CULT - Revista Brasileira de Literatura - 01 - Revista CULT

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  • notas

    eventocolquio discute papel do poeta blaisecendrars no modernismo brasileiro

    entrevistadcio de almeida prado fala de suaexperincia no jornalismo cultural

    dilogo literrioo poeta heitor ferraz analisa livrode poesia brasileira lanado nos eua

    internacionaltrechos inditos em portugus daautobiografia de norberto bobbio

    ensaiofbio lucas escreve sobre osprimeiros leitores de kafka no brasil

    turismo literrioo cenrio kafkiano de praga

    capabiografias de che guevara afirmampermanncia do cone revolucionrio

    na ponta da lnguapasquale cipro neto satiriza a maniabrasileira de macaquear americanos

    memria em revistao editor cludio giordano resgatapreciosidades do passado editorial

    crticaresultados do prmio nestl revelamcarter comercial do concurso

    histriaabl faz cem anos sem ter conseguidoresistir aos apelos do poder

    dossitricentenrio de vieira evoca gniobarroco perseguido pela inquisio

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    O crtico de teatroDcio de AlmeidaPrado, que completa 80 anos noprximo ms, relembra em entrevista suaatividade frente da revista Clima

    Che Guevara,o guerrilheiro mtico que h trintaanos morria na Bolvia, o tema

    da matria de capa

    Padre Vieira,o jesuta barroco que desafioua Inquisio, est no Dossi

    Fotos/Divulgao

    O MUNDO DAS PALAVRAS, DA CULTURA E DA LITERATURA

  • 2JULHO 1997

    A O L E I T O R

    Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular sem dvida o livro. Osdemais so extenses de seu corpo. O microscpio, o telescpio so extenses de sua viso; o telefone a extenso de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extenses de seu brao. O livro, porm, outra coisa: o livro uma extenso da memria e da imaginao.Esta frase que abre o ensaio O livro, do escritor argentino Jorge Luis Borges a epgrafeideal para uma publicao que nasce como um espao para a literatura, a cultura e a reflexo.Pois se o livro o mais sublime instrumento de transformao do mundo, se o poder silenciosoda palavra pode ditar a direo da espada, ensinar o uso do arado e do microscpio, uma revistaque aposta no poder da imaginao e do pensamento ser tambm um espao para as bibliotecasreais e virtuais que preservam nosso passado e projetam nosso futuro.Livros e literatura, imaginao e memria estes os temas que estaro nas pginas da revistaCULT. Se j nos acostumamos com a idia de que vivemos num mundo de signos, um mundocriado pela linguagem, a CULT pretende justamente sublinhar a fora do universo simblicoe suas infinitas constelaes poticas.A fora da linguagem est expressa, por exemplo, pela personagem de nossa matria de capa, omito Che Guevara, que h trinta anos fracassou como guerrilheiro, mas acabou se eternizandocomo cone de uma gerao que queria a imaginao no poder. Est tambm na permannciada obra de Kafka (tema das sees Ensaio e Turismo literrio), na poesia brasileira contemporneaque chega em livro aos EUA (tema do poeta Heitor Ferraz no Dilogo literrio) e, sobretudo,no depoimento de Dcio de Almeida Prado, nosso maior crtico de teatro, que ao completar 80anos lembra sua experincia como editor da revista Clima e do Suplemento Literrio do jornal OEstado de S. Paulo duas referncias obrigatrias para o jornalismo cultural.Sem esquecer o vis crtico, a CULT resgata a histria (nem sempre edificante) da AcademiaBrasileira de Letras, que comemora cem anos de existncia, analisa o saldo (questionvel) doPrmio Nestl de Literatura e abre um espao permanente para o professor Pasquale CiproNeto, com suas observaes rigorosas e bem-humoradas sobre os maus tratos que sofrea lngua portuguesa.E se a criao se alimenta ora da inspirao, ora da negao do passado, a CULT procurarecapitular tambm os sedimentos da modernidade, na figura do poeta futurista Blaise Cendrars,a histria editorial brasileira (na seo Memria em revista), a trajetria intelectual do pensador

    italiano Norberto Bobbio e a obra de Padre Vieira,imperador da lngua portuguesa (no Dossi) .Partindo do mundo dos livros e seus autores, a CULT quer

    dar um retrato multifacetado do panoramacultural, um retrato necessariamentepluralista (embora seletivo) de umarealidade fragmentria como a nossa etalvez por isso seja oportuno explicar, aqui,a idia do nome CULT, fragmento dapalavra cultura que procura traduzir ainstantaneidade e a rapidez caleidoscpicada comunicao contempornea.

