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Culpa e Graça

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Culpa e Graa

Minha irm to categrica em suas opinies, disse-me uma senhora, "que me sinto sempre um pouco culpada se no concordar com ela." E uma outra: "Eu chego a evitar visitas minha irm, porque no momento em que quero ir embora, ela diz; 'Como? J vai?', com um tom de reprovao que at me faz sentir culpada."Todos somos constantemente cercados de crticas, s vezes mordazes e francas, s vezes silenciosas, mas nem por isso menos doloridas. Ficamos aprisionados em um implacvel crculo vicioso: toda censura suscita um sentimento de culpa, tanto no crtico quanto no criticado, e cada um procura livrar-se como pode do sentimento de culpa.A culpabilidade est ligada ao relacionamento com os outros, s crticas alheias, ao desprezo social e ao sentimento de inferioridade. Neste livro o autor aborda as vrias dimenses da culpa e o eficiente caminho para a cura.PAUL TOURNIER, um psiquiatra suo eminente, comeou sua vida profissional como mdico em Genebra em 1928. Sua preocupao com a medicina integral o levou prtica da psicoterapia.

CulpaeGraa

UMA ANLISE DO SENTIMENTODE CULPA E O ENSINO DO EVANGELHO

Paul TournierABU EDITORA

Traduzido do original em francsVraie ou Fausse CulpabilitCopyright Delachaux & Niestl S.A. diteurs1 Edio em portugus 1985Direitos reservados pelaABU EDITORA S/C, a publicadora daALIANA BBLICA UNIVERSITRIA DO BRASIL (ABUB)Caixa Postal 3050501064-970 - So Paulo, SP - CGC 46.394.169/0001-74

Traduo: Rute Silveira Eismann Reviso: Equipe da ABU EditoraEsta edio em portugus no inclui os trs ltimos captulos do original, que foram omitidos com autorizao de Delachaux & Niestl S.A. diteursO texto bblico utilizado neste livro o da Edio Revista e Atualizada no Brasil da Sociedade Bblica do Brasil.As citaes das outras verses esto indicadas:Bblia na Linguagem de Hoje (BLH)A Bblia Viva (BV)

Tournier, Paul. T667c Culpa e graa: uma anlise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho/Paul Tournier; (traduo Rute Silveira Eismann). So Paulo: ABU, 1985.(Textos para reflexo; 2) Bibliografia. ISBN 85-7055-006-5 1. Culpa 2. Culpa - Ensino bblico I. Ttulo. CDD-157.3285-1693 226.0815732

1. Culpa: Ensino do Evangelho 226.08157322. Culpa: Psicologia 157.32.

NDICE1.INFERIORIDADE E CULPA...............................92.SUGESTO SOCIAL.....................................13.QUESTES DE TEMPO..........................................................444.PROBLEMAS QUE O DINHEIRO TRAZ...........5. NOSSO MUNDO INTERIOR.....................856. NOSSA AO EXTERNA..........................1047.VERDADEIRA OU FALSA CULPA..............1288.TODOS FAZEM ACUSAES...................1479.TODOS SE DEFENDEM...........................16410.A UNIDADE DA CULPA............................18211.O JULGAMENTO DESTRUTIVO............19912.O MDICO NO JULGA..........................21613.A DEFESA DOS DESPREZADOS............23214.A LIBERTAO DOS TABUS..................25015.PSICANLISE E CULPA.........................27116.A REPRESSO DA CONSCINCIA..........28617.O DESPERTAR DA CULPA......................30418.A CONDIO HUMANA...........................32719.INSPIRAO DIVINA..............................35020.TUDO DEVE SER PAGO.........................37121.FOI DEUS QUEM PAGOU......................387REFERNCIAS...........................................403

Primeira Parte

Dimensoda Culpa

1INFERIORIDADE E CULPA

Este livro segue-se a Bible et Mdecine, que publiquei em 1951. Com efeito, estes dois livros foram escritos depois de alguns estudos que apresentei nas Semanas Mdicas em Bossey. No caso de Bible et Mdecine agrupei diversos assuntos tratados ao longo de muitos anos; o presente livro, porm, relaciona-se inteiramente com os estudos feitos em Bossey, no ano de 1957. A reunio era consagrada ao problema da culpa e seu papel na medicina. Propusera-me a pesquisar diariamente, nas Escrituras, material apropriado para guiar os nossos debates.O leitor no encontrar neste livro uma prestao de contas do encontro em Bossey, pois est faltando o principal: os trabalhos clnicos. Para os mdicos, o importante a observao dos pacientes. Foi a observao dos pacientes que nos orientou inteiramente nesta medicina integral, quer dizer, uma medicina que leva em considerao todos os fatores que entram em jogo em uma doena e na sua cura.O sentimento de culpa um desses fatores, e no dos menores. Basta lembrar um caso muito simples: a insnia devido ao remorso. Pode-se e deve-se curar tal problema com a prescrio de um sonfero. Mas restringir-se a isso ser praticar uma medicina muito superficial. Um mdico consciencioso procura sempre atacar a causa da doena e no somente atenuar os sintomas aparentes.Bem mais numerosos e muito mais complexos so os casos em que a culpa tem um papel patognico e onde a sua soluo contribui para a cura. Todos os trabalhos destes ltimos anos, sejam de psicanalistas ou de escolas psicossomticas, ampliaram, constantemente, a nossa viso neste sentido. Foi o que mostraram os palestrantes em Bossey. O Dr. Andr Sarradon36, de Marselha, exps o problema do ponto de vista da medicina geral, da medicina interna e da ginecologia. Trs psiquiatras mostraram como a culpa se manifesta em suas especialidades: a Sra.

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Line Thvenin, de Lion, na psiquiatria infantil; o Dr. Aloys d'Orelli, de Zurique, nas neuroses, o Dr. Paul Plattner, de Berna, nas psicoses. Finalmente, o Dr. Tho Bonet, de Ble, mostrou o amplo aspecto humano da culpa, que toca pessoalmente o mdico (tanto quanto os pacientes dele), em sua prpria sade fsica e moral.Neste livro deixei de lado o aspecto clnico, que to primordial ao mdico. As exposies de que estava encarregado nessa semana no foram seno um complemento aos trabalhos mdicos, uma confrontao dos problemas em discusso com a relevncia bblica. No se pode, na verdade, abordar o problema da culpa sem levantar as questes religiosas que ele suscita. Mesmo mdicos como o Dr. Hesnard16, por exemplo, que se esforam para manter estritamente o ponto de vista psicolgico, atualmente colocam em discusso, no meio mdico, a doutrina religiosa do pecado e a influncia das igrejas.Assim, sob a presso do progresso da medicina, as barreiras que se haviam erguido, um pouco artificialmente, entre a cincia e a filosofia, entre a medicina e a teologia, foram derrubadas. H, realmente, um conflito entre os dados de experincia mdica e o ensino bblico? A questo to importante e to atual que penso ser til apresent-la ao pblico em forma de livro.O que eu publico aqui a matria de minhas palestras, posteriormente desenvolvida luz de nossos debates. Apesar de no se tratar de uma cpia estenografada, conservei o tom de um discurso familiar, como se continuasse a falar aos mdicos reunidos em Bossey. Dizia-lhes: Vocs... E este vocs, agora, se enderea a vocs que leem este livro, como se estivessem tambm sentados no meio do nosso grupo. Isto uma fico, mas uma fico que exprime a realidade do meu corao, pois, quando escrevo, tenho a impresso de me dirigir, no ao pblico, duma maneira annima e impessoal, mas a cada um de vocs, meus leitores; de discutir com vocs as questes que se apresentam ao nosso esprito, que no so para nenhum de ns simples debates acadmicos ou abstratos, mas preocupaes vivas e pessoais.Bem, a conscincia culpada a constante da nossa vida. Toda a educao, em si mesma, constitui um cultivo intensivo

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do sentimento de culpa, principalmente a melhor educao, aquela de pais bastante preocupados quanto formao moral de seus filhos e quanto ao sucesso deles na vida. A educao consiste, sobretudo, em repreenso; e toda repreenso, mesmo sendo uma reprovao discreta e silenciosa, sugere o sentimento de culpa: Voc no tm vergonha de agir assim? No incio deste sculo, esta educao tendia a fazer das crianas bonecos de vitrine, bem comportados, silenciosos, e bem escolados em atitudes sociais. Eu detesto o domingo, disse-me uma mulher que nunca pde amadurecer completamente devido a uma represso interior. Quando ramos crianas, todos os domingos, colocavam em minha irm e em mim os vestidos mais bonitos, de babados de renda, com belos e complicados coques nos cabelos. E ai de ns se nos sujssemos! Bem, isto no demorava para acontecer, apesar de sermos cuidadosas; ns nem mesmo brincvamos. E, assim, o dia terminava sempre com reprimendas e punies.H algum tempo, eu perguntei minha mulher por que o seu rosto se tinha iluminado, de repente, com um sorriso estranho. Veja voc, disse-me ela, tirei um pedao da manteiga de um lado e voc fez o mesmo do outro. Pensei no que teriam dito se eu fosse pequena: que uma criana bem-educada deve continuar a cortar a manteiga no lado j iniciado. Seu gesto soou como um grito de liberdade!Hoje em dia, a educao mudou bastante. O vento da liberdade sopra desde o bero. Sob a influncia dos psiclogos, a Escola de Pais reprova a disciplina rgida daqueles tempos. Atualmente, os pais ficam at orgulhosos se o filho barulhento: est mostrando que tem personalidade! Mas, ai dele, se no mostrar muita personalidade, se no se comportar, em qualquer rea especfica, de maneira que os pais possam se orgulhar. Os amigos esto sempre prontos a julgar a criana como mal-educada, mesmo que os padres de criana bem-educada tenham mudado. A criana sente nos pais o medo inevitvel do que que os outros vo dizer? A reputao social dos pais baseia-se nela, e esta responsabilidade pesa nos ombros da criana. Sente-se culpada se envergonhar os pais ou mesmo se no tiver dons excepcionais dos quais os pais possam se gabar.A escola, as notas baixas, a perspectiva sinistra do momento 9

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de mostrar o boletim escolar aos pais, enchem, por sua vez, a alma infantil do senso de culpa. Isto pode se tornar uma obsesso a ponto de levar a criana a mentir, o que fonte de uma culpa mais autntica. E, frequentemente, ao dar as notas, o professor leva em conta mais as falhas do que as qualidades do aluno.Quanta gente, pouco dotada em ortografia, acha uma tortura escrever cartas, durante toda a vida; quantos ficam petrificados ou se embaraam na presena de qualquer autoridade que lembre o pai ou um professor severo! Mesmo no guich de uma repartio pblica, temem dirigir-se a um humilde funcionrio para entregar um formulrio preenchido. E, na primeira olhadela, o funcionrio poder mostrar qualquer espao que voc, desatenciosamente, esqueceu de preencher: No sabe ler?O pior que os pais e mestres projetam os seus prprios preconceitos, problemas e culpas na educao das crianas. Os que, por exemplo, tm mais remorsos dos prprios comportamentos sexuais dramatizam os conselhos que do a seus filhos e despertam na alma deles uma verdadeira angstia em relao sua sexualidade. Pais infelizes no suportam o filho na exuberncia de sua alegria. Centenas de vezes, durante o dia, eles lhe diro: Voc um bagunceiro! Voc insuportvel! Um pai, sobrecarregado em sua profisso, se aborrecer por quase nada com o filho. Uma me, enganada pelo marido, despejar no filho, inconscientemente, o despeito que sente e o punir energicamente por qualquer erro trivial, Voc mentiroso como o seu pai! A criana sentir intuitivamente, sob a forma de angstia, esta sobrecarga injusta de repreenses.Saul censurou Jnatas pela amizade com Davi: Filho de mulher perversa e rebelde; no sei eu que elegeste o filho de Jess para vergonha tua e para vergonha do recato de tua me? (1 Sm 20:30). Atentem para a astcia; ele disse para vergonha do recato de tua me, como se ele mesmo estivesse fora do negcio!Assim, muitos pais, por causa do preconceito social, quando no por pura inveja, fazem restries s amizades dos filhos. Estes, por sua vez, tm que escolher entre duas culpas: com relao aos pais, se continuarem leais aos amigos, ou com relao

