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32 Março/Abril de 2012 STORE MAGAZINE Entrevista © 2012 LUSA para as famílias e seus projectos, designadamente de educação dos filhos e de melhoramento da habitação, sem falar no mais óbvio, a redução do consumo. Se conseguirmos retirar lições desta crise, talvez seja possível, com muito trabalho e organização, recuperar alguma energia para o desenvolvimento, fazer as refor - mas necessárias e não voltar a Crise carece de debate sério “Para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação”. É o que sustenta António Barreto, sociólogo e presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que lamenta a ausência de debate em Portugal. A culpa? É de uma sociedade civil fraca e do hábitos dos políticos de mascararem a verdade António Barreto, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos Store | A crise que o País atra- vessa parece ter um carácter mais permanente do que se poderia supor. Que repercus- sões poderá ter na sociedade portuguesa? António Barreto | Os primeiros efeitos serão muito difíceis. Re- presentarão seguramente uma baixa dos níveis de rendimento, assim como mais dificuldades cair nos mesmos erros. Em parti- cular, será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida. Store | A sociedade está sufi- cientemente alertada para o estado do País? AB | Não. Ainda não. Só nestes últimos meses é que a população começou a perceber que, real- “Será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida”

Crise carece de debate sério

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Crise carece de debate sério

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para as famílias e seus projectos, designadamente de educação dos filhos e de melhoramento da habitação, sem falar no mais óbvio, a redução do consumo. Se conseguirmos retirar lições desta crise, talvez seja possível, com muito trabalho e organização, recuperar alguma energia para o desenvolvimento, fazer as refor-mas necessárias e não voltar a

crise carece de debate sério

“Para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação”. É o que sustenta António Barreto, sociólogo e presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que lamenta a ausência de debate em Portugal. A culpa? É de uma sociedade civil fraca e do hábitos dos políticos de mascararem a verdade

António Barreto, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Store | A crise que o País atra-vessa parece ter um carácter mais permanente do que se poderia supor. Que repercus-sões poderá ter na sociedade portuguesa?António Barreto | Os primeiros efeitos serão muito difíceis. Re-presentarão seguramente uma baixa dos níveis de rendimento, assim como mais dificuldades

cair nos mesmos erros. Em parti-cular, será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida.

Store | A sociedade está sufi-cientemente alertada para o estado do País? AB | Não. Ainda não. Só nestes últimos meses é que a população começou a perceber que, real-

“Será preciso não pensar de novo que o crédito e a dívida são solução e modo de vida”

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mente, as dificuldades são enor-mes. Os dirigentes fizeram tudo o que puderam para escamotear a situação e suas causas. A discus-são que se conhece é de enorme opacidade, poucos percebem os aspectos técnicos da finança e da moeda. Nem as origens da crise interna nem as implicações europeias são suficientemente conhecidas de modo acessível. Não tenhamos dúvidas: para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será ne-cessária a compreensão dos por-tugueses, o que só se consegue com honestidade e informação. Mais do que nunca, às autorida-des compete dar o exemplo.

Store | Comparando com o 25 de Abril, diria que hoje há mais ou menos debate?AB | As situações não são com-paráveis. Naquele tempo, a dis-cussão propriamente política invadia a nossa vida quotidiana. Questões mais complexas, de carácter económico e financeiro, eram esquecidas e afastadas. De tal modo que se cometeram erros graves. De qualquer maneira, era muito difícil fundar uma demo-cracia e um novo regime político. Hoje, fala-se muito, mas, sobre-tudo, das consequências da crise e dos efeitos nas vidas das pes-soas. Era importante que os di-rigentes políticos e económicos, assim como os universitários, tivessem mais preocupação em debater publicamente com toda a gente. Falar não chega: é preciso debater com verdade e informar com sinceridade. A saída da cri-se não depende apenas das di-recções políticas e empresariais, depende de todos nós. Ora, só informada é que a população é capaz de participar.

Store | O que está a travar esse debate?AB | A fraqueza da sociedade civil não ajuda. Os hábitos políticos de guardar segredo e de mascarar a verdade são um forte contributo para a ausência de debate. Quem tem algum poder acredita pia-mente que a informação e o co-nhecimento constituem factores de preservação dos seus privilé-gios. Os partidos estão mais vol-

tados para a tarefa de convenci-mento do que de esclarecimento. Os únicos antídotos conhecidos são a liberdade de expressão e a opinião pública, e é muito impor-tante que ninguém tenha receio de se exprimir, de dizer o que pensa.

Store | Estarão a desaparecer os fóruns de debate e reflexão?AB | Não se pode dizer desaparecer, dado que nunca houve muitos. Nunca o hábito foi grande e enraizado. Mais uma razão para o seu desenvolvimen-to hoje. O problema é que se faz tudo para evitar uma participa-ção activa e empenhada. Não será possível recuperar a eco-nomia, desenvolver a sociedade e encontrar novas energias na população sem que esta esteja mais bem preparada e mais infor-mada. O tempo do comício fácil, da palavra de ordem e do slogan eleitoral já passou.

Store | As universidades pode-rão desempenhar esse papel?AB | No antigo regime, não o eram. Depois de fundada a de-mocracia, havia esperança em que as universidades desempe-nhassem o seu papel social e tivessem influência na reflexão e no debate, assim como no estu-do das realidades. Infelizmente, não foi esse o desenvolvimento. As universidades tentam cumprir alguns deveres, nomeadamente o de ensinar, mas encontram--se muito condicionadas pelas carreiras e pelas ambições pes-soais de muitos docentes. Há discussões nas universidades, com certeza; há, aqui e ali, de-bate científico de elevado nível; como há um esforço renovado na investigação. Mas o interesse pela realidade nacional (social, fi-nanceira, económica, cultural...) é muito reduzido. Ora, as universi-dades têm uma dívida perante o povo: é este que as paga e man-tém. Aquelas têm de devolver à população o que dela recebem.

Store | É esse espaço que a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) se propõe ocupar?AB | Queremos alargar o mais

“Falar não chega: é preciso debater com verdade e informar com sinceridade. A saída da crise não depende apenas das direcções políticas e empresariais, depende de todos nós”

“Não tenhamos dúvidas: para ultrapassar esta crise, além de trabalho e organização, será necessária a compreensão dos portugueses, o que só se consegue com honestidade e informação”

possível o debate público e di-vulgar a informação e o conhe-cimento. Fazer isso em larga es-cala exige a utilização de todos os meios à nossa disposição, incluindo a televisão, a rádio e a internet. Não faria sentido, para esta fundação e dada a sua Carta de Princípios, restringir ou limitar a informação e o debate a alguns meios tradicionais e aos circuitos académicos ou especializados. Esta fundação tem como desti-natários do seu trabalho todos os Portugueses, qualquer que seja a idade ou a condição. Ora, por exemplo, sabemos hoje que a maior parte dos jovens recorre à internet, sob todas as formas, para se informar e discutir, mais do que aos jornais ou mesmo à televisão.

Store | Há lugar para as empre-sas nesse debate?AB | As empresas são mais do que meras organizações eco-nómicas e produtivas. São, em conformidade com a sua dimen-são, organizações humanas im-portantes para fornecer a todos os bens necessários à vida, mas essenciais para a vida quotidiana de muita gente, de milhões de trabalhadores, técnicos e qua-dros. Uma parte importante da vida de muitas pessoas passa-se dentro da empresa, em contacto permanente entre os trabalhado-res e com os clientes e fornece-dores. Uma empresa é sempre uma organização humana essen-cial. A tradição política e cultural portuguesa não é muito favorável à ideia e à organização de em-presa. Mas essa é uma mudança essencial… Vai demorar tempo, mas é necessário que as empre-sas mais bem preparadas, e que já compreenderam qual é e qual pode ser o seu papel, assumam uma função pioneira de partici-pação.

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Projecto

A receita de Barretopara conhecer a crise

Traçar um retrato o mais actual e pormenorizado possível da realidade sócio-económica do país – é esta a ambição do site “Conhecer a Crise” (www.ffms.pt/conheceracrise) o mais recente projecto da FundaçãoFrancisco Manuel dos Santos. Eis tudo o que precisa de saber sobre o projecto

Qual a génese desta base de dados?Não há dúvida de que Portugal está hoje em crise. E há muitas estatísticas que vão sendo divul-gadas ou trabalhadas, tentando responder à preocupação de perceber como estamos a evo-luir - na economia, no emprego, nas condições de vida...Havendo tantos dados e sendo eles comunicados de forma tão dispersa, é difícil conseguir ter um retrato completo e ao mes-mo tempo sintético da evolução do “bem-estar da sociedade”. E não são só as estatísticas ofi-ciais que nos relatam a evolução sócio-económica do país. Dados sobre a solidariedade social ou padrões de consumo permitem que nos aproximemos do que de facto se está a passar na casa das pessoas e como a crise está a afectar o seu dia-a-dia.E nesse sentido surge este pro-jecto, uma forma de tornar esta informação acessível e junta num mesmo espaço, para que as pessoas possam olhar fac-tualmente para o que se está a passar na sociedade e discutir essa mesma informação.

Será complementar à PORDA-TA? Quais são as principais di-ferenças?A PORDATA tem já uma base de dados alargada sobre a socie-dade portuguesa; no entanto, disponibiliza dados anuais que são necessariamente apurados com algum distanciamento do presente. Se quisermos olhar para as evo-luções mensais, ou mesmo tri-mestrais, a PORDATA não nos

consegue dar esse retrato mais “imediato” e “frequente”. E são estes momentos mais fracciona-dos que têm servido na análise ou percepção de como estamos a reagir à crise, não descurando alguns dados macro que só são apurados numa base anual.Além disso, a PORDATA só uti-liza dados de fontes estatísticas que sejam organismos oficiais com responsabilidade na pro-dução de informação nas suas respectivas áreas. O “Conhecer a crise”, no âmbito da sua filo-sofia, considera fontes de infor-mação como a Unicre, Nielsen ou Banco Alimentar que, não

sendo organismos oficiais com responsabilidade nas suas áreas de informação, nos dão dados credíveis sobre o comportamen-to das famílias e indivíduos e a sua alteração ou não no passado recente.Por último, este novo site inclui dados de percepção, como é o caso dos inquéritos de opinião do Eurobarómetro, informação que a PORDATA não considera na sua base de dados.No final temos um site, com um objectivo muito concreto, que complementa a informação da PORDATA, uma base de dados anual mas mais abrangente em

“Temos um site, com um objectivo muito concreto, que complementa a informação da PORDATA”

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Em 2011, os portugueses alteraram o padrão de consumo em relação à carne – menos carne de vaca e mais carne de porco e aves.

• Variação da despesa com carne, em hiper e supermercados (2011 vs 2010):

Total carne: +5.3%; Suíno: +12,1%; Aves +10,4%; Bovino -0,7% Fonte: Nielsen

Em 2011, os portugueses gastaram menos em vestuário e calçado e continuaram a gastar menos em Janeiro e Fevereiro de 2012.

• Variação das despesas feitas com cartão em vestuário e calçado:

2011 vs 2010: - 9,1% Jan 2012 vs Jan 2011: - 13,1% Fev 2012 vs Fev 2010: - 9,7% Fonte: Unicre

Sabia que...

ESTATíSTICAS

termos de áreas temáticas de in-formação.

Quando se fala de crise pensa--se habitualmente em indica-dores económicos e do em-prego e não, por exemplo, nos donativos a instituições sociais. Falta a perspectiva humana na análise da crise?A crise tem muitas caras. E é esse sentido humano, dos indivíduos e famílias, que queremos abar-car com o projecto “Conhecer a crise”. É importante as pessoas sentirem que elas estão por detrás destes números e que os núme-ros mudam com os seus com- portamentos e decisões. Actualmente vai aparecendo mais informação sistematizada nessa área, porque começa também a haver uma maior sensibilização e procura de dados sobre estes te-mas. O nosso projecto pretende juntá--los num mesmo site, apresen-tando-os em simultâneo com os números que estamos mais ha-bituados a acompanhar ou ouvir falar (desemprego, dívida pública, subsídios).

Quais os critérios para a escolha dos indicadores a disponibilizar?A fundação procura disponibilizar uma selecção de indicadores que permita retratar a evolução das condições de vida e dos compor-tamentos dos portugueses, ao ní-vel do indivíduo, família, empresas e Estado.Esta lista é dinâmica no sentido em que, havendo novos indicadores que sejam credíveis e que respon-dam ao objectivo do projecto, eles serão adicionados no site, dentro dos temas já existentes ou criando um novo tema, se necessário.O site “Conhecer a crise” pretende ser uma base de dados que ofere-ce um olhar independente e factu-al sobre os efeitos da crise.

Qual o contributo do site para o debate entre a sociedade civil?A fundação procura disponibilizar informação pertinente sobre a so-ciedade portuguesa e, não menos importante, sensibilizar as pessoas para a importância de compreen-derem a realidade e de a discutirem de forma fundamentada. É funda-

mental que as pessoas se sintam como parte integrante da socieda-de, sendo por isso motor de cons-trução e desenvolvimento do País.Por outro lado, os números afas-tam naturalmente muitas pessoas, pois são vistos como “entidades” complexas, difíceis e, por isso mesmo, distantes.Nesse sentido, o site foi concebido para exibir os números de uma for-ma gráfica simples e apelativa, que aproxime as pessoas dos dados e as convide a conhecer mais.Cada indicador, além de uma re-presentação gráfica, tem sempre associada uma tabela de dados mensais ou trimestrais e uma ta-bela de dados anuais, para que se

perceba o que se está a passar no mais curto prazo, não perdendo o contexto dos últimos anos. E, para que não haja dúvidas, exis-te sempre uma definição do indi-cador, escrita de uma forma clara, para não especialistas.A par desta preocupação na apre-sentação dos factos, todo o site foi construído a pensar na partilha e divulgação da informação, num convite ao debate fundamentado. Cada indicador, individualmen-te, ou todos os indicadores de um determinado tema podem ser partilhados por mail ou nas redes sociais e podem ser impressos no formato PDF para levar para casa ou usar numa reunião.

Além disso, o site possibilita que cada pessoa possa fazer a sua se-lecção de indicadores, do conjunto total existente (cerca de 120), ten-do assim uma página sua – a crise como eu a vejo – com os dados que mais lhe interessam, todos juntos num único espaço.Uma outra funcionalidade de des-taque refere-se à actualização de informação. Não só o próprio site destaca os indicadores que foram actualizados desde a última visita de cada utilizador à base de da-dos, como cada pessoa pode se-leccionar os indicadores para os quais gostaria de receber um alerta por mail, sempre que os mesmos forem actualizados.