    Paulo LemosManuel da Costa Pinto

    Diretor: Paulo Lemos Gerente geral: Silvana De Angelo Editor: Manuel da Costa Pinto Diretorde arte: Maurcio Domingues Produo grfica: Fabricio Menossi de Paula, Fabiana FernandesProduo editorial: Antonio Carlos De Angelo Reviso: Izabel Moraes Baio Colaboradores:Adma Muhana, Antonio Risrio, Cludio Giordano, Fbio Lucas, Fernando Jorge, Heitor Ferraz,Joo Roberto Faria, Jos Geraldo Couto, Jos Guilherme Rodrigues Ferreira, Jurandir Renovato,Mnica Cristina Corra, Pasquale Cipro Neto Dept. comercial: Idelcio D. Patricio, Jorge Rangel,Exalta de Camargo Dias, Jefferson Motta Mendes, Julio Cesar dos Santos, Elieuza P. CamposDept. financeiro: Regiane Mandarino Jornalista responsvel: Manuel da Costa PintoPeriodicidade: mensal Foto de capa: Che Guevara em 1960, cortesia da Editora ObjetivaLemos Editorial e Grficos Ltda. Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista So Paulo, SP Fone/Fax: (011) 251-4300, e-mail: [email protected]

    TRICENTEN`RIO DA MORTE DO PADRE VIEIRAD O S S I

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    Haroldo de Campos

    A revista Baldus ( esq.), um dos principaisveculos da vanguarda literria italiana,dedica em seu ltimo nmero um dossiespecial ao poeta, crtico literrio e tradutorHaroldo de Campos. A seo (coordenadapelo poeta Lello Voce, um dos editores darevista) traz textos dos crticos AldoTagliaferri, David K. Jackson, WladimirKrysinski, Andrs Snchez Robayna e do Brasil Aurora Bernardini, AndreaLombardi e Susana Kampff Lages.O endereo para correspondncia :Baldus - Edimedia snc - cas. post. 256 -31100 - Treviso.

    Ch das cinco literrio

    A importadora de livros M&F AcademicBook acaba de abrir em So Paulo umalivraria com autntico estilo britnico.Poltronas, caf expresso, ch e um pequenojardim (com mesinhas para leitura) compemum ambiente planejado para receberprofessores, pesquisadores, profissionais eleitores de lngua inglesa em geral. O acervoda livraria tem cerca de trs mil livros emreas que vo da literatura sociologia, daeconomia engenharia, da fsica aopaisagismo. A M&F aceita encomendas delivros britnicos ou americanos. O endereo: r. Dr. Augusto de Miranda, 1186,Pompia, So Paulo, CEP - 05026-001, tel./fax 011/872-6720 e 262-3038, e-mail:[email protected]

    Pedro Nava

    A editora Giordano e a Ateli Editorial voco-editar obras inditas do escritor ememorialista Pedro Nava (1903-1984), almde reeditar suas obras j publicadas. O acordofoi fechado recentemente com Paulo Penido sobrinho e testamenteiro de Nava. Aprimeira obra a ser lanada Bicho urucutum(ttulo extrado de um poema de Nava),contendo uma seleo de seus textosmemorialsticos, textos escritos sobre ele porautores como Drummond e Vinicius deMoraes, e um prefcio-depoimento de Penidosobre seus trinta anos de convivncia com otio. Ao todo, sero publicados trechosselecionados de cerca de dez dirios, comlembranas de viagens, apontamentos e osdesenhos que Nava fazia em seus cadernos(como a ilustrao acima).

    RevistaSexta-feira

    Os alunos de ps-graduao emantropologia da USP acabam de lanar arevista semestral Sexta-feira - Antropologia,artes e humanidades. Com projeto de alunosda FAU, a revista custa R$ 20,00, trazensaios que procuram estabelecer uma pontecom outras disciplinas e conta com apresena dos antroplogos Sylvia Caiubye Lilia Moritz Schwarcz, e dopsicanalista Jorge Forbes entre seuscolaboradores. Informaes pelos tels. 011/256-0172 e 211-5994.

    Literatura e Sociedade

    A revista Literatura e Sociedade, doDepartamento de Teoria Literria e LiteraturaComparada da USP, chega ao segundo nmerotrazendo, entre outros textos, um estudo docrtico Joo Lafet (morto no ano passado) sobreAutran Dourado e o modernismo mineiro, umaseo de depoimentos sobre o crtico de cinemaPaulo Emlio Salles Gomes e o ensaio fotogrficoO ovo e a galinha, de Anita Hirschbruch, a partirde textos de Clarice Lispector. Preo: R$ 18,00.Informaes pelo tel. 011/818-4312.

    Prmio Julia Mann

    O Instituto Goethe e a editora EstaoLiberdade esto aceitando at o dia 1 de agostoinscries para o Prmio Julia Mann deLiteratura. O concurso que homenageia ame brasileira do escritor alemo Thomas Mann premiar dois contos de autores residentesno pas cuja temtica seja transculturalidade a vida entre duas culturas. Os prmios serouma viagem cultural Alemanha (primeirolugar) e uma bolsa de estudos de quatro semanasna Alemanha (segundo). Informaes noInstituto Goethe - So Paulo, r. Lisboa, 974,CEP 05413-001, tel. 011/280-4288.

    NOTAS

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    Blaise veio de braise (brasa), por meioda simples confuso entre r e l. E Cendrarspor aluso s cinzas. Assim o poeta de origemsua Frdric Louis Sauser definia seupseudnimo: Blaise Cendrars. O nome parecereverenciar a terra que se tornaria a ptriaespiritual do escritor. A terra do Brasil, queidentificou o temperamento plural e ao mesmotempo despojado de Cendrars.

    Um nmero ainda enigmtico de viagensao Brasil (talvez sete) torna intrigante a histriadas relaes do poeta com o pas. certo,porm, que Cendrars (1887-1961) acabou porse tornar o mais importante dos divulgadoresde nossa cultura na Frana. Hoje, mais detrinta anos aps sua morte, h at mesmo umainstituio (com sede em Rennes) quecongrega estudiosos de sua obra pelo planeta.E, em agosto de 1997, a Universidade de SoPaulo promove o colquio Brasil: AUtopialndia de Blaise Cendrars, que reunirem torno de seus escritos e de seu idealcinematogrfico um bom nmero deespecialistas. O evento traz novas informa-es sobre a permanncia dos brasilei-ros naobra de Cendrars e coloca o poeta numa outradimenso, explica o professor da ECA-USPe cineasta Carlos Augusto Calil, que alm deser um dos organizadores do evento autor dodocumentrio Acaba de chegar ao Brasil o bellopoeta francez Blaise Cendrars e trabalha nareedio do livro A aventura brasileira de BlaiseCendrars, de Alexandre Eulalio, a sair pela Edusp.

    Colquio na USP discute osentido utpico da obra doescritor franco-suo que foi umdos maiores representantesdo futurismo e contribuiu naformao do nosso modernismo

    Detalhe de La prose du transsibrien et la petiteJehanne de France (1913), obra verbo-visual deBlaise Cendrars ilustrada por Sonia Delaunay

    Retomar Cendrars e sua ligao com o Brasil tambm uma forma de reavivar a memria donacionalismo que permeou o movimentomodernista. Amigo de Oswald de Andrade, SrgioMilliet, Mrio de Andrade, Tarsila do Amaral, opoeta que j integrara, junto com a artista plsticaSonia Delaunay, o futurismo na Frana (com acomposio do poema-pintura La prose dutranssibrien que, segundo a crtica norte-americana Marjorie Perloff, foi o ponto a partirdo qual a esttica viria a se expandir por toda aEuropa) e que, ao lado de Apollinaire, revirara apoesia francesa, chegou ao Brasil a tempo deincentivar um modernismo ainda em busca deidentidade.

    Apaixonado pela objetividade tecnolgica domundo moderno, Cendrars encontrar, em solobrasileiro, o espao ideal para o despojamento aque se propunha sua arte. em sua visoestrangeira que o pas se abre como umapossibilidade de verdadeira renovao, o que olevou a encorajar a poesia Pau-Brasil e a reconhecera pintura de Tarsila. Todo esse apoio aonacionalismo foi significativo a ponto de Mriode Andrade dizer que ele, um francs, o libertouda Frana.

    Cendrars seria um mediador entre o Brasile os prprios modernistas brasileiros, afirma,nesse sentido, Pierre Rivas, em seu livro Encontroentre literaturas (Hucitec). Professor daUniversidade Paris X - Nanterre, Rivasparticipar do colquio enquanto estudioso dasrelaes entre o Brasil e a Frana. Segundo ele,

    Blaise Cendrars

    Mnica Cristina CorraA inveno do Brasil

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    o escritor foi para os jovens modernistasbrasileiros uma espcie de Joo Batista domovimento. Rivas diz que o temperamento suode Cendrars mais amante da natureza e poucointelectual coincide com a realidade brasi-leira, onde paisagens exticas so um conviteconstante viagem e ao desprendimento. Defato, o poeta descobre em viagem a Minas Geraiso patrimnio histrico nacional e o revaloriza,chegando at mesmo a redigir o Estatuto daSociedade dos Amigos dos Monumentos Histricos doBrasil. Era mostrar o Brasil aos brasileiros.

    Cendrars parece mesmo ter desembarcadono pas com inteno de escapar aos muitoscompromissos que tinha ento. Seu papelinovador na Europa o tinha tornado famoso e,cansado das cobranas das editoras para queterminasse seus livros, vem ao Brasil. Mas noesperava encontrar o que encontrou; estava nummomento de crise e o Brasil renovou-lhe ainspirao. o que se pode ler em Feuilles deroute, explica Calil.

    Assim, outro aspecto desse escrever o Brasilse destaca na obra de Cendrars. Fascinado comas histrias escabrosas que se do a conhecer nosjornais do pas, o escritor toma as personagensdesses curiosos fatos e as transforma em peas deenredos fantasiosos.

    o que aconteceu, por exemplo, com o casode Febrnio ndio do Brasil, o terrvel manaco eassassino de crianas que se tornou objeto de textosde Cendrars (e cujo livro As revelaes do prncipedo fogo ser lanado ainda este ano pela editoraGiordano); e h tambm o lobisomem de Minas,o coronel Bento enfim, figuras que acabarampor propagar uma imagem metonmica do Brasil.

    A matria-prima de Cendrars est de fatonessa realidade (de acordo com Pierre Rivas, ata literatura de cordel contribui); todavia, segundoAlexandre Eulalio, ele criou um Brasil a partirdessas personagens e o chamou de Utopialand,ou terra que no era de ningum, mas de todos

    que nela se aventurassem. Obviamente, essaspersonagens, alm de no tecerem a realidadebrasileira em sua diversidade, no poderiam levaruma imagem das mais lisonjeiras. Isso incomodavaa elite, que queria ver o pas passado a limpo lfora, diz Calil.