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aos amigos, se se submeterem aos pais. A menos que se resignem a continuar com a amizade clandestinamente, com toda a carga de culpa que resulta da clandestinidade.Uma criana corajosa confessar imediatamente a sua falta aos pais; suportar a censura, e tudo estar acabado, enquanto o irmo mais sensvel e mais tmido no ousar fazer a confisso. Este arrastar uma dupla culpa: a da falta e a de escond-la. Esconder-se- na prpria ansiedade e, por sentir vergonha, ficar cada vez mais incapaz de enfrentar os pais.Cedo ou tarde, ou a criana corre o risco de ficar neurtica, ou h de libertar-se dos pais, seguindo seus prprios pensamentos e inclinaes. Poucos pais permitem este desabrochar da individualidade de seus filhos. Quase todos sugerem aos filhos que est errado gostar do que os pais no gostam, desejar o que eles reprovam ou se conduzir contrariamente ao que eles esperam.Filhos, obedecei a vossos pais, escreve o apstolo Paulo (Ef 6:1). Os pais devotos evocam este versculo para exigirem de seus filhos uma submisso servil, mesmo depois de terem deixado de ser crianas. Mas estes pais do pouca ateno ao que o apstolo acrescenta logo a seguir: Pais, no provoqueis vossos filhos ira (Ef 6:4) nem ao que ele acrescenta ainda em outra passagem: ... para que no fiquem desanimados (Cl 3:21).Pais austeros sugerem, tanto por seu comportamento, quanto por suas conversas, que tudo que d prazer pecado. Muitas pessoas j me disseram que conservam esta marca de sua educao. Ela lhes foi inculcada como um dogma implacvel: proibido estar alegre. No podem gozar de nada sem um certo sentimento de culpa que estraga o prazer. Ou, ento, a alegria s considerada legtima se for merecida, a ttulo de recompensa: os que receberam esta ideia durante toda a educao impem a si mesmos tarefas muito pesadas ou sacrifcios inteis, simplesmente para se alegrarem com um prazer fortemente desejado sem que se sintam culpados. Tm como que uma contabilidade complicada que est sempre mais ou menos carregada de angstia, angstia esta que prejudica a espontaneidade, seja o impulso a um sacrifcio desinteressado ou o desejo de desfrutar um prazer pelo qual no batalharam. No entanto, os prazeres no merecidos e os presentes inesperados que so os mais apreciados.

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A Bblia no apenas fala que a salvao de graa, como tambm todas as ddivas de Deus, tanto as pequenas como as grandes. Mostra-nos, contrariamente ideia dos que sofreram uma educao muito severa, um Pai Celeste que se alegra com a felicidade de seus filhos e em lhes dar alegria.Retornemos ao adolescente. Ningum atravessa este perodo de libertao dos pais e de formao de sua prpria individualidade, sem envolver-se em uma vida de segredos sempre carregada de sentimento de culpa; um livro apaixonante e ele o l at tarde da noite, luz de um abajur, atento ao barulho dos passos na escada que, estalando, o advertir de uma aproximao terrvel, temida com ou sem motivo. Ou, ento, ele coloca o livro apaixonante em cima de um livro de gramtica aberto, pronto para ser escondido rapidamente na gaveta da escrivaninha se vier algum. Ou, ainda, para se persuadir de que est se tornando homem, fuma o primeiro cigarro escondido. Isto porque pelo segredo que a individualidade formada. Enquanto uma criana no tiver segredos para com os pais, e enquanto no puder contar ao amiguinho estes segredos, ela no ter conscincia de ter existncia autnoma. Ora, geralmente os pais acham que um filho no deve nunca ter segredos; consideram errado esconder alguma coisa. Comentam amargamente: Voc nos faz sofrer muito.Todos somos constantemente cercados de crticas, s vezes mordazes e francas, s vezes silenciosas, mas nem por isso menos doloridas. Todos somos sensveis crtica, mesmo que no deixemos ningum perceber. As pessoas seguras suportam isto melhor. Defendem-se, respondem, criticam a crtica e, nesse caso, quem se sente culpado o interlocutor. Minha irm to categrica em suas opinies, disse-me uma senhora, que me sinto sempre um pouco culpada se no tenho a sua opinio. E uma outra: Eu chego a evitar ir visitar a minha irm, porque no momento em que quero ir embora, ela diz: Como? J vai?, com um tom de reprovao que at me faz sentir culpada.Notem que estes que so to absolutos em suas afirmaes e censuras procuram, sem perceber, se autojustificar. Livram-se de uma dvida a seu prprio respeito jogando-a sobre outrem. Assim os fortes se libertam do seu prprio sentimento de culpa suscitando-o nos fracos, to prontos a se compararem

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desvantajosamente com eles.Vejam, por exemplo, o caso de uma mulher muito minuciosa. Mostra esta qualidade fazendo tudo com muito capricho. Mas confessa-me que se sente sempre culpada por ser to minuciosa, por gastar tanto tempo em tudo o que faz. Ela foi educada por uma mulher que, ao contrrio, fazia tudo apressadamente, muito s carreiras! Esta ficava, certamente, irritada com a filha to diferente dela mesma e repreendia a sua minuciosidade fazendo-a sentir-se culpada, para se livrar, sem dvida, do sentimento de culpa que atribua a si mesma, por no ser bastante conscienciosa.Cada um tem o seu prprio ritmo, e os ritmos das pessoas so muito diferentes uns dos outros. No escritrio, uma datilgrafa muito rpida d, constantemente, a seus colegas mais lentos um sentimento de culpa que os paralisar ainda mais no trabalho. Isto reflete um simples dom da natureza que convm ser visto objetivamente. A datilgrafa rpida no tem mais mrito por sua rapidez nem sua colega culpada por sua lentido. Entretanto, por menos sensvel que seja, a datilgrafa rpida acabar se sentindo culpada por fazer sombra s outras sem querer, e lhes prestar vrias pequenas ajudas para ser perdoada.Assim, sentimentos tenazes de culpa so constantemente colocados nas mentes dos fracos pelo comportamento dos outros, por suas afirmaes, por seus julgamentos, pelo desprezo, mesmo pelas censuras mais injustas. Porque, de rplica em rplica, as crticas se tornam mais fortes, mais agressivas. O Dr. Baruk3 demonstrou a universalidade desta lei da agressividade defensiva: toda culpa reprimida d lugar resposta agressiva. Assim, quando um marido se sente invadido por sentimentos de agressividade e irritao contra a esposa, pode, na mesma hora, perguntar-se: Onde que estou errado? Com um pouco de honestidade, encontrar sempre a resposta. O mesmo verdade, naturalmente, para uma mulher em relao ao marido, um empregado em relao ao patro ou vice-versa.Contudo possvel humilharmos o outro tanto com conselhos como com censura. Todo conselho esconde uma crtica velada, a menos que tenha sido solicitado. Dizer a algum: Se eu fosse voc, agiria de tal ou qual maneira o mesmo que dizer que a maneira dele agir no correta. Assim muitos pais zelosos

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sufocam a iniciativa dos filhos com bons conselhos. Eles do a entender que os filhos so incapazes de encontrar, por si mesmos, a conduta acertada e semeiam em suas mentes dvidas quanto sua prpria capacidade.Marta e Maria, mencionadas no Novo Testamento (Lc 10:38-42) so irms com dois tipos bem conhecidos. Uma de temperamento prtico e se ocupa do trabalho caseiro; a outra tem mais gosto pelas coisas do esprito e se assenta aos ps de Jesus para escut-lo. Imagino que, por alguns minutos, Marta fez muito barulho com os pratos para que a irm soubesse de sua raiva. Depois, no se aguentando mais, apela ao prprio Jesus: Diga-lhe que venha me ajudar.Deste mesmo modo existe tanta crtica entre os membros de uma famlia, entre irmos e irms, entre marido e mulher, e entre amigos. Podemos observar facilmente o papel que desempenham os sentimentos de inferioridade e mesmo os sentimentos de culpa secretos. Marta se sente menos vontade do que a irm nas discusses espirituais e se esconde em suas panelas. Provavelmente no se orgulha disso e se consola valorizando os servios prticos que faz e criticando a irm. Esta ltima talvez j tenha demonstrado, algumas vezes, desprezo pelo trabalho domstico, a fim de aliviar sua conscincia por no gostar ou no ter habilidade no servio de casa.Jesus elevou o debate acima dos mecanismos psicolgicos elementares, ao colocar a questo dos valores: Maria escolheu a boa parte, que no lhe ser tirada. Mas isto no implica que exista em Jesus qualquer desprezo pelo trabalho domstico, pois ele no se sentiu rebaixado em cozinhar ele mesmo para seus amigos (Jo 21:9).Nem sempre h uma razo muito boa para que Maria se afaste da cozinha. Quantas mulheres se sentem embaraadas ao ler um livro ou repousar enquanto algum faz a faxina, arrastando os mveis e usando o aspirador no quarto ao lado? Mesmo quando tm convico ntima de que isto justo, se esto estudando porque necessrio faz-lo, ou se esto obedecendo ao mdico que lhes prescreveu repouso, tm um sentimento de culpa por deixar a responsabilidade do trabalho domstico nos ombros de outra pessoa e se sentem ou se creem criticadas.Muitas mulheres tambm privam o marido e a si mesmas de receber amigos, mesmo os amiguinhos das crianas, por medo de serem criticadas quanto ao cuidado com a casa. E14

INFERIORIDADE E CULPAestas so sempre as mais caprichosas. As mais aplicadas aos pormenores pensam que nenhuma falha escapar aos visitantes. Enquanto estes ltimos pensaro, talvez, o contrrio, que esta esposa mantm a casa to perfeita que acaba lhe faltando vida e charme.Assim, no dia-a-dia, somos continuamente envolvidos nesta atmosfera doentia de crticas mtuas, a ponto de nem sempre nos apercebermos disso. Ficamos aprisionados em um implacvel crculo vicioso: toda censura suscita um sentimento de culpa, tanto no crtico quanto no criticado, e cada um se livra como pode do sentimento de culpa, criticando um outro e se autojustificando.Esta culpabilidade cotidiana interessa muito ao mdico e ao psiclogo, porque est ligada ao relacionamento com os outros, s crticas alheias, ao desprezo social e ao sentimento de inferioridade. Remorso, conscincia pesada, vergonha, constrangimento, inquietao, confuso, timidez e at modstia: h um elo entre todos estes termos e no h fronteiras bem delineadas.

