiosa sobre a internacionalização das polícias:

Deve, pois, tratar-se seriamente a união policial internacional. Não será talvez possível às nações europeias, pelas delicadezas da sua vida política internacional, chamar a si essa inciativa. Ela está naturalmente indicada a um país neutral, alheio a essas lutas de chancelarias; e, porventura, o Brasil seria bem acolhido numa proposta dessa natureza.114

Reiss projetava estas dúvidas sobre as chances europeias de liderar qualquer

projeto de polícia internacional, apenas um ano antes do começo da Primeira Guerra

Mundial. Não é casual que os grandes criminalistas desse continente estivessem de

olho na América do Sul. A época da fascinação com Europa e com suas polícias

modernas parecia entrar em um processo de declive, como se notava na tardia

viagem do policial carioca Hermeto Lima ao bureau de Bertillon em 1910:

Pensávamos encontrar uma repartição luxuosa, que aliasse o conforto ao fino gosto dos móveis e das tapeçarias. Engano profundo nosso. Apesar de se achar esse departamento policial instalado no suntuoso Palais da Justice, ele o está espalhado por algumas salas estreitas e acanhadas. (...)

Depois de nos termos feito anunciar, fomos recebidos pelo Sr. Alphonse Bertillon. Dissemos que éramos funcionários duma repartição congênere do Rio de Janeiro.

- De Buenos Aires? perguntou o Sr. Bertillon.

113 REISS, R.A. Polícia Técnica. Resumo das conferências realizadas em S. Paulo. Biblioteca do Boletim Policial: IXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 39-42. 114 Idem, p. 41.

Page 191: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

180

- Não, respondemos, do Rio de Janeiro, capital do Brasil, que é um país que nada tem que ver com Buenos Aires, e que é tão grande, que de seus vinte estados um dos menores é maior que a França.

(...) Passamos depois a visitar a repartição, onde não achamos nada de novo, a não ser a descoberta, que fizemos, de mais uma vantagem do vucetichismo sobre o bertillonnage. Aqui a ficha é, como se sabe, dupla, o que dá lugar a maior quantidade de armários e consequentemente de espaço para os colocar. Na repartição há uma sala destinada à aula do portrait parlé, criação do Sr. Bertillon e onde os agentes policiais vão aprender esse complicado e falho método de achar entre a multidão o indivíduo procurado.115

As coisas haviam mudado muito, não apenas na opinião que os policiais sul-

americanos tinham da Europa, mas também no olhar que os europeus arrojavam

sobre estas terras. Por isso, talvez, Locard não duvidou muito em declarar que os

gabinetes europeus de datiloscopia pareciam “sótãos infames ao lado das suntuosas

instalações americanas” e concluía: “mais uma vez se adivinhará onde está a

civilização e onde está a decadência”.116

115 LIMA, Hermeto. “A identificação em Paris”, Boletim Policial, Ano III, n. 12, Rio de Janeiro, abr. 1910, p. 84-85. 116 Citado em RIBEIRO, Leonidio. Dactiloscopia: a propósito do cinquentenário da sua descoberta. Rio de Janeiro: Est. Graphico Canton & Reile, 1941, p. 23.

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Encontros de policiais

Veio para Buenos Aires um agitador italiano, anarquista de ação, homem perigoso, em uma palavra, a quem o governo de seu país havia expulsado de sua terra natal, com a comodidade com que se leva adiante na sociedade internacional isso de enviar tranquilamente a outro país o que em seu próprio incomoda.

Manuel Mujica Farías, Reportagem (1900).1

Na reportagem que a imprensa espanhola lhe fez, durante seu passeio pelas

polícias europeias, Mujica Farías contava este caso de um anarquista italiano, a quem

havia recebido em seu gabinete no Departamento Central de Polícia pouco tempo

antes. O militante libertário procurou a polícia para conversar sobre um assunto

vinculado a sua profissão de advogado e não hesitou em confessar, ao secretário

geral da instituição, suas inclinações ideológicas. No entanto, Mujica Farías não

narrava esta anedota com a única intenção de questionar a atitude dos países

europeus de expulsar seus “indesejáveis” à América do Sul, mas para mostrar a

capacidade de regeneração nestas repúblicas, com suas terras promissoras e sua

abundancia de trabalho. Segundo contava o policial portenho, três meses depois de

sua chegada a Buenos Aires, “o famoso anarquista italiano, cujo nome peço não

publicar, revalidava um título de doutor em jurisprudência, abria escritório e fundava

uma revista muito interessante (...). Eu, secretário de polícia, figuro na redação da

revista”.2

1 “Un reportaje interesante. El doctor Mujica Farías en Madrid”, Revista de Policía, Año IV, n. 79, Buenos Aires, 1 set. 1900, p. 103. 2 Idem, p. 103.

Page 193: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

182

Não é difícil adivinhar o nome deste anarquista e o da revista que dirigia.

Tratava-se de Pietro Gori, um conhecido militante libertário que se exilou na

Argentina em 1898 para evitar uma condenação à prisão por sua participação nos

protestos desse ano em Milão. A revista que fundou era Criminalogia Moderna, a

primeira publicação periódica de antropologia criminal na América Latina. De fato,

Mujica Farías aparecia – junto a outros nomes ilustres como Juan Vucetich, Antonio

Dellepiane, os irmãos Agustín e Luis María Drago – na lista de redatores da revista

desde seu primeiro número, do dia 20 de novembro de 1898. Apesar da confiança de

Mujica Farías em que esta dedicação a uma revista científica, produzida junto com

criminologistas e policiais, significava um afastamento do pensamento anarquista, a

realidade era muito mais complexa. Gori continuou sua atividade propagandística na

Argentina, influenciando, por exemplo, o pensamento do jovem criminologista José

Ingenieros, e seguiu professando essas ideias em sua última década de vida, na Itália,

aonde regressou em 1902.3

De qualquer modo, além dessa questão, o conteúdo desta reportagem era

altamente representativo da posição de muitos policiais sul-americanos nesses anos.

Não era um momento qualquer: Mujica Farías estava seguindo a doutrina formulada

pelo seu compatriota Miguel Cané, redator do projeto de lei de expulsão de

estrangeiros, apresentado em 1899 e sancionado no Parlamento argentino em 1902.4

Para Cané, as promissoras terras sul-americanas haviam se convertido em

“laboratório de delitos” e no destino predileto para “todo vagabundo ou criminoso

que já não encontra abrigo na Europa”.5 O autor não desconhecia nem ocultava, neste

texto, o temor frente ao “novo espírito das massas europeias”, os recentes atentados

3 Ver GELI, Patricio. “Los anarquistas en el gabinete antropométrico. Anarquismo y criminología en la sociedad argentina del 900”, Entrepasados, Año I, n. 2, 1992, p. 7-24. ANTONIOLI, Maurizio. Pietro Gori, il cavaliere errante dell’anarchia. Studi e testi. Pisa: BFS Ed., 1995. 4 As leis de expulsões de estrangeiros foram amplamente trabalhadas pela historiografia argentina, com ênfase em seu surgimento e aplicação para a repressão do movimento operário e, em particular, do anarquismo. Ver, por exemplo: SURIANO, Juan. Trabajadores, anarquismo y Estado represor: de la Ley de Residencia a la Ley de Defensa Social (1902-1910). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1988. ZIMMERMANN, Eduardo. Los liberales reformistas. La cuestión social en la Argentina. Buenos Aires: Sudamericana, 1995. VILLAVICENCIO, Susana (ed.). Los contornos de la ciudadanía. Nacionales y extranjeros en la Argentina del Centenario. Buenos Aires: EUDEBA, 2003. CONSTANZO, Gabriela. Los Indeseables. Las Leyes de Residencia y Defensa Social. Buenos Aires: Madreselva, 2009. 5 CANÉ, Miguel. Expulsión de extranjeros. Apuntes. Buenos Aires: J. Sarrailh, 1899, p. 11-12.

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183

anarquistas com bombas e sua imediata resposta repressiva: a Conferência

Internacional celebrada em 1898 na cidade de Roma.6

A preocupação com a intensa circulação territorial dos militantes anarquistas e

o caráter eminentemente transnacional do movimento estiveram na base dos

primeiros projetos de criação de uma polícia internacional, tal como foi analisado por

diversos autores.7 Mas os argumentos empregados nos debates, as tecnologias

propostas para o intercâmbio de informações (entre as quais estava o bertillonnage) e

a decisão de considerar aos atentados anarquistas como delitos “não políticos” para

efeitos dos procedimentos de extradição, era uma posição que se sustentava em um

esqueleto discursivo prévio, sobre a necessidade de atacar com medidas

transnacionais a diversos criminosos viajantes: proxenetas, falsários, grandes

estelionatários, etc.

Na construção desse discurso, amplamente difundido pelo mundo, as

discussões sobre a troca internacional de fichas de identificação ocuparam um lugar

central. Além disso, a América do Sul, e em particular a rota atlântica entre Buenos

Aires e Rio de Janeiro, era um dos centros de irradiação desta corrente de

internacionalização policial. A conferência realizada em Buenos Aires em 1905

resultou em um dos primeiros convênios de polícia internacional de todo o mundo e

a proposta surgiu, precisamente, de uma série de aproximações entre as polícias da

Argentina e Brasil.

Tal como Ori Preuss mostrou recentemente, esta aproximação formava parte de

trocas mais amplas nas renovadas relações culturais e políticas entre ambos os países.

A majestosa visita do presidente Roca ao Rio de Janeiro em 1899 e, em retribuição, a

6 Idem, p. 9-10. Sobre a Conferência Anti-Anarquista de Roma e o movimento de internacionalização da vigilância policial, ver: BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of Interpol”, Journal of Contemporary History, Vol. 16, n. 2, apr. 1981, p. 223-347. E sobre os atentados anarquistas da década de 1890: MERRIMAN, John. The Dynamite Club. How a bombing in fin-de siècle Paris ignited the age of modern terror. New York: Harcourt, 2009. KNEPPER, Paul. “Anarchist Outrages”. In: The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave, 2010, p. 128-158. 7 BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of Interpol”, Op. Cit., p. 338-342. DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 66-68. ANDREAS, Peter; NADELMAN, Ethan. Policing the Globe. Criminalization and Crime Control in International Relations. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008, p. 79-96.

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184

viagem de Campos Sales a Buenos Aires, foram o auge de um estreitamento de

vínculos que havia começado com os festejos portenhos pela abolição da escravatura

no Brasil e a transformação, produzida pelas elites republicanas, do olhar para a

República Argentina, país que os monarquistas consideravam um exemplo da

desordem política hispano-americana.8

Estas visitas presidenciais tiveram diversos ingredientes diplomáticos, entre os

que se destacava a jogada que Roca fez para evitar uma aliança do Brasil com o

Chile, no marco da tensão bélica com o país transandino pela questão limítrofe. Mas

na numerosa comitiva que acompanhou o presidente argentino em sua visita à capital

brasileira, cada um dos atores levou sua própria agenda, nem sempre subordinada aos

objetivos políticos das altas esferas do governo. A imprensa carioca brindou uma

detalhada cobertura da viagem de Roca, que ocupou a capa dos principais jornais

durante vários dias. Inclusive, desde antes de a comitiva oficial embarcar no porto de

Buenos Aires rumo ao Brasil, as notícias telegráficas informavam sobre as novidades

na Argentina. No dia 31 de julho de 1889, o Jornal do Comércio publicava um

telegrama enviado pelo correspondente de Buenos Aires:

O Sr. Beazley, Chefe da Polícia de Buenos Aires, com quem tive ocasião de conversar hoje, declarou-me que a sua ida na comitiva do General Roca tem por fim conferenciar com o Dr. Brasil Silvado a respeito de importantes medidas de polícia internacional. O Sr. Beazley exprimiu a maior confiança nos resultados dessa entrevista, tendente a melhorar o serviço policial entre a Argentina e o Brasil.9

Em um telegrama posterior, o correspondente agregava que no dia 2 de agosto,

perto da meia-noite, Roca e sua comitiva haviam embarcado rumo ao Rio de Janeiro

no vapor Patria e que Francisco Beazley levava consigo álbuns com retratos de

quinhentos criminosos.10 Uma semana depois, a recepção na capital brasileira era

espetacular, tanto nas ruas como nos jornais, que ocupavam integralmente as

8 PREUSS, Ori. Bridging the Island. Brazilian´s Views of Spanish America and Themselves, 1865-1912. Frankfurt/Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2011, p. 116 e ss. 9 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 jul. 1899, p. 1. 10 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 ago. 1899, p. 1.

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primeiras páginas com retratos e biografias de Roca, o primeiro presidente latino-

americano a fazer uma visita oficial ao Brasil. Alguns dias depois da chegada, o

Jornal do Comércio publicava uma extensa reportagem com o chefe da polícia

portenha, realizada por Félix Pacheco.11

Pacheco ratificava as informações do correspondente, explicando que a

inclusão de Beazley na comitiva não era de enfeite nem “de mera cortesia”. Sua

viagem ao Rio de Janeiro buscava tratar um “assunto da máxima relevância”, o qual

coincidia também com as notícias que publicava a revista policial portenha: a visita

não havia sido o produto de um “mero entretenimento, nem suas consequências se

limitaram às satisfações pessoais de uma viagem de lazer”.12 Segundo a reportagem

do Jornal do Comércio, antes da ascensão de Beazley à chefia, em 1896, as polícias

do Rio de Janeiro e Buenos Aires raramente se comunicavam. Nos últimos anos, os

intercâmbios diretos entre as chefaturas, sem intervenção das autoridades consulares,

haviam se intensificado. Esse laço direto era, segundo o chefe da polícia portenha,

imprescindível para o êxito de alguns procedimentos.

Havia que apurar esse canal de comunicações que tinha algumas interferências.

Os contatos nos anos prévios, aos que se referia Beazley na reportagem, eram tão

reais como os inconvenientes que os rodeavam. Um ano antes da visita, por exemplo,

a polícia portenha enviava um telegrama ao chefe da polícia do Rio de Janeiro

“rogando-lhe encarecidamente que se digne a responder os telegramas datados de 31

de outubro e 2 atual”, sobre um preso francês que fugiu do cárcere da província de

Misiones, e que segundo as investigações argentinas se encontrava em Porto Alegre,

hospedado no hotel Lagaché.13 A polícia de Buenos Aires solicitava sua captura

11 “Entrevista com o Dr. Beazley”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899, p. 3. Embora o jornalista que realizou a entrevista não aparecia mencionado na publicação, em seu discurso na sessão inaugural da Conferência Sul-americana de Polícia de 1905, Félix Pacheco (que chegou a ser coproprietário do Jornal do Comércio) recordava “a entrevista que o ilustre Dr. Francisco Beazley me concedeu quando esteve no Rio de Janeiro com o senhor General Roca, e que foi publicada”. Discurso reproduzido em: “Convención Internacional de Policía”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 oct. 1905, p. 9. 12 “La policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”, Revista de Policía, Año III, n.55, Buenos Aires, 1 sep. 1899, p. 99. 13 AN, Fundo GIFI, 6C24, telegrama de 3 de nov. de 1898.

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imediata e sua extradição. Em uma anotação nas margens do expediente gerado pela

reiteração de telegramas de Buenos Aires, lê-se:

O Sr. Ministro de Justiça declarou que o pedido do Comissário de Ordens de Buenos Aires para a captura de Julio Mereau não pode ser atendido, porque é indispensável que seja feito de governo a governo, e não por autoridade inferior, sendo certo que não temos atualmente Tratado de Extradição e regulam, na falta de acordo, os princípios estabelecidos por outras nações, quer em tratados, quer seguindo as regras do direito internacional.14

Talvez este tipo de curto-circuito ressoasse em Beazley quando dizia, na

reportagem com Pacheco, que buscava estabelecer canais de comunicação entre as

polícias “sem intermediários”. As informações deviam viajar com rapidez, sem

obstáculos burocráticos ou, do contrário, as polícias ficariam defasadas pela

velocidade com que os criminosos se moviam no espaço atlântico sul-americano.

Inclusive Beazley se explanou sobre uma teoria da distribuição espacial dos ladrões,

cuja lógica estava diretamente ligada à intensidade da perseguição policial:

Como se sabe, a nossa capital e a da República Argentina, são os dois grandes centros de ação da gatunagem na América do Sul. Perseguidos com rigor pelos agentes da lei, os gatunos foram para o Rio de Janeiro. Inversamente, quando a polícia daqui vigia com insistência e persegue com todo o rigor da lei, os amigos do alheio vão se refugiar em Buenos Aires.15

Após esta explicação, o jornalista interrompeu Beazley para contar um fato que

apoiava sua teoria. Logos após ser anunciada a visita de Roca ao Rio de Janeiro,

segundo as investigações da polícia carioca, começaram a chegar gatunos de Buenos

Aires, que pretendiam aproveitar as aglomerações dos festejos públicos para roubar.

Pacheco agregava que o próprio Jornal do Comércio noticiara, recentemente, a

14 AN, Fundo GIFI, 6C24, nota de 17 nov. 1898. O primeiro tratado de extradição entre as repúblicas do Brasil e Argentina se celebrou em 1933 e estabelecia que os pedidos de extradição deviam ser apresentados sempre por “via diplomática”. AHC, “Tratado de Extradición entre la República Argentina y el Brasil”, Río de Janeiro, Octubre de 1933, art. IV. 15 “Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3.

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detenção de um ladrão conhecido como “Gallego Octavio” que, com um grupo de

colaboradores portenhos, foram detidos ao desembarcar na capital brasileira e

enviados de volta a Buenos Aires no vapor Duchessa Di Genova.

Para provar o intenso fluxo de ladrões entre ambas cidades, Beazley ordenou

que viajassem ao Rio de Janeiro, em um navio diferente ao da comitiva oficial, “três

velhos agentes experientes” que conheciam “absolutamente a todos gatunos que

infestam Buenos Aires”.16 O chefe da polícia carioca, Brasil Silvado, autorizou esses

agentes a fazer uma ronda de reconhecimento pelas distintas prisões da capital. Dois

dias depois da reportagem, o Jornal do Comércio anunciava o desembarque dos

agentes secretos, que não eram três senão quatro, e que o cronista descrevia como

“perfeitos gentleman” que falavam diferentes idiomas.17 No mesmo dia os agentes

visitaram a Repartição Central de Polícia, a Casa de Detenção e a Casa de Correção,

onde reconheceram ao redor de doze ladrões que tinham visto em Buenos Aires,

entre os quais estavam: Felippe Monfo, vulgo “el brasilerito”; Francisco Taborda,

vulgo “ojo de buey”; Manoel de Oliveira, conhecido na capital argentina como

“Segundo Lobo”; José Ferrari e sua mulher Theresa, cúmplice em seus roubos, “que

ficou muito envergonhada e confusa com a descoberta”.18

Além disso, o jornalista teve acesso aos dois volumes da galeria fotográfica de

ladrões conhecidos que Beazley obsequiou a Brasil Silvado e pôde fazer seus

próprios reconhecimentos visuais. O criminoso número 40, segundo explicava a seus

leitores, que figurava no álbum portenho como Luciano Ludueña, Pantaleón Gómez

ou Pedro Ruiz, era conhecido pela polícia fluminense como “Julio Madurano”; e o

mesmo sucedia com Alberto Gomensoro.19 Efetivamente, os retratos desses ladrões

estavam numa galeria policial de 1892:

16 Idem, p. 3. 17 “Os Agentes da polícia secreta de Buenos Aires”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 12 ago. 1899, p. 3. 18 Idem, p. 3. A roda de reconhecimento dos agentes secretos portenhos foi notícia também em: “Na polícia”, Jornal do Brasil, 12 ago. 1899 e “Na polícia”, Jornal do Brasil, 13 ago. 1899. 19 “A polícia argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 ago. 1899, p. 2.

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Luciano Ludueña, retratado em julho de 1889.

Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 40.

Alberto Gomensoro, retratado em junho de 1889.

Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1887, ficha 84.

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189

Beazley também percorreu as instalações das Casas de Detenção e Correção, e

passou pelo Gabinete Antropométrico, onde cumpriu com a cerimônia de se deixar

retratar com os padrões da fotografia métrica de Bertillon.20 No entanto, a parte mais

significativa da visita foram as reuniões entre os chefes de ambas polícias. Segundo o

jornal O País, esses encontros tiveram como principal objetivo firmar um acordo

para facilitar reciprocamente “os meios necessários à repressão da gatunagem”.21 Na

entrevista com Pacheco, Beazley explicou que durante sua chefia, a perseguição de

ladrões e punguistas intensificara-se muito, uma fama que a imprensa portenha

alimentava com frequência, como se via em uma ilustração da revista Caras y

Caretas, onde o chefe da polícia aparecia “limpando a cidade” de gatunos.

“El Doctor Beazley, por Mayol”

Fonte: Caras y Caretas, n. 22, Buenos Aires, 4 mar. 1899.

20 “Polícia argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1-2. “O Dr. Francisco Beazley”, O Paiz, Rio de Janeiro, 15 ago. 1899, p. 1. 21 “O Dr. Beazley”, O Paiz, Rio de Janeiro, 10 ago. 1899, p. 1.

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De acordo com a entrevista, muitos ladrões começaram a fugir para

Montevidéu por causa desta perseguição, mas os acordos com a polícia uruguaia para

intercambiar informações telegraficamente permitiram que os criminosos viajantes

fossem detidos ao atravessar o Rio da Prata. Beazley suspeitava que agora o novo

destino escolhido por estes sujeitos fossem os portos brasileiros. Por isso, o objetivo

do chefe de polícia era estender esses acordos informais aos três países envolvidos

nas rotas transatlânticas sul-americanas: “com um serviço assim, internacionalmente

combinado, mas independente e harmônico, o Brasil, a Argentina e o Uruguai

acabariam por devolver à Europa o elemento pernicioso que ela nos envia”.22

O propósito de Beazley era a defesa da América do Sul frente aos “elementos

adventícios, anárquicos e dissolventes, de além-mar” que chegavam a estas costas

para “corromper o nosso meio social e semear aqui os germens funestos que

proliferam perigosamente no velho continente”.23 Essa tarefa, concluía, seria coroada

pela lei de expulsão de estrangeiros que estava sendo discutida no parlamento

argentino.

Estes projetos difundidos pela imprensa carioca coincidiam com a versão que a

revista policial portenha dava sobre a visita do chefe de polícia ao Rio de Janeiro.

“Não se firmaram convênios, nem se têm escrito tratados”, explicava o cronista, mas

haviam conseguido estabelecer acordos para a troca de comunicações, prontuários,

avisos e diversas informações sobre o “ativo e natural intercâmbio que a gente do

mal viver e os malfeitores de toda espécie mantém constantemente entre uma e outra

cidade”.24 Esta revista difundia, ainda, uma fotografia de uma das reuniões, onde se

viam os dois chefes rodeados por distintos funcionários da polícia carioca, entre os

quais estavam os titulares do Gabinete Antropométrico, Souza Gomes e Renato

Carmil.

22 “Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3. 23 Idem, p. 3. 24 “La policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”, Op Cit., p. 100.

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“La Policía de Río de Janeiro. El viaje del Doctor Beazley”

Fonte: Revista de Policía, n. 55, Buenos Aires, 1 sep. 1899.

“Cremos não errar afirmando que entre os dois chefes de polícia, Drs. Beazley

e Brasil Silvado, ficou definitivamente assentado o modo em que de ora em diante se

comunicarão as duas polícias das duas grandes capitais da América”, festejava o

cronista do Jornal do Comércio.25 Mas alguns indícios sugerem que o entendimento

mútuo não foi tão completo. Quando na reportagem a Beazley, Félix Pacheco

perguntou sobre a possibilidade de “permuta de fichas antropométricas”, a resposta

do chefe portenho foi categórica: julgava-a totalmente desnecessária, “uma vez que

os retratos trazem à margem todos os dados indispensáveis para a verificação da

identidade dos criminosos”.26 É provável que a opinião de Brasil Silvado fosse outra,

considerando que recentemente havia criado o Gabinete Antropométrico, cujas

instalações mostrou com orgulho a Beazley durante a visita institucional. Mas poucas

implicações teve essa eventual diferença: os anos imediatamente seguintes seriam

testemunhas de uma ascensão inédita da cooperação policial entre Argentina e Brasil,

processo onde nem a antropometria nem a fotografia seriam as verdadeiras

protagonistas.

25 “Polícia Argentina”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 18 ago. 1899, p. 1. 26 “Entrevista com o Dr. Beazley”, Op. Cit., p. 3.

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Congressos, Convênios, Conferências

A viagem de Campos Sales a Buenos Aires, em novembro de 1900, envolveu

também manifestações públicas e festejos suntuosos nas ruas. Embora a comitiva

brasileira não levasse consigo as mesmas intenções de avançar nos acordos de

cooperação policial, a visita teve efeitos indiretos nesse campo. A polícia portenha

cuidou até o último detalhe da sua performance pública, seus desfiles, uniformes e a

vigilância durante as celebrações de rua, porque – como se percebe nas notas

dedicadas a estes preparativos na revista policial – havia uma preocupação deliberada

por se mostrar a vanguarda das forças de segurança da América do Sul.27

“Despedida del Presidente Campos Sales – Grupo de Comisarios”

Fonte: Revista de Policía, n. 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 81.

27 Ver, por exemplo: “La visita internacional” Revista de Policía, Año III, n. 65, Buenos Aires, 1 feb. 1900, p. 289. “Recepción del presidente de Brasil. Servicios policiales extraordinarios”, Revista de Policía, Año III, n. 68, Buenos Aires, 16 mar. 1900, p. 330-331. “Sueltos. Visita del señor presidente del Brasil”, Revista de Policía, Año IV, n. 79, Buenos Aires, 1 sep. 1900, p. 109-110.

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Depois da visita, os jornais de Buenos Aires festejaram a “apurada aparência

dos delegados e a compostura de todos seus subordinados”, o modo em que a

“cultíssima polícia da capital” havia sido a estrela das celebrações.28 Sem ocultar

muito sua vaidade, os redatores do boletim policial exclamavam: “nossa polícia é,

sem dúvidas, superior a todas as outras deste continente sul-americano”.29 Este

postulado era inclusive alimentado por alguns representantes dessas outras forças do

subcontinente. Para uma comitiva de chilenos que viajou em 1903 a Buenos Aires,

com a intenção de estudar a organização da polícia portenha, esta era “não apenas a

primeira da América do Sul, senão também digna de figurar ao lado das melhores da

Europa”.30 No ano seguinte, após uma visita de policiais uruguaios, lia-se na revista

portenha:

Quando ocorreu a viagem do presidente dos Estados Unidos do Brasil e quando se produziu a visita dos comissionados chilenos (...), ouvimos da boca dos membros das duas comitivas os mais sinceros elogios da polícia da metrópole sul-americana. A estes elogios agregamos agora esta visita dos funcionários policiais uruguaios, que tinham como objetivo praticar e estudar nossa organização. Concluímos que, se somamos aos pontos de nossa pluma uma palavra impregnada de certo tinte de vaidade, essa vaidade fica plenamente justificada pelos fatos.31

Ao referir a sua própria instituição como a polícia da “metrópole sul-

americana” estava se sugerindo uma mensagem nada ingênua. Ao titular Buenos

Aires não só de metrópole argentina senão também sul-americana, pretendia-se

colocar a essa cidade como o eixo de uma comunidade incipiente de policiais da

América do Sul, eixo em torno do qual giravam uma multiplicidade de centros, que

28 Expressões dos jornais El País e El Diario, citadas em: “Ecos amables. La policía en las fiestas brasileño-argentinas”, Revista de Policía, Año IV, n. 84, Buenos Aires, 16 nov. 1900, p. 177-179. 29 “El Coronel Fraga”, Boletín de Policía, Año I, n. 1, Buenos Aires, 30 abr. 1905, p. 6. 30 “Policías chilenas. Cuestiones interesantes”, Revista de Policía, Año VII, n. 156, Buenos Aires, 16 nov. 1903, p. 181. Sobre a visita ver também: “Sueltos. Jefe de Policía de Montevideo”, Revista de Policía, Año VII, n. 148, Buenos Aires, 16 jul. 1903, p. 47. “Sueltos. De la policía de Chile”, Revista de Policía, Año VII, n. 154, Buenos Aires, 16 oct. 1903, p. 154-155. 31 “La policía de Montevideo”, Revista de Policía, Año VIII, n.172, Buenos Aires, 16 jul. 1904, p. 51. A visita dos funcionários uruguaios aparece também em: “Sueltos. Policía Uruguaya”, Revista de Policía, Año VIII, n. 170, Buenos Aires, 16 jun. 1904, p. 21.

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como veremos nem sempre eram as polícias das capitais.32 Evidentemente, as

palavras dos escritores da polícia portenha formavam parte de uma estratégia de

posicionamento. Mas nem o auge das visitas entre policiais sul-americanos no início

do século XX, nem a centralidade de Buenos Aires nessa trama de circulações, eram

ideias tão desconectadas com o que estava acontecendo.

Os funcionários brasileiros também elegeram Buenos Aires como paradigma

de organização policial a ser estudada, assim como haviam escolhido Paris e Londres

no final do século XIX. O chefe do gabinete de identificação da polícia de São Paulo,

Evaristo da Veiga, viajou com esse propósito à capital Argentina, em novembro de

1901, visitando o Departamento Central e várias delegacias.33 Desde o mesmo estado

e com o mesmo objetivo, viajaram a Buenos Aires dois delegados paulistas, Ascanio

B. de Cerquera e Octavio de Barros, em 1904.34 Nestes primeiríssimos anos do

século XX, a formação de uma rede de policiais da América do Sul teve, de fato, a

capital argentina como eixo de circulação. As técnicas de identificação ocuparam um

lugar destacado nesta rede, mas não foram seu único desencadeante, como se infere

da reportagem a Beazley, nem tampouco ao tema exclusivo de atenção nestas visitas

sul-americanas.

A conformação dessa rede e da multiplicidade de interesses em comum ficou

refletida também na intensa circulação de notícias entre as revistas policiais da

Argentina, Brasil, Uruguai e Chile. A plêiade de redatores que sustentavam essas

publicações começou a receber sistematicamente os exemplares das revistas dos

demais países, a resenhá-los em seus próprios números e, cada vez mais, a traduzir

artigos de autores sul-americanos.35 Além disso, este fenômeno se estendia às

32 Como indiquei na introdução, esta noção de “metrópole” foi problematizada pelo sociólogo norte-americano Edward Shils, para discutir as interpretações do “modelo de transfusão” de um centro único até a periferia. SHILS, Edward. La metrópoli y la provincia en la comunidad intelectual. In: Los intelectuales en los países en desarrollo. Buenos Aires: Ediciones Tres Tiempos, 1981, p. 42-63. 33 “Sueltos. Un huésped distinguido”, Revista de Policía, Año V, n. 107, Buenos Aires, 1 nov. 1901, p. 174. 34 “Sueltos. Delegados de la policía de San Pablo”, Revista de Policía, Año VII, n. 164, Buenos Aires, 16 mar. 1904, p. 315. “Sueltos. De la policía brasileña”, Revista de Policía, Año VIII, n. 169, Buenos Aires, 1 jun. 1904, p. 15. 35 Ver, por exemplo: “Las revistas policiales sudamericanas”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 5, La Plata, 30 nov. 1905, p. 5-6. “La policía de Montevideo”, Revista de

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publicações especializadas no campo da questão criminal, onde os intercâmbios entre

colegas da América do Sul também se fizeram mais frequentes.36

Essa intensificação dos intercâmbios simbólicos estava diretamente ligada aos

numerosos encontros vis-à-vis, facilitados pelo apogeu dos congressos científicos,

médicos e jurídicos na América Latina.37 Foi precisamente nestes congressos onde

terminou de adquirir forma a proposta que Beazley havia transmitido a Brasil

Silvado em 1899. O novo impulso teve como protagonistas os partidários do

“Sistema Datiloscópico Argentino”, que – com Vucetich à cabeça – buscaram apoios

sul-americanos em sua disputa internacional contra o bertillonnage. Na seção de

Ciências Jurídicas e Sociais do II Congresso Científico Latino-Americano

(Montevidéu, 1901), presidida pelo bacharel brasileiro Souza Sá Vianna, Juan

Vucetich expôs, pela primeira vez no exterior, as ideias básicas de seu sistema de

identificação. Entre as numerosas vantagens que, segundo seu criador, este método

tinha sobre o de Bertillon, estava a possibilidade de facilitar “a troca internacional de

capturas e pedido de antecedentes, posto que o sistema datiloscópico pode se

considerar um idioma legível corrente para todas as polícias do mundo”.38

As conclusões aprovadas neste congresso foram propostas por Alfredo

Garibaldi, o diretor do Gabinete Antropométrico de Montevidéu e veemente defensor

do bertillonnage. Aceitava-se a datiloscopia como um “complemento útil” nos

Policía, Año X, n. 233, Buenos Aires, 1 feb. 1907, p. 348-349. “Policía de Río de Janeiro. Boletín Mensual”, Revista de Policía, Año XI, n. 241, Buenos Aires, 1 jun. 1907, p. 439. 36 Ver, entre outros exemplos, a resenha que Evaristo de Moraes fez em sua revista das estatísticas publicadas por Criminalogia Moderna: “Estatística criminal. República Argentina”, Boletim Criminal Brazileiro, Año I, n. 2, Rio de Janeiro, 15 nov. 1900, p. 7; ou a tradução que a principal revista criminológica argentina fez de um artigo de Félix Pacheco, com anotações a rodapé de José Ingenieros: PACHECO, Félix. “Identificación de los delincuentes. Ventajas del sistema dactiloscópico”, Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines, Buenos Aires, abr.-may. 1903, p. 227-235. 37 Sobre os congressos científicos, ver: SUPPO, Hugo Rogelio. “Ciência e relações internacionais. O Congresso de 1905”, Revista da SBHC, n. 1, 2003, p. 6-20. Sobre os Congressos Médicos Latino-Americanos e as Exposições Internacionais de Higiene: ALMEIDA, Marta de. “Circuito aberto: idéias e intercâmbios médico-científicos na América Latina nos primórdios do século XX”, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13, n. 3, jul.-set. 2006, p. 733-757; e sobre a cooperação latino-americana em matéria sanitária: REBELO, Fernanda. A travessia: imigração, saúde e profilaxia internacional (1890-1926). Tese de Doutorado em História das Ciências e da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010. 38 VUCETICH, Juan. Dactiloscopia. Cuál debe ser la idoneidad del identificador. Su prueba legal en la reincidencia. Congresos Científicos. La Plata: Joaquín Sesé ed 1909, p. 19-20.

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processos de verificação de identidade e criava-se uma comissão a fim de estudar

qual era o melhor procedimento “para que as nações americanas ibero-latinas

internacionalizem o serviço de identificação de pessoas”.39 Pela influência de

Garibaldi sobre os congressistas, as conquistas de Vucetich foram muito limitadas

nesta primeira investida fora da Argentina. No entanto, os vínculos que durante os

anos seguintes Vucetich foi estabelecendo com o Gabinete de Identificação do Rio

de Janeiro, dirigido por Félix Pacheco desde agosto de 1901, foram fundamentais

para avançar em seu projeto de construir uma polícia internacional sul-americana,

baseada nos intercâmbios de fichas datiloscopias.

Assim como em 1889 a polícia de Buenos Aires foi a primeira em implementar

o bertillonnage fora da França, a polícia carioca se converteu, em 1902, na primeira

em adotar o sistema datiloscópico fora da Argentina. A partir desse ano,

estabeleceu-se um acordo formal de troca de fichas entre os serviços de identificação

do Rio de Janeiro e La Plata, até mesmo antes que a datiloscopia fosse aceita na

polícia da capital argentina, em novembro de 1903. No ano seguinte, o médico

legista Afrânio Peixoto, delegado brasileiro no II Congresso Cientifico Latino-

americano (Buenos Aires, 1904), visitou o Gabinete de Identificação de Vucetich e

declarou, em apoio da posição de Pacheco, a superioridade da datiloscopia sobre a

antropometria.40

Todas estas conquistas prepararam o terreno para o que seria a

contraofensiva mais exitosa dos defensores do sistema datiloscópico. Não é casual

que essa investida, cuidadosamente preparada por Vucetich e Pacheco, tenha

ocorrido no Rio de Janeiro, durante o III Congresso Cientifico Latino-americano, em

agosto de 1905. Além de proclamar a absoluta supremacia do que agora preferia se

chamar, adotando a expressão dos criminologistas de Lyon, o “Sistema

Datiloscópico Sul-americano”, voltava-se sobre a ideia das trocas internacionais, que

ficava plasmada na última das conclusões aprovadas em forma unânime na primeira

jornada de reuniões da seção de Ciências Jurídicas e Sociais:

39 Idem, p. 20-21. 40 RIBEIRO, Leonidio. Dactiloscopia: a propósito do cinquentenário da sua descoberta. Rio de Janeiro: Est. Graphico Canton & Reile, 1941, p. 18.

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A individual dactiloscópica, por si só, determina a identidade da pessoa, acrescendo que todas as polícias do mundo poderão ler na mesma individual, qualquer que seja a classificação que adotem, vindo assim a constituir o “Sistema Dactiloscópico” uma verdadeira linguagem universal.41

O livro em que se publicaram as atas desta seção foi intitulado A Polícia

Argentina e a Polícia Brasileira, e publicado pela Imprensa Nacional nesse mesmo

ano. O boletim policial portenho fazia a mesma interpretação sobre este “triunfo das

ideias modernas”, apresentado, além disso, como uma prova da “fraternidade de

brasileiros e argentinos” nos artigos dedicados a traduzir as atas originais ao

espanhol.42 Juan Vucetich leu um trabalho sobre a “Evolução da Datiloscopia”, no

qual fazia um repasso dos avanços no campo internacional.43 Mas quem expôs, com

maior ênfase, a questão dos usos das fichas datiloscópicas para a cooperação policial

foi o chefe do Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro. “Estavam nesse momento

na sala cerca de cinquenta pessoas, entre congressistas, advogados, professores,

funcionários policiais e numerosos estudantes de medicina e direito”, contava um dos

delegados de La Plata, quem interpretou as palavras de Pacheco como uma

“condenação formal do sistema Bertillon”.44

Pacheco recuperou uma ambiciosa tese que Vucetich havia apresentado antes,

no Congresso de Montevidéu de 1901: a criação de três “gabinetes intercontinentais

para a troca das fichas datiloscópicas de indivíduos perigosos”.45 A ideia original era

41 TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 16. 42 “Tercer congreso científico latinoamericano. El triunfo de las ideas modernas. Fraternidad de brasileños y argentinos”, Boletín de Policía, Año I, n. 10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 10-12. 43 VUCETICH, Juan. “Evolução da Dactyloscopia”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Op. Cit., p. 3-13. Traduzido ao espanhol em: “Tercer congreso científico latinoamericano. Memorias de brasileños y argentinos. I. Evolución de la Dactiloscopia por D. Juan Vucetich”, Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 oct. 1905, p. 15-19. 44 “La Policía de la Provincia en el Tercer Congreso Científico Latinoamericano. Ruidoso triunfo de la dactiloscopia”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 2, La Plata, 31 ago. 1905, p. 7. 45 PACHECO, Felix. “A excelência do sistema datiloscópico Vucetich e a criação dos gabinetes inter-continentais”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia

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que um desses gabinetes estivesse em uma capital europeia, outro em uma capital da

América do Sul e o último em América do Norte, mas o delegado de Guatemala

questionou que América Central ficasse supeditada aos Estados Unidos, e a proposta

finalmente aprovada recomendou a criação de quatro gabinetes.46

Se esta tese, por sua própria desmesura, não prosperou, distinta sorte teve a

segunda grande aposta do congresso. O próprio Vucetich e Alberto Cortina

apresentaram em público uma ideia que estava circulando entre os policiais da

Argentina e Brasil: a conformação de um “congresso policial sul-americano”.47

Segundo os representantes da Província de Buenos Aires, este passo seria o meio

mais eficaz para avançar na edificação de uma polícia internacional, uma

necessidade universal que, por complexas razoes geopolíticas, América do Sul podia

responder melhor que nenhum outro continente no mundo.48 Essas razões

justificavam a conveniência de “circunscrever unicamente aos países sul-americanos

a formação do congresso”, envolvendo as dez repúblicas de Venezuela, Colômbia,

Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai.49

O congresso podia se iniciar com a participação de dois países, mas somente se

consideraria “estabelecido o serviço internacional de fato e de direito, com o

predomínio legítimo em todo o continente”, quando seis das dez repúblicas

estivessem representadas. Cada um destes países podia concorrer com representantes

nacionais, ou com delegados das polícias de algum dos estados ou províncias, e no

caso daqueles países que não enviassem representantes, poderiam aderir

Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 45. Este trabalho também foi traduzido ao espanhol e publicado em três entregas: Boletín de Policía, Año I, n. 13, Buenos Aires, 30 oct. 1905, p. 1-9; Boletín de Policía, Año I, n. 15, Buenos Aires, 30 nov. 1905, p. 6-10; y Boletín de Policía, Año I, n. 17, Buenos Aires, 30 dic. 1905, p. 7-10. 46 “Tercer congreso científico latinoamericano. El triunfo de las ideas modernas. Fraternidad de brasileños y argentinos”. Op. Cit., p. 11. 47 VUCETICH, Juan; CORTINA, Alberto. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera de promoverlo”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 53-79. 48 Esses motivos, que iam desde vantagens geográficas e uniformidade dos sistemas políticos, até questões históricas, eram um dos eixos do livro em que Cortina analisava comparativamente as organizações policiais da Argentina, Brasil Chile e Uruguai. CORTINA, Alberto. La Policía en Sudamérica. La Plata: Talleres Gráficos “La Popular”, 1905. 49 VUCETICH, Juan; CORTINA, Alberto.. “Congreso Policial Sudamericano. Su necesidad y manera de promoverlo”. Op. Cit., p. 68.

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posteriormente aos convênios acordados. A proposta de realização do primeiro

congresso policial foi também aprovada por unanimidade e entre os fundamentos se

aclarava:

A vinculação internacional deve existir também para efeitos do perfeccionismo e maior desenvolvimento das polícias locais, procurando em primeiro lugar: a harmonia, e concordância de uma com as outras; a adoção de uma terminologia profissional comum; a unidade de classificações em toda contravenção policial; o procedimento uniforme.50

Esta intenção de uniformizar o trabalho das polícias sul-americanas era o tema

de exposição de outro delegado brasileiro, Antônio Bento de Faria. O jurista carioca

considerava que “a polícia coletiva dos países americanos, vinculados pelo

estabelecimento de preceitos idênticos e gerais uniformes e eficazes”, era a única

medida que poderia combater o problema dos criminosos viajantes. Os meios de

transporte, cada dia mais fáceis, permitiam aos delinquentes uma “mudança rápida de

seu campo de operações”: por isso um dos principais desafios das polícias era “tolher

o passo ao criminoso que se escapa”.51

A centralidade do tema dos “gatunos internacionais” nestas propostas de

congressos e convênios entre as polícias sul-americanas era um dado reiterado uma e

outra vez. Jose Gregorio Rossi, Comissário de Investigações e defensor da

datiloscopia na polícia portenha, dizia que o principal obstáculo na luta contra a

delinquência era sua crescente tendência ao “internacionalismo”. O criminoso

profissional tinha se “lançado a recorrer o mundo”, um fenômeno que já havia

alcançado o nível de uma verdadeira “vinculação mundial da delinquência”.52 Rossi

argumentava que essas redes mostravam um grande espírito de solidariedade, a tal

50 Idem, p. 79. 51 FARIA, Antônio Bento de. “Da necessidade e uniformizar a ação da polícia dos países americanos”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 81-87. 52 ROSSI, José G. “La policía internacional”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 5.

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200

ponto que quando um ladrão viajante chegava a seu novo destino, era recebido por

um guia “para fazê-lo conhecer a cidade”.

A República Argentina, como todas as nações sul-americanas, sujeitas a enormes correntes de imigração, está exposta a receber – e recebe com toda segurança – grande parte da escória antissocial da velha Europa, que vem quicando pelos cárceres do Brasil ao Prata, ao Pacífico, e vice-versa.53

Eurico Cruz, bacharel e delegado da polícia carioca, considerava que o futuro

congresso constituiria uma “liga real e verdadeira contra esta ameaça recorrente para

os países sul-americanos”, que haviam se convertido em um “asilo do rebotalho das

populações criminosas e degeneradas das demais nações”. Já que, concluía Cruz,

“por sobre as fronteiras que nos separam, os criminosos dão-se as mãos”, era

necessário que, frente “às associações internacionais de criminosos, cuja existência é

flagrante, se oponha, em um rasgo de fortaleza, de coragem e de inteligência, a

solidariedade internacional das várias polícias”.54

Estas conquistas proclamadas no III Congresso Científico Latino-Americano

eram, em realidade, uma forma de propagar no resto dos países da América do Sul

um acordo selado de antemão entre argentinos e brasileiros. De fato, como

reconhecia o Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, já existia “uma

cooperação mútua entre as polícias” que organizavam este congresso.55 Por outra

parte, a revista policial portenha, em um artigo dedicado a informar o compromisso

com a realização da primeira Conferência Sul-Americana de Polícia na cidade de

Buenos Aires, admitia que o convênio já era “conhecido em seus lineamentos

53 Idem, p. 6. 54 CRUZ, Eurico. “Necessidade da fundação de um Congresso Policial Sul-Americano”. In: TERCEIRO CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brazileira. Op. Cit., p. 91-94. Reproduzido também em: CRUZ, Eurico. Relatórios policiais, sentenças criminais. Rio de Janeiro: Typografia dos Annaes, 1914, p. 1-6. 55 “Convención Interpolicial”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 4, La Plata, 31 oct. 1905, p. 4.