    Mas um dos participantes do colquio deagosto e especialista em Blaise Cendrars, oprofessor Claude LeRoy (da Sorbonne), comentaque no h apenas clichs no que propagou opoeta: Cendrars levou, sim, uma imagemextica, todavia, carregada de ironia; o Brasil para ele o pas do futuro, mas sempre o pas dofuturo.

    LeRoy diz que o poeta tambm encontrouaqui as duas partes de si mesmo, que secontradizem: alegria espontnea e tristeza. Almdisso, contariam o privilgio da proximidade comas origens e a virtude de um mundo que se constri.E Cendrars inventou um Brasil, terra de misturas,dividida entre o passado e o futuro; pas paraele da poesia, diz LeRoy.

    Por outro ngulo, para a professora MariaTeresa de Freitas (USP), uma das idealizadorasdo colquio, o poeta evidenciou essa imagemextica sobretudo em sua atividade jornalstica.Contudo, enquanto escritor, essa viso poderia serclassificada de cosmopolita. O extico caracterstica da literatura do sculo XIX, ver ooutro como outro; degustar a diferena.Cosmopolita aquele que se preocupa emassimilar o outro, explica.

    Outra face do contato de Cendrars com oBrasil e os modernistas brasileiros a dosmal-entendidos. H um rompimento entreeles: o poeta permanece fiel apenas a PauloPrado que, por sua vez, rompera com Oswaldde Andrade. um momento de crtica, emque Cendrars acha que os modernistasambicionam uma literatura nacional, mas vobusc-la no passado. Meus amigos ficaraminsuportveis. Amaldioam a Europa, mas

    Colquio traz filha do poeta

    O colquio Brasil: A Utopialndia deBlaise Cendrars que serpromovido pelo Departamento deLetras Modernas da USP entre os dias4 e 7 de agosto ter participaode pesquisadores e crticos literriosde cinco pases (Brasil, Frana, Sua,Itlia e Canad), incluindo a filha dopoeta, a escritora Miriam Cendrars.Alm das palestras, esto progra-madas uma exposio documental noIEB (Instituto de Estudos Brasileiros),organizada por Marta Rossetti eCarlos Augusto Calil, projees defilmes e at uma excurso s fazendasMorro Azul (em Limeira), SantoAntnio (Araras) e s cidadeshistricas de Minas Gerais percursos mapeados por Cendrars.Informaes e inscries na Seo deAtividades e Cursos Extracurriculares,sala 126 do Prdio da Administraoda FFLCH (Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da USP),tel. 011/818-4645.

    Bibliografia

    As obras completas de BlaiseCendrars foram publicadas em oitovolumes na Frana pelas ditionsDenel. A experincia de Cendrars noBrasil est resumida em trs livros:A aventura brasi leira de BlaiseCendrars, de Alexandre Eulalio, cujareedio est sendo organizada porCarlos Augusto Calil, Blaise Cendrarsno Brasil e os modernistas, de AracyAmaral (Livraria Martins Editora,1970), e Etc..., Etc... (Um livro100% brasileiro), da Perspectiva,antologia de textos do escritor.

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    no podem ficar uma hora longe de suapoesia, teria dito.

    O que mais representativo, porm, apermanncia do pas em sua obra. Em A aventurabrasileira de Blaise Cendrars, de Eulalio, estotranscritas as ltimas linhas escritas por Cendrars(aps um derrame). Essas linhas falam do Brasil.

    Desentendimentos parte, o poeta parecemesmo ter-nos cultivado e desempenhou um papelimportante na divulgao do pas. Prova disso,por exemplo, a tese de Adalberto de OliveiraSouza, Cendrars tradutor do Brasil, publicada pelaeditora Anna Blume. Adalberto de Oliveiraanalisa a traduo que Cendrars realizou daobra do escritor portugus Ferreira de Castro(1898-1973), autor de A selva.

    O romance uma narrativa doinferno verde da Amaznia. Deacordo com sua tese, o escritorpde encontrar em Ferreira deCastro a unio de dois elementos,isto , o paradoxo da vida doshomens envolvida nos horrores ebelezas da floresta. O fato de terescolhido traduzir A selvasignificou, pro-vavelmente, aoportunidade de exprimir algo sobreo Brasil; algo que ele, Cendrars,gostaria de propagar.

    Ainda segundo a tese de Oliveira, oque ele praticou com essa traduo foi umpouco o que se fazia na Frana do sculo XVII,isto , tradues que agradassem ao pblicoda poca, ainda que implicassem o acrscimode elementos ao texto original ou a amputaode captulos inteiros da seremdenominadas les belles infidles (as belasinfiis).

    Assim, Cendrars veiculou, na traduo desseromance, aquilo que gostaria de mostrar sobre opas. A selva o depoimento de um europeusobre o Brasil. E certamente, na pena de

    Cendrars, passou a ser o depoimento inextricvelde dois europeus, isto , de duas experinciascompartilhadas e fundidas num texto literrio.

    Outro fato exemplar do empenho e interessede Blaise Cendrars pelo Brasil (e tambm pelocinema) sua idia de produzir um filme Umfilme 100% brasileiro que visava divulgaodo pas. Se o projeto nunca se concretizou, porrazes financeiras, ficou a idia expressa em vintee sete projetos para tal realizao.

    Em O momento futurista (Edusp), MarjoriePerloff analisa a importncia do poeta no adventode transio para a modernidade na Europa:Setenta anos e duas guerras mundiais depois, quase impossvel compreender essa misturaparticular de radicalismo e patriotismo, de umaviso com perspectiva internacional e uma fviolentamente nacionalista. Referindo-se a umCendrars essencialmente europeu, Marjorie

    Perloff acaba por delinear o mesmo homemparadoxal que se interessaria anos mais tardepor essas terras tropicais. Radical e patritico, opoeta foi, indubitavelmente, um dos maiseclticos e prolficos da literatura desta era.Tendo conhecido lnguas alemo, francs,russo, ingls e finalmente o portugus , pasese pessoas to diferentes, Cendrars deixariamesmo uma obra das mais diversificadas.

    Dentre tantos projetos, uns realizados,outros apenas rabiscados, recriou o seu Brasil,talvez no to profundo quanto aquele corres-pondente verdade, mas um pas que desejava

    ou precisava ver. Segundo Pierre Rivas, oBrasil ser para o francs a contra-figura

    de uma ausncia interna: no a faceda realidade, mas a reveladora dosfantasmas de quem olha.

    Nesse sentido, a terra queCendrars desenhou continua,ainda hoje, correspondendo aoextico, pois muito difcildesfazer uma imagem assimpromulgada. Alm do mais, bempossvel que pouco ou nada

    interessasse aos franceses nosso ladourbano ou tradicional haja vista o

    exemplo de Machado de Assis, quenunca intrigou por ser muito europeu.A idia de um Brasil possuidor do poder

    de transformao, da fora telrica pujante, a que prevalece, explica Rivas. Certamente,pois sobretudo em se tratando de literatura,essa seria uma imagem pronta a satisfazer oimaginrio francs (talvez europeu) a respeitode um mundo ednico e distante, ao mesmotempo promissor e ameaador. Esse parecemesmo ter sido o Brasil escrito, traduzido,imaginado e recriado por Cendrars.

    Mnica Cristina Corramestranda em traduo em lngua e literatura francesa na USP

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  • 8JULHO 1997

    e n t r e v i s t a

    D C I O D EA L M E I D AP R A D O

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    Joo Roberto Faria

    s vsperas de completar 80 anos, em 14 deagosto, Dcio de Almeida Prado um dosintelectuais brasileiros mais admirados em nossomeio artstico e cultural. Conhecido principalmentecomo crtico teatral e historiador do nosso teatro,desempenhou vrias atividades, destacando-secomo editor do Suplemento Literrio de O Estadode S. Paulo e como professor na Escola de ArteDramtica de Alfredo Mesquita e na USP. Foidiretor do Grupo Universitrio de Teatro, presidiuvrias vezes a Comisso Estadual de Teatro e,recentemente, j aposentado, ajudou a criar aRevista USP e dirigiu seu Conselho Editorial porcinco anos. Sua trajetria intelectual iniciou-se em1941, ao lado de Antonio Candido, Paulo Emlio SallesGomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho eGilda de Mello e Souza. Com esse grupo oriundodas primeiras turmas da Faculdade de Filosofia,Cincias e Letras da USP, nasce a revista Clima,que em seus dezesseis nmeros atesta osurgimento de uma verdadeira gerao deformadores. A dvida das geraes mais jovenspara com todos eles enorme, porque o traocomum que os caracteriza a generosidadeintelectual. Em suas aulas, em seus livros e mesmoem conversas informais, no h quem no tenhacolhido um ensinamento, uma idia, uma sugestode trabalho. Nesta entrevista, que marca olanamento da revista CULT, Dcio de AlmeidaPrado fala justamente sobre suas atividades comoeditor de cultura: o envolvimento com a criaoda revista Clima, na juventude, e o trabalho frentedo Suplemento Literrio, na maturidade.

  • 10JULHO 1997

    CULT O sr. hoje o maior estudioso do teatro brasileiro, autor devrios livros sobre o assunto. Mas, em sua trajetria intelectual, envolveu-se tambm com a criao de revistas literrias, como a Clima e a RevistaUSP, e dirigiu o Suplemento Literrio do jornal O Estado de S. Paulo.Como o sr. encara a funo de editor?

    Dcio de Almeida Prado O editor de uma publicaocultural diferente do editor de jornal que lida com fatos polticos oueconmicos. Sua funo principal saber quem deve incluir no seu veculoe quem deve excluir funo que os americanos comparam ao porteirode clube, que deixa os freqentadores entrarem ou no. claro quetanto ao incluir quanto ao excluir corre-se certos riscos. Se h aceitaode todos os que se apresentam, a qualidade literria ou artstica podebaixar muito. E, ao contrrio, se o editor acentua mais o lado da negao,da exclusividade, se s um grupo aceito, h o perigo do esnobismo,que pode existir na rea artstica como existe na vida social.

    CULT Qual foi seu papel na revista Clima, que a revista da suagerao de intelectuais?

    D.A.P. O Clima ainda reflete um perodo de grande amadorismo.Ns tnhamos acabado de nos formar, estvamos comeando nossacarreira profissional como escritores e esta era a primeira vez que AntonioCandido, Paulo Emlio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado e euescrevamos para o pblico leitor. Por outro lado, a prpria culturabrasileira no era to profissionalizada como hoje. Quando eu vejoespetculos de teatro atuais, fico admirado em ver como os diferentesdesempenhos so organizados, como cada pessoa faz exclusivamente umacoisa. Em nossa poca, a tendncia era o grupo agir coletivamente, todomundo fazia todas as tarefas.

    CULT Do ponto de vista prtico, como era feita a revista?

    D.A.P. No havia nem sequer uma sede. Nos primeiros meses, asreunies foram feitas na casa de Lourival Gomes Machado. Nesse

    perodo eu estava fora do Brasil e foi ento que houve a distribuio dassees para as diversas pessoas do grupo. Esse trabalho foi feito sobretudopelo Alfredo Mesquita, que no colaborou propriamente na revista, masfoi o seu inspirador (depois ele ficou mais ou menos parte). Nossotrabalho tinha um carter material mesmo: pegar originais na casa daspessoas, levar grfica da Revista dos Tribunais (que tinha tambm umarelao meio amadorstica conosco e fazia Clima por camaradagem, jque ns podamos pagar pouco), descer at a oficina, pegar as provas(que corrigamos normalmente na minha casa), devolver grfica e,depois de impressa, fazer o trabalho de distribuio da revista uma auma, pelo correio e para bancas de jornais.

    CULT A revista teve duas fases: a primeira entre 1941-1943 e asegunda em 44. Quais as caractersticas das duas fases?

    D.A.P. Na primeira, a revista se dividia em duas partes. Uma delascom sees fixas, que davam o colorido, definiam a natureza da revista ecuja especializao , a meu ver, um trao universitrio decorrente daFaculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP cujos cursos nstodos tnhamos feito. Havia algum que fazia literatura (AntonioCandido), algum que fazia artes plsticas (Lourival), cinema (PauloEmlio), teatro (eu) e economia (Roberto Pinto de Souza). E, ao ladodisso, havia a colaborao solta, de artigos. Mas, em geral, julgamosque a revista nessa primeira fase era muito pesada, com artigos muitolongos. Faltava uma certa leveza. Na segunda fase, portanto, procuramosexatamente adquirir essa leveza e, alm de sees fixas e artigos,admitimos crnicas mais ligeiras e notas.

    CULT As diferenas eram somente na estrutura editorial?

    D.A.P. Outra diferena entre 41 e 44 que, em certo momento, nsnos manifestamos politicamente como gente de esquerda. Na primeirafase, no havia e nem poderia haver nenhuma demonstrao poltica,pois a censura do governo Getlio Vargas era sufocante. Alis, eu tenho

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    a publicao oficial em que saiu a autorizao para editar Clima. Entre20 ou 30 pedidos, o nico atendido foi o nosso, porque houve umamovimentao poltica no Rio de Janeiro, feita pelo Antonio Candido,que conseguiu a permisso alegando que nossa revista era puramenteliterria. E de fato foi assim durante muito tempo, porque asmanifestaes polticas estavam totalmente proibidas. Quando o regimecomeou a perder fora, quando o perodo getulista caminha para o finale o Brasil entra na Segunda Guerra ao lado dos aliados, ns nosmanifestamos como um grupo de esquerda mas da esquerdademocrtica, isto , no-comunista. Nosso grupo no era nem stalinista,nem trotskista, que eram as esquerdas existentes. Queramos formar umterceiro grupo. Era uma posio original, decorrente em grande parteda experincia poltica do Paulo Emlio, que tinha sido e estava deixandode ser comunista.

    CULT Alm do ncleo central de Clima (os crticos que assinavam assees fixas), quem mais colaborava?

    D.A.P. Havia duas pessoas intimamente ligadas revista, quecolaboravam no s escrevendo, mas tambm fazendo aquele trabalhode ir grfica, corrigir provas, distribuir exemplares: Ruy Coelho e GildaMoraes Rocha (que depois se casou com Antonio Candido e passou ase chamar Gilda de Mello e Souza). Eles participavam intensamente detodas as nossas tarefas, embora no assinassem sees fixas talvezporque fossem os dois mais jovens do grupo.

    CULT Vocs se preocupavam em definir um pblico?

    D.A.P. Olha, o pblico era ignorado! (risos) Mas isso no era toincomum assim. Mesmo no Estado de S. Paulo (onde trabalhei depois),o pblico era aquele que se ajustava aos princpios do jornal. Quem

    Apresentao do teatro brasileiro moderno, Martins, 1956Teatro em progresso, Martins, 1964A personagem de fico, em colaborao com Anatol Rosenfeld,Antonio Candido e Paulo Emlio Salles Gomes, Perspectiva, 1968Joo Caetano, Perspectiva, 1972Joo Caetano e a arte do ator, `tica, 1984Procpio Ferreira, Brasiliense, 1984Exerccio Findo, Perspectiva, 1987O teatro brasileiro moderno, Perspectiva, 1988Peas, pessoas, personagens, Companhia das Letras, 1993O teatro de Anchieta a Alencar, Perspectiva, 1993O drama romntico brasileiro, Perspectiva, 1996

    Obras de Dcio de Almeida Prado

    O autor em sua biblioteca

  • 12JULHO 1997

    realmente dirigia era o dr. Jlio de Mesquita Filho, em vista do que eleachava que era melhor para o Brasil. No Clima tambm era assim. Nose cogitou qual era o pblico. Mas, sem querer, acho que estvamos nosdirigindo a determinado pblico, a pessoas interessadas em literatura,msica, cinema, teatro, artes plsticas e cincias humanas.

    CULT Qual a ligao do grupo de Clima com a gerao modernistade 22?

    D.A.P. Ns nos dvamos especialmente com Mrio e Oswald deAndrade. Mais com Oswald, por causa da convivncia. amos em grupo casa dele aos domingos. Ficvamos mais vontade com ele do quecom Mrio. Ele no parecia ter uma cultura to maior do que a nossa.Ele tinha vivido na Frana, participado dos movimentos artsticos dadcada de 20, conhecia pessoalmente os principais representantes dessascorrentes, enfim, tinha uma experincia muito maior do que a nossa.Mas, pelo lado da piada, da brincadeira, ele mais ou menos se equiparavaa ns.

    CULT Tanto que chamou vocs de chato boys. Vocs no ficarambravos na poca?

    D.A.P. No, foi uma coisa de brincadeira, exatamente porque eleachava e isso era comum na poca que ns representvamos opensamento da Faculdade de Filosofia da USP. Ns representvamosum pouquinho, mas para ele j era o bastante, ele achava que ns ramossrios demais. Quando escrevamos, ramos srios, mas pessoalmenteramos um grupo divertido. As reunies na casa de Oswald eramruidosas, com muita gargalhada, piada, brincadeira.

    CULT E com Mrio de Andrade?

    D.A.P. Com Mrio ramos mais cerimoniosos, pois ele tambm eracerimonioso conosco. Ele nos acolhia na casa dele e me lembro de umaocasio em que recebeu dois artistas da vanguarda argentina e convidou

    nosso grupo. Ns ficamos s ouvindo os mais velhos, que eram pessoasde uma cultura incomparvel nossa. Mas tnhamos uma boa relaocom ele. O primeiro artigo de Clima foi Elegia de Abril, de Mrio deAndrade. Esta relao se estabelecia tambm atravs da Gilda, que eraprima do Mrio.

    CULT Vocs tambm se relacionavam com a gerao de 45, que eraquase contempornea?

    D.A.P. As pessoas que viriam a fazer parte da gerao de 45participavam sobretudo na parte de poesia, j que 45 foi um movimentopotico. Ns publicamos, por exemplo, poesias do Pricles Eugnio daSilva Ramos um dos principais poetas de 45. Mas no ramos iguaisa eles, porque, de maneira geral, a gerao de 45 foi contra a de 22 eprocurava no propriamente desfazer o que o modernismo tinha feito,mas corrigi-lo em relao poesia, voltando a uma linguagem maisnobre, literria, menos ligada prosa, ao prosasmo. Ns no negvamosem nada a gerao de 22. Pelo contrrio. Acho que minha funo foilanar o modernismo no teatro, o que aconteceu na dcada de 40. Eacho que o Antonio Candido e o Paulo Emlio tambm procuraramestender o modernismo a seus campos.

    CULT O senhor poderia falar sobre o Suplemento Literrio do Estadode S. Paulo, sempre lembrado como a mais importante iniciativa culturalda imprensa brasileira? Talvez no seja errado consider-lo umacontinuao de Clima, uma vez que as mesmas pessoas que a fizeram deuma certa forma vo estar frente do Suplemento.

    D.A.P. A presena de Clima indireta e est em parte no projeto,inteiramente definido pelo Antonio Candido a pedido do Estado, emparte na execuo, que coube a mim nos primeiros dez anos, de 56 a 67.Alm disso, como em Clima, a seo de artes plsticas era feita peloLourival, e a de cinema pelo Paulo Emlio. A diferena que o Suplementoera inteiramente profissionalizado. Eu era bem pago como editor e todos

    continua na pg. 14

  • CULT13

    A Edusp est lanando uma obra fundamental para quem quiserconhecer o percurso intelectual de Dcio de Almeida Prado.Organizado por Joo Roberto Faria, Vilma Aras e Flvio Aguiar,Dcio de Almeida Prado - Um homem de teatro rene depoimentos eensaios sobre o crtico e sua obra. A primeira parte do livro traztestemunhos de artistas como Tnia Carrero e Paulo Autran, dediretores como Antunes Filho, Gianni Ratto e Jos Renato, e deintelectuais como Leyla Perrone-Moiss e Boris Schnaiderman.Na seo Estudos sobre Dcio de Almeida Prado esto doze ensaiosde autores como Sbato Magaldi, Helosa Pontes, MarileneWeinhardt, Alberto Guzik e Antonio Arnoni Prado sobre aspectosdiversos de sua produo desde seu papel como formador de umpensamento sobre o teatro brasileiro at sua atuao como editor darevista Clima e do Suplemento Literrio do jornal O Estado de S. Paulo.Finalmente, o livro rene Estudos para Dcio de Almeida Prado,ensaios de Antonio Candido (sobre crtica e memria), Alfredo Bosi(sobre Vieira), Antonio Dimas (Bilac e o teatro) e J. Guinsburg(sobre Meierhold), entre outros todos dedicados ao crtico comotestemunho de seu papel catalisador no cenrio cultural brasileiro.J a Companhia das Letras est lanando Seres, lugares, coisas, umacoletnea de ensaios, artigos e crnicas publicados pelo autor emjornais, revistas, catlogos de exposies e publicaes acadmicasnos ltimos 50 anos. No livro, alm do teatro e da literatura, eleaborda assuntos como a msica popular, o futebol e suasreminiscncias pessoais e intelectuais.

    Livros celebram 80 anos do crtico

    Na foto 1, Dcio (esq.), observado por seu primo Paulo Afonso Mesquita Sampaio, jogaxadrez com Paulo Emlio Salles Gomes. Foto 2, Dcio, Paulo Emlio, Antonio Candidoe Lourival Gomes Machado, em 1944. Foto 3, o Grupo Universitrio de Teatro, comCaio Caiuby, Waldemar Wey, Lygia Corra, Carlos Falbo, Miriam Lifchitz, Dcio deAlmeida Prado e Rui Afonso.

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  • 14JULHO 1997

    Joo Roberto Fariaprofessor de literatura brasileira na USP

    autor de O teatro realista no Brasil: 1855-1865 e Jos de Alencar e o teatro (Perspectiva/Edusp)

    os artigos, por sugesto do Antonio Candido, tambm eram muitobem pagos, mais ou menos 3 ou 4 vezes mais do que pagavam osmelhores jornais do Brasil.

    CULT Como era a linha editorial?

    D.A.P. A orientao expressa no primeiro nmero era a de quedaramos mais importncia literatura do que vida literria.Raramente havia entrevistas. O principal no era o lanamento deum livro ou pea, mas a crtica, o julgamento. Nesse ponto, achoque era bem diferente dos jornais de hoje em dia, que s vezes domais importncia ao lanamento de uma pea do que crtica. Ouque ento, quando do lanamento de um livro, fazem uma entrevistacom o escritor, mas depois a crtica no sai, ou sai muito pequena.

    CULT Quem eram os colaboradores?

    D.A.P. O jornal tinha colaboradores fixos e, quando assumi adireo, alguns nomes j tinham sido escolhidos. Mas pouco a poucohouve modificaes e eu fui escolhendo gente bem mais nova.Quando morreu Brito Broca, que escrevia sobre literaturaestrangeira, convidei a Leyla Perrone-Moiss para escrever sobreliteratura francesa. Para a colaborao sobre literatura italiana, escolhiAlfredo Bosi, em comeo de carreira, embora j bastante conhecido.Outro colaborador bastante jovem foi Roberto Schwarz. AnatolRosenfeld praticamente comeou em lngua portuguesa noSuplemento Literrio. E, ao lado deles, havia crticos consagrados,como Lcia Miguel Pereira, Eugnio Gomes, Augusto Meyer e OttoMaria Carpeaux.

    CULT Havia sees fixas?

    D.A.P. As partes fixas eram as sees de teatro, cinema, msicae artes plsticas. A diferena em relao a Clima que a seo de

    teatro era feita por Sbato Magaldi, e no por mim. Fui eu que escolhio Sbato e foi uma tima escolha.

    CULT O sr. no escrevia no Suplemento?

    D.A.P. S escrevi dois artigos sobre Leonor de Mendona [deGonalves Dias], que depois expandi e publiquei num ensaio longo.O resto eu escrevia no jornal dirio. Minha preocupao era a deque o Suplemento no fosse uma repetio do jornal, que tinha suapgina de arte, cinema, teatro. Por isso no havia ningum queescrevesse regularmente no Suplemento e no jornal. No haviaantagonismo, mas tambm no havia repetio.

    CULT Como era a relao do Suplemento com as tendnciasliterrias do perodo?

    D.A.P. Procurvamos exprimir a literatura, mas no guiar aliteratura, favorecendo alguma corrente. Ao contrrio, aceitvamostodas, desde que julgssemos que tinha nvel literrio. Em relaoao concretismo, por exemplo, no s aceitamos a colaborao delescomo abrimos espao para que fizessem uma diagramaoconcreta.

    CULT Vocs tambm publicavam contos e poesias.

    D.A.P. Ns publicvamos um conto por semana. O nvel variavaum pouco, mas sempre tinha um nvel mnimo. Quanto poesia,publicvamos nomes consagrados tivemos Bandeira, Drummond,Murilo Mendes , mas tambm pessoas que escreviam pela primeiravez. A escolha da poesia no comeo era feita pelo Antonio Candido,mas no divulgvamos isso, seno ele receberia uma avalanche decartas... c

  • CULT15

    Nos tradicionais cromos do Brasil,sempre resplandece um sol fortssimo, ilumi-nando uma praia e os contornos de uma mulherestirada na areia. o sol a nossa moeda paraatrair turistas estrangeiros. Se fosse possvel criarum novo cone para o pas, poderamos aban-donar o velho Cruzeiro do Sul e substitu-lo pelosol, nossa testemunha diria. Brincando comesta imagem e mesmo com toda uma teoria sobreo Brasil segundo a qual o sol participa ativa-mente de nosso jeito de ser, o poeta PauloLeminski sintetizou o seguinte dstico: nadaque o sol/no explique.

    Agora, esta ironