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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo IX (78-77 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo IX

(78-77 a.C.)

Maria Galito

2017

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César e a Vestal 207 Maria Galito

Capítulo IX

676-677 AUC

O meu irmão quis armar-se em herói e o novo Eneias regressou ao Lácio.

Eu aguardava pelo regresso de César quando avistei um homem alto a caminhar pela via-sacra, de coroa cívica na cabeça. De acordo com a tradição, os romanos erguiam-se dos assentos para saudar os seus heróis. Portanto, as pessoas levantavam-se, em onda, à medida que o jovem passava e correspondia com acenos e sorrisos. Gritava-lhe o povo:

Vem aí o mariano!

Ave César!

O meu coração parou. É ele? Aproximei-me, para confirmar, embora Pales me impedisse relutantemente de ir além dos limites exteriores do santuário.

Há quatro anos que não via César! Desde o julgamento presidido por Sila que o recordava com compaixão, apesar das histórias de Cota sobre a Bitínia. Lembrava-me do miúdo que me dava beijinhos na casa de mármore cor-de-rosa; do rapaz com borbulhas que me abraçava na despensa do lar dos Emílios Lépidos; e do quase flâmine de Jove de cabelos lisos pelo pescoço e túnica às franjas. No geral, ainda imaginava o garoto frágil, de mente ágil e determinada. Mas após identificar no vulto, mais do que contornos, levei um susto:

César nem parece o mesmo! – Murmurei, mal contendo o espanto.

Confesso que mal o reconheci. O cabelo alourado já não lhe descia pelo pescoço, estava curto e bem penteado. Continuava alto e magro, mas o corpo parecia moldado em barro, forte e atlético, tal a perfeição com que os músculos se ajustavam ao seu físico imponente. Os olhos, inconfundíveis, brilhavam para reivindicar a primeira grande vitória! Caramba, ele estava bonito! Um verdadeiro filho de Vénus, que saíra fora do casulo para se transformar no homem mais atraente de Roma!

Ele não me viu, pois eu estava atrás da multidão que o saudava. Mas dirigiu-se à porta da Domus Publica para cumprimentar o tio Cota e Mamerco. Na ausência de Metelo Pio, que partira para combater a resistência de Sertório na Lusitânia, era o genro do falecido Sila quem geria o colégio dos pontífices do ponto de vista administrativo. Cota ocupava-se da supervisão dos rituais religiosos, enquanto Crassa, a mulher do pontífice máximo garantia a manutenção da Domus Publica e da Cúria Régia.

Bom dia, tio. Vim falar consigo e com Mamerco. Pode ser?

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Cota e Mamerco tinham-se afastado em tempo de Sila mas, quando o ditador foi para o Tártaro, reaproximaram-se e compensavam o tempo perdido. A guerra civil fora luta entre egos, mas as pessoas conheciam-se desde pequenas e algumas delas tentavam brigar o menos possível. Quando discordavam ideologicamente ou sentiam agravos em relação ao passado, tentavam seguir em frente; ou assim parecia. Agora César fazia mais do mesmo. Nada era feito a regra e esquadro naquela terra!

Sim, claro, entra. – Pediu-lhe Cota, com o aval do colega.

Os três entraram na Domus Publica e Pales puxou-me, já farto de estar parado, remexendo as orelhas em direção ao posto onde costumávamos distribuir pão à população. Portanto, o encontro com o filho de Aurélia foi adiado e eu conclui os meus afazeres desse dia, semelhantes aos que desenvolvia há quatro anos a favor dos pobres e desfavorecidos que, assim, beneficiavam diretamente do auxílio, sem intermediários ou confusões.

Eu entrava em contacto com os residentes da cidade, de todas as idades, que me confessavam as suas ansiedades e histórias de sobrevivência, às quais eu tentava corresponder com carinho e benevolência.

Vá em paz. – Pedia eu sempre, na despedida.

In media Res. Não era fácil esquecer a guerra civil e a ditadura de Sila. O povo ainda lidava com traumas enraizados. Eu tinha sobressaltos, mágoas e turbulências de alma. No Senado, os populares renasciam reclamando por justiça. Os mais penalizados exigiam a restituição das propriedades às famílias dos proscritos. O meu irmão liderava-os.

Marco sobrevivera a uma acusação de extorsão em tribunal e decidira apostar tudo na campanha ao consulado. Sila tentara acabar com a sua reputação! Mas Pompeu apoiara publicamente o amigo, também para contrariar aquele que lhe recusara um triunfo, mas aquartelara-se fora de Roma, amuado, sem assistir aos discursos inflamados do seu candidato. Já eu ouvira o meu irmão dissertar contra a indiferença:

Compatriotas, demonstro apreensão pela tirania de Sila; pelos seus atos abomináveis; por ele pensar estar seguro se for temido e fizer cada vez pior a um povo que ele escraviza em prol do seu interesse pessoal! Não consigo perceber porque é que homens distintos como Mamerco e Catulo o apoiam, ajudando a derrubar o que os antepassados conquistaram com as suas proezas contra Pirro, Aníbal, Filipe e Antíoco! O pior de tudo é que Sila tem sido protegido, apesar da enormidade dos seus crimes! Compatriotas, temos de recuperar a liberdade contra a cruel servitude! Devemos despertar e resistir ao tirano que admite todos os meios para manter a sua supremacia! O que mais nos resta se não lutar pela liberdade? Marco revoltara-se contra os abusos de poder:

Que leis humanas sobreviveram? Que leis divinas não foram violadas [por Sila]? O povo romano, que governa sobre tantas nações, foi despojado do poder, da sua reputação e dos seus direitos, sem meios para viver. Hoje é objeto de desprezo, por ter sido roubado por um homem e pelos seus escravos que, em recompensa

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pelos crimes que praticaram, se apoderaram de casas ancestrais! Foram realizados sacrifícios humanos e túmulos foram manchados com o sangue dos cidadãos. Nada nos resta, a não ser pôr fim à opressão ou morrer corajosamente!1 O meu irmão reclamara ter direito à indignação:

Sila diz que semeio a sedição, porque protesto contra as recompensas pagas à custa da dor das pessoas! Ele acusa-me de ser um amante da guerra, porque reclamo os direitos da paz. Não é verdade! Apoiem-me. A não ser que aprovem proscrições de homens inocentes por estes possuírem bens. A não ser que permitam torturas a cidadãos ilustres e consigam viver numa cidade despovoada pelo exílio e pelo assassinato; e suportem a venda e a doação dos bens de cidadãos, hoje miseráveis, como se fossem os despojos dos cimbros2. Marco defendera-se das acusações públicas que lhe faziam:

Sila diz que eu possuo bens de proscritos. Na verdade, a propriedade que comprei com medo e paguei, naquela época, já restituí aos seus legítimos donos! Sou contra o saque generalizado! Que se dê um fim ao crime e ao ultraje! Sila está longe de arrepender-se do que fez! Se lhe fosse permitido, faria tudo outra vez! Não se deixem dominar pela indiferença, que permita a Sila continuar a sua rapina! O sucesso pode ser uma tela maravilhosa para vícios! Se houver um reverso, será ele desprezado tanto quanto agora é temido!3

Lembro-me desse dia de Mercúrio, antes do escrutínio. Marco passara por mim, rodeado pelos seus admiradores, com cabelo esgrouviado e rosto brilhante, a faiscar de ilusão. Acenara-me, sem se importar com o protocolo. Aproximara-se a rebentar de energia, com um sorriso enorme:

Ouviste, maninha? O povo adora-me! – Exclamara, abrindo os braços.

Cuidado, não te exponhas demasiado… – Ainda lhe pedi.

O período da ditadura acabou! Viva à liberdade! Sou o novo campeão do povo! Olha à tua volta! Roma está comigo! – Vibrara de entusiasmo, despedindo-se com o seu arrebatamento característico.

Marco obteve a proeza de ser o candidato mais votado para o consulado, no ano em que Sila morreu. Filho de um pretor, conseguira ser eleito cônsul sénior da República, um orgulho que ele gabava às sete colinas de Roma!

O que senti quando o meu irmão ganhou o escrutínio? É difícil explicar. Eu gostava muito dele e desejava-lhe sucesso. Mas estava amorfa. Sentia-me como um móvel cheio de pó que nem dá vontade de começar a limpar! Enquanto sobrevivente da guerra civil, lidava todos os dias com pessoas que perderam tudo o que tinham. Racionalizava as emoções para conseguir geri-las. Não queria admitir que estava a sofrer, para não mostrar vulnerabilidade a quem podia acabar comigo. Dormia pouco para esquecer os horrores do conflito que depois revivia à noite, em pesadelos. Eu nem sempre recordava pormenores. Outras vezes não conseguia deixar de pensar neles!

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Enquanto romanos estávamos habituados a tomar decisões erradas sem refletir, para não enfrentarmos a dor. Silenciávamos as nossas ansiedades no fundo do peito, preferindo reportar o que estava a acontecer, com muita ação e pouca contemplação sobre os factos. Mas o mal-estar perdurava. Talvez porque a guerra civil terminara apenas oficialmente após a terceira invasão. A tensão social e política não expirara com o ditador. Os ânimos continuavam exaltados! A discórdia estava impregnada na cidade. Os populares, porém, confiavam na vinda de num salvador e, nessa medida, o meu irmão era a esperança num mundo melhor!

Marco tinha consciência das expectativas que terceiros depositavam nele. Com coragem, dirigia o desfalcado partido da oposição contra a maioria no poder. O que incomodava os optimates chefiados por Catulo, um líder igualmente emotivo.

Catulo é herdeiro de Sila e não vai dar hipótese nenhuma ao teu irmão. – Avisou-me Mamerco, um dia depois de Marco assumir funções de cônsul sénior de Roma.

Num plenário cheio de homens do antigo ditador e beneficiários do seu regime de exceção, o meu irmão parecia agulha num palheiro. Mas era mais valente do que os outros e sabia que o seu poder estava fora do Senado. Por isso, subiu à tribuna e dirigiu-se ao povo, nestes termos:

Para Sila, a República não podia ser estabelecida porque a guerra terminara. Mas os cidadãos podem ser cruelmente saqueados? Isto é paz e ordem? Quem pensa que sim, é a favor da total desmoralização do sistema, promove e derruba a República, cede às leis que lhe foram impostas, aceita paz servil e ensina as gerações futuras o preço do seu próprio sangue. Pela minha parte, alcancei o mais alto dos cargos e fiz o suficiente para viver a fama dos meus antepassados. Eu podia ter como prioridade a garantia da minha dignidade e da minha segurança. Mas não posso concentrar-me em interesses privados, sem velar pelos coletivos. Tenho de lutar pela liberdade que é de todos! Se vocês são da mesma opinião, sigam-me! Cidadãos de Roma ergam-se e, com a amável ajuda dos deuses, venham comigo. Marco, o vosso cônsul, será o vosso líder! Serei o vosso campeão para, em conjunto, recuperarmos a nossa liberdade! 4

Já não estás em campanha, cala-te! – Exigiu Catulo, que não era moderado. Mas o meu irmão estava com os azeites e ao invés de vergar, atacou:

Não me calo, nem ontem, nem hoje, nem amanhã! Exijo que seja publicada a lista guardada no Tesouro com os nomes dos que aplicaram a justiça de Sila!

Foi um rebuliço! O senado quase veio abaixo! A lista dos proscritos de Sila era pública; a dos carrascos não era. Em Roma cochichava-se sobre quem recebera os denários-de-sangue, mas apenas havia suspeitas sobre os autores dos crimes de Estado. Acontece que o Tesouro possuía tal informação. O rol de pessoas que havia recebido pagamentos através do erário público, constava dos registos guardados no templo de Saturno.

O meu irmão tem poder para se atirar de cabeça? – Perguntei a Cota, três dias depois de o meu irmão assumir funções.

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Sim, porque é o cônsul sénior. – Respondeu-me o tio de César.

Não, porque enfrenta homens poderosos como Crasso e Catilina. – Retorquiu Mamerco, que estava a ouvir a conversa.

O risco era grande! O meu irmão não se limitava a fazer propostas de lei, que se perdiam na interminável discussão pública. Não passava o tempo a embebedar-se, como era costume. Ele desafiava o senado de Sila! Pompeu também se queixava de ter investido no cavalo errado, de não ter escutado os conselhos do antigo ditador contra Marco e sentava nas sessões plenárias, incomodado com a toga, a suspirar por campanhas militares!

Para Pompeu, Marco é um traidor. – Avisou-me Cota, dez dias depois de o meu irmão assumir funções. Desta vez, estávamos só os dois a conversar. Ainda César não tinha chegado a Roma.

Pois não devia. – Atirei em resposta. – A questão não é pessoal. Ele conhece o amigo há tempo suficiente para saber que Marco detestava tudo o que tinha a ver com Sila. – Advoguei.

Não percebeste, Emília. O que conta é o apoio político, a declaração pública de voto no senado. – Tentou explicar-me Cota.

Marco não está a fazer campanha contra Pompeu. Tenho a certeza absoluta que não se virou contra ele. O meu irmão é fiel aos amigos e tem um coração enorme! É boa pessoa. Só está a tentar fazer o que é justo! Pompeu é que se virou contra ele no dia do funeral de Sila e agora conspira contra ele no Senado. – Advoguei e julguei estar coberta de razão.

Marco colocou-nos a todos em perigo na noite das exéquias do ditador. Se Pompeu não tivesse agido como agiu, podia ter havido mortos e feridos, tal a agitação que o teu irmão provocou entre o povo. – Contra-argumentou Cota.

Sila não merecia o funeral que teve. – Insisti.

Para todos os efeitos, Marco exige o que não interessa a Pompeu. Coloca-o numa posição difícil no plenário, perante os seus pares, que o acusam de ter apoiado a quem não devia. Pompeu não é um senador comum, pois é um grande guerreiro mas um anão político, portanto, teme perder votos por ter protegido o teu irmão, um homem acusado de extorsão na Sicília.

Calma! Marco foi ilibado das acusações! Catulo foi o autor das calúnias, por razões puramente eleitoralistas, como ficou demonstrado em julgamento.

Pompeu causar problemas ao teu irmão. – Recordou Cota. – Mas o teu irmão é uma carta solta fora do baralho de Pompeu. A amizade deles está por um fio…

Pompeu é como Sila? – Interroguei.

O jovem carniceiro? Não. – Troçou Cota, como se a alcunha fosse divertida.

A rivalidade entre Marco e Catulo é perigosa? – Perguntei, preocupada.

O teu irmão tem muita energia mas há uma ampla maioria de optimates no senado.

Marco não tem base de apoio suficiente, é isso? – Insisti em perguntar.

É mais provável que as lutas de poder ocorram dentro do partido optimate. Ouve, Emília. Sila admitia que as reformas introduzidas por ele eram tão amplas e

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profundas, que Marco (ou outro qualquer) seria incapaz de reverter a situação. – Comentou Cota, sentado a meu lado na Curia Regia. Estávamos os dois sozinhos. Em breve, deixámos de estar. Os colegas apareceram, dando início à assembleia.

O novo ano civil começava mal! As diferenças entre os cônsules pareciam irreconciliáveis. Ainda agora se tinham sentado na cadeira curul e já demonstravam indisponibilidade para acordar no que quer que fosse. Marco e Catulo trocavam galhardetes regularmente em público, sobretudo no Senado.

Bando de assassinos a soldo! Sim, estou a referir-me a vocês nas filas de trás! Não vale a pena esconderem-se com as togas. Eu bem vos vejo! Julgam que não sei como entraram no senado? Mataram pelo direito de sentar-se aqui, onde se devia glorificar a República! – Acusou Marco, antes de ousar mais ainda. – Tenham vergonha! Restituam as propriedades expropriadas aos donos originais e peçam perdão aos deuses pelo sangue que derramaram às ordens de Sila!

O hemiciclo veio a baixo! Catulo atirou-se a Marco com unhas e dentes. Os senadores tiveram de separar os cônsules desavindos e propor uma trégua. Para evitar uma cisão irremediável no Senado, os magistrados iniciaram uma série de diligências paralelas, em prol da estabilidade política. Os altos dignatários da República reuniram-se, fora do plenário. Houve pelo menos um encontro na villae urbanae de Pompeu, às portas da cidade e Cota avisou-me sobre a solução encontrada:

Vão passear! Foi a deliberação final. – Resumiu ele.

O quê? – Estranhei, de olhos tortos.

Marco, Catulo e Pompeu foram convidados a sair de Roma. Cada qual receberá o governo de uma província. Ao teu irmão foi atribuída a Gália Transalpina. Pompeu partirá para a Hispânia Citerior, com o objetivo de ajudar o pontífice máximo que gere a Hispânia Ulterior. Catulo… não sei ainda para onde vai, mas deve ficar na vizinhança.

Isso é bom, certo? Promove a paz! É o que queremos. – Atrevi-me a admitir.

Pois, enfim, talvez… As suas hesitações confundiram-me.

Afinal, o acordo é bom ou mau? – Quis eu saber.

Para o teu irmão é favorável. A Gália Transalpina é uma província que ele poderá rapinar à vontade…

Cota! – Censurei, de olhos esbugalhados.

Desculpa, estou a brincar. – Declarou, tentando apaziguar-me. Prosseguiu com as explicações. – Para Pompeu, é excelente. O Senado atribuiu-lhe comando proconsular, equiparável ao de Metelo Pio (bom, quando o gago souber, passa-se!). Pompeu é um herói militar que nunca foi questor, nem edil, nem pretor, nem cônsul, que ascendeu diretamente a procônsul! Que eu saiba, é inédito! – Exclamou, meio atordoado.

Marco recebeu a notícia com má vontade. Embora o cargo de procônsul na Gália Transalpina fosse prestigiante, fora-lhe entregue antes de tempo. Ele queria manter-se em

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Roma para terminar o mandato e governar a cidade de acordo com os seus princípios. Almejava reaproximar-se de Apuleia, de quem se divorciara. Queria reunir a família outra vez sob o mesmo teto e inaugurar a nova Basília Emília, um projeto antigo do nosso falecido pai, no qual ele investia o que tinha (e não tinha).

O edifício foi uma oferta dos nossos antepassados à cidade. Faço questão de manter digno aos olhos do povo! Vou transformá-lo no mais grandioso de Roma! Expliquei o meu plano a arquitetos e empreiteiros. A Basílica Emília ficará mais bonita do que a Semprónia e a Pórcia! Enquanto paterfamílias, pretendo honrar os meus egrégios avós e iniciar as obras de restauro imediatamente. O que te parece?

Parece-me bem. O nosso pai, se fosse vivo, aprovaria a ideia. Mas pensas pagar as obras como? – Indaguei, pois ele nunca pensava em dinheiro.

Tudo se arranja, maninha. Mas podias ajudar-me.

Eu?

Vives no fórum. Passeias o jumento de um lado para o outro. De vez em quando podias dar uma olhadela na empreitada! Aproveitavas para encaminhar as estátuas e as tapeçarias da minha casa para os sítios certos, percebes? Tu tens paciência para essas coisas. Eu prefiro ver tudo já feito! Tenho de me preocupar com outros assuntos. Olhei bem para ele e respirei fundo.

Está bem, Marco. – Aceitei, admitindo o desafio interessante.

Se era normal o que ele me pedia? Nem por sombras! Eu era uma vestal. Para não haver sarilhos, negociei diretamente com a mulher do empreiteiro. Não a conhecia de lado nenhum, mas ela foi acessível e simpática, falou com o marido e a questão resolveu-se.

Acordámos contratar pedreiros livres para os trabalhos mais qualificados e específicos, que correspondiam a metade da mão-de-obra, uma medida que contribuiu para o aumento do emprego na cidade. Também comprei os materiais a empresários romanos, desde que tratassem bem os escravos envolvidos na empreitada.

O cônsul meu irmão não quer ninguém a morrer na obra. Nada de maus augúrios. Veja lá, não me desiluda! – Disse eu ao mestre-de-obras.

Não quero problemas com Vesta! – Exclamou ele, referindo-se ao facto de uma sacerdotisa estar a supervisionar o seu trabalho. Resolvi ser diplomática:

Ouça, se a obra correr pelo melhor, eu faço uma oração para terem todos muita saúde e vida longa, sob a proteção da deusa. O que lhe parece?

O apoio divino é sempre bem-vindo.

O empreiteiro ficou satisfeito com o acordo. Pelo sim, pelo não, o marido da Ana redigiu o contrato e marcou presença na reunião, que houve na Basílica Emília, à qual presidi rodeada pelos meus lictores. Marco foi chamado para cunhar o papiro com o seu sinete. Nem leu as letras, nem olhou para os números. Deu oficialmente o seu aval e eu arquivei o documento nas estantes do átrio das vestais.

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Dois dias após terminar a Vestália, Marco passou por mim, por Cota e Mamerco, junto à Cúria Regia. Ergueu os braços para saudar-nos. Ele estava bem-disposto e completamente esquecido que falara mal do marido de Cornélia em discursos no Senado.

Apuleia aceitou! – Exclamou o meu irmão, de braços abertos.

O quê? – Perguntei, sem saber a que se referia.

Apuleia vai voltar a viver comigo no Palatino. – Confessou, enquanto dançava com o corpo à nossa frente. – Vamos ser uma família outra vez! Digam-me vocês, é bom presságio, não é?

Não somos áugures, somos pontífices. Não lemos sinais. – Declarou Mamerco, com cara de irritado.

Estamos contentes por ti, Marco. Felicidades. – Foram os votos de Cota. O meu irmão abraçou-o, tão feliz que parecia explodir!

Eu ainda estou aborrecido contigo. – Alertou Mamerco.

Não estejas. – Pediu-lhe Marco, agarrando-se a ele de forma tão calorosa, que o outro custou a ver-se livre dele.

Homem apaixonado é tão estúpido! – Queixou-se Mamerco. Marco riu-se e nós também. O marido de Cornélia rebolou os olhos, que remédio!

Mana, tens de ir dar um jeitinho à casa. Ela precisa de flores! E de… coisas femininas, sei lá! Tratas disso, não é mana? Fazes isso por mim…? – Pediu, como se fosse um cachorrinho.

Hoje tenho vigília no templo, mas amanhã vou. – Prometi. Ele ficou radiante.

Obrigado, queridinha! Até logo a todos.

Marco tinha cabelos grisalhos, mas era um eterno miúdo, daqueles que sonham acordados. Mamerco manteve os olhos nele até desaparecer entre os prédios:

Quem o viu e quem o vê. Até se esqueceu do vinho.

Ele já não bebe? – Surpreendeu-se Cota.

Desde que foi ilibado em tribunal que só bebe um copo às refeições. – Advertiu Mamerco, que ligava a tudo o que o outro fazia. – Meteu-se outra vez com Apuleia e deu nisto! – Suspirou. – As mulheres dão-nos cabo da cabeça, eu que o diga. Bom, tenho de regressar a casa que a minha mulher espera-me para cear e eu prometi não me demorar no fórum.

Então, quem é o apaixonado agora? – Trocei. Mamerco enrubesceu violentamente e Cota desatou a rir.

No dia seguinte, conforme combinado, subi pela vereda do Palatino, na companhia de Pales e com o lictor a proteger-me a retaguarda. Marco ainda não chegara a casa, mas o edifício brilhava com tochas acesas. Perguntei a Amílcar o que se passava. Ao que parece, os escravos andavam a fazer limpezas, a colocar flores nas jarras, a limpar móveis e a recolocar armários em posição mais vantajosa. Tudo a dançar e a cantar como se fosse uma festa!

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César e a Vestal 215 Maria Galito

Dois rapazes vieram ter comigo a correr. Ou melhor um veio, o outro mais ou menos. Lépido deu-me um grande abraço, com os cabelos espetados para cima e um sorriso maroto. Paulo, sob a influência de Mamerco, foi mais conservador nos cumprimentos. Mas eu agarrei nos dois com igual entusiasmo e despenteei-os com beijinhos na testa.

Quem são os lobitos mais queridos que existem na face da terra? São os sobrinhos lindos da tia! – Elogiei-os. Até Paulo se deixou rir, pois o irmão tratou de lhe fazer cócegas. – Então, por aqui há novidades? – Perguntei.

Havia escravas novas lá em casa. Uma delas, em particular, chamava-se Híspalis. Desconheço o seu verdadeiro nome, pois a designação referia-se à cidade onde fora capturada, situada na Bética. Ela era a nova companheira de Amílcar.

Foi o pontífice máximo quem enviou um carregamento de escravos da Bética para Roma. Mamerco tinha levado o meu irmão ao mercado, para vê-los chegar. Os dois tinham pago bastante pelos melhores do grupo. Marco encantara-se com Híspalis, por quem teve de regatear mais do que o normal, tal o interesse que a mulher gerou nos homens do fórum Boário. Ela, apesar das agruras pelas quais passara, tinha grande alegria de viver. Parecia uma tocha na escuridão!

A tia já sabe que o pai vai para a Gália Transalpina? – Perguntou Paulo.

Vais ter saudades do teu pai? – Perguntei-lhe carinhosamente.

Eu vou. A mãe não sei. – Respondeu Paulo, mordendo o lábio.

Porque dizes isso? – Estranhei.

O meu sobrinho não quis verbalizar os seus pensamentos. Nem Lépido permitiu que o fizesse, conduzindo-o para a roda-viva das escravas que rebolavam os braços no ar e batiam com os pés no chão, com os cabelos negros caídos em cachos pelas costas. Os seus corpos eram sedutores e dançavam arrojadamente.

Permaneci junto dos meus dois sobrinhos até Marco regressar a casa. Ele demorou a chegar, mas comportou-se qual tivesse cumprido o horário do relógio de sol.

A casa ficou ótima, maninha! Eu sabia que podia contar contigo. Apuleia vai adorar entrar por aquele átrio!

Estás mesmo contente. – Sorri-lhe.

Sim e tenho tudo planeado! Vou convidar Cipião e Regilo para virem cear cá a casa mais vezes. – Explicou-me Marco.

Raramente vejo os teus filhos mais velhos, como estão?

Regilo estuda para ser advogado e anda entusiasmado com o regresso de Cícero a Roma. O homem é grande amigo dele e trocam mensagens em papiro, por correio marítimo. A turma do meu filho está a pensar organizar-lhe uma grande receção! A notícia não me animou. Mas não a critiquei em voz alta.

Cipião, o que é feito dele? – Preferi perguntar.

Passa os seus dias no Campo de Marte. Quer ser legionário! Pediu-me para levá-lo para a Gália Transalpina. Ele adora-me. Não me larga de maneira nenhuma e

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sabes que eu sou um coração mole! Não quero chatices com o pai adotivo dele, mas o filho é meu, certo? – Defendeu, com emoção assolapada.

Não devias tê-los desfiliado, Marco. – Lembrei-lhe, pois era verdade.

Eu não devia ter feito muita coisa! Sei que decidi em função das circunstâncias. Os deuses sabem o que sofri para garantir o melhor para os meus filhos. – Contra-argumentou de forma veemente e abraçou-me.

Marco era um iludido. Mas era meu irmão e eu derretia-me com ele. Despedi-me, pois estava atrasada e a vestal máxima podia reclamar. Ele deu uma série de recomendações ao lictor que teria de levar-me ao fórum e passou a mão direita pelo dorso de Pales. O animal sagrado não achou piada, zurrou e afastou-se, mas devia estar cansado, depois de um dia inteiro fora do santuário.

A viagem foi curta. Dispensei o lictor e levei Pales até à sua caminha de palha. Escovei-o, pois estava sujo e poeirento. Guardei as ferramentas de trabalho, as cestas e tirei-lhe a sela. Ao verificar que estava ferido lateralmente, por causa dos arreios, tratei-lhe a lesão com um unguento malcheiroso mas eficaz, que eu guardava na algibeira para as ocasiões. Tratava bem do bichinho e ele pareceu ficar aliviado. Enchi-lhe de água o bebedouro e Pales remexeu a cauda. Fiz-lhe afagos do dorso e despedi-me:

Estás melhor? Sim? Ainda bem. Um dia destes temos de arrumar as trouxas, Pales. A ditadura terminou, o período excecional acabou. Os pontífices já pedem para deixarmos de circular pela via-sacra e tu estás a ficar cansado, meu amigo. – Suspirei. Ele não percebia o meu latim, mas inclinou o focinho e eu reguei-o com mimo. – Eu também gosto muito de ti, fofo. Até amanhã.

As iniciativas solidárias não terminaram imediatamente, porque eu precisava de liberdade para me despedir do meu irmão, que partia para a Gália Transalpina com os dois filhos mais velhos. Cipião seguia o pai por ambicionar carreira militar! Regilo, mais intelectual, disponibilizara-se para ajudar o progenitor nas letras e nas contas, ou seja, com a burocracia inerente ao governo provincial.

Os três montaram belos cavalos, num dia de Marte, cerca de dois meses antes de César ou Cícero regressarem a Roma. Uma desilusão para Cipião, que desejava cumprimentar o herói galardoado com coroa cívica e saber tudo sobre as batalhas em que se envolvera. Uma frustração para Regilo, que gostava de ter participado na festa que organizara para o amigo e de ouvir sobre a experiência do advogado na Grécia, junto dos mais famosos oradores e filósofos da época.

Façam boa viagem e tenham muito cuidado na estrada. – Recomendei.

Tia Emília, já nos despedimos dez vezes! – Queixou-se Cipião, já de rédeas na mão e queixo erguido de satisfação por iniciar a sua primeira expedição.

Está bem, mas não se armem em heróis logo no primeiro dia. Regressem vivos, os três. – Pedi-lhes encarecidamente. O meu irmão ainda beijava a mulher, quando subiu ao cavalo e deu ordens:

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Cipião, Regilo digam adeus à mãe, à tia e aos manos. – Pediu Marco. – Temos de ir. Vá, tem de ser.

Apuleia parecia calma no dia em que Marco e os filhos partiram. Eu estava nervosa e inquieta, nem sabia bem o que tinha ou sentia, com medo por eles.

Espero que voltem em breve, sãos e salvos. – Suspirei. Ela não me respondeu e entrou em casa com um aceno, antes de fechar a porta. Eu regressei ao templo redondo de Vesta e lembro-me de orar toda essa noite.

Só depois chegou César, pelos idos do oitavo mês de 676 AUC. Marco correspondera-se, com ele, por correio marítimo durante dois anos, pois insistira no regresso do sobrinho do falecido Mário à cidade e de todos os outros exilados políticos expulsos por Sila. Não admira que fosse popular e recebesse o apoio político de milhares de pessoas espalhadas pelos territórios associados a Roma, que se consideravam lesados pelo governo anterior.

César tinha fama de valente, pois fora-lhe atribuída a segunda condecoração militar mais alta da República. A coroa cívica era galardão prestigiado que ele podia usar nos eventos públicos e ele não se fazia rogado de a meter na cabeça sempre que lhe apetecia.

No dia em que César visitou o tio e Mamerco na Domus Publica, resolvi dar sossego a Pales. Junto à manjedoura, lavei-o, dei-lhe de comer e de beber. Depois despedi-me:

Pales ajudaste-me a distribuir muitas cestas de comida nestes quatro anos. Fizeste um bom trabalho. O povo de Roma tem agradecido o teu esforço com palha e cenouras, que eu sei! – Sorri-lhe, enquanto ele remexia a cauda peluda. – Confesso que resisti à ideia e adiei a decisão de arrumar as tuas arreias mas, felizmente, a população precisa menos de nós, já não faz fila à nossa volta e eu não posso esforçar-te demais. – Disse-lhe e o jumento baixou as orelhas. – Mas venho visitar-te todos os dias. – Acrescentei e as suas orelhas arrebitaram-se.

No dia seguinte, lavei-me toda com água fria e mudei de roupa. Sequei o cabelo ao sol e pedi a Perpena que me fizesse as tranças do sacerdócio. Comi qualquer coisa para enganar o estômago e fui orar ao templo. Depois saí do santuário e caminhei até ao fim da rua para inspecionar as obras na Basílica Emília.

Era bem cedo. O empreiteiro ainda não tinha chegado e o edifício estava vazio, pois as lojas tinham fechado por causa do pó, dos andaimes e da confusão que afastava clientes.

A Basílica Emília parecia um estaleiro! Entretive-me a olhar para os acabamentos, pois eu precisava de ter a certeza que as obras avançavam. Tomei atenção aos pormenores. Havia materiais de construção espalhados por todo o lado. Baldes, argamassa e telhas acumulavam-se nas alas. Algumas das estátuas da casa de Marco já tinham sido transferidas do Palatino para o fórum, mas mantinham-se incólumes, nada estava partido.

De repente, um vulto. Um homem aproximou-se de mim enrolado numa capa escura. Era magro, mas tinha ombros largos. Assustada, dei dois passos atrás, olhei em volta e engoli

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em seco. Ainda estava a refletir sobre a melhor opção a tomar, quando escutei uma voz familiar:

Sou eu, César.

Os seus olhos inconfundíveis encontraram os meus. Por momentos, ficámos os dois em silêncio. Havia muito para contar, mas não sabíamos o que dizer. Palavras não poderiam descrever o que eu sentia ao revê-lo. Abraçámo-nos. As suas mãos enrolaram-se na minha cintura. Encavalitei-me no seu pescoço, de pés em pontas.

Bem-vindo a Roma. – Saudei-o.

Estavas com saudades minhas? – Perguntou, numa voz timbrada, mais grossa do que eu estava habituada. Aos vinte e três anos, ele era um adulto experiente e experimentado.

Sim, muitas. – Confessei, baixando os olhos.

Aqui podem dar connosco. É melhor subirmos. Vem!

César pegou-me pela mão. Subi com ele dois trechos de degraus, até ao andar superior. Era a zona mais reservada e limpa do edifício. Quando finalmente chegámos, a uma porta que ele abriu, entrámos os dois para espaço arejado, de onde o sol despertava os primeiros raios. Ele encostou a madeira, trabalhada e ornamentada, atrás de si, bem devagar. Deixou que eu espreitasse por uma das janelas e ficou a observar-me. Até que eu rompi o silêncio:

A última vez que te vi, sangravas e pensei que morrias. Prefiro ver-te assim, feliz.

Quem te disse que sou feliz? – Foi o desafio que me lançou, com voz carregada.

Não és? – Perguntei, com voz sumida. Sentia-me tímida, na sua presença.

Sila fez tudo para destruir-me! Mas eu não deixei. Escapei à sua crueldade e, agora que morreu, regressei a Roma, disposto a começar tudo de novo. Ele queria vingar-se, ou já se considerava desforrado?

Sila subestimou-te, mas tu sobreviveste à barbárie e foste aclamado como herói. Ele troçou de ti, mas quem ri por último, ri melhor. Venceste, César. Parabéns!

Obrigado, Emília. Fico contente que penses assim.

O seu olhar arrepiou-me. Contraí-me e afastei-me. De repente, estava nérvea, apreensiva e tremendamente púdica na sua presença. Eu não conseguia descontrair. Naqueles anos de horror, eu reprimira as minhas vontades e desejos.

Como te sentes ao ver-me de novo? – Indagou com voz de mistérios.

Não creio que ele estivesse a seduzir-me. César pisava ovos comigo. Pensava duas vezes antes de agir. Parecia tão distante de mim quanto eu dele. Aquela espúria sensação de desconforto era nova para nós. Conseguiríamos ultrapassá-la?

O regime de Sila foi duro para todos nós. Estes quatro anos demoraram muito tempo a passar. – Foi o meu desabafo. Ele não foi terno, ao responder:

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Lá fora, a vida não me foi fácil. Na verdade, eu mudei desde que me fui embora. – Avisou enigmaticamente.

O seu olhar carregava ressentimento. A experiência de vida marcava-o. O seu olhar era frio. Mas eu conhecia um César de sangue quente, por isso, tentei ser compreensiva:

Vencer batalhas dá glória e pesadelos, não é?

Mas só nos preparam para a vitória. Esquecem-se das consequências com que lidamos para a obter. – Atalhou com olhar de pedra. Respirei fundo. Ele sofria, por dentro.

Ao menos recebes o reconhecimento dos teus pares. Eu derramei lágrimas ao enfrentar interesses instalados mas, passados estes anos, ninguém atribui valor ao que fiz pela cidade, só para tentar ajudar as pessoas.

Enganas-te, Emília. O povo fala muito na vestal que dá pão aos pobres.

A sério?

Sim, querida.

Fiquei suspensa na sua frase. O meu coração começou a bater tão depressa, que afastei-me de César, numa direção oposta à sua, entrando nas sombras. Ele deixou-se estar onde estava, encostado à parede e à luz do sol que ainda nascia.

Não te escondas, quero ver-te. – Pediu na sua voz masculina.

Como assim? – Interroguei, continuando a espreitá-lo atrás de mim.

Gostava que te despisses para mim. Há muito tempo que sonho com isso.

Em Roma, os casados não se desnudavam na intimidade. Até em ambientes progressistas as matronas mantinham o decoro. Senti a pele num frenesim. Eu não tinha propriamente vontade de me despir. Mas ele vivera entre os asiáticos, estava habituado a culturas menos conservadoras e não tive coragem de lhe dizer que não.

Queres ajudar-me? – Pedi-lhe suavemente.

Não sei o que ele ouviu. Mas atirou-se a mim, sem esperar pela roupa que custava a sair. Excitado, conquistou o meu corpo arrepiando caminho. Sussurrou palavras estranhas pelo meu pescoço, que pareciam inflamá-lo e eu tentei corresponder às suas expetativas, guiando-me apenas pelo instinto, pois ele tinha mais experiência do que eu.

Naquela Basílica em construção, a insânia de nos reencontrarmos, ao fim de tanto tempo afastados, parecia fazer ricochete. Ele agarrava-me com força. Parecia absorto e eram os meus lábios a quem a sua boca procurava. O seu cheiro entrou-me pelas narinas e eu perdi-me na sua sedução. Até que ele parou, de repente.

O que estou a fazer?! Tu és uma vestal.

César eu…

É melhor irmos embora. Os trabalhadores da obra podem regressar. – Exigiu, de rosto afogueado.

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César tinha-se arrependido. Mas, em ambos os momentos, deliberara unilateralmente. Eu deixei que nos arrastasse pela corrente e fiquei sem palavras. Alisei as vestes, tão depressa quanto pude, para não dar parte de fraca e respondi, ainda antes de me arrumar:

Podemos ir, estou pronta.

Descemos pelas escadas, em silêncio. Pelo meu cérebro atravessavam mil pensamentos, todos eles confusos. Até que, no piso térreo, César parou. Deu-me um beijo leve nos lábios e despediu-se:

Ficas bem? – Perguntou, já com os pés virados para a rua. – Sim? Depois falamos. Peguei-lhe pelo braço, para perceber porque fugia.

Vamos conversar.

Não podemos, Emília. – Declarou, com voz gelada.

O meu coração parou. Fiquei fixa nos seus olhos, que queriam evitar-me. Por momentos deixei de respirar. Eu estava em estado de choque. Nem pestanejei. O orgulho ferido calou todas as minhas dúvidas. As razões para a rutura não me interessavam. Eu não estava ali para negociar a minha permanência na sua vida.

Eu sei que não podemos. Mas tal não nos impediu antes…

O risco é demasiado grande. A guerra acabou. Eu já não sou flâmine e…

Tu já não tens tudo a perder e com uma coroa na cabeça a parada subiu. – Resumi, para sua surpresa. Ele também não estava à espera do que eu lhe disse a seguir. – Eu entendo. Somo adultos, devemos separar-nos definitivamente.

No meu íntimo, apenas queria ouvir um sabes que te adoro, não consigo viver sem ti. Para mim, o seu não podemos voltar a ver-nos, não servia. César não viera convidar-me a fugir com ele. O seu objetivo era vingar na cidade. Portanto, a nossa relação não tinha futuro. Ele começou a agitar-se. Sentia-se preparado para lutar contra a minha resistência mas, como eu não lhe oferecia nenhuma, ele não sabia o que fazer. Passou a mão pelo cabelo, até que eu desferir golpe final, que lhe retirou a cor do rosto:

Se a tua intenção era deixar-me, devias ter-me avisado antes de me tocar. – Despedi-me secamente e virei-lhe as costas. – Adeus, César.

Lancei-me à rua, sem que ele tenha feito qualquer tentativa para me confortar. Não olhei para trás, pois sentia-me sufocada, incapaz de pronunciar uma palavra, acossada, com urgente vontade de fugir!

Fui-me embora, enrolada no pálio. Se passou alguém por mim, não vi nem cumprimentei. Ninguém me esperava no templo de Vesta. Por isso, entrei de imediato no dormitório. Fui para o meu cubículo, reduto único que me restava num mundus que não era meu. Sentei-me na cama e chorei.

Como se cura o coração partido?

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Eu não queria lidar com o assunto. César já não queria estar comigo e eu sofria com o defraudar das expectativas. Sentia-me abandonada por aquele que eu mais adorava. Mas tinha consciência da falta de alternativas.

Para reprimir a minha tormenta, tranquei portas sob uma máscara impenetrável. Bati no próprio rosto para acabar com as lágrimas e fiz o que pude para deixar de pensar em César. Tentei impedir-me de sentir, pois sabia a dor demasiado forte para ser suportada!

Eu parecia alma penada no templo. Mas podia suspirar o que quisesse que ninguém me acudia! Fonteia concentrava-se dos seus rituais. Fábia e Licínia, o que faziam, eu não sei; desapareciam depois de encher Popília e Perpena de explicações que eu não entendia, mas que pareciam satisfazer as suas mestras, que seguiam para os tribunais, onde se sentavam, com toda a pompa e circunstância, entre bisbilhoteiros como elas, para assistirem aos julgamentos dos antigos carrascos dos proscritos.

Dediquei-me às orações, tentando não pensar em mais nada. Até que, numa tarde de Mercúrio, o colégio se reuniu para deliberar sobre questões correntes.

A assembleia foi presidida por Mamerco, que não se importava de assumir a liderança da Domus Publica em substituição de Metelo Pio; e do Senado na ausência de Catulo e de Marco. Era dos pontífices há mais tempo em funções. Fora eleito cônsul uns meses antes. Se ainda não assumia o cargo oficialmente, no geral, era o dono daquilo tudo! O diplomata que negociava tanto com a direita, como com a esquerda, porque sim ou porque não, como pelo contrário, mantinha-se em posto de rosto sereno e compenetrado, sentado junto a uma mesa de madeira atolada em pergaminhos devidamente organizados por datas, urgências e assuntos pendentes. Ele rodeava-se de informação privilegiada graças à confiança que a maioria dos senadores depositava nele.

O meu sobrinho resolveu investir numa carreira de advogado. – Confessou Cota, a meu lado, mas em conversa com Mamerco.

Se tiver metade da tua competência como orador, Roma ganhará com isso.

Obrigado, Mamerco. – Agradeceu Cota, com um sorriso. – A ver se César tem mais sorte desta vez. Não pôde ser flâmine de Júpiter. Talvez vença nos tribunais.

Quando é que ele começa?

Quando tu te sentares na cadeira curul. – Avisou, Cota, espreitando-o.

No mês de Jano?

Daqui a dois meses.

Hum… ele vai acusar algum governador de extorsão?

Como é que tu sabes?

Bom, vejamos… – Foi a introdução de Mamerco, recorrendo a um pergaminho que retirou do topo de uma pilha de documentos. – Dolabela está a caminho de Roma para celebrar o seu triunfo. Enviou-me missiva a vangloriar-se sobre as suas gloriosas vitórias, confirmando que já se despediu dos seus fiéis legionários e que regressará calmamente a casa no final do ano, de barco, grato pela experiência. – Leu, dando ênfase a certas frases de Dolabela. Mamerco queria mostrar ao amigo um segundo testemunho, o qual procurou sem grande dificuldade sobre a mesa. –

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César e a Vestal 222 Maria Galito

Entretanto, recebi uma delegação de macedónios, que me entregou esta petição assinada pelos mais ilustres da região a acusar Dolabela de más práticas, aplicação desmesurada de impostos e rapina de templos. Ao que parece, o homem excedeu-se junto das populações e impôs-se sobre a comunidade de romanos que vive na província. Mas os macedónios já têm defensor, um jovem brilhante que se disponibilizou a ajudá-los. Será isto?

Se tu já sabias, porque perguntaste? Mas o tio de César não parecia surpreendido.

Cota, Cota… – Brincou Mamerco.

Portanto, César planeava investir numa carreira de advogado. Ele preparava a acusação a um ex-cônsul de Sila, um dos homens mais poderosos da época, pelo que atirava a flecha alto! Almejava subir à barra do tribunal para acusar Dolabela de extorsão. Sob vigilância apertada, não podia dar-se ao luxo de se aproximar de uma vestal. Era esta uma das razões para a nossa abrupta separação. Havia mais. Soube-as depois.

No final desse ano, participei nas celebrações de Bona Dea na casa do cônsul sénior, ou seja, do meu irmão. Três dias antes das nonas do décimo mês, em tempo das chuvas (e fazia um frio de rachar!), subi ao Palatino pela vereda que eu tão bem conhecia, na companhia de Fonteia e Perpena. Fomos escoltadas por dois lictores, até batermos as aldrabas da casa patriarcal. Fomos recebidas por uma escrava desconhecida.

Na cerimónia de Bona Dea não podiam participar homens. Amílcar estava fora de serviço nessa noite. Até aí, tudo normal. Mas devíamos ter sido recebidas por Híspalis. Dela nem sinal. Onde estaria? Não fiz perguntas a propósito, pois a mulher de Marco não era pessoa para distinguir uns escravos dos outros e a Ana já não frequentava a casa, desde que os meus sobrinhos tinham sido atribuídos aos cuidados da mãe.

Sejam bem-vindas. Já chegaram todas! – Avisou Apuleia, enquanto retirávamos os mantos que nos cobriam. Sacudíamos a roupa do vestíbulo até ao átrio.

Logo depois, começou a sessão de cumprimentos presidida pela chefe das vestais. Fonteia foi exemplar na obediência ao protocolo. Seguimos em grupo organizado até ao triclínio, onde nos foi servida uma refeição.

Perpena foi a primeira a acabar de comer e a sair do triclínio, para se encarregar da vigília do fogo sagrado, junto ao altar doméstico. Apuleia manteve-se sentada no lugar do paterfamílias, comigo à esquerda e Fonteia à direita. A meu lado, Júlia comia lentamente e pouco conversava.

Aurélia e Cinila entretinham-se a bisbilhotar, até que a sogra revelou a notícia da noite. A nora estava grávida. Instintivamente, olhei para a mulher de César e logo me arrependi. Ela já não era uma garota, era uma mulher! Estava pundonorosa, triunfante e agarrada a barriga que mal se pronunciava! Os seus cabelos castanhos eram muito lisos, apanhados ao jeito da moda. Ela era feia, fria e tinha olhos estrábicos? Na verdade, não sou a melhor pessoa para a descrever!

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Sei que Cinila ocupava o lugar que os deuses me haviam roubado ao entregar-me a Vesta! Eu não conseguia engolir a afronta ou perdoar tal ideia! Mas ela ainda ousou olhar para mim com desprezo, como se as suas unhas compridas fossem garras e os dedos punhais. Não tive medo dela. Senti ciúmes e tristeza profunda e o meu corpo desfaleceu.

Júlia amparou-me, para eu não tombar do meu assento. Tentei recompor-me, sob a sua mirada. Ela disfarçou. Agarrou numa peça de fruta e começou a cortá-la, devagarinho:

A Emília e o meu César eram tão engraçados em pequenos. Andavam sempre juntos, de mãos dadas. Aquilo era uma risota pegada lá em casa!

A tia Júlia fazia torradas barradas a manteiga das Gálias, lembra-se? – Perguntei.

Ainda faço. César não passa sem elas. Às vezes acho que é só o que come. Agora deu na mania de jejuar.

Ele não come porquê? Júlia deu-me fruta descascada para a mão:

Não obrigada. Não tenho fome. – Agradeci, afastando de mim o alimento.

A Emília não come porquê?

Não sei.

César também não. – Replicou, com ironia. Eu tinha caído na sua ratoeira. Júlia era uma mulher inteligente. Por isso contou-me uma história. – O meu marido costumava dizer que, no exército, o porta-estandarte assumia responsabilidade grande. O signifer preferia morrer a entregar a águia de Roma, apenas uma efígie para os inimigos, mas de crucial significado para os legionários que tudo faziam para a salvar e não a deixavam cair nas mãos de ninguém. Ela estava a dar-me uma lição de moral e eu engoli-a.

Eu devo ser como o porta-estandarte, é isso? – Depreendi.

Não dê a sua águia a ninguém e identifique bem os amigos dos inimigos. – Recomendou a viúva de Mário num sussurro de mulher valente.

Quem são os meus inimigos? – Perguntei-lhe com sorriso triste.

Preocupe-se mais em distinguir os falsos dos verdadeiros amigos. – Aconselhou.

De repente estava cheia de calor. Retirei o véu que cobria as minhas tranças. Passei a mão pelos cabelos presos e percebi que nada aligeirava a minha dor de cabeça.

Como as cerimónias de Bona Dea eram a oportunidade para as mulheres dos senadores fazerem um balanço sobre o ano político, a minha paciência foi testada novamente. As esposas dos senadores optimates começaram a pressionar a anfitriã, que era mulher de um cônsul popular, acusando-a de incentivar o marido à insurreição. Virei-me para Apuleia em estado de choque.

Não sei de nada… – Estranhei. A mulher de Catulo não calou acusações à anfitriã:

Marco está na Gália Transalpina e planeia marchar contra Roma. Entretanto, Apuleia conspira com esposas do partido popular, para que os maridos recebam o procônsul de braços abertos!

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César e a Vestal 224 Maria Galito

Vai-te lixar! – Exclamou a mulher de Bruto.

Servília confessa! Incentivas o teu marido a apoiar o procônsul na sua marcha contra Roma à frente de um exército. – A mulher de Catulo agitou mais ainda o grupo de matronas sentadas à esquerda; algumas das quais baixaram a cabeça e outras elevaram o queixo ao desafio.

Porque defendes o teu marido, se ele prefere estar com poetas do que contigo? – Perguntou-lhe Servília, assanhada, de unhas em riste.

Vou-te às fuças, desgraçada! – Ameaçou a mulher de Catulo.

Calma. – Pedi, de braços abertos. – Alguém me explique o que se passa. A filha do falecido Sila vociferou ao reclamar:

Marco tem tudo combinado com Bruto estacionado em Mutina na Gália.

Não te metas onde não és chamada, Cornélia! – Berrou-lhe Servília.

O teu marido quer invadir Roma para o ano? Fala, Apuleia! – Admoestou Cornélia, de punhos cerrados. A anfitriã tinha instinto tribunício, cerrou os punhos e deu luta:

O teu pai pôde fazê-lo, mas o meu marido não pode, é isso? Deves pensar que és melhor do que eu! – Exclamou, centrando a questão no seu umbigo.

O teu marido é fraco, não é forte como era o meu pai! – Gritou Cornélia. Apuleia ergueu-se e avançou dois passos na sua direção:

O teu pai era um assassino e um tarado! Devias ter vergonha até de falar nele entre esposas decentes! – Gritou.

Alguém tem de parar a marcha de Marco em direção a Roma. A cidade não aguenta terceira invasão numa década. – Declarou a mulher de Catulo, para que o tema da conversa se recentrasse na questão principal.

Marco já convenceu o irmão de Cinila e a César, não é verdade? Estão todos combinados, ora confessa! – Pressionou Cornélia. Eu não quis acreditar e resolvi interferir na conversa:

O meu irmão não vai invadir Roma coisíssima nenhuma. Há aqui algum engano.

Não há não. – Insistiu Cornélia, de cabelos rubros volumosos. Toda ela era monumental, no falar e no vestir.

Não discuto política, nem com o meu marido, nem com o meu irmão. Muito menos convosco. – Declarou Cinila. Portanto, limitou-se a responder que assuntos do Senado não eram da sua conta.

Mentirosa! – Respondeu-lhe Cornélia com desprezo.

A tua opinião é-me irrelevante. – Declarou Cinila, encolhendo os ombros. Comeu um pouco de carne que levou à boca, deixando a outra a bufar de raiva.

Eu vou-me a ela e parto-lhe a cara!

A filha do falecido Sila não ameaçou, fez. A mulher de César levou uma bofetada de todo o tamanho! O barulho ecoou por toda a casa. Cinila ficou inchada mas não chorou, nem uma lágrima! Ela era das duras! Aurélia colocou-se em frente da nora, para a proteger e enfrentou Cornélia com os seus olhos de águia:

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César e a Vestal 225 Maria Galito

Cinila está grávida. Se ela perder a criança, a culpa é tua, ouviste? Agora senta-te! – Atirou-lhe a mãe de César, sem contemplações. A filha de Sila obedeceu-lhe e calou-se.

Levei Apuleia comigo para fora do triclínio. Eu precisava colocá-la na ordem, mas não era pessoa para corrigir a minha cunhada em público. Tentei explicar-lhe, em privado, que estávamos a perder a oportunidade de usar a diplomacia a nosso favor. Afinal, era noite de Bona Dea! Mas ela era mulher destemida e resistiu às minhas perguntas.

O que se passa, Apuleia? Diz-me, por favor. – Pedi-lhe, com bons modos, depois de a soltar.

Ela enfrentou-me com petulância. Nem parecia a mesma pessoa que eu conhecera antes da guerra civil, antes do conflito com os italianos, com quem convivera ali, naquela casa, durante a infância.

Estou a defender o teu irmão. Ele que quer uma Roma mais justa! – Exclamou de olhar em riste, ao desafio. Fui razoável e expliquei-lhe a minha posição naquela matéria:

Agir legitimamente é uma coisa. Lutar contra o poder instituído é outra. – Avisei. – O meu irmão pode continuar a lutar pelos seus ideais no Senado, deixando o seu exército proconsular na Gália Transalpina. Apuleia contrapôs com veemência:

Sila alterou as leis em Roma. Sem uma insurreição, estamos de mãos e pés atados! Tentei transmitir-lhe mensagem que considerava importante:

Andei anos por Roma a distribuir comida e sei que o povo sofreu horrores com as invasões! Não estamos apenas a falar de pobres. A classe média, os cavaleiros, sofreram um rude golpe. Há nobres a viver na mais abjeta miséria! A cidade está a abarrotar de viúvas e de órfãos, muitos deles sem condições mínimas de habitabilidade, a sobreviver da caridade alheia. Precisamos de paz para os vendedores ocuparem sem medo as suas bancas no mercado e as crianças frequentarem as escolas em segurança. Necessitamos de segurança para as mulheres não serem violadas e os mais velhos não serem maltratados ou assassinados por não conseguirem defender-se! – Tentei argumentar, pois aquela associação de ideias fazia sentido na minha cabeça. Mas Apuleia preferiu interromper-me e ripostar:

A questão não se resolve com conversas mansas no Senado. Passei a mão na testa. Eu estava febril ou tinha as mãos geladas?

Pelos deuses, Apuleia, não é preciso invadir Roma para defender causas justas!

O teu irmão foi eleito cônsul sénior, foi o homem mais votado e, apesar de tudo, o Senado cortou-lhe as pernas, enviou-o para a Gália Transalpina e teria preferido que ele perdesse a vida por lá!

Não exageres, Apuleia. Ninguém quer a morte de Marco.

Estás enganada. – Rosnou. Ela estava convencidíssima que tinha razão.

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César e a Vestal 226 Maria Galito

Diz-me, Apuleia, as acusações que te fizeram hoje são verdadeiras? Tu pressionas o meu irmão a marchar sobre Roma à frente de um exército?

Eu não mando em Marco! – Contrapôs, ao ataque.

Está bem. Mas envia-lhe uma mensagem, tenta apaziguá-lo. – Pedi-lhe.

Nem uma coisa, nem outra. Eu prefiro que ele venha. De qualquer forma, ele já se meteu a caminho. – Avisou-se e eu comecei a tremer.

Não pode ser. Marco não faria uma coisa dessas…

Ele chega a Roma no princípio do próximo ano. Os nossos filhos Cipião e Regilo vêm com ele.

Fiquei perplexa. A minha preocupação pelo bem-estar de Marco e dos meus sobrinhos era tão genuína quanto a minha inquietação pelo futuro de Roma. Tentei interceder, apelar à razoabilidade da minha cunhada.

Pede a Marco para interromper esta insanidade! – Insisti com ela.

Deves estar a brincar! Não sou cobarde como tu! – Insultou-me, elevando o queixo ao desafio. – As reformas protagonizadas por Sila fizeram a República andar para trás centenas de anos, com todas estas leis a favor dos patrícios e da velha guarda! O Senado matou o meu pai e agora quer impedir o meu marido de fazer o que é necessário. Se não vai a bem, vai a mal!

O teu marido e os teus filhos podem morrer. Apuleia, por favor... – Roguei-lhe.

Pelo escudo ou sobre o escudo. – Teve a ousadia de declamar.

O que estás tu a dizer? – Hesitei, sem perceber a que se referia.

És uma ignorante! Não lês textos gregos? Pelo escudo ou sobre o escudo era o lema das antigas espartanas. Antes dos maridos irem para a guerra, lembravam-lhes sobre o imperativo da heroicidade. Eu tenho fibra! Por isso, avisei-os, ao meu marido e filhos: lutem e não regressem a casa como ignóbeis. Prefiro que morram a vê-los cobardes em Roma. – Declarou. Mas nós estávamos na época de Licurgo? Não tínhamos avançado na civilização?

É triste não saberes a diferença entre um espartano e um patrício romano. – Atirei-lhe. Ela era mais velha do que eu, mas estava a comportar-se como uma catraia insolente. Ela era também uma plebeia.

Abanei a cabeça, incrédula. Eu lia rolos de papiro, mas esta mulher vivia-os! Fiquei desorientada por ela ter aconselhado o meu irmão a atirar-se de cabeça numa guerra que ele seria incapaz de vencer. Ao invés de estimar um homem que a adorava, atirara-o às feras em prol de um ideal abstrato e ilusório, por pensar que as mudanças só podiam ser abrutas, ao invés de paulatinas mas concretas.

Apuleia regressou ao triclínio e a serenidade, naquela casa, perdeu-se definitivamente! Fonteia foi ter com Perpena ao átrio e ficaram as duas, junto ao fogo sagrado de Vesta, afastadas do centro da ação que era gritado. Grande briga que para ali havia!

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Virei as costas ao drama. Ainda era cedo para iniciar os rituais religiosos e eu não queria partilhar espaço com ninguém. Precisava reorganizar as ideias. Aquela era a minha casa e eu precisava de me perder nela.

Portanto, Marco planeava invadir o pomério como Mário e Sila. Anos antes, tal ideia seria impensável! O meu pai nunca o teria permitido. Teria levado a Mater às lágrimas! A hipótese era de tal forma abstrusa para mim, que eu nem queria acreditar nela! Como é que o meu irmão se deixara manipular daquela maneira? A sua afeição por Apuleia era grande, mas nunca pensei que fosse perigosa para Roma!

Eu tinha a cabeça em água! Desorientada, deambulei pela casa patriarcal, pelos recantos familiares, em busca de uma solução para aquele imbróglio. Ou de alguma paz de espírito, pois sentia-me em guerra comigo mesma. Na verdade, sentia-me culpada por detestar Cinila, quando era César que eu não devia perdoar!

No peristilo a aragem era fria. A dor despertou-me dos pensamentos confusos e apercebi-me do imenso silêncio que me envolvia. Depois lembrei-me da última vez que visitara Marco e os miúdos, da alegria contagiante de Híspalis e das danças do pessoal doméstico. Comecei a estranhar que estivesse tudo tão sossegado junto à cozinha.

Foi então que Júlia se aproximou de mim. A tia de César caminhava com áurea cismática, mas rosto era carinhoso e rugas decentemente maquilhadas. Ela era uma senhora!

A Júlia perdeu-se? O triclínio é naquela direção. – Indiquei.

Obrigada, minha querida. Vim apanhar ar, pois está muito abafado lá dentro… Portanto, ela viera ter comigo de propósito! Resolvi colaborar.

Podemos ficar aqui as duas, se preferir. – Propus num tom convidativo.

Júlia aceitou a proposta. A idade pesava-lhe e não me importei de a amparar. Sentámo-nos num banco de pedra encostado à parede e ela desenrolou uma manta grossa de lã que trouxera consigo do triclínio. Tapou-nos com a lã delicadamente tricotada, tanto que lhe observei o seu padrão especial e podia jurar que a minha mãe costurara uma semelhante.

Nem Sila nem o meu marido deveriam ter marchado sobre a cidade dos nossos antepassados, se quer a minha opinião. Agora outros querem fazer o mesmo e não sei quando isto vai parar. Júlia era contundente nas suas observações.

Os homens já não conseguem governar em paz? Não somos um reino bárbaro! Somos uma República! – Exclamei convictamente. – Vou escrever ao meu irmão, enviar-lhe uma mensagem por correio a galope…

Por esta altura, o seu irmão já tomou uma decisão, Emília. – Avisou-me. Agarrei, com as mãos, as seis tranças do sacerdócio. Afundei-me no banco de pedra cruzando os braços ao frio, acossada por sangue quente.

César também está metido nisto?

O seu irmão prometeu-lhe boas condições num futuro governo, se o ajudasse.

Julguei que César fosse advogado. – Como quem diz estar com mais ocupado.

Precisamos que ele ganhe dinheiro, sim.

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É carreira que ele goste? – Aventurei-me a perguntar.

Não tem alternativa! Estamos na espiga falida e precisamos que ele providencie a casa! Que seja bem-sucedido nos tribunais. É a sobrevivência da família que está em jogo! Não seria aceitável fazer vida de equestre depois de ter recusado casar com Cossúcia. Ele tem berço, pois faça-o render! – Exclamou com altivez.

Os macedónios vão pagar-lhe bem?

Júlia residia na casa da cunhada numa ínsula de Subura. O lar que partilhara com o marido, no Palatino, fora destruído. Deixar de ser a dona do seu teto, teria sido um atentado ao seu orgulho. Viver sem dinheiro devia ser, para ela, uma provação.

Sim e é importante que assim seja! – Asseverou. – Na ínsula de Aurélia passamos a vida a fazer contas. As expropriações impostas por Sila penhoraram a nossa sobrevivência financeira. Os custos da ínsula são elevados. Quando César andava pela Ásia, praticamente não tínhamos comida para as refeições diárias. Mas o meu sobrinho deu a volta por cima e trouxe-nos ouro dos espólios de guerra.

Ele readaptou-se à vida em Roma, depois de viver na Ásia?

Mais ou menos. Ele dantes gostava de viver no bairro de Subura, mas queixa-se como há anos não o fazia. Enfim, ele agora tem responsabilidades acrescidas. Enquanto chefe de família, tem a seu cargo muitas bocas para alimentar.

Ele vai iniciar carreira de advogado e, se Mercúrio o permitir, será bem-sucedido.

A oferta do seu irmão é melhor. – Avisou Júlia.

Mas não é garantida.– Adverti, sem pensar duas vezes. – O que Marco se prepara para fazer, é uma loucura e pode custar-lhe a vida. César, se morrer, deixa-vos a todas desamparadas. Júlia levou em consideração o que eu lhe disse.

Sim, tem razão. Oh, Emília! Ninguém está à espera que César iguale em feitos de Mário. Mas, pelo menos, que chegue a cônsul! Ainda nem começou a candidatar-se a tribuno militar, quanto mais a questor, edil, pretor… como diria o meu marido, a viagem vai ser longa e dura, por isso, aguentem os cavalos! Vai doer. Mas César tem muitas bocas para alimentar, está casado, espera um bebé, tem de se orientar! Obriguei-me a arranjar forças para a cortesia que lhe devia:

Parabéns aos pais… e à tia. – Foi o meu cumprimento. Eu era polida.

Obrigada, Emília. Sim, estou felicíssima com a chegada do novo bebé. César precisa de filhos legítimos.

Pois…

Eu gosto da Cinila. Não tenho queixas dela. É uma mulher dedicada ao meu sobrinho, tem aturado muita coisa ao lado dele e deixa que Aurélia reine lá em casa, pelo que anda sempre nas boas graças da sogra.

Ainda bem que tudo vos corre de feição. Ergui-me em pé, para incentivar Júlia a terminar com a conversa.

Cinila faz boa companhia mas… exige de César o que ele não pode dar e não lhe impõe o que devia. – Argumentou Júlia, levantando-se devagar.

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Como assim? – Perguntei. Eu não estava no seu comprimento de onda. O meu mar era um maremoto de emoções e estava demasiado confusa para acompanhar o seu raciocínio.

Tudo o que César diz e faz está bem para Cinila. Ela faz-lhe as vontades todas. Não quer entrar em conflito com ele. Eu percebo. César sabe o que quer, ouve-se a si próprio. Portanto, se o meu sobrinho quiser ir para dentro de um poço, ela não é mulher para impedi-lo.

Cada um tem a mulher que merece. – Respondi, com voz rasgada. Depois tentei corrigir a mão. – Enfim, a esposa que escolheu. Júlia foi esperta na resposta:

Apuleia casou com o seu irmão porque ele assim o quis.

Sim, o meu irmão gosta muito dela. O contrário já não sei… – Acrescentei.

Apuleia gosta dele à sua maneira. É por isso que um casal deve ter os mesmos valores, para que possa remar para o mesmo lado, sem desilusões de parte a parte. – E tudo o que me dizia tinha uma razão de ser. Tentei salvar a face. Naquele momento não me restava alternativa:

Sou uma vestal, nada sei sobre isso. Mas tenho de ir ajudar no ritual de Bona Dea.

Sim, claro. Vamos… – Aquiesceu. Mas Júlia tenha continuou a falar, agarrada ao meu braço. – Sabe? O meu César sente-se um proscrito, em Roma. As listas de Sila já não estão publicadas à porta do Senado, mas ele continua a sentir-se um indesejado. Na cidade, desconfiam dele, das suas intenções, por ser sobrinho do meu Mário. Em contrapartida, ele foi bem tratado na Ásia. Até demais! Viu riquezas que lhe deram a volta à cabeça. Mesmo agora, que usa a coroa cívica na cabeça, as invejas são muitas. Pensei antes de falar, mas senti necessidade de opinar sobre o assunto:

O uso da coroa obriga as pessoas a levantarem-se quando ele passa. Ele devia usá-la menos vezes para não despertar inimizades. A discrição leva-nos mais longe do que a falta de reserva. A viúva de Mário apreciou o meu comentário:

Tem razão. A sugestão é boa! A Emília é esperta.

Obrigada, Júlia. Mas logo mudou a cabeça ao prego:

Ouça então o meu conselho. Nestes momentos de instabilidade, até as vestais correm perigo. Estou a avisá-la para ter cuidado. Não se aproxime do meu sobrinho, é melhor. Para evitar rumores infundados É para seu bem que lho digo, acredite.

Teria ela descoberto o segredo que o sobrinho partilhava comigo? Não fiquei convencida. Talvez fosse instinto, precaução natural. O objetivo da Júlia era evidente. A sua veia diplomática tocara em todos os pontos sensíveis de uma meticulosa agenda, em prol dos interesses do sobrinho, educado para satisfazer um propósito concreto: tirar a família do aperto financeiro em que se encontrava.

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Da perspetiva de Júlia, o sobrinho iniciava carreira de alto risco e não podia dispersar as suas atenções. Devia associar-se apenas a quem pudesse contribuir para o seu sucesso. César podia ajudar a catapultar a tia novamente para a alta-roda, para o centro nevrálgico da sociedade romana. Estatuto que ela reclamava e pensava merecer, enquanto viúva de um homem sete vezes cônsul.

Neste momento, a única pessoa que me preocupa é o meu irmão. César tem família que cuide dele e, com Cinila grávida, a questão resolve-se por si. A minha vida é no templo. – Declamei e ela sorriu.

Caminhei ao lado de Júlia até junto do fogo sagrado. Pouco depois iniciaram-se os rituais religiosos propriamente ditos, sem mais a declarar.

Assim que regressei ao átrio das vestais, escrevi mensagem ao meu irmão. As frases eram diplomáticas e vagas, pois o papiro podia ser intercetado por terceiros. Eu deveria evitar colocar Marco numa posição mais difícil do que aquela que ele criara para si:

Irmão querido, o nosso pai era um defensor rigoroso das leis da República. A nossa cidade já sofreu duas invasões de romanos, agora só pensa em prosperar e não mais em enterrar mortos em guerras espúrias. Enquanto cônsul defendeste a República. Enquanto procônsul protegeste Roma da ameaça dos gauleses. Já temos adversários suficientes e o nosso povo precisa de paz. Saúdo-te a ti e aos meus dois sobrinhos, Cipião e Regilo. Desejo-vos uma viagem tranquila, deixando para trás o exército na Gália Transalpina. A família anseia pelo vosso regresso em glória. Os teus filhos precisam de um pai vivo e cheio de saúde, que garanta um futuro risonho para eles. Emília Tércia.

O papiro seguiu os trâmites legais, mas foi enviado em missão urgente. Um mês depois, já durante o consulado de Mamerco, recebi uma carta com a seguinte resposta:

Saudações, minha querida irmã. Roma precisa de mim. Depois da ditadura de Sila, que nos limitou em direitos e garantias, compete-me assumir as responsabilidades que me assistem, com base nos ideais do partido dos populares. Ora por mim e pelos meus filhos e deseja-nos boa sorte. Marco

A minha intervenção falhara. No silêncio das paredes, os dias transformaram-se em manhãs e as tardes em noites, pelo que era difícil acompanhar os acontecimentos. Mas o resultado final foi a desgraça que se previa.

Mamerco mandou chamar-me à Domus Publica. Recebeu-me em pé, de porte direito, no tablino. Numa postura conservadora e com as emoções racionalizadas, explicou-me o sucedido. Pompeu fora enviado para defender a República e enfrentara vitoriosamente as forças conjuntas lideradas pelo meu irmão e por Bruto. Cipião e Regilo tinham caído em combate. Bruto fora assassinado, depois de se render a Pompeu – ou seja, fora morto à traição (embora Mamerco não o confessasse!).

Se o meu irmão quisesse sobreviver tinha de continuar a lutar e foi isso que fez, mais a sul. Foi vencido pelas forças de Catulo. Mas escapou e conseguiu reunir uma coorte de

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veteranos, disposta a resistir. Pompeu foi em seu encalço e enfrentou-o novamente junto à cidade de Cosa. Apesar da derrota, Marco não abandonou as suas tropas e ajudou-as a fugir para a Lusitânia, onde Sertório se refugiava. Depois, seguiu viagem para a ilha da Sardenha, onde ainda vivia a nossa irmã mais velha, que agora era viúva

Podes não acreditar, Emília, mas eu e Pompeu éramos muito amigos do teu irmão. Arranjámos maneira que ele recebesse o governo da Gália Transalpina, para o salvarmos de Catulo. A ver se ele se entretinha a defender-nos dos povos do Norte. Mas Marco aliou-se a Bruto e decidiu marchar sobre Roma. Eles tinham de ser travados!

Eu devo regressar ao templo, Mamerco. Faz-se tarde. – Disse-lhe, com os dentes rangidos e a garganta calada a gritos.

Mamerco não era inocente naquela história. Era cônsul júnior e, no Senado, o equilíbrio político fora tecido com jogos de bastidores. Nada me garantia que as suas palavras fossem verdadeiras. Na minha opinião, pelo menos Pompeu, teria matado o meu irmão se o tivesse encurralado como fizera a Bruto. Mas Marco fugira-lhe das mãos! Bem dizia a tia de César. Não se podia confiar em ninguém!

Pompeu e eu concordámos que, se fosse possível, pouparíamos a vida ao teu irmão e assim foi. Ele agora tem a oportunidade de reorganizar a sua vida na Sardenha. – Continuou a explicar Mamerco, como se nos estivesse a fazer um grande favor. – Foram-lhe retirados todos os poderes e direitos inerentes à cidadania romana, para o impedir de recrutar novo exército contra Roma e causar mais problemas. Mas ninguém lhe fará mal se ele ficar sossegado naquela ilha. – Resumiu, com voz fria e mãos atrás das costas.

Fui-me embora, para fazer o luto dos meus sobrinhos mais velhos. Cipião e Regilo estavam a ser chorados pela mãe no Palatino e eu fui fazer companhia à minha cunhada. De nada adiantava criticá-la naquele momento de dor, por ter decidido incentivar o meu irmão a arriscar tudo ingloriamente. Questões ideológicas pouco tinham a ver com o bom senso e resvalavam para o fanatismo em momentos de crise política. Os populares tinham patrocinado Marco e Mário, tal como os optimates haviam apoiado a Sila.

Alguns dias depois, Cota alertou-me para a propaganda que circulava no fórum contra o meu irmão. Os seus inimigos acusavam-no de arrogância e de excesso de ambição; que o poder lhe subira à cabeça, colocando em perigo a cidade de Roma apenas para fazer valer os seus interesses pessoais. Li pergaminhos soltos e rasurados, alguns escritos por Cícero. Eram infamantes! Marco podia ser arrebatado, mas nunca desejara mal à República!

Desgostosa, encerrei-me no templo, a rezar. Dediquei-me à principal função de vestal, que era velar pelo fogo sagrado. Dominava-me uma imensa revolta interior! Sentia dificuldade em recuperar o ânimo. Pior fiquei quando fui chamada novamente à Domus Publica.

Não me dês mais más notícias, Mamerco! – Pedi-lhe, logo à entrada.

Lamento, mas temos de conversar. – Atirou, com voz gelada.

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A mulher de Mamerco fazia rondas pelo Palatino, pois ela geria influências e conhecia toda a gente. Recentemente, ouvira rumores sobre Apuleia que, pelos vistos, abria as portas da casa patriarcal dos Emílios Lépidos, a pessoas de fora, na ausência de Marco. Cornélia ficou escandalizada e, com os cabelos rubros em pé de guerra, fizera mais perguntas no morro até se inteirar-se de todos os pormenores.

Que descobriu a tua mulher, Mamerco? – Perguntei-lhe irritada. Eu sabia que o casal era optimate e que Cornélia era filha do falecido Sila.

A tua cunhada organiza serões culturais, grandes ceias, como desculpa para atrair homens com os quais depois se envolve. A lista de amantes já é extensa.

Não acredito. Isso são falsas acusações, de pessoas que não gostam de Marco ou de Apuleia. Ela não humilharia o meu irmão. – Argumentei, com determinação.

Lamento. Mas reunimos provas incriminatórias. – Garantiu Mamerco.

Cornélia e Apuleia não eram amigas. Detestavam-se! Portanto, quando a primeira visitara a segunda, para lhe pedir explicações – admitindo que tinha direito a elas por ser casada com um Emílio Lépido e por ser esposa do cônsul júnior – as duas quase se mataram uma à outra. Tiveram uma briga monumental, com direito a caneladas, bofetadas, unhadas e cabelos arrepelados. Ficaram cheias de nódoas negras e a escandaleira foi muita no Palatino.

Onde estão as provas? Quero vê-las. – Exigi, tentando controlar a estupefação.

Tudo aquilo era grave. Naquela fase do campeonato, até perverso! Porque é que eu ainda não sabia de nada? A minha dor isolara-me do mundo, dedicando-me às orações. Mas, ao comportar-me como uma vestal, perdera o controlo dos acontecimentos. Culpei-me por não estar mais vigilante, de olhos mais abertos ao Palatino, numa altura em que a família precisava de mim. Podia eu ter feito mais do que fiz para os ajudar? Talvez não, mas era horrível aperceber-me que o céu lhes caía em cima!

Já informei o teu irmão sobre o que se passa em sua casa. Fiz o que me competia. Tive um mau pressentimento.

Tu fizeste o quê?

Podes ler. Aqui está o rascunho do que lhe escrevi. – Mostrou-me. O texto era minucioso! Avisei Mamerco que devia ter poupado nas palavras:

Redigiste-lhe uma mensagem com todos estes detalhes? Para quê? Marco é apaixonadíssimo por Apuleia. Isto é uma humilhação para ele, para os filhos, para a nossa família! O meu irmão não está em condições de digerir este tipo de informação.

Talvez ganhe juízo, depois de tantas decisões erradas. Se ele tivesse concluído o mandato normalmente, teria regressado a Roma para cumprir a sua função de paterfamílias e nada disto tinha acontecido! – Declarou Mamerco, com voz de inverno. – Espero que a vossa irmã lhe incuta bom senso. Ele precisa.

Era precisamente isso que eu temia. Prima não era doce, era mulher de princípios rígidos e podia cascar em Marco, mais do que ele aguentaria ou poderia suportar!

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Uns dias depois recebi a machadada final no enredo. A minha irmã escreveu-me da Sardenha a explicar que Marco se suicidara. Já em depressão, mostrara-se inconformado com o comportamento de Apuleia na sua casa, para com os filhos. Desconfiando ser a chacota da cidade, caíra sobre a espada em defesa da sua honra. O homem dos sonhos de aventura que tudo aguentara para ascender ao consulado, deixara-se abater pelo desprezo da mulher que mais adorava.

Fiquei desesperada e perdi o norte!

Mamerco trocou mensagens escritas com o irmão, que se encontrava fora de Roma há anos e explicou-lhe o sucedido. Mânio disponibilizou-se a ajudar em tudo o que fosse necessário. Deslocou-se à Sardenha pessoalmente. Falou com Prima, tratou do caixão, da viagem de barco e tomou diligências para organizar o funeral do ex-cônsul em Roma. Aportou em Óstia numa madrugada de vento do nono mês e pagou a um mensageiro para nos avisar que a comitiva oficial já se organizava no cais.

Mânio vem a caminho com o cadáver de Marco. – Avisou Mamerco, sem rodeios.

Subi ao Palatino com o rosto roxo de pranto, mas de lágrimas enxutas para não entristecer ainda mais os meus sobrinhos. Os meninos já me aguardavam no átrio na companhia de Cornélia, bem vestidos e aprumados, mas de rosto papudo de choro. De Apuleia nem sinal! O cônsul júnior avisara os escravos para não a deixarem aproximar-se dos filhos, caso ela ousasse aparecer.

Partimos, em cortejo. O pessoal doméstico, liderado por Amílcar, transportava as efígies dos nossos antepassados. No fórum, Cota e Mamerco juntaram-se a nós. A viagem foi longa, por uma estrada onde o povo espreitava. À medida que as ruas se tornavam mais pobres, as pessoas aproximavam-se para prestar homenagem ao meu irmão. O Pater não usufruíra do carinho da gente de Roma. Marco recebeu-o em abundância.

Quando chegámos ao destino, olhei para o céu, que se fechava de tão cinzento. O vento estava de nortada e o meu véu quase voou da minha cabeça! Os miúdos soluçavam. Paulo mantinha-se pálido. Lépido, que era igual ao pai, derramava lágrimas fordas pelo rosto.

Aguardámos de pé, mantendo o porte e a dignidade do momento. Saudei todos aqueles que passaram por mim, manifestando o seu pesar, na troca de cumprimentos. Os amigos demoraram-se nas condolências. Entre os convidados oficiais, houve necessidade de manter alguma presença de espírito, pois nem todos foram cordiais nas palavras, como se aquela fosse altura para repreensões! Enfrentei-os diplomaticamente. Defendi a honra do meu irmão e da família, sempre num registo decente, compenetrado e assertivo, sem demonstrar emoção excessiva, como sei que deixaria o meu pai orgulhoso.

Aurélia, Júlia e Julinha compareceram no funeral. Juliana ausentou-se, por alguma razão. A mãe de César desejou-me os seus pêsames. Consigo trazia uma escrava, que carregava um bebé. Cinila colocou a menina ao colo e apresentou-me a sua filha, segundo a qual, era muito parecida com o pai. César apareceu depois. Desejei-lhe os parabéns pela menina. Ele lamentou a morte do meu irmão. Evitei o seu olhar e saudei-os a todos com cortesia, mantendo a pose. Aguentei firme, como uma patrícia.

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César e a Vestal 234 Maria Galito

Voltei a concentrar-me em Paulo e em Lépido, mantendo-me atenta aos seus mínimos gestos e demonstrações de cansaço. Cheguei a limpar o suor das suas testas e a suportar os seus pesos nos meus braços.

Quando os cavalos foram avistados ao longe, as carpideiras começaram a dar rendimento. Elas tinham sido bem pagas, pois choravam desalmadamente com gritos que se ouviam a léguas! A última moda era contratar mulheres que, quanto mais barulho fizessem, mais importância conferiam ao falecido. Fora assim com Mário e com Sila. Mas eu não estava interessada em dar espetáculo e mandei-as calar. Mamerco ainda me corrigiu, mas eu não lhe fiz caso. Lépido tinha-se ido abaixo de emoção, Paulo mal se aguentava de dor e eu estava mais preocupada com os meus sobrinhos, do que em agradar a terceiros.

O ambiente era lúgubre. Os meus lobitos fungavam e eu envolvi-os com carinho, pois era importante que suportassem o desafio com dignidade. O cortejo fúnebre vinha de Óstia e aproximou-se lentamente, até desmontar, rodeado de legionários enlutados.

Avistei Mânio ao lado do caixão do meu irmão, montado no seu cavalo negro, de porte impecável. O equipamento militar realçava-lhe a musculatura e ele era um homem de porte elegante. Fez um cumprimento oficial aos filhos de Marco, ao entregar-lhes as insígnias do pai. Saudou-me a mim, ao irmão e à cunhada.

Em vida de Marco, outros pareciam ter sido mais seus amigos. Mas foi o discreto Mânio quem subiu à tribuna para recordar o meu irmão com saudade. Fez o elogio fúnebre junto ao caixão de madeira, pois Mamerco não se comprometera a conferir encómios a um procônsul que se revoltara contra a República no ano em que ele era cônsul júnior.

Não admira que os olhos amendoados de Mânio tenham sido a única luz que eu vi nessas horas de aflição. Fiquei-lhe grata por ter pedido licença de serviço para se deslocar à Sardenha e organizado o funeral do meu querido irmão.

Foi então que o vento nos trocou as voltas. O constante sopro dos deuses atrapalhava o lençol de linho, que cobria o cadáver e este foi-se soltando até voar do sítio onde estava. Os legionários taparam novamente o procônsul, colocaram-no na pilha funerária e acenderam a lenha. Mas o vento norte teimava em apagar o fogo. Quando este finalmente foi ateado, autênticas labaredas subiram ao céu e fizeram muito fumo, que Áquilo5 tratou de projetar na nossa cara. Incomodada, tossi. O sopro do deus estava insuportável!

O cadáver foi projetado para fora da pira funerária, caindo desnudado no chão, de barriga para baixo. Pasmada, engoli os gritos que as outras pessoas não conseguiram reprimir. Os meus sobrinhos começaram a chorar outra vez, agora em pânico. Paulo e Lépido tremiam da cabeça aos pés. Fiz o que pude para os amparar. Por eles, suportei tudo da forma mais valente que consegui!

A pilha era uma imensa fogueira, pelo que foi humanamente impossível atirar o corpo lá para cima. Às ordens de Mânio, os legionários fizeram uma fogueira mais pequena e cobriram o cadáver com as suas capas. Até que o cadáver do meu irmão desapareceu em cinzas.

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César e a Vestal 235 Maria Galito

Que inceneração macabra. – Observou Cornélia.

É castigo dos deuses, por Marco se ter insurgido contra a República. – Comentou Mamerco, como se eles não fossem filha e genro de Sila, que agira trezentas vezes pior do que o meu irmão! Depois, agarrou na mulher e foi-se embora, acenando-me. Olhei para ele, mas não lhe retorqui o cumprimento.

As cinzas foram discretamente guardadas em túmulo. Graças à presença de espírito de Mânio, o assunto resolveu-se sem traumatizar mais a assistência. Mas eu sabia que o enterro de Marco ficaria registado nos anais do Colégio dos Pontífices. Entretanto, quase todos tinham partido. Os miúdos estavam em estado de choque.

Fico uns dias no Palatino a fazer companhia aos miúdos. – Avisei Fonteia. A sumo-sacerdotisa queria muito que eu escutasse as suas palavras de bom senso:

Compreendo que estejas nervosa e preocupada com os teus sobrinhos. Mas és uma vestal. Tens de ir comigo para o fórum. O enterro pode ter leituras políticas e, se começares a descurar os afazeres de sacerdotisa, podes levar por tabela.

Eu não posso deixá-los sozinhos. – Insisti, determinada. Mânio veio em meu socorro:

A vestal máxima está a tentar ajudar-te. Se quiseres, ofereço-te os meus préstimos. Se os teus sobrinhos aceitarem, disponibilizo-me a ficar uns dias com eles até se orientarem sozinhos.

A princípio nem percebi se ele falava a sério. O seu rosto inexpressivo não era de fácil leitura. Perguntei a Lépido e Paulo o que eles pensavam do assunto. Eles aceitaram a proposta. Enquanto Mânio ditava as últimas ordens, tive uma conversa com os miúdos:

Meus queridos, Mânio fica convosco uns dias. Mas eu vou visitá-los, na mesma, sempre que puder. – Expliquei. Lépido agarrou-se a mim, sem querer largar. – Meu lindo, a tia preferia ficar contigo e com o teu irmão. Não posso. Mas vou ter convosco todas as tardes, pode ser? – Perguntei.

O mais jovem dos meus sobrinhos olhou novamente para a pilha em chamas, que devia ter consumido o corpo do seu pai adorado, mas que o deitara abaixo, e começou a carpir as mágoas no meu regaço. Dei-lhe um abraço forte, sem mais palavras. Paulo enrolou-se a nós os dois e ficámos assim até que Mânio nos veio buscar.

Deixámos Fonteia no santuário. Eu ainda subi ao Palatino para deitar as crianças e garantir que comiam. Quando entrámos na casa patriarcal, Mânio ficou a falar com Amílcar. Eu mandei vir alguma comida e fui deitar os meus lobitos. Enrolei-os em mantas quentes e contei-lhes histórias bonitas de família, sobre o pai deles. Nnão me fui embora enquanto eles não adormeceram. Depois fui agradecer o auxílio ao pessoal doméstico. Ao mordomo dirigi uma palavra em privado:

Obrigada pelo seu apoio, Amílcar. Você tem sido impecável.

De nada. Pode contar sempre comigo. – Garantiu o liberto.

Hoje foi um dia muito difícil.

Pois foi. – Concordou, mas mais não acrescentou. Ele era discreto.

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Também por isso, o irmão do cônsul júnior vai dormir cá em casa umas noites, para os meus sobrinhos não ficarem sozinhos. Eu venho na mesma, mas confio em Mânio. – E acrescentei, num sussurro. – No irmão dele nem por isso.

Está bem, vestal Emília. Seguirei as suas indicações.

Amílcar, eu gostaria que me mantivesse informada sobre tudo o que se passa. Ao contrário do que aconteceu, no tempo de Apuleia, quero manter algum controlo sobre quem entra e sai da domus. Se você ouvir algo de estranho, diga-me.

O mordomo prometeu acatar o meu pedido. Enrolei-me à roupa, pois fazia frio e aguardei pela chegada do lictor. Mas quem apareceu no átrio foi Mânio, tão impecavelmente que nem parecia vir da rua, numa noite de vento. Aproveitei para falar-lhe de coração:

Agradeço profundamente o que fizeste pelo meu irmão. Ele teria ficado muito triste se a sua última morada fosse diferente daquela que o viu nascer.

Mânio perscrutou-me em pose militar mas foi sensível à minha dor. Ao invés de lamentar a morte de Marco ou de desejar-me os seus pêsames, perguntou:

Gostavas muito do teu irmão, não era?

Ele sempre me protegeu. Mas eu não consegui salvá-lo. – Lacrimejei.

Marco seguiu o seu caminho, Emília. A culpa não é tua. – Disse-me.

Até podia ser, mas eu não me sentia melhor por isso. Apercebeu-se do meu desconforto, Mânio aproximou-se de mim. Sem nada dizer, puxou-me gentilmente para si. Envolveu-me num abraço e confortou-me. Juntei as minhas mãos, em prece, no seu peito. Encaixei-me naquele abrigo sereno e chorei as minhas mágoas.

O que faltava ainda acontecer-me, pelos deuses?!

NOTAS FINAIS

1 Baseado num discurso de Marco Emílio Lépido, cônsul 78 a.C. 2 Idem. 3 Idem. 4 Idem. 5 Áquilo: deus romano do vento Norte.