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gerais”: estabelecer a troca recíproca de fichas individuais datiloscópicas e acordar

formulas rápidas para a transmissão de antecedentes “com fins policiais”.56

Quando a meados de agosto finalizou o congresso do Rio de Janeiro, o chefe

da polícia carioca propôs a Juan Vucetich postergar um pouco seu regresso à

Argentina para viajar acompanhado por Félix Pacheco. O chefe do serviço de

identificação aproveitou a viagem para visitar o gabinete de seu mestre, na cidade de

La Plata.57 Para os policiais argentinos, Pacheco havia se convertido no principal

aliado na América do Sul para o projeto de cooperação internacional. Era o

incansável “propagandista brasileiro”, como o chamavam os redatores do Boletín de

Policía, quando nas vésperas da conferência de Buenos Aires festejavam as

conquistas do mestre e seu discípulo, “os dois campeões esforçados da polícia

científica e da defesa social eficiente”.58

“Os Srs. Vucetich e Felix Pacheco trabalhando no Gabinete de Identificação do Rio de Janeiro”

Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49, Rio de Janeiro, 1908, p. 89.

56 “La próxima conferencia policial internacional”, Revista de Policía, Año IX, n. 201, Buenos Aires, 1 oct.1905, p. 70. 57 Véase “Del Doctor Félix Pacheco”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 3, La Plata, 30 sep. 1905, p. 3-4. 58 “Sr. Juan Vucetich y Dr. Félix Pacheco”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 1-2.

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“Dr. Félix Pacheco”

Fonte: Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 1.

No entanto, a viagem de Pacheco à Argentina tinha outros propósitos

complementares. Os acordos informais entre Brasil e Argentina não se limitavam aos

vínculos entre Rio de Janeiro e La Plata. No breve interlúdio entre o Congresso do

Rio de Janeiro e a Conferência Sul-Americana de Buenos Aires, Rossi revelava a

existência de um “pacto de troca” entre as polícias de ambas as capitais, que existia

desde janeiro desse mesmo ano: o boletim policial difundia um intercâmbio epistolar

entre os chefes, Fraga e Cardoso de Castro, acordando a “permuta de antecedentes de

criminosos por meio da datiloscopia”.59 A poucos dias da finalização do Congresso

na capital brasileira, o chefe da polícia carioca escreveu novamente a seu colega,

explicando que enviava a Pacheco à Argentina com a ordem de lhe propor:

59 “El Convenio Internacional. La aceptación de la dactiloscopia”, Boletín de Policía, Año I, n. 13, Buenos Aires, 30 oct. 1905, p. 12.

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Uma reunião dos chefes do serviço de identificação datiloscópica de La Plata, Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro, opinando que dita reunião poderia ser efetuada em 15 de setembro na segunda das referidas cidades. Esses funcionários teriam a missão de celebrar, ad-referendum nosso, um acordo para a troca de “individuais datiloscópicas” relativas aos ladrões conhecidos, aos sujeitos perigosos e, em geral, aos frequentadores habituais das prisões.60

Na mesma data, 26 de agosto de 1905, Cardoso de Castro remetia outras cartas

ao chefe da Polícia de Montevidéu, Juan B. Jerez, e ao chefe da Polícia da Província

de Buenos Aires, Luis M. Doyhenard, informando-os sobre esta proposta, que não

considerava obra sua mas um resultado natural do “movimento de aproximação entre

as administrações policiais brasileiras e pratinas”.61 A este grupo original de quatro

instituições policiais, dos três países situados sobre a rota atlântica sul-americana,

somou-se por indicação de Vucetich um convite à polícia de Santiago do Chile, que

recentemente tinha incorporado o sistema datiloscópico.62 O representante designado

pelo governo chileno foi Luis M. Rodríguez, quem dois anos antes tinha formado

parte da comitiva de seu país que visitou a polícia portenha. Essa inclusão de último

momento obrigou a postergar quase um mês o início das reuniões, enquanto

Rodríguez embarcava rumo à cidade de Buenos Aires. A “Conferência Internacional

de Polícia” – como finalmente a denominaram os documentos oficiais – teve sua

inauguração, na chefatura, em 11 de outubro de 1905 às quatro da tarde.63

60 Idem, p. 14. 61 “Convenio Interpolicial Sudamericano”, Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires, Año I, n. 3, La Plata, 30 sep. 1905, p. 6. 62 Sobre a recepção de Vucetich no Chile ver o dossier publicado no Boletín de la Policía de Santiago, Año IX, No. 79, Santiago de Chile: Imprenta de la Prefectura de Policía, enero de 1909. 63 CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital Federal, 1905.

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“Congreso Internacional Dactiloscópico – La primera sesión”

Fonte: Boletín de Policía, Año I, n. 12, Buenos Aires, 15 oct. 1905, p. 8.

“Conferencia internacional entre as polícias”

Fonte: Renascença. Revista mensal de letras, sciencias e artes, n. 49, Rio de Janeiro, 1908, p. 88.

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As fotografias das reuniões mostram os delegados em uma mesa de trabalho

repleta de papeis, entre os que se advertem algumas fotografias de criminosos, e um

tinteiro no meio. Nesse sentido, a reunião parecia estar um pouco mais afastada da

solenidade nos congressos científicos e mais perto de uma tertúlia íntima. Em torno à

mesa estava sentado Félix Pacheco, os dois representantes das polícias argentinas,

Juan Vucetich e José G. Rossi, Luis M. Rodríguez pela polícia de Santiago do Chile

e Alejandro Saráchaga pela de Montevidéu. Este último era o chefe do Gabinete de

Identificação Datiloscópica da capital uruguaia e mantinha uma feroz disputa com

Alfredo Garibaldi, que continuava encarregado do serviço antropométrico e seguia

defendendo o bertillonnage em seu país.64

Segundo explicava Rodríguez, a polícia de Santiago do Chile tinha sido uma

das primeiras em adotar a datiloscopia depois de La Plata, Rio de Janeiro e Buenos

Aires. Tal como no Uruguai, a novidade não impôs uma supressão do sistema

antropométrico, aplicado no país transandino desde 1898. No entanto, ao contrário de

Saráchaga, Rodríguez pedia “render a homenagem que merece a obra realizada por

Mr. Bertillon”, o que, neste contexto, significava uma reclamação para reduzir a

intensidade das lutas facciosas entre os partidários de ambos os sistemas.65

Rodríguez se mostrava muito mais eclético na hora de incorporar tecnologias

policiais para lutar contra “os criminosos viajantes que com os fáceis meios de

transporte, se deslocam mais numerosos a cada ano, da Europa a estas prósperas

cidades do Atlântico, do Rio de Janeiro e Montevidéu a Buenos Aires, e daqui a

Santiago do Chile”.66

O objetivo do convênio que começaram a discutir consistia em estabelecer um

mecanismo de “troca dos antecedentes úteis para fins policiais, a respeito das pessoas

classificadas ou consideradas perigosas para a sociedade”.67 As discussões se

64 Veja, sobre este tema, SARÁCHAGA, Alejandro. Dactiloscopia y Convenio Internacional de Policía. Montevideo: Imprenta El Siglo Ilustrado, 1906. 65 “Actas de las Conferencias. Sesión Inaugural”. In: CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit, p. 21-22. 66 Idem, p. 20. 67 “Conferencia internacional de policías”, Revista de Policía, Año IX, n. 202, Buenos Aires, 16 oct. 1905, p. 78.

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concentraram especialmente na definição da noção de “pessoa perigosa” e no

significado da frase “fins policiais”. Mais uma vez, o representante chileno marcou

diferenças com os demais, quando pedia que a informação circulada entre as polícias

tivesse um “caráter absolutamente reservado”. Rodríguez temia que a publicação de

dados acusatórios sobre um indivíduo sem condenação judicial pudesse ser

interpretada como uma prática vexatória. Para Pacheco, no entanto, “o interesse

superior da defesa da coletividade social” estava acima do direito individual e

justificava a vigilância preventiva.68Apesar desta resposta, e destas discussões, o

texto final do convênio incorporou a advertência de manter “em estrita reserva” os

antecedentes trocados e limitar seu uso a “fins policiais”.

O segundo eixo dos debates era a definição da categoria de “pessoa perigosa”

que habilitava esta circulação de informações entre os policiais. O amplo espectro de

sujeitos que abrangia esta noção buscava amalgamar, sob uma mesma categoria, o

universo dos gatunos urbanos, os criminosos internacionais e os ativistas do

movimento operário. Em primeiro lugar, era considerado perigoso todo indivíduo

que tivesse “mais de uma vez tomado parte como autor, cúmplice ou encobridor em

delitos contra a propriedade”; e também “todo aquele que carecendo de meios lícitos

de subsistência” tivesse conexões com ladrões, fizesse “vida comum” com os

“delinquentes habituais”, utilizasse “instrumentos ou objetos conhecidamente

destinados para cometer delitos contra a propriedade”.69

Entravam no critério de periculosidade: os falsificadores de moeda ou de

títulos e valores mobiliários; “o responsável mais de uma vez como autor de delitos

graves contra as pessoas”; os estrangeiros e nacionais que se ausentando do país

tivessem participado de qualquer atentado contra a propriedade ou contra as pessoas,

ou que apresentassem “antecedentes desfavoráveis no país de procedência”, também

eram pessoas perigosas. Igualmente o eram, para esta definição das polícias sul-

americanas, “os indivíduos que habitualmente e com fins de lucro exercerem o

68 “Actas de la Segunda Sesión”. In: CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit, p. 33. 69 CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Op. Cit, art. 2, inc. a.

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tráfico das brancas”, “os incitadores habituais a subverter a ordem social, por meio

de crimes comuns contra a propriedade, as pessoas ou as autoridades” e, por último,

“os agitadores de grêmios operários para perturbar com atos de violência ou de força

a liberdade de trabalho ou para atacar as propriedades, sempre que fizerem de

semelhante propaganda sua ocupação habitual e um meio de lucro”.70

Para a permuta de informações sobre estes sujeitos, adotava-se o sistema

datiloscópico. Ainda assim, nem tudo foram concessões para com os propósitos do

representante de La Plata. Apesar da oposição de Vucetich à prática do retrato

fotográfico sob os padrões do bertillonnage, esta foi incorporada à ficha sul-

americana. Alguns conferencistas argumentaram que a datiloscopia não permitia, por

si mesma, “reconhecer à primeira vista” um indivíduo, no caso de pedido de captura,

e que para tomar as impressões digitais a polícia necessitava detê-lo “coagindo sua

liberdade”. Para capturar alguém era preciso contar com elementos mais firmes de

suspeita e, nesse terreno, os retratos fotográficos seguiam sendo sendo úteis. Deste

modo, a ficha para os intercâmbios sul-americanos ficou integrada pela “individual

datiloscópica”, a descrição morfológica, os dados civis e judiciais, mais a fotografia

de frente e perfil.

A troca de antecedentes sobre estes sujeitos perigosos ficava estabelecida como

uma atividade que conectava diretamente os gabinetes de identificação, algo que

seria modificado na conferência de 1920. Esta “liga entre as instituições policiais sul-

americanas” era vista, após a conclusão do encontro, como o nascimento de um novo

campo de atuação. Era, como manifestava o delegado chileno, um fato inédito: aos

brasileiros e argentinos cabia agora “a glória de haver provocado pela primeira vez

na América, e acho que no mundo, um acordo internacional das polícias”.71 Mas

além dos debates sobre se se tratava efetivamente do primeiro convênio mundial no

seu gênero, o certo é que o espaço da polícia internacional estava se abrindo nestes

mesmos anos. Até agora, agregava Rodríguez, estes assuntos eram matéria exclusiva

do Direito Internacional, em sua incumbência sobre os tratados de extradição, porém

esta nova “polícia preventiva” de caráter transnacional ocuparia logo “a atenção dos

70 Idem, Art. 2, inc. b-g. 71 “Saudades! El torneo científico policial”, Boletín de Policía, Año I, n. 14, Buenos Aires, 15 nov. 1905, p. 4-5.

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208

tratadistas”.72 O novo convênio para o intercâmbio de informações entre as polícias

habilitava um campo de atuação às costas das autoridades diplomáticas.

Expulsões, telegramas e receios

O convênio ad referéndum rubricado na primeira Conferência Sul-Americana

de Polícia devia ser ratificado pelos respectivos países para entrar em vigência. A

República Argentina recém o fez em agosto de 1920, meses depois da segunda

conferência, e Brasil ainda mais tarde, em tempos do governo de Getúlio Vargas.73

No entanto, isso não impediu que o convênio fosse posto em funcionamento e,

inclusive, que se intensificasse muito a rota de intercâmbios informais entre as

polícias de ambos os países.

Em outubro de 1906, o novo chefe da polícia portenha, Ramón Falcón, fazia

rapidamente uso dos contatos estabelecidos por seu antecessor e rubricados nos

encontros de 1905. A imprensa portenha havia reproduzido as notícias sobre um

roubo em uma joalheria da rua da Carioca, no Rio de Janeiro, que envolveu um

homicídio e cujo principal suspeito parecia ser um ladrão argentino. Os vigilantes da

Delegacia de Investigações de Buenos Aires não reconheciam este sujeito pelo nome

difundido na imprensa, por isso se pedia – de chefatura a chefatura – o envio da ficha

datiloscópica, “e se possível uma fotografia”.74 Ambas foram remitidas de imediato

pelo Gabinete de Identificação, que já não dirigia mais Félix Pacheco senão seu

sucessor, Edgar Costa. Tampouco o chefe da polícia carioca era o mesmo do ano

72 Idem, p. 5. 73 SOCIETE DES NATIONS/UNITED NATIONS. “Convention de police. Signée à Buenos Aires, le 29 février 1920”, Recueil des Traités/Treaty Series, n. 2930, 1932, p. 434. Ver também: CANCELLI, Elizabeth. “De uma sociedade policiada a um Estado policial: o circuito de informações das polícias nos anos 30”, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 36, n. 1, Brasília, 1993, p. 67-. 86. 74 AN, GIFI 6C 180 (1906). República Argentina, Policía de la Capital: Carta do Chefe de Polícia, Ramón Falcón, ao Chefe da Polícia do Rio de Janeiro, Dr. Antonio Joaquim de Albuquerque Melo, Buenos Aires, 19 oct. 1906. Ofício n. 1494, Gabinete de Identificação e Estatística, Rio de Janeiro, 7 nov. 1906.

Page 220: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

209

anterior. Muitos nomes haviam mudado, mas o canal de trocas de fichas e

antecedentes pareciam se manter firme.

A aceleração desses intercâmbios não foi apenas alimentada pelo compromisso

com os acordos da Conferência de 1905. Dois anos mais tarde se sancionou no Brasil

a chamada “Lei Gordo”: se instituía – igual que na Argentina em 1902 – um

mecanismo de expulsões sumárias de estrangeiros “indesejáveis”. A lei, tal como foi

estudado por diversos historiadores, teve uma intensa aplicação desde seu início para

a repressão de gatunos conhecidos, proxenetas, militantes anarquistas e comunistas.75

Imediatamente depois das primeiras expulsões, Falcón escrevia, mais uma vez, à

polícia carioca, assinalando uma preocupação que somaria, nos anos seguintes,

algumas fricções às declarações de confraternidade, cooperação e amizade entre as

polícias. O chefe da polícia de Buenos Aires se inquietava ao constatar que, há

pouco tempo de ter sido sancionada a lei de expulsões no Brasil, grande parte dos

indivíduos embarcados nos portos brasileiros foram parar na Argentina.

De fato, alguns já têm sido presos, e por muitos indícios parecem ser proxenetas. Alguns outros também foram surpreendidos pretendendo cometer furtos na via ou em lugares públicos, sujeitos que manifestaram haver residido até pouco tempo em distintos pontos do Brasil. Esta circunstância nos fez pensar que muito provavelmente estes indivíduos seriam precisamente os expulsos por vossas autoridades.76

Por este motivo, e citando o artigo nove do Convênio de 1905, Falcón

solicitava que quando a polícia carioca tivesse “conhecimento da saída de qualquer

indivíduo perigoso que se dirigisse ao território de algumas das polícias contratantes,

75 Ver, por exemplo: MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996. SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma historia social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. 76 Carta de Ramón Falcón ao Senhor Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Abril de 1907, reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909, Jefatura del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1909, p. 130.

Page 221: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

210

ou que ainda devesse passar por ele,”, se enviasse um aviso telegráfico,

especificando o nome do passageiro e o navio em que viajava. Simultaneamente,

pedia que mandassem por correio os antecedentes e dados de identidade que

permitissem reconhecê-lo facilmente no porto.77 Existem múltiplos indícios para

sustentar a ideia de que este pedido de Falcón teve consequências concretas, durante

os anos seguintes, nos intercâmbios entre as polícias da Argentina e Brasil.

A troca de fichas datiloscópicas via postal entre os países sul-americanos foi

muito intensa, como foram intensas também as circulações de telegramas com os

nomes e filiações dos expulsos. Os próximos capítulos se centrarão na análise de

uma amostra de sessenta processos de expulsão de estrangeiros, metade dos quais

eram assinalados como “gatunos internacionais” provenientes de outros países da

América do Sul onde as permutas de informações entre as polícias foi igualmente

fundamental.78

O formato de ficha individual datiloscópica “Sistema Vucetich” (expressão que

ficou impressa nos formulários), dominou os intercâmbios de antecedentes entre as

polícias do Brasil e das demais repúblicas sul-americanas, assim como também entre

as próprias polícias estaduais brasileiras, nos processos de expulsão de estrangeiros:

77 Idem, p. 130-131. 78 Estes processos foram selecionados do AN, Fundo IJJ7, Caixas 126 a 180. Os processos compreendem os anos 1907 a 1930, com exceção do período em que a lei de expulsão ficou abolida, entre 1913 e 1917. Sobre as leis de expulsão de estrangeiros no Brasil, ver: BONFÁ, Rogério Luis G. “Com lei ou sem lei”. As expulsões de estrangeiros e o conflito entre o Executivo e o Judiciário na Primeira República. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2008. Os processos de expulsão da República Argentina também foram aplicados sobre uma multiplicidade de sujeitos vigiados pela polícia. Ver os prontuários de expulsos nas primeiras três décadas do século XX, elaborados pelas seções de “Ordem Social” e “Roubos e Furtos”, onde além de anarquistas e comunistas aparecem numerosos casos de ladrões e vigaristas. AGN, Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados, Caja n. 14.

Page 222: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

211

Ficha individual dactiloscópica. Frente e verso. Fonte: AN, IJJ7 179 (1927)

No final de 1907, Falcón escrevia outra carta ao chefe da polícia carioca

acompanhada das fichas datiloscópicas de vários expulsos da Argentina, que haviam

embarcado no vapor Citá de Milano. Assegurava responder assim um pedido

telegráfico recebido do Rio de Janeiro, mas aproveitava a oportunidade para solicitar

resposta de sua carta anterior e o envio da listagem de indivíduos expulsos pelo

governo brasileiro, pedido que, segundo parece, não havia sido cumprido até aquele

momento.79 As polícias dos estados brasileiros em que estes navios tinham escalas, e

desde as quais muitas vezes os expulsos eram embarcados, deviam ser envolvidas

também na rede de circulação de informações. Em uma nova missiva de Falcón, esta

79 Carta de Ramón Falcón ao Sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nov. de 1907, reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909. Op. Cit, p. 154-155.

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212

vez à polícia de São Paulo, ficava explícito que o principal objetivo desses avisos era

evitar os desembarques nos portos do espaço atlântico sul-americano:

Vou aproveitar esta oportunidade para submeter a sua distinta consideração um pensamento que, realizado, creio que nos há de oferecer facilidades para defender nossas respectivas jurisdições da incorporação de elementos antissociais. Consiste simplesmente em que estabeleçamos, como procedimento regular, em primeiro lugar, que as expulsões que fazemos não se executem com destino a nenhum dos países sul-americanos, desde que não se trate do domicílio de origem do expulso, e em segundo lugar, que nos comuniquemos todos os casos de expulsões, proporcionando-nos os elementos de identidade (impressões digitais, fotografias, filiação etc.), e os antecedentes judiciais, policiais e morais do sujeito.80

Este pacto entre os policiais de Brasil e Argentina estava evidentemente à

margem dos procedimentos legais, mas alinhado com o espírito anti-europeu das leis

de expulsão: proteger o espaço sul-americano era o objetivo primordial. As jovens

repúblicas da América do Sul tinham, segundo opinava um policial portenho em

1905, suas “portas de par em par abertas a toda imigração” que arrastava consigo “a

escória mais perigosa”. Ante esta situação, “com que nos defendemos?”, perguntava

o redator da revista: “a polícia mesma nada pode fazer legalmente com o delinquente

profissional” que a Europa enviava para estas terras.81 Para um dos discípulos de

Vucetich, Luis Reyna Almandos, a única solução possível era “estender o eficaz

cordão sanitário para impedir a entrada de semelhantes hóspedes, tal como se faz

com a cólera quando aporta algum navio procedente de lugar infecto”.82

No entanto, segundo agregava ironicamente Reyna Almandos, os sujeitos

perigosos que viajavam em navios “não trazem um letreiro na testa”. Os criminosos

viajantes contavam com meios de transporte cada vez mais rápidos e, além disso, as

80 Carta de Ramón Falcón ao Sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Abr. de 1907, reproduzida em: REPÚBLICA ARGENTINA. Memoria de la Policía de Buenos Aires: 1906-1909, Jefatura del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1909, p. 130. 81 “El Coronel Fraga”, Boletín de Policía, Año I, n. 1, Buenos Aires, 30 abr. 1905, p. 3-7. 82 Reyna Almandos, Luis. “A Dactiloscopia e a Defesa Social”, Boletim Policial, Anno IV, n. 1, jun. de 1910, p. 7-8.

Page 224: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

213

aglomerações nos portos jogavam a favor deles na tarefa de se esconderem das

autoridades. A cooperação policial era uma forma de contra restar esta defasagem

com os recursos do mundo criminal. Em particular, havia um elemento da

modernização tecnológica que podia marcar uma nova diferença: os fios telegráficos.

O telégrafo foi pensado como uma forma de corrigir essa diferença cinética com que

podiam se deslocar policiais e delinquentes. “Em sua tarefa de fazer a polícia de

segurança”, opinava em 1869 o jornal La Tribuna sobre o chefe da Polícia de Buenos

Aires, “não se limitaram aos subúrbios da cidade ou aos limites da província e,

usando o telégrafo provisoriamente e enviando empregados quando for necessário,

ele tem conseguido que nem Rosário, nem Montevidéu, sejam asilos dos criminosos

daqui”.83

O telégrafo selava esta nova época da modernidade policial além das fronteiras,

posicionando-se como um contrapeso dos problemas gerados pelas viagens

ultramarinas: ao contrário do correio postal, que dependia dos meios de transporte, os

telegramas estabeleciam uma distância temporal em relação às cartas, porque

viajavam mais rápido que os navios a vapor. Assim, para conseguir que um suspeito

fosse detido no porto de destino, ou em alguma eventual escala, bastava em princípio

enviar uma mensagem telegráfica com seu nome e sua descrição física. As velhas

filiações de criminosos ordenavam a informação em listas com o nome, apelidos,

idade, nacionalidade, cor dos olhos etc. Todos esses dados eram integrados em uma

linguagem telegráfica, sem pontuações: “no vapor Algerie partido ontem vão

deportados ladrão Juan Corradi italiano 23 anos 167 estatura branco bem sardento e

anarquista Afonso Garcia (a) Lanata espanhol 25 anos branco 170 estatura cabelo

castanho”.84

Esta mensagem, enviada pela polícia portenha ao Rio de Janeiro em 1905,

mostrava duas faces da cooperação policial via telegráfica entre Argentina e Brasil.

Em primeiro lugar, os telegramas existiam desde os primeiros anos das expulsões no

país pratino e antes da sanção da lei brasileira. Em segundo lugar, mostrava uma

característica que se repetia quase sempre na comunicação entre as polícias sul-

83 La Tribuna, “El Sr. O´Gorman, Jefe de Policía”, Buenos Aires, 2 oct. 1869. 84 AN, GIFI 6C 158 (1905). “Telegrama de Baires”, 10 mai. 1905,

Page 225: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

214

americanas: as autoridades de um país queriam evitar qualquer possível regresso dos

expulsos. Um dos destinos do vapor Algerie era Barcelona (aonde provavelmente se

dirigiam Corradi e García), mas tinha uma escala no Rio de Janeiro e o governo

argentino temia que um eventual operativo de retorno se iniciasse com o

desembarque no porto brasileiro. Isso ficava claro em uma anotação à margem do

papel que levava impresso a mensagem telegráfica: “parece que haveria que

recomendar ao Inspetor da Polícia do Porto para que não os deixe desembarcar”.

Os telegramas não eram apenas utilizados para evitar o desembarque no caso

das expulsões. Também se empregavam para auxiliar a captura de pessoas acusadas

de algum delito e procuradas pela justiça, cada vez que se suspeitava que pudessem

haver fugido para outros países em transportes de ultramar. E não apenas criminosos:

outro telegrama da polícia portenha pedia “averiguação paradeiro menor Juan Bazal

ou Salinas argentino 18 anos marcas varicela artista excêntrico que se encontra a

cargo de Ruiz Salinas músico que recorre teatros e cafés”. 85

Em ocasiões em que o crime parecia ter dimensões mais consideráveis que a de

um simples estelionatário ou um menor desaparecido, e que o motivo da busca

tornava o emprego do telégrafo desnecessário, o próprio chefe da polícia firmava

uma carta que se enviava por correio. Em uma delas, por exemplo, pede-se à polícia

da capital brasileira averiguar “reservadamente o paradeiro do fugitivo desta capital”,

Alfredo W. Gaspart, que havia embarcado com o nome falso em Montevidéu no

vapor Planeta, junto com uma mulher e com passagens de primeira classe. Era

acusado pela polícia por defraudações vinculadas à venda de automóveis, se fazendo

passar por representante de casas europeias e norte-americanas.86 Um dado

importante que marca este pedido de busca “reservada” caracteriza quase todas as

comunicações entre Argentina e Brasil: eram feitas em segredo e por fora de

qualquer instância diplomática formal.87

85 AN, GIFI 6C 158 (1905). Telegrama da Polícia de Buenos Aires, 9 out. 1905. 86 AN, GIFI 6C 158 (1905). Carta 25 out. 1905. 87 Sobre a circulação de informações entre a polícia carioca e os consulados estrangeiros, ver: NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. “A polícia e o porto: marinheiros, imigrantes e os consulados estrangeiros no Rio de Janeiro (1890-1920). In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; CAIMARI, Lila; SCHETTINI, Cristiana (org.). La policía en perspectiva histórica: Argentina y Brasil (del siglo XIX a la actualidad). Buenos Aires: UDESA/UNGS/UNSAM (CD-Rom), 2009.

Page 226: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

215

Nesse sentido, havia uma diferença significativa com os intercâmbios entre as

polícias do Rio de Janeiro e Montevidéu, porque cada vez que os uruguaios

respondiam um pedido dos brasileiros utilizavam mediações diplomáticas. Longe da

informalidade e do aclamado caráter expeditivo da cooperação policial, que se

constatavam em cada um dos intercâmbios entre as polícias das capitais de Argentina

e Brasil, os uruguaios cingiam seus pedidos em uma trama consular precisa e ainda

assim bastante dinâmica. Através do Ministério de Relações Exteriores, a polícia

enviava um telegrama ao cônsul do Brasil, que por sua vez elaborava uma carta

dirigida à polícia carioca:

Sirva-se gestionar a prisão preventiva de José Martínez, passageiro de terceira classe do vapor Aragon, partido hoje, autor de tentativa de assassinato de sua própria filha. Pistas: espanhol, de quarenta anos de idade, cor branca, bigode negro, roupa negra e paletó claro. Caso não obter a prisão, recomenda-se reserva para obtê-la em outro porto. Comunique o resultado telegraficamente.88

Dez dias depois, quando chega á capital brasileira um telegrama da polícia de

São Paulo avisando que Martínez havia sido detido no porto de Santos, novamente o

consulado e o governo uruguaio intervêm, enviando um delegado para acompanhar

o detido em sua volta a Montevidéu. Essa triangulação de dados entre São Paulo, Rio

de Janeiro e Montevidéu ilumina outra zona da cooperação policial: mesmo tratando-

se de relações informais, parece haver se respeitado bastante o princípio de primazia

da polícia das capitais como o ponto pelo qual tinham que passar os pedidos de

informação. O mesmo sucedia com as polícias da Bahia e Pernambuco, como se nota

em um telegrama enviado por Ramón Falcón, advertindo ao Rio de Janeiro sobre a

expulsão de um “circulador de moeda falsa” com destino a Salvador.89 Por um

informe reservado da Polícia Marítima, pode-se reconstruir que esse aviso de Falcón

era uma resposta a uma comunicação prévia, na qual os brasileiros alertavam à

88AN, GIFI 6C 443 (1913), Policía Marítima, mai. 1913. 89 AN, GIFI 6C 308 (1909). “Telegrama de B. Aires”, 3 nov. 1909.

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216

polícia argentina que “a viagem deste indivíduo ao Rio da Prata podia ter como

finalidade buscar novos clientes para o negócio que há muito tempo exerce”.90

Todo este intercâmbio culmina em 8 de novembro com o regresso forçado do

estelionatário à Bahia. É a última intervenção telegráfica firmada por Falcón que

aparece no arquivo, porque uma semana depois o chefe da polícia portenha era

assassinado em atentado do anarquista Simón Radowitzky. Os telegramas seguintes –

firmados por seu sucessor no cargo, Luis Dellepiane – são uma larga lista de avisos

de anarquistas expulsos para diversos destinos europeus (Barcelona, Marselha, Vigo,

Gênova). Falcón havia avisado sobre a expulsão de alguns anarquistas até esse

momento, mas eram poucos os casos e cada telegrama informava, como muito, dois

ou três nomes. A partir de dezembro de 1909 se percebem expulsões massivas em

uma série de telegramas anunciando que no mesmo navio viajavam quinze ou vinte

anarquistas expulsos. E, efetivamente, os informes da Polícia Marítima mostram que

ela teve que impedir o desembarque de muitos deles no Rio de Janeiro e em outros

portos brasileiros.91

As autoridades que decretavam as expulsões queriam impedir simplesmente

que um passageiro que viajava rumo à Europa conseguisse evitar sua saída da

América desembarcando em algum dos portos em que o navio tinha escalas (Santos,

São Salvador, Pernambuco). Esse era um problema muito claro no caso do Brasil,

por sua posição geográfica. As expulsões traçavam uma rota de mão única, do sul ao

norte, salvo os casos em que o governo brasileiro expulsava um estrangeiro que era

embarcado com destino ao Rio da Prata. Mas essa era sempre uma alternativa que se

tentava evitar.

Além do seu papel nas expulsões de estrangeiros e na caça de criminosos

viajantes, os telegramas às vezes serviam como um mecanismo para solicitar

antecedentes pessoais. No arquivo brasileiro se encontram telegramas deste tipo:

90 AN, GIFI 6C 308 (1909). Ofício do Inspetor da Polícia Marítima, n. 693, 19 out. 1909. 91 AN, GIFI 6C 308 (1909). Ofícios Reservados da Polícia Marítima, n. 818, 20 dez. 1909, n. 840, 29 dez.1909, n. 793, 7 dez. 1909. Não apenas com anarquistas se deram os processos de expulsões massivas. Em 1913 a polícia portenha embarcou no vapor inglês Aragon mais de 200 proxenetas, com destino ao porto de Southampton. No Rio de Janeiro a Polícia Marítima teve que impedi-los de ingressar e aparentemente aconteceu o mesmo na Bahia e em Pernambuco. , AN, GIFI 6C 443 (1913). Relatório da Polícia Marítima n. 714, 1 out. 1913.

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217

“Silva não tem moeda falsa é estafador por simulação de falsificações mantenho

vigilância saudações atentamente R. M. Fraga”.92 Ou seja, aqui havia uma resposta a

um primeiro telegrama enviado do Rio de Janeiro sobre um sujeito que

provavelmente estava detido na Argentina.

É importante reconhecer que, para o trabalho da Polícia Marítima, a troca de

fichas datiloscópicas não tinha muita utilidade. Por isso os telegramas foram

incorporados como uma novidade, embora, em termos de técnicas de identificação,

utilizassem os recursos mais conhecidos das velhas filiações de criminosos. Os

telegramas incluíam apenas os nomes na maior parte dos expulsos, já que cada um

estava inscrito na lista de passageiros, tinham seu número de boleto e sua

documentação. Isso não estava isento de obstáculos e possíveis fraudes, porque a

quantidade de expulsões tornava difícil um controle mais rigoroso. No caso de

pessoas que escapavam da justiça e de investigações policiais, muitas vezes a polícia

enfrentava o problema do uso de nomes falsos. Quando se descobria que um suspeito

havia embarcado com destino à Europa, já não havia tempo para enviar por correio

postal uma fotografia. Empregava-se, então, a descrição fisionômica, usando uma

linguagem bem mais rústica que a dos códigos do retrato falado.

Vejamos dois casos diferentes. O primeiro parte de uma série de suspeitas

sobre uma vigarista uruguaia que levou a polícia desse país a pensar que poderia ter

embarcado no vapor Formosa com o nome falso de María Pérez. O telegrama

brindava dados bastantes elementares: “32 anos alta forte mancha grande lado

esquerdo”. A partir disso a polícia brasileira tinha que buscar essa mulher quando o

navio chegasse ao porto do Rio de Janeiro. Não puderam encontrá-la: o comandante

explicou que o nome falso correspondia ao bilhete número 18 de segunda classe e

que também aparecia na listagem de passageiros embarcados em Buenos Aires, mas

que de fato aquela pessoa não havia embarcado. O testemunho do Maître d'hôtel

afirmava que não tinha visto a bordo nenhuma passageira com as características

explicadas no telegrama. A polícia portuária revisou minuciosamente os passageiros

92 AN, GIFI 6C 158 (1905). Telegrama 7 ago. 1905.

Page 229: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

218

que desceram no Rio de Janeiro e tampouco encontrou coincidências. O navio

continuou rumo a Gênova.93

No segundo caso se suspeitava que um estelionatário tivesse escapado de

Buenos Aires pelo porto, mas não se sabia exatamente que dia nem em qual navio.

Por isso a colaboração se dava em dois movimentos: um telegrama com a esperança

de conseguir a detenção em sua chegada ao Rio de Janeiro e uma carta postal com

informação mais completa caso conseguisse desembarcar, e fosse necessário buscá-

lo pela cidade.94 O informe da Polícia Marítima, datado dois dias depois do

telegrama, mostra o fracasso da primeira busca. Pela data em que havia desaparecido,

calculou-se que poderia estar chegando ao Rio no vapor Araguaya, mas o suspeito

não apareceu. Provavelmente nesse mesmo navio chegou a documentação da Divisão

de Investigações da Polícia da Capital, que incluía este prontuário:

Prontuário de Cayetano Amadeo Piaggio

Fonte: AN, GIFI 6C 454 (1913)

93 AN, GIFI 6C 454 (1913). Relatório sobre Cayetano Amadeo Piaggio. Jun. 1913. 94 Idem, Telegrama 23 jun. 1913.

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219

O texto explicava que Piaggio era gerente de uma companhia de seguros e que

desaparecera uns dias antes após uma importante fraude. Desde o arquivo da polícia

do Rio de Janeiro não fica claro se os investigadores portenhos tinham indícios

precisos sobre sua possível fuga ao Brasil ou se era uma vaga hipótese. De qualquer

forma, uma semana depois o Ministro de Justiça ditou uma ordem de detenção de

Piaggio, em que se declara que poderia haver ingressado também em outros navios

que chegaram naqueles dias desde o Rio da Prata.

Esta estratégia particular de cooperação policial que se articulava entre os

telegramas e o trabalho da Polícia Marítima buscava impedir o desembarque de

passageiros embarcados compulsoriamente em Buenos Aires que seguiam com

destino à Europa, fundamentalmente anarquistas e proxenetas cujas expulsões se

tornaram possíveis com as leis de expulsões. A polícia carioca recebia, por

telegrama, pedidos de captura de indivíduos embarcados que a Divisão de

Investigações portenha presumia fossem criminosos fugindo da ação da justiça.

Nesses casos as informações necessárias eram o nome do passageiro, o navio em que

havia partido, e o número do boleto. Mas também recebia telegramas em que a

polícia argentina parecia conhecer o autor do delito, tendo testemunhas que

afirmavam sua fuga por via atlântica. Nesse caso o telegrama devia incluir uma

filiação do procurado, mas nem sempre a Polícia Marítima estava em condições

materiais de fiscalizar a todos os passageiros.

Esta polícia portuária também realizava operativos de controle de bagagens nos

barcos e muitas vezes mandava de volta pessoas que chegavam de Buenos Aires por

haver encontrado “irregularidades”. Isso podia incluir desde passageiros que

viajavam sem bagagem ou sem documentação de identidade, até um homem que

encontraram com mercadoria de contrabando escondido no colchão e nos

travesseiros.95 No porto do Rio de Janeiro também se retinham passageiros que

vinham da Europa e que ao chegar eram denunciados pelas autoridades do navio. A

postura dos policiais sempre tendia à intenção de embarcá-los de volta para seus

portos de origem, mesmo quando o destino final não fosse o Brasil, mas no caso de

cidadãos europeus muitas vezes intervinham autoridades consulares para evitá-lo.

95 AN, GIFI 6C 308 (1909). Relatório da Polícia Marítima, n. 312, 9 mar. 1909.

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220

Desta maneira, o trabalho cotidiano da Polícia Marítima nem sempre era

compatível com os objetivos da cooperação policial sul-americana, porque muitas

vezes no Brasil se impedia o desembarque de passageiros que vinham da Europa,

mas os deixavam continuar o caminho até o Rio da Prata.96 Nota-se isso em vários

casos de homens sobre os quais recaiam suspeitas de proxenetismo, provavelmente

por suas aparências ou seus países de origem. A Polícia Marítima evitava que

descessem no Rio de Janeiro, mas não reunia suficientes elementos para devolvê-los

aos seus respectivos países e então seguiam no mesmo navio até Montevidéu ou

Buenos Aires.97 Estas eram limitações na tarefa de circunscrever um mapa que devia

ser defendido dos “indesejáveis”, uma região marcada por constantes fluxos

atlânticos.

Estas barreiras foram objeto de posteriores encontros entre policiais. A

perseguição policial a ladrões viajantes, proxenetas e anarquistas aumentou

notavelmente durante os anos que mediaram entre as duas reuniões. Na Conferência

Sul-Americana de 1920, realizada novamente em Buenos Aires, se somaram às

delegações anteriores, representantes do Peru, Bolívia e Paraguai. A intenção dos

representantes da polícia portenha era revisar agora o convênio de 1905, moderando

a influência de Vucetich e do método datiloscópico da Polícia da Província de

Buenos Aires. A nova delegação argentina estava formada por Miguel Denovi,

Francisco Laguarda e o chefe da polícia, Elpidio González.

96 Ver, por exemplo, o caso de um comandante de um barco que se negou a continuar a viagem com um grupo de passageiros que haviam provocado distúrbios a bordo. O chefe da polícia escreveu ao cônsul francês no Rio de Janeiro e recebeu como resposta uma carta em que o consulado pedia aos cidadãos franceses que “continuassem sua rota como simples passageiros” até Buenos Aires. AN, GIFI 6C 308 (1909). République Française, Consulat de France à Rio de Janeiro, 16 Février 1909. 97 Ver os Relatórios da Polícia Marítima n. 173 e n. 174, 1 mar. 1909. AN GIFI 6C 308 (1909).

Page 232: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

221

“Conferencia Sudamericana de Policía” (1920)

Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv. 189.824.

A tonalidade política da reunião foi menos contemplativa com as garantias

individuais. Buenos Aires, sede nada casual das conferências, era cenário de uma

escalada de grupos autoritários que reduziam toda luta sindical às filas dos inimigos

da sociedade.98 A preocupação com a escalada dos conflitos operários estava na base

da nova convocatória, tal como explicava o chefe da polícia portenha:

Os últimos acontecimentos de caráter social subversivo, ocorridos em distintos pontos desta parte do continente americano, tem evidenciado que os diretores deles mantinham relações com seitas radicais, estabelecidas umas vezes em uns, outras vezes em outros destes países.99

98 Esta posição estava alinhada com a escalada repressiva na polícia carioca, que recentemente havia discutido o endurecimento da vigilância política em uma conferência organizada por Aurelino Leal. Ver: TÓRTIMA, Pedro. Polícia e justiça de mãos dadas: a Conferência Judiciária-Policial de 1917. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1988. 99“Congreso Sudamericano de Policía. Sus orígenes. Constitución y desarrollo”, Revista de Policía, Año XXIII, n. 523, Buenos Aires, 1 abr. 1920, p. 177.

Page 233: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

222

Pouco depois da primeira reunião, Ramón Falcón havia assumido a chefatura

da polícia e, na Seção Especial, liderou uma batalha contra o anarquismo que incluía

infiltrações nos âmbitos de sociabilidade libertária e repressões nas mobilizações de

rua. Um massacre na greve geral convocada para o 1º de maio de 1909 e o posterior

atentado em que morreu Falcón desencadearam uma onda repressiva que derivou na

sanção da lei de Defesa Social, em 1910 .

Desde então, até os acontecimentos da chamada “Semana Trágica” de janeiro

de 1919, estavam as condições dadas para reorientar a direção da cooperação policial

a “uma verdadeira cruzada para a profilaxia social” como afirmava um dos delegados

peruanos.100 Foi precisamente essa posição que justificou o afastamento de Vucetich:

os delegados eram autoridades policiais de alto nível e não unicamente

representantes das áreas de investigação e identificação; além disso, os organizadores

pretendiam dar à conferência um caráter próprio, mais próximo da esfera da

repressão política que às discussões sobre a determinação da identidade dos

criminosos.

De fato, várias questões separavam a nova conferência da velha cruzada pela

difusão da datiloscopia. Por um lado, o projeto de identificação civil de Vucetich

excedia amplamente o horizonte policial.101 A reforma do convênio concentrava o

intercâmbio em um plano especificamente policial: troca de dados sobre “tentativas

ou execução de fatos anárquicos tendentes à alteração da ordem social”, “circulação

de jornais, periódicos, folhetos, imagens e gravuras”; “resoluções de caráter legal ou

administrativo referidos à defesa social”; “dados sobre a preparação ou perpetração

de delitos comuns”. Por outro lado, pretendia-se diferenciar a conferência do enfoque

100 CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas. Buenos Aires: Imprenta J. Tragant, 1920, p. 44. O vínculo imediato da conferência com os acontecimentos políticos prévios era reconhecido também na carta convite que girou telegraficamente pelas chefaturas. O texto dizia: “O Governo Argentino, em vista dos últimos acontecimentos de caráter social subversivo ocorrido em distintos pontos do Continente Americano, que evidenciaram que seus diretores mantinham relações com seitas radicadas em um desses países, resolveu apoiar a ideia sugerida pela Chefatura da Polícia da Capital, com o propósito de que se realize uma Conferência entre todas as polícias interessadas para acordar formas de procedimento que sirvam de defesa comum e tendentes a uma maior vinculação institucional.” Idem, p. 52. 101 Sobre este tema, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. “Juan Vucetich. Una respuesta desde la dactiloscopia a los problemas del orden y la consolidación de la Nación Argentina”. In: SOZZO, Máximo (coord.). Historias de la cuestión criminal en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2009, p. 225-243.

Page 234: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

223

dos congressos científicos nos quais a datiloscopia havia adquirido espaço graças a

dissertações magistrais. No banquete de encerramento, um dos delegados argentinos

celebrava que a conferência não havia “perdido seu tempo em dissertações banais” e

que havia se dedicado “à realização de uma obra prática, de suma utilidade”.102

“Discurso del delegado paraguayo” (1920)

Fonte: AGN, sección de fotografías, Inv. 92.640.

Juan Vucetich reagiu frente ao afastamento de sua figura do centro da cena da

cooperação policial: protestou na revista policial portenha, faltando poucos dias para

o começo da conferência, atribuindo ao chefe do Serviço Datiloscópico da Capital e

ao titular da Divisão de Investigações uma deliberada omissão do papel da

datiloscopia na gênese da primeira conferência, e acusava o convênio de 1920 de ser

uma “simples cópia” do anterior.103 Esta afirmação não estava muito longe da letra

102 CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas. Op. Cit., p. 125. 103 VUCETICH, Juan. “Reseña histórica de la primera aplicación oficial de las impresiones digitales (icnofalangometría) y sus resultados”, Revista de Policía, Año XXIII, N. 520, Buenos Aires, 16 feb. 1920, p. 108-110.

Page 235: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

224

do convênio, mas as propostas discutidas durante as reuniões indicam algumas

mudanças na trama da cooperação policial.

Desde a conferência de 1905, surgiu uma série de problemas no controle da

mobilidade geográfica do delito, mas não se planejou outro paliativo que circular

fotografias e fichas datiloscópicas. Desta vez pretendia-se diminuir a brecha entre as

capacidades cinéticas do mundo criminal e os antiquados recursos policiais. A

explicação desta defasagem, para os policiais, era simples: os criminosos fugiam a

rápida velocidade, amparados nas facilidades dos meios de transporte, se deslocavam

de um país a outro com absoluta liberdade, mudavam recorrentemente seus nomes e

revelavam distintas nacionalidades. Em troca, os policiais estavam obrigados a

cumprir com todos os procedimentos legais para mudar de país e chegavam sempre

tarde onde o criminoso já não estava.

Frente a este dilema, levantaram-se possíveis soluções em um terreno

“puramente policial”. A delegação argentina propôs, por exemplo, um plano de

“facilidades para a perseguição de delinquentes”, no qual um policial que quisesse se

deslocar para deter um suspeito em qualquer um dos países que participavam na

conferência, poderia ser excetuado de reunir previamente toda a documentação

solicitada nesses casos. Sugeria-se que fosse aceito um “simples aviso telegráfico” da

chefia para deixar passar um agente, com a promessa de enviar pelo correio a

documentação em um prazo combinado. O Comissário de Ordens da polícia da

capital argentina, Miguel Denovi, formulou uma proposta, aprovada como

“recomendação aos governos” (fora da letra do convênio), para outorgar recursos

postais e telegráficos às chefias a fim de acelerar o tempo das comunicações.104

Uma maior ênfase na repressão política do anarquismo e do comunismo

marcava a distância entre as conferências de 1905 e 1920. O afastamento de

Vucetich indicava que a discussão “científica” dos métodos de identificação já não

estava na agenda, em parte porque a discussão estava encerrada e o sistema

datiloscópico aceito em todo o continente. Por outro lado, as polícias das capitais

tentavam exercer um controle cada vez maior sobre as polícias dos estados e

104 CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA. Convenios y Actas. Op. Cit., p. 25.

Page 236: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

225

províncias, que já não tinham representação direta no novo congresso internacional.

Mas se prestarmos atenção na forma em que os delegados discutiram as medidas

concretas de cooperação, fica claro que, tanto no nível dos procedimentos e das

técnicas, como nas definições de periculosidade, a questão dos criminosos viajantes e

da mobilidade territorial dos sujeitos a vigiar, seguia dominando as discussões.

Page 237: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

PARTE III

LA CHASSE A L’HOMME

Page 238: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

Interlúdio: bandidos e detetives

A caça aos criminosos constitui hoje um “sport” como a caça ao tigre, como o “foot-ball”, o “tênis”, o “polo” e, ainda mais que todos esses jogos, tem seus encantos inéditos, as suas surpresas, as suas alegrias íntimas.

Elysio de Carvalho, Sherlock Holmes no Brasil (1921).1

Pouco depois da primeira conferência de policiais sul-americanos, nos últimos

dias de 1905, os jornais de Buenos Aires noticiavam um fato curioso. Aconteceu a

uns setecentos quilômetros da capital, em Villa Mercedes, um povoado da província

de San Luis. Desde finais do século XIX, o lugar vinha crescendo após se converter

em uma estação da linha do trem transandino que unia Buenos Aires com Valparaíso.

Na manhã de 19 de dezembro a sucursal do Banco de la Nación havia sido assaltada

por quatro bandidos armados, que pouco tempo antes passeavam pelas confeitarias e

pelos hotéis do lugar simulando ser um grupo de milionários norte-americanos

planejando comprar terras na região.2

Já haviam chamado bastante atenção quando desceram do trem que os trazia de

Buenos Aires. Estes quatro homens vestidos como cowboys, com excelentes trajes de

montar e pistolas Colt adornadas com aplicações de ouro, eram acompanhados de

1 CARVALHO, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 143. 2 “Bank Held Up in San Luis. Exciting morning at the Banco de la Nación”, The Buenos Aires Herald, Buenos Aires, 20 dez. 1905. “Asalto al Banco de la Nación en Villa Mercedes. Audacia de los bandoleros. El gerente del banco herido. Persecución de los asaltantes”, La Prensa, Buenos Aires, 20 dez. 1905. “San Luis. El asalto al Banco de la Nación. Un bandolero herido. Peripecias de la persecución”, La Prensa, Buenos Aires, 21 dez. 1905. “San Luis. El asalto al Banco de la Nación. Antecedentes de los bandoleros. Persecución infructuosa”, La Prensa, Buenos Aires, 22 dez. 1905. “The Bank Robbers”, The Buenos Aires Herald, Buenos Aires, 23 dez. 1905.

Page 239: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

228

uma mulher elegantíssima, a única do grupo que falava espanhol. Passaram cinco

dias entre a chegada a Villa Mercedes e o roubo. Os viajantes se hospedaram no

Hotel Young, o melhor da cidade. Tentaram se assegurar de que ninguém duvidasse

da veracidade de suas intenções comerciais usando a ostentação e o consumo

desmedido. A mulher foi à principal loja de roupas importadas e comprou um traje

recém-chegado de Paris, participaram de bailes no hotel e assistiram a uma corrida

no Hipódromo.

O assalto ao banco caiu no povoado como um raio fulminante, absolutamente

inesperado. Ao melhor estilo Far West – segundo conta a memória da cidade – os

pistoleiros levaram catorze mil pesos em sacolas de moedas de níquel e conseguiram

escapar em meio a um tiroteio confuso, em que um dos membros do bando saiu

ferido. O incidente não os deteve e se perderam no horizonte, entre disparos e a

poeira provocada pelo galope dos cavalos. Um grupo de policiais buscou os bandidos

pelo sertão da Província de San Luis, mas apenas encontraram sacolas rasgadas e

vazias, jogadas no meio do deserto. Presume-se que cavalgaram até Neuquén para

atravessar a fronteira com o Chile. A lenda atribui a este bando a primeira série de

assaltos armados a bancos na Argentina. Apesar dessa suspeita estar baseada em

conjecturas vagas, o certo é que nessa manhã os policiais de Villa Mercedes estavam

tão surpreendidos com o ataque em plena luz do dia que pensaram até que era um

golpe para derrubar o governador.

Dez dias após o roubo, em seu número de 30 de dezembro de 1905, o Boletín

de Policía de Buenos Aires publicava os retratos dos supostos autores. As indagações

não ficaram a cargo da Polícia de San Luis, mas na Delegacia de Investigações da

capital. Cada um dos retratos seguia acompanhado por um prontuário de

antecedentes. O primeiro suspeito era Longbaugh ou Frank Jones ou Bayd ou Harry

A. Place, vulgo Kid ou Sundance Kid: “homem jovem, agricultor, com as pernas bem

abertas, segundo a agência nacional de pesquisas”. Tinha aproximadamente quarenta

anos, era “branco, cowboy, saqueador, ladrão de bancos e de gado”. A dama que os

acompanhava parecia ser sua esposa: Miss Place, Ethel ou Etta Place, grande

Page 240: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

229

amazona “de uma coragem viril admirável” que, além disso, manejava todas as

armas com a maior precisão.3

Os outros dois sujeitos mencionados eram Harvey Logan, vulgo Kid Curry ou

Boh, também usava os nomes de Jonas Tom Mevilles ou R. T. Whelar; e George

Parker ou James Ryan ou Casmidg, vulgo Buth.4 Este último era nada mais nada

menos que “Butch Cassidy”, o mais conhecido de todos os pseudônimos de Robert

LeRoy Parker, um popularíssimo ladrão norte-americano, salteador de bancos e

trens. Ele e os outros dois acusados pela publicação policial haviam integrado uma

quadrilha famosa para o imaginário do Western: a “Wild Bunch”, formada nos

últimos anos do século XIX, mas cujo prestígio atravessou comodamente o século

XX, desde que John Schwartz os retratou no Texas em 1900, pouco depois de um

assalto ao First National Bank de Nevada, até o longa-metragem Butch Cassidy and

the Sundance Kid (1969).5

“Fotografia da Wild Bunch”

Fonte: Forth Woth Five (fotografia de John Schwartz) , Texas, 1900.

3 “El robo de Villa Mercedes. Los presuntos asaltantes del Banco Nacional”, Boletín de Policía, Año I, n. 17, Buenos Aires, 30 dez. 1905, p. 6. 4 Idem, p. 6-7. 5 O assalto em Villa Mercedes, seguindo a crônica dos jornais locais, foi reconstruído por: GUTIÉRREZ, Ricardo; MORENO, Hugo. Butch Cassidy & the Wild Bunch. Asalto al Banco Nación de Villa Mercedes. San Luis: Instituto Científico y Cultural El Diario, 1992, p. 39-117.

Page 241: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

230

Encurralados pelas autoridades norte-americanas, os membros da Wild Bunch,

encabeçada por Butch Cassidy, Sundance Kid e sua companheira, fugiram para

Buenos Aires, embarcando no porto de Nova York em fevereiro de 1901. Chegaram

à capital argentina em março e se hospedaram com nomes falsos no Hotel Europa.

Adquiriram terras na Patagônia e partiram para o sul do país. Na América do Norte

ficou uma sólida lenda, cuja épica o cinema de Hollywood se encarregou de cultivar:

eram uma quadrilha de ladrões simpáticos e criativos, mais propensos à astúcia que à

violência. Na Argentina, no entanto, Sundance Kid e Butch Cassidy deixaram um

saldo de enfrentamentos armados, feridos e, segundo parece, alguns assassinatos.6

No início de 1905, depois de certo tempo de residência em uma fazenda

localizada na Cordilheira dos Andes, no território de Chubut, começaram a ser

procurados pela justiça argentina que os acusava por dois roubos anteriores: o assalto

a um banco de Río Gallego, uma das localidades mais austrais da região patagônica,

e outro na cidade bonaerense de Bahía Blanca.7 Depois do golpe no Banco Nacional

de Villa Mercedes, a intervenção da Polícia da Capital foi imediata. Cinco dias após

o roubo, a imprensa publicava os retratos de Butch Cassidy, Sundance Kid, Etta

Place e Kid Curry, atribuindo-lhes também o assalto ao banco de Río Gallegos.8

Como chegou à polícia portenha, tão rapidamente, a pista sobre o Wild Bunch? O

jornal que publicou os retratos o explicava bem:

As façanhas deste bando, composto de três homens e uma mulher, esposa de um deles, são conhecidas em toda Europa e América do Sul, onde circulam com profusão uma série de impressos em que se detalham os curiosos pormenores de cada um desses bandidos. A

6 Sobre a vida de Cassidy, Sundance Kid e Etta Place na Patagônia, ver: GAVIRATI, Marcelo. Buscados en la Patagonia. La historia no contada de Butch Cassidy y los bandoleros norteamericanos. Buenos Aires: La Bitácora Patagónica, 2011. Uma visão mais ampla sobre o bandidismo rural na região: RAFART, Gabriel. “Violência rural e bandoleirismo na Patagônia”, Topoi, vol. 12, n. 22, Rio de Janeiro, jan.-jun. 2011, p. 118-136. 7 “El asalto al Banco de Tarapacá en Río Gallegos. Medidas del Gobierno”, La Prensa, Buenos Aires, 16 fev. 1905. Uma das hipóteses policiais sobre o trajeto percorrido por estes bandidos sugere que fugindo de Río Gallegos se dirigiram à Cordilheira e que em São Carlos de Bariloche tomaram um navio para cruzar a fronteira com o Chile pelo Lago Nahuel Huapi. 8 Segundo o Boletín de Policía, quando a imprensa da capital começou publicar os retratos, os habitantes de Villa Mercedes, e em particular o dono de uma confeitaria onde haviam tomado whisky até minutos antes do roubo, reconheceram os membros da Wild Bunch como os assaltantes do banco. “El robo de Villa Mercedes. Los presuntos asaltantes del Banco Nacional”, Op. Cit., p. 7.

Page 242: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

231

agência nacional de pesquisas estabelecida nos Estados Unidos se encarregou de fazer conhecida a quadrilha que nos ocupa e o doutor Beazley, sendo chefe de polícia no ano 1903, mandou à Delegacia de Investigações os prontuários de toda a curiosa história. 9

Qual era essa “agência nacional de pesquisas” dos Estados Unidos? Referiam-

se ao serviço de detetives privados criado em 1850 por Allan Pinkerton, na cidade de

Chicago. Nos anos de 1870, converteu-se na National Detective Agency, estendeu

suas oficinas a outras cidades norte-americanas e adotou como logotipo um olho

aberto sob a legenda “We Never Sleep”. Longe da figura do investigador privado dos

romances de enigma, os agentes de Pinkerton eram operários da detecção que muitas

vezes desempenhavam um trabalho mecânico submetido a regras estritas. Se alguma

ficção se aproximava, não era a daqueles detetives homo cogitans de Poe y Conan

Doyle, senão daqueles cinzentos investigadores assalariados da literatura noir,

principalmente na obra de Dashiell Hammett, que por sinal trabalhou para a Agência

Pinkerton no início do século XX.10

Para esse então a Pinkerton era uma complexa organização burocrática de uma

estrutura hierárquica impecável. Além de empregar guardas de segurança privada

para proteger empresas, bancos e custear transporte de dinheiro, realizava diversas

tarefas de espionagem política e investigação criminal propriamente dita. Contratava

centenas de agentes para arrecadar informações “nas sombras”, de acordo com

instruções precisas, detalhadas em uma série de regulamentos e manuais para

detetives. As regras definiam critérios para se comportar na via pública, estabelecer

comunicação com estranhos, manipular a informação juntada e produzir relatórios

escritos para os prontuários do arquivo. No terreno da perseguição de bandidos, a

Agência Pinkerton era considerada de uma eficácia superior a de qualquer força

9 “Noticias de Policía. ¿Los bandoleros de San Luis? El Asalto al Banco de Villa Mercedes. Nuevos detalles. Sospechas justificadas. Historia de unos salteadores. Avisos a la policía de Chile. Medidas que deben adoptarse. Los bancos de la República en peligro”, La Prensa, Buenos Aires, 24 dez. 1905. 10 RACZKOWSKI, Christopher. “From Modernity’s Detection to Modernist Detectives: Narrative Vision in the Work of Allan Pinkerton and Dashiell Hammett”, Modern Fiction Studies, vol. 29, n. 4, 2003, p. 629-659.

Page 243: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

232

policial da América do Norte.11 De fato, frente a casos difíceis como os de Jesse

James, da própria Wild Bunch e vários “yeggmen” (gíria usada nos finais do século

XIX para se referir aos bandos de ladrões de bancos e caixas fortes), o governo

deixou o trabalho nas mãos da Pinkerton.12

Ao lado dessa “criminalidade yanqui”, escrevia um redator da revista policial

portenha, “nossa delinquência está ainda nas fraldas”.13 Esta nota apareceu um ano

antes do assalto ao banco de Villa Mercedes e reproduzia uma monografia lida por

um dos herdeiros da dinastia, Willian A. Pinkerton, na Convenção Anual da

International Association of Chief of Police (Missouri, 1904). Um ano e alguns

meses mais tarde, após o impacto dos supostos assaltos de Butch Cassidy na

Argentina, a mesma revista trocava o olhar exótico por uma advertência sobre os

perigos dos “yeggmen de importação”.14 Três características das quadrilhas norte-

americanas chamavam especialmente a atenção dos policiais portenhos: a destreza no

manejo das armas, os assaltos em plena luz do dia e as fugas a toda velocidade. Estes

modernos pistoleiros constituíam, até pouco tempo, “um gênero particular de

criminalidade reservada aos Estados Unidos, país das coisas fabulosas”, mas

ameaçavam cada vez mais a “tomar carta de cidadania entre nós”. 15

11 Goron afirma que nos Estados Unidos havia mais fé na “iniciativa privada” que na “polícia oficial”. A Agência Pinkerton – escrevia – contava com um “exército de detetives” que até então somavam mais de 2.500 homens repartidos em diferentes cidades do país. Quando detiam um delinquente, podiam colocá-lo nas mãos da justiça, mas também podiam apelar a mecanismos de resolução não judicial dos conflitos, mediante pagamento de uma compensação às vítimas, clientes da Agência. GORON, Mr. Las policías extranjeras. Op. Cit., p. 338-344. 12 Referências sobre os Arquivos da Agência Pinkerton, os yeggmen e os bandos de ladrões de bancos: FRISBY, David. Paisajes urbanos de la modernidad. Exploraciones críticas. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2007, p. 82-102. 13 “El Yegg y los Yeggmen. Los grandes ladrones norteamericanos”, Revista de Policía, Año VIII, n. 180, Buenos Aires, 16 nov. 1904, p. 185. Outra nota sobre um bandido norte-americano “com dados extraídos dos Arquivos da famosa Agência Nacional de Investigações Pinkerton”, aparece em: “Ladrones famosos. Adam Worth (a) el pequeño Adam, uno de los que se han apropiado mayor suma de dinero en el mundo”, Boletín de Policía, Año I, n. 5, Buenos Aires, 30. Jun. 1905, p. 12- 13. 14 “Nuevas formas de la delincuencia”, Revista de Policía, Año IX, n. 207, Buenos Aires, 1 ene. 1906, p. 119. 15 Idem, p. 119. Em Buenos Aires, estas três características do fenômeno do pistoleiro moderno terão uma enorme visibilidade nas décadas de 1920 e 1930, pelo surgimento das armas automáticas e do automóvel como meio de locomoção para a fuga. Ver: CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 145-188; e CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-1945. Buenos Aires: Siglo XXI, 2012, p. 27-58.

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233

O que estas notícias revelavam era que a Agência Pinkerton sabia o destino

sul-americano de Butch Cassidy desde o preciso momento em que os membros da

Wild Bunch embarcaram para Buenos Aires. Inclusive, a polícia portenha foi avisada

e um detetive norte-americano viajou à Argentina:

Os detetives da agência Pinkerton, que é uma instituição toda yanqui, descobriram seu paradeiro em um esconderijo afastado da Patagônia. Um agente da Pinkerton que chegou a Buenos Aires há pouco mais de dois anos, constatou o fato, comunicou seus superiores de Nova York, e estes, de acordo com as vítimas destes fugitivos e com as autoridades do país, adotaram o seguinte procedimento, verdadeiramente yanqui: deixar em paz os perseguidos e rogar à nossa polícia que unicamente no caso de algum dos membros do bando abandonar a Argentina para voltar aos Estados Unidos, comunicasse o fato por telégrafo à agência nova-iorquina! 16

Tudo isto sugere que a rápida difusão dos nomes da quadrilha e a imediata

publicação de seus retratos na imprensa teve a ver com a existência de contatos

prévios entre a Agência Pinkerton e a Polícia da Capital. Os prontuários dos

bandidos norte-americanos estavam na Delegacia de Investigações ao menos desde

1903. Quando souberam dos roubos a bancos cometidos por sujeitos anglofalantes

com aspecto de cowboys, a pista da Wild Bunch se ativou imediatamente. A polícia

portenha coordenou as comunicações de duas formas: por um lado, mantinha uma

linha de diálogo internacional com os Estados Unidos e com a polícia do Chile, onde

se supunha que a quadrilha havia escapado; por outro, recebia informações de San

Luis e pedia às polícias das províncias próximas que aumentassem a vigilância rural

para encontrar os bandidos. Além da publicação dos retratos nos jornais da capital, a

Delegacia de Investigações se encarregou de circular um cartaz de três páginas com

dados expressamente obtidos pela Agência Pinkerton.17

16 “Nuevas formas de la delincuencia”, Op. Cit., p. 119. 17 Este cartaz se encontra encadernado junto ao Boletín de Policía (1905-1906), no volume conservado na Hemeroteca da Biblioteca Nacional Argentina, Topográfico n. 226533. Sobre esta circulação, na revista de polícia se lia: “é sabido que a Delegacia de Investigações indicou imediatamente às polícias das províncias interessadas, o nome e antecedentes dos supostos autores do mencionado delito, cujos retratos têm circulado profusamente em diversos órgãos da imprensa”. “Nuevas formas de la delincuencia”, Op. Cit., p. 119.

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234

Cartaz com pedido de captura da Wild Bunch

Fonte: Boletín de Policía, jan. 1906, s/n.

Este caso mostra que as polícias das capitais buscavam assumir a representação

do país na trama internacional da cooperação policial. A tentativa de federalização de

facto das polícias metropolitanas chocava frequentemente contra a inércia dos

contatos diretos entre diversas cidades sul-americanas: as trocas de informação das

polícias do Rio de Janeiro, Montevideo e Santiago do Chile com La Plata, sem passar

por Buenos Aires, ou da polícia de São Paulo com diversas cidades argentinas, eram

testemunhas dessa prática. Desde o último quarto do século XIX, os escritores da

polícia portenha vinham requerendo o reconhecimento de iure para essas atribuições

federais que – segundo eles – correspondiam por estar esta instituição sob ordens

diretas do governo nacional.

O Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación de 1894, por

exemplo, dedicava uma seção para definir a questão da “jurisdição territorial”. Os

codificadores pretendiam legitimar o poder de capturar suspeitos fora dos limites da

cidade capital, “naqueles casos em que, por urgência, não se podia proceder a

Page 246: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

235

extradição interprovincial na forma determinada por lei”.18 Igual ao convênio sul-

americano de 1905, a ideia era que bastasse um aviso telegráfico entre as chefias de

polícia para permitir que os vigilantes se movessem pelo território do país sem

obstáculos burocráticos. Este projeto e todas as tentativas posteriores para avançar

sobre a jurisdição das polícias provinciais naufragaram até a criação da Polícia

Federal Argentina, em meados do século XX. No entanto, quando se tratava de

perseguir delinquentes viajantes, que além de circular por vários pontos do país,

tinham prontuários no exterior, muitas vezes a Polícia da Capital intervinha através

de sua enérgica seção de investigações, por mais que os crimes houvessem sido

cometidos em território das províncias, como havia sucedido com a Wild Bunch.

O modo em que circulou a informação neste caso seguia um dos postulados

básicos das conferências policiais: “que as polícias das províncias ou estados se

entendessem diretamente com a da capital do respectivo país, e esta com as demais

estrangeiras”.19 Mas essa centralidade das polícias metropolitanas não emanava

necessariamente de uma relação harmônica e fluída com as demais forças de

segurança de seu país, e sim da capacidade de impor uma liderança baseada na

primazia tecnológica: recursos para coletar, arquivar e transmitir rapidamente a

informação, funcionários melhor treinados e dotados de algumas ferramentas

técnicas que faziam a diferença. Sem dúvidas, o campo que mais abria perspectivas

às polícias das capitais da Argentina e Brasil para disputar esse lugar dominante,

dentro de seus vastos países, era a investigação criminal.

Nas primeiras décadas do século XX, ao ritmo das notícias sobre façanhas dos

yeggmen e dos pistoleiros norte-americanos, o trabalho dos detetives privados

começou a interessar cada vez mais aos policiais sul-americanos. Esse interesse tinha

muito a ver com a péssima fama dos vernáculos agentes de investigação. Em Buenos

Aires e no Rio de Janeiro existiam serviços de “polícia secreta” desde o último

quarto do século XIX. Estavam constituídos por agentes sem uniforme, mais

orientados às tarefas de polícia política que à perseguição de ladrões, estafadores ou

18 REPÚBLICA ARGENTINA. Proyecto de Código de Policía para la Capital de la Nación. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894. Título III. “Jurisdicción Territorial”, art. 103, p. 23. 19 “ Conferencia internacional de policías. Terminación de sus trabajos”, Revista de Policía, Año IX, n.203, Buenos Aires, 1 nov. 1905, p. 86.

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236

assassinos. A polícia portenha instituiu o serviço depois da revolução de 1874, e no

relatório anual do ano seguinte o chefe Manuel Rocha respondia as primeiras críticas.

Reconhecia que desde seu nascimento francês a inícios desse século, a polícia secreta

havia desatado “controversas apaixonantes” no mundo da cultura. Mas entendia que

seus agentes não deviam ser julgados seguindo princípios morais abstratos, porque

eram – de fato – uma “negação viva de todas as qualidades que realçam e enobrecem

o homem”. Mentiam, ocultavam sua identidade, viviam entre ladrões, falavam seu

mesmo jargão: em suma, existiam graças a um tipo de pacto com o diabo, a um

“sacrifício de todas as virtudes humanas”. Sua diferença com o mundo dos

criminosos era da ordem dos fins: em todo o resto se pareciam.20

A imprensa pouco se convencia desta ideia de semear a cidade com

“pesquisas”, como chamavam aos agentes secretos em Buenos Aires. O núcleo da

crítica apontava contra o estabelecimento de um serviço de espionagem para seguir

as atividades dos dissidentes ao governo. Mas o interessante é que os jornais não se

limitavam a um ataque per se à polícia secreta: ironizavam a imperícia que a polícia

tinha para pôr em prática as regras mais elementares do ofício detetivesco. Os

agentes secretos apareciam como sujeitos toscos e incapazes de passar

despercebidos: “avisamos ao chefe que são muito torpes”, escrevia um redator da La

Prensa, “porque não sabem dissimular o baixo papel de espião que lhes

confiaram”.21 No mesmo tom, um jornal carioca questionava o serviço secreto do

Corpo de Segurança Pública, cujos integrantes eram chamados “secretos”, embora

tivessem se convertido nos “homens mais conhecidos da cidade”.22

No Rio de Janeiro, o chefe da Secretaria de Polícia da Corte opinava, em seu

relatório de 1878, sobre a criação de “cinco turmas de agentes secretos”, cujas tarefas

definia em termos muito próximos aos da polícia argentina: “imiscuir-se por toda

parte sem causar receios nem suspeitas”, inventar manobras engenhosas para

“provocar as expansões da franqueza, captar certas intimidades, e chegar até muitas

20 ROCHA, Manuel. Memoria del Departamento General de Policía correspondiente al año 1875. Buenos Aires: Imprenta La Tribuna, 1876, p. 91-98. 21 “Vigilantes disfrazados”, La Prensa, Buenos Aires, 28 fev. 1875. Véase también: GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009. p. 86-87. 22 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 dez. 1905.

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237

vezes por um simples fio ou remotíssimo indicio à concretização das provas do fato

criminoso”.23 Mas nestes mesmos relatórios dos últimos anos do Império, os

inquéritos por “crimes contra as pessoas” (homicídios, ferimentos graves) e “crimes

contra a propriedade” (roubos, assaltos, estafas) eram feitos por delegados e

subdelegados. O serviço secreto estava mais vinculado à polícia política e, por isso,

depois de 1889, alguns republicanos o consideravam um baluarte monárquico que

era necessário desarmar. 24

No começo do século XX, as chefias do Rio de Janeiro e Buenos Aires

tentaram apagar a herança das polícias secretas “a la Vidocq” e reorganizar os

serviços sob a modalidade do detetive profissional.25 A moderna polícia de

investigações se fundava sobre uma multiplicidade de tecnologias aplicadas à

resolução de crimes. Era o fim da “polícia empírica” e o começo de uma era da

“polícia científica”, em que as indagações pareciam se afastar das ruas e se

concentrar nos laboratórios. “Não há agente de polícia melhor que o microscópio”,

dizia Elysio de Carvalho em 1921, em uma frase que aproximava o investigador

ideal aos modelos dos grandes detetives de romance do século XIX, enquanto os

afastava dos farejadores urbanos da Agência Pinkerton.26

No entanto, uma década antes, o próprio Carvalho, então diretor do Gabinete

de Identificação e Estatística, havia proposto a criação de uma “Agência Geral de

Polícia Privada” inspirada nos serviços similares existente na América do Norte e

Europa. A ideia era estabelecer uma instituição híbrida (privada porém reconhecida

pelas autoridades estatais e financiada com fundos públicos), capaz de estender –

23 LIMA. Francisco José de. “Relatório do Chefe de Polícia da Corte. Secretaria da Polícia da Corte, em 30 de setembro de 1878”. In: Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça, Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira. Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1878, Anexo 5, p. 56-58. 24 SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008, p. 54-57. 25 Sobre a figura do detetive policial, veja os trabalhos compilados em EMSLEY, Clive; SHPAYER-MAKOV, Haia (eds.). Police Detectives in History, 1750-1950. Aldershot: Ashgate, 2006. SHPAYER-MAKOV, Haia (eds.). The Ascent of the Detective. Police Sleuths in Victorian and Edwardian England. New York: Oxford University Press, 2011. 26 CARVALHO, Elysio de. “As descobertas extraordinárias do Dr. Balthazard”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Op. Cit., p. 51.

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238

como tinha feito a Agência Pinkerton – suas atividades aos demais estados da

confederação.27 Não cabe nenhuma dúvida que o exemplo dos detetives norte-

americanos era o que pairava sobre a cabeça de Carvalho. Em um texto publicado

neste período, ele mesmo explicava claramente:

O detetive americano é o tipo mais acabado, mais completo, mais perfeito do agente de polícia, dotado de todos os recursos e conhecimentos, aparelhado admiravelmente para a luta contra a criminalidade moderna, intrépido e vigoroso, apto para vencer em astúcia e em inteligência o mais esperto dos canalhas. Hoje em dia não ha quem ignore a existência das agências particulares de polícia. Os americanos (...) compreenderam perfeitamente o papel importante que, na sociedade moderna, estava reservado à nova profissão de detetive. (...) O nome da “Pinkerton Agência” está ligado a todos os grandes sucessos que se têm passado na América nestes últimos quatro anos.28

O projeto de Agência Privada não prosperou e no seu lugar avançaram as

reformas no Corpo de Investigações, inspiradas nas inovações da criminalística

europeia. A escola de instrução de agentes inaugurada em 1912, com o próprio

Carvalho como diretor, reafirmava a decisão de manter o monopólio policial da

investigação de delitos. Mas por sua vez abria as portas às técnicas da polícia

científica que, embora recém nascia, já tinha seus clássicos: Bertillon, Vucetich,

Reiss, Locard. Mais que aprender a se disfarçar, viver entre os criminosos passando

despercebido, falar a linguagem dos submundos delitivos e decifrar os sinais da rua,

o detetive policial devia estudar noções de datiloscopia, aprender a técnica do retrato

falado, tornar visível o invisível (uma mancha de sangue, uma impressão digital

imperceptível, uma palavra sobre um papel queimado), saber olhar com a ajuda da

lupa e do microscópio.

Estes dois ofícios, do criminalista policial e do detetive privado, não eram,

entretanto, necessariamente incompatíveis. Aproximar esses dois mundos era a

27 AN, GIFI 6C, Caixa 378, Requerimento de Elysio de Carvalho ao chefe da polícia Belisario Taborda, 11 out. 1912. 28 CARVALHO, Elysio de. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 94-95. Veja também: CARVALHO, Elysio de. Repressão e criminalidade nos Estados Unidos, Boletim Policial, Ano V, n. 16/17, Rio de Janeiro, jul.-set. 1911, p. 476-483.

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aposta do delegado Olyntho Nogueira em seu Tratado elementar para se chegar a

ser polícia e detetive (1923), livro que se originava de uma viagem aos Estados

Unidos realizada seis anos antes.29 Não estava aqui, como em Elysio de Carvalho, a

ideia de formar uma agência privada. Tratava-se principalmente de dar ao detetive da

polícia pública um status profissional. A singular proposta de Nogueira consistia em

combinar elementos da tradição detetivesca dos Estados Unidos com as últimas

novidades da polícia científica europeia.

Assim, o tratado começava com “lições de observação” que buscavam treinar o

olhar na via pública (aliás, a capa do livro estava ilustrada com um olho aberto, ao

estilo da Agência Pinkerton). O leitor encontrava exercícios práticos que iam desde

observar erros em gravuras até a sair à rua e descrever minuciosamente uma cena em

uma confeitaria. Também ensinava a “sombrear”, expressão da gíria detetivesca que

designava a prática de perseguir uma pessoa em via pública. A habilidade do

sombreador consistia em ficar no ponto exato para passar despercebido e conseguir a

distância perfeita para não ser visto nem perder de vista a presa. Incluía, por último,

lições de “embrulhagem”, ou seja, formas de estabelecer contato e dialogar com o

suspeito, extraindo informações sem despertar desconfiança.30

Mas, ao mesmo tempo, junto a estas técnicas Nogueira incorporava lições de

perícias gráficas sobre manuscritos, análises de impressões digitais na cena do crime

e interpretação de fotografias.31 A rua e o laboratório apareciam aqui como os dois

territórios complementares da polícia de investigações, territórios repletos de sinais

que aguardavam ser interpretados. Se “sombrear” e “embrulhar” eram tarefas que

formavam parte dos mandamentos de rua do bom detetive privado, estas outras

técnicas requeriam o treinamento do olho no espaço fechado do gabinete do

29 NOGUEIRA, Olyntho. Tratado elementar para se chegar a ser polícia e detetive. Rio de Janeiro: Imprensa Guanabara, 1923. 30 Idem, p. 115-126 y p. 188-203. 31 Idem, p. 128-180. Estas mesmas noções estarão presentes em distintos manuais destinados aos agentes policiais, investigadores e detetives, e publicados nas décadas de 1930 e 1940 por policiais civis em atividade e aposentados. Por exemplo: NOGUEIRA, Olyntho. Policia Técnica: Base para a Criação da Escola Brasileira de Detetives. Rio de Janeiro: Renascença, 1934. TERRA, Sylvio. A polícia e a defensa social. Rio de Janeiro: Graphica Guarany, 1939. Sobre estes manuais veja: CUNHA, Olívia Maria Gomes da. “Os Domínios da Experiência, da Ciência e da Lei: os Manuais da Polícia Civil do Distrito Federal, 1930-1942”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 12, n 22, 1998, p. 235-263.

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investigador. Era, definitivamente, uma versão científica do matrimônio que os

leitores de ficções policiais conheciam muito bem pelos folhetins. O novo “policial

de laboratório”, segundo a expressão usada por Locard para se referir aos agentes de

investigações, era um tipo de reencarnação dos detetives de Poe e Conan Doyle. Para

Elysio de Carvalho, na América do Sul, chegava a hora de utilizar os avanços no

campo da criminalística para combater os ladrões viajantes e gatunos internacionais,

“desmascarar os cavalheiros da indústria”, a todo rastaquouère que se escondia

detrás do cambrioleur gentleman.32

32 CARVALHO, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Op. Cit., p. 139-140.

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A sociedade dos malfeitores

É preciso fugir, sair, desaparecer, tomar outro nome, continuar. (…) O gatuno, quando é só gatuno, quando adota na esperteza e no “avança” geral a mais difícil das profissões, que é a de gatuno só sem mais nada, tem que continuar, insistir, morrer nesse infernal e magnífico desporto.

Dr. Antônio, Memórias de um rato de hotel (1912).

Em 1912 começou a funcionar no Rio de Janeiro a Escola de Polícia proposta e

dirigida por Elysio de Carvalho, “nos moldes singelos mas eficazes da School for

Detectives dos norte-americanos”.1 As aulas brindavam uma “educação técnica” de

caráter obrigatório para os aspirantes ao Corpo de Investigação e Segurança Pública,

embora também abrisse suas portas a agentes de outras repartições.2 O programa de

estudos incluía um curso de “política criminal”, onde se ensinava criminologia,

direito penal brasileiro e legislação penitenciária, e outro de “polícia científica”, que

reunia noções elementais de criminalística e diferentes técnicas de identificação. Este

segundo curso tinha uma unidade chamada “a sociedade dos malfeitores”: seu

objetivo consistia em fornecer conhecimentos sobre o “modo de trabalho das várias

1 “Corpo de Investigação e Segurança Pública”. In: Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 84. 2 Sobre a Escola Policial, ver: SAMET, Henrique. Construção de um Padrão de Controle e Repressão na Polícia Civil do Distrito Federal por meio do Corpo de Investigações e Segurança Pública (1907-1920). Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2008, p. 326-336.

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242

categorias de criminosos, seus hábitos e seus costumes, seu argot e arte do disfarce”.3

Por que estudar estes ladrões a partir de suas práticas habituais, sua forma de falar e

se vestir? Carvalho explicava:

Nos nossos tempos, os criminosos se tornaram, incontestavelmente, verdadeiros especialistas do crime, executando tão somente um determinado gênero de trabalho. O que tem coragem e sangue frio, torna-se um ladrão arrombador e, às vezes, assassino, o que tem agilidade e destreza nas mãos acaba batedor de carteira, o que tem audácia e cinismo, faz-se rato de hotel.4

O ladrão estava se tornando um profissional e o roubo um campo repleto de

ofícios. Em 1903, o delegado carioca Vicente Reis fez o trabalho de enumerar e

explicar todas essas especialidades: batedores de carteiras, gravateiros,

arrombadores, falsificadores de bilhetes, vigaristas, ratos de hotel.5 Mas este tema do

“delinquente profissional” estava na boca de todos: nos congressos internacionais de

ciência penitenciária e de antropologia criminal, nos escritos de policiais europeus e

sul-americanos, na imprensa e na literatura popular. Nestes discursos, a

profissionalização do delito estava atravessada por duas figuras características. Em

primeiro lugar, os ladrões começavam a fazer uso sistemático das inovações

tecnológicas da modernidade e a operar “de acordo com as descobertas da ciência”,

como escrevia em 1910 o Inspetor da Polícia Marítima do Rio de Janeiro. “A estrada

de ferro, o telégrafo, o telefone, o automóvel, etc., e amanhã o aeroplano, são armas

contra os ladrões e ao mesmo tempo as que eles mais utilizam para burlar a ação

combinada da polícia”.6

3 CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910, p. 132-133. 4 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 147. 5 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903. 6 LOUZADA, Trajano. “A nossa polícia e a polícia estrangeira. Uma carta interessante”, Boletim Policial, Ano IV, n. 2, jun. 1910, p. 55.

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243

Em segundo lugar, cada vez mais ofícios dentro do campo da criminalidade

profissional involucravam práticas de mobilidade territorial, facilitadas pela

revolução nos transportes. O surgimento do crime internacional e, dentro deste

campo, a figura do “ladrão viajante” era destacada como uma novidade mundial e

mundializada. Este “grande número de ladrões internacionais que não fixam

residência” e que “viajam sempre após os roubos sem que ninguém os detenha”,

estavam por todos os lados.7 Não apenas os yeggmen norte-americanos viajavam de

um país a outro. Apenas ao Rio de Janeiro – segundo escrevia Elysio de Carvalho –

tinham vindo apaches e cambrioleurs de Paris, hooligans e hobos da Inglaterra,

atracadores e guapos andaluzes, camorristas de Nápoles e mafiosi da Sicília,

spitzbuben da Alemanha, charami árabes, oyabuns do Japão, capucheros do Chile,

lunfardos da Argentina, além de “anarquistas, niilistas e revolucionários de todas as

raças e de todas as cores”.8

Talvez Carvalho exagerasse um pouco, mas o certo é que algumas destas castas

circulavam efetivamente pela América Latina. Mencionamos as viagens dos

yeggmen, por causa das aventuras sul-americanas de Butch Cassidy e a Wild Bunch.

Mais à frente veremos a presença de lunfardos do Rio da Prata em diferentes estados

do Brasil. Antes, detenhamo-nos um momento nas notícias sobre a suposta existência

de apaches parisienses em Buenos Aires e Rio de Janeiro.9 Quatro anos antes da

publicação do artigo onde Carvalho os mencionava, o jornal carioca Gazeta de

Notícias, em sua seção “bastidores da polícia”, se referia à presença de violentos

apaches, que aqui se relacionavam com a família dos “gravateiros”.10

7 Idem, p. 54-55. 8 CARVALHO, Elysio de. “A delinqüência dos estrangeiros”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, jun. 1913, p. 223. 9 Sobre a figura dos “apaches” na Paris da Belle Époque ver: KALIFA. Dominique. “Archéologie de l´apachisme : barbares et Peaux-Rouges au XIXe siècle”. In: Crime et culture au XIXe siècle. Paris: Perrin, 2005. p. 44-66. Carvalho se referia também aos apaches parisienses em: CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 51-54. 10 “Bastidores da polícia”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 6 mar. 1909; e “Os bastidores da polícia: gravateiros ou apaches”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 7 mar. 1909. Segundo o dicionário de gíria do próprio Carvalho, o “gravateiro” era o gatuno que passava “o braço no pescoço de um indivíduo de modo a tolher-lhe os movimentos, sufocando-o, enquanto outro ladrão lhe saqueia as algibeiras”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Vocabulário organizado para os alunos da Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 25.

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244

Em 1912, o jornalista Juan José de Soiza Reilly começou a difundir, na recém-

fundada revista Fray Mocho, notícias sobre apaches em pleno centro de Buenos

Aires:

– Você quer ver os apaches?, perguntou um ativo comissário de investigações.

– Apaches? Existem em Buenos Aires?

– Abundam. Pouco a pouco vão se multiplicando. Lentamente introduzem em nossa cidade seus bárbaros costumes. Alguns trazem consigo, da França, suas mulheres.11

Soiza Reilly narrava nesta crônica o percurso junto ao comissário pelos bares

em que tramavam seus roubos estes apaches, que eram seguidos de perto pela polícia

de investigações. Segundo o relato, escaparam da França porque a perseguição

policial havia se tornado intensa. Alguns – assegurava o cronista – saíam de Paris

chorando. Tempo atrás os haviam visto por Marrocos e Argélia. Agora estavam em

Buenos Aires. Ironicamente, Soiza Reilly celebrava o que parecia ser uma nova

conquista da europeizada modernidade portenha, que sempre se imaginava inspirada

na capital francesa: “não podemos nos queixar, posto que o apache é como uma flor

de Paris que não parece ser transplantável a estufas crioulas”.12

No mesmo ano, a revista Sherlock Holmes difundiu uma série de notícias sobre

outros roubos cometidos pelos apaches. Até este momento, lia-se em uma delas, “a

lenda tenebrosa do apachismo” era uma coisa de Paris e do “prestígio de sua novela

folhetinesca”. No entanto, um “sopro trágico de sangue” havia atravessado o

atlântico para chegar à capital argentina e romper essa asséptica distância marcada

pela realidade de papel.13 Neste caso, tratava-se de um assalto a uma agência de

loteria que a polícia portenha atribuía a um grupo de apaches armados com

11 SOIZA REILLY, Juan José de. “Buenos Aires tenebroso. Los apaches”, Fray Mocho, Año I, n. 3, Buenos Aires, 17 may. 1912, p. 20. 12 Idem, p. 22. 13 “El apachismo en acción”, Sherlock Holmes, Año II, n. 65, Buenos Aires, 24 sep. 1912, p. 34-35.

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245

revólveres e cassetetes. Dias depois outra, sobre um roubo em uma confeitaria

perpetrado por estes “exímios artistas recém-chegados da Europa”, fração integrante

de uma “inesgotável gatunagem pour l’exportation”, que aparentemente tinham um

volumoso prontuário de antecedentes na polícia parisiense.14

Ao final deste ano, Sherlock Holmes informava a seus leitores uma

tranquilizadora notícia: os apaches eram deportados a seus países pela lei de

expulsão de estrangeiros da Argentina.15 Na sua obra de “higienização moral da

metrópole”, a polícia portenha havia embarcado “um novo carregamento de

apaches”.16 Esta crônica estava ilustrada com seis fotografias em que se viam os

expulsos no porto, carregando seus pertences e escoltados por vigilantes. Na

caminhada, um deles escondia a cara com um sombreiro e outro secava as lágrimas

com um lenço. As fotografias restantes os mostravam abraçando suas maletas nas

lanchas que os conduziam até o transatlântico.17

Apesar de serem expulsos de Buenos Aires, os apaches deixaram certa fama no

Rio da Prata, ao tal ponto que em 1913 o bandoneonista Berstein compôs um tango

chamado “El apache porteño”. E não era nem o primeiro nem o único: “El rey de los

apaches”, de Alberto Bellomo, “El apache oriental” (1912) de Enrique Delfio, e

“Apache uruguayo” (1914) de Francisco Baldomir, formavam uma série na que se

destacou “El apache argentino”, de Manuel Aroztegui. Mas sua letra apagava a

história dos criminosos viajantes de origem francesa, aproximando o apache à figura

tangueira do compadrito, o protagonista de brigas com facas nos subúrbios

portenhos, personagem muito parecido ao malandro carioca.18

14 “Los apaches en acción. Un golpe audaz que se frustra”, Sherlock Holmes, Año II, n. 68, Buenos Aires, 15 oct. 1912, pp. 54-55. Neste mesmo número, a revista noticiava sobre ações dos apaches em Paris: “Los grandes crímenes de París. Apaches en la estación de Aubrais”, Sherlock Holmes, Año II, n. 68, Buenos Aires, 15 oct. 1912, p. 69. 15 “La deportación de tenebrosos. Complementos indispensables”, Sherlock Holmes, Año II, n.70, Buenos Aires, 29 oct. 1912, p. 63. 16 “Deportación de apaches”, Sherlock Holmes, Año II, n. 71, Buenos Aires, 5 nov. 1912, p. 32. 17 Idem, p. 32-33. 18 A letra começava enfatizando o caráter nacional desta figura e os traços que o aproximavam ao compadrito: “Es el apache argentino/el tipo fiel de una raza/que se echa’e ver por su traza/la astucia

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246

Manuel Aróztegui, “El apache argentino” (circa 1913)

Fonte: BNA, Coleção de Partituras, Inv. 179639.

Soiza Reilly havia observado que entre os apaches encontrados em Buenos

Aires havia “certa confraternidade maçônica”, se ajudavam, se protegiam e usavam

no exílio seu “calão parisiense, tão cheio de imagens e tão cheio de símbolos”.19

Neste sentido, coincidia com o olhar de Elysio de Carvalho sobre os ladrões viajantes

que chegavam ao Rio de Janeiro: “todos eles têm um stock especial de instrumentos,

processos, expressões, sentimentos e ideias”, e também “uma linguagem

de su valor”. Veja a partitura: ARÓZTEGUI, Manuel. El apache argentino. Buenos Aires: Juan S. Baleiro, s/d. Biblioteca Nacional, Colección de Partituras, Inv. 179639. 19 SOIZA REILLY, Juan José de. “Buenos Aires tenebroso. Los apaches”, Op. Cit., p. 22-23.

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247

convencional, secreta, que é arma de defesa da associação, que o fala ou a escreve, o

argot”.20

Os criminologistas, policiais e jornalistas escreveram abundantemente sobre

estes grupos de criminosos profissionais, viajantes e cosmopolitas. Nessa profusão

tiveram muito a ver as ansiedades das elites sobre as mudanças tecnológicas, as

transformações urbanas e a presença de estrangeiros nas grandes cidades.21 Sem

dúvida, as discussões nos congressos de criminologia, as conferências sul-americanas

de policiais e a imprensa sensacionalista refletiam estas inquietudes. Mas, sem

prescindir dessa dimensão, a história da criminalidade transnacional deve ser

rastreada mais além dos discursos das teorias criminológicas, crônicas jornalísticas e

romances policiais. É preciso explorar o terreno pantanoso das práticas delitivas.

A Maffia Criolla e os gatunos internacionais

Em 1926, o escritor e jornalista Roberto Arlt publicava seu primeiro romance,

El juguete rabioso. No início da história, um grupo de jovens formam um tipo de

sociedade delitiva, inspirados por leituras da saga rocambolesca de Ponson du

Terrail.22 O personagem Rocambole, como depois Fantômas e Arsène Lupin, era um

delinquente sagaz e elegante, o que mais tarde se chamaria um “gentleman

20 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Op. Cit., p. 152. 21 Ver DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 45-77; y KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave, 2010, p. 12-42. 22 A sociedade com fins criminosos criada nesta novela se chamava “El club de los caballeros de la media noche”. ARLT, Roberto. El juguete rabioso. Buenos Aires: Latina, 1926, p. 24-29. Sobre o tema do delito urbano na obra de Arlt, ver: SAÍTTA, Sylvia. “Traiciones desviadas, ensoñaciones imposibles: los usos del folletín en Roberto Arlt”, Iberoamericana, vol. 23, n. 2, 1999, p. 63-81. CANALA, Juan Pablo. “Las aspiraciones de Silvio Astier: fama, delito y lectura en El juguete rabioso de Roberto Arlt” (Mimeo). Parte das publicações de Roberto Arlt sobre o crime foram coletadas em: ARLT, Roberto. Escuela de delincuencia. Aguafuertes (selección y prólogo de Sylvia Saítta). Montevideo: Ed. de la Banda Oriental, 2000.

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cambrioleur”, um ladrão de luvas brancas. O criminoso viajante e aristocrático foi

um grande assunto policial nas primeiras décadas do século XX, que ainda

transcendeu as fronteiras da polícia para fazer lugar no jornalismo gráfico, na

literatura, na música popular e nos cinematógrafos. A novela de Arlt, mas

fundamentalmente algumas de seus “Aguafuertes” na imprensa, davam conta deste

fenômeno. No mesmo ano de 1926, na revista Don Goyo, aparecia este diálogo entre

ladrões portenhos que discutiam as bases para a criação de outra sociedade

criminosa:

CÚMPLICE: Digam o que quiserem, eu estou contente. Com o progresso de Buenos Aires, minhas propriedades se valorizarão.

LADRÃO CÉTICO: Eu não vejo o progresso.

ENCOBRIDOR: Eu sim o vejo. Nossa cidade está se colocando à altura das capitais europeias.

LADRÃO SUTIL: Verdade. O progresso das cidades se põe de manifesto por sua opulência, e sua opulência se comprova pelo número de atentados que cometem contra ela.

ENCOBRIDOR: Por isso eu dizia que Buenos Aires chegará a ser a primeira cidade do mundo.

LADRÃO CÍNICO: Sua polícia já é a primeira do mundo.

LADRÃO ANATOLFRANCESCO: Cada estado diz que sua polícia é a primeira do mundo. Um estado cuja polícia não é a primeira do mundo, correria o risco de ser invadido por ladrões de todas as repúblicas, cuja polícia é a primeira.

ENCOBRIDOR: Deus não permita que nossa polícia deixe de ser a primeira do mundo. Se tal desgraça ocorrer, se produziria uma tal invasão que, com a competição, morreríamos de fome.23

Este diálogo condensava noções centrais para a construção da figura do

criminoso internacional. Os fios que entrelaçavam o progresso urbano com a

opulência e a ostentação, e a tudo isso com a profusão de delitos, marcavam a

presença de uma primeira hipótese. A outra unia a tecnificação policial e a trama da

23 ARLT, Roberto. “Nuestra policía, la mejor del mundo”, Don Goyo, n. 55, Buenos Aires, 19 oct. 1926, p. 10.

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249

migração de criminosos viajantes. O comentário irônico sobre o alarde de ser “a

primeira polícia do mundo” aludia a um discurso repetido uma e outra vez: a imagem

que uma polícia dava ante o olhar do estrangeiro – imagem conformada, entre outras

coisas, por seus recursos tecnológicos e suas capacidades repressivas – parecia

incidir diretamente nas decisões dos ladrões viajantes, na hora de escolher um novo

destino.

Por sua parte, a ligação entre o progresso urbano e crime, era um dos temas

preferidos do escritor Elysio de Carvalho, na época em que dirigia o Gabinete de

Identificação e editava a revista Boletim Policial: “a nossa cidade vai adquirindo os

principais aspectos das grandes metrópoles, cuja vida social se caracteriza pela sua

criminalidade astuta, fraudulenta”.24 Sua Historia natural dos malfeitores, publicada

em série nessa revista, propunha uma hipótese sobre a evolução da delinquência, que

ia de mão com uma teoria da civilização. Segundo esta leitura, a sociedade moderna

e urbana não trazia consigo uma supressão, nem sequer uma diminuição da barbárie

criminal. Na realidade, o desenvolvimento efetivo da modernidade social em

distintas partes do mundo, vinha a demonstrar que a cada momento correspondia

configurações específicas das práticas delitivas. Assim, a lei desta história evolutiva

indicava que “a criminalidade natural vai substituindo as formas primitivamente

rudes, musculares, impulsivas da violência, pelas formas modernamente intelectuais,

requintadas, civilizadas de astucia”.25

Para Carvalho, Rio de Janeiro não estava ainda à par das cidades mais

civilizadas da Europa. A criminalidade violenta, expressa nas altas taxas de

homicídios, ainda prevalecia sobre a “delinquência civilizada, intelectual,

fraudulenta”.26 No entanto, o predomínio das habilidades “espirituais” sobre o uso da

24 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 60. 25 CARVALHO, Elysio de. “A physionomia da criminalidade carioca”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 5, mai. 1913, p. 107. 26 Idem, p. 109-111. Embora Carvalho não fosse muito propenso a explicitar suas fontes, esta teoria havia sido formulada antes pelos criminologistas italianos da escola lombrosiana, em particular Alfredo Niceforo. Além disso, a ideia havia sido bem recebida pelos criminologistas argentinos. Veja, por exemplo: GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. (Prólogo del Doctor José Ingenieros). Buenos Aires: Juan Roldán, 1908, p. 41-44.

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250

violência física não era a única característica do protótipo de criminoso moderno e

civilizado. A profissionalização e a consolidação de especialidades na arte de roubar,

o emprego de inovações tecnológicas e a mobilidade territorial, eram outros aspectos

em que a delinquência brasileira estava mostrando notáveis avanços. Mas o traço

mais sobressaliente, o que revestia o crime de maior modernidade, era a organização

coletiva, a formação de sociedades com fins criminosos; aquelas sociedades que Arlt,

a meados da década de 1920, levava ao terreno da literatura.

Alguns anos antes, um dos redatores do semanário portenho Sherlock Holmes,

o delegado Villamayor, publicou duas notas consecutivas sob o sugestivo título “la

Maffia Criolla”. Segundo o relato, tratava-se de uma sociedade delitiva constituída

ao final de 1909 e originada em um acordo de proteção mútua entre uma dezena de

ladrões, cujos nomes e retratos apareciam nas páginas da revista. 27

“La Mafia Criolla”

Fonte: Sherlock Holmes, año III, n. 80, 9 ene. 1923, p. 32.

27 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Sherlock Holmes, Año III, n. 80, Buenos Aires, 9 ene. 1913, p. 32. Um dado que chama a atenção em ambos os números da revista é que Villamayor em nenhum momento menciona o nome dos integrantes da sociedade, limitando-se a chamá-los por seus pseudônimos e letras iniciais. No entanto, ao pé dos retratos aparecem os nomes completos junto aos apelidos, o que parece indicar que os editores, e não o autor, tomaram a decisão de incluir as fotografias e os nomes.

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251

As primeiras reuniões se realizaram em um café-bilhar do centro de Buenos

Aires onde costumava se reunir a gatunagem. O dono do local era conhecido como

Don Drope, o “pai da muchachada maleante”, que acolhia os ladrões quando recém

saíam da prisão, dando a eles casa e comida, sabendo que mais tarde receberia em

troca dinheiro e objetos roubados.28 Depois de comer um guisado de galinha,

discutiram acaloradamente a proposta da sociedade, que ficou conformada por um

presidente (el Zurdo P), um vice-presidente (Pibe Oscar), um secretário (Pibe

Curdela), um encarregado da correspondência e um tesoureiro. Os outros ladrões

presentes ficaram como simples membros e “sócios honorários”. Muitos deles eram

nomeados com frequência por jornalistas e policiais argentinos: Mandaleón, o Loco

Camilo, Madama, Franginche, o Tano Roque, a Tota, o Tartamudo ou Colita, o Pibe

Caraelá ou Miguelito.29

A polícia portenha os seguia de perto há vários anos e, efetivamente,

Villamayor afirmava que a decisão de se associar foi uma reação ante o

endurecimento das perseguições policiais e as detenções reiteradas no começo do

século XX. A presença de alguns de seus integrantes nas galerias fotográficas de

ladrões confirmava que, ao menos, a polícia os tinha registrados em seus arquivos de

prontuários. Um dos sócios fundadores mencionados por Villamayor era Feliciano

Mauriño, vulgo El Pardo de las Caméndulas, cuja ficha aparecia na Galería de

Ladrones Conocidos de 1904, embora houvesse sido retratado pela polícia muito

antes, em 1889.

28 Idem, p. 32. 29 Segundo o autor, no momento de escrever a nota, quatro anos depois da constituição da sociedade, a maior parte dos fundadores estava fora da Argentina porque os haviam aplicado a lei de expulsão de estrangeiros. VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 33.

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252

Feliciano Mauriño, retratado em junho de 1889.

Fonte: Galería de Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 202.

Outro membro da sociedade era Ricardo Augusto Schenone, ou José Martínez,

ou José Álvarez, vulgo Rusito de Palermo. No caso, o retrato aparecia mais tarde, em

1923, na seção “Galeria de L. C.” da revista Magazine Policial, onde o definiam

como um “scruchante” ou “madruguista”, o que significava, segundo o vocabulário

de gíria criminal publicado pelo próprio Villamayor em 1915, um “profissional do

delito que opera no interior das casas depois de meia-noite”.30

30 VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico La Bonaerense, 1915, p. 95.

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253

Retrato do “Rusito de Palermo” (à direita)

Fonte: Magazine Policial, año II, n. 9, Buenos Aires, abr. 1923, p. 24.

Nos anos seguintes à constituição da sociedade, seus membros buscaram

estendê-la incorporando outros ladrões à rede. De acordo com a crônica de

Villamayor, os “principais centros de propaganda” foram lugares de detenção: a

Penitenciária Nacional, o Depósito de Contraventores, as cadeias de La Plata e

Rosário, e até o presídio de Ushuaia. Mesmo assim, esta ramificação não se limitou

aos confins da República Argentina. Alguns de seus sócios, ao que parece, foram

expulsos pela Lei de Defesa Social e seus colegas aproveitaram o contratempo para

lhes encarregar a missão de conseguir afiliados em outros países. Deste modo, “a

notícia se propagou rapidamente entre todos os malfeitores, não apenas de Buenos

Aires, mas também de Rosário, Santa Fé, Montevidéu, Brasil, La Plata e demais

povoações onde habitava o mau elemento”.31 Na capital do Uruguai, no Rio de

Janeiro, em Pernambuco e também em algumas cidades do Chile, segundo agregava

o autor, conseguiram reunir dezenas de ladrões profissionais “de primeira linha”.

31 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 32.

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254

Frente a este exitoso recrutamento, cabe se perguntar que exigências

implicavam ser parte desta sociedade e, fundamentalmente, que vantagens oferecia.

Estas dúvidas podem ser respondidas com a segunda nota, já que oferece um dado

curioso e essencial para entender as intenções da chamada “Maffia Criolla”.32 A

sociedade tinha um regulamento com cinquenta e oito artigos, um estatuto por escrito

que o autor considerava “uma jóia nos anais de história da gatunagem argentina”.

Villamayor havia consultado o que parecia ser o único exemplar, manuscrito, em

mãos de um “gatuno velho, retirado da vida, que não abre mão dele nem por mil

pesos, e nem permite que se tire uma cópia”.33 De uma leitura rápida, Villamayor

havia tomado nota de seus princípios.

Fazer parte da sociedade garantia, antes de tudo, proteção em diferentes

circunstâncias. Na prisão, por exemplo, os companheiros deviam ajudar com a

“pilcha” (roupa) e o “marroco” (comida). Tinha de evitar que qualquer sócio que

estivesse atravessando uma situação difícil, por enfermidade ou outras causas, se

sentisse seduzido a se converter em um “apontador” ou “batedor”, ou seja, em um

delator ante as autoridades públicas.34 Por isso, o estatuto obrigava à sociedade a

utilizar seu capital comum para passar uma mensalidade ao sócio que não pudesse

“ trabalhar” (roubar). Do mesmo modo, esses fundos estavam destinados a pagar

fiança dos que estivessem detidos na polícia e não tivessem dinheiro.35

Da mesma forma que um club da alta sociedade, ou de uma coletividade de

imigrantes, cada sócio devia abonar uma cota de entrada e uma cota mensal. O

dinheiro se depositaria em um Banco e o encarregado de efetuar as transações seria

nomeado entre algum dos “reduzidores” (compradores de objetos roubados) de

confiança. A Maffia Criolla não pretendia socializar o produto do “chorreo” (roubo),

inclusive cuidava em dedicar um artigo do estatuto para aclarar que seguia sendo um

32 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Sherlock Holmes, Año III, n. 81, Buenos Aires, 16 ene. 1913, p. 9-11. 33 Idem, p. 9. 34 Seguindo novamente o dicionário de Villamayor, apuntador era o “ladrão que já não exerce sua profissão e serve de auxílio à polícia, para o qual indica quando um ex-companheiro perambula por algum lugar”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 34. 35 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9.

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255

ganho estritamente individual. Mas os membros deviam cumprir com seriedade o

pagamento das cotas:

Os sócios devem compreender e ter sempre presente que se não são pontuais em seus “pagamentos”, podem chegar um dia que cairão em “cana” [prisão], e a sociedade, por causa disto, não os poderá ajudar eficazmente e menos ainda proteger aos membros de sua família. Assim, então, a palavra de ordem que deve reinar na “Maffia Criolla”, a este respeito será: “formar” com as cotas antes de tudo; depois gastar a “meneguina” [dinheiro] na forma que se creia mais conveniente.36

Além de aportar dinheiro à arca, seus integrantes tinham outras obrigações.

Uma primeira regra proibia terminantemente as brigas entre os sócios e, além disso, a

violência contra as vítimas dos roubos, salvo em circunstâncias excepcionais onde

resulta imperioso para escapar ou salvar a própria vida. Quando essa violência era

inevitável, o ladrão deveria usá-la na dose mínima necessária para “abatatar” a

vítima e “abrirse cancha”, ou seja, assustá-la para poder fugir.37

Em linha com a hipótese de Elysio de Carvalho sobre as características da

criminalidade moderna e civilizada, a sociedade delitiva tentava reduzir a violência

física a sua mínima expressão. O estatuto tratava inclusive de regular o uso das

punhaladas (ao companheiro que ousasse surrupiar o rendimento do roubo, por

exemplo, era preferível “meter uma ou várias facadas na mão direita”, sem o ferir de

morte). “Roubar, furtar, estafar e falsificar sempre que se possa”, sem assassinar

ninguém, era para o estatuto “o horizonte de todo sócio da Maffia Criolla”.38

O regulamento era muito rigoroso também no pedido de manter os segredos da

sociedade. Qualquer membro que difundisse informação seria automaticamente

expulso e sorteariam um dos sócios para meter nele o “feite” no “escracho” (na gíria,

36 Idem, p. 10. 37 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla”, Op. Cit., p. 32. 38 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9.

Page 267: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

256

fazer um corte com uma navalha no rosto).39 Se um sócio decidisse sair para

trabalhar por sua conta em atividades lícitas, simplesmente deveria deixar de

cumprimentar e simular desconhecer os membros em caso de encontrá-los em

qualquer situação. Todos os empregos estavam admitidos menos um: o sócio que

saía tinha proibido o ingresso na polícia ou, caso contrário, lhe “declaravam a

guerra”. No entanto, podiam se converter em empregados do serviço penitenciário,

sempre que com dissímulo se dedicassem a proteger os sócios que caíssem presos.40

Mais além do estatuto manuscrito, Villamayor tinha informantes na Delegacia

de Investigações, que levava adiante uma pesquisa sobre esta associação. Segundo

dados recolhidos pelos policiais, a três meses de sua constituição, a Maffia Criolla

contava com setecentos e cinquenta e cinco membros apenas em Buenos Aires. Em

outras cidades argentinas (La Plata, Rosário e Santa Fé) e em algumas capitais da

América do Sul, começaram a se formar “pequenas sucursais”, armadas por sócios

que buscavam novas oportunidades de roubo, que fugiam de Buenos Aires porque a

justiça os perseguia ou eram deportados pelas leis de expulsão de estrangeiros. Logo,

no marco dos preparativos para os festejos do primeiro Centenário da República

Argentina, a Polícia da Capital começou a utilizar suas “razzias” para pôr em prática

uma estratégia de detenções massivas e desarmar a sociedade.41

Presos os chefões, a Maffia Criolla começou a declinar até desaparecer por

completo. A segunda nota atribuía este final ao bom trabalho da Delegacia de

Investigações e os editores de Sherlock Holmes incluíram os retratos de dois

responsáveis da pesquisa. Porém, Villamayor sugeria outra explicação

complementar, que punha na voz de um informante com quem havia conversado em

Montevidéu: “Veja senhor: aqui nas repúblicas sul-americanas, nenhuma associação

desta índole pode prosperar, pois o elemento crioulo é inconstante, revoltoso, brigão

entre si e inimigo de se associar”.42

39 VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 69 y p. 80. 40 VILLAMAYOR, Luis C. “La Mafia Criolla II”, Op. Cit., p. 9. 41 Idem, p. 10. 42 Idem, p. 11.

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257

É verdade que algumas formas arraigadas de roubar nos países sul-americanos

continuavam sendo – como também sucedia na Europa e América do Norte –

práticas delitivas solitárias e individualistas. Mas ao contrário da opinião do

informante uruguaio, a inícios do século XX era muito clara a tendência à

conformação de grupos e quadrilhas de ladrões. Este fenômeno tinha seu correlato

linguístico na aparição de noções como “máfia” e mais tarde “hampa”, que aludiam

às sociedades organizadas em torno de um código de honra, com regras explícitas de

conduta e o uso de um argot específico.43

Não se tratava simplesmente de reconhecer que alguns ladrões roubavam

acompanhados por auxiliares, como haviam mostrado na Argentina, a final do século

XIX, os cronistas do “mundo lunfardo” Benigno Lugones e Fray Mocho.44 O

fenômeno tampouco se limitava aos “ladrões de rua” e “gravateiros”, cujas façanhas

no Brasil narraram Vicente Reis e Mello Moraes Filho, nos primeiríssimos anos do

novecentos.45 Eram os primeiros passos do crime organizado, cujos traços elementais

já se adivinhavam na complexa trama transnacional das redes de falsificadores de

bilhetes, as associações dedicadas à diversos estelionatos e defraudações, as

quadrilhas de assaltantes de bancos e sequestradores.46

Uma das características mais sobressalentes destas organizações era seu caráter

internacional, seja porque seus membros eram de diversas nacionalidades ou porque

43 Um estudo clássico sobre o surgimento do crime organizado e o desenvolvimento do hampa urbana no século XX, aborda estas características: MCINTOSH, Mary. La organización del crimen. México: Siglo XXI, 1977, p. 24-32. Os usos da noção de “hampa” pode-se ver em: MEJÍAS, Laurentino. “Coloquio hampesco”, Magazine Policial, Año 4, n. 43, Buenos Aires, Abril de 1926, p. 11-12. BARRÉS, M. El hampa y sus secretos. Buenos Aires: Imprenta López, 1934. 44 LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2012, p. 99-112. ALVAREZ, Jose S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires, Vaccaro, 1920. 45 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op- Cit., p. 72-86. MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904, p. 31-45. 46 Sobre as bandas de pistoleiros, assaltos a bancos e sequestros na Argentina durante os anos de 1920 e 1930, ver: CAIMARI, Lila. “Suceso de cinematográficos aspectos: secuestro y espectáculo en la Buenos de los años treinta”. In: CAIMARI, Lila (comp.). La ley de los profanos. Delito, justicia y cultura en Buenos Aires (1870-1940). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 209-250. E também: CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 145-188.

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258

o território de ação delitiva envolvia vários países. No Rio de Janeiro e Buenos

Aires, haviam se internacionalizado até os grêmios de punguistas. Palavra que

segundo Elysio de Carvalho passou do lunfardo argentino à gíria dos ladrões

cariocas, nomeando aos especialistas no “furto de carteira de bolso, relógio de

algibeira, alfinete de gravata, etc., cometido nas ruas, nos lugares onde há muita

gente, nos bonds, com apropriada habilidade, sem que a vítima pressinta, valendo-se

da especial agilidade manual, especificada nos dedos polegar e indicador da mão

direita”.47

É verdade que a punga era, dentro da arte de roubar, uma especialidade que

requeria destrezas eminentemente manuais, e nesse sentido, segundo a teoria de

Carvalho, remetia à criminalidade muscular, rudimentar, primitiva. No entanto,

desde finais do século XIX, havia adquirido uma forma mais “moderna” e

“civilizada”: o pick-pocket profissional. Já o havia notado João Brasil Silvado

durante sua visita a Paris, em 1895: nas principais capitais europeias, os gatunos de

rua haviam se transformado em verdadeiros “ladrões internacionais, inteligentes,

muitas vezes instruídos, viajando muito, falando diversas línguas”.48

E uma nota da revista policial portenha, traduzida da Revue Belge de Police,

insistia nesta mesma ideia. Se a princípios do século XIX esses criminosos “eram uns

pobres ladrões que não sobressaíam no seu gênero, não inventavam nada, eram

pouco numerosos e se contentavam com um apoucado furto”, agora haviam se

convertido em uma rede coordenada e prolixa. Em uma tarde, os pick-pockets

passavam pelo centro das metrópoles europeias como nuvens de gafanhotos por um

campo semeado, arrasando tudo: bolsas, carteiras, porta-moedas, relógios, colares,

braceletes e anéis. Em Londres o “pickpocketismo” havia se convertido em “um

ofício como o de pedreiro ou serralheiro: existem professores que ensinam seus

47 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 38. 48 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres: relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, sendo ministro o ilustrado cidadão Dr. Gonçalves Ferreira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p. 106.

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259

discípulos ladrões a maneira de roubar, lições de educação e bom tom”. O pick-

pocket era visto, assim, como um punguista profissionalizado.49

Ao final da década de 1920, a Revista Criminal, empregando seus

estreitíssimos contatos com a polícia carioca, costumava publicar em cada número

quadros com retratos fotográficos de estrangeiros expulsos, sob os títulos “saneando

o país” e “expurgando a cidade”. Em um número de 1928 apareceu um quadro com

os rostos de oito punguistas: Francisco Martins Bermudes, Sebastião Gomes e Carlos

Pozo eram sinalados como chilenos e “criminosos internacionais”; José Vicenti

Orlandi ou Julio Soares e Henrique Martins eram argentinos, também ladrões

internacionais, “com detenções nos países da América e nos Estados” do Brasil;

nesse mesmo território operavam também Pedro Chiara, italiano, e Armando Dias,

português; e André Cundaré González, espanhol, tinha um prontuário com prisões na

Espanha, Portugal, Argentina, Chile e Uruguai.50

“Ladrões batedores de carteiras”

Fonte: Revista Criminal, ano II, n. 18, Rio de Janeiro, jul. 1928, p. 73.

49 “Los pickpockets y el pickpocketismo en Francia e Inglaterra”, Revista de Policía, Año V, n. 108, Buenos Aires, 16 nov. 1901, p. 186. Ver também: “La policía detuvo a una banda de ladrones que operaba en el subterráneo”, Gaceta Policial, Año 3, n. 42, Buenos Aires, 30 jun. 1928, p. 17-18. 50 “Ladrões batedores de carteiras”, Revista Criminal, ano II, n. 18, Julho 1928, p. 73.

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260

Este quadro representava bastante bem o universo dos punguistas expulsos do

Rio de Janeiro durante as três primeiras décadas do século XX. Para começar, a

elegância na vestimenta estava longe dos andrajosos “ladrões de galinhas” e perto

dos “batedores de carteiras” que descrevia Vicente Reis em 1903.51 O mesmo se

adverte nos retratos fotográficos de punguistas nos processos de expulsão de

estrangeiros. Dos sessenta casos de ladrões selecionados no arquivo, mais da metade

eram marcados como punguistas integrantes de uma “quadrilha internacional”. Tanto

os países de origem como o território de ação desses casos coincidiam bastante com

o quadro da Revista Criminal. Excetuando aos europeus que ficaram fora da mostra

(em sua grande maioria portugueses e espanhóis, embora também houvesse alguns

italianos), dos trinta e dois punguistas sul-americanos, vinte e dois provinham da

Argentina, cinco do Uruguai, quatro do Chile e apenas um do Peru. É hora de ver

alguns destes casos com detalhes.

Histórias de punguistas viajantes

A figura do punguista profissional era uma das mais antigas entre os ladrões

internacionais. Embora a viagem não era parte do modus operandi, se convertia com

frequência em uma sequela inevitável de suas ações. O segredo da punga era passar

despercebido, atuar sigilosamente, mimetizar-se com a paisagem urbana. Mas como

o punguista trabalha na rua, nos trens, nos bancos, seu rosto estava exposto

constantemente ao olhar alheio. Qualquer descuido resultava fatal. A primeira

detenção policial prognosticava futuras perseguições, muitas prisões arbitrárias por

estar em companhia de delinquentes, e novos períodos “em cana” que não faziam

mais que acrescentar sua fama de ladrão. A necessidade de fugir e levar o ofício à

51 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 69-89.

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261

outra cidade era uma solução repetida em cada prontuário criminal, nas galerias

fotográficas de ladrões conhecidos e nos processos de expulsão de estrangeiros.

Manuel Rossi, por exemplo, havia sido detido por roubo em 11 de maio de

1873. Tinha vinte e um anos e era sua primeira prisão. Catorze anos mais tarde,

acumulava cento e quarenta e oito entradas na polícia. O chamavam “el Ruso”,

embora fosse italiano e falasse espanhol com grande facilidade. Em 1887 já era um

dos delinquentes mais conhecidos de Buenos Aires e seu retrato ocupava um lugar na

Galeria de Ladrões da Capital, editada pelo escritor José S. Álvarez (Fray Mocho).

Essa fama o obrigou migrar ao Brasil e ao Uruguai.52 O mesmo caminho haviam

seguido Carmelo Laguna, vulgo Linterna, e Adolfo Lucas Antinori, vulgo Mosquito,

dois ladrões argentinos que empreenderam juntos viagens pelo Brasil. A descrição

que Fray Mocho fazia de Antinori dava conta destes caminhos:

É ladrão desde jovem e indivíduo que com uma grande dose de audácia uniu outra igual de habilidade. Comete roubos e estelionatos por meios que as circunstâncias requerem. Forma quadrilhas de não mais de três indivíduos, e não se arrisca em grandes empresas. Rouba nos hotéis onde se aloja e aos passageiros dos trens a vapores em que viaja, e na camuflagem é notável. Com frequência visita o Brasil acompanhado de Linterna (Número 98). Leva a vida ordenada, mas é um grande bebedor e jogador. Veste-se com certa elegância e afeta maneiras um tanto cultas. Conhece todas as repúblicas, do Brasil e do Estado Oriental.53

Por este fluido movimento de ladrões entre o Rio da Prata e Brasil, e pelo

aumento dos intercâmbios entre as polícias, não chama atenção encontrar os mesmos

nomes e as mesmas caras em publicações policiais dos diversos países. Esse era o

caso de Agustín Almada ou Melgarejo ou Ciciaco ou Tocas, segundo o Magazine

Policial de Buenos Aires; Alberto Mujica ou André Melgarejo ou Agostinho

52 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 31-33. 53 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 2. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 174.

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262

Melgarejo ou Cyriaco Souza ou Pedro Zomoza ou Bautista Troncoso, segundo a

Revista Policial do Rio de Janeiro, que o definia como “um ladrão conhecido,

escorraçado das Repúblicas do Prata e de diversos Estados do Brasil”.54 Muitos

nomes, duas revistas separadas por sete anos, mas um mesmo retrato fotográfico:

Retrato fotográfico de Almada ou Melgarejo ou Mujica

Fonte: Magazine Policial, año IV, n. 45, Buenos Aires, jun. 1926, p. 10. (à esquerda)

Fonte: Revista Policial, ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 11. (à direita)

Mudar de nome e de cidade, às vezes de país, era uma estratégia muito

frequente entre os ladrões sul-americanos, ao menos desde a segunda metade do

século XIX. No entanto, nas primeiras décadas do século XX estas práticas não

pareciam ter a mesma eficácia. As inovações no campo da identificação de pessoas e

as lembranças policiais que, a partir de 1905, facilitaram o terreno para o intercambio

de fichas datiloscópicas, conseguiram reduzir muito as distâncias. Os processos de

expulsão aplicados no Brasil ao combate dos “gatunos internacionais” mostravam

claramente que os longos trajetos percorridos por trem e em navios de alto-mar já

não garantiam por si só a chance de iniciar uma nova vida criminal, deixando a folha

de antecedentes penais em branco.

54 “Ladrões conhecidos”, Revista Policial, ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 11.

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263

O caso de Zapaterito mostra claramente esta novidade. Na capa do processo se

lê: “Expulsão do estrangeiro Agustín Ferreira Baudraco. Gatuno conhecido”.55 A

polícia do Rio de Janeiro iniciava este pedido de expulsão em agosto de 1911, logo

após submetê-lo a um interrogatório na Sala de Audiências da Segunda Delegacia

Auxiliar. O Auto de Qualificação dizia o seguinte:

Qual é seu nome?

Agustín Ferreyra Baudracco.

De quem é filho?

De Flavio Baudracco e de Isabel Ferreyra.

De onde é natural?

De Buenos Aires, República Argentina.

Sua idade?

Trinta e dois anos.

Seu estado?

Solteiro.

Sua profissão?

Mecânico.

Sabe ler e escrever?

Sabe.

Onde reside ou mora?

Rua do Riachuelo, duzentos e trinta e seis.

Há quanto tempo reside no Brasil?

Desde o dia dois de janeiro do corrente ano, tendo desembarcado em Santos, Estado de São Paulo. E nada mais disse.56

55 AN, IJJ7 129. Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). 56 AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Segunda Delegacia Auxiliar. Auto de Qualificação. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911.

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264

A atuação continuava com as declarações das “testemunhas” que, tal como

ditava o ritual burocrático das expulsões, eram extraídas da própria instituição

policial e se limitavam a confirmar os dados incriminatórios.57 A primeira das

testemunhas era o Agente de Segurança Pública Olympio José dos Santos, que

contava como havia conhecido a Zapaterito. Durante os festejos de Carnaval desse

ano, o havia descoberto em flagrante delito quando acabava de furtar a carteira de um

cavalheiro com “um conto e cento e vinte mil réis”. Por esse feito foi preso e

absolvido, mas – agregava a testemunha – “continuou a sua vida de gatunice”.58 A

segunda testemunha confirmava estes dados e acrescentava que Zapaterito integrava

um grupo de punguistas, “indivíduos de má nota, com os quais convive, vivendo do

produto de pequenos furtos”.59 A terceira testemunha repetia o mesmo e não somava

nada.

O Gabinete de Identificação, através de seu diretor Elysio de Carvalho, provia

o prontuário e a ficha “individual datiloscópica”, assinada pelo acusado, com uma

caligrafia prolixa que confirmava sua alfabetização. A folha de antecedentes tinha

apenas uma entrada completa: o sucesso do Carnaval, datado em 2 de março de

1911. Aí se especificava que havia sido absolvido pelo Juiz da Quarta Vara Criminal

e que saiu da Casa de Detenção em 31 de maio do mesmo ano.60 Evidentemente, este

único delito era insuficiente para acusar a Zapaterito de “elemento pernicioso à

57 O caráter inventado das declarações testemunhais foi questionado pelos juristas contemporâneos que consideravam as expulsões como processos “inquisitoriais” ou “simulacros” de justiça. Ver: MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996, p. 221-236. SCHETTINI, Cristiana. “Los elementos inadaptados: ley e identidades en las expulsiones de extranjeros en Argentina y en Brasil, a comienzos del siglo XX”, Fuera de la ley. Jornadas de discusión sobre delito, policía y justicia en perspectiva histórica (siglos XIX y XX), Universidad de San Andrés, Buenos Aires, 17-19 jun. 2010. Sobre as discussões jurídicas dos processos de expulsão, ver: BONFÁ, Rogério Luis G. “Com lei ou sem lei”. As expulsões de estrangeiros e o conflito entre o Executivo e o Judiciário na Primeira República. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2008. 58 AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Segunda Delegacia Auxiliar. Auto de Declarações que faz Olympio José dos Santos. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911. 59 Idem. Auto de Declarações que faz Antonio Marinho de Aguiar. Rio de Janeiro, 16 ago. 1911. 60 Idem. Gabinete de Identificação e Estatística, Rio de Janeiro, 19 ago. 1911.

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265

sociedade e comprometedor da tranquilidade pública”, segundo a fórmula empregada

nos decretos de expulsão firmados pelo Ministro de Justiça.61

Não era então aquela detenção durante o Carnaval, mas as informações

enviadas desde Argentina, o que justificava o processo contra esse punguista. A

poucos dias da primeira apreensão, o diretor do Gabinete de Identificação recebia

uma carta da Divisão de Investigações da polícia portenha. O texto explicava que

tratava-se da resposta a uma comunicação prévia, na que o Gabinete do Rio de

Janeiro havia anexado uma cópia da ficha datiloscópica. Zapaterito figurava “no

prontuário numero 96 da Seção R. y H [Robos y Hurtos]” e usava também os nomes

de Delmiro Arena ou Delmiro Creusa.62

Nos arquivos de Buenos Aires seus antecedentes eram muito mais extensos. O

primeiro roubo estava datado em agosto de 1897 e o valeu três meses de prisão.

Possuía várias detenções por furto até que em 1905 o Juiz Madero o condenou a três

anos de prisão. Pouco depois de cumprir a pena, em 1908, já aparecia outra detenção,

novamente por furto. Ao ano seguinte, outra pelo mesmo motivo, mas no Uruguai.

Em 1910 voltam a aparecer detenções em Buenos Aires e o Juiz Argerich o condena

a outros dez meses de encarceramento.63 Tudo indica que Zapaterito decidiu

abandonar o Rio da Prata, sem saber que pelo mesmo meio de transporte que o levou

ao porto de Santos viajaria tempos depois seu próprio prontuário.

O intercambio de dados entre os policiais argentinos e brasileiros foi decisivo

em numerosas expulsões de ladrões viajantes, durante as décadas de 1910 e 1920. O

prontuário de Angelo Funes permite traçar um mapa de suas migrações delitivas

desde 1907 até 1929. Neste período obteve mais de vinte detenções, registradas na

Folha de Antecedentes elaborada pelo Gabinete de Investigações da Polícia de São

61 AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). Decreto de Expulsão, Rio de Janeiro, 30 ago. 1911. 62 AN, IJJ7 129. Expulsão de Agustín Ferreira Baudraco (1911). República Argentina, Policía de la Capital Federal, División de Investigaciones, Buenos Aires, 14 mar. 1911. 63 Idem.

Page 277: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

266

Paulo, a que elevou seu pedido de expulsão.64 As primeiras eram resultado de dados

enviados pela polícia da cidade de Buenos Aires, onde havia sido aprisionado por

furtos e fraude entre 1907 e 1909. No entanto, neste caso a polícia portenha não era a

única que aportou informações.

A troca de fichas de identificação com a Espanha agregava outro ponto ao

mapa: de acordo com os dados da polícia de Madrid, em 1912 esteve preso nessa

cidade com o nome de Francisco Lago Marsi. A seguinte notícia mostrava que havia

regressado à Argentina, mas desta vez à cidade de Rosário, onde a polícia o incluiu

em seus arquivos com duas detenções por roubo em 1915. Nesse mesmo ano havia

sido aprisionado em outras duas ocasiões no Rio de Janeiro e, se prestar atenção aos

meses anotados na planilha, fica claro que chegava a passar as fronteiras de

Argentina e Brasil várias vezes ao ano.65 A partir de 1915, a Folha de Antecedentes

não oferece novas informações sobre sua passagem pela Argentina. Mas entre 1919 e

1929 as entradas às prisões policiais continuavam sendo frequentes, a maior parte em

distintas cidades do Estado de São Paulo, outras em Curitiba e em Belo Horizonte,

em todos os casos como “batedor de carteiras”.

64 AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de São Paulo, Gabinete de Investigações, Serviço de Identificação, Boletim Positivo n. 39.609, 19 jun. 1929. 65 Idem. Dos quatro feitos registrados em 1915, o primeiro foi uma detenção em Rosário no mês de março como “Angel Funez”, o segundo foi em junho e no Rio de Janeiro, sob o nome de “Frederico Amaro”, o terceiro foi em novembro, novamente no Rio de Janeiro, mas anotado como “Angelo Funes”, enquanto que poucos dias depois, em 4 de dezembro, volta a ser preso em Rosário.

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267

Ficha de identificação de Angelo Funes

Fonte: AN, Fundo IJJ7 139 (1922)

Em 1922 foi submetido pela primeira vez a um processo de expulsão. Nesse

momento dizia ter residência fixa na cidade de Ribeirão Preto e assegurava trabalhar

ali como chauffeur, apesar de na ficha de identificação estar anotado como

“negociante ambulante”.66 Declarou ainda ser argentino, nascido em Buenos Aires, e

embora sua expulsão fora firmada pelo Ministério de Justiça, não é aclarado se nesse

momento embarcou até o Rio da Prata.67 No expediente tampouco aparece algum

recursos de habeas corpus, que eventualmente pudesse haver impedido a expulsão. O

certo é que tudo parece indicar que não regressou à Argentina, já que em apenas seis

dias depois de ser formalmente expulso, era preso pela polícia de Belo Horizonte.68

66 AN, IJJ7 139. Expulsão de Angelo Funes (1922). Secretaria da Justiça e da Segurança Pública, Gabinete de Investigações e Capturas, Seção de Identificação, São Paulo, 12 abr.1922. 67 Idem. Decreto de Expulsão, República dos Estados Unidos no Brasil, Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, 20 jul. 1922. 68 O decreto de expulsão levava a data de 20 de julho de 1922 e a detenção em Belo Horizonte foi em 26 de julho do mesmo mês. AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de São Paulo, Gabinete de Investigações, Serviço de Identificação, Boletim Positivo n. 39.609, 19 jun.1929.

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268

Curiosamente, nem essa nem as quatro detenções seguintes em São Paulo reativaram

o processo de expulsão, trazido à tona recentemente em 1929.

Em nenhuma parte do novo processo mencionava a expulsão anterior. A capa

da folha levava o mesmo nome que a primeira, Angelo Funes, mas aqui aparecia

como uruguaio e o expediente não contém a ficha de identificação com seu retrato

fotográfico. O que faz presumir então que se trata da mesma pessoa? A Folha de

Antecedentes arquivada pelo Gabinete de Investigações da Polícia de São Paulo era

exatamente a mesma: os mesmos antecedentes policiais; o mesmo pseudônimo

(Choricero para os argentinos, Choriceiro segundo os brasileiros); os mesmos nomes

de antes (Ángel Funes ou Funez, Frederico Amaro, Francisco Lago Marsi) e outros

que se agregavam pelas detenções posteriores a 1922 (Amada ou Amato ou Spinetto,

Ángel ou Angelo Maya, José Artezze, João Funes).

Através destes nomes, sobrenomes e combinações possíveis entre ambos, cada

vez declarava se chamar de uma maneira diferente para não ser reconhecido, como

ressaltava a definição do Inquérito Policial de 1929: “incorrigível gatuno

internacional com várias entradas na polícia de São Paulo, e duas em Curitiba e Belo

Horizonte, o qual tem usado, para ludibriar a ação das autoridades, diversos

nomes”.69 No interrogatório, o fizeram declarar que havia sido detido numerosas

vezes em São Paulo, Rio de janeiro, Paraná, Rosário e Montevidéu, o que indicava

que nesta ocasião o deixaram ainda menos margem para se defender.70 Embora os

policiais-testemunhas e demais atores que interviram no processo se limitavam a

repetir os dados do prontuário, o chefe do Gabinete de Investigações não teve

vergonha de escrever que ficava tudo demonstrado “com luxo de provas”.71 Assim,

em 3 de julho de 1929 se decretou novamente sua expulsão.72

69 AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). Polícia do Estado de São Paulo, Gabinete de Investigações, Inquérito Policial, São Paulo, 25 jun. 1929. 70 Idem. Termo de declarações, São Paulo, 25 jun. 1929. 71 Idem. Relatório do Chefe do Gabinete de Investigações , São Paulo, 19 jun. 1929. 72 AN, IJJ7 135. Expulsão de Angelo Funes (1929). República dos Estados Unidos no Brasil, Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, 3 jun. 1929.

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269

Nada permite afirmar, com alguma certeza, se Choricero nasceu na Argentina

ou no Uruguai, como tampouco podia ser comprovada a procedência de Arthur

Narbona, cuja história, no entanto, merece também ser narrada. Sua trajetória de

punguista viajante se replica – cidade mais, cidade menos – em muitos outros casos

de ladrões expulsos pelas autoridades brasileiras. Em 1926 um agente policial do Rio

de Janeiro o caçou infraganti. Terminou preso na Casa de Detenção, embora a

condenação tenha ficado em suspenso e ao ano seguinte voltou a ser preso,

desencadeando o processo de expulsão. Tinha então trinta e cinco anos e uma

carreira de punguista de aproximadamente duas décadas.