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Todas as pessoas se acusam mtua e constantemente. S pelo fato de viverem juntas, em famlia e em sociedade, comparam-se, inevitavelmente, umas com as outras e contrastam seus temperamentos diferentes, seus conceitos de vida e suas convices. Algum tempo atrs, minha esposa e eu estvamos almoando na Frana. Havia no cardpio lngua de boi ao molho madeira. Minha mulher chamou o matre: Eu no gosto de lngua de boi; o senhor poderia me oferecer outra coisa no lugar? Certamente! Tenho um excelente fil mignon, se isso lhe agrada. Durante o almoo falvamos, naturalmente, do sentimento de culpa, meu assunto de estudo da poca. Sabe de uma coisa? disse minha esposa, eu fui tomada de um sentimento de culpa quando pedi uma mudana no cardpio, porque voc come sempre tudo o que lhe oferecem e tenho a impresso que voc me julga caprichosa e difcil. Mas eu no disse nada! No, replicou ela, mas o seu silncio foi bem expressivo!Minha reao imediata foi de me defender: Como!? Procuro ser o campeo do direito de cada um ser o que , sem reservas e sem fingimento; e voc no ousa manifestar os seus desejos, com medo de minhas crticas! Assim, eu tentava devolver-lhe a responsabilidade do sentimento de culpa que ela havia experimentado. Ela, contudo, tinha razo: no meu silncio embaraado, durante o seu dilogo com o matre, o julgamento estava presente, sim; pouco consciente, verdade, mas o suficiente para que ela percebesse intuitivamente. Posso tornar-me o campeo ardoroso do dever de cada um ser o que , sem perceber que fao pesar sobre a minha esposa uma crtica silenciosa quando ela tem um comportamento diferente do meu ou se mostra diferente de mim.Cultivo, assim, um sentimento de falsa culpa nela. Porque a verdadeira culpa , principalmente, voc no ousar ser voc mesmo. o medo do julgamento dos outros que nos impede de

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SUGESTO SOCIAL

sermos ns mesmos, de nos mostrarmos tal como somos, de manifestarmos nossos gostos, desejos e convices, de nos desenvolvermos, de nos expandirmos segundo a nossa prpria natureza, livremente. o medo do julgamento dos outros que nos esteriliza, que nos impede de produzir todos os frutos que somos chamados a produzir. Fiquei com medo diz, na parbola dos talentos, o servo que escondeu o seu talento na terra, em lugar de faz-lo valorizar. (Mt 25:25 BLH)A sugesto social , ento, fonte de inumerveis sentimentos de culpa. Um silncio reprovador, um olhar de desprezo ou zombaria, uma frase pronunciada no raro impensadamente podem constituir uma poderosa sugesto. Assim, uma filha chora a morte de seu pai e a me insinua: No chore por seu pai; ele morreu porque voc no era boazinha; agora, voc deve me obedecer!A ltima frase a chave para se conhecer o sentimento que leva esta me, em sua confuso, a falar assim filha: a angstia de se encontrar sozinha para educ-la; um desejo ansioso de assegurar, desde o incio, que ser obedecida. Mas ela no calcula quo indelvel esta sugesto pode ser. Mesmo que nenhuma afirmao semelhante tenha sido pronunciada pelos pais, vemos, frequentemente, que esta ideia cresce no esprito de uma criana, a ideia de que ela culpada da morte do pai, do irmo ou da irm, e que a morte uma punio por sua prpria desobedincia.Talvez um certo nervosismo ou um acentuado grau de pesar dos pais tenha contribudo para lhe sugerir esta ideia; mas qualquer que seja a razo, uma vez enraizada na alma, a permanece, com uma tenacidade incrvel. Mais frequentemente do que se pensa, os pais, ou um dos esposos, se deixam levar por uma espcie de chantagem: Voc vai me fazer morrer de dor! E a, quando eu morrer, voc vai se arrepender! So palavras ditas em um momento de raiva, logo esquecidas por aquele que as disse, mas que deixam uma ferida grave naquele que as ouviu.As crianas ilegtimas tambm se sentem, todas, mais ou menos culpadas por sua condio, em razo do desprezo que as atinge. Lembranas atrozes da infncia! Todas as minha amigas me deixam, conta uma senhora, porque as mes proibiam-nas de brincar comigo, porque eu no tinha pai.

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Mas a sugesto social de culpa no se exerce somente nestes casos extremos. H, por exemplo, poucas mulheres solteiras que no se sentem um pouco culpadas por no serem casadas, como se fosse culpa delas. H as que se defendem tomando a ofensiva, chamando os homens de egostas e maus apreciadores das qualidades de uma mulher. H as que tm necessidade de enfatizar bem que recusaram muitos pretendentes.Devemos reconhecer que um certo descrdito estpido e injusto pesa sobre a mulher solteira. E, se ela do tipo nervoso, ouve muitas aluses bem desagradveis: ns sabemos bem o que lhe falta! E as mulheres casadas lhes do ainda mais sentimento de culpa quando dizem: Voc tem sorte de ser livre, de no se preocupar com um marido autoritrio e crianas doentes ou levadas; voc tem uma vida bem fcil e agradvel.Quando examinamos as coisas com cuidado, percebemos que essa mesma sugesto de culpa pesa sobre os doentes, principalmente sobre os doentes mentais e nervosos. Disso decorre a frequncia com que consultam o psiquiatra ou o psiclogo e o cuidado que tm de manter isso em segredo. tambm por isso que suas famlias geralmente fazem objeo internao em clnicas ou sentem vergonha se isto se torna inevitvel.O mundo demonstra uma generosa simpatia para com os doentes e os enfermos, mas esta simpatia est bem longe de ser to altrusta como se imagina. H toda sorte de desprezo, de repugnncia, de julgamentos escondidos atrs desta caridade aparente e mesmo, algumas vezes, na condescendncia desta caridade. Eu me esforo, em vo, para dar segurana a uma jovem que vive obcecada pela miopia que a obriga a usar culos horrveis. Digo a ela que isto no tem tanta importncia assim; que ela quem atribui aos outros, por causa de sua prpria obsesso, os sentimentos de desprezo que teme. E eis que, na visita seguinte, ela cruza, diante de minha porta, com operrios que trabalham na rua e que comentam entre si: Voc viu os culos daquela moa?Na realidade, h no inconsciente de todas as pessoas uma certa repugnncia defensiva contra a doena e a enfermidade, vestgios da misria humana que preferimos esquecer. A pobreza, a doena e a morte trazem ao esprito o problema existencial com uma brutalidade dolorosa, ao qual muitos desejariam,18

SUGESTO SOCIAL

conscientemente ou no, fechar os olhos. Assim, quando Buda, ainda jovem, quis sair de seu palcio dourado e percorrer as ruas da capital, o rei, seu pai, procurou, apressadamente, retirar das sarjetas todos os mendigos, doentes e moribundos. Entretanto, esta tentativa foi em vo e foi esta experincia que abalou Buda e o levou a engajar-se na procura corajosa e obstinada de uma resposta ao problema do mal. Mas nem todo o mundo tem uma vida ntegra como ele. A doena estimula a sensibilidade dos doentes, que percebem intuitivamente, em muitas pessoas saudveis, uma certa resistncia que sentem como desprezo.O apstolo Paulo, que sofria no se sabe de que doena, agradece aos glatas a acolhida deles recebida: E posto que a minha enfermidade na carne vos foi uma tentao, contudo no me revelastes desprezo nem desgosto; antes me recebestes como anjo de Deus, como o prprio Cristo Jesus (Gl 4:14).Jesus Cristo, com o seu realismo habitual, refere-se a esta tendncia humana de voltar as costas ao sofrimento, na parbola do Bom Samaritano (Lc 20:31), e na do Juzo Final (Mt 25:43). Um mdico dedicado a seus doentes acredita facilmente que est isento de tal complexo. Mas, pode v-lo reaparecer, quando est diante de um doente incurvel, pelo qual no pode fazer nada: de repente, se d conta que est se esforando para no evit-lo, para suportar seu olhar, pois lhe muito penoso sentir-se impotente diante do sofrimento implacvel.Vocs podem dizer que o desprezo inconsciente doena no tem nenhuma relao com o sentimento de culpa. Que iluso! A gente se sente sempre um pouco culpado por suscitar repulsa em outro, de trazer, por sua doena, uma perturbao na famlia, uma sobrecarga de trabalho aos colegas de escritrio, maior trabalho e preocupao para a esposa. Assim, a grande maioria dos doentes recusa-se, a princpio, a confessar que est doente, a ir para a cama ou consultar o mdico. Toda esta falsa culpa em relao doena uma causa muito frequente de uma autonegligncia repreensvel!Atrs deste falso estoicismo h, quase sempre, o medo de algum suspeitar que gostamos de ficar doentes ou mimados. Pois h certo prazer quando, de repente, na dureza da vida, temos o direito a nos refugiar, sermos servidos e mimados. Mas

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mesmo os que tm conscincia de que gostam disso tm, ao mesmo tempo, um vivo sentimento de culpa. De sorte que estes que sentem mais vergonha de estar doentes so os que se cuidam bem menos. Mas o mais grave o julgamento, seja verbal, seja velado, que os doentes sentem nos sos, mesmo e sobretudo nos mais bem intencionados em suas palavras de conforto. Muito frequentemente, so os visitantes mais dedicados que causam culpas mais funestas. Prova disto est no livro de J e nos belos discursos de seus amigos! Estes tiveram, a princpio, a delicadeza de se calarem sete dias e sete noites (J 2:13) diante de sua dor. Eles no lhe voltaram as costas; vieram para sofrer com ele e consol-lo. Mas, envolvidos pelo zelo, comeam a conversar, a filosofar, a exortar; falam tanto que prejudicam a J; com tantas palavras bonitas, lhe fazem mais mal que todos os seus males, de tal maneira que ele exclama: Vs todos sois mdicos que no valem nada (J 13:4).Por trs dos nobres propsitos destas saudveis pessoas, o doente J percebe um terrvel esprito de julgamento, uma insinuao constante de que os males que o assolam so punies divinas! Mesmo nas exortaes f, J sente uma acusao; quando Bildade lhe diz: Mas se tu buscares a Deus, e ao Todo-Poderoso pedires misericrdia, se fores puro e reto, ele, sem demora, despertar em teu favor, e restaurar a justia da tua morada (J 8:5-6). E evidentemente deixa entender que, se J no sara, porque no implora ao Todo-Poderoso, ou que ele no obediente o bastante! Assim, J replica (21:27): Vede que conheo os vossos pensamentos e os injustos desgnios com que me tratais.Assim, ns vemos crentes, telogos e leigos de todas as igrejas e de todas as denominaes, sobretudo as mais zelosas em socorrer os doentes, esmag-los com testemunhos religiosos, proclamar com fora o poder de Deus que sara os que confiam nele dando a entender ao doente que lhe falta f. Ele j carrega uma falsa culpa por estar doente; agora, acrescenta uma outra, bem mais grave, desta vez religiosa: a ideia de ter culpa por no se curar, a despeito de todos os cuidados e de todas as oraes de que objeto, a ideia de que ele no se cura, de que no digno da graa de Deus, ou que qualquer proibio, qualquer pecado misterioso e desconhecido um obstculo a isto!

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SUGESTO SOCIALVocs veem como este problema delicado. H curas divinas; h curas miraculosas; h curas pela orao e pela f. Os que tiveram esta experincia ou os que so testemunhas disso devem falar delas para a glria de Deus e para sustentar a esperana dos doentes.H pessoas que ultrapassam rapidamente as fronteiras da verdade em tais testemunhos; generalizam como se Deus curasse a todos que o invocam; e culpam todos que recorrem medicina cientfica ou aos medicamentos, como se estes no fossem tambm dons de Deus.Paixes surgem rapidamente nas questes onde os interesses efetivos so grandes, como mostram as polmicas entre os catlicos sobre Lurdes ou entre os protestantes sobre o pentecostalismo. Nem todos tm a prudncia extrema da Comisso Mdica do Controle de Lurdes, ou a de um telogo protestante como o pastor Bernard Martin. Os motivos que incitam certos crentes a exagerarem no testemunho so to nobres que eles no se apercebem do mal que podem fazer causa e aos doentes.Uma grave dvida subsiste na mentalidade mdica diante de certos relatos de curas milagrosas. Pode haver suspeita de que se tratava de um erro de diagnstico; pode acontecer que um doente se proclame curado, mas que ainda no nos parece que esteja realmente recuperado. Pode ser que um doente tenha dvidas, sem jamais reconhec-las, e que tem necessidade de afirmar mais fortemente a cura para persuadir a si mesmo; pode, s vezes, parecer que h mais misticismo nesta cura do que f autntica.O professor Jores, de Hamburgo, tem mostrado muito bem o contraste entre o aspecto mstico e a maturidade espiritual qual somos chamados tanto pelo evangelho como pela psicoterapia. possvel curar-se de uma doena sem se curar do aspecto mstico, que tambm uma doena; pode-se tambm emprestar uma virtude mstica cincia em geral ou medicina. muito gratificante dar um exemplo de si mesmo, de edificar algum com o nosso exemplo, de se apresentar como objeto de uma graa excepcional de Deus. Um doente pode ganhar com este testemunho uma alegria bem legtima que at pode ter um verdadeiro valor curativo. Mas outros doentes, que invocaram Deus em vo, talvez sintam uma tristeza aguda e at mesmo culpa. Neste ponto, um mdico materialista, proclamando

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o seu ceticismo quanto autenticidade de curas milagrosas, poderia dar alvio por parecer mais realista.Quando o Evangelho fala da f que cura, ele se refere s vezes f do sofredor: Credes que eu posso fazer isso? diz Jesus (Mt 9:28) aos cegos que procuravam cura junto a ele. Porm, mais frequentemente, trata-se da f de outros, dos pais ou dos que interecedem pelo doente: o pai do epilptico (Mc 9:23, 24), os amigos do paraltico (Mc 2:5). Quando fala da orao que cura, o Evangelho algumas vezes refere-se orao do sofredor (Lc 17:13) e, mais frequentemente, orao de outros (Mc 9:29; 7:26). Vemos Jesus Cristo curar doentes que no esperavam nada dele, como o paraltico de Betesda, por exemplo (Jo 5:5-9), que apenas andava em busca de um passe de mgica.Assim, confesso que eu mesmo experimento um vivo sentimento de culpa quando discutimos estes problemas de cura espiritual. Tenho plena conscincia de que, se tivesse mais f e se fosse mais fiel na orao, chegaria mais frequentemente a ser um instrumento de cura divina direta. Assim, eu, como todos ns, entendo claramente que, sem negligenciar os socorros tcnicos e cientficos que podemos propiciar a nossos doentes, deveramos acrescentar a isso as bnos da nossa intercesso.O ministrio espiritual ao qual somos chamados, do qual no podemos nos esquivar sem dor na conscincia, muito perigoso. Assim, quando ns falamos do aspecto espiritual da doena, como fazemos nesses encontros de mdicos, corremos o risco de sobrecarregar doentes inocentes com novas e opressivas culpas. Algumas pessoas, ss e bem intencionadas, repetem nossas declaraes aos doentes e lhes recomendam os nossos livros. Bem, se verdade que no pano de fundo de toda doena h problemas existenciais e que a doena pode ser a expresso visvel de um conflito psquico ou espiritual, o paciente sente-se massacrado por uma suspeita insuportvel. Devemos insistir, constantemente, que h tantos problemas existenciais nas pessoas saudveis como nos doentes.De qualquer forma, at as mais belas exortaes suscitam culpa. Deve-se, deve-se... Deve-se ter pacincia, deve-se suportar, deve-se aceitar, deve-se esperar, deve-se lutar... E o doente sente-se culpado por no ter pacincia, por no poder esperar,

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lutar, aceitar. Ser que a pessoa visitante faria melhor em seu lugar? Falo de tudo isso com uma profunda emoo, porque isso est relacionado com os sofrimentos de inumerveis vidas que so agravados, sem querer, pelos conselhos dos crentes mais caridosos.Tomemos o caso de uma mulher que foi enviada a mim pelo seu cirurgio; ele, sem dvida, a teria operado, se no tivesse conhecimento do possvel papel que os problemas existenciais desempenhavam em sua condio fsica. Seu conselheiro quis, outrora, impedi-la de se casar com um homem divorciado. No seu zelo e preocupao por ela, terminou dizendo: Voc no sabe que casar com ele levar ele e voc mesma perdio? Quo opressiva uma frase como essa pode ser durante toda a vida de uma mulher profundamente religiosa.Espero que me compreendam. No estou criticando o conselheiro; no abordo aqui um debate dogmtico, pois no de minha competncia. Falo somente como psiclogo e homem. No posso estudar com vocs um problema to grave como este sobre a culpa, sem levantar um fato to evidente e to drstico como a religio tanto a minha como a de todos os outros crentes que pode arrasar as almas em lugar de liber-las.H como um avesso inevitvel em toda afirmao de f, que a segue fielmente como a sombra segue o sol. Dizer que encontramos a verdade na doutrina catlica ou na doutrina evanglica, no pentecostalismo ou no adventismo, dar a entender aos outros que no compartilham de nossa f que eles esto totalmente errados. Pode ser que isto pouco preocupe pessoas atormentadas e cheias de dvida, mas mesmo assim tornam-se vtimas de culpas contraditrias: perguntam-se se no esto recusando ao chamado de Deus, ou se no seriam ainda mais culpadas se aderissem a uma doutrina que no podem aceitar de todo o corao. Reprovam-se ainda mais por causa destas dvidas honestas, achando-as culpveis. Recentemente, reencontrei uma mulher cuja educao severa s mos de um pai autoritrio carregou-a de sentimentos de inferioridade e culpa dos quais tenho tentado libert-la. Durante as frias ela encontrou um pastor cheio de dinamismo e se abriu com ele sobre estas dificuldades. Voc passou pelo novo nascimento? perguntou-lhe ele. E ei-la de novo afogada em seus sentimentos de inferioridade e culpa. verdade, disse ela, no passei pelo novo nascimento! Mas o que preciso fazer para passar por ele? Outros j o

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experimentaram e esto libertos, no entanto isto ainda no aconteceu comigo. A prova que eu vivo to atormentada!No contesto a mensagem evanglica do novo nascimento, nem a experincia do novo nascimento que eu mesmo tive. Na verdade, esta moa parece ter nascido de novo sem se dar conta, libertando-se pouco a pouco do mecanismo psicolgico que a havia aprisionado, alcanando a liberdade espiritual. Mas foi a Nicodemos que Jesus falou do novo nascimento (Jo 3:5): um sbio, um homem poderoso na sociedade, um forte, todo seguro de si mesmo pelas homenagens de deferncia que o envolviam, exatamente o oposto da minha paciente. a este homem que Jesus lana um desafio direto, a quem capaz de enfrent-lo, tanto em fora como em humildade. Nicodemos procurava conciliar habilmente o seu carter social e o seu carter ntimo, a sua fora e a sua humildade, e Jesus lhe pede para escolher; no se pode viver duas vidas ao mesmo tempo. Ento, importante, quando lemos os Evangelhos, ter em mente no somente as palavras de Jesus, mas tambm a quem ele as dirige. Eu creio que ns, mdicos, temos uma tarefa nesse sentido, no seio das igrejas. Porque um mdico possui o sentido de individualizao.Pelos estudos e mesmo pela vocao ensinar a verdade os telogos so orientados para as ideias gerais. Insistem com razo sobre o valor universal da revelao divina. Pregam semeando. Eu fao aqui aluso a uma parbola de Jesus, a do semeador (Lc 8:5-8). O telogo se preocupa em semear a melhor e a mais pura semente possvel.Ns, mdicos, habituados a pensar em casos, levamos em considerao o terreno onde as sementes caem. O terreno certamente contm pedras e espinhos, como Jesus disse; so os pecados que podem matar a semente. Mas contm tambm diversas qualidades tais como os diferentes temperamentos das pessoas e suas estruturas fsicas e psquicas. A mesma frase bblica pode produzir um choque salutar em uma alma e ferir outra. isto que torna to complexo e to dramtico o problema das relaes entre os sentimentos de inferioridade e os sentimentos de culpa. Eu no acho que se possa demarcar um limite claro entre eles. Toda inferioridade sentida como culpa.

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Vejo na rua, ao longe, um velho amigo. Durante muitos anos, nosso trabalho nos forou a que nos vssemos com bastante frequncia, o que no acontece mais agora. Ento, penso que ele me reprova por negligenci-lo; talvez seja at sem razo que eu lhe atribuo isto, no entanto no consigo deixar de pensar assim. Serei tentado, ento, a me desviar do seu caminho, o que me traria uma culpa maior ainda, a de cometer uma ao desleal.Acabo abordando-o com uma pressa um pouco exagerada, com uma viva jovialidade: eu o felicito por sua boa aparncia e lhe falo muito afetuosamente, demonstrando sinceridade. Eu me apercebo bem que isto para no lhe deixar tempo de pronunciar a temida frase: H quanto tempo voc no me vem ver? uma atitude um pouco forada, uma atitude de fachada, da qual me sinto culpado, porque tinha vontade de ser autntico com os meus amigos. Outrora eu realmente gostei dele, e isto precisamente o que acarreta minhas reaes. No queria que ele medisse a minha amizade pela frequncia de minhas visitas. No poderia jamais lhe dizer, com um tom de sinceridade total, que eu no tinha tempo de ir v-lo. Ns sempre encontramos tempo para fazer o que queremos.Quando tenho que preparar uma conferncia, ou fazer um trabalho como este estudo, a primeira coisa que me prometo escalonar o tempo para realizar tudo com cuidado. Mas, a, eu no cumpro o plano que fiz; no consigo fazer o que prometi, precisamente porque quero, de corao, faz-lo bem e tenho medo de no consegui-lo. No fim, encontro todo tipo de coisas para fazer antes, e vou arranjando desculpas para no fazer o que deveria.O que sutil que eu cultivo, ento, na perda de tempo, uma certa culpa que eu preciso para me pr a trabalhar. como um motor auxiliar que acumula fora para me fazer comear. Na vspera, em cima da hora da conferncia, quando tiver

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a conscincia bem pesada porque a preparei to mal, e quando tiver vencido todas as minhas resistncias, me lanarei precipitadamente ao trabalho, como se fosse um nufrago que se joga na gua quando o barco afunda. Isto servir como uma desculpa insuficincia do meu trabalho: pena que no saiu to bom quanto eu queria, mas eu devo me contentar com o que pude fazer s pressas (dando-me, assim, mais uma desculpa).Um de meus amigos enfrenta a mesma coisa que eu, quando adia uma tarefa urgente e difcil. O que nos distingue que o mal me estimula, me d, de repente, asas quando chego a um certo nvel intolervel de adiamento. Enquanto, no meu amigo, o peso da conscincia o paralisa. Todo o seu trabalho fica bloqueado. Ele no consegue comear outra tarefa enquanto a principal ainda est por ser feita; e quanto mais se agrava o seu atraso, mais cresce o peso de sua angstia paralisante. V-se, ento, que o mesmo sentimento de culpa pode estimular ou paralisar.O papel estimulante da culpa explica, provavelmente, a alegria que inmeras pessoas sentem cometendo delitos considerados inofensivos, sem se deixar apanhar em falta como, por exemplo, as fraudes nas alfndegas. E certas pessoas chegam, sem se aperceberem, ao ponto de comprar no estrangeiro alguns objetos proibidos pelo simples prazer de pass-los na alfndega sem declar-los. Isto representa, sem dvida, uma necessidade de vingana contra o poderio do Estado e da Administrao, um velho complexo do palhao que zomba do policial. A prova que se trata, muitas vezes, de mercadorias que a alfndega no cobraria, ou cuja taxa to mnima que no se justificaria a alegria do infrator em escond-las. O mesmo complexo entra em jogo na fraude fiscal, to difundida em certos pases, onde o legislador j a admite como normal e, consequentemente, edita disposies que so to injustas e insuportveis que qualquer um seria bastante tolo se se submetesse a elas honestamente.Por seu lado, e como revanche, o contribuinte sabe que o Estado rouba tanto que ele se sente justificado roubando-o tambm. Mas onde est o limite nesta sbia dosagem de roubos mtuos? claro que isto desencadeia em desmoralizao, tanto do Estado quanto dos administradores. Todos esses raciocnios

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justificativos no suprimem de modo nenhum o sentimento de culpa.Mesmo em tempos de guerra, enganar o invasor parece ser uma grande virtude, mas nem por isso dispensa o sentimento de culpa. Vi, durante e aps a guerra, um bom nmero de homens que sentiram necessidade de confessar tais condutas, permanecendo entretanto extremamente orgulhosos, e prontos a agir da mesma maneira, inclusive com convico, em circunstncias semelhantes.As fraudes tidas como inofensivas tm tantos atrativos para tanta gente, por causa do risco de perseguies que elas implicam. Disso decorre o que se chama comumente de prazer do fruto proibido: prazer do risco e prazer de sair ileso (como o de escapar da alfndega). Entretanto este jogo tem ainda um outro sentido; o de acostumar-se ao veneno, o da tentativa de livrar-se da culpa acostumando-se com ela. Assim, com vrias ocasies de pequenas culpas, ns nos familiarizamos bastante com esta emoo e ela no nos tocar muito em casos maiores, quando nos envergonhamos de verdade, porque nesses casos ela contradiz realmente o nosso verdadeiro ser. Ns confundimos a questo de modo que o contraste entre o bem e o mal enfraquecido e os limites entre eles ficam indistintos.Volto ao assunto da culpa do tempo perdido. Enquanto escrevia estas linhas, um de meus antigos pacientes veio assentar-se perto de mim. Atrapalho? Voc est trabalhando? Oh, no; o que que voc quer? Fiquei contente de verdade em ouvi-lo, porque me trazia boas notcias do acerto de sua vida, comeado j h quatro ou cinco anos no meu consultrio. No entanto, eu o escutei um pouco distraidamente, em meio a uma mistura de sentimento de culpa.Durante toda a conversa, eu sentia que devia ter-lhe dito francamente: Desculpe-me, estou fazendo um trabalho urgente; ns conversaremos mais vontade em uma outra ocasio. Mas no ousei faz-lo. Tenho sempre um pouco de vergonha da minha timidez, porque ela limita a minha liberdade. Eu me sentia tambm culpado de descansar a minha caneta no momento em que deveria estar escrevendo. Porm se eu mesmo no tivesse perdido tanto tempo com minhas hesitaes anteriores (alis muito mais tempo do que esta conversa levou), eu teria mais

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DIMENSO DA CULPAcoragem para me despedir do meu visitante. Assim, uma primeira falta secreta compromete o nosso comportamento e nos leva a outras faltas que nos jogam o seu veneno e o seu poder atravs daquela primeira culpa inconfessada. Este problema sobre a organizao do tempo capaz de produzir muitas culpas. Quando falo disso em uma reunio de mdicos, todo o auditrio ri. Isto significa que todos levam remorsos sobre isso e encontram algum alvio quando descobrem que no so os nicos. E, no entanto, sentimos a importncia deste assunto, pois a nossa verdadeira liberdade est em jogo, como tambm a soberania concreta de Deus sobre a nossa vida.O tempo pertence a Deus, e ns somos seus mordomos; somos responsveis diante dele por cada minuto que ele nos d. Todos ns sentimos que se escutssemos melhor a Deus a nossa vida seria mais harmoniosa. Ns ficamos sobrecarregados, fatigados e com a conscincia pesada tanto com o que deixamos de fazer como com o que fazemos. Quantas esposas de mdicos ficam preocupadas ao ver o marido to sobrecarregado? A mulher de Moiss j se preocupava, sem dvida (x 18:13-24). Mas seu marido no a escutava, como muitos mdicos hoje em dia no do ouvidos aos bons conselhos de suas esposas. Assim, a mulher de Moiss fez um apelo autoridade de seu pai para adverti-lo: Voc vai desfalecer! disse-lhe ele. E, felizmente, Moiss o escutou; e, sabiamente, se descarregou das tarefas secundrias que ele podia confiar a outros.No so s os amigos que negligenciamos. H a correspondncia em atraso, os jornais profissionais e muitos outros documentos que se avolumam sobre a escrivaninha, ou no armrio, e a gente no suporta v-los mais. Precisamos folhe-los para estar em dia. Tentamos nos convencer de que vamos atac-los um dia, mas isto no convence, porque a experincia j nos mostrou que isso toma muito mais tempo do que se pensa. E quanto maior a pilha, mais se esvai a esperana.Um dia, eu no aguentei mais. Percebi, em um momento de meditao, que tantas coisas em desordem e em atraso constituam um desmentido monumental a tudo que eu dizia de uma vida sadia, alegre, livre e conduzida por Deus. Durante mais de trs meses eu no pude fazer mais nada alm de atender as minhas consultas e liquidar com esta baguna, para me colocar em

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dia. Que alvio! Mas o problema renasce sem cessar. Eu me tornei bem mais ordeiro, mas no estou, entretanto, livre de numerosos sentimentos de culpa.Sinto uma dor insuportvel quando a minha correspondncia se acumula. Para amenizar a minha conscincia, suspendi as assinaturas de um bom nmero de jornais. Mas a eu quase no ouso admitir que no recebo mais aquela famosa revista mdica, da qual todos os meus colegas to estudiosos tm assinatura. Sim, a conscincia dolorida verdadeiramente o nosso prato de cada dia. inevitvel.Todo este problema da disciplina do tempo torna-se ainda mais agudo conforme as foras diminuem com a idade. um dos sofrimentos da velhice, e que pode tornar-se obsessivo. Deve-se abandonar algumas atividades? Deve-se prosseguir a despeito da fadiga? Seria trair a nossa tarefa renunciar a tal atividade? Ou ser que continuar a fazer o que fazamos antes revela arrogncia da nossa parte e desprezo culpvel da nossa sade?Este tambm o caso dos doentes ou invlidos.Frequentemente, eles me perguntam: Em que medida devo aceitar a minha enfermidade ou, ao contrrio, em que medida devo reagir, fazer um esforo para sobrepuj-la, para me readaptar? como se a aceitao e a reao fossem mutuamente exclusivas. Ora, ns observamos que os que aceitam a sua enfermidade reagem melhor enquanto os revoltados no fazem nenhum esforo de readaptao, justamente por causa da sua revolta.Viver escolher. Mas, ser que ns escolhemos sempre livre e conscientemente? Ser que a nossa escolha no nos sempre imposta pelas circunstncias, por nossa falta de coragem, por nossos hbitos ou mesmo por nossas culpas? Assim, se sinto alguma dor na conscincia em relao a um amigo, eu me sinto automaticamente seu devedor, e no ousarei recusar-lhe um favor, embora isso ocupe um tempo que deveria empregar em uma outra coisa. Isto contribuir para me sobrecarregar, tornar-me nervoso, e aumentar ainda mais o meu sentimento de culpa.Claro que tenho sido obrigado a aprender a recusar um servio, uma conferncia, por exemplo. Mas o fao sempre a contragosto. Tenho muito medo de decepcionar algum, pois depois me moeria de remorsos. No poderia, e com justa razo,

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ser criticado por ter aceito ontem uma outra conferncia que me tomar muito tempo? Na verdade, se eu recuso, sinto-me culpado em relao queles que esperavam qualquer coisa de mim, mas se aceito em relao a mim mesmo que me sinto culpado, porque me deixei influenciar.Ser que no corro o risco de ceder aos que insistem mais, em detrimento dos mais discretos? Ou ainda, o que mais sutil, no corro o risco de ceder a estes ltimos porque sou tocado por sua discrio? Vou ao exterior para encontros mdicos a que sou convidado, e quase nunca vou Sociedade Mdica de Genebra. Tenho conscincia culpada em relao aos meus colegas, porque todos so to amveis comigo, e tambm em relao a mim mesmo, porque isso me tira a oportunidade de me instruir mais.E acontece a mesma coisa em relao a todos os livros que deveria ter lido antes de me aventurar a escrever, eu mesmo, sobre assuntos que vrios autores j trataram cuidadosamente antes de mim. Com frequncia resolvo, mesmo embaraado, citar seus trabalhos, confiando no seu bom nome; mas a preciso exige que eu os conhea bem, antes de falar deles. Eu leio devagar, portanto leio poucos livros; e, sem dvida, cada livro que leio citar os nomes de uma boa dzia de outros que eu deveria ler tambm, e fico ainda mais envergonhado de confessar que no os li.Outros leem muito, devoram livro sobre livro, mas com uma conscincia culpada deste apetite insacivel e a desproporo entre o que eles recebem e o que eles do. E eu, se renunciasse a escrever, teria tambm conscincia culpada, porque escaparia da crtica somente ao custo de uma rendio covarde, infiel minha vocao. E o tempo que ocupo para escrever no pode ser dado aos pacientes que recuso atender, ou minha mulher que corre o risco de receber s as migalhas do meu tempo.Estas questes so um tormento permanente para muitos de meus colegas. Quando um mdico d um belo presente sua esposa, pode no se perceber que foi s para conseguir o perdo por lhe dar to pouco tempo, to absorvido que est em sua profisso. E ele ainda fica decepcionado quando ela manifesta to pouco entusiasmo ao receber o presente. porque ela preferiria, muito mais, que o marido lhe desse um tempo igual

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a que outros maridos do s suas esposas.Os presentes, por certo, no so sempre um disfarce para a culpa. Mas, provavelmente, isto acontece mais frequentemente do que ns pensamos. Assim, vemos Jac, que se portava to mal com Esa, seu irmo, para se reconciliar oferece-lhe, antes de o encontrar, preciosos presentes, que ele dividiu em partes e os mandou sucessivamente para aumentar o efeito (Gn 32:13-32). Contudo Jac no conseguiu se libertar da sua conscincia pesada. Ela agora talvez estivesse mais avivada ainda por ter se utilizado de uma manobra to astuciosa. E enquanto esperava para encontrar-se com o seu irmo, passou uma noite atroz, uma noite de insnia, uma verdadeira batalha! Ele luta consigo mesmo. Mais que isso, termina por perceber que luta com Deus. Ento, com a audcia que o caracteriza, obriga Deus a abeno-lo.Eis a o grande paradoxo que sempre encontramos em toda a Bblia: o caminho doloroso da humilhao e da culpa, com todas as angstias e todas as revoltas contra Deus que elas suscitam! E precisamente o caminho que desemboca na estrada real da graa. Deus ama os que, em lugar de disfarar o problema, o enfrentam at o confronto e a resistncia. Vi a Deus face a face, e a minha vida (nephesh, alma) foi salva gritou Jac. O resultado de tudo isto foi que Israel ficou coxo. Assim podemos ver que uma doena pode ser consequncia de um combate espiritual.Jac teve a maior experincia que se pode ter: ele se tornou um homem novo, isto porque tambm Deus lhe deu um novo nome: Israel. Dessa forma, ele podia agora abordar o seu irmo com uma segurana que todos os seus presentes no lhe garantiram: a bno de Deus. Ento Esa correu-lhe ao encontro e o abraou; arrojou-se-lhe ao pescoo, e o beijou: e choraram (Gn 33:4).Retornemos famlia do mdico. Algumas vezes, as crianas tambm prefeririam um momento realmente autntico com o pai a um presente caro. A me tenta lhes explicar: Vejam se compreendem: seu pai to dedicado, preciso deix-lo tranquilo. Eles podem concluir, ento, que os doentes tm mais lugar no corao de seu pai. , ento, bastante perigoso ter-se uma vocao que exige muita generosidade. Isto permite que enganemos frequentemente a ns mesmos e obscureamos

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convenientemente a conscincia pesada por negligenciar nossa famlia. Muitas vezes, somente anos mais tarde, em circunstncias mais ou menos trgicas, que um homem se d conta, de repente, de que ele no preencheu a sua vocao de pai. A ele experimenta forte remorso.Em um certo sentido, no justamente um conjunto de culpas difusas que os homens procuram esconder ao lanar-se freneticamente ao trabalho, em lugar de enfrent-los? Ser que este excesso de trabalho, esta correria, no se constitui em uma espcie de libi que invocamos para nos desculpar? Ou at como uma espcie de expiao pelo trabalho? Quando a procura do lucro, da considerao social ou da gratido nos enrola neste turbilho, no devemos ver nisto uma capa para a culpa? Porque esta procura exprime uma necessidade de revalorizao de si mesmo para contrabalanar a desvalorizao interior que a culpa nos traz.Vemos muita gente se lamentando perpetuamente sobre a falta de tempo, sem jamais procurar seriamente uma soluo, pois teria que fazer alguns sacrifcios. Tais pessoas acusam a civilizao, a vida moderna, o automvel, as mquinas, todas estas coisas que os homens inventaram para ganhar tempo, como se elas fossem apenas vtimas disso e no culpadas.No fundo de ns mesmos, bem sabemos que temos a nossa parte de responsabilidade nessa agitao toda, que nos deixamos nos envolver pelo curso da vida, em vez de resistir a ele pela reforma de nossas prprias vidas e que o problema antes pessoal que social.Se sentimos uma dor de conscincia por gastar tempo toa, conforme conversamos h pouco, ns a sentimos tambm por no mais saber relaxar ou repousar como Deus ordenou (x 20:10); ou ainda meditar, ou orar, ou empregar tempo em quieta contemplao. precisamente nesta contemplao que reencontramos a paz interior de que o mundo atual tem tanta necessidade. Como d-la aos nossos doentes se no a possumos? Como ensin-los a organizar melhor a vida se a nossa est to confusa? na contemplao que encontramos a hierarquia dos valores, uma distino clara entre o que primordial e o que secundrio ou at perigoso.Quando abrimos os Evangelhos, vemos que Jesus Cristo,

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cujas responsabilidades eram bem maiores que as nossas, se mostra menos apressado que ns. Ele tinha tempo para falar com uma estrangeira que encontrou na beira de um poo (Jo 4:1-6). Ele tinha tempo de tirar frias com seus discpulos (Jo 13:5), tempo de admirar os lrios dos campos (Mt 6:28), ou um pr-do-sol (Mt 16:2); de lavar os ps de seus discpulos (Jo 13:5); de responder, sem impacincia, s suas perguntas tolas (Jo 14:5-10). Ele tinha, sobretudo, tempo para se retirar nos desertos e orar (Lc 5:16), e de passar toda uma noite em orao antes de uma deciso importante (Lc 6:12).Este tempo de contemplao silenciosa sempre um barmetro de minha prpria vida espiritual. Periodicamente, eu redescubro sua importncia decisiva; periodicamente tambm, esqueo-me dela, no sem um sentimento de culpa. Fico perplexo em ver quanta gente desenvolve engenhosas teorias para aliviar suas conscincias pesadas em relao a isso. No entanto, tudo em vo, como prova a multiplicidade de argumentos e o tom peremptrio de suas vozes. Uma conscincia pesada no precisa de acusador, diz o provrbio. Um dia, h mais ou menos um ano, percebi que estava me prejudicando porque comecei a ler o jornal antes da meditao matinal, o momento quando Deus me pedia que o escutasse antes de escutar o mundo. Foi simples corrigir isto, mas para renovar o clima de minha vida.Acabo de ler estas ltimas linhas minha mulher. Ela me respondeu imediatamente: Para mim, justamente o contrrio; eu escuto primeiramente as notcias do rdio; isto me desperta bem; ento, depois, eu posso meditar mais conscientemente. Trata-se, ento, de cada um procurar, sinceramente, o melhor contato com Deus.Jesus sabia tambm se descartar da multido entusiasmada que queria enred-lo em uma brilhante carreira pblica (Jo 6:15). Ele sabia mesmo recusar, com uma calma extraordinria, o pedido de uma me desolada, a mulher cananeia e no se desviar, por causa dela, do caminho que Deus lhe havia traado (Mt 15:22-28). Entretanto, quando ele descobriu a f que a motivava, ele no hesitou em mudar de opinio e mostrar assim a sua verdadeira liberdade interior. esta liberdade que almejamos: a liberdade de agir ou de no agir, de falar ou de calar, de fazer isto e no aquilo, de

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trabalhar e de repousar, segundo a convico que Deus nos d. Quer sejamos pessoas de f ou no, ns nos sentimos sempre culpados por nos deixar conduzir pelas exigncias do mundo, por mais nobres que elas sejam, e no por uma inspirao interior e pessoal.

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Eu me lembro do meu primeiro dia de escola. Era o nico a usar um chapu de abas largas. Assim, meus novos colegas deram-me imediatamente o apelido: Chapu de padre. Isto me afetou muito; eu era rfo e solitrio, enfrentando pela primeira vez uma sociedade impiedosa, como uma turma de escola, e com a necessidade de fazer uma adaptao difcil sua lei. Sua lei a do grupo, e todo aluno que se distingue do grupo por qualquer excentricidade torna-se rapidamente objeto de ateno. Eu me senti envergonhado e culpado de no ser como os outros.Nesta idade uma criana tremendamente sensvel vergonha da pobreza quando ela se compara aos colegas mais bem vestidos e que podem comprar bombons e brinquedos diferentes. J escutei inumerveis e pungentes reclamaes daqueles que sofreram a misria na sua infncia e todas as afrontas que ela desencadeia.Uma me, abandonada por seu marido, tem uma dvida to grande no armazm que no ousa mais ir l. No entanto, preciso alimentar as crianas. Ento, envia a sua filhinha. Esta sabe o que a espera e, antes de qualquer coisa, se recusa. Porm a me a repreende! Ela se sente culpada por desobedecer e vai. Voc tem dinheiro? pergunta-lhe o dono do armazm. Volte ento para apanh-lo em casa; no lhe darei nada se voc no tiver dinheiro. A menina no pode responder nada; vai embora, chorando. Um terrvel sentimento de culpa enche o seu corao. Ela se sente culpada por no ser como as outras meninas que vo ao armazm; sente-se culpada por ser pobre. Ela vagueia pelas ruas, remoendo ainda a culpa atroz que sentir ao ver a sua me chorando ou prevendo a repreenso que sofrer quando entrar em casa de mos vazias.No somente com o homem do armazm. Mesmo as generosas mulheres da igreja que trazem seus embrulhos de roupas e mantimentos, por sua atitude, por suas palavras, por seus

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gestos, incutem, sem se dar conta, mil sentimentos de culpa no corao da menina. Elas tm uma maneira de lhe dizer: No v comer tudo de uma s vez; sua me muito pobre, preciso que isto dure muito tempo. Ou, ainda, me: Ns pensamos que seria mais til trazer para as crianas algumas roupas velhas no lugar de brinquedos.Isto se repete durante toda a vida. Quanta gente no ousa ir igreja porque tm apenas roupas velhas e no suportam o olhar de desprezo, ou de condescendncia, ou de piedade das pessoas de classe mdia em suas melhores roupas domingueiras! Certamente estes ltimos so os culpados, e no os pobres que fazem papel de culpados e se sentem assim, quando os outros os sadam cerimoniosamente, todos compenetrados do mrito de sua piedade.Ningum fica insensvel ao julgamento que nos espera na sociedade. Se somos silenciosos, nos chamam de indiferentes; se falamos muito, nos qualificam de pretenciosos. Uma mulher que use roupas clssicas ser criticada com desprezo como sendo antiquada; se usa roupas mais ousadas, julgam-na uma aventureira. Todos os convidados esto com roupa de gala, e voc no sabia; voc o nico traje esporte: se rico, eles admiraro a sua simplicidade e pensaro que voc quis estar vontade; mas se voc pobre, eles o trataro rudemente. Se, por um erro inverso, voc o nico a estar em traje de gala, voc tambm ficar embaraado. O problema, ento, no est tanto na pobreza ou na riqueza, mas na inevitvel comparao mtua entre os homens.Assim, o dinheiro fonte de inmeras culpas, e de culpas contraditrias. Tem-se vergonha de ter falta dele; mas tem-se vergonha tambm de possu-lo, de ganh-lo. Muitos mdicos tm me confessado no poderem cobrar contas elevadas sem um sentimento de culpa. Se o doente no se curou est-se cobrando por um servio intil. Se o doente ficou bom, quase pior: como barganhar o servio prestado, o que eleva o seu preo. Assim, muitos mdicos encarregam suas secretrias de cobrar os honorrios elevados. Outros me disseram que se tornaram mdicos missionrios ou mdicos de empresas para se livrarem dos problemas de honorrios, ou abriram uma clnica para que seu preo fosse includo dentro do preo global da estadia. Da tambm a participao dos mdicos na criao de tabelas oficiais

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que tm sido adotadas para todo tipo de tratamento. Isto os livra de toda responsabilidade pessoal na fixao de seus honorrios e de toda reivindicao dos doentes, separados dessa forma dos mdicos por um regulamento impessoal. Porm isso tira tambm da medicina o seu carter de relao pessoal, tornando os pacientes em casos e os mdicos em funcionrios. Em Genebra, meus colegas conseguiram salvaguardar, ao preo de duras lutas e de vivas crticas, um regime relativamente liberal. Mas ento, se o mdico tem escrpulos de cobrar normalmente os seus honorrios de um doente pobre, cuja doena leva ainda a maiores dificuldades financeiras, e se ele trata gratuitamente (como acontece muitas vezes) ele se sentir com a conscincia culpada em relao sua prpria famlia. Isto acontece em todos os setores. Um empregado consciencioso sente um peso na conscincia por pedir um aumento que ele no tem certeza de merecer totalmente, e lhe pesa na conscincia sua mulher se contentar com um salrio que lhe impe restries e economias.Ele passeia na cidade com ela: ela admira um lindo vestido em uma vitrine e quer faz-lo compartilhar de sua admirao: Olhe, que vestido maravilhoso! Ele nem olha. Toma esta exclamao por uma censura. Ele tenta lev-la para outro lugar e compra-lhe um ramalhete de violetas, como um tipo de compensao por no lhe comprar o vestido.Muitas vezes a mulher trabalha e ganha, e compra bonitas roupas com o seu prprio dinheiro. Neste caso, seus filhos ficam soltos na rua ou sozinhos em casa quando voltam da escola; eles devem abrir sozinhos a porta da casa sem serem acolhidos por ningum. Assim, novamente o marido tem um sentimento de culpa, to profundamente enraizado na alma humana: a ideia de que o pai de famlia deve ser o sustentador de sua famlia, apesar da evoluo dos costumes.Todas as discusses sobre as finanas domsticas so carregadas de culpas mais ou menos conscientes, muitas vezes carregadas de veneno. Quando uma mulher fala do custo de vida, seu marido se torna nervoso e aborrecido, porque ele sente nas queixas dela como uma espcie de censura. Ele foge de qualquer dilogo com ela acerca do oramento. D-lhe uma soma que sabe ser insuficiente e lhe diz para fazer o possvel. Ele

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fecha os olhos ao problema, mas fica com a conscincia doendo. Frequentemente, ele nem lhe diz o quanto ganha, com medo de incit-la a gastar, ainda que ele esbanje mais dinheiro do que admitiria em prazeres desprezveis. Pode-se queixar constantemente de falta de dinheiro e mesmo assim gast-lo tolamente.Outros maridos s o do resmungando, gota a gota. Sem cessar, suas mulheres tm que estar pedindo, sempre mal acolhidas, se bem que elas terminam por experimentar um verdadeiro sentimento de culpa ao pedir, como se fosse culpa sua que as crianas cresam to depressa e gastem tantos sapatos. H muitas esposas que no tm outra sada a no ser enganar os maridos nas contas para dispor do necessrio s suas necessidades pessoais. Uma transparncia financeira total entre os cnjuges muito rara e as mentirinhas mtuas so sempre carregadas de culpa. Cada parte tem medo de um julgamento crtico de seu cnjuge sobre suas prprias despesas.Por educao e por complexo gasto mais do que minha mulher. Assim, logo que ela aprova uma despesa, me apresso em consider-la como legtima. Deste modo, coloco sobre a minha mulher uma responsabilidade que eu injustamente tiro de sobre meus ombros. Como na organizao do tempo, ns todos sentimos que a autenticidade de nossa submisso a Deus se efetua diariamente e de forma concreta em nossas decises financeiras. Aqui tambm somos rpidos em dizer que tudo que possumos pertence a Deus, que ns somos no os proprietrios, mas os administradores.Este pensamento, por mais justo e sincero que seja, pode servir s pessoas ricas para acalmar a dor de conscincia que sentem em relao sua riqueza. Pode ser muito cmodo ou ao contrrio, caso seja consciencioso, muito angustiante considerar-se como administrador dos bens de um proprietrio distante de quem se recebe as ordens de uma maneira confusa. Honestamente, preciso confessar que bem difcil, na prtica, julgar a vontade de Deus no emprego do nosso dinheiro.Assim, muito importante para o casal pelo menos procurar uma orientao diria juntos, por meio de calma comunho com Deus. Mas, precisamente os fatores psicolgicos que mencionei privam muitos casais, da calma necessria a esta procura do plano de Deus quando eles discutem sobre o dinheiro. Pode-se

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tambm pedir conselho a um pastor ou a um amigo. Porm me parece que Sartre no errou quando disse que ns escolhemos o nosso conselho pela escolha de nosso conselheiro. Ns quase sempre podemos prever quem aprovar os nossos projetos e quem nos dissuadir deles.Numa ocasio tive uma experincia interessante a este respeito. Falvamos, minha esposa e eu, na ocasio, em levar as crianas em um cruzeiro, pela costa dalmtica e Grcia. Tal despesa seria legtima? Mais particularmente, estaria dentro da vontade de Deus? Pode-se discutir interminavelmente consigo mesmo, lidar com mil argumentos plausveis, sem apagar de todo uma dvida interior. Pareceu-nos tambm, em nosso raciocnio, que, se submetssemos o caso a um amigo do mesmo meio social que o nosso, este controle no teria nenhum valor.Eu estava naquela ocasio muito ligado a um grupo de operrios de uma fbrica na vizinhana. Fui casa de um deles, noite, levando comigo todas as minhas contas domsticas, todos os meus avisos bancrios e minhas declaraes de imposto de renda. Com seu encorajamento, fizemos o nosso cruzeiro, mas jamais esquecerei a magnfica noite que passei com este amigo.Ns somos, com efeito, sempre bastante reservados e raramente transparentes, pouco inclinados a nos abrir de fato sobre os nossos problemas financeiros, mesmo com bons amigos, e principalmente com aqueles que nos parecem menos privilegiados do que ns. V-se assim grandes chefes sindicalistas que escondem dos operrios o conforto e o bem-estar que eles adquiriram servindo a causa dos operrios. justamente esta falta de transparncia a fonte de um sentimento de culpa.Ento, a sociedade inteira se organiza para tentar diminuir essas culpas que esto inexoravelmente ligadas aos privilgios da liberdade. Os salrios so fixados por contratos coletivos, e a promoo se torna automtica com o tempo de casa. Eu no critico este progresso que atenua um pouco a terrvel culpa das injustias sociais.Assim como h uma culpa na misria, h tambm uma culpa na prosperidade que se desenvolveu medida que a voz da misria se tornou mais audvel. Mas toda esta legislao social que o proletariado arrancou da burguesia e que at hoje to

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cruelmente insuficiente, como um vu muito transparente jogado sobre a conscincia pesada dos privilegiados. Os barulhentos testemunhos da injustia social so abafados de modo a se poder desfrutar os bens de consumo mais vontade.Um certo sentimento de culpa inerente a todo privilgio, mesmo quando este merecido. Um empregado de confiana sente isto em relao a seus colegas quando seu chefe, que o aprecia, confia-lhe as mais altas responsabilidades. Uma moa, a quem se pede para cantar na igreja no Natal, tambm se sente assim em relao a uma amiga que gostaria de ter sido convidada no seu lugar. Toda inveja e todo cime dos outros desperta em ns uma conscincia culpada.Da mesma maneira, em um mundo onde todos devem trabalhar, quem no trabalha adquire um sentimento de culpa; porm tenta escond-lo como puder, fazendo-se agradvel a todos. O mesmo mecanismo ocorre com as pessoas que ganham muito dinheiro, ou o ganham muito facilmente, e que se absolvem dando generosas doaes s igrejas, s obras sociais ou financiando bolsas de estudo. Ns encontramos tambm um vivo sentimento de culpa em mulheres que foram mimadas por seus maridos, e vice-versa.Assim, o que separa os homens no somente a diferena de suas condies, nem somente a inveja que esta suscita nos menos privilegiados, tambm o fato de que esta diferena desperta, nos mais privilegiados, uma conscincia pesada que perturba o seu prazer. Por um curioso paradoxo, o empregado que merece plenamente a promoo que recebeu, mas que no a solicitou, fica mais embaraado perante seus colegas do que um outro que, sem escrpulos, sabiamente manobrou tudo para chegar l, por meios mais ou menos duvidosos.Talvez vocs estejam pensando que eu me contradisse, que esteja confessando existir pessoas sem escrpulos, sem culpa. Eu emprego esta expresso como todo o mundo, mas somente um modo de falar. No pensem que aquele oportunista esteja na verdade isento de culpa. Vejam como ele tem necessidade de explicar a sua conduta, de depreciar os outros e de se justificar, de ser acreditado diante dos outros, bem como perante si mesmo, de propor aos outros (como tambm a si mesmo) uma verso corrigida que o exonera de toda e qualquer culpa. Os que so aparentemente sem escrpulos so pessoas que

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recalcaram os seus escrpulos para o subconsciente.Sinto-me mal em estar to sadio quando h tantos doentes; em ser feliz quando h tantos infelizes; em ter dinheiro quando tantos tm falta; de ter uma vocao interessante quando tantos suspiram sob o peso de um trabalho que detestam; e at mesmo de ter experimentado a mo de Deus e ter sido iluminado pela f, enquanto tantos sofrem na angstia, no isolamento e na obscuridade.Eu conversava sobre isto recentemente com um de meus colegas, um psiquiatra. Com um sorriso leve, cheio de boa vontade, ele me disse: Eu sou seu amigo, mas devo tambm ser um pouco seu mdico. Ele queria dizer, gentilmente, que achava meus sentimentos de culpa verdadeiramente mrbidos. Eu no o contesto. Vocs talvez pensaram da mesma maneira lendo at aqui. Ele me explicou o seu pensamento: Voc sofre de uma deformao do senso de responsabilidade. Ns no somos responsveis pelo mundo inteiro mas, mais modestamente, por um pequeno crculo imediato. Se ns somos fiis nestes limites, podemos ter a conscincia tranquila.De um s golpe, eis-me carregado de uma nova culpa: bem verdade que h o orgulho de se sentir assim responsvel pelo mundo inteiro e por todas as suas injustias. O farisasmo tambm me espreita: a gente pode emocionar-se com os indianos que morrem de fome, sem perceber misrias que esto mais prximas de ns, as quais se poderia remediar. Mas estas observaes confortadoras no me bastam.Pouco depois eu recebi uma carta de um amigo estrangeiro: Acabo de aprender, me escreveu ele, que, segundo as estatsticas, uma boa parte da humanidade subnutrida: as riquezas terrestres so mal distribudas. Fico ento embaraado quando como ou quando durmo em uma cama; eu nem ouso mais me distrair no domingo ou nos feriados.Por certo, meu amigo psiquiatra poderia lhe dizer, como fez a mim, que est doente. Mas existe tambm outra doena, uma doena universal, um imenso recalque da conscincia. Se h tanto sofrimento no mundo, no seria justamente porque muita gente boa, que honesta e at conscienciosa nas suas responsabilidades cotidianas, se tranquiliza facilmente dizendo que estes sofrimentos longnquos, em to grande escala,

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escapam ao seu raio de ao? Eles se persuadem que no podem fazer nada quanto a isso. Assim continuam existindo iniquidades gritantes devido a uma espcie de cumplicidade universal.De tempos em tempos um profeta surge, e remi a conscincia de todos. Ele desperta uma culpa que tinha sido recalcada em inmeros coraes; ele alarga de novo o sentido de responsabilidade e obtm reformas que se acreditavam impossveis.Ouvindo um profeta como este, muitos homens se lembram, de repente, da histria de Pilatos que lavou as mos na presena da multido para marcar bem os limites formais de suas responsabilidades. Estou inocente, disse ele (Mt 27:24). Porm, esta cerimnia teatral no livrou Pilatos de sua conscincia pesada: e ns percebemos isso depois, porque ele mandou colocar sobre a cruz a seguinte inscrio: Jesus nazareno, o rei dos Judeus (Jo 19:19), uma atitude contraditria anterior. Assim, muita gente que se sente culpada em permanecer covardemente inerte diante das injustias do mundo s se libera atravs de vos protestos verbais.H tantas injustias, crimes e sofrimentos no mundo, que ns todos sentimos, conscientemente ou no, esta culpa generalizada que meu amigo qualificou de mrbida, a menos que ns adquiramos uma outra culpa, a de no nos solidarizarmos com as responsabilidades dos outros.Em uma teoria de responsabilidade limitada, a confisso da nossa impotncia diante de tanto mal no pode, verdadeiramente, nos satisfazer. necessrio uma outra resposta. Meu amigo sentiu isto, bem claro, e nossa conversa rapidamente passou para outro assunto: O que voc faz da graa de Deus? perguntou-me ele ento. justamente porque tenho uma conscincia profunda de nossa culpa e de sua extenso, disse-lhe, que tenho tambm uma conscincia profunda da graa, nossa nica esperana e, tudo bem ento, ele me disse.Onde fica ento o limite da cumplicidade? Este um outro problema frequentemente bem delicado. Muitos empregados, secretrios e vendedores, abriram-se comigo sobre tais questes de conscincia. Eles sabem que seus patres enganam clientes ou scios nos negcios. Devem eles executar as ordens que eles sabem que so desonestas? s vezes se arriscam a falar com o42

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patro que geralmente acata mal esta intromisso de um subalterno em assuntos que no competem a ele e dos quais, de fato, ele no tem muita informao.Eu me lembro sempre de uma moa que trabalhava em uma farmcia. Certa vez, ela percebeu que estava entregando um produto abortivo a uma mulher grvida. Chocada, ela se abriu com seu patro. Mas, muito calmamente, este lhe disse que ela devia somente executar as ordens dos mdicos e no discuti-las. O que eles prescreviam era problema deles e no dela. Ela desistiu de sua carreira na farmcia.Na realidade, quaisquer que sejam as boas razes que possamos invocar para nos defender, ns nos sentimos sempre culpados das faltas dos outros. Um senso de solidariedade humana est profundamente arraigado na alma de cada um. Sentimos isso mais vivamente quando se trata de algum prximo. Se seu irmo recebe honra por um ato de herosmo, voc fica orgulhoso disto tambm, embora no tenha participado do acontecimento. Porm se este mesmo irmo praticar um ato vergonhoso, voc tambm sentir vergonha, mesmo que aparentemente no tenha nenhuma cumplicidade no caso.Assim, vemos pessoas que guardam, durante toda a vida, uma vergonha social adquirida na infncia, porque o seu pai faliu, ou porque seus pais se divorciaram. Seus colegas de escola lhe viraram as costas, e estas crianas sentiram como culpa essa desonra familiar. Se ns conseguirmos esquecer, por ns mesmos, a solidariedade que nos liga ao nosso prximo, o mundo saber nos lembrar disso.Ns sentimos tambm esta solidariedade no plano nacional. Se o governo federal cometesse uma falta grave na poltica interna ou externa, seria intil conden-lo. Uma culpa recairia sobre mim, mesmo se eu fosse a primeira vtima desta falta. O zelo que tenho, se sou da oposio, em criticar o governo, tem sua fonte exatamente nesta viva necessidade que encontro de colocar sobre ele uma culpa que me toca. Dessa forma, se eu ler no jornal que um compatriota cometeu um crime na Venezuela, eu sinto uma espcie de vergonha.Mas ser que devo me sentir responsvel por outras naes? Guardo, a esse respeito, uma recordao bem viva. Foi na Alemanha, logo depois da guerra, em um encontro mdico. Os

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transportes estavam ainda desorganizados, e um conferencista que devia falar sobre a morte no conseguiu chegar. Ns combinamos substitu-lo: um telogo, um colega alemo e eu. preciso falar dos campos de concentrao, disse meu colega, e dos mdicos que aceitaram ser instrumentos de morte. Bom, disse-lhe eu, voc que deve tratar deste assunto; sou suo. Falarei sobre outra coisa. E ficou decidido assim.Porm, tarde, no meu quarto, percebi de repente que esta frase que havia pronunciado estava carregada de farisasmo suo. Ela se assemelhava ao isso vos pertence de Pncio Pilatos. Dava a entender a meu colega que, porque ele era alemo, se bem que ele tinha sido perseguido e mesmo arruinado pelos nazistas, era mais solidrio que eu com os mdicos assassinos. Fiquei perturbado, levantei-me e fui acordar o meu colega para lhe pedir perdo.A extenso dessas responsabilidades coletivas aumenta mais e mais. Onde est o limite? No h limite. Ns temos a conscincia pesada, diante de nossos filhos, por deix-los em um mundo to inquietante. Muitos fsicos, diante das ameaas das armas atmicas, so despertados brutalmente para uma compreenso geral das responsabilidades do homem de letras, uma percepo que as belas teorias sobre a neutralidade da cincia antes abafaram.Quanto mais desconhecido o ru para mim, mais facilmente posso enganar a mim mesmo e me convencer de que seus problemas s dizem respeito a ele. Mas este movimento de desassociao me parece, honestamente, com uma espcie de demisso culposa de minha vocao humana, cuja dignidade reside no seu senso de responsabilidade. o caso tambm de um lder quando se d conta das consequncias de seus atos, e que inocentes podem pagar por seus erros. Assim, Davi fez o recenseamento do seu povo para se orgulhar do seu poderio, o que desagradou a Deus. Quando a peste se espalhou pelo pas, Davi clamou: Eu que pequei, eu que procedi perversamente; porm estas ovelhas que fizeram? (2 Sm 24:17).Quanto mais se purifica este senso de responsabilidade, mais se aviva a culpa que experimentamos de todo o mal que h no mundo. Quem enfraquece, que eu tambm no enfraquea?

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PROBLEMAS QUE O DINHEIRO TRAZ

Quem se escandaliza, que eu no me inflame? exclama Paulo (2 Co 11:29). Pedro fala de L, o justo, que tanto se afligia com a vida dissoluta dos pagos, seus contemporneos (2 Pe 2:8). Deve-se citar aqui as belas passagens do profeta Ezequiel que se sente escolhido como uma sentinela responsvel pelos pecados dos outros (Ez 3:16-21; 33:1-11). Ou ainda Aro que, na funo de sacerdote, leva diante de Deus todas as iniquidades do seu povo. Mas em Jesus Cristo que este senso de responsabilidade por todos os homens se estende at o infinito. Ns o sentimos em todas as suas atitudes; quando ele chora sobre Jerusalm e seus crimes (Mt 23:37); quando ele contempla a multido parecida com ovelhas sem pastor (Mt 9:36); quando ele evoca o sofrimento do pastor pela menor das suas ovelhas desgarradas, at que a encontre (Lc 15:4); quando ele acrescenta misteriosamente que h ainda outras ovelhas que no so deste aprisco, e que haver no final um s rebanho e um s pastor (Jo 10:16). Ns percebemos isto sobretudo vendo-o caminhar para a cruz, ele, o inocente, carregado com a culpa de toda a humanidade, como Isaas havia profetizado: Ele foi traspassado pelas nossas transgresses, e modo pelas nossas iniquidades... levou sobre si o pecado de muitos (Is 53:5-12).Assim, a vida espiritual e o ministrio espiritual, longe de tornar mais leve o fardo da culpa, aumentam ainda mais a carga. Alm disso, no se trata, como em Jesus Cristo, do peso da culpa dos outros somente. Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais experimentamos a sua graa e quanto mais experimentamos a sua graa, mais descobrimos faltas em ns mesmos que no distinguamos antes, e mais sofremos por isso.

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Enquanto preparava este captulo, recebi de repente um telegrama dos Estados Unidos. Eu havia prometido enviar um artigo no ms passado. Agora, o jornal onde ele deveria aparecer j estava pronto para ser impresso. Eu tinha me esquecido completamente. Fiquei totalmente embaraado. O colega que telegrafara iria certamente duvidar da minha amizade. Mas a nossa amizade real. Ento, por que eu no pensei nele? Assim, a todo momento, um telegrama, uma reclamao pode denunciar bruscamente um esquecimento, uma negligncia, uma falta, da qual estamos realmente culpados sem o sabermos.Existe, ento, uma espcie de culpa latente, inconsciente e recalcada, mas temerosa. Vivemos constantemente sob a ameaa de uma revelao impossvel de evitar, porque no conseguimos pensar em tudo. Pelo atraso de uma carta, podemos ter feito um mal a algum e s o percebemos, subitamente, quando ele no poder mais ser reparado. Ou, no caso deste ou daquele paciente, ns deixamos de mandar fazer um exame complementar, que poderia ter evitado um estpido erro de diagnstico.De fato, esta a condio em que vivemos: a vaga e inquietante percepo de que a todas as faltas que ns sabemos ter, junta-se, certamente, um nmero ainda maior, que um incidente qualquer pode trazer luz repentinamente. Assim, Pedro tomou bruscamente plena conscincia de sua negao, quando o galo cantou, ainda que fosse muito tarde. E saindo dali, chorou amargamente (Mt 26:75).Ns estamos sempre sob a ameaa de algum canto-de-galo que nos colocar em embarao. Isto nos traz uma certa inquietude permanente. Sentimos sempre suspeitas de uma culpa constante, imprevisvel e transitria. Entretanto, em toda essa inquietao, aparece um pouco deste medo de ser culpado sem o saber, o que a torna mais penosa. Uma criana chega em casa com atraso: Ser que aconteceu alguma coisa? Eu no devia

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t-la deixado ir to longe assim... Devia ter insistido que ela fosse primeiro consertar o freio da sua bicicleta?... Ser que eu lhe fiz todas as recomendaes necessrias? Ser que no foi um simples mal-entendido sobre a hora da volta? Mas, ento, eu que no fui bem claro. Eu sou na verdade sempre o mesmo impreciso! Isto s me acontecer desta vez!... Que mais?... Talvez eu tenha outras responsabilidades de que no estou me lembrando.A criana volta, toda sorridente. Ela se atrasou inocentemente, conversando com um amigo. Agora fico todo confuso, e minha inquietude me parece culpa. Arrisco-me a estragar todo o desenvolvimento desta criana se mostro tanta falta de confiana nela. A guirlanda de perguntas de minha mente se dissipa, mas ela vai reaparecer brevemente, em relao a outro assunto. Ela guiar na minha cabea um turbilho intangvel de culpas hipotticas, que bem podem ser reais.O que irritante no esquecimento o sentimento de impotncia que ele deixa. No conseguimos pensar em tudo. Ns usamos o esquecimento como uma desculpa: Eu lhe peo perdo, senhor; eu estou desolado; mas esqueci tudo, completamente. O esquecimento tambm uma acusao, tanto quanto uma desculpa. No deveria ter esquecido, se eu fosse consciencioso, prevenido, fiel, lcido, senhor de mim mesmo. Assim, por exemplo, sempre ficamos confusos quando no conseguimos nos lembrar do nome de um dos nossos conhecidos.H mais: Freud nos demonstrou que jamais um esquecimento, nem mesmo um lapso, acontece por acaso. Ele trai um impulso inconsciente, contrrio s nossas intenes conscientes. No fundo, bem antes dos dias da psicanlise, os homens j tinham um pressentimento disso. O esquecimento revela uma falta de acordo consigo mesmo, a existncia de uma fora interior dissimulada e ativa, que sabota nossa ao consciente. Uma fora que escapa nossa vontade, que se esconde na sombra e nos ataca traioeiramente pelas costas.Assim ns sentimos que, de alguma forma, a responsabilidade no nossa, no entanto somos culpados; isto revela aos outros e a ns mesmos que, no fundo, no somos o que parecemos ser. Ns falamos da nossa amizade por algum e, de repente, o esquecimento de alguma coisa importante desmente a ela

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tudo que dissemos e mostra uma hostilidade que ns gostaramos de negar. Por trs das virtudes que ns ostentamos h inumerveis culpas sobre as quais preferimos fechar os olhos, e que, mesmo com boa vontade, no chegaramos a identific-las exatamente. O medo de esquecer alguma coisa leva certas pessoas a uma verdadeira angstia quando esto arrumando suas bagagens antes de viajar. Tambm nos sentimos sempre culpados por nossas distraes. Um amigo me disse que me encontrou ontem na rua, mas que eu no o vi. Certamente no tenho culpa, como teria se tivesse feito que no o vi, para economizar, por exemplo, o tempo que seria gasto num bate-papo. Mas sinto que h algo de culposo na minha distrao: