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Texto escrito com Camila, Aurea e Carolina (grupo da pesquisa). Publicado em NEVES, L. M. B, MOREL, M. e FERREIRA, T. B. da C. (Orgs.) . História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. p. 237-259.
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História e Imprensa
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CRÔNICAS FOLHETINESCAS: SUBJETIVIDADE,
MODERNIDADE E CIRCULAÇÃO DA NOTÍCIA1
Ariane P. Ewald
Aurea Domingues Guimarães
Camila Fernandes Bravo
Carolina Bragança Sobreira
RETRATOS DE UMA SUBJETIVIDADE SOCIAL EM MOVIMENTO
Um de nossos interesses, do ponto de vista da psicologia social, ao
estudar crônicas publicadas em periódicos no século XIX, está
diretamente relacionado à inserção e à divulgação do conceito de
modernidade entre nós, especialmente no que diz respeito à dinâmica
humana que as crônicas nos apresentam, sendo parte dela relativa ao
projeto de modernidade que está se instalando no Ocidente naquele
momento. Pensamos também que, para melhor compreender o presente,
temos de resgatar fragmentos do passado e reconstruir, a partir deles, o
caminho por nós traçado e definido como sociedade e singularidades
sociais. Acreditamos que parte das respostas que buscamos para nosso
modo de vida contemporâneo encontra-se no passado, no que concerne à
sociedade e aos sujeitos que a compõem, e que, nesse sentido, podemos
dizer, como o filósofo Jean-Paul Sartre, que o homem não possui outro
legislador senão ele próprio.
1 Texto publicado em NEVES, L. M. B, MOREL, M. e FERREIRA, T. B. da C. (Orgs.) . História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. p.
237-259.
Crônicas folhetinescas
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Gostaríamos, inicialmente, de fazer algumas considerações em relação às
crônicas e ao que chamamos de subjetividade social em movimento.
1) Com um pé apoiado no existencialismo sartriano e outro na
tentativa de estabelecer um diálogo transdisciplinar com as áreas das
ciências humanas e sociais, partimos do princípio de que as criações
humanas são essencialmente “produções de sentido que expressam de
forma singular os complexos processos de realidade nos quais o homem
está envolvido, mas sem constituir um mero [reflexo] destes” (González
Rey, 2003, p. IX). Integram, portanto, os diferentes aspectos do mundo
em que o sujeito vive, e aparecem em cada um desses sujeitos, ou do
espaço social concreto, de forma única, isto é, “organizados em seu
caráter subjetivo pela história de seus protagonistas” (id., ib.). Se as
criações humanas são produções de sentido, então é fundamental buscar
por meio de linguagens diferentes, que podem se articular a construções
teóricas, maior inteligibilidade em relação à subjetividade humana e sua
representação nas multifacetadas atividades e nos diversos contextos em
que a vida concreta desses indivíduos desenvolve-se.
2) Buscar articulações entre os saberes da psicologia, da história, da
literatura, da comunicação e da sociologia é iluminar a cena da história
concreta dos homens, num esforço de compreensão que transcende
fronteiras convencionais das disciplinas acadêmicas em direção a um
conceito das ciências humanas e sociais. Almeja-se uma “unidade de
percepção”, há muito perdida numa pulverização empobrecedora dos
saberes que têm o homem como centro. Esse é nosso objetivo e
prazeroso desafio.
3) Como psicólogos, interessados na dinâmica humana
contemporânea, temos como hipótese norteadora não haver como
decifrar os arcanos de nossa modernidade sem rastrear as pegadas de sua
construção. Não que isso implique a crença de uma suposta linearidade de
construção “evolutiva” do percurso em direção a uma cada vez melhor e
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mais “progressista” humanidade, como reflexo de uma caminhada
hipotética da barbárie à civilização. Pelo contrário, é nossa crença inicial
que essa construção de nosso projeto de modernidade foi atravessada por
contradições e contramarchas, por perdas e ganhos, e que a sociedade não
se tornou, necessariamente, gradativamente “melhor” – o que implicaria
uma ampla e séria discussão de valores –, mas sim, de forma inexorável,
distinta de si mesma, num lento e por vezes doloroso processo de
superação de cada momento histórico em direção ao seguinte. Como
Hegel já nos ensinava, ela irá superar cada um desses momentos ao reter
em seu “novo” projeto de modernidade o que julgou necessário, o que lhe
pudesse servir para dar conta do momento seguinte, deixando para trás,
na memória dos que sobreviveram e nos diversos registros escritos do que
pensou fazer ou mesmo realizou, configurados em documentos, livros,
revistas, jornais, almanaques, propagandas, artes e ciências, tecnologias
que produziu ou que decidiu “esquecer”.
4) Temos nos concentrado nesse “esquecimento”, para que a
memória de uma construção social, tão longa e fecunda, não se limite, em
nós, psicólogos, ao que dela restou na contemporaneidade e que
condicionou as circunstâncias de nossa existência. Esta memória é
caudatária de uma longa história de “superações” que merecem e
precisam ser desveladas, pois reafirmam um laço identitário com um
passado que afinal nunca passa, mas é somente “superado”.
5) Contudo, remeter alguém a seu passado não o conduz a um
lugar tranqüilo e neutro dentro de si. Só aparentemente podemos pensar
esse lugar dentro de nós como um espaço neutro. Ao nos deslocarmos
em direção a ele, espontaneamente ou por uma “provocação” externa,
conduzimo-nos a um lugar idiossincraticamente construído dentro de nós
mesmos, como parte essencial de um eu com que nos identificamos. A
recordação – que nos remete a cor, de coração, fazer vir à memória –
aponta sempre na direção de forte sentimento nessa ação. Tal sentimento,
Crônicas folhetinescas
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imerso no ato de recordar, pode produzir uma série de distorções. A mais
interessante talvez seja a de que o indivíduo é levado a construir, ou
melhor, a constituir ou reconstruir para si seu passado a partir da situação
histórica que o presente determine.
6) A significação que constituímos é resultado de interação social,
que conecta homem e mundo no processo de construção de sentidos. O
social, dessa forma, produz-se através de uma verdadeira rede de sentidos,
de marcos de referência simbólicos por meio dos quais os homens se
comunicam, criam uma identidade coletiva e designam seu lugar frente às
instituições de poder dessa dada sociedade. Mediante suas representações
ideológicas, exprimem seus desejos e aspirações, justificam seus objetivos,
concebem o passado como o desejam recordar, constituindo-o para si, e criam utopias
para seu futuro. É assim que constituímos o passado que desejamos
recordar e no qual as coisas ganham a espessura que passamos a lhes
atribuir transformando e assimilando o passado e o heterogêneo,
permitindo-nos cicatrizar nossas feridas, reparar nossas perdas,
reconstituir forças partidas e inventar, a partir daí, futuros possíveis. Lidar
com o passado é mexer com fragmentos, com pedaços esparsos de
memória circunstanciada, gravados em papéis, monumentos, jornais,
livros, cartões, medalhas, objetos de todo gênero, nos quais a humanidade
deixou impressas as marcas do que foi feito.
7) As crônicas são fragmentos e, ao mesmo tempo, elementos do
social que tornam perceptível a entrada da modernidade no Rio de
Janeiro, além da inserção de uma nova forma de pensar o mundo e de se
relacionar com ele. Na esteira da Escola dos Annales, especialmente de
Lucien Febvre, podemos pensar na idéia de um “instrumental
intelectual”2 criado e disponibilizado em cada época (Burke, 1991). Esse é
2 A noção está ligada ao conceito “aparelhagem mental” desenvolvido por Lucien Febvre ao
longo de suas pesquisas. Para Febvre, “a cada civilização cabe sua aparelhagem mental […] ela
vale por uma época que a utiliza; não vale pela eternidade, nem para a humanidade”. Ele estava
convencido de que os homens do passado “não viviam, não agiam como nós”, portanto é
necessário explorar exaustivamente uma cultura das mais variadas perspectivas, pois é com
História e Imprensa
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o nível do cotidiano, situado “no ponto de junção do individual e do
coletivo”, afirma Le Goff (1995, p. 71). Lembrar a importância do
psíquico nessas questões é tornar presente a afirmação de Marc Bloch de
que “os fatos históricos são por essência fatos psicológicos” (2001, p.
157). Esses fragmentos da vida no século XIX indicam também os sinais
mais públicos e visíveis do projeto da modernidade que se expande, ao
mesmo tempo que se tornam meio de divulgação eficaz do “espírito do
tempo” do século XIX. A vida, exposta nas crônicas folhetinescas,
proporciona uma noção do impacto da modernidade sobre os cariocas
nesse período.
CRÔNICAS FOLHETINESCAS: A SEMANA EM REVISTA
As crônicas folhetinescas foram publicadas nos rodapés dos principais
periódicos do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, como Jornal do
Commercio, Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro. Revelam os principais
acontecimentos da semana, descritos por intermédio do olhar de um
contemporâneo. Os textos constituem um estilo literário particular dentro
do gênero crônica, de cuja pequena história traçaremos um esboço.
A crônica assumiu diversas formas ao longo do tempo, e sua definição
passou por algumas modificações. Textos comumente chamados de
relatos históricos, ensaios e folhetins enquadram-se na crônica. Contudo,
a denominação só pode ser entendida atualmente se repassarmos, como
num vol d’oiseau,3 as características de cada uma dessas definições que
acabarão por nos fornecer uma visão ampla do surgimento da crônica
como estilo literário no Brasil.
esses “instrumentos” que se constrói a experiência, tanto individual quanto coletiva (ap. Revel,
1993, p. 66-67; ver também p. 326-327).
3 Empregada aqui no sentido de uma visão panorâmica, a expressão significa “em linha reta”,
“diretamente”, “do alto, de um ponto situado acima de todos os acidentes”. Remonta ao século
XVIII e foi também usada para designar, em mapas, uma visão do alto.
Crônicas folhetinescas
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Em seu momento inicial, a crônica constituía um gênero histórico. Sua
etimologia vem do grego khrónos (Corominas, 1954; Bueno, 1968; Cunha,
1982), que significa “tempo”, e seu sentido está ligado ao relato de fatos,
históricos ou não, sucedidos em algum lugar e seguindo a ordem do tempo.4
De acordo com Nilma Lacerda (1979), a crônica foi primeiramente uma
espécie “paraliterária”, pois margeava a literatura e pertencia quase
inteiramente à historiografia. Afrânio Coutinho (1999) também destaca a
importância da crônica para a historiografia, principalmente a portuguesa.
Sua origem está ligada à Idade Média, quando a memória era preservada
no registro oral, transmitida basicamente de forma cantada. Alguns
senhores feudais, para preservar sua história, mandavam registrar os
principais eventos de sua família em ordem cronológica, tomando como base
aquilo que se considerava digno de passar para a posteridade, mesmo que
fosse “corrigindo” o passado (Geary, 2002). As crônicas registravam
também episódios pitorescos da vida urbana, pequenas cenas trágicas
e/ou anedóticas.
Com o passar do tempo, a crônica deixou de ser um gênero estritamente
ligado à historiografia, ganhando caráter literário e incorporando a seu
texto, como já fazia Fernão Lopes, o interesse pelas emoções humanas,
mesmo as mais grosseiras. Como destaca Lacerda (1979), a narrativa se
tornou mais dinâmica, com a utilização de cortes e entrelaçamento de
cenas e situações; os relatos passaram a apresentar um sentido de
realidade, o que permite ao discurso atualizar o passado; a palavra ganhou
importância como instrumento de trabalho; o cronista incluía a
recordação, a observação e a expectativa em seus textos. Dessa forma, o
4 Benedetto Croce, ao discutir crônica e história, afirma que comumente se atribuíam à primeira
fatos individuais e privados, e à segunda fatos gerais e públicos, “como se o geral não fosse
individual e o individual geral, e o público não fosse sempre simultaneamente privado e o
privado público”. Portanto, para ele, foi sempre destinado à crônica aquilo que “não interessa”,
enquanto à história reservava-se o “que interessa” (1984, p. 280).
História e Imprensa
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autor podia inserir lembranças, sensações e emoções ao comentar o fato
histórico.
Além do estilo, o termo “crônica” também se modificou com o passar do
tempo, assumindo, segundo Afrânio Coutinho (1999), outro sentido no
idioma português no início do século XIX. Enquanto nos idiomas
europeus tinha basicamente o caráter de relato histórico, no Brasil passou
a significar um gênero literário específico, estritamente ligado ao
jornalismo. Apesar das modificações no termo, há nos séculos XVI e
XVII textos que podem ser enquadrados no gênero crônica como estilo
literário.
É o caso do ensaio, cujo acabamento, na condição de gênero literário,
deve-se aos ingleses.5 Em seu sentido primitivo, assemelha-se ao tipo de
texto que hoje, no Brasil, é classificado como crônica. Podem-se perceber
claramente as semelhanças a partir das características arroladas por
Coutinho (1999, p. 117s): o ensaio é um discurso breve e compacto, como
um compêndio de pensamento, experiência e observação; constitui um
gênero flexível e livre, permitindo maior liberdade de estilo, assunto,
método e exposição; é uma composição em prosa que tenta experimentar
a interpretação da realidade; a linguagem é coloquial, aproximando-se da
oralidade; o pensamento é exposto sem nenhum intervalo ou artifício
intermediário; não tem forma fixa, podendo utilizar narração, descrição,
exposição ou argumentação e ser apresentado mediante carta, sermão,
monólogo, diálogo ou crônica; finalmente, revela uma reação humana
diante do impacto da realidade, sendo portanto curto, direto, incisivo,
individual e interpretativo.
Apesar de haver textos no Brasil do século XVI semelhantes aos antigos
ensaios, e que podem ser classificados como crônicas, estas só se 5 Na acepção moderna, deve-se a Montaigne, com os Essais (1596), a iniciação do gênero
(Coutinho, 1999).
Crônicas folhetinescas
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consolidaram como gênero literário no século XIX. Seu caráter histórico,
porém, ainda prevalece em francês, inglês, espanhol e italiano.
Em já famoso prefácio sobre a crônica, Antônio Cândido (1992) afirma
que ela não foi feita originalmente para o livro, pois não tem pretensões
para durar. Por suas características peculiares, encontrou no jornal seu
veículo de comunicação e consolidou-se como estilo literário. A
efemeridade do jornal, que nasce, envelhece e morre a cada 24 horas,
permite o relato de acontecimentos circunstanciais numa linguagem mais
direta e coloquial. Cria, entre o escritor e o leitor, a cumplicidade que só a
amizade revela, a troca de experiências e confidências, uma intimidade até
então inexistente nos periódicos nacionais (Ewald, 2000). O
coloquialismo da linguagem escrita aproxima o cronista e o leitor pelo
tom de oralidade. O relato do circunstancial, por sua vez, caracteriza-se
pela captação de um breve instante, mas que ganha significância no
quadro geral da crônica.
No século XIX, as crônicas foram publicadas numa seção específica do
jornal, denominada “folhetim”, localizada no rodapé. Na época, os jornais
brasileiros já haviam incorporado a publicação de romances em capítulos,
traduzidos dos jornais franceses. Assim como na França, eles passaram a
ser publicados no rodapé, aumentando a venda dos jornais.
Segundo Ewald (ib.), na década de 1830 o sentido cronológico do termo
“crônica” permanece, pois se encontra um uso freqüente desse sentido
nos periódicos da época: um artigo como “O cocheiro de Sthulwagen –
crônica de Colônia (1523)”; uma seção específica do jornal como
“Crônica legislativa”, “Crônica administrativa” ou mesmo “Crônica
semanal”; ou ainda o próprio título do periódico especializado, como O
Cronista: Jornal Cronológico, Literário, Crítico e de Modas, criado por Justiniano
História e Imprensa
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José da Rocha, Josino do Nascimento Silva e Firmino Rodrigues da Silva,
e que existiu de 23 de maio de 1836 a 2 de abril de 1839.
Nos anos 1840 a palavra “folhetim” está diretamente relacionada aos
romances publicados em capítulos no rodapé do jornal. Delimitado por
acentuada linha preta, mas que segue a mesma estrutura de divisão em
colunas, o rodapé é designado pelo título “Folhetim”. Outros textos, além
dos romances, passaram a ser publicados nesse mesmo espaço, gerando
certa confusão quanto ao conteúdo da seção. Há realmente uma boa carga
de imprecisão quanto ao que esses termos significam e ao que se referem
(Meyer, 1992). Inicialmente, “folhetim” designava somente o romance em
capítulos no rodapé do jornal. Com a introdução no mesmo espaço de
“artigos” leves comentando os acontecimentos cotidianos da cidade, esses
textos também passaram a ser chamados de folhetins. Percorrendo os
jornais da imprensa brasileira, Ewald (2000) encontrou, num primeiro
momento, crônicas – no sentido original do termo – publicadas na coluna
“Variedades”; num segundo momento, romances franceses traduzidos
publicados no rodapé; por fim, também no rodapé, críticas teatrais e
crônicas dividindo espaço com os romances.
Segundo Brito Broca, a idéia de publicar artigos leves sobre episódios
variados, e intercalados por comentários pessoais no rodapé, surgiu do
costume criado pelo folhetim-romance.6 É possível aceitar essa hipótese
em vista do uso do rodapé para a publicação de outro tipo de texto, a
“crônica folhetinesca” (Ewald, 2000), que toma forma e corpo desde
1850, com a publicação, na seção “Comunicados” do Jornal do Commercio,
das cartas “Ao amigo ausente” de José Maria da Silva Paranhos, o
visconde do Rio Branco.
6 “O gênero [folhetim] criou o hábito de o leitor procurar todos os dias o folhetim dos
jornais. Daí a idéia de publicar-se também, em rodapé, um artigo leve, entremeando
comentários sobre fatos diversos, numa categoria semelhante à de capítulos de romances
[…]. Surgia assim essa nova modalidade de folhetim cujo predomínio se estenderia também
por toda a imprensa e seria a forma primitiva da crônica moderna” (Broca, 1979, p. 174).
Crônicas folhetinescas
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A idéia central da crônica folhetinesca é entreter o leitor, transformando o
cotidiano da cidade em capítulos de um romance, como se fosse um
“folhetim-romance-realidade” (id., ib.), isto é, um romance baseado nos
fatos que aconteceram durante a semana. Ao mesmo tempo, o termo
“crônica” para indicar esse estilo literário difundiu-se e passou a ser usado
como sinônimo dos comentários da semana, geralmente publicados aos
domingos. Portanto, passou também a designar o relato semanal e atual
sobre a vida na cidade. Como lembra Coaracy (1961), é comentário que
exprime um “ponto de vista pessoal” sobre questões que, cada vez mais,
despertam o interesse do leitor. A palavra “folhetim” foi sendo
lentamente abandonada, e “crônica” generalizou-se no fim do século
XIX, ganhando nova vida com a Belle Époque.
As crônicas folhetinescas descrevem os principais acontecimentos da
semana relacionados à vida política, literária e social da elite carioca do
século XIX. Os cronistas-folhetinistas registravam fatos circunstanciais e
se preocupavam em manter uma relação de confiança com os leitores;
comprometiam-se, assim, a manter a veracidade dos episódios relatados,
às vezes exclusivamente de seu ponto de vista. Escreviam numa
linguagem coloquial e amiúde num tom vivaz, para tornar a leitura
agradável e divertida. Entre os cronistas-folhetinistas dos meados do
século XIX destacam-se José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio
Branco), Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Machado de Assis, José de
Alencar, França Júnior, Joaquim Manuel de Macedo e Ferreira de
Menezes.
Autores como Coaracy (1961), Broca (1979) e Coutinho (1999) indicam a
mudança que a crônica sofreu no século XX em relação ao que
representava originalmente no século anterior. A crônica moderna,
segundo os autores, libertou-se das “algemas da atualidade” – não é mais
um comentário oportuno sobre os fatos acontecidos. “Em vez de
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247
procurar assunto no noticiário”, afirma Coaracy, “passou a buscar inspiração
nas impressões quaisquer recolhidas pelo seu espírito através da
observação, da fantasia ou da reflexão” (1961, p. XV). O cronista, pois,
deixa de ser jornalista para se tornar escritor, e troca o ofício pela arte.
Neste sentido, a palavra “crônica” tem aqui o seu sentido contemporâneo
e abandona a “revista semanal da cidade” como objeto do seu texto. A
expressão “crônica folhetinesca” é específica para os textos dos meados
do século XIX (Ewald, 2000) e sua principal característica é o relato
circunstanciado dos acontecimentos da cidade.
A IDÉIA DE MODERNIDADE NAS CRÔNICAS DE FRANCISCO OTAVIANO
Francisco Otaviano de Almeida Rosa foi um importante político do
Segundo Reinado. Tornou-se conhecido no meio literário por seus textos
jornalísticos e poesias, que lhe renderam o epíteto “pena de ouro”,
conferido pelos intelectuais/jornalistas da época aos grandes mestres da
escrita. Em 1896 foi escolhido pelo visconde de Taunay como patrono da
cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras (Serpa, 1952, p. 214). Foi um
homem do Império: nasceu alguns anos depois da Independência (em 26
de junho de 1826) e faleceu poucos meses antes da proclamação da
República (em 28 de maio de 1889), tendo vivido a maior parte desse
período no Rio de Janeiro. Testemunhou, portanto, os eventos mais
importantes do Segundo Reinado. Participou de acontecimentos que
marcaram a época, fosse lutando por seus ideais, como o fim da
escravidão e a proclamação da República, fosse como escritor, deixando
registrado nos jornais um relato crítico dos fatos polêmicos que
movimentavam a capital.
De 1852 a 1854, Francisco Otaviano ocupou o cargo de folhetinista do
Jornal do Commercio. Suas crônicas, publicadas sob o título de “A semana”,
tinham como tema o cotidiano da cidade, retratado de forma peculiar, o
Crônicas folhetinescas
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que lhe rendeu, anos mais tarde, o reconhecimento como precursor da
crônica social no Brasil.7 Essas crônicas se tornaram um espelho da cidade
do Rio de Janeiro e encontraram na fala de Phoncion Serpa (1952, p. 57)
sua melhor definição: “Reler essas crônicas, cujo valor e perfume
resistiram ao lento derivar das horas, seria o mesmo que folhear um velho
álbum de família e reconstituir por imagens os cenários, os costumes, o
colorido das coisas aparentemente imutáveis, o colorido dos homens que
pareciam eternos”.
O sentido de modernidade nas crônicas folhetinescas de Francisco
Otaviano era o mesmo que se espraiava pelo mundo naquele momento e
que tomou forma sob a égide das noções de progresso e civilização. Tais
conceitos começaram a ser amplamente difundidos e teorizados na
Europa Ocidental desde os meados do século XVIII até a década de 1890
(Le Goff, 1984).
Segundo Le Goff (ib.), a idéia de progresso só ganha ênfase quando
existe, como pano de fundo, uma série de acontecimentos favoráveis. No
transcorrer do fim do século XVIII e notadamente durante o XIX, a
Europa viveu a explosão do capitalismo industrial e uma febre de
inovações técnico-científicas que promoveram a melhoria do conforto, do
bem-estar e da segurança das elites ocidentais, bem como o progresso do
liberalismo, da instrução, da alfabetização e da democracia. Esses fatores,
somados aos desdobramentos da Revolução Francesa, que instaurou um
ideário libertário cuja finalidade máxima era a felicidade dos povos,
compunham o cenário ideal para a disseminação de teorias sobre o
progresso.
7 Ver Coutinho (1999), Ipanema e Ipanema (1967), Sodré (1966), Broca (1979) e Serpa (1952).
Ewald (2000) crê que o precursor foi José Maria da Silva Paranhos, o visconde do Rio Branco,
com suas cartas “Ao amigo ausente” publicadas no Jornal do Commercio entre 1851 e 1852 na
seção “Comunicados”.
História e Imprensa
249
A esse cenário de progresso, somou-se outro termo, “civilização”.
François Guizot (ap. Neves, 1988), seguindo a lógica estabelecida por
Turgot e Condorcet (Le Goff, 1984; Bock, 1980), escreve: “A civilização é
uma luz e consiste em um processo de desenvolvimento que sempre
tende em direção a um mesmo fim: o melhoramento da humanidade” (p.
30). Civilização passa a denominar tanto o processo que torna os povos
civilizados quanto o resultado cumulativo desse processo. Em ambos os
sentidos, o conceito toma a forma de uma antinomia à barbárie
(Starobinski, 2001).
Durante o século XVIII e a primeira metade do XIX, o Brasil se manteve
muito distante da dita civilização, uma vez que suas relações
internacionais eram incipientes e pautadas no modelo colonial. Somente
em meados do século XIX é que as relações brasileiras com a França e a
Inglaterra começaram a se estreitar em termos diferenciados. A
intensificação das relações comerciais e comunicacionais aproximou o
Brasil da Europa, que se apresentava como o mais alto grau de progresso
e civilização já alcançado na escala do desenvolvimento humano (Bock,
1980). Na época, segundo Le Goff (1984, p. 355), a Europa se encontrava
na era “do triunfo da ideologia do progresso em simultâneo com o grande
boom econômico e industrial do Ocidente” e vivia os desdobramentos de
uma série de episódios que lentamente conduziram a esse ápice de
prosperidade. O Brasil, no entanto, não passou pelas fases iniciais do
processo de desenvolvimento que culminou no período de avanço
material europeu e, para atingir esse nível, teria de fazer profundas
reformas em um curto período.
A máquina transforma-se no símbolo do poder e da supremacia européia
e nesta condição, afirma Neves (1988, p. 30), o poder “só se realiza e se
conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação
de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial”. A sociedade
Crônicas folhetinescas
250
brasileira assimilou, não sem críticas, a lógica de valorização dos ícones da
modernidade, e os melhoramentos materiais se tornaram símbolos da
modernidade. O povo ansiava pelas transformações e comemorava
efusivamente cada sinal dos novos tempos.
A partir da década de 1850, com o fim do tráfico negreiro, o dinheiro
empenhado nesse comércio passa a “sobrar” no bolso dos grandes
investidores. Isso é acompanhado por uma conciliação entre os partidos
políticos e acontecimentos favoráveis à concretização das tão aguardadas
mudanças. Lentamente, tais transformações começam a despontar no
cenário brasileiro: a iluminação deixa de ser a óleo de peixe e passa a ser a
gás; Mauá inaugura a primeira ferrovia brasileira; é estabelecida uma rede
telegráfica entre a capital e a cidade de Petrópolis; obras de calçamento e
de saneamento são concretizadas; vários monumentos são construídos na
capital. Essas e outras inovações fortalecem a sensação de prosperidade e
a constatação de que o progresso e a civilização estavam cada vez mais
presentes no cotidiano nacional.
A euforia é claramente percebida nos jornais da época, notadamente nas
crônicas folhetinescas que cumpriam a função de descrever os fatos
citadinos, sobretudo os que geravam comoção popular. Diversos cronistas
se punham a serviço desta nova ordem, o que significava reivindicar
melhorias materiais, industrialização e reformas urbanas, e denunciar tudo
que representava um entrave para o desenvolvimento do país.8 As
crônicas de Francisco Otaviano exprimem bem a função que essa
literatura tinha na época, revelando um retrato da intensa repercussão
social que esses acontecimentos geravam. Este trecho de crônica
folhetinesca de 1853 ilustra a função da escrita otaviana:
A presidência do Rio de Janeiro continua, zelosa e benéfica, a atender às necessidades mais urgentes do bom povo fluminense. Há poucos dias foi o Sr. conselheiro Pedreira a Parati solenizar a conclusão do aqueduto e
8 Sobre a idéia de progresso nas crônicas de José de Alencar, ver Souza (1998).
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chafariz daquela cidade, obra executada sob o plano e direção do hábil capitão de engenheiros Francisco Januário dos Passos. S. Ex. teve um brilhante acolhimento e recebeu um brinde de honra que por louvável escrúpulo ofereceu logo à casa de caridade (“A semana”, Jornal do Commercio, 24 abr. 1853).
As descrições que Otaviano tece em suas crônicas são permeadas de
adjetivos, enriquecendo a narrativa e proporcionando ao leitor a perfeita
reprodução do episódio, além de contagiá-lo com o sentimento
vivenciado por quem estava presente no evento. O retrato feito da
inauguração da iluminação a gás na rua do Ouvidor elucida esse talento:
Toda a cidade correu à rua do Ouvidor para apreciar a nova iluminação. Encolhidas e tristes, as últimas torcidas dos lampiões de azeite viam passar as ondas desta população inconstante que adora as novidades e se esquece dos serviços antigos. Ninguém fazia caso daquelas relíquias do tempo passado, ninguém tinha olhos e elogios senão para os lampiões a gás! (ib., 2 abr. 1854).
A modernidade surgia para o Brasil como possibilidade de afastamento de
todo o atraso relacionado ao período colonial. Francisco Otaviano, assim
como muitos outros intelectuais/jornalistas, acreditava que o
desenvolvimento técnico traria progresso para o país. No trecho a seguir,
em que o autor fala sobre a inauguração da primeira estrada de ferro
brasileira, constata-se esse sentimento: “Aquela ponte parece que está ali
como o primeiro aceno do progresso, como uma garantia de celeridade,
como uma promessa de segurança. Foi sólida e rapidamente construída
até o ponto em que se acha, tendo ainda de ser prolongada para se
evitarem inconvenientes das marés baixas” (ib., 1º maio 1854).
Francisco Otaviano sempre comparecia às festividades que enalteciam os
símbolos do progresso. A primeira viagem da locomotiva brasileira foi um
grande evento, que contou com a presença do imperador Pedro II. A
descrição desse acontecimento histórico ocupou todo o espaço da crônica
folhetinesca da semana. Este excerto faz parte de crônica de 1º de maio
de 1854, sobre a inauguração da estrada de ferro de Petrópolis: “Hoje
dignam-se VV.MM. de vir ver correr a locomotiva veloz, cujo sibilo
Crônicas folhetinescas
252
agudo ecoará nas matas do Brasil prosperidade e civilização, e marcará
sem dúvida uma nova era do país” (ib.).
O aperfeiçoamento material não é o único tema nos folhetins de
Otaviano. Nesse espaço, afirma Serpa (1952, p. 54), “tudo encontra
ressonância […] as eleições, os bailes, as festas populares, os teatros, os
cantores da ópera, livros, discursos, encerramento das aulas no colégio de
Pedro II, o carnaval com seus entrudos, a febre amarela…”. Além desses
assuntos, outro aparecia com freqüência: a moda. Para Francisco
Otaviano, ela era sempre alvo de comentários satíricos e de conselhos
bem-humorados. Os exageros de todo gênero eram um de seus alvos
preferidos. Num de seus textos, traça um perfil de como as moças de sua
época costumavam vestir-se para ir aos bailes, proporcionando ao leitor a
visualização do alvo de sua crítica.
Já uma vez por todas declarei que não sabia avaliar os toilletes. Mas não posso me furtar de dar um conselho às nossas elegantes. Para que não suprimem elas algumas varas de seda ou de filó nas caudas de seus vestidos? Que prazer acham em sair do baile descosidas e laceradas nas roupas! Como é que meninas tão galantes tão bem feitas pedem a ornatos tão extravagantes e a gama de acessórios que as enfeiam, que lhes tiram a graça e a leveza dos movimentos. Uma flor singela no cabelo, um vestido mais à inglesa, dão realce à mocidade. O abuso das flores artificiais e dos saiotes faz com que as meninas pareçam nichos de igrejas ou balões de noite de São João (“A semana”, Jornal do Commercio, 4 dez. 1853).
As crônicas de Otaviano representam um rico material de estudo
psicossociológico do Rio de Janeiro, palco de acontecimentos
significativos que se irradiavam para todo o país. Os fatos ali descritos
integram nossa história e exprimem a lógica da modernidade, cujos
desdobramentos repercutem até hoje na vida dos brasileiros.
Circulação da notícia: pequeno itinerário de um cronista-folhetinista
Na perspectiva atual, no mundo globalizado do qual fazemos parte, os
veículos de informação são os principais agentes na divulgação dos fatos
ocorridos nos mais diferentes cantos do planeta. Satélites, internet,
História e Imprensa
253
televisão, telefone móvel, fax, entre muitos outros apetrechos, agilizam o
processo de comunicação. Mediante o estudo do século XIX e,
principalmente, o acesso aos jornais desse período da história do país, é
nítida a diferença de acesso a informações por parte dos “homens da
notícia” dos grandes periódicos da época. Mas o século XIX também se
caracteriza por avanços significativos nesse campo. Um exemplo é a linha
de paquetes transatlânticos, responsáveis por trazerem as novidades da
Europa, “diminuindo”, consistentemente, a distância entre o Brasil e o
Velho Mundo em intervalos fixos e menores. A implantação da primeira
linha de telégrafos no Rio de Janeiro (1852) e a inauguração das vias
férreas (1854, 14,5 quilômetros entre o porto de Mauá e a estação do
Fragoso) também reduziram o tempo da troca de informações entre os
estados brasileiros. Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do
Brasil (p. 42) menciona que, mesmo depois de inaugurado o regime
republicano, nunca, talvez, fomos envolvidos, em tão breve período, por
uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou nos meados
do século oitocentista, especialmente de 1851 a 1855.
A dificuldade na obtenção de informações e a escassez de notícias,
sobretudo no intervalo dos paquetes transatlânticos, acentuavam-se com a
chegada da “estação calmosa”, o verão. Período de intensas ondas de
calor, provocava a saída da população carioca para o campo e as regiões
serranas como Petrópolis e Teresópolis, lugares de climas mais amenos e
mais apropriados às vestimentas da época. Um dos exemplos desse
“defluxo” é relatado por Francisco Otaviano:
Reina o defluxo por toda a cidade. Não há quem não lussa por enfermidade ou por moda; as mais delicadas vozes enrouquecerão; os mais animados rostos descorarão. – Via sion lugent.
A vida humana, disse um poeta árabe, não passa de uma embriaguez; o que ela tem de agradável se evapora na manhã seguinte. Antes eu não tivesse regressado do campo, onde, apesar das chuvas, tudo era festança, animação, boa conversa e boa mesa. Os dias aí passei foram tão rápidos como as últimas presidências de Buenos Aires (“A semana”, Jornal do
Commercio, 9 jan. 1853).
Crônicas folhetinescas
254
Assim como outros cronistas-folhetinistas que lhe seguiriam os passos,
Francisco Otaviano muitas vezes se via sem assunto/notícias. O desafio
estava lançado: cumprir a função de historicizar a semana e, ao mesmo
tempo, entreter o público leitor. Assim ele se expressa sobre o dilema:
Aí está o papel sobre a mesa. Escreve, infeliz cronista; ninguém te levará em conta a nulidade destes sete dias. “Se o tempo não deu um passo”, corrige o tempo; se não há fatos a registrar, inventa-os; se não podes fazer um quadro histórico, esboça um painel de fantasia; mas cumpre o teu dever, tortura a tua inteligência, e dessa mente erma de idéias extrai algum fruto, embora disforme, que, reduzido a artigo de jornal, encha as colunas do folhetim hebdomadário (ib., 6 fev. 1853).
Diante dessas e de outras dificuldades, os intelectuais/jornalistas do
Segundo Reinado iam, literalmente, à “cata de notícias”, isto é, saíam à
rua, circulavam pela cidade, movendo-se para “tomar conhecimento” dos
fatos, das novidades sociais, políticas e culturais da cidade. Os lugares
escolhidos eram aqueles que agregavam políticos, intelectuais, literatos,
fofoqueiros, damas da Corte, finas ou não, além dos cultos religiosos que
sempre forneciam algum material para preencher páginas da coluna:
confeitarias, teatros, bailes, cafés, tipografias, livrarias, a Assembléia dos
Deputados, lojas de produtos diversos – especialmente na rua do Ouvidor
–, saraus, festas públicas e, sobretudo, salões de beleza. Além dessas
demarcações físicas, havia as fontes especiais, particulares de cada
cronista, as quais permitiam a cada um ter a chance de publicar na coluna
algo inédito.
O cronista-folhetinista em movimento remete ao flâneur, imagem
construída por Walter Benjamin (1985) em seus estudos sobre Paris. De
acordo com o autor, o flâneur parisiense vagueia pelo desconhecido,
banaliza o espaço e faz disso sua experiência fundamental; é produto da
cidade, criação feita de vida, que pulsa pelas ruas. A visão atual do flâneur é
“romântica”, já que, devido à correria do mundo moderno, poucos são os
que conseguem “andar sem destino”, sem preocupação. Em
contraposição, segundo o Grand dictionnaire universel du XIXe siècle
História e Imprensa
255
(Larousse, 1866-1878), o flâneur era conceituado como preguiçoso e
desocupado, verdadeiro entrave à circulação pela cidade.
Para Benjamin (1985, p. 66-67), “a rua se torna moradia para o flâneur, que
está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as
suas quatro paredes”; ele necessita intimamente da multidão, assim como
o personagem do conto de Allan Poe (1965, p. 392-400) “Um homem na
multidão”, de 1840. Na busca incessante por estar entre as pessoas, ele
repetia o mesmo percurso sem se importar com os inconvenientes do
tempo, pois o que lhe satisfazia era estar no meio da multidão, não
conseguindo sobreviver longe dela. Na visão de Benjamin, o flâneur é,
sobretudo, alguém que não se sente seguro na própria sociedade (1985, p.
76), procurando reconstruir seus referenciais perdidos com a
“modernização” das cidades e, portanto, do cotidiano.
O cronista-folhetinista pode ser considerado um “tipo especial” de flâneur,
pois não é mero curioso ou observador despreocupado. Parte de seu
trabalho é um flanar que resulta num texto para o jornal. Homem de seu
tempo, estava atento para narrar as mudanças da cidade e o
comportamento das pessoas, observado durante as caminhadas. É preciso
ressaltar a diferença, quanto a aspectos como o espaço geográfico e o
clima, entre os flanares carioca e parisiense no século XIX. Paris já era
uma cidade com uma história longa, vibrante e revolucionária. Já o Rio de
Janeiro acabava de abrir-se para o mundo, tentando ainda construir sua
identidade como nação.
O flanar do cronista-folhetinista aponta para a circulação das notícias na
cidade, para lugares aos quais chegavam, eram comentadas, às vezes
“transformadas”, e dos quais saíam para espraiar-se alhures. Assim como
os salões de baile e os saraus realizados em residências imponentes, a
estreita rua do Ouvidor, cujo prestígio durante o Segundo Reinado teve
Crônicas folhetinescas
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início nos anos 1830 (Ewald, 2000, p. 276), era um dos principais redutos
de notícias. Ali o comércio francês começou a se instalar, ao mesmo
tempo que a idéia de comprar tecidos e acessórios nas lojas francesas
tornava-se sinônimo de elegância, civilidade e respeitabilidade.
O renome da rua atraía todo tipo de comércio e a rica freguesia da Corte
brasileira. Lojas com produtos luxuosos/importados, floristas, sapateiros,
livreiros, cabeleireiros, confeitarias tornaram-se ponto de encontro e de
conversas acerca dos mais variados assuntos. Nesse ambiente,
comentavam-se notícias de primeira mão sobre as novidades da política e
da moda francesa, as recentes publicações e as novas máquinas que
chegavam da Europa. Como indica Francisco Otaviano: “Quem passasse
ontem pelas ruas do Ouvidor e da Quitanda acreditaria que estávamos no
tempo das procissões, contemplando a afluência de senhoras e de homens
que atravessavam por ali. A exposição da mobília de um nababo, que será
arrematada em leilão na próxima semana, era o chamariz de todo esse
concurso” (“A semana”, Jornal do Commercio, 25 set. 1853).
Cada cronista-folhetinista tinha suas preferências e elegia os locais para
sua circulação e seu comentário “desinteressado”, que acabava indicando
aos leitores como o must da modernidade. Em 1854, Francisco Otaviano
menciona os comerciantes da rua do Ouvidor, que chama de rua
Parisiense devido ao grande número de lojas francesas, e as baixas nas
compras devido à fuga da cidade para as festas de fim de ano longe do
calor.
A estação e as festas do fim de ano arredaram da cidade os passeadores da rua do Ouvidor e os freqüentadores dos círculos. Embalde estiveram à mostra as cassas e sedas nas vidraças de Wallerstein e de seus rivais, os adereços e pedrarias nas do Marin e Berard, os vasos e perfumarias nas do Desmarais, os álbuns preciosos en vieil argent nas do Audoin; quase ninguém percorria a rua Parisiense nestes dias últimos (ib., 8 jan. 1854).
Uma das principais características dos cronistas-folhetinistas, na condição
de um tipo especial de flâneur, é o olhar aguçado sobre o cotidiano da
História e Imprensa
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cidade, ligando o dia-a-dia aos jornais e, conseqüentemente, aos leitores,
verdadeiros atores da vida na cidade. Por ser, além de jornalista, advogado
e político, Francisco Otaviano apresentava em suas crônicas folhetinescas
a preocupação com os assuntos sociais da população carioca. Em uma de
suas buscas pela notícia, visitou uma casa de detenção e dedicou toda a
sua produção semanal a relatar suas impressões.
Na encosta do morro da Conceição há um casebre estragado pelo tempo, onde se infiltram as águas que descem da montanha; casebre estreito, escuro, baixo, sem ar, sem luz, sem espaço; antro ou covil de feras mais do que habitação de homens, jaula para reptis venenosos, que podem aumentar a sua peçonha com o tóxico do ambiente; este casebre é a casa de detenção e ao mesmo tempo a cadeia pública da capital do império do Brasil, da cidade do Rio de Janeiro, a primeira da América do Sul, a segunda ou terceira de todo o continente americano, cidade ilustrada, opulenta, rendosa, recinto de trezentos mil habitantes!
[…]
O sistema adotado na penitenciária do Catumbi é o trabalho em comum durante o dia, e o do isolamento celular à noite e nas horas de descanso; porém, mesmo nas oficinas, os presos não podem interromper o silêncio impunemente.
Trajam todos um vestuário semelhante. Não são conhecidos por seus nomes, sim por seus números e classe (ib., 17 jul. 1853).
A circulação do cronista-folhetinista pela cidade exerce papel importante na
compreensão das crônicas folhetinescas como divulgadoras de uma trama social,
de um estilo de vida, de valores que sinalizaram a modernidade no século XIX.
Ler essas crônicas é absorver um pouco dos acontecimentos e como a
população carioca reagia às mudanças. É entrar nos cafés, andar no Passeio
Público nas tardes de domingo, ir ao Teatro São Pedro e à regata no Flamengo.
É, enfim, flanar, caminhar pelas então povoadas ruas do Rio de Janeiro
oitocentista.
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