Retrato de Arthur Narbona

Fonte: AN, Fundo IJJ7 142 (1927)

A cópia do prontuário afirmava que em sua terra natal, Montevidéu, começou a

ser vigiado pela polícia aos treze anos de idade. Segundo este informe, nesse

momento, já o viam em “companhia de ladrões profissionais”. Pelas perseguições da

polícia uruguaia, decidiu cruzar o Rio da Prata e se estabelecer em Buenos Aires,

“onde travou relações com o punguista Pedro Victor, iniciando então a sua vida de

punguista”. Para evitar suspeitas policiais em sua nova cidade, buscou um emprego

Page 281: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

270

nos comércios e conseguiu trabalhar na Casa Rossi. Igualmente foi preso três vezes e

resolveu de novo buscar outro destino. Foi assim que terminou no Brasil, onde

deambulou com suas pungas por vários estados: primeiro no Rio Grande do Sul,

depois em São Paulo e finalmente no Rio de Janeiro. À capital chegou em torno de

1920 e em seguida entrou em contato com o submundo delitivo. Começou a visitar

com assiduidade “a casa da meretriz Annita, que era nesse tempo frequentada por

toda espécie de ladrões” e a polícia carioca o deteve por punguista várias vezes.73

O processo de expulsão foi, como na maior parte dos casos, sucinto, embora

algo demorado porque o Consulado da República do Uruguai recusou o pedido do

passaporte necessário para sua viagem, porque argumentava que Narbona mentia em

sua declaração de nacionalidade.74 Apesar de tudo, um ofício reservado do chefe de

polícia comunicava que em 23 de outubro de 1927 Arthur Narbona embarcou a

bordo do vapor Commandante Capella com destino a Porto Alegre, sem especificar

até onde iria desde essa cidade.75 É possível que ante as reclamações das autoridades

diplomáticas uruguaias, a polícia carioca tenha determinado – em segredo – enviá-lo

para Argentina. Conjectura difícil de corroborar, mas alimentada por um desses

quadros de indesejáveis que publicava a Revista Criminal, no que se festejava a

expulsão de Narbona, sinalando-o como batedor de carteiras argentino.

73 AN, IJJ7 142. Processo de Expulsão dos indivíduos Víctor Reys, Alfredo Giménez e Arthur Narbona (1927). Quarta Delegacia Auxiliar, Seção de Arquivo e Informações, Cópia do Prontuário de Arthur Narbona, Rio de Janeiro, 12 set. 1927. 74 Ver a cópia da resposta do Consulado em: Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 54, Maço 425.Legación de la República del Uruguay, Oficio n. 380/927, Rio de janeiro, 18 oct. 1927. 75 Idem, Secretaria da Polícia do Distrito Federal, Oficio Reservado, Rio de Janeiro, 28 out. 1927. O mesmo sucedeu com outros dois ladrões que haviam declarado ser uruguaios, mas o Consulado recusou a emissão do passaporte: Víctor Reys y Alfredo Giménez. Os processos de ambos se encontram no Arquivo Nacional, agrupados junto com o de Narbona. Reys foi expulso com destino a Lisboa e Alfredo Gimenez com destino a Porto Alegre, em 26 de julho e em 30 de agosto de 1927, segundo consta nas listas de expulsos do Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 54, Maço 425, Relação dos indivíduos expulsos do território nacional (1927).

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271

Retrato de Arthur Narbona (acima)

Fonte: Revista Criminal, Ano I, n. 8, Rio de Janeiro nov. 1927, p. 33.

Conjectura alimentada, ainda mais, por uma infinidade de indícios documentais

que sugerem que os acordos de cooperação entre as polícias da Argentina e Brasil

eram tão reais como as desconfianças recíprocas, embora estas últimas não tenham sido

reveladas tão abertamente. Muitas vezes – como vimos – os chefes de polícia

mostravam preocupação ante as ondas de expulsões no país vizinho e pediam para

ajustar os controles nos portos para evitar desembarques clandestinos. Em casos de

controversas de nacionalidade também existiam tensões entre os países. Quando se

generalizou o uso da ficha datiloscópica nas polícias da América do Sul, começou a

se resolver o problema da simulação de nomes, inclusive à escala transnacional. Mas

nesta época não existia um Registro Civil unificado, sustentado por tecnologias de

identificação, capazes de adicionar à comprovação de identidade o lugar de

nascimento da pessoa.

Deste modo, a incerteza da nacionalidade fazia possível imputações de origem

estrangeira às pessoas nascidas no país, a fim de aplicá-los a lei de expulsão.

Também se concluíam os processos negociando com o acusado um destino, sob a

ameaça de uma pena maior. Mas isso podia provocar o desagrado dos policiais do

país ao que o enviavam. Inclusive antes das leis de expulsões, em 1899, Alberto

Artiag foi embarcado “voluntariamente” para Buenos Aires como alternativa para

Page 283: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

272

continuar no cárcere onde se encontrava acusados de roubo.76 Frente a um caso

similar, em 1907, o chefe da polícia portenha (Ramón Falcón) escreveu uma carta ao

seu par do Rio de Janeiro, advertindo-o que a polícia carioca havia expulso para

Buenos Aires um sujeito de suposta nacionalidade espanhola. O mais chamativo

desta carta era que Falcón não exigia a seus colegas brasileiros que se informassem

melhor sobre o lugar de nascimento dos acusados antes de expulsá-los. Na realidade,

pedia que se cumprisse um acordo informal entre as polícias sul-americanas: em

casos de controversa de nacionalidade, o combinado era mandá-los a Europa.77

Por sua parte, o processo de Alberto Graffiña reunia todas as dificuldades

possíveis, incertezas sobre a nacionalidade, multiplicidade de nomes (José Alegre,

José Ponce de León, José Vaker, Joe Vázquez) e de apelidos (Rosarino, Chingolo). O

informe do Serviço de Identificação da polícia paulista resumia sua biografia em

poucas palavras: “filho de Francisco Graffinha e Thereza Nicacia, solteiro, padeiro,

nascido em Paysandú (Uruguay), a 6 de janeiro de 1900, cútis branca, cabelos

castanhos, barba feita, bigodes rascados, sobrancelhas e olhos castanhos”.78 Mas

quando interrogado na Delegacia de Investigações sobre Roubos afirmou ser

argentino, natural de Buenos Aires. O resto do testemunho era um tipo prolixo de

autoincriminação, muito detalhado e transcrito pelo escrevente em terceira pessoa.

Graffiña declarou:

(...) que desde a idade de sete anos, em Buenos Aires, sua terra natal, iniciou-se na prática de furtos de carteiras, acompanhando ladrões dessa especialidade; que uns anos depois, já com oito anos de idade furtou a carteira da esposa do falecido coronel argentino Ataliba Roque, quando essa senhora viajava em um bonde; que preso em flagrante na prática desse furto, foi internado no Cárcere de Menores “Marcos Paz”, (...) quatro anos, e dele saindo continuou sua vida de furtos de carteiras; que só no Depósito de Contraventores de Buenos Aires foi várias vezes processado, sendo que no ano de 1914 foi processado com o nome de José Ponce de

76 AN, GIFI 6C 27 (1899). 77 AN, GIFI 6C 252 (1907). Ofício do Chefe da Polícia de Buenos Aires, 24 mar. 1907. 78 AN, IJJ7 126. Expulsão de Alberto Graffiña (1927). Polícia do Estado de São Paulo, Delegacia de Técnica Policial, Serviço de Identificação, São Paulo, 29 nov. 1927.

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273

León por ter assaltado uma senhora na via pública, Avenida de Mayo, das mãos de quem arrebatou a carteira (...); que vindo para o Brasil há sete anos continuou nesta Capital [São Paulo] e no Rio de Janeiro sua vida de gatuno, tendo cometido uma infinidade de furtos e roubos; cometeu ainda vários roubos em casas comerciais, à noite, e muitos outros furtos de carteiras de cujo produto tem vivido sempre; que na cidade do Rio Grande do Sul, no ano de 1915 ou 1916, assaltou à noite uma casa comercial sita à rua Quinze de Novembro, daí subtraindo a importância de 38 contos de réis em dinheiro que se achavam em um cofre, sendo que este estava aberto; que com esse dinheiro embarcou para Europa onde permaneceu três messes, percorrendo a Espanha, Portugal e França; que nas capitais desses países se associou a ladrões que eventualmente conhecia e praticou somente furtos de carteiras; que perseguido em Paris por um furto que cometeu, fugiu, embarcando para sua terra natal; que depois de estar no Brasil, tem constantemente viajado para Buenos Aires e Montevidéu, demorando-se as vezes mais de seis meses; (...) que já conta entre processos, suspeita e vadiagem mais de cento e vinte passagens pelas polícias dos lugares onde tem residido ou passado.79

A polícia portenha enviou um prontuário, acompanhado pela ficha

datiloscópica, confirmando inumeráveis detenções e à polícia de Porto Alegre um

telegrama em que figuravam os roubos no Rio Grande do Sul. A circulação de

informações entre as polícias mostrava que a confusão sobre sua nacionalidade era

cultivada por ele mesmo: em Buenos Aires se dizia italiano, em São Paulo afirmava

ser uruguaio e neste processo de expulsão no Brasil se declarava argentino. Em seu

Relatório, o Delegado de Investigações sobre Roubos escrevia que não restavam

dúvidas sobre sua “verdadeira origem”, posto que todas as testemunhas afirmavam

que ele era argentino.80 Esta afirmação dizia mais sobre as intenções de expulsá-lo a

algum lugar que sobre a verdade do próprio processo. De fato, uma das testemunhas

não declarava nada sobre sua nacionalidade e outro duvidava: “parecendo-lhe ser ele

espanhol ou de nação onde se fale esse idioma, visto como ele fala mal o português,

no qual intercala muitas palavras espanholas”.81 Mas nem sequer a verdade das

79 Idem, Polícia do Estado de São Paulo, Delegacia de Investigações sobre Roubos, Auto de Qualificação, São Paulo, 1 dez. 1927. 80 Idem, Relatório do Delegado de Investigações sobre Roubos, São Paulo, 11 jan. 1928. 81 Idem, Declaração da 2ª. Testemunha, São Paulo, 1 dez. 1927.

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274

testemunhas parecia importar muito. Em 28 de janeiro de 1928 decretou-se sua

expulsão.

Os casos de Agustín Ferreira Baudraco, Angelo Funes, Arthur Narbona e

Alberto Graffiña representavam um universo mais amplo, uma região particular dos

ladrões urbanos. Sem ser aristocratas da delinquência como o “Conde Terol de

Palma”, os rats d’hôtel e alguns estelionatários do 1900, igualmente estavam um

degrau acima dos gatunos dos bajos fondos. Os casos poderiam se multiplicar apenas

com os processos de expulsão de argentinos. Héctor Eulogio Morales foi embarcado

em 1927 com destino a Buenos Aires, por formar parte de uma “quadrilha de ladrões

internacionais” que operava no Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.82 A mesma

acusação recebeu Alfredo Sinquetti, quem, igual a Artur Narbona, luzia no retrato de

identificação um elegantíssimo terno, camisa e gravata.83

Retrato de Alfredo Sinquetti

Fonte: AN, Fundo IJJ7 126 (1927)

82 AN, IJJ7 135. Expulsão de Héctor Eulogio Morales (1927). 83 AN, IJJ7 126. Expulsão de Alfredo Sinquetti (1927). A fotografia foi reproduzida entre os quadros de expulsos da Revista Criminal, ver: “Outros mais que se vão. A polícia continua deportando indesejáveis”, Revista Criminal, Ano I, n. 4, Rio de Janeiro, set. 1927, p. 35.

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275

Também Leónidas Arena, ladrão argentino com uma década de carreira

criminal; Luis Mariani, vulgo Jeilefe, punguista com ramificações em Buenos Aires,

Santiago del Estero, Montevidéu e São Paulo; Julio Dantas, batedor de carteiras na

Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai; José Castillo; Pedro Enrid e outros: todos

punguistas com vasto território de ação, enviados à Buenos Aires durante a década

de 1920.84 Estes “gatunos internacionais” viajavam, tinham contatos com ladrões de

distintos países e manejavam vários idiomas. Falavam, ainda, uma linguagem

transnacional que haviam filtrado nas babélicas conversações no Rio de Janeiro e

Buenos Aires, entrelaçando-se com o português e o espanhol, incorporando palavras

do italiano e do francês, enlouquecendo aos acadêmicos e puristas da língua. Eram a

gíria e o lunfardo. Era o argot dos ladrões viajantes.

O calão dos delinquentes

Em 1878, vários anos antes destas expulsões de punguistas e da organização da

Maffia Criolla, um anônimo cronista da imprensa portenha afirmava que os ladrões

de Buenos Aires constituíam “uma confraria, a mais invejável e eficaz sociedade de

socorros mútuos, contra as intenções da Polícia”. Esta comunidade dos submundos

criminais tinha “seus sinais e sua língua própria”, um extenso vocabulário que

permitia aos sócios “armar seus planos em público sem serem entendidos”.85 O autor

da nota explicitava sua fonte de informação: um delegado que se ocupava de “fazer a

guerra aos ladrões” havia elaborado uma espécie de dicionário para usos policiais.

Desse escrito o jornalista extraiu algumas vozes e expressões, cujo significado

84 AN, IJJ7 177. Expulsão de Leónidas Arena (1928). AN, IJJ7 177. Expulsão de Luis Mariani (1928). AN, IJJ7 175. Expulsão de Julio Dantas (1930). AN, IJJ7 167. Expulsão de José Castillo (1928). AN, IJJ7 149. Expulsão de Pedro Enrid (1927). 85 “El dialecto de los ladrones”, La Prensa (Sección “Boletín del día”), 6 jul. 1878.

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276

traduzia a seus leitores para socorrê-los na tarefa cotidiana de se cuidarem dos

roubos.

Três décadas mais tarde, no Boletim Policial carioca, aparecia um artigo

titulado “o calão dos delinquentes”, apresentado como um breve vocabulário da gíria

“usada pelos ladrões e gatunos”.86 Desta vez, a fonte era o livro Através do Cárcere

do repórter Ernesto Senna, quem havia recolhido as palavras em uma série de visitas

à Casa de Detenção do Rio de Janeiro.87 A aposta à utilidade de decifrar essa

aparente linguagem secreta marcava uma coincidência com a nota de Buenos Aires:

Além da curiosidade que apresenta, o conhecimento pode ser útil ao policial em ocasião oportuna, porque organizado esse vocabulário para que se possam entender reciprocamente sem que outros o compreendam, quem sabe se alguma vez não será possível descobrir algum fato delituoso pela conversa ouvida ou pelo escrito encontrado? 88

Embora não se aclarava o nome do autor desta resenha sobre o livro de Senna,

é provável que fosse o então subdiretor do Gabinete de Identificação, Elysio de

Carvalho, já que quatro anos depois cumpriu com a tarefa. Em 1912 publicou o

folheto Gíria dos Gatunos Cariocas, um dicionário composto por mais de quinhentas

vozes e orientado à leitura dos alunos da Escola de Polícia.89 Em um conjunto de

vinte palavras extraídas da etnografia carcerária de Senna, chama atenção que oito

estavam presentes no texto de 1878 sobre o argot dos ladrões portenhos.

86 “O calão dos delinqüentes”, Boletim Policial, Ano I, n. 12, Rio de Janeiro, abr. 1908, p. 7-8. 87 SENNA, Ernesto. Através do Cárcere (Casa de Detenção). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907. Sobre esta e outras crônicas jornalísticas da prisão carioca no começo do século XX, ver: ANTUNES, Marilene Sant´Anna. “Histórias do confinamento nas crônicas cariocas”, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, jul. 2011. 88 “O calão dos delinqüentes”, Op. Cit., p. 7. 89 O próprio folheto especificava que era um “vocabulário organizado para os alunos da Escola de Polícia”: CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 3. O programa da disciplina “polícia científica” que ditava Carvalho na Escola incluía o ensino do argot, ver: CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Op. Cit., p. 132.

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277

Em ambas as listas, bobo aparecia como o termo que usavam os punguistas

para se referirem aos relógios que roubavam; enquanto que bacán e bacano,

respectivamente em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, faziam referência à “pessoa

rica que esta em condições de ser roubada”, e se era pobre o chamavam de misho ou

micho.90 Campana era o que vigiava para que não chegasse a polícia enquanto seus

companheiros roubavam. A mulher do delinquente era conhecida como mina; o

oficial ou delegado de polícia, mayorengo ou majorengo; a vítima ingênua era o

otário. Finalmente, ao ladrão ou gatuno também se dizia lunfardo, palavra que na

argentina designava tanto ao delinquente como ao seu argot particular.91

Além destas oito coincidências, os ladrões cariocas chamavam de ventanas às

janelas, peça léxica castelhana utilizada para designar este objeto. E embora as doze

palavras restantes mencionadas no livro de Senna não figurassem na nota portenha

de 1878, todas elas (afanar, cana, escrucho, guita, punga, etc.) haviam sido

incorporadas em diversos dicionários de lunfardo publicados em Buenos Aires até

finais do século XIX.

Esta prática de recompilar vozes do calão dos ladrões não era uma

exclusividade sul-americana. Desde a publicação do livro de Vidocq Les voleurs,

pshysiologie de leurs moeurs et de leur langage (1837), e em particular desde a

interpretação que Lombroso ofereceu sobre o argot em L´uomo delinquente (1876),

os especialistas da questão criminal não pararam de auscultar jargões secretos e de

discutir a natureza da sua existência.92 Assim fizeram outros criminologistas italianos

como Niceforo e Ferri, alguns da escola francesa, como Lacassagne e Tarde.

Também foi matéria de análise de Los hombres de presa, considerado o primeiro

90 “O calão dos delinqüentes”, Op. Cit., p. 8. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 38. 91 Na nota de 1878 não aparecia esse duplo significado da voz lunfardo, mas uma crônica publicada no ano seguinte no folhetim do jornal La Nación afirmava que a expressão “o lunfardo” podia fazer referência tanto ao ladrão como ao calão utilizado por este. LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. Op. Cit., p. 99-100. 92 VIDOQC, Eugène-François. Les voleurs, pshysiologie de leurs moeurs et de leur langage. Paris : Imp. de Beaulé et Jubin, 1837. LOMBROSO, Cesare. L´uomo delinquente. In Rapporto all´antropologia, alla giurisprudenza e dalle discipline carcerarie. Quinta Edizione. Vol. 1. Torino: Fratelli Bocca, 1896, p. 531-552.

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278

livro da criminologia latino-americana e traduzido ao italiano sob o título de I

criminali nati, pelo próprio Lombroso.93

Apesar dos estreitos vínculos entre os criminologistas de Torino e Buenos

Aires, que esta mesma tradução testemunhava, Drago marcava algumas diferenças

com Lombroso. Uma delas era, precisamente, a análise do argot delitivo. O grande

maestro da escola italiana havia sinalado, entre os traços peculiares do homo

criminalis, sua inserção em sociedades de malfeitores, o uso da gíria e as tatuagens

no corpo. Para o jurista argentino, o vínculo conceitual entre a tendência à

associação, a construção de um vocabulário particular e os estigmas degenerativos

próprios do delinquente nato, eram um ponto débil da teoria lombrosiana. Na

discussão desta leitura, Drago se interrogava:

A inclinação de formar associações não seria, talvez, a manifestação, dentro de uma atividade anormal, de um fenômeno puramente humano? Não vemos que todas as ordens de funções sociais buscam fortificar-se por meio da cooperação, tanto na indústria e nas artes, como no comercio, na literatura, na política e nas mais altas manifestações do pensamento e o trabalho intelectual? 94

A resposta de Drago apontava distinguir o delinquente profissional do

criminoso nato. Era natural que aqueles ladrões que faziam do crime “uma forma de

vida” buscassem nas associações “o sucesso mais fácil de suas empresas e a maneira

de escapar das perpétuas armadilhas da lei”.95 Os lunfardos, os ladrões e malfeitores

de Buenos Aires, brindavam um excelente exemplo desse tipo de criminalidade. E o

lunfardo como argot, “essa linguagem às vezes pitoresca e cínica”, revelava a

93 CREAZZO, Giuditta. El positivismo criminológico italiano en la Argentina. Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 46. 94 DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1888, p. 99. Uma parte das páginas que Drago dedicou neste livro à análise do argot foram publicadas simultaneamente na revista policial: “El argot de los lunfardos bonaerenses”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n.9, Buenos Aires, 1 oct. 1888, p. 108; e “El argot de los lunfardos bonaerenses”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 oct. 1888, p. 120. 95 DRAGO, Luis M. Los hombres de presa. Op. Cit., p. 100.

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necessidade que tinham estas confrarias de “recorrer em certos casos a uma gíria

especial, desconhecida dos profanos”, a um vocabulário “destinado, como dizem os

mesmos criminosos, a ocultar dos estranhos suas comunicações”.96

Esta restituição de racionalidade ao uso do argot delitivo coincidia com a visão

que muitos policiais portenhos tinham sobre o fenômeno do mundo lunfardo. O

delegado Laurentino Mejías o expressava com sua prosa sarcástica, quando se referia

aos ladrões que circulavam nos calabouços de sua seccional: “são esses nenes

(lunfardos) a quem se referia um psicólogo que os estuda, qualificando-os pobres de

mentalidade? Não demonstra inteligência natural o lunfardo analfabeto ao se fazer de

tonto quando o interrogam?”.97 Embora não nomeasse, o “psicólogo” a quem Mejías

se referia não devia ser Lombroso, mas Francisco de Veyga, professor da cátedra de

medicina legal da Universidade de Buenos Aires.

Desde 1899, o doutor Veyga dirigia um tipo de “clínica criminológica” que a

polícia de Buenos Aires o havia permitido instalar no Depósito de Contraventores,

feito que – segundo um de seus discípulos – significava “não apenas a consagração

definitiva da Escola Positiva em nossa Faculdade, mas sua aceitação pela autoridade

policial”.98 As palavras do delegado Mejías sugeriam que essa aceitação não era

generalizável a todas as esferas da polícia portenha. Sua rejeição à patologização dos

lunfardos parecia aludir diretamente a uma conferência sobre a “psicologia dos

ladrões profissionais”, ditada por este médico e publicada como folheto em 1910.99

96 Ídem, p. 101-102. A interpretação do uso de argot como uma característica das associações de delinquentes profissionais estava alinhada com a leitura dos criminologistas mentores da polícia científica. Ver, por exemplo: REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Vol. 1. Vols et Homicides. Lausanne: Payot, 1911, p. 82-113. LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Paris: La Renaissance du Livre, 1925. p. 34-45. 97 MEJIAS, Laurentino. La policía por dentro. Tomo 1. Barcelona: Imprenta Viuda de Luis Tasso, 1911, p. 182. 98 BARBIERI, Pedro. “Clínica criminológica en el depósito 24 de Noviembre”, Revista de Policía, Año IV, n.73, Buenos Aires, 1 jun. 1900, p. 6-7. Sobre esta Sala de Observação instalada no Depósito de Contraventores, ver: VEZZETTI, Hugo. La locura en la Argentina. Buenos Aires, Paidós, 1985, p. 175-176. RUIBAL, Beatriz. Ideología del control social. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992, p. 54. SALESSI, Jorge. Médicos, maleantes y maricas. Higiene, criminología y homosexualidad en la construcción de la nación argentina. Buenos Aires: Beatriz Viterbo, 1995, p. 148-151. 99 DE VEYGA, Francisco. Los lunfardos. Psicología de los delincuentes profesionales. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciaría Nacional, 1910.

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280

Para Francisco de Veyga, os lunfardos eram sujeitos “dotados de escassíssima

capacidade mental e desprovidos de todo recurso moral para a luta pela vida”.100

Toda a descrição dos ladrões habituais que havia observado no Depósito de

Contraventores estava dominada pelas ideias de “inferioridade psíquica”,

“degeneração” e “debilidade de espírito”.

Em 1894, outro criminologista argentino, Antonio Dellepiane, havia publicado

um livro titulado El idioma del delito, onde recusava a interpretação do lunfardo

como um vocabulário secreto destinado a ocultar as intenções delitivas frente o olhar

de desconhecidos. No entanto, Dellepiane tampouco coincidia com a ideia

lombrosiana sobre o argot como um sintoma de estigmas degenerativos. Abraçava,

igual a Drago, a perspectiva defendida por Gabriel Tarde, que Dellepiane resumia na

fórmula “o argot é um tecnicismo profissional”.101 O vocabulário lunfardo não era

um idioma porque não possuía uma gramática diferenciada: era simplesmente uma

“monstruosidade bastarda” de palavras e sons de diferentes línguas que os ladrões

intercalavam em suas conversas.

Dellepiane coincidia então com Drago em assinalar o lunfardo como a gíria dos

ladrões profissionais. Mas entendia que esse vocabulário não buscava ocultar as

intenções delitivas na presença de vigilantes e vítimas incautas, mas que tinha um

caráter bem mais lúdico: “a característica culminante das gírias criminais – escrevia

– é o cinismo, a tendência à burla sarcástica e às vezes cruel”.102 A questão é que,

seja para encobrir seus diálogos ou simplesmente para se entreterem, o vocabulário

lunfardo era visto aqui como o calão de um grupo profissional.

Nesse sentido, os criminologistas anteciparam a opinião de muitos literários

argentinos que, a inícios do século XX, escreveram sobre o lunfardo no marco de

uma polêmica sobre o papel dos imigrantes estrangeiros na formação do “idioma

100 Idem, p. 10. 101 DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al estudio de la psicología criminal. Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 16. 102 Idem, p. 40.

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nacional”.103 Ernesto Quesada, por exemplo, opinava em 1902 que o lunfardo era

uma “gíria dos delinquentes” que – parafraseando a Dellepiane – qualificava de

“verdadeiro tecnicismo, cheio de colorido”.104 Enquanto que em 1926, um linguista

argentino de ascendência alemã, Rudolf Grossmann, afirmava que muitas destas

palavras nascidas na sede delitiva haviam sido adotadas já pela “língua coloquial

geral”.105

Grossmann adicionava outro dado importante para a circulação das palavras

lunfardas. Ao parecer, não apenas se moviam dentro da Argentina entre o mundo

criminal e a fala vulgar, mas também se estendiam territorialmente “até Uruguai e

Brasil”, e por sua vez se alimentavam de vozes que “provêm do português, ou mais

precisamente, do brasileiro”.106 Palavras como quilombo, empregada no lunfardo

portenho para se referir aos bordeis, caften para os proxenetas, capiango para os

ladrões astutos e cafua para as prisões, eram empréstimos atribuídos aos

intercâmbios léxicos com os delinquentes brasileiros.

Os diferentes dicionários de lunfardo e gíria publicados na Argentina, Brasil e

outros países vizinhos, desde finais do século XIX, já haviam advertido sobre este

fenômeno dos empréstimos léxicos, que parecia ser um testemunho linguístico da

circulação de ladrões na América do Sul. O primeiro apareceu no próprio livro de

Dellepiane. Era apresentado como um “dicionário lunfardo-espanhol” com seiscentas

103 Ver DI TULLIO, Ángela L. Políticas lingüísticas e inmigración. El caso argentino. Buenos Aires, Eudeba, 2010, p. 99-134. 104 QUESADA, Ernesto. “El criollismo en la literatura argentina”. In: RUBIONE, Alfredo V. (comp.). En torno al criollismo. Textos y polémica. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983, p. 213. 105 GROSSMANN, Rudolf. El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2008, p. 149. Estudos posteriores abordaram esta relação do lunfardo com a fala popular dos argentinos. Alguns autores continuaram considerando o lunfardo como uma gíria nascida no mundo dos ladrões profissionais, ver: VILLANUEVA, Amaro. “El lunfardo”, Universidad, n. 52, Santa Fe, abr.-jun. 1962, p. 13-42. Outros, em uma operação crítica que buscava redimir este vocabulário de seu “pecado original” delitivo, inverteram os termos, argumentando que foi “o mundo da delinquência que se apropria das palavras que estão no uso do povo”. TERUGGI, Mario E. Panorama del lunfardo. Buenos Aires: Sudamericana, 1978, p. 247. A mesma hipótese foi aprofundada recentemente por: CONDE, Oscar. Lunfardo. Un estudio sobre el hablar popular de los argentinos. Buenos Aires: Taurus, 2011, p. 60 y p. 86-91. 106 GROSSMANN, Rudolf. El patrimonio lingüístico extranjero en el español del Río de la Plata. Op. Cit., p. 149-150.

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e vinte entradas, entre vozes e locuções.107 O número não estava longe das

quinhentas e sessenta e oito registradas no folheto que Elysio de Carvalho publicou

em 1912. No Brasil, haviam aparecido antes outros vocabulários que davam conta da

existência de um argot de delinquentes. Ao redor de 1897, o médico Sebastião Leão,

diretor da Oficina de Antropologia Criminal, dependente da polícia do Rio Grande

do Sul, elaborou um estudo empírico baseado nos detentos da Casa de Correção de

Porto Alegre. No texto analisou o uso do argot por parte dos presos e ensaiou um

brevíssimo glossário.108

Mello Morais Filho anexou um “vocabulário dos ladrões” ao seu livro de

memórias urbanas sobre o Rio de Janeiro, onde se registravam cento e setenta e seis

expressões, entre as quais havia várias coincidentes com os dicionários de

lunfardo.109 Em 1910, o escritor Raul Pederneiras publicou Geringonça carioca,

repertório que não se limitava ao argot criminal, embora incluía uma grande

quantidade de vozes identificadas como “gíria ladra”.110 O estudo de Elysio de

Carvalho não constituía, então, o primeiro vocabulário de gíria brasileira, mas trazia

duas novidades importantes. Por um lado, como reconhecia o delegado portenho Luis

Villamayor em seu próprio dicionário de lunfardo, através da Gíria dos Gatunos

Cariocas, a polícia brasileira era a única na América do Sul que contava com um

“argot de seus malfeitores” e que o havia “entregue oficialmente para o estudo de

seus empregados”.111 Pelo outro, Carvalho agregava uma análise da procedência do

vocabulário da gíria dos ladrões.

107 DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Op. Cit., p. 57-104. 108 LEÃO, Sebastião. “Relatório do Doutor Sebastião Leão, Médico da Polícia”. In: Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: s/d, 1897, p. 230. Sobre Leão e seus trabalhos na Cadeia de Porto Alegre ver: PESAVENTO, Sandra J. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Editora Zou, 2009. 109 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 337-344. Às coincidências já mencionadas, sobre o livro de Ernesto Senna, agregavam-se outras novas como gurda (adinheirado), marroco (pão), ragú (fome) e vento (dinheiro). 110 PEDERNEIRAS, Raul. Geringonça carioca. Verbetes para um dicionário da gíria. Rio de Janeiro: s/d, 1910. Nesse mesmo ano publicou-se no Chile um dicionário apresentado no Congresso Internacional Americano (realizado em Buenos Aires durante o mês de julho de 1910). VICUÑA CIFUENTES, Julio. Jerga de los delincuentes chilenos. Estudio y vocabulario. Santiago de Chile: Imprenta Universitaria, 1910. 111 VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 27.

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“L UNFARDO – Gatuno [G. dos gs. args]”, se lia no meio do folheto: essa

aclaração entre colchetes significava que a voz procedia da gíria dos gatunos

argentinos.112 Cento e vinte vozes e locuções eram reconhecidas por Carvalho como

usos da gíria derivados do espanhol e do lunfardo portenho. Por isso em 1913, a

Revista de Polícia de Buenos Aires publicava uma nota com o título “Vocabulário

dos ladrões no Brasil”, que informava a seus leitores sobre o dicionário de Carvalho

e destacava que muitos vocábulos eram “análogos aos que usam nossos

delinquentes”.113 Se o ladrão lunfardo era, segundo escrevia Francisco de Veyga,

“todo um nômade que se movia de um lado a outro sem encontrar paradeiro aonde se

assentar”; se ele era, como lhe chamava Benigno Lugones, um tipo de “beduíno

urbano”, então não resultava estranho que suas viagens deixassem sedimentos no

argot criminal.114

Esses empréstimos incluíam várias ações próprias da arte de roubar:

começando pelo próprio verbo “roubar”, que tanto o lunfardo como a gíria o chamam

de afanar. Bater o justo, explicava Carvalho, era outra locução proveniente do

lunfardo que significava “dizer a verdade”; o mesmo campanear, “vigiar o local

onde está se cometendo um roubo” e espiantar, que era “furtar mercadorias expostas

à venda”.115 Havia também um repertório de vozes para denominar personagens

relevantes no cotidiano delitivo: botão era o “soldado de polícia”, proveniente,

segundo Carvalho, do lunfardo botón; a mesma procedência tinha burrista, “menor

que auxilia os ladrões profissionais”; e madruguista, o “gatuno que aproveita a

madrugada para roubar”.116 Finalmente, havia uma grande quantidade de

empréstimos léxicos referentes a objetos e artefatos: bufoso diziam às armas de fogo;

carola à libra esterlina; marroca à corrente de relógio; música à “carteira de

112 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 30. 113 “Sueltos. Vocabulario de los ladrones en el Brasil”, Revista de Policía, Año XVI, n. 379, Buenos Aires, 1 mar. 1913, p. 182. 114 DE VEYGA, Francisco. Los lunfardos. Op. Cit., p. 26. LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. Op. Cit., p. 99-112. 115 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 4, 13 e 20. 116 Idem, p. 11 e 30.

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algibeira”; toco à “porção que toca a cada um na partilha do produto de um

roubo”.117

Todos estes empréstimos do lunfardo à gíria pressupunham uma multiplicidade

de intercâmbios nas práticas delitivas. Ao contrário de alguns cultores das línguas

populares que, a partir do século XX, começariam a buscar nestes vocabulários

algum tipo de “essencialismo nacional”, Carvalho e os policiais estudiosos do argot

criminal, enfatizavam sua intrínseca natureza transnacional. Por isso, às vezes o

comparava com as hieroglíficas inscrições que os ladrões deixavam nas paredes ou

nas portas das casas que marcavam para roubar. Eram palavras difíceis de decifrar

pela multiplicidade de idiomas e dialetos que contribuíam para sua constituição. “A

sociedade dos criminosos não é tão fácil de conhecer como à primeira vista parece”,

escreveu Brasil Silvado em sua visita a Paris. “Eles conhecem o segredo de Protheus

e têm mil formas de disfarce, mil maneiras de agir, a par de uma audácia incalculável

e de uma linguagem, o argot dos franceses, que não se aprende em um dia”.118

117 Idem, p. 11, 14, 31, 34 e 43. 118 SILVADO, João Brasil. O serviço policial em Paris e Londres. Op. Cit., p. 233-234.

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A aristocracia do roubo

A natureza mais profunda de um indivíduo não vai muito além da pele, da espessura da pele de seus outros.

Erving Goffman, Relations in public (1971).1

Em 1911, o cronista João do Rio publicou no jornal A Notícia um artigo sobre

o “roubo inteligente”. Era quase uma denuncia sobre a “chateza dolorosa” da

criminalidade brasileira, na qual vislumbrava nenhum ladrão memorável, nenhum

digno de admiração. 2 Mas nem todos os escritores da Belle Époque carioca estavam

de acordo com esse olhar. Onde João do Rio via “gravateiros ordinários,

prestidigitadores insignificantes, vigaristas indecentes, punguistas para distraídos de

bonde”, Elysio de Carvalho preferia enxergar o surgimento de uma nova classe de

ladrões:

O gatuno de hoje não é mais o escruchante dos tempos famosos do não menos famoso Vidigal. Rato de hotel, batedor de carteira ou escroc, o criminoso que vive a custa do próximo é um tipo como qualquer um de nós, vestindo-se com apurada elegância, frequentando as melhores rodas e os mais afamados clubs, com amantes de luxo e créditos nas garages, hospede de hotéis de primeira ordem e com relações no mundo da Bolsa. Tem todas as aparências de um clubman, o patife passa por um gentleman até o dia em que é preso em flagrante.3

1 GOFFMAN, Erving. Relaciones en público. Microestudios de orden público. Madrid: Alianza, 1979, p. 354. 2 RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”, A Notícia, Rio de Janeiro, 20 ago. 1911. 3 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 4, abr. 1913, p. 60.

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286

Agora, o criminoso típico não era o escruchante, “gatuno que comete a

subtração da coisa alheia, com arrombamento, escalamento ou chave falsa”, segundo

definia o próprio Carvalho em seu folheto sobre a gíria delitiva, orientado à leitura de

alunos da Escola de Polícia.4 Carvalho contrastava aqui o tempo dos escruchantes,

protagonistas de um passado recente dominado pelo roubo manual e muscular, com

esse presente do século XX, da delinquência astuta e dos ladrões gentlemen. Mas isso

não significava que todos os ladrões do século anterior fossem da mesma categoria.

Em 1879, num dos primeiros textos dedicados a descrever o lunfardo portenho, o

jornalista Benigno Lugones assegurava que os “escruchantes inteligentes” tinham o

costume de enviar a “Montevidéu, Rosário, Rio de Janeiro e ainda à Europa” as joias

que roubavam em Buenos Aires, e que também recebiam artigos roubados daquelas

cidades.5

Não apenas os ratos de hotel e os estelionatários se vestiam com elegância,

viajavam e tinham conexões transnacionais; também o faziam alguns escruchantes

do século XIX e o seguiriam fazendo nas primeiras décadas do século XX. Assim

testemunha o caso de “Eufelio de Duvitus”, também registrado como José Francisco

Formica ou Gino Pasqua, um “famoso ladrão de um colar de pérolas e outras joias de

senhora em Mar del Plata”, detido no Rio de Janeiro em 1919 e extraditado à

Argentina.6 Fosse um punguista profissional, um arrombador, um vigarista ou um

ladrão de hotéis, o certo é que na primeira metade do século XX a questão do

delinquente internacional adquiriu uma visibilidade inédita.

Na América do Sul, entre os discursos jurídicos, policiais, jornalísticos e

literários se construiu uma figura do ladrão viajante aristocrata que reunia três

características fundamentais: além da profissionalização e da capacidade de

mobilidade territorial, era assinalado como um delinquente “científico”, “gentleman”

e “vaidoso”. A primeira característica fazia referência ao uso de inovações

4 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Op. Cit., p. 20. 5 LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2012, p. 108. 6 “Ladrões conhecidos”, Revista Policial, Ano I, n. 1, Rio de Janeiro, 15 out. 1919, p. 21.

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287

tecnológicas aplicadas a alguma especialidade na arte de roubar. A segunda tinha a

ver com a aprendizagem dos estilos necessários para se infiltrar nos espaços da alta

sociedade e com as capacidades dramatúrgicas nas interações com os outros.

Finalmente, a última característica aludia à construção de uma fama dentro do

próprio mundo dos ladrões e, em parte, à projeção dessa popularidade nas páginas da

imprensa e nos seus leitores.

O tema do “ladrão científico” era parte de uma problematização mais ampla da

relação entre o delito e a modernidade. Em finais do século XIX, criminologistas

italianos como Alfredo Niceforo e Scipio Sighele levantaram uma hipótese sobre a

existência de duas formas diferentes de criminalidade: a “delinquência atávica”, a

cujo estudo Lombroso havia dedicado seus maiores esforços, e a “delinquência

evolutiva”, caracterizada mais pela fraude e astúcia do que pelos roubos violentos e

brutais, os homicídios ou estupros.7 Seguindo essa leitura da escola italiana, diversos

juristas sul-americanos interpretaram essa criminalidade científica e civilizada como

um efeito da vida metropolitana. Para Miguel Lancelotti, por exemplo, essa

consequência indesejável da modernização já se constatava no final do oitocentos

com “verdadeiro assombro”. Era fato que a delinquência havia profanado “o

santuário da ciência” e havia usado seus descobrimentos mais seletos para “livrar-se

da roupagem rude, cruel e selvagem”.8 Os criminologistas liam esse processo como

uma lei de evolução da criminalidade, desde as formas atávicas, musculares e

violentas, até outra astuta, refinada “e até científica”, como expressava um jurista

argentino.9

7 SIGHELE, Scipio. Delinquenza Settaria. Apuntti di sociologia. Milano: Fratelli Treves, 1897. NICEFORO, Alfredo; SIGHELE, Scipio. La mala vita a Roma. Torino: Roux Frassati, 1898, p. 11-30. 8 LANCELOTTI, Miguel A. “Civilización y delito”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 13/14, Buenos Aires, nov.-dic. 1899, p. 407; 9 ZINNY, Enrique N. La delincuencia en la ciudad de Buenos Aires. Sus factores principales. Tese de doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Ed. Adolfo Grau, 1903, p. 15. Ver também: PESENTI, Víctor R. Influencia de la civilización sobre el movimiento de la criminalidad. Tese de doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires: Tailhade y Rosselli, 1901. TABORDA, Héctor. Factores del delito. Tese de doutorado, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Ciencias Médicas. Buenos Aires: Rodríguez Giles, 1910.

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288

A imprensa policial também brindava detalhes sobre a modernização dos

delinquentes no mundo inteiro. Em 1912, uma “nota do estrangeiro” da revista

Sherlock Holmes contava o caso de dois ladrões especializados em abrir cofres, que a

polícia russa havia detido, encontrando em sua residência “uma biblioteca composta

de obras científicas sobre explosivos, metalurgia, construções de cofres e sobre

maçaricos para fundir metais”. Também havia nas estantes “alguns volumes de

criminologia” e, ao lado da biblioteca, um laboratório para fazer experimentos.10 E

nas páginas do Boletim Policial do Rio de Janeiro, Elysio de Carvalho escrevia um

texto sob o título de “As nevroses e os vícios da cidade”, no qual vinculava a

criminalidade fraudulenta à dinâmica da vida metropolitana, onde “todo mundo está

atacado pela febre dos negócios, é preciso correr, andar célere, chegar à hora,

engolindo quilômetros e ampliando o tempo numa fúria louca”.11

A onipresença do dinheiro nas interações cotidianas e a intensificação dos

“estímulos nervosos” eram o tema de um célebre ensaio que Georg Simmel havia

publicado uma década antes.12 Para Carvalho, o desejo de lucro e o consumo

desmedido iam de mãos dadas com a proliferação de ladrões de luva branca, que

elegiam caminhos delitivos para alcançar fins compartilhados por toda sociedade

burguesa. Por isso os países eleitos pelos imigrantes europeus para se “fazer a

América” – esses destinos promissórios onde tantas pessoas buscavam uma forma de

progresso econômico – eram apontados como ninhos de delinquentes aristocráticos.

A ênfase que a literatura especializada dava às metrópoles norte-americanas não era,

nesse sentido, casual: “a febre do ouro, que organiza as enormes fraudes comerciais”,

lia-se em 1899 na revista portenha Criminalogia Moderna, “é a verdadeira lagosta da

América do Norte”. O culto ao dinheiro, a “adoração ao dollar” eram o “fenômeno

mortal que exala quase toda a atmosfera criminosa desse grande e corrompido

10 “Notas del extranjero. Los ladrones estudian para robar”, Sherlock Holmes, Año II, n. 76, Buenos Aires, 10 dic. 1912, p. 46. 11 CARVALHO, Elysio de. “As nevroses e os vícios da cidade”, Boletim Policial, Ano VIII, n. 7, Rio de Janeiro, jul. 1914, p. 328. 12 SIMMEL, Georg. “Las grandes urbes y la vida del espíritu”. In: El individuo y la libertad. Ensayos de crítica de la cultura. Barcelona: Península, 1986, p. 247-261.

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289

país”.13 As revistas policiais de Buenos Aires difundiam histórias de ladroes

gentlemen norte-americanos, algumas delas acompanhadas de ilustrações, como o

caso de Sir John Bulner:

Sir John Bulner

Fonte: Boletín de Policía, Ano I, n. 11, Buenos Aires, 30 sep. 1905, p. 22.

Carvalho também via nos Estados Unidos da América o reino dos ladrões

aristocráticos e uma prefiguração da criminalidade científica que estaria invadindo

todos os demais países. Nas práticas criminais, os norte-americanos haviam sido os

primeiros a utilizar o telégrafo, o telefone, o automóvel e o aeroplano “como

instrumentos de delito”. Eram os pioneiros em “construir aparelhos especiais para

abrir os cofres-fortes, para arrombar portas de aço e para abrir fechaduras

complicadas” e, ainda, pioneiros em empregar as últimas descobertas da ciência,

fornecendo “os recursos aperfeiçoados de que se servem atualmente em todo o

mundo os pick-pockets, os cambrioleurs e os ratos de hotel”. Sem eles, concluía

Carvalho, “a arte de furtar não teria progredido tanto nem se teria tornado uma

13 STEEVENS, C. “Mundo criminal Norte Americano”, Criminalogia Moderna, Año II, n. 6, Buenos Aires, abr. 1899, p. 165.

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290

profissão tão próspera”.14 O crime de colarinho branco (white collar crime) se

converteria, a partir da década de 1930, num campo de estudos para os sociólogos da

Escola de Chicago, em especial nos escritos de Edwin H. Sutherland.15 Porém, nas

três décadas anteriores já era um tema muito presente nos discursos de policiais de

todo o continente e, em particular, nos dois maiores países da América do Sul:

Os ladrões europeus começam agora a fazer a América. O Brasil e a Argentina recebem de quando em quando a visita de alguns desses senhores. Seduzidos pela legenda do nosso progresso e da nossa atividade e, muitas vezes, impossibilitados de operarem nas cidades da Europa por se terem tornado bastante conhecidos da polícia, eles resolvem montar tenda de trabalho nas principais cidades sul-americanas. Aqui chegam, dizendo-se quase sempre hommes d’affaires, representantes de indústrias europeias ou de importantes casas comerciais, e, depois de estudar o meio onde vão agir, fazem entrar em cena as suas habilidades e as suas artimanhas.16

Além de fazer uso das inovações científicas, esses ladrões aristocratas eram

sujeitos com aparência de homens de negócios cuja fachada – segundo denunciavam

os policiais – escondia forasteiros e oportunistas que, em sociedades com um alto

grau de mobilidade demográfica e social, era muito difícil distinguir dos novos ricos

da burguesia. O grande problema da simulação de identidade era parte do jogo das

interações metropolitanas, onde os encontros entre estranhos facilitavam a

“fabricação de uma nova personalidade”, como escrevia em 1889 um redator da

revista portenha, sobre um ladrão viajante milionário de origem francesa.17

14 CARVALHO, Elysio de. “A história do diamante azul”. In: Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro: Casa A. Moura, 1921, p. 154. 15 White Collar Crime (1949) foi um dos livros mais ressonantes da série de investigações sociológicas sobre o delito que proliferaram nos Estados Unidos na primeira metade do século XX, mas já na década de 1930 Sutherland havia publicado The Professional Thief, onde enfocava o estudo do delinquente sob um ângulo muito diferente daquele das criminologias europeias da moda. SUTHERLAND, Edwin H. The Professional Thief: by a Professional Thief. Chicago: University of Chicago Press, 1937. SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime. The Uncut Version. Nova Iorque: Yale University Press, 1983. 16 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 65. 17 “La vuelta al mundo de un galeote. Las aventuras del bandido Couteseune. Pescador, guerrero, relojero, millonario y ladrón”, Revista de la Policía de la Capital, Año I, n. 15, Buenos Aires, 1 ene. 1889, p. 179.

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291

A performance pública dos delinquentes gentlemen, a construção teatral de

uma identidade forjada para obter benefícios era o espelho invertido da lógica geral

da burguesia. Por isso, quanto mais incertos fossem os limites entre os setores com

linhagem aristocrática e os novos ricos, mais fina era a linha que separava um

estelionatário de um burguês qualquer. “Talvez o verdadeiro crime do vigarista –

escrevia sarcasticamente Erving Goffman, outro sociólogo de Chicago – não seja

roubar dinheiro das vítimas, mas livrar-nos, a todos, da crença de que as maneiras e a

aparência da classe média podem ser sustentadas apenas pela gente da classe

média”.18

Assim como nas principais metrópoles dos Estados Unidos, a vida em algumas

capitais sul-americanas era uma mise-en-scène permanente, onde a construção de

uma fachada, a vestimenta e as habilidades retóricas valiam muito mais que a

linhagem social efetiva. Nesse contexto, os ladrões com aparência nobre eram um

grande problema para os vigilantes, já que, como é sabido, provinham em sua grande

maioria dos setores populares: de fato, se um agente policial se encontrasse “frente a

frente com um desses escrocs internacionais, inteligentes e astuciosos, elegantes e

audaciosos, afeitos à vida cosmopolita, conhecedor de todos os meios sociais”,

perguntava Elysio de Carvalho: “que poderá fazer o nosso pobre diabo senão deixar-

se embrulhar?”19 Por isso Rolando Pedreira, diretor da Gazeta Policial e chefe da

Quarta Delegacia Auxiliar, advertia aos novos agentes, no seu livro Lições de Polícia

Prática, que tivessem desconfiança frente a estes “tipos curiosos que são

delinquentes simpáticos à polícia: bem educados, maneirosos, agradáveis na palestra

e leais à autoridade, desde o momento em que se mostra o cavalheiro de sua árdua

missão”.20

18 GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. Nova Iorque: Anchor Books, 1959, p. 18. Sem intenção nem espaço para realizar aqui exposições teóricas, é preciso, no entanto, reconhecer que a análise que esse capítulo faz de certas práticas delitivas deve-se muito às ideias de Goffman. Vários elementos de seus escritos estão aqui presentes: a concepção teatral das “situações de interação”, a personalidade (self) como uma mise-em-scène, o valor das aparências, das fachadas, e do gestual nos encontros com outros no espaço público. Ver também sobre este tema: GOFFMAN, Erving. Encounters. Harmondsworth: Penguin, 1972, p. 17-72. 19 CARVALHO, Elysio. A polícia carioca. A criminalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910, p. 87. 20 PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática: seguida de uma galeria dos principais habitués das prisões do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Ed. da Gazeta Policial, 1935, p. 40.

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292

A centralidade da fisionomia, a vestimenta e as maneiras dos ladrões viajantes

refletia-se na expressão que Carvalho usava com maior frequência para se referir a

eles: “moços bonitos”.21 Os pseudônimos usados por esses personagens marcavam

uma diferença com os punguistas e gatunos comuns. Em seu livro de memórias sobre

a vida carioca, Mello Moraes Filho incluía uma lista dos “vulgos” mais famosos.22

Ao lado dos sobrenomes de diversos “ladrões conhecidos” (Bunda-Estragada,

Borracheira, Carvão de Pedra, Chico Bigodinho, Carne Seca, Perna Podre, etc.),

apareciam os “doutores”: Dr. Anísio, Dr. Cornélio, Dr. Cartola, Dr. Faria. Muitos

deles eram mencionados também no livro de Vicente Reis, e alguns (Dr. Braguinha,

Dr. Junqueira) reapareciam três décadas depois na galeria fotográfica “dos principais

habitués das prisões do Distrito Federal”, publicada como apêndice no livro de

Pedreira.23

O título de “doutor” era parte da carta de apresentação do ladrão gentleman

quando entrava em contato com suas vítimas, mas paulatinamente convertia-se

também em parte de seu prestígio. De fato, não eram poucos os testemunhos sobre a

preocupação de alguns ladrões em relação à fama que iam adquirindo entre seus

colegas do mundo delitivo, e fundamentalmente com a projeção de seus nomes na

imprensa. O criminologista Rudolph Reiss tratava essa questão na seção sobre a

“psicologia dos delinquentes profissionais” em seu Manuel de Police Scientifique.

Entre suas características principais, destacava a tendência ao “desperdício de

dinheiro” (o malfeitor raramente poupava e se enriquecia, era um bon-vivant que

saboreava seus luxos no presente sem pensar no futuro) e a “vaidade” (muitos

gostavam que os jornais se ocupassem deles e que seus nomes estivessem em todas

as bocas).24

21 Em seu dicionário de gíria o definia como “um rapaz inteligente, vestindo-se com certo apuro, ostentando luxo, frequentador de rodas alegres e elegantes, mas que não tem modo de vida conhecido nem decente e, entregando-se à prática de expedientes ilícitos, vem um dia cair nas mãos da polícia acusado de falcatrua”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos gatunos cariocas. Vocabulário organizado para os alunos da Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 33. 22 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904, p. 343-344. 23 PEDREIRA, Rolando. “Galeria dos principais vigaristas e batedores de carteira que infestam a Metropole brasileira”. In: Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n. 24 REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Vol. 1. Vols et Homicides. Lausanne: Payot, 1911, p. 38-41.

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293

O mentor de Reiss, Alexandre Lacassagne, havia denominado “erostratismo”

esta tendência vaidosa dos delinquentes, marcada por desejos de exibição pública e

de celebridade.25, e o mais ilustre criminologista argentino, José Ingenieros, opinava

que havia “verdadeiros Quixotes e Cyranos do crime”, que buscavam um “caminho

para a glória”, uma “vaidade criminal que visa ao público e à posteridade”.26 Esse

cultivo da aparência, da vestimenta e das maneiras como ferramenta própria de

algumas práticas delitivas, e também como parte da construção de prestígio, estará

presente neste capítulo final, onde o foco de análise se concentrará em duas figuras

destacadas dentro do mundo criminal sul-americano: o rato de hotel e os passadores

de contos do vigário.

Cenas do rat d’hôtel

Em Dentro da noite, um livro de crônicas sobre a vida noturna na Belle

Époque carioca, João do Rio incluía um relato cuja história girava em torno dos

hóspedes de um hotel situado na Rua do Catete. Certa noite, no saguão de entrada,

com seus pisos de mármore e móveis em estilo otomano, podia-se ver no hotel

“representantes de todas as classes sociais, desde a diplomacia até o trololó”.27 Mas a

trama central do relato começava na manhã seguinte, quando o narrador, enquanto se

vestia para descer para o almoço, percebeu que lhe faltava um alfinete da sua

gravata, uma peça cara feita com uma turmalina azul. Um dia depois, o hóspede

conversava com uma distinta atriz de teatro, que lhe confessou:

– Ah! Meu amigo, este hotel tem casos curiosos… Sabe que fui roubada?

25 VALETTE, Pierre. De l’érostratisme ou vanité criminele. Lyon: Storck, 1903, p. 8. 26 INGENIEROS, José. “La vanidad criminal”, Archivos de Psiquiatría y Criminología, Año IV, n. 3, Buenos Aires, 1907, p. 163. 27 RIO, João do. “Aventura de hotel”. In: Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910, p. 130.

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294

– Sério?

– Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raymundo logo no começo de nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O Dr. Pontes foi também roubado no seu portemonnaie.

– Como eu!

– O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá! 28

Até esse momento, o narrador havia mantido em segredo, por pudor, o roubo

de seu alfinete, mas depois do diálogo com a atriz, explodiu o escândalo. A outro

hóspede também haviam roubado uma madrepérola com incrustações de ouro, e o

gerente despediu o criado porque faltavam os passadores de guardanapos. Mas como

os roubos continuaram, os hóspedes entenderam que o ladrão estava entre eles e isso

desatou um estado de pânico. Ninguém conversava com os demais, e saíam de seus

quartos com seus valores no bolso. A tensão chegou ao ponto de aceitarem que a

polícia revisasse todos os quartos com a esperança de que encontrasse as joias

roubadas e descobrisse o ladrão, mas o próprio narrador terminou descobrindo que o

autor era uma das damas hospedadas, Madame de Santarém, que padecia do vício da

cleptomania.

Dois anos depois da publicação de Dentro da noite, apareceu no Rio de Janeiro

o livro Memórias de um rato de hotel. O subtítulo (“vida do Dr. Antônio narrada por

ele mesmo”) apontava a reafirmação do gênero autobiográfico, ainda que desde o

começo isso se colocasse em dúvida e muitos atribuíssem a obra ao próprio João do

Rio.29 Elysio de Carvalho apoiava essa suspeita nas páginas do Boletim Policial, num

artigo dedicado aos ladrões aristocratas.30 Nesse momento, abril de 1913, havia

28 Idem, 132-133. 29 DR. ANTÔNIO. Memórias de um rato de hotel. A vida do “Dr. Antônio” narrada por ele mesmo. Rio de Janeiro: s/d, 1912. Existem poucos exemplares desse livro. Até onde investiguei, a Biblioteca Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Casa de Rui Barbosa guardam um volume da obra em seus acervos. O exemplar desta última instituição pertencia à biblioteca pessoal de Plínio Doyle, que assegura tê-lo comprado num sebo. Quando o comprou, o livro já tinha na primeira página uma anotação manuscrita do seu dono original – Francisco Prisco –, que diz “o autor deste livro é João do Rio”. Ver a nota prévia na segunda edição: DOYLE, PLÍNIO. “De como surgiram as Memórias de um rato de hotel, do Dr. Antônio, edição de 1912”, In: MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Rio de Janeiro: Dantes, 2000, p. 9-13. 30 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 58-65.

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morrido o verdadeiro ladrão que se escondia por detrás do pseudônimo “Dr.

Antônio”: chamava-se Arthur Antunes Maciel e morreu aos quarenta e sete anos de

idade, enquanto estava preso. Havia entrado na cadeia em agosto de 1911. Entre

dezembro desse ano e fevereiro de 1912, as Memórias de um rato de hotel foram

publicadas como folhetim no jornal Gazeta de Notícias, enquanto que o livro saiu no

mês de março, e em novembro falecia seu suposto autor.31

Para Elysio de Carvalho, a biografia era obra de “um dos nossos jornalistas”,

mas a história de Dr. Antônio era verdadeiramente digna de ser contada. Perfeito

modelo do “gatuno inteligente e astucioso”, sua fisionomia era típica nesta classe de

gatunice: “singular expressão de bonomia, alguma coisa de clerical, o que, sem

dúvida, muito contribuiu, na sua agitada carreira, a inspirar confiança às vítimas”. O

rosto de Dr. Antônio mostrava a “astúcia da raposa, uma astúcia feita de hipocrisia e

de extrema cautela, insinuante e canalha”.32

Mas o que era exatamente um “rato de hotel”? Segundo contava Carvalho em

seu dicionário de gíria gatuna, era precisamente o “ladrão que tem como

especialidade o roubo e furto nos hotéis”, personagem que tinha outro

correspondente noturno na gíria dos ladrões cariocas – o “pinga de madrugada”, que

operava nos hotéis enquanto os hóspedes dormiam.33 A definição do dicionário era

pobre, mas acertava em atribuir à expressão origens francesas. O rat d’hôtel era uma

figura importante no mundo do roubo durante a Belle Époque, como se adverte nos

livros dos criminologistas Rudolph Reiss e Edmond Locard. Reiss explicava que

havia duas categorias de “ladrões de hotéis” (voleurs d’hôtels): os de “basse prège” e

os de “haute prège”. Os primeiros eram gatunos vulgares que se introduziam nas

“casas mobiliadas” para roubar artigos de baixo valor. Os segundos eram os rats

d’hôtels propriamente ditos, “infinitamente mais interessantes, mas ao mesmo tempo

muito mais perigosos”.34

31 RODRIGUES, João Carlos. “Um mistério literário”. In: MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 287. 32 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 63. 33 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Vocabulário organizado para os alunos da Escola de Polícia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, p. 37 e 39. 34 REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Op ; Cit., p. 213.

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296

O rato de hotel reunia todas as características de um ladrão internacional: se

deslocava a uma velocidade assombrosa e tinha a aparência de um “verdadeiro

gentleman”, o que o permitia evitar que sua presença chamasse a atenção entre os

outros hóspedes. Às vezes, como no caso do Dr. Antônio, trabalhavam sozinhos, mas

segundo Reiss, era comum que integrassem bandos de dois ou três ladrões e, em

alguns casos, até pertenciam a vastas redes transnacionais.35 As mulheres ladras

constituíam uma porcentagem alta no universo dos ratos de hotel. Operavam nos

hotéis de luxo das grandes cidades, onde o fluxo constante de viajantes dificultava

reconhecer a todos. Registravam-se usando nomes falsos que aparentassem uma

linhagem aristocrática e ganhavam a confiança da recepção distribuindo gorjetas com

generosidade, embora nunca em excesso para não despertar suspeitas.36

Raramente roubavam no mesmo dia em que chegavam. Aguardavam várias

jornadas de trabalho, enquanto construíam laços de confiança com os funcionários,

estudavam os hóspedes e seus pertences. O roubo ideal para o rato de hotel era

aquele que se conseguia sem a necessidade de forçar a fechadura, analisando os

movimentos das vítimas e as ocasiões em que o pessoal do hotel não circulava pelos

corredores mas muitos usavam chaves falsas e gazuas para forçar as fechaduras

durante a noite. Quando trabalhavam abrindo portas, vestiam pijamas para realizar a

operação, porque no caso de serem surpreendidos por outro hóspede simulavam

haver saído de seu quarto por um mal-estar. Além das chaves falsas, gazuas e

pijamas, completavam o instrumental umas maletas adornadas com etiquetas de

hotéis de luxo (que na “psicologia hoteleira” – segundo escrevia Reiss – era

sinônimo de viajante respeitável) e navalhas especiais para cortar as maletas das

vítimas.37, mas que nunca eram usadas para ferir alguém: como concordavam Reiss e

Locard, o rato de hotel jamais utilizava armas ou violência física em suas

operações.38

35 Sobre um bando internacional de ladrões de hotéis dava notícia a revista portenha Sherlock Holmes: “Una banda internacional de ladrones”, Sherlock Holmes, Año II, n. 62, Buenos Aires, 3 sep. 1912, p. 45-46. 36 Idem, p. 213-215. 37 Idem, p. 222-223. 38 Idem, p. 220. LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Paris: La Renaissance du Livre, 1925. p. 101.

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Os ladrões que pertenciam a associações de rats d’hôtels faziam uso de

cúmplices que ingressavam nos hotéis como visitas ou como entregadores, entrando

em seu quarto com a desculpa de deixar alguma encomenda, quando na verdade o

faziam para sair com as joias roubadas. Inclusive, algumas investigações policiais

haviam demonstrado que essas quadrilhas conseguiam introduzir cúmplices como

funcionários dos hotéis de luxo, para facilitar os roubos aos hóspedes. Reiss

explicava uma série de medidas que podiam ser tomadas para melhorar a perseguição

aos singulares ladrões, mas advertia que o rato de hotel era um “malfeitor

internacional por excelência” e que para combatê-lo era imprescindível adotar

medidas de polícia transnacional. Assim, voltava à ideia de os policiais sul-

americanos criarem gabinetes de polícia internacional, sob o modelo da União Postal,

a fim de estabelecer formalmente a troca de informações sobre os ladrões viajantes.

A fórmula repetia-se: ante o fenômeno da criminalidade internacional, era preciso

criar uma polícia técnica e transnacional.39

O livro de Reiss foi publicado em 1911, quase simultaneamente às memórias

de Dr. Antônio, e os exemplos que dava eram todos da primeira década do século

XX. Embora os ladrões de hotel de basse prège não fossem uma novidade absoluta,

o rat d’hôtel parecia ser um personagem nascido nesses anos. Personagem novo, mas

rapidamente famoso. Quando em 1925 Locard publicou Le Crime et les Criminels,

afirmava que o cinematógrafo lhe havia outorgado “uma auréola que, conhecendo-

os, não é absolutamente imerecida”: para o criminologista de Lyon, os ratos de hotel

haviam se convertido em “verdadeiros artistas”.40 A menção da indústria

cinematográfica seguramente aludia aos filmes “Rat d’hôtel” (1909) e “Rigadin rat

d’hôtel” (1912), ambas produções da exitosa companhia francesa Pathé-Frères, que

no início do século XX havia adquirido as patentes dos irmãos Lumière e contava

com centenas de salas na Europa e Estados Unidos.41

39 REISS, Rudolph A. Manuel de Police Scientifique (Technique). Op. Cit., p. 227. 40 LOCARD, Edmond. Le Crime et les Criminels. Op. Cit., p. 100. 41 O’BRIEN, Charles. “Motion Picture Color and Pathé-Frères. The Aesthetic Consequences of Industralization”. In: GAUDREAULT, André; DULAC, Nicolas; HIDALGO; Santiago (eds.). A Companion to Early Cinema. West Sussex: Wiley-Blackwell, 2012, p. 298-313. Longas-metragens estreados na América do Sul também difundiram essa figura delitiva. Por exemplo, o periódico O Jornal anunciava a estreia de Grand Hotel! (1927), drama protagonizado pela estrela Mady

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Fosse pela via da ficção ou pela própria intensificação da mobilidade delitiva, a

figura do rato de hotel chegou rapidamente à América do Sul. Em 1905, o Boletin de

Policía de Buenos Aires noticiava o caso de Juan Smith ou Schorat ou Zemet, um

alemão de quarenta e oito anos de idade que havia migrado à Argentina em 1887 e

acumulava uma dezena de prisões por furtos, destacando-se na especialidade da

“punga hoteleira”.42 O cronista enfatizava seu semblante refinado, seu cabelo e barba

loira, quase ruiva, que lhe davam um ar de pessoa rica. Por sua vez, a revista

reforçava esse relato com a inclusão de uma fotografia em que se o via vestindo um

fraque elegante, chapéu e gravata borboleta, numa imagem parecida à do célebre rato

de hotel carioca, Dr. Antônio.

“ Juan Smith”. Fonte: Boletín de Policía, año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago. 1905, p. 19 (à esquerda).

“Dr. Antônio”. Fonte: Memórias de um rato de hotel (seg. ed.), p. 293 (à direita).

Christians, em cuja trama aparecia a figura de um rato de hotel. “Grande Hotel Boulevard, Um romance cheio de emoção vivido por Mady Christians”, O Jornal, Rio de Janeiro, 17 nov, 1929. 42 “Juan Smith o Schorat o Zemet. Un profesional distinguido huésped de nuestros principales hoteles”, Boletín de Policía, Año I, n. 9, Buenos Aires, 30 ago.1905, p. 19.

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299

Em 1908, o criminologista argentino Eusebio Gómez incluiu os “punguistas de

hotel” em sua classificação dos ladrões profissionais. Tratava-se de uma “classe

elevada, quase aristocrática, no mundo dos lunfardos”.43 No estudo de suas

características principais havia um dado importante para compreender a carreira

delitiva desses ladrões. Gómez considerava que a maior parte deles tinha começado

por crimes inferiores na escala da complexidade delitiva, como o de “burrista” e

“espiantador”.44 Subiam um degrau se convertendo em “escruchantes” e no final de

sua carreira já estavam em condições de se dedicar ao complicado ofício de rato de

hotel.45

Essa análise era próxima à leitura que João do Rio fazia da vida de Arthur

Antunes Maciel. O cronista anunciava o começo do final do grande rato de hotel

brasileiro, quando caiu preso em Juiz de Fora em meados de 1911. Não ocultava sua

tristeza por essa conquista policial, já que o Dr. Antônio lhe parecia o único ladrão

digno de fama em todo país. A carreira delitiva de Maciel havia se iniciado como

punguista, ofício em que demonstrou topete, calma e elegância, a ponto de se

converter num “sportman da caça de carteiras, verdadeiramente razoável”. Sua

última metamorfose, a que o transformou num rat d’hôtel (assim, em francês,

escrevia João do Rio), constituía o cume de sua carreira, sua performance mais

elevada, um trabalho de “superior refinamento”.46

Embora João do Rio escrevesse esse relato em 1911, assegurava que conhecia

Maciel havia uns anos, quando alguém lhe indicou sua presença na Rua do Ouvidor.

O fato de que a polícia carioca o perseguisse desde os primeiros anos do século XX

não era sugerido apenas nas notas de João do Rio e na história narrada nas Memórias

de um rato de hotel, mas também no livro de Vicente Reis sobre os ladrões cariocas

43 GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. (Prólogo del Doctor José Ingenieros). Buenos Aires: Juan Roldán, 1908, p. 85. 44 Segundo o dicionário de lunfardo de Villamayor, burrear era “apoderar-se do dinheiro que contém uma caixa de balcão” das lojas, e o espiantador era o “profissional do delito que furta carros com mercadorias”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico La Bonaerense, 1915, p. 43 y 71. 45 GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. Op. Cit., p. 86. 46 RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”, A Notícia, Rio de Janeiro, 20 ago. 1911.

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300

entre 1898 e 1903. Ao lado de uma reprodução litográfica do retrato de Maciel, o

delegado explicava a forma em que o Dr. Antônio desenvolvia seus roubos:

Hospeda-se em hotéis de luxo, à porta dos quais salta de um tílburi e se apresenta, de guarda-pó, maleta e bonet de viagem para se fazer crer um capitalista chegado do interior. Num hotel do largo da Lapa fez, há anos, uma colheita de encher olho. Mas espichou-se no fim da tranquibérnia. Roubou as joias de um dos hóspedes e... de madrugada saiu à rua, tomou um carro, ordenando ao cocheiro que seguisse caminho de S. Cristóvão. Isto foi quanto bastou para atrair sobre sua pessoa graves suspeitas. Detidos os cocheiros de todos os veículos que naquela noite, àquela hora, ali estacionaram, a polícia conseguiu apanhar o fio da diligência, indo encontrar as joias, embrulhadas em jornais, sob guarda do conhecido taverneiro estabelecido nas imediações da Igrejinha.47

Esse relato apresentava os fatos numa versão muito parecida com a que Maciel

dava em suas memórias. Correspondia ao que ele – ou João do Rio – chamava o

“momento de apogeu” do Dr. Antônio, na primeira década do século XX. Ele tinha

carro próprio e se hospedava em três hotéis simultaneamente: Hotel dos Estrangeiros,

Hotel Vitória e Hotel Internacional. Havia chegado ao Rio de Janeiro em 1889, por

isso dizia-se que “o Dr. Antônio nasceu com a República”.48 Após uma série de

roubos em sua terra natal, Rio Grande do Sul, a autobiografia marca um

acontecimento que prefigurava toda sua trajetória posterior. Os membros de uma

quadrilha de ladrões internacional, com território de ação no Rio da Prata e no Brasil,

lhe propõem formar parte do grupo. Embora ele tivesse aceitado o convite num

primeiro momento, o impulso vital que o levou a escapar dessa quadrilha fugindo

para a capital federal era como um rito de passagem para o destino de rato de hotel:

trabalhar sozinho, sem empregar armas e afastado dos criminosos violentos que

menosprezava em seu relato.

O combustível que movia a vida de Dr. Antônio era o dinheiro. Não apenas

pela cobiça que o levava a roubar sem descanso nos hotéis, mas pelo uso que fazia do

produto de seus roubos. Maciel gastava suas fortunas rapidamente para conservar

47 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903, p. 68. 48 MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 61.

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301

seus hábitos de bon-vivant e para manter suas sucessivas amantes, que enchia de

joias e outros luxos. Seus amores eram, quase sempre, abruptamente interrompidos

pelas prisões e pelos períodos de reclusão nas prisões. A perseguição da polícia

carioca o levou a fugir da capital em diferentes ocasiões. Viajou a Santos no vapor

Rio Pardo e daí de trem à São Paulo, de onde retornou ao Rio de Janeiro “cheio de

dinheiro”, mas não ficou lá; passou um tempo roubando nos hotéis de Petrópolis.

Outras detenções no Rio de Janeiro determinaram que escapasse para o nordeste,

com uma primeira viagem a Salvador, mas a polícia carioca soube de seu paradeiro e

mandou telegramas à Bahia. Mesmo que não descobrissem nenhum de seus roubos,

Dr. Antônio terminou preso e teve que voltar ao Rio, de onde seguiu imediatamente

para São Paulo.49

Os intercâmbios de informações entre a polícia da capital e as polícias

estaduais começaram a obstruir o trabalho de Maciel. Pouco adiantou que nesta nova

estada em São Paulo, por volta de 1894, ele trocasse mais uma vez seu nome, agora

para Arthur Macedo. Da capital, enviaram à polícia paulista sua ficha de

identificação com retrato fotográfico. Um delegado que estava a cargo de investigar

seus roubos foi encontrá-lo com a imagem no bolso:

– Diga-me, senhor Arthur, conhece por acaso um Antunes Maciel?

– Não tenho esse prazer, respondi com sangue frio.

– É o “Dr. Antônio”!

– Que “Dr. Antônio”?

– O célebre gatuno.

– Não tenho dessas relações, respondi ao delegado. Ele tirou do bolso a fotografia.

– É este.

– Ah! Quem diria!, fiz olhando.

– É verdade. É até parecido com o senhor.50

49 Idem, p. 199-202. 50 Idem, p. 206.

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302

De nada serviram as artimanhas retóricas de Dr. Antônio. Mais uma vez, as

trocas entre as polícias mandaram-no para a cadeia. Cumpriu a pena e viajou a Porto

Alegre, mas também teve que fugir. Os destinos possíveis reduziam-se cada vez

mais: “eu era tão conhecido na polícia como qualquer funcionário ativo”; a capital e

as cidades de São Paulo e Salvador eram, para ele, “perfeitamente intransitáveis”.51

Por isso, decidiu se instalar em Recife durante um tempo, mas nunca parou: voltou a

São Paulo, ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, até que foi detido em Juiz de Fora em

1911, por um erro de cálculo durante o que seria seu último roubo. Nas memórias

que desde dezembro deste ano a Gazeta de Notícias começou a publicar, apresenta-se

esse final, pelas reflexões em tom de testamento.

O sombrio crepúsculo na Casa de Detenção, onde o repórter João do Rio teria

ido visitá-lo, era para Maciel o resultado da mesquinha sociedade carioca, uma

sociedade “armada na sua estupidez contra um homem inteligente, que sem arma,

sem nunca ter usado um revólver, sem nunca ter ferido ninguém, mostrou como

podia esvaziar o burguês feliz”.52 Claramente, essas palavras eram dirigidas contra a

mesma burguesia da qual o Dr. Antônio sentia-se filho e, por sua vez, seu chupim.

Ele pressentia em sua prisão o sabor amargo da vingança, da “raiva impotente diante

do homem inteligente”, um homem que compartilhava com todos eles seus gostos e

estilo de vida. Havia sido o fundador brasileiro do “roubo fino, o roubo gentleman,

de luva de pelica, boas roupas, bons charutos e boas mulheres”. Por isso, Maciel

concluía: “eu fui o primeiro imposto da civilização, o parasita do luxo, o rato de

hotel”.53

É difícil saber se havia sido realmente o primeiro, mas tinha razão quando

afirmava que agora havia muitos. A morte de Maciel e a publicação de suas

memórias significavam o ápice da fama do grande rato de hotel sul-americano. No

entanto, não era o fim desse tipo de criminoso viajante. Pelo contrário, os ladrões de

hotéis proliferaram nas primeiras décadas do século XX, afetando o cotidiano de um

mundo muito particular: os hotéis da Belle Époque, espaço europeizado por

51 Idem, p. 214. 52 Idem, p. 277. 53 Idem, p. 277-278.

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303

excelência, que integrava os circuitos dos modernos bulevares, restaurantes e cafés;

esse universo das avenidas de Mayo e Callao em Buenos Aires, e das ruas Ouvidor e

Catete no Rio de Janeiro estava repleto de suspeitas delitivas.

A polícia reclamava constantemente por maiores controles nos hotéis e casas

mobiliadas, começando por solicitar documentação que comprovasse a identidade

dos viajantes quando se inscreviam nos registros do lugar. Em sua passagem por

Paris, Manuel Mujica Farías havia explicado que nos pequenos povoados e aldeias

esses registros eram desnecessários, porque o movimento de passageiros era fácil de

controlar. Mas nas grandes cidades, onde a população era contada por centenas de

milhares de habitantes, onde “a afluência e o trânsito de estrangeiros” era enorme, a

única forma de evitar que os hotéis se transformassem numa “zona liberada” para

ações criminais era implementar controles rígidos aos viajantes. Em Paris, em

Buenos Aires e no Rio de Janeiro, o problema dos registros de hóspedes parecia ser o

mesmo: a resistência dos próprios viajantes em se submeterem a esses dispositivos,

percebidos como um atentado à intimidade.54

Também a própria figura do hoteleiro estava sob suspeita, como mostravam as

sucessivas disposições policiais ditadas em Buenos Aires para prevenir os abusos dos

“corredores de hotel”, e como parecia sugerir um soneto do escritor espanhol Manuel

Gil de Oto dedicado “a todos os donos de hotéis que me roubaram, ou seja, a quantos

hoteleiros conheci em minhas frequentes viagens pela Argentina”: “Solo tú no has

cambiado, tú, hotelero, que fiel a tu ancestral, como el ventero, eres pillo y ladrón

desde la cuna”.55 Esse submundo hoteleiro, habitado por uma infinidade de

personagens e suspeitas, foi invadido, em pleno apogeu das práticas do ócio e

consumo do turismo moderno, pela figura parasitária rat d’hôtel.56

54 MUJICA FARÍAS, Manuel. La Policía de París. Buenos Aires: Arnold Möen, 1901, p. 236-242. 55 GIL DE OTO, Manuel. La Argentina que yo he visto. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2010. p. 201. Sobre as disposições policiais que endureciam a vigilância sobre o trabalho dos “corredores de hotel”, ver: ROSSI, José Gregorio. “Los corredores de hotel. Explotación de los pasajeros. Cómo se les roba”, Revista de Policía, Año VIII, n. 169, Buenos Aires, 1 jun. 1904, p. 10-12. 56 Sobre os hotéis, o consumo e o turismo moderno no século XX, ver: URRY, John. “The consumption of tourism”. In: Consuming Places. Nova Iorque: Routledge, 1995, p. 129-140. URRY, John. “Culturas móviles”. In: ZUSMAN, Perla; LOIS, Carla; CASTRO; Hortensia (orgs.). Viajes y geografías. Exploraciones, turismo y migraciones en la construcción de los lugares. Buenos Aires: Prometeo, 2007, p. 17-29.

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304

Durante as décadas de 1910 e 1920, a difusão destes ladrões no Rio de Janeiro

e em Buenos Aires foi um dado registrado pelos jornais e revistas da época. Em

junho de 1911, o Correio da Manhã noticiava uma nova façanha de um rato de hotel

que saqueou dinheiro e joias de um hóspede da Pensão Verdi na Rua do Catete. O

jornal ainda sentia a necessidade de explicar a expressão e sua procedência francesa:

“uma espécie de ladrões que os habitantes da cidade luz pitorescamente denominam

rato de hotel” e que demonstravam ser “tipos inteligentes, algumas vezes mesmo

cultos”. Esse ladrão de hotel, que apesar da data não era Dr. Antônio, tinha uma

fisionomia mais parecida com a de Juan Smith: “sujeito de maneiras delicadas, alto,

elegante, cabelo e barba ruivos, muito bem trajado”. Falava inglês, francês e alemão,

vestia um refinadíssimo fraque e, cada vez que pagava uma conta, sacava as notas de

uma “bela carteira de ouro da Rússia”. Ninguém no hotel teve suspeitas até descobrir

o roubo e sua repentina saída: parecia um cavalheiro, um “verdadeiro gentleman”.57

No ano seguinte, no mesmo mês da morte de Maciel, A Época publicava outro

caso, quando ainda estavam frescas na memória carioca “as célebres tramoias postas

em prática pelo tão tristemente célebre Dr. Antônio”.58 Se avançamos um ano mais,

no jornal A Noite encontramos outro caso, passado num hotel de Petrópolis. O ladrão

fugiu para o Rio de Janeiro, mas foi detido “em companhia de mais dois ladrões

argentinos na Avenida Central”.59 As suspeitas sobre a existência de uma “quadrilha

de ladrões que operam de comum acordo nos hotéis”, parecem confirmar-se nas

notícias posteriores. O mesmo jornal informava a seus leitores, em maio de 1914,

alguns nomes dos integrantes da quadrilha e detalhes da investigação policial.60 O

repórter de O Paiz, por sua vez, punha ênfase na origem argentina deste grupo, cujo

57 “Um rato de hotel suspende com 13.000$ e jóias pertencentes a um hospede da Pensão Verdi”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 jun. 1911. 58 “Rato de hotel. Um indivíduo intitulando-se engenheiro construtor consegue iludir uma senhora roubando-lhe a importância de 600$000”, A Época, Rio de Janeiro, 21 nov. 1912. 59 “Um rato de hotel”, A Noite, Rio de Janeiro, 22 mar. 1913. 60 “Os ratos de hotel agindo. A polícia do 14ª distrito descobre uma quadrilha”, A Noite, Rio de Janeiro, 1 mai. 1914. “Os ratos de hotel. O Gutierrez ainda está na moita!”, A Noite, Rio de Janeiro, 8 mai. 1914.

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305

último roubo, no Hotel Fluminense, havia permitido à polícia prender o chefe dos

“ratoneiros emigrados” do Rio da Prata.61

Durante esta década, e em particular nos anos 1920, as notícias sobre ratos de

hotéis estavam cada vez mais centradas na presença de ladrões viajantes e bandos de

criminosos internacionais.62 “Contra os ladrões internacionais que operam nos

hotéis” era precisamente o título que a revista policial portenha elegia para difundir,

aos seus leitores, uma série de notas trocadas, em 1921, entre o chefe de polícia

Elpidio González e as autoridades da Associação Mútua de Proprietários de Hotéis,

Restaurantes, Confeitarias e Cafés de Buenos Aires. Os ladrões viajantes eram

qualificados pelo chefe como “sujeitos que além de se especializar em suas maldosas

artes, logo se encontram exercendo suas feitorias, nesta capital como no interior,

aparecem da noite para o dia em qualquer país vizinho”.63

Aqui, a temível figura do rato de hotel servia para aproximar posições entre o

grêmio dos hoteleiros e a polícia, que até então haviam mantido relações tensas. Os

registros de hóspedes baseados em documentação de identidade e passaportes parecia

a única solução possível ante a praga de rateiros internacionais. A comissão diretiva

do grêmio se reuniu em 22 de janeiro de 1921, aceitou por unanimidade a proposta e

pediu, em carta para a chefatura, que se ditasse um decreto policial regulamentando a

admissão de passageiros nos hotéis mediante apresentação obrigatória de

documentos de identidade.64

De fato, tudo parece indicar que as três primeiras décadas do século XX foram

a idade de ouro dos rats d’hôtel, e que possivelmente os controles hoteleiros

61 “Os ratos de hotel no Rio. Quadrilha chegada da Argentina”, O Paiz, Rio de Janeiro, 1 mai. 1914. 62 Ver “Um rato de hotel pronunciado”, A Noite, Rio de Janeiro, 5 fev. 1916. “Um rato de hotel”, O Paiz, Rio de Janeiro, 24 set. 1919. “O colar da baronesa Schompré”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 abr. 1920. “Um perigoso scroc nas malhas da polícia”, O Jornal, Rio de Janeiro, 18 jan. 1923. “Rato de hotel”, O Imparcial, Rio de Janeiro, 19 mai. 1924. “Rato de hotel”, O Paiz, Rio de Janeiro, 5 ago. 1925. “A ladroagem”, O Paiz, Rio de Janeiro, 21 mar. 1926. “Um rato de hotel. O hospede do aposento 239”, O Paiz, Rio de Janeiro, 29 set. 1926. “Era um rato de hotel”, O Jornal, Rio de Janeiro, 30 set. 1926. “Ficou sem as compras... Lesado em mais de dez contos de réis”, O Paiz, Rio de Janeiro, 30 set. 1926. 63 “Contra los ladrones internacionales que operan en los hoteles”, Revista de Policía, Año XXIV, n. 544, Buenos Aires, 16 feb. 1921, p. 110-111. 64 Idem, p. 111. Ver também: “Ladrones de hoteles y simples rateros. Se han efectuado varias capturas”, Gaceta Policial, Año I, n. 15, 11 dic. 1926, p. 6.

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contribuíram para marcar seu declínio. Durante os anos 1920 na América do Sul, a

fama do ladrão de hotéis passou das páginas de notícias policiais à literatura, ao

teatro e ao cinema. A revista portenha Caras y Caretas publicou vários contos,

alguns deles traduzidos, a exemplo de “O mistério do Grande Hotel” e “Katie”,

ambientados em hotéis onde irrompia o enigma do rato desconhecido.65 Também

houve alguns relatos vernáculos, como o conto que o escritor Enrique Méndez

Calzada incluiu em seu livro Jesús a Buenos Aires (1922), onde narrava a história de

um rato de hotel de nacionalidade italiana.66

No Rio de janeiro, a revista Vida Policial voltou a publicar as Memórias de um

rato de hotel, novamente em forma de folhetim, entre 1925 e 1926,67 enquanto a

Revista Criminal apresentava as novas estrelas do mundo real dos ladrões de hotéis

(Paulo Ferreira Alves, vulgo Dr. Junqueira, e Joaquim Barbedo, vulgo Rocambole

Branco) como os “discípulos” de Dr. Antônio.68 Por sua vez, os teatros cariocas

puseram em cartaz diferentes obras nas quais o rato de hotel era protagonista. Em

1920, estreava Souris d’hôtel, da companhia francesa Huguenet, comédia em quatro

atos, apresentada no Teatro Municipal para um público ilustre, que incluía o

Presidente da República, Epitácio Pessoa. Na obra, a atriz Suzanne Caulomb

encarnava o papel de uma “ratazana de hotel” que acabava seduzindo sua vítima e

este, no último ato, decidia ficar com ela e não entregá-la aos “gatos policiais”.69 Em

1925, a companhia portuguesa de operetas, de Armando de Vasconcelos, trouxe de

65 “El misterio del Gran Hotel”, Caras y Caretas, n. 1285, Buenos Aires, 19 may. 1923, p. 4-8. “Katie”, Caras y Caretas, n. 1409, Buenos Aires, 3 oct. 1925, p. 6-9. 66 MÉNDEZ CALZADA, Enrique. Jesús en Buenos Aires. Buenos Aires: Cooperativa Ed. Limitada, 1922, p. 179-196. 67 SHIZUNO, Elena. A revista Vida Policial (1925-1927). Mistérios e dramas em contos e folhetins. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 99-113. 68 “Os ratos de hotel”, Revista Criminal, n. 18, Rio de Janeiro, Julho de 1928, p. 92. “O Dr. Junqueira novamente em scena”, Revista Criminal, n. 18, Rio de Janeiro, Julho de 1928, p. 18. Sobre o Dr. Junqueira ver também seu retrato: PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n. 69 “No Municipal. Souris d’ hôtel”, O Imparcial, Rio de Janeiro, 22 ago. 1920. “A Estação Dramática Francesa no Municipal. Souris d’ hôtel”, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 ago. 1920.

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Lisboa a obra O Rato de Hotel. Era uma peça em três atos, protagonizada pela estrela

Auzenda de Oliveira e apresentada no Teatro República, com excelentes críticas.70

Esses contos e representações teatrais eram também relatos sobre a vida urbana

em Paris, em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Tais cidades minadas de ratos de

hotéis reuniam as características de uma metrópole. Cidades onde despontava o

anonimato, eram um território de múltiplos nomes, todos duvidosos. Cidades dos

pseudônimos inventados para se escapar da polícia. Cidades das notas falsas. Cidades

de propostas indecentes. Cidades das simulações e das aparências que enganavam.

Cidades onde “o homem é aquilo que veste”, segundo dizia um velho ladrão carioca.

Cidades de mil rostos desconhecidos. Eram também cidades dos vigaristas.

A performance dos trapaceiros

Em Memórias de um rato de hotel havia um capítulo dedicado a narrar

encontros com gatunos que Dr. Antônio havia conhecido durante seu primeiro

período de confinamento. Na Casa de Detenção, Maciel conversou com ladrões

célebres do Rio de Janeiro, como o punguista Zezinho e um arrombador conhecido

como Dr. Anísio, um dos “doutores” de Elysio de Carvalho, cujas andanças já

haviam sido mencionadas antes pelo delegado Vicente Reis.71 Além desses dois

ladrões, Maciel (ou João do Rio) agregava outros nomes: “conheci também o Minga-

Minga, o Paulino Ginone, o Torrenho, o Guilherme Torrada, que está muito bem em

Buenos Aires”.72

70 “Teatros. A festa de Auzenda de Oliveira”, O Paiz, Rio de Janeiro, 11 ago. 1925. “Teatros. A récita de Auzenda de Oliveira”, O Paiz, Rio de Janeiro, 18 ago. 1925. “Teatros. República. O rato de hotel”, O Paiz, Rio de Janeiro, 20 ago. 1925. 71 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 61. REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 39. 72 MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 175-176.

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Mais uma vez, outra fonte traz ao centro das atenções um homem de apelido

“Minga-Minga”. Seria este ladrão o mesmo que sob o nome de Ángel Artire aparecia

na galeria fotográfica portenha lá por 1887?73 Tratava-se, por acaso, do sujeito que

Vicente Reis indicava, por volta de 1903, como um dos estafadores que operavam no

Rio de Janeiro?74 Seria aquele que, no ano seguinte, Mello de Moraes Filho incluiu

numa lista de pseudônimos com centenas de membros do “exército dos

criminosos”?75 Não são poucos os indícios que permitem se aproximar de uma

resposta afirmativa.

Mesmo que seja difícil determinar com exatidão a data em que Dr. Antônio

conheceu Minga-Minga, sabemos que foi depois do verão de 1891 (período em que,

segundo sua autobiografia, passou um tempo em Petrópolis, previamente à sua

detenção na capital) e antes de 1894, quando Maciel empreendeu uma viagem à

Bahia, aparentemente posterior a sua liberação.76 Se tomarmos em conta alguns

dados do prontuário de Ángel Artire na polícia de Buenos Aires, resulta verossímil

que nesse tempo Minga-Minga estivesse preso no Brasil. Segundo a folha de

antecedentes penais reproduzida no álbum fotográfico de 1887, Artire havia nascido

na Itália, mas emigrou à Argentina quando jovem, aproximadamente com treze anos

de idade. Chegara em Buenos Aires no início da década de setenta e, em março de

1875, sofreria sua primeira detenção, numa delegacia seccional do centro da cidade.

Nos dez anos seguintes, ele computou outras vinte entradas registradas, nas quais se

percebe um aumento das prisões por roubo, muitas vezes com reclusão na

penitenciária, e certa diminuição das acusações por infrações menores (vadiagem,

desordem, furto).77

Nas breves linhas biográficas escritas pelo Delegado de Pesquisas José S.

Álvarez, destaca-se que Minga-Minga havia chegado a se converter em “hábil

73 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Tomo 1. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1887, p. 6-8. 74 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 140. 75 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 343. 76 MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 103 e 203. 77 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Op. Cit., p. 7-8.

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punguista”, mas que ultimamente estava mais voltado ao trabalho de “estafador”.78

Essa era – recordemos – a especialidade que Vicente Reis atribuía a Minga-Minga

em sua taxonomia dos ladrões cariocas. Mas havia nessas linhas outras três questões

relevantes: em primeiro lugar, a polícia considerava Artire um sujeito “de maneiras

um tanto cultas”; segundo, ele havia se transformado num ladrão “conhecido

demais” dentro do mundo policial; por último, como consequência de sua má fama,

estava obrigado a passar longos períodos fora da Argentina, optando por viajar ao

Brasil e ao Uruguai.

Esses dados da galeria fotográfica estavam entrelaçados: ter-se convertido em

“ladrão conhecido”, circular de um país a outro como modo de sobreviver no ofício,

profissionalizar-se como estafador e construir uma aparência respeitável para entrar

em confiança com suas vítimas: todos esses elementos se repetiam nas biografias de

estelionatários viajantes. Sobre a fama de Minga-Minga, não parece haver muitas

dúvidas. De fato, foi incluso com nome, sobrenome e apelido como personagem em

Memorias de un vigilante, o célebre livro que o próprio autor da galeria fotográfica

publicou, uma década depois, sob o pseudônimo de Fray Mocho.79 Em contraste com

a galeria de ladrões, que era uma publicação institucional, esse livro sobre o “mundo

lunfardo” transcendeu as esferas policiais, ganhou muitos leitores e numerosas

reedições. Mas foram poucos os nomes de criminosos “reais” que Álvarez decidiu

levar ao domínio da literatura. A releitura ficcional do caso de Minga-Minga era

certamente significativa.

78 Idem, p. 8. 79 ÁLVAREZ, José S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires: Vaccaro, 1920, p. 97. Os termos em que o menciona – “Ángel Artire (á) Minga-Minga” – deixam pouco lugar a dúvidas sobre ele ser ou não o mesmo personagem da galeria fotográfica de 1887.

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Ángel Artire ( a) Minga-Minga.

Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 1.

Ángel Artire ( a) Minga-Minga, retratado em abril de 1889.

Fonte: Galería de Ladrones Conocidos, Buenos Aires, 1904, ficha 171.

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Após a alusão em Memorias de un vigilante, o retrato de Minga-Minga

reaparece na “galeria de ladrões conhecidos” de 1904, também produzido pela

polícia portenha. No entanto, a nova fotografia havia sido tirada antes, em abril de

1891, durante os primeiros anos de funcionamento da Oficina Antropométrica e sob

os padrões da fotografia judiciária de Alphonse Bertillon.80 Se está fora de discussão

a notoriedade pública (ou ao menos policial) desse ladrão ítalo-portenho, por outro

lado a insistência sobre sua elegância, caráter culto e educado era ratificada pelo tom

da descrição fisionômica. Sua pele branca, seus olhos azuis, seu cabelo loiro curto e

seu bigode também loiro eram as características que, segundo Elysio de Carvalho,

completavam a estampa de um “moço bonito” e, por sua vez, sua distância dos

farrapentos ladrões de galinhas. 81

A figura do estelionatário contrastava então com o estereótipo de “rateiro”,

gatuno de pouca monta, beberrão, desordeiro e habitué das prisões, que nestas

galerias de ladrões constituíam a grande maioria. Alberto Dardo ou Fortunato Leiva,

vulgo “Negrito”, era um deles: argentino solteiro e analfabeto, aos vinte um anos

acumulava varias entradas na polícia por furtos, desordens, ebriedade, brigas e

ferimentos.82 Era apenas um exemplar entre milhares, um desses ladrões que tanto a

gíria carioca como o lunfardo argentino qualificavam como michos, mishios ou

mistongos: sujeitos pobretões, vulgares e geralmente violentos.83 “Os escruchantes

argentinos, orientais e espanhóis são tão arrojados como brutais em seus procederes”,

escrevia Benigno Lugones em 1879, e esclarecia que sempre “andam michos

80 Sobre a incorporação da fotografia de frente e perfil na Oficina Antropométrica de Buenos Aires e às “galerias de ladrões conhecidos” no início do século XX, ver: GARCÍA FERRARI, Mercedes. Ladrones conocidos/sospechosos reservados. Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos Aires: Prometeo, 2010, p. 79-101. 81 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Apontamentos”, Boletim Policial, Ano VII, n. 6, Rio de Janeiro, junho 1913, p. 146. 82 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Op. Cit., p. 208-209. 83 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 32. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo: vocabulario lunfardo. Buenos Aires: Establecimiento Gráfico La Bonaerense, 1915, p. 99.

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312

[pobres]”.84 Duas décadas depois, Fray Mocho se referia aos escruchantes como

“indivíduos de avareza, homens habituados a todas as asperezas da vida”. Esses

sujeitos – explicava – “brotam das capas inferiores da sociedade e raras vezes

alcançam outras mais elevadas”, e terminavam se convertendo em “um trapo humano

a força de se consumir nos cárceres ou nos mais baixos níveis da corrupção”.85

Segundo esses relatos, a carreira de Minga-Minga – o trajeto que o leva desde

seus inícios como punguista até sua transmutação em estelionatário profissional – era

coerente com seu perfil, com suas “maneiras cultas”, com a capacidade de ler e

escrever. Essas características eram comuns à família dos estafadores, que tinham

alguns representantes no álbum fotográfico de 1887: Manuel Rossi, vulgo Ruso,

compartilhava muitos dos traços de Ángel Artire: havia nascido na Itália, tinha barba

e bigode loiros, olhos celestes e sua instrução o permitia ler e escrever. Acumulava

quase cento e cinquenta entradas na polícia e ultimamente havia se convertido num

estafador “bastante hábil para contar histórias que passavam confiança a sua futura

vítima”, trapaças que haviam passeado por diferentes cidades sul-americanas.86

Assim como Rossi, Minga-Minga era um dos “bandidos de casaca”, como os

chamava Vicente Reis, que comungavam uma característica com os ratos de hotel:

viajavam para roubar e nos lugares onde se estabeleciam faziam uso da aparência

física e dos modos a fim de aparentar “honestidade no meio social em que vivem”.87

Reis descrevia isso nas páginas dedicadas aos “estelionatários”, e ao final da seção

incluía uma lista de nomes e alguns poucos retratos, entre eles o de Minga-Minga:

84 LUGONES, Benigno B. “Los beduinos urbanos”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Edición crítica y estudio preliminar de Diego Galeano. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2012, p. 104. 85 ÁLVAREZ, José S. (Fray Mocho). Memorias de un vigilante. Buenos Aires: Vaccaro, 1920, p. 105. 86 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887, Op. Cit., p. 33. 87 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 96.

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Retrato de Minga-Minga

Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 140.

O punguista que, em 1887, José S. Álvarez apresentava em plena metamorfose

para a figura do estelionatário, que já ao final do século XIX viajava com seus

roubos pela América do Sul, que na década de 1890 teria conversado com Dr.

Antônio na Casa de Detenção do Rio de Janeiro reaparece no início do século XX no

livro de Vicente Reis. Além de Minga-Minga, Reis narrava as histórias de outros

célebres trapaceiros nas reportagens policiais e na literatura carioca. Aparecia, por

exemplo, Emilio Silvano ou Silvani ou Salvanesqui, vulgo Narigueta, o ladrão que o

repórter do Jornal do Commercio havia reconhecido ao folhear um dos álbuns

fotográficos que Francisco Beazley presenteou a João Brasil Silvado durante a visita

oficial de 1899. Nesse momento o jornalista surpreendia-se por encontrar, na plêiade

de ladrões portenhos, algumas personalidades “tão ilustres nas crônicas da nossa

gatunagem”.88 A propósito, Narigueta figurava antes na galeria de 1887, definido

pelo Comissário de Pesquisas como um “sujeito mau e muito perigoso, dada sua

audácia e determinação”; um criminoso hábil, que para forçar fechaduras sabia

“muito de carpintaria e serralheria”, que não se juntava com “ladrões vulgares” e

roubava quase exclusivamente em joalherias.89 Enquanto, nessa galeria, Narigueta

88 “A Polícia Argentina”, Jornal do Commercio, 13 ago. 1899. 89 REPÚBLICA ARGENTINA. Galería de Ladrones de la Capital, 1880 a 1887. Op. Cit., p. 212.

Page 325: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

314

luzia mais jovem, vestindo um elegante traje, o pequeno retrato litografado que

aparecia no livro de Reis mostrava-o, mais de uma década depois, algo envelhecido.

Emilio Salvanasqui (a) Narigueta.

Fonte: Galería de Ladrones de la Capital, 1881-1891. Buenos Aires, 1881, ficha 100.

Retrato de Narigueta

Fonte: Vicente Reis, Os ladrões no Rio (1903), p. 141.

Page 326: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

315

Outro dos estelionatários famosos mencionados por Reis era Afonso Coelho,

também conhecido como o “homem do cavalo branco” e “Rocambole brasileiro”, em

referências aos folhetins que os jornais cariocas dedicaram às suas histórias delitivas

em finais do século XIX e, em particular, a uma mítica fuga da justiça paulista, da

qual escapou em 1897 montado num cavalo branco. Além das séries folhetinescas

sobre a figura de Coelho, existem relatos de João do Rio, Orestes Barbosa, Lima

Barreto e até um poema de Olavo Bilac.90 No texto sobre “o representativo do roubo

inteligente”, João do Rio o descrevia como “um exemplo admirável de gatuno

literário”, ou seja, o gatuno que conquista a atenção da sociedade com suas aventuras

“como um romance folhetim”.91

Reis atribuía a Coelho a liderança de um bando de estelionatários

especializados em distintos tipos de fraudes (criação de firmas comerciais fictícias

para a compra e venda de café, falsificação de joias, documentos e selos).92 Essa

quadrilha operava em vários lugares do Brasil, estendendo seus golpes a Santos, São

Paulo, Rio de Janeiro e diversas cidades dos Estados de Santa Catarina, Minas Gerais

e Bahia, mas um negócio mais audaz o levou também ao Rio da Prata. Essa história

foi contada por Elysio de Carvalho num folheto sobre a falsificação de moeda,

prática que o autor considerava um dos escalões mais altos da “aristocracia dos

malfeitores”. Os falsários deviam usar complexas noções científicas provenientes da

química (para tratar o ouro, a prata e o níquel) e também técnicas complexas de

gravura para a impressão das notas. Por outro lado, tendiam a constituir societas

delinquiendi, quadrilhas bem organizadas com uma alta diferenciação de tarefas.93

90 Sobre a biografia de Afonso Coelho recentemente foi publicado um livro que, mesmo escrito em estilo de romance, está baseado em fontes da imprensa e em processos judiciais do Arquivo Nacional. Ver: PAIVA, Ely Carneiro de. O Homem do Cavalo Branco. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2012. 91 RIO, João do. “O representativo do roubo inteligente”. Op. Cit. O autor, no entanto, desacreditava na fama do Coelho real. Havia-o conhecido cinco anos antes na Casa de Detenção. De fato, numa das crônicas carcerárias publicadas na Gazeta de Notícias em 1905 e compiladas em A alma encantadora das ruas, João do Rio descrevia Coelho na prisão como um sujeito vulgar e grosseiro, que escrevia umas “cartas fervorosas de regeneração”. RIO, João do. “As quatro idéias capitais dos presos” (1905). In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 224. 92 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 97-106. 93 CARVALHO, Elysio de. A falsificação dos nossos valores circulantes. Biblioteca do Boletim Policial – VII. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912.

Page 327: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

316

Essas especialidades eram múltiplas, mas no universo dos falsários havia uma

divisão fundamental entre os “moedeiros falsos”, ou seja, os fabricantes ilegais de

dinheiro, e os “passadores de notas falsas”, que se encarregavam de comprar o

produto nas fábricas e o distribuir sub-repticiamente nas cidades. Nesta lucrativa

indústria, segundo explicava Carvalho, “os fabricantes nunca são emissores, jamais

aparecem em cena e residem no estrangeiro”. 94 Aparentemente, além da divisão do

trabalho, havia uma separação territorial do negócio da falsificação, e nesse mapa

Brasil ocupava um lugar particular:

A derrama de dinheiro falso brasileiro é colossal. Quase tudo ele provêm do estrangeiro. Vem principalmente de Buenos Aires e de Montevidéu. Lá existem verdadeiras fábricas de moeda falsa. A exportação desse dinheiro se faz diretamente dentro de caixões de frutas, em latas de conservas, em pipas de vinho, etc., quando não é conduzido pessoalmente por introdutores, em viagens periódicas. Há no Brasil, em cidades como o Rio, S. Paulo e Belém, inúmeras agências de emissão. As fábricas do Rio da Prata são montadas quase que exclusivamente para a fabricação do dinheiro brasileiro.95

Esse era o circuito que seguiam os bandos de falsários como o de Afonso

Coelho, uma rota que unia as cidades brasileiras com as fábricas situadas em ambas

margens do Rio da Prata. Foi precisamente essa a rota seguida por um inspetor de

Segurança Pública da polícia paulista, Câmara Campos, que havia descoberto em

Buenos Aires e em Montevidéu várias casas de falsificação de moedas brasileiras.

Carvalho reproduzia, no final do folheto, o relatório completo deste investigador,

narrado em primeira pessoa, pouco antes apresentado à chefatura de polícia. Câmara

Campos contava como se infiltrou num ateliê de fabricação de dinheiro falso em

Montevidéu e encarregou um falsificador da produção de uma certa quantidade de

moedas. O inspetor utilizou o telégrafo para se comunicar com os agentes policiais

de Buenos Aires, pediu apoio às autoridades diplomáticas uruguaias e, apesar de

alguns obstáculos, o fabricante terminou preso.96

94 Idem, p. 4. 95 Idem, p. 6. 96 Idem, p. 13-18.

Page 328: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

317

A participação de Afonso Coelho nessas redes de falsificação espalhadas pelo

espaço atlântico sul-americano estava documentada também por algumas notícias da

imprensa. De acordo com uma crônica do jornal O Paiz, depois de haver cumprido o

período de confinamento durante o qual conheceu João do Rio na Casa de Detenção,

Coelho “andava fazendo alarde de sua reabilitação”. No entanto, a polícia e os

cronistas policiais suspeitavam do caráter espetacular de seu reestabelecimento

financeiro e do quão rápido havia adquirido nova fortuna. Descobriram que Coelho

fazia frequentes viagens a Buenos Aires e vinculavam este fato à recente

multiplicação de notas falsas de duzentos mil réis.97

Nota falsa de duzentos mil réis

Fonte: Elysio de Carvalho, A falsificação dos nossos valores circulantes (1912).

Em contraste, a prática trapaceira exercida por Minga-Minga não era a

falsificação nem a circulação de bilhetes, moedas ou selos: o estelionatário ítalo-

argentino era incluído por Reis numa lista de mais de cinquenta ladrões que se

dedicavam à especialidade denominada “conto do vigário”. Nessa lista estava, por

exemplo, o Dr. Cornélio, que Mello de Moraes Filho nomeava como “genial

vigarista”,98 e que Elysio de Carvalho descrevia com estas palavras:

97 “Ainda Afonso Coelho”, O Paiz, 13 mar. 1909. 98 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 72.

Page 329: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

318

Tinha mil modos de passar o conto. Se necessário era fazer-se padre, o Cornélio arranjava uma batina, escanhoava-se, munia-se de um par de óculos, e ei-lo reverendo. Na falta de um engenheiro para um dado serviço, ele era chamado para representar esse papel. Durante algum tempo foi comissário de higiene. Como tal operou nos bairros elegantes da cidade. (...) O Dr. Cornélio, por último, se fez advogado de porta de xadrez e chegou a ter uma grande clientela. Nada mais curioso que ver o Dr. Cornélio nas pretorias, nas delegacias ou na porta da Casa de Detenção, sobraçando uma pasta, a requerer habeas corpus, solicitar audiências, etc. (...) O Dr. Cornélio, como se vê, era de força. E basta dizer que acabou como Vidocq, chefe do corpo de agentes da polícia do Amazonas, quando chefe de polícia o Dr. Vicente Reis, ex-delegado no Rio.99

Em que consistia esta prática de “passar o conto do vigário”? Quem eram estes

sujeitos chamados “vigaristas”? Para começar, utilizemos mais uma vez o dicionário

de gírias de Elysio de Carvalho. Na entrada “conto do vigário” se lê uma definição

simples: “furto feito por meio de uma mentira artificiosa contada a um indivíduo

ingênuo”.100 A palavra “otário”, que como mencionamos era utilizada tanto na gíria

dos gatunos cariocas como no lunfardo portenho, aludia precisamente a essas vítimas

crédulas e incautas. Embora o arco semântico do termo fosse se ampliando, primeiro

às vitimas de qualquer tipo de roubo e depois às pessoas ingênuas em geral, seus

inícios estavam ligados às praticas do conto do vigário. Por isso, no dicionário de

Carvalho, a definição de otário era “homem de boa fé, ingênuo, tolo, que facilmente

cai no conto do vigário”. O mesmo acontecia com as locuções “fazer otário”

(“arranjar dinheiro cometendo o conto do vigário”) e “filar um otário” (“preparar um

indivíduo para vítima do conto do vigário”).101

À própria definição de “conto do vigário”, Carvalho adicionava uma

especulação sobre sua genealogia: “a denominação vem da Espanha e nasceu do fato

original de tratar-se sempre da história de uma herança deixada por um tio vigário a

um sobrinho órfão”.102 Vicente Reis e Mello de Moraes Filho aderiram a essa

conjectura sobre as origens hispânicas do conto do vigário, que – segundo a opinião

99 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”. Op. Cit., p. 62. 100 CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 16. 101 Idem, p. 22, 23 e 33. 102 Idem, p. 16.

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319

deste último – havia chegado ao Rio de Janeiro nas últimas décadas do século

XIX. 103 Essa datação coincide com uma das primeiras notícias sobre os vigaristas

que circulou em Buenos Aires – um folhetim escrito em 1879 por Benigno Lugones

e publicado no jornal La Nación.104 Embora esse escritor não utilizasse ainda a

expressão “cuento del tío” (versão platense do conto do vigário), oferecia um relato

minucioso sobre alguns roteiros de trapaças que, no século XX, se popularizariam

através das letras do cancioneiro popular, do tango e, claro, da literatura policial.105

Lugones chamava os estelionatários de “cavalheiros da indústria”, um conceito que

na Espanha havia sido utilizado, ao menos desde inícios do século XIX, para

designar os vigaristas.106

A hipótese da linhagem espanhola é difícil de corroborar, mas o certo é que

não eram os escritores cariocas os únicos que viam nessa novidade um mal

importado do estrangeiro. Menos importante que determinar sua origem é talvez

reconhecer a notável circulação internacional desta prática que os franceses

chamavam “vol à l’américaine”, e os norte-americanos “Spanish prisoner game”. Os

cruzamentos atlânticos e, em geral, as viagens de longa distância eram uma condição

de possibilidade da arte dos vigaristas. Ao contrário da falsificação de moeda,

fenômeno bem mais recluso, vinculado às quadrilhas que operavam em sótãos

secretos, o “cuentero” fazia um trabalho de superfícies. Seu campo de ação eram os

trens, os bares, as lojas, os bancos, a rua. Era, por fim, a cidade toda. E nas próprias

103 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 46. REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 111. 104 LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Op. Cit., p. 113-128. Em 1932, o escritor Félix Lima dava uma versão parecida sobre suas origens, quando afirmava que o “conto do vigário” era um invento importado da Europa que “atravessou o charco [o oceano atlântico] durante a presidência de Sarmiento, ao se intensificar a imigração de italianos e espanhóis”. LIMA, Félix. “El cuento del tío también tiene su historia”, Caras y Caretas, n. 1736, Buenos Aires, 9 ene. 1932, p. 81. 105 Para uma visão do tema em intervalos temporais mais amplos, ver a compilação: SCHNIRMAJER, Ariela (ed.). ¡Arriba las manos! Crónicas de crímenes, “filo misho” y otros cuentos del tío. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010. 106 Veja, por exemplo: FORONDA, Valentín de. Cartas sobre la policía. Madrid: Imprenta del Cano, 1801, p. 115. Em seu livro sobre trapaças perpetradas em ambientes portuários, Herman Melville empregava a locução “chevalier d’industrie” como sinônimo de vigarista. MELVILLE, Herman. The confidence-man: his masquerade. Londres: Longman, 1857, p. 2.

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320

cidades, os rostos dos vigaristas e os roteiros de seus contos terminavam se fazendo

conhecidos. Quando isso sucedia, era preciso migrar para outro lugar.107

Vicente Reis vinculava a origem da expressão “conto do vigário” à existência

de quadrilhas de escroques espanhóis que elegiam, entre seus membros, alguns

representantes para trabalhar no exterior. Para reforçar esse argumento, Reis

mostrava exemplos das cartas chegadas da Espanha, e redigidas em castelhano, com

selos de supostas igrejas paroquiais em Pamplona ou de um colégio de meninas órfãs

de Madri, enquanto outros selos simulavam ser escudos de corpos militares,

escrivanias e tribunais.108 A história do tio vigário não era a única trama utilizada no

Brasil por esses bandos de estelionatários hispânicos, como explicava Mello de

Moraes Filho. Na realidade, esta “forma primitiva do conto do vigário, importado

industriosamente pelos espanhóis da República Argentina”, havia mudado e

incorporado múltiplas versões “de acordo com as circunstâncias e os diversos

ambientes”.109

De fato, em Buenos Aires, a versão mais conhecida do cuento del tío não

incluía a figura do vigário, nem apelava necessariamente para a piedade ou a

caridade cristã. O que movia o funcionamento do conto era o secular e profano

desejo de lucro.110 Desejo de lucro experimentado por quem? Grande parte dos

relatos sobre os vigaristas assinalam como vítimas privilegiadas os “recém-

chegados” à cidade, imigrantes estrangeiros provenientes de pequenos vilarejos da

Europa ou camponeses que se mudavam do interior para as metrópoles. Todos eles

comungavam um mesmo desconhecimento dos códigos, regras, cultura e linguagem

107 Os alcances territoriais dessa prática são até agora incertos, de acordo com escassas pesquisas que existem sobre sua presença em outros países. Pablo Piccato analisou um caso de dois estelionatários, um argentino e outro espanhol, que levaram seus “contos do vigário” à Cidade do México por volta de 1911. Talvez o mais interessante deste caso seja que quando a polícia os prendeu, encontrou no hotel vários manuscritos que continham roteiros e instruções precisas para a dramatização do conto. PICCATO, Pablo. “Guión para un engrupe: engaños y lunfardo en la ciudad de México”. In: Caimari, Lila (comp.). La ley de los profanos. Delito, justicia y cultura en Buenos Aires (1870-1940). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 135-172. 108 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio, 1898-1903. Op. Cit., p. 110-130. 109 MELLO MORAIS FILHO, Alexandre J. de. Factos e Memórias. Op. Cit., p. 48. 110 Veja, por exemplo, as descrições que alguns criminologistas argentinos fizeram dos conteiros do vigário baseados nas observações e diálogos com ladrões presos: GÓMEZ, Eusebio. La Mala Vida en Buenos Aires. Op. Cit., p. 90-91. DELLEPIANE, Antonio. El idioma del delito. Contribución al estudio de la psicología criminal. Buenos Aires: Arnoldo Moen, 1894, p. 116-122.

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321

urbana. Segundo Benigno Lugones, uma das trapaças mais comuns em Buenos Aires

era a de fazer passar uma nota brasileira de quinhentos réis como se fosse quinhentos

pesos argentinos, quando na realidade o valor de cada uma dessas notas brasileiras

equivalia aproximadamente a seis pesos.

Dessas artimanhas com o dinheiro são alvo, segundo Lugones, – as “gentes

recém-chegadas do estrangeiro ou da campina”.111 A parábola do imigrante enganado

estava presente no mundo popular portenho, como testemunha a letra desta canção

sobre um tal Juan Ghigliani que tentou enganar ao “gil” (otário) Félix Cascallares,

mas que falhou pela intervenção de um agente da polícia de investigações:

Recién llegado de “ajuera”, con la plata en el tirador, halló, como si lo viera, en seguida un protector. Y estaban en las gestiones, de la entrega del legado, cuando el de Investigaciones le fue a escupir el asado. Se salvó los dos millares el “gil” Félix Cascallares, y se morfará la “cana” el cuentero Juan Ghigliani.112

Em Buenos Aires, abundavam os relatos sobre a malevolência dos cuenteros

del tío e sobre seu oposto: a inocência dos “recém chegados” que caíam na trapaça.

O perigo dos estelionatários criollos atemorizava tanto os imigrantes italianos que

um dos manuais distribuídos gratuitamente por compatriotas, oferecendo conselhos

para a viagem ultramarina e a chegada à Argentina, advertia sobre a necessidade de

se por “em guarda contra os embusteiros”. Era melhor não confiar em ninguém salvo

quem vestisse uniforme de autoridade pública, e não se prestar a escutar “histórias

maravilhosas” e “casos piedosos” de interlocutores desconhecidos. Segundo um

desses manuais, publicado em 1918, essas tretas que os jornais argentinos relatavam

cotidianamente sob o nome de “cuentos del tío” eram conhecidas pelos italianos

como “truffa all’americana”.113

111 LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Op. Cit., p. 114-115. 112 SALDÍAS, José A. “Cuento del tío”. In: La inolvidable bohemia porteña. Buenos Aires: Ed. Freeland, 1968. 113 Ver: Manual del inmigrante italiano. Traducción, selección y prólogo de Diego Armus. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983, p. 52-53. Outro relato de um imigrante italiano vitimado por um cuentero del tío em Buenos Aires, com o conto do bilhete de loteria, aparece em uma

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322

A opinião que Elysio de Carvalho tinha dos vigaristas não distanciava muito

deste olhar sobre a inocência das vítimas, embora pusesse o foco nos casos de

pessoas chegadas do interior do Brasil à capital: “o conto do vigário passado a

ingênuos capitalistas do interior é um fato da crônica diária”, escrevia Carvalho.114

No entanto, a própria revista onde publicava estas ideias, o Boletim Policial,

noticiava casos onde a interação entre o vigarista e sua vítima não parecia se ajustar à

ideia do trapaceiro avarento contra o inocente incauto.

Um relatório do quarto distrito policial do Rio de Janeiro, por exemplo,

narrava uma trapaça cometida por “uma quadrilha de ladrões à americana, ou do

conto do vigário”. Nesse caso, um antigo comerciante de sobrenome Bittencourt

havia pactuado com os vigaristas a compra de uma certa quantidade de notas falsas,

equivalentes a uma soma superior à que ele pagaria com dinheiro corrente. Fez-se a

transação, mas quando Bittencourt abriu em sua casa o embrulho, “viu ser aquilo um

paco, habilmente arranjado com pedaços de jornais”.115 Embora o comerciante

tentasse denunciar o caso com argumentos precários e intricados, a polícia

assegurava haver descoberto a trama dos fatos e se negava a caracterizar o caso como

“estelionato”, porque Bittencourt não havia sido, segundo os investigadores, vítima

de uma trapaça, mas “vítima de sua ambição criminosa”.116

O ardil aplicado com a ajuda do “paco” era parte do universo portenho dos

cuenteros del tío e também do cardápio de enredos dos vigaristas cariocas, embora o

conto em si não incluísse tios nem vigários. Sua existência tanto em Buenos Aires

como no Rio de janeiro era um dos muitos testemunhos da notável circulação desses

contos no espaço atlântico sul-americano. Os jornalistas e alguns policiais escritores

canção popular coletada em: NAVA, Juan de. El payador oriental con las nuevas inspiraciones de Juan de Nava. Buenos Aires: s/d, 1898, p. 24-28. 114 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Op. Cit., p. 61. REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 60. 115 Segundo Carvalho, a palavra paco era outro dos empréstimos do lunfardo à gíria carioca: “invólucro de papéis inservíveis simulando pacotes de dinheiro, de que se servem os gatunos para passar o conto do vigário”. CARVALHO, Elysio de. Gíria dos Gatunos Cariocas. Op. Cit., p. 35. A definição do dicionário de lunfardo de Villanayor era quase uma reprodução textual do anterior: “pequeno envoltório ou pacote que aparenta conter muita quantidade de dinheiro (...) com o que operam os profissionais do delito de categoria cuenteros”. VILLAMAYOR, Luis C. El lenguaje el bajo fondo. Op. Cit., p. 104. 116 Ver “Relatórios. 4º Distrito Policial”, Boletim Policial, Ano II, n. 3, Rio de Janeiro, maio de 1908, p. 134-135.

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323

demostravam uma mesma atitude sobre a gíria dos ladrões e sobre os roteiros dos

vigaristas: era preciso difundir as palavras desconhecidas e revelar a trama recorrente

dos contos para que as vítimas potenciais pudessem se prevenir através da leitura e,

obviamente, através do efeito multiplicador das divulgações orais.

A popularidade dos roteiros era proporcional a sua dispersão territorial, mas os

contos do vigário não funcionavam em qualquer lugar. A primeira condição do

espaço onde poderia se desdobrar a performance da trapaça era que os encontros e

negociações cotidianas estivessem atravessados pelo anonimato ou, dito de outra

maneira, era preciso que no universo mental das pessoas envolvidas existisse a

possibilidade de se construir um laço de confiança, mais ou menos fugaz, com um

desconhecido. A segunda condição era a intensificação dos intercâmbios monetários,

as expectativas depositadas na cidade como um espaço de oportunidades para obter

lucros rápidos e fáceis.117 “Na maior parte dos logros”, escrevia Benigno Lugones, “o

ladrão comove profundamente o ânimo do otário excitando a fibra mais sensível da

organização humana: a cobiça, a sede de ouro”.118

A circulação sul-americana dos contos do vigário, a centralidade das interações

cotidianas entre anônimos e do dinheiro como o eixo desses encontros são percebidas

com muita clareza em outro dos enredos famosos: o conto do “filo misho”, também

conhecido como a “guitarra”.119 Em 1879, Lugones já dava notícias sobre sua

existência em Buenos Aires, considerando-a como a trapaça mais sofisticada de

todas. Tratava-se de uma falsa máquina falsificadora de moedas, geralmente de libras

esterlinas. O trabalho do vigarista consistia em convencer o interlocutor a participar

investindo numa suposta quadrilha de falsários. A guitarra – também chamada de

117 Sobre os efeitos da irrupção do dinheiro nas interações cotidianas, ver: SIMMEL, Georg. Filosofía del dinero. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1977; e também: FRISBY, David. Paisajes urbanos de la modernidad. Exploraciones críticas. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2007, p. 119-177. 118 LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Op. Cit., p. 122. 119 A presença desse conto em Buenos Aires, desde finais do século XIX, foi analisada por CAIMARI, Lila. La ciudad y el crimen. Delito y vida cotidiana en Buenos Aires, 1880-1940. Buenos Aires: Sudamericana, 2009, p. 80-84; e também por GALEANO, Diego. Escritores, detectives y archivistas. La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910. Buenos Aires: Biblioteca Nacional/Teseo, 2009, p. 102-104. Sua existência no Rio de Janeiro e São Paulo durante os anos 1930 e 1940 foi documentada por: DIAS JUNIOR, José Augusto. Os contos e os vigários: uma história da trapaça no Brasil. São Paulo: Leya, 2010, p. 144-151.

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324

trun-trun – era esta máquina que, após introduzir os aparentados materiais para

produzir moedas, lançava libras esterlinas, que em realidade eram verdadeiras e

estavam depositadas na máquina de antemão.

“Trun- trun” (à direita), Álbum da Seção de Fraudes y Estelionatos da Polícia da Capital

Fonte: BNA, Colección Fotografías (c. 1912)

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325

No conto do filo misho, ou guitarra, o vigarista terminava por convencer seu

interlocutor sugerindo que poderia ficar com as libras esterlinas e tentar trocá-las em

um banco. Claro que, como as moedas eram autênticas, o enganado voltaria

acreditando na história e disposto a investir no negócio. Quando esse dinheiro

aparecia, o bando e sua engenhosa falsa máquina de falsificar moedas desapareciam.

Segundo concluía Benigno Lugones:

A guitarra funcionando, produz no ânimo do otário tal impressão que um proprietário da cidade de Córdova vendeu duas casas daquela cidade e uma estância na província de mesmo nome, cujo lucro foi parar em mãos dos estafadores mediante o trabalho da máquina, com a que o inocente cordovês acreditava haver resolvido o problema dos alquimistas.120

Um escritor da polícia portenha que descrevia esse conto na década de 1930, já

sob o nome popular de “filo misho”, observava mais detalhadamente as

características dos vigaristas. A maior parte dos estelionatários dedicados à

“guitarra” era de estrangeiros e deviam ser capazes de demonstrar “uma inteligência

exímia”, falar a gíria dos especialistas em química, gravura e arte fotográfica. Por

isso, era necessário que parecessem homens maduros (maiores de trinta e cinco

anos), embora, ao contrário do rato de hotel, não tivessem que simular riqueza

pessoal. O êxito da transação do filo misho dependia muito da capacidade do

vigarista para convencer ao investidor ambicioso de que o dinheiro se multiplicaria

graças a suas capacidades intelectuais e a sua criatividade.121

Ainda que os quarenta casos reconhecidos como vigaristas nos processos de

expulsão de estrangeiros nem sempre ofereçam detalhes de suas tramas, ao menos

permitem elaborar algumas conjecturas sobre o perfil destes sujeitos. Dois terços

desta amostra eram indicados como imigrantes provenientes da Península Ibérica,

proporção próxima à do universo geral dos “indesejáveis” submetidos às leis de

120 LUGONES, Benigno B. “Los caballeros de la industria”. In: Crónicas, folletines y otros escritos (1879-1984). Op. Cit., p. 127. 121 BARRÉS, Manuel. “Filo Misho”. In: El hampa y sus secretos. Buenos Aires: Imprenta López, 1934, p. 139-141.

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326

expulsão e, em particular, aos expulsos do Brasil por “delitos comuns”, segundo a

amostra de Lená Medeiros de Menezes.122 A maior parte dos vigaristas restantes era

do Rio da Prata, uruguaios, argentinos e, frequentemente, de nacionalidade vacilante

entre os dois países. Eram, também, pessoas do sexo masculino em sua esmagadora

maioria.

Em outros aspectos, no entanto, existiam contrastes relevantes com o resto dos

ladrões urbanos. Um dos dados mais chamativos era a alfabetização: excetuando-se

dois casos, todos os demais vigaristas sabiam ler e escrever.123 Além disso, sua

média de idade era alta (trinta e seis anos) e somente um perfil encontrado tinha

menos de 20 anos. Se prestarmos atenção aos prontuários, parece bastante claro que

o perfil etário dos vigaristas estava vinculado ao desenvolvimento das trajetórias

delitivas. As folhas de antecedentes tendem a mostrar acusações prévias por simples

roubos e furtos, enquanto que o estelionato irrompe mais tarde, intermediando a

“carreira”.

A maior parte dos estelionatários expulsos se dedicava a “passar o conto do

vigário”, em seus múltiplos enredos e versões. Eram vigaristas de rua que faziam uso

122 MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996, p. 127-150. Neste ponto, a comparação com o trabalho de Lená Medeiro de Menezes tem algumas limitações, já que ela divide os processos de expulsão de estrangeiros em três grandes grupos: em primeiro lugar, expulsos do “mundo do trabalho” (anarquistas e comunistas); em segundo, expulsos do “mundo do crime” por delitos vinculados à pobreza (aqui inclui os vigaristas, o que já é – em si mesmo – muito discutível); e por último os “criminosos internacionais”, que segundo a autora eram quase exclusivamente cafetões. No entanto, a mostra de quarenta vigaristas selecionados neste trabalho inclui casos de anarquistas espanhóis acusados de passar o conto do vigário e outros aos quais a polícia combinava imputações de estelionato e proxenetismo. Veja, por exemplo, os casos de Hugo Ottoni, argentino acusado pela polícia paulista de cafetão, estafador e vendedor de drogas (AN, Fundo IJJ7 155) e do russo Isaac Kuteck, apontado como vigarista e grevista (AN, Fundo IJJ7 157). Por isso, os 248 casos de “ladrões comuns” selecionados por Medeiros de Menezes diluem os vigaristas num conjunto cuja delimitação resulta problemática. Este tipo de intercalações complexas também se percebe nas expulsões de estrangeiros decretadas na República Argentina. Ver: AGN, Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y Reservados, Caja n. 14. Policía de la Capital Federal, Nota al Ministro del Interior solicitando decretos de expulsión de extranjeros, 2 fev. 1932. Prontuario n. 99.851, Sección Orden Social e Prontuario n. 65.131, Sección Robos y Hurtos, ambos pertencentes a um anarquista que formava parte de uma quadrilha de “pistoleros”. Também: Policía de la Capital Federal, Nota al Ministro del Interior solicitando decretos de expulsión de extranjeros, 31 may. 1935. Prontuario n. 51.473, Sección Robos y Hurtos (“Blanco Varela”) e Prontuario n. 51.473, Sección Robos y Hurtos (“El Brasilero”). 123 Segundo o trabalho de Medeiros de Menezes, 20,2% dos ladrões eram analfabetos, mas – seguramente – se separássemos os vigaristas e outros delinquentes de perfil mais alto, a porcentagem seria maior. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis, Op. Cit. p. 144.

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327

de um rico repertório de contos, entre os que estavam o filo misho, o paco e outros,

narrados por Vicente Reis como o “conto da barra”, a “cana falsa” ou o “conto do

bilhete de loteria”.124 Alguns desses vigaristas tinham uma longa experiência no uso

das tramas. Era o caso dos irmãos Rodrígues, portugueses, que partindo do Rio de

Janeiro haviam levado seus contos a São Paulo, Curitiba, Salvador e Recife.

Expulsos em 1928, apareciam na Revista Criminal como parte de um seleto grupo

dos oito vigaristas mais célebres do Brasil.125 Também era o caso de Alfredo dos

Santos, uruguaio, mencionado na revista policial carioca de 1920 já como um

conhecido vigarista e expulso em 1928, aos quarenta e nove anos de idade. 126

No entanto, nem todos os estelionatários dos processos de expulsão faziam uso

da modalidade do conto do vigário, embora nos prontuários e nas acusações se

usasse a expressão “vigarista” para qualificá-los como sinônimo de trapaceiro.

Alguns haviam inventado suas próprias trapaças, segundo ideias inovadoras forjadas

para a ocasião. Em 1907, por exemplo, a um italiano de sobrenome Bellucio

acusaram de vender uma bebida batizada “licor dos amantes”, difundida em

propagandas nos jornais do Rio de Janeiro.127 Bellucio foi expulso como vigarista

estrangeiro, assim como um imigrante turco conhecido como João José Bacos, que se

fazia passar pelo representante de um asilo de órfãos e pobres perseguidos pela

Guerra Santa.128

Todas as formas de estelionato e todos os contos do vigário tinham, no entanto,

algo em comum: a simulação era algo mais que uma simples “trapaça”. Era uma

verdadeira performance na qual os sujeitos que se encontravam, e não se conheciam

previamente, confiavam que as coisas eram como aparentavam ser. Mesmo quando o

vigarista soubesse, deliberadamente, que estava mentindo, o conto do filo misho, a

124 REIS, Vicente. Os ladrões no Rio. Op. Cit., p. 134-139. 125 “Ladroes vigaristas”, Revista Criminal, Ano II, n. 17, Rio de Janeiro, Junho 1928, p. 45. Veja o processo de expulsão em AN, Fundo IJJ7 136 (1928) e o retrato de ambos reaparecem em: PEDREIRA, Rolando. Lições de Polícia Prática. Op. Cit., s/n. 126 “Ladrões conhecidos”, Revista Policial, Ano I, n. 12, Rio e Janeiro, 31 mar. 1920, p. 17. AN, Fundo IJJ7 127 (1928). Processo de expulsão de Alfredo dos Santos. Também aparecia em “Ladrões vigaristas”, Revista Criminal, Ano II, n. 19, Rio de Janeiro, Agosto 1928, p. 36. 127 AN, Fundo IJJ7 131 (1907). 128 AN, Fundo IJJ7 164 (1927).

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328

falsa máquina falsificadora mostra que a vítima tinha as mesmas expectativas que o

golpista: ambos jogavam o mesmo jogo da cobiça.

“Perpetrado o conto do vigário, com o prêmio em moeda falsa, houve todavia o

cuidado da mise-en-scéne”, escrevia em 1922 José Madeira de Freitas sob o

pseudônimo de Mendes Fradique.129 A atuação, a performance teatral da trapaça ia

muito além do mundo criminal. A construção cênica da personalidade – como

explica Richard Sennet – não era uma novidade das sociedades modernas, mas a

urbanização e a formação de grandes cidades tornaram possível uma nova concepção

do espaço público, entendido como um lugar de encontro entre estranhos.130 Nesse

espaço, a fisionomia e a arte da retórica adquiriam um papel central. Os vigaristas

eram, sobretudo, grandes oradores e as palavras eram uma ferramenta de trabalho.

Mas não eram as palavras do jargão dos gatunos e punguistas. Os “moços bonitos” e

“doutores” usavam outro vocabulário e outras estratégias retóricas. “Possuem

refinada cultura e ampla ilustração”, escrevia o policial portenho Manuel Barrés:

“relacionam-se com a classe elevada e estão sempre atualizados com e sobre ela”.131

“E faço de gentleman”, dizia Dr. Antônio, “o andar, a atitude dos ombros, a

expressão do olhar, tudo isso é definitivo; uma barba e um bigode com um par de

óculos azuis bastam para o resto”.132

Os ratos de hotel e os vigaristas haviam compreendido que a construção do

personagem, da máscara cênica dominava as interações cotidianas nas metrópoles.

Era em vão buscar uma autenticidade interior por trás da fachada. Tudo se jogava no

nível epidérmico: como dizia Goffman na frase citada na epígrafe, a natureza mais

profunda de um indivíduo não ia muito além de suas múltiplas máscaras, da

espessura da pele de seus disfarces.

129 MENDES FRADIQUE. Contos do vigário. Rio de Janeiro: Soria & Boffoni Ed., 1922, p. 10. 130 SENNET, Richard. El declive del hombre público. Barcelona: Península, 2001, p. 113-150. 131 BARRÉS, Manuel. “Ladrón de hotel, de frac o levita, de valija y de abordo”. In: El hampa y sus secretos. Op. Cit., p. 134. 132 MACIEL, Arthur Antunes (Dr. Antônio). Memórias de um rato de hotel. Op. Cit., p. 215.

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Epílogo

O homem de negócios ideal é como o criminoso ideal, por seu aproveitamento inescrupuloso de bens e pessoas para seus próprios fins, pela insensibilidade com os sentimentos e desejos dos outros, e com os efeitos futuros de suas ações; somente se diferencia por possuir um sentido mais agudo do status e por trabalhar com uma visão de longo prazo.

Thorstein Veblen, The Theory of the Leisure Class (1899).1

“ Aquellos solitarios lunfardos internacionales”

“Vivemos na era do crime internacional”, disse recentemente um sociólogo

inglês, “mas, talvez, sobreestimamos a novidade da situação”.2 Depois da Segunda

Guerra Mundial, as numerosas tentativas para estabelecer mecanismos de cooperação

policial convergiram em uma nova instituição: Interpol. A Organização Internacional

de Polícia Criminal havia sido criada no período entre guerras, com sede em Viena,

mas em 1938 foi tomada pelo nazismo e a maior parte dos países integrantes

terminou retirando-se.3

1 VEBLEN, Thorstein. The Theory of the Leisure Class. New York: Mentor Book, 1912, p. 237. 2 KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave, 2010, p. 1. 3 DEFLEM, Mathieu. Policing World Society: Historical Foundations of International Police Cooperation. New York: Oxford University Press, 2004, p. 111-140.

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330

Em uma temporalidade de curta duração, as origens da Interpol remetiam a

uma série de encontros policiais celebrados na década de 1920: a própria

Conferência Sul-Americana de Buenos Aires, a International Police Conference de

Nova York (1922) e, finalmente, as reuniões de Viena que, em 1923, derivaram na

formação da International Criminal Police Comission. No entanto, alguns autores

reconheceram que este processo deve ser pensado a longo prazo, em uma linha de

discussões que se inicia com os congressos penitenciários e criminológicos do último

quarto do século XIX e culmina em 1914, pouco antes do começo da Primeira

Guerra Mundial, quando se realiza em Mônaco o primeiro Congresso Internacional

de Polícia Criminal.4 No mesmo sentido, os historiadores dos métodos de

identificação e documentação para o controle dos viajantes mostraram que os

dispositivos de vigilância da mobilidade territorial das pessoas, cuja máxima

sofisticação ficou plasmada nos aeroportos, também têm uma rica genealogia.5

No entanto, os estudos sobre estes encontros situados nos inícios do processo

de internacionalização policial revelam que, ao menos até meados do século XX, o

projeto de uma “União Policial Universal” mal aflorava por fora das dissertações.

“Como organizar essa polícia?”, perguntava Reiss em suas aulas aos vigilantes de

São Paulo: “estabelecer-se-ia um escritório de polícia internacional encarregado de

receber e fornecer informações sobre todos os criminosos que saíssem do seu

território de ação habitual”.6 Esta ideia – como vimos – já havia sido esboçada em

1901 por Juan Vucetich no Congresso Científico de Montevidéu e reiterado pelos

4 BACH JENSEN, Richard. “The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the Origins of Interpol”, Journal of Contemporary History, Vol. 16, n. 2, Apr. 1981, p. 223-347. ANDREAS, Peter; NADELMAN, Ethan. Policing the Globe. Criminalization and Crime Control in International Relations. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008, p. 59-104. DEFLEM, Mathieu. Policing World Society. Op. Cit., p. 97-110. 5 Ver, por exemplo: TORPEY, John. The Invention of the Passport. Surveillance, Citizenship, and the State. Cambridge : Cambridge University Press, 2000. NOIRIEL, Gérard. “Les pratiques policières d’identification des migrants et leurs enjeux pour l’histoire des relations de pouvoir. Contribution à une réflexion en longue durée”. In: BLANC-CHALEARD Marie-Claude; DOUKI, Caroline; DYONNET, Nicole; MILLIOT, Vincent (eds.). Police et migrants en France, 1667-1939. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2001, p. 115-132. ABOUT, Ilsen. “Portraits d’étrangers. L’identification photographique des migrants en France (1870-1940)”. In: AMAR, Marianne; POINSOT, Marie; WIHTOL DE WENDEN, Catherine (eds.). À chacun ses étrangers? France-Allemagne de 1871 à aujourd’hui. Paris: Actes Sud/Cité Nationale de l’Histoire de l’Immigration, 2009, p. 119-121. 6 REISS, R.A. Polícia Técnica. Resumo das conferências realizadas em S. Paulo. Biblioteca do Boletim Policial: IXI. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 41.

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331

vucetichistas Félix Pacheco no Congresso Científico do Rio de Janeiro (1905) e Luis

Reyna Almandos no Congresso Americano de Buenos Aires (1910).7 O sonho de

uma polícia mundial estava longe de um terreno firme, mas, como sucedeu com as

conferências sul-americanas de 1905 e 1920, todos esses encontros conseguiram

traçar algumas rotas onde a circulação de informações, tecnologias e funcionários

policiais efetivamente se intensificaram.

Os discursos que justificavam estes encontros eram solenes e alarmantes: “O

crime é uma indústria internacional”, escrevia sem vacilações Elysio de Carvalho.

“Os criminosos de hoje não tem pátria, são cosmopolitas, dão-se bem em Paris como

em Berlim, viajam com uma facilidade espantosa, e onde encontram trabalho, aí se

instalam”.8 Seus criminalistas prediletos, cujas palavras Carvalho repetia ao pé da

letra e sem citar, se encarregavam de difundir esse temor pelo mundo. Locard, por

exemplo, dizia:

O desenvolvimento contínuo, o progresso constante, a cotidiana extensão do crime internacional, é um fato que domina hoje os estudos criminológicos. A existência de quadrilhas mais numerosas, mais habilmente organizadas, com um capital próprio que invejaria qualquer casa comercial, conhecedoras das mais recentes descobertas da ciência e da indústria, poliglotas, capazes de se deslocar e estabelecer redes, com ramificações, receptadores, indicadores e cúmplices em todos os meios e todos os mundos, é um perigo social de primeira ordem, que exige para seu combate uma polícia adaptada às novas condições da luta. (...) Ao crime internacional, o mais perigoso e o único constantemente impune, é preciso contrapor uma polícia internacional.9

7 PACHECO, Felix. “A excelência do sistema datiloscópico Vucetich e a criação dos gabinetes inter-continentais”. In: TERCEIRO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO AMERICANO. A Polícia Argentina e a Polícia Brasileira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 17-45. REYNA ALMANDOS, Luis. Unión Policial Universal. Sus bases. Tesis presentada a la Sección de Ciencias Jurídicas, Congreso Científico Internacional Americano, Buenos Aires, 10 a 25 de Julio de 1910. La Plata: Talleres gráficos Christmann & Crespo, 1910. 8 CARVALHO, Elysio de. “História natural dos malfeitores. Notas e crônicas”, Boletim Policial, Rio de Janeiro, Ano VII, n. 4, abril de 1913, p. 64. 9 LOCARD, Edmond. “Les services actuels d’identification et la fiche internationale”, Archives d’Anthropologie Criminelle, n. 147, 1906, p. 145-146.

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332

A tese da internacionalização do crime não significava que todos os criminosos

tivessem se tornado ladrões internacionais. O que estavam indicando era uma

tendência à multiplicação dos delitos que envolviam, em sua própria lógica, viagens

de um lugar a outro e cruzamentos de fronteiras. Além de se multiplicar, se

diversificavam: ao proxeneta e ao falsário, personagens centrais da criminalidade

viajante do século XIX, somavam-se agora as quadrilhas internacionais de pick-

pockets, os assaltantes de bancos, os ratos de hotel, os vigaristas e outras figuras que

irromperam com a força nas cidades sul-americanas da Belle Époque.10

No Brasil e na Argentina, o uso das leis de expulsão de estrangeiros para

combater os gatunos internacionais, inclusive em casos em que a nacionalidade do

acusado era completamente duvidosa, pode ser interpretada como um indício tanto

da vontade de enfrentá-los como da falta de recursos tecnológicos para fazê-lo. Em

cidades que recebiam grandes fluxos de imigrantes, onde os rostos se renovavam

constantemente, onde os “outsiders” – usando expressão de Norbert Elias – eram

mais que os “estabelecidos”11, não parecia tão simples impedir a proliferação destes

delitos que a imprensa se encarregava de converter em inquietações públicas.12

As capacidades cinéticas dos criminosos viajantes e dos policiais estavam

desencaixadas.13 A velocidade dos transportes e o emprego de outras tecnologias

modernas, aplicadas à arte de roubar, punham em cheque as estratégias tradicionais

10 Nesse sentido, a tipologia de criminosos viajantes sul-americanos desenvolvida na terceira parte da tese relativiza outras leituras prévias, como a de Lená Medeiros de Menezes. Apesar de utilizar as mesmas fontes no mesmo período, esta autora considera que no Rio de Janeiro “o crime internacional limitava-se, praticamente, ao caftismo”. MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996, p. 128. 11 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os “outsiders”. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 12 Em sua tese de doutorado sobre as notícias policiais no Rio de Janeiro das duas primeiras décadas do século XX, Ana Vasconcelos Ottoni mostra a grande visibilidade desses criminosos viajantes, em especial os provenientes do Rio da Prata, na imprensa. OTTONI, Ana Vasconcelos. O paraíso dos ladrões: crime e criminosos nas reportagens policiais da imprensa. Tese de Doutorado em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 185-198. 13 A noção de “desencaixe” tem sido problematizada pela teoria sociológica contemporânea, num sentido que permite pensar estas defasagens entre o mundo criminal e o policial. Para Anthony Giddens, por exemplo, o “desencaixe” (disembedding) consiste na separação de certas práticas sociais a respeito de seus contextos locais e imediatos da interação, uma característica do processo de modernização e tecnificação da vida social que desafia as estruturas tradicionais, e que frequentemente se percebe como uma ameaça. GIDDENS, Anthony. The Consequences of Modernity. Stanford: Stanford University Press, 1990, p. 20-25.

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333

de policiamento do território, e também os saberes aplicados para controlar as

práticas ilegais nas cidades. Isto era o que percebiam policiais como o Comissário de

Investigações de Buenos Aires, José Gregorio Rossi, quando na conferência de 1905

comparava a perseguição policial dos criminosos viajantes com a impossível tarefa

de encontrar “um rastro na areia movediça”.14

Quando as polícias sul-americanas iniciaram o processo de aproximação que

derivou nos encontros e convênios de começos do século XX, o reproche sobre a

falta de cooperação internacional começou a ser dirigido, cada vez mais, ao

hemisfério norte. Em sua intensa disputa com o bertillonnage, Juan Vucetich usava

todo o tempo a oposição entre o “velho mundo” que observava com assombro a

“vanguarda do progresso sul-americano”.15 Estas palavras de Vucetich, pronunciadas

no encerramento da conferência de 1905, se repetiriam mais tarde, quando o pai da

datiloscopia, enfurecido com aqueles que o afastaram do campo da cooperação

policial sul-americana, criticava os delegados portenhos que viajavam a um novo

encontro destinado ao fracasso: a International Police Conference de 1922. A aposta

da América do Sul ia de mãos dadas com uma rejeição ao resto do mundo e, em

particular, à velha Europa, onde – segundo Vucetich – “para implantar instituições

novas era preciso derrubar montanhas de preconceitos seculares”.16

Uma ideia muito parecida tinha o representante brasileiro no congresso

internacional de 1923, Carlos Arroxellas Galvão. Embora destacasse a magnitude do

encontro, que havia reunido 823 delegados de 28 países diferentes, não terminou

muito contente com seus resultados. Pelos discursos dos congressistas, parecia que os

criminosos viajantes já eram um problema mundial: “por toda parte circula o globe-

trotter, um país recebe, desfigura e vende coisas furtadas em outro país”.17 Para

14 ROSSI, José G. “La policía internacional”, Boletín de Policía, Año I, n.10, Buenos Aires, 15 sep. 1905, p. 5. 15 “Saudades! El torneo científico policial”, Boletín de Policía, Año I, n. 14, Buenos Aires, 15 nov. 1905, p. 5. 16 Entrevista a Vucetich reproduzida em: CLARO, Juan A. Cooperación Policial de los Pueblos Civilizados. Mar del Plata: Talleres Gráficos La Capital, 1923, p. 36. 17 “Adidos Policiais”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia Militar, Ano I, n. 2, fev. 1926, p. 33.

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334

Arroxellas Galvão, a delinquência estava internacionalizada, mas a polícia

internacional brilhava pela ausência:

Critérios regionais, egoístas, ainda regulam a conduta de quase todas as polícias. Mesmo nos estados federados, poucas se privam do alívio que lhes dá o afastamento dos seus maus elementos. Esses critérios se refletem expressivamente na abundante documentação que exibem os delinquentes quando se transferem para outros países e na omissão de quaisquer avisos espontâneos a respeito dos antecedentes desses viajantes. (...) O silêncio destas não exprime cumplicidade por inação, cumplicidade intencional, deliberada, e que legitima e impõe a reciprocidade, disto procedendo sérios males para a segurança geral e bem aproveitados estímulos para os profissionais do crime? 18

O preceito de Locard (enfrentar o crime internacional com uma polícia

internacional) seguia sem se cumprir. De fato, um dos alunos de Locard do

Laboratório de Polícia Técnica de Lyon, Harry Soderman, que a meados do século

XX se converteu em um alto funcionário da Interpol, contava em suas memórias uma

anedota ilustrativa do estado desta questão. Quando viajou na década de 1930 aos

Estados Unidos, com uma bolsa de estudos de uma fundação sueca, na porta da sua

pequena sala colocaram um cartaz que dizia “Polícia Internacional Mundial”.19 O

próprio Soderman explicava que a época de sua viagem a Nova York coincidia com

a decadência de algumas técnicas da arte de roubar, situação frente a qual vários

policiais antigos mostravam certo sentimento de “nostalgia”.20

Esse mesmo registro sentimental estava presente em um conto breve que

Laurentino Mejías, o “decano” da polícia portenha, publicou em 1926 na revista

Magazine Policial. O título era “Aqueles solitários lunfardos internacionais” e

narrava a história de uma dama da alta sociedade enganada por um bando de

vigaristas. A trapaça utilizada era fazer-se passar por investigadores da polícia,

informando à senhora que havia sido vítima de um roubo de joias. Quando ela,

18 Idem, p. 33-34. 19 SODERMAN, Harry. Cuarenta años de policía internacional. Barcelona: Luis de Caralt, 1963, p. 228. 20 Idem, p. 225.

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335

confundida, os autorizava a revisar seus pertences, os ladrões aproveitavam para

roubar as joias que supostamente haviam sido furtadas antes.21 Esse “aqueles” do

título era uma referência nostálgica a certos criminosos espertos e requintados,

perdidos em um passado brumoso. No entanto, muitos relatos dos anos trinta

mostram que, apesar da nostalgia de Mejías, os vigaristas viajantes seguiriam

existindo. Que coisa levou então ao velho delegado se despedir “daqueles lunfardos

internacionais”? Nesta parábola do ladrão travestido de policial com a desculpa de

impedir um roubo que termina cometendo, mais uma vez, a ficção não estava tão

longe da realidade, nem a realidade da ficção.

Em novembro de 1911, o Ministro de Justiça do Brasil firmava, em nome do

Presidente da República, dois novos decretos de expulsão de estrangeiros.22 O perfil

dos expulsos não tinha nada fora do comum: um argentino e um italiano, ambos

alfabetizados, solteiros e jovens, de 23 e 19 anos, haviam sido detidos pela polícia

carioca e acusados de estelionato. O curioso era a trapaça que lhes atribuíam. Duas

semanas antes de suas detenções, haviam chegado ao Rio de Janeiro desde Buenos

Aires e se hospedaram no luxuoso Hotel Avenida, em plena Avenida Central,

inaugurado nesse mesmo ano. Nos depoimentos, os empregados do hotel

asseguravam que eles mesmos diziam ser “agentes da polícia secreta da República

Argentina”.23

No relatório do 1º Delegado Auxiliar, Eurico Cruz, anexavam-se duas cartas

manuscritas, em papel com selo do próprio Hotel Avenida. Ambas estavam dirigidas

ao chefe da polícia do Rio de Janeiro. A primeira, escrita em italiano, explicava que

na noite anterior os supostos detetives da Argentina conversaram com alguns

policiais cariocas no Teatro Palace. Para sustentar a veracidade de suas intenções

(que, segundo dizia, não podia revelar nesta mensagem), enviava também uma carta

de recomendação firmada pelo chefe da polícia portenha. Pedia, ainda, que a chefia

facilitasse um empréstimo de dinheiro que necessitava e que devolveria quando

21 MEJÍAS, Laurentino. “Aquellos solitarios lunfardos internacionales”, Magazine Policial, Año 5, n. 50, Buenos Aires, sep. 1926, p. 9-10. 22 AN, IJJ7 140. Expulsões de Vittorio Parrochetti y Jorge M. Wilkes (1911). Decreto de Expulsão, Rio de Janeiro, 30 nov. 1911. 23 Idem, Relatório da Inspetoria de Investigações e Segurança Pública. Auto de declarações, p. 9.

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336

pudesse efetuar um saque no Banco Frances ou no Italiano, que nesse dia se

encontravam fechados.24 Junto a este bilhete, no relatório, aparece a suposta carta de

recomendação firmada pelo chefe da polícia de Buenos Aires:

Buenos Aires, 24 octubre 1911

Al Jefe de la Policía de Río de Janeiro

Excelentísimo Señor:

Recomiendo a V.S. al Sr. Vittorio Parrochetti, detective, rogándole quiera favorecerlo en las formas más benévolas. Agradeciendo infinitamente, saludo al Sr. Jefe con mi mayor alta estima y consideración.

El Jefe de Policía

Luis Dellepiane 25

A segunda carta estava escrita em espanhol e firmada pelo “Detetive Vittorio

Parrochetti”. Neste caso, explicava melhor as intenções do contato com a polícia

carioca. O autor da carta dizia estar “sumamente desgostoso pela forma de atuar da

Polícia da América, especialmente de sua incerteza e inatividade” e que por isso

havia abandonado definitivamente a República Argentina. Parrochetti assegurava ter

recebido numerosas “propostas de prestar serviços a Polícias Europeias” e que,

apesar de havê-las recusado outras vezes por sua longa residência em Buenos Aires,

agora estava decidido aceitá-las. De passagem pelo Rio de Janeiro, junto com seu

colega Jorge Wilkes, explicava que estaria disposto a permanecer nesta capital caso a

polícia quisesse usar seus serviços e que “apenas por dever de cortesia” manifestaria

suas ideias à “Polícia da República dos Estados Unidos do Brasil”.26 Anexada à

carta, aparecia a proposta, também em espanhol:

24 Idem, Carta ao Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, 5 nov. 1911, p. 13. 25 Idem, p. 16. 26 Idem, Carta ao Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, 7 nov. 1911, p. 17.

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337

Adjunto a la carta de fecha 7 Noviembre 1917, pidiendo:

a) Fundar una policía secreta y privada, estando en el mismo tiempo a disposición de esta Policía, por solo sentimientos de hospitalidad, en todo lo que fuera útil mi concurso.

b) Que esta policía especial pueda tener aquellos privilegios necesarios e indispensables a la investigación de cualquier clase de asuntos.

c) Que la Policía de esta Capital Federal me prestase la suma necesaria para implantar esta Agencia, restituible en sus pagarés a plazo de dos meses cada uno.

Obligándome:

a) Al subordinamiento completo relativo a cualquier deber de Policía.

b) A la vigilancia y seguridad de las leyes íntimas de esta República.

c) A la solución gratuitamente de cualquier asunto dado por la Policía Oficial de esta ciudad.

d) A la permanente residencia en esta Capital.

Vittorio Parrochetti.27

Curiosamente, esta proposta antecipava o projeto de agência privada de

detetives, mas financiada pela polícia estatal, apresentada por Elysio de Carvalho no

ano seguinte. No entanto, era tudo uma farsa. Apenas três dias após esta carta, a

polícia carioca recebeu um telegrama da chefatura de Buenos Aires. A mensagem era

contundente e perturbadora: “Oficial Parrochetti y Willkens no son agentes de esta –

Luis J. Dellepiane”.28 Pelo correio postal, a chefia argentina se estendia um pouco

mais. Haviam recebido por essa mesma via as cartas falsas e asseguravam: “como

temia e tive a ocasião de manifestar a V.S., os indivíduos em questão não são agentes

da Polícia de Buenos Aires e são apenas cavalheiros da indústria que falsificaram a

assinatura do Coronel Dellepiane: não seria o caso de V.Exa. castigá-los como

merecem?”.29

27 Idem, p. 19. 28 Idem, Telegrama da “Polícia Capital Bayres”, 10 nov. 1911, p. 21. 29 Idem, Carta ao Exmo. Sr. Dr. Belisário Fernandes Tavorda, 11 nov. 1911, p. 20.

Page 349: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

338

O próprio Elysio de Carvalho, chefe do Gabinete de Identificação, firmou uma

declaração, dirigida a Eurico Cruz, assegurando que os indivíduos não tinham

antecedentes no arquivo datiloscópico, e Cruz elevou o relatório ao governo

sugerindo aplicar a lei de expulsão de estrangeiros, como finalmente sucedeu. O caso

dos falsos detetives atravessa quase todos os eixos desenvolvidos nesta tese: eram

vigaristas, ladrões elegantes, se hospedaram em um hotel de luxo e buscavam fazer

dinheiro fácil, usando mais inteligência que violência. A resposta das autoridades

também mostra os percursos da circulação policial de papeis e tecnologias:

telegramas, cartas e fichas de identificação formavam parte da documentação

compilada no processo. Parrochetti e Wilkes não eram detetives, mas criminosos

viajantes, porém não se misturavam com os gatunos dos submundos delitivos.

Pertenciam a outra classe. Eram, precisamente, “aqueles solitários lunfardos

internacionais”.

Considerações finais

Na década de 1980, quando ainda estava fresco o impacto provocado pela

publicação de Vigiar e Punir, alguns historiadores se lançaram aos arquivos judiciais

e policiais em busca de rastros sobre a vida dos “desclassificados da modernidade”.

Os loucos, submetidos às perversões dos médicos alienistas, e os diferentes

“habitués” das prisões (mendigos, vagabundos, prostitutas, ladrões de rua), brotaram

desde as poeirentas caixas de papel e recuperaram a voz. A historiografia brasileira e

a argentina não foram exceção neste auge dos estudos sobre o poder punitivo, o

pauperismo e as “classes perigosas”.30

30 Ver, por exemplo: GUIMARAES, Alberto Passos. As classes perigosas. Bandidismo urbano e rural. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008 [1ª Ed. 1982]. CORRÊA, Marisa. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1982. FAUSTO, Boris. Crime a cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Edusp, 2001 [1ª Ed. 1984]. VEZZETTI, Hugo. La locura en la Argentina. Buenos Aires, Paidós, 1985.

Page 350: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

339

Este trabalho se baseou em fontes similares (documentação policial, imprensa,

discursos científicos), mas envolveu biografias bem diferentes, porque partiu de

outras perguntas. Os criminosos viajantes não formavam parte dos setores populares,

nem tampouco da alta sociedade, embora compartilhassem com ela muito de seus

hábitos, entretenimentos e luxos. Eram, como dizia Dr. Antônio, um efeito não

desejado da burguesia, o espelho criminal no qual o novo rico podia ver-se refletido.

As cenas dos ratos de hotel mostravam a consternação frente um dado

desconcertante: todos os hóspedes, até o mais requintado, podiam ser o ladrão,

porque a aparência e os modos já não garantiam nada. Para os escritores que

desprezavam tanto os ladrões como a burguesia local, havia uma continuidade em

ambos, porque estavam intimamente conectados pelo fio do desejo de lucro e da

cobiça. “O vigarista nada tem a ver com o advogado”, ironizava Ezequiel Martínez

Estrada, “mas como tipos extremos de uma série, estão mais em linha filogenética

que o mecânico e o peão do forno de tijolos”.31

Em um tom muito próximo ao do brasileiro Mendes Fradique, a crítica de

Martínez Estrada não apontava apenas contra os vigaristas e os ladrões elegantes,

mas contra a nova burguesia em geral. A figura do advogado – como a do banqueiro

ou a do agiota – eram também condenadas pelo discurso moral dos policiais sul-

americanos, que se baseavam na oposição maniqueísta de dois mundos. Por um lado,

os ladrões, estelionatários e desordeiros, mas também os agitadores do movimento

operário e os burgueses inescrupulosos, eram colocados todos no mesmo plano: as

fileiras dos que subvertiam a ordem estabelecida, os que buscavam se beneficiar,

aproveitando-se da ingenuidade alheia. Do outro lado da linha, localizavam os

trabalhadores honestos, os despossuídos, os pobres respeitáveis, com quem muitos

vigilantes inclusive sentiam certa afinidade de classe.32

Esse mundo dos bons, dentro do qual os policiais pretendiam se colocar como

integrantes e protetores, estava conformado por ricos, pobres e não tão pobres. Era o

31 MARTÍNEZ ESTRADA, Ezequiel. Radiografía de la Pampa. Buenos Aires: Losada, 1953, p. 367. 32 Sobre este tema ver: LAWRENCE, Paul. “Images of Poverty and Crime. Police Memoirs in England and France at the end of the nineteenth Century”, Crime, Histoires & Sociétés/ Crime, History & Society, vol. 4, n. 1, 2000, p. 63-82. E também: CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme. Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires, 1920-1945. Buenos Aires: Siglo XXI, 2012, p. 187-212.

Page 351: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

340

mundo dos estabelecidos, os que tinham família e redes afetivas. Por isso, a

condenação ao criminoso viajante punha o acento no caráter imoral de seu estilo de

vida: carecia de “animus de residência”, não tinha lar, nem pátria, como dizia um dos

delegados brasileiros na conferência sul-americana de 1920.33 Esta afirmação valia

para os proxenetas, os anarquistas e os gatunos internacionais, que segundo o olhar

dos policiais eram meras variantes dentro de um mesmo universo. A distinção entre

os “estabelecidos” e os “estranhos” era ainda muito mais poderosa que aquela outra

que separava os “delinquentes comuns” dos “delinquentes políticos”.34 Sujeitos

nômades como os ratos de hotel, os vigaristas e inclusive os agitadores políticos,

eram vistos como “estrangeiros” nem tanto pelo seu lugar de nascimento (que, como

vimos nos processos de expulsão, muitas vezes era incerto), mas por seu pouco

apego às identidades nacionais que se estavam construindo.

Dentro deste universo, os criminosos viajantes se localizavam em uma região

confusa. Não eram esses gatunos de pouca monta, cuja vigilância relaciona-se com o

controle penal da plebe; uma vigilância que se estende inclusive para além do delito

tipificado, para tudo aquilo que Foucault chamou “ilegalismos populares”,

controlados por contravenções e intervenções policiais à margem da lei. Não

pertenciam a esse mundo: vestiam de outra maneira, falavam outra linguagem, se

moviam de um país a outro e tinham tantas conexões internacionais como os mais

destacados líderes do anarquismo, embora suas ações não buscassem corroer nem

questionar as bases do status quo. Ao contrário, buscavam ganhar dinheiro, por meio

de uma combinação de estratégias legais e ilegais, igual a muitos “homens de

negócios”.

A categoria de criminoso viajante envolvia uma grande quantidade de práticas

delitivas, que tinham muitos canais de comunicação entre si. No caso dos ladrões,

podem se distinguir dois grandes grupos: por um lado, os “gatunos internacionais”,

fundamentalmente as associações de punguistas estudadas em um dos capítulos, cujo

33 “A expulsão de estrangeiros”, Revista Policial, Ano 1, n. 2, Rio de Janeiro, 30 out. 1919, p. 15. 34 Simmel dedicou um ensaio à figura do estranho e sua função estruturante em relação à coesão dentro de um espaço social. Para este autor, a ideia do “estrangeiro” como alteridade está diretamente articulada com o mecanismo identitário de constituição de um “nós”. SIMMEL, Georg. “El extranjero”, en Sobre la individualidad y las formas sociales. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2002, p. 211-217.

Page 352: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

341

modus operandi baseava-se em destrezas manuais; por outro, ladrões aristocratas

como os ratos de hotel e alguns passadores de conto do vigário, atividades onde o

central era a aparência física e as habilidades retóricas.

O fato de roubar se movendo de um país a outro era causa necessária mas não

suficiente para a definição dos criminosos viajantes. Além disso, os policiais

marcavam outros elementos que os caracterizavam: eram parte do mundo da

“delinquência” profissional” e isso significava que existia uma certa divisão do

trabalho, com especialidades e regras do ofício, com uma gíria particular (a “gíria

ladra” e o “lunfardo”), e inclusive com instrumentos específicos – artefatos materiais

– construídos para o aperfeiçoamento do roubo. Por outro lado, o uso sistemático de

múltiplas inovações tecnológicas (entre as que estavam, desde já, os avanços nos

transportes e na telecomunicação), era um dos eixos da tão denunciada defasagem

com o mundo policial.35

A intensa circulação destes ladrões no espaço atlântico sul-americano se

adverte em diferentes vestígios deixados por suas práticas delitivas. Os intercâmbios

léxicos entre a gíria e o lunfardo, as numerosas palavras que nos submundos

criminais do Brasil e Argentina faziam referências às mesmas especialidades do

roubo, aos mesmos instrumentos para roubar e aos mesmos objetos roubados, são

indícios fortes da presença de uma região marcada por fluxos transnacionais. O

mesmo pode-se dizer no caso daqueles estelionatários que passavam os “contos do

vigário”. Essas histórias se repetiam desde Buenos Aires até o Rio de Janeiro,

seguindo o trânsito das rotas atlânticas e ficando nas cidades onde a aglomeração de

pessoas e o anonimato eram mais notáveis. Como explicava um membro da Polícia

Militar do Rio de Janeiro em 1926:

A certa classe de malfeitores é indispensável a grande aglomeração humana. São inofensivos onde não há ajuntamentos que justifiquem encontros, choques e empurrões. (...) Os punguistas

35 Sobre o uso de tecnologias no campo do crime internacional, ver: DEFLEM, Mathieu. “Technology and the internationalization of policing: a comparative- historical perspective”, Justice Quarterly, vol. 19, n. 3, sept. 2002, p.453-475. BELL, David. “Technologies of Speed, Technologies of Crime”, Yale French Studies, n. 108, 2005, p. 8-19. KNEPPER, Paul. The Invention of International Crime. A Global Issue in the Making, 1881-1914. Basingstoke: Palgrave/Macmillan, 2009, p. 12-42.

Page 353: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

342

internacionais que registram as datas mais caras a cada povo, não lhes escapando também nenhuma das grandes solenidades intercorrentes, afluem em massa para a capital em festa, e a polícia local, que os desconhece, não lhe pode legalmente tolher a entrada.36

Em uma dessas “grandes solenidades”, a visita do presidente argentino ao Rio

de Janeiro em 1899, vimos que a polícia carioca denunciava que pela mesma rota

marítima que trouxe o General Roca, haviam viajado vários punguistas de Buenos

Aires para roubar, aproveitando a aglomeração de pessoas nos festejos. O Jornal do

Brasil até noticiou o caso de um grupo de ladrões argentinos que na Rua do Ouvidor

havia passado o “conto do vigário” a um sujeito que percorria a zona observando a

decoração.37 No entanto, apesar do caráter transnacional, os chamados “cuentos del

tío” no Rio da Prata e “contos do vigário” no Brasil, ao longo do século XX,

estiveram na base de uma memória que os identificava com o ser nacional, com a

“viveza criolla” e com a “malandragem” brasileira. A busca das “origens” desta

forma particular de trapaça (discussões sobre seu nascimento na Península Ibérica, na

Argentina e no Brasil), era uma forma de negação de sua fenomenologia viajante.

Quando Fernando Pessoa escrevia, com nostalgia parecida à de Laurentino Mejías,

“ninguém já engana ninguém – o que é tristíssimo – na terra natal do conto do

vigário”, estava aludindo a essa tradição.38

Algo parecido pode-se dizer da gíria e do lunfardo que, como vimos no

capítulo dedicado às “sociedades de malfeitores”, foram interpretadas muitas vezes

como parte da alma mais profunda de um lugar. Em Buenos Aires, em particular, os

“lunfardistas” – quem são, ainda, os principais arqueólogos das letras do tango – se

empenharam em distanciar esta manifestação da “fala popular” de suas desonrosas

origens criminais. Deste modo, também apagaram as pistas dos criminosos viajantes

e a rica trama de intercâmbios, materiais e simbólicos, nas rotas delitivas da América

do Sul.

36 “Adidos Policiais”, Revista de Polícia, Club dos Oficiais da Polícia Militar, Ano I, n. 2, fev. 1926, p. 33-34. 37 “Conto do vigário”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 ago. 1899, p. 1. 38 PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1966, p. 420.

Page 354: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

343

Nos anos da Belle Époque, os policiais de Argentina e Brasil tinham uma

percepção muito clara da centralidade dessas rotas. Em sua visita ao Rio de Janeiro

junto a Roca, Beazley havia desenvolvido uma teoria sobre a interconexão das

cidades que, por suas características demográficas e culturais, eram os nós principais

desta extensa rede. Essa teoria considerava que qualquer cidade que se atrasasse em

seus mecanismos de vigilância e repressão do delito, convertia-se no novo destino

preferido pelos fluxos de ladrões viajantes. A modernização técnica da polícia era

então um elemento dissuasivo, como explicava o responsável de traduzir o sistema

antropométrico para a polícia de Santiago de Chile: os países que incorporassem esta

inovação – argumentava – iam ver que seus criminosos “não teriam outra opção que

escapar aos países selvagens e incivilizados”.39

Mas importar e traduzir tecnologias europeias não foi a única solução, nem a

principal. Nos inícios do século XX, a cooperação policial sul-americana se

converteu na principal aposta para o combate dos criminosos viajantes. Além das

fronteiras nacionais, e inclusive de alguns conflitos de jurisdição que se fizeram

presentes nesses anos, havia um território em comum que era preciso defender.

Enquanto os países europeus entravam e saiam de guerras, América do Sul devia

tomar a iniciativa de internacionalizar a ação das polícias. Os convênios de

extradição, e os mecanismos diplomáticos que envolviam, era uma ferramenta muito

débil e, fundamentalmente, lenta, para as capacidades cinéticas e tecnológicas dos

novos delinquentes profissionais. A cooperação policial devia se basear em acordos,

convênios e pactos muitos mais ágeis, menos burocráticos e mais silenciosos, como

explicava um vigilante portenho em 1913:

Na América Latina, as polícias do presente que não velam por interesses semelhantes e cuja esfera de atuação esta reduzida aos limites do território, sem preocupações de conquista ou de conflagrações continentais, não podem tem outro objetivo que o verdadeiro fim da polícia das cidades civilizadas, e é por eles que a polícia de investigações não tem outra extraterritorialidade que a que acorda o direito internacional, em virtude das leis de extradição. Não se pode dizer que este direito internacional seja violado, quando policiais de povos vizinhos celebrassem acordos que permitissem a apreensão de criminosos de certo

39 BARROS OVALLE, Pedro. Manual de antropometría criminal y general. Santiago de Chile: Imprenta de Enrique Blanchard-Chessi, 1900, p. 123.

Page 355: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

344

caráter, antes que sua extradição seja solicitada por via diplomática. Enquanto se procuram os processos, o malfeitor tem tempo de fugir, e os convênios policiais se antecipam às fórmulas legais para assegurar a ação da autoridade pública.40

O acordo informal entre as polícias da Argentina e Brasil para privilegiar a

Europa, e não os países sul-americanos, como destino para os estrangeiros expulsos,

se traduziu – como demonstramos – em mecanismos bem concretos de vigilância,

que operavam nas margens da lei. Além de estabelecer uma relação tensa com o

campo diplomático e o direito internacional, a rede de cooperação policial foi

utilizada para operar uma federalização de facto das polícias das capitais. O princípio

de primazia sobre as polícias dos estados colocava a capital como intermediária nas

comunicações com o estrangeiro, muito antes da criação das policiais federais e da

Interpol.41 Esse princípio se havia consolidado com a conferência de 1905, onde

ainda se acordou que os intercâmbios deviam se basear nas fichas datiloscópicas

seguindo o método de Juan Vucetich. Ele mesmo havia viajado por toda América do

Sul, utilizando os congressos científicos para explicar as vantagens do sistema

datiloscópico à hora de facilitar a cooperação entre polícias dos diferentes países,

precisamente porque permitia uma fácil transmissão por correio e telegrafo.

Em época de “conflagrações continentais”, e graças ao êxito do sistema

datiloscópico, as polícias sul-americanas puderam assumir as redes da cooperação

internacional. Buenos Aires se converteu no eixo principal de uma rede que tinha

vários nós e um dinamismo que impede traçar qualquer linha divisória entre um

centro e uma periferia. O olhar dos criminalistas europeus – como Locard e Reiss –

confirmava o lugar conquistado. Se a finais do século XIX modernizar a polícia

implicava alguma viagem à Europa de um funcionário de alta categoria, agora a

aposta era posicionar a América do Sul no espaço, cada vez mais internacionalizado,

da vigilância policial. “Conhecem-nos na Europa?”, perguntava um escritor do Rio

da Prata, ao se referir aos intelectuais sul-americanos. “A pergunta é vulgar”,

40 ALBERT, Luis J. Historia de la policía. Buenos Aires: Otero, 1913, p. 75-76. 41 As polícias federais da Argentina e Brasil se criaram ambas em 1944. Ver: FENTANES, Enrique. Compendio de Ciencia de la Policía. Buenos Aires: Editorial Policial, 1979. REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional. A Polícia Política no pós-guerra. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

Page 356: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

345

respondia. “O tema passou de moda. Queixar-se do esquecimento em que a Europa

tem a nossa América é um costume muito feio. É costume infantil”.42

42 SOIZA REILLY, Juan José de. “Los sudamericanos” (1911). In: Crónicas del Centenario. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2008, p. 145.

Page 357: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

Fontes e bibliografia

1. Fontes manuscritas

� Archivo General de la Nación (AGN), Buenos Aires.

- Sección de fotografía

- Archivo Intermedio, Fondo Ministerio del Interior/Secretos, Confidenciales y

Reservados, Caja n. 14.

� Arquivo Nacional (AN), Río de Janeiro.

- Fondo GIFI/Documentos de Policía. Fondo IJ6, varias cajas.

- Fondo IJJ7, Procesos de expulsión de extranjeros.

� Archivo Histórico de la Cancillería (AHC), Buenos Aires.

- Varios tratados de extradición manuscritos.

� Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), Río de Janeiro.

- Fondo: Ministerio de Relaciones Exteriores, Lata 54, legajos 420 y 425. Varios

oficios de la policía.

Page 358: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

347

2. Fontes impressas

2.1 PUBLICACIONES PERIÓDICAS

� A Época, Rio de Janeiro, 1912.

� A Noite, Rio de Janeiro, 1913-1916.

� A Notícia, Rio de Janeiro, 1911.

� Boletim Criminal Brazileiro. Rio de Janeiro, 1900-1901.

� Boletim do Serviço de identificação judiciária. Rio de Janeiro, Polícia da Capital

Federal, 1900.

� Boletim Policial. Arquivos de Criminologia, Instrução judiciária, identificação,

estatística criminal e administração policial. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,

1907-1918.

� Boletín de Policía. Buenos Aires, 1905-1906.

� Boletín de Policía de la Provincia de Buenos Aires. Publicación Mensual. La Plata,

1905-1906.

� Caras y Caretas. Semanario festivo, literario, artístico y de actualidades. Buenos

Aires, 1898-1930.

� Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1911.

� Criminalogia Moderna. Buenos Aires, 1898-1900.

� Don Goyo. Buenos Aires, 1926-1927.

� Fray Mocho. Semanario festivo, literario, artístico y de actualidades. Buenos Aires,

1912-1916.

� Gaceta Policial. Revista quincenal de crítica y comentarios policiales y

administrativos. Buenos Aires, 1926-1928.

� Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 1890-1930.

� Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1899-1900.

� Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1899-1900.

� La Prensa. Buenos Aires, 1870-1900.

� La Revista de Policía. Periódico quincenal. Buenos Aires, 1882.

Page 359: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

348

� Magazine policial. Publicación mensual. Buenos Aires, 1922-1927.

� O Jornal. Rio de Janeiro, 1920-1929.

� O Paiz. Rio de Janeiro, 1899-1900.

� Revista Criminal. Rio de Janeiro, 1927-1928.

� Revista de Criminología, Psiquiatría y Medicina Legal. Órgano del Instituto de

Criminología de la Penitenciaría Nacional. Buenos Aires, 1913-1930.

� Revista de la Policía de la Capital. Buenos Aires, 1888-1889.

� Revista de Policía. Periódico quincenal. Buenos Aires, 1897-1930.

� Revista de Polícia. Rio de Janeiro, Club dos Oficiais da Polícia Militar, 1926-1928.

� Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brazileiros. Rio de Janeiro, 1907.

� Revista Policial. Rio de Janeiro, 1903-1904.

� Revista Policial. Publicação Quinzenal. Rio de Janeiro, 1919-1920

� Sherlock Holmes. Buenos Aires, 1912-1913.

� Vida Policial. Órgão de defesa e educação social. Rio de Janeiro, 1925-1927.

2.2 RELATÓRIOS

� Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório apresentado ao Presidente da

República dos Estados Unidos do Brasil, pelo Dr. Epitácio Pessoa, Ministro de

Estado da Justiça e Negócios Interiores, em março de 1900. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1900.

� República Argentina. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1887-

1888. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1888.

� República Argentina. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1888-

1889. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1889.

� República Argentina. Memoria del Departamento de Policía de la Capital, 1889-

1890. Buenos Aires: Imprenta del Departamento de Policía, 1890.

� República Argentina, Policía de la Capital. Memoria del año 1892 y cálculos de

gastos para 1894, por el Jefe General Domingo Viejobueno. Buenos Aires: Imprenta

y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1893.

Page 360: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

349

� República Argentina, Policía de la Capital. Memoria del año 1893-1894 y

presupuesto de gastos para 1895, por el Jefe General Don Manuel J. Campos.

Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1894.

� República Argentina, Policía de la Capital. Memoria del año 1894-1895 y

presupuesto de gastos para 1896, por el Jefe General Don Manuel J. Campos.

Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía de la Capital, 1895.

� República Argentina. Memoria de la Policía de Buenos Aires, 1906 a 1909. Jefatura

del Coronel Ramón L. Falcón. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la

Policía, 1909.

� República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1911-1912. Jefatura del

General Ingeniero Luis J. Dellepiane. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de

la Policía, 1912.

� República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1913-1914. Proyecto de

Presupuesto para 1915. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía,

1914.

� República Argentina. Memoria de la Policía de la Capital, 1915-1916. Buenos

Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1916.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1919. Jefatura del Doctor Elpidio González.

Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1920.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes, datos

estadísticos y crónica de actos públicos correspondientes al año 1920. Jefatura del

Doctor Elpidio González. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía,

1921.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1921. Jefatura del Doctor Elpidio González.

Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1922.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1922. Buenos Aires: Imprenta y

Encuadernación de la Policía, 1923.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1923. Buenos Aires: Imprenta y

Encuadernación de la Policía, 1924.

Page 361: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

350

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes, datos

estadísticos y crónica de actos públicos correspondientes al año 1924. Buenos

Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1925.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1925. Buenos Aires: Imprenta y

Encuadernación de la Policía, 1926.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria correspondiente al año

1926. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1927.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria correspondiente al año

1927. Buenos Aires: Imprenta y Encuadernación de la Policía, 1928.

� República Argentina, Policía de la Capital Federal. Memoria, antecedentes y datos

estadísticos correspondientes al año 1928. Buenos Aires: Imprenta y

Encuadernación de la Policía, 1929.

� Secretaria dos Negócios da Justiça do Estado de São Paulo. Relatório apresentado

ao Sr. Dr. Vice-Presidente do Estado de São Paulo, pelo Secretario dos Negócios da

Justiça, Manoel Pessoa de Siqueira Campos, a 7 de abril de 1892. São Paulo,

Typografia Edelbrock & Moreira, 1892.

� Secretaria dos Negócios da Justiça do Estado de São Paulo. Relatório apresentado

ao Presidente do Estado pelo Secretario Interino dos Negócios da Justiça de São

Paulo, João Alvares Rubião Junior, em 31 de dezembro de 1894. São Paulo, Typ. A

Vapor de Espindola, Siqueira & C., 1895.

� Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao

Dr. Jorge Tibiricá, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da Segurança

Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1906. São Paulo, Typografia Brasil

de Rothschild & Comp., 1907.

� Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao

Dr. Jorge Tibiricá, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da Segurança

Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1907. São Paulo, Typografia Brasil

de Rothschild & Comp., 1907.

� Secretaria dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública. Relatório apresentado ao

Dr. M.J. de Albuquerque Lins, presidente do Estado, pelo Secretario da Justiça e da

Segurança Púbica, Washington Luis P. de Sousa, anno de 1908. São Paulo,

Typografia Brasil de Rothschild & Comp., 1908.

Page 362: Criminosos viajantes, vigilantes modernos. Circulações policiais

351

2.3 OUTRAS PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS

� Annaes da Conferencia Judiciaria-Policial, convocada por Aurelino de Araujo Leal,

2 vols. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918.

� CONFERENCIA INTERNACIONAL DE POLICÍA. Convenio celebrado entre las

policías de La Plata y Buenos Aires (Argentina), de Río de Janeiro (Brasil), de

Santiago de Chile y de Montevideo (R. O. del Uruguay). Buenos Aires: Imprenta y

Encuadernación de la Policía de la Capital Federal, 1905.

� Código Criminal do Império do Brasil, anotado com as leis, avisos e portarias

publicados desde a sua data até o presente. Recife: Typographia Universal, 1858.

� Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, promulgado pelo decreto n. 847 de 11

de outubro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.

� CONFERENCIA INTERNACIONAL SUDAMERICANA DE POLICÍA.

Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Paraguay, Perú, Uruguay: Convenios y Actas.

Buenos Aires: Imprenta J. Tragant, 1920.

� Las Siete Partidas del Sabio Rey D. Alfonso el X. Tomo IV. Barcelona: Imprenta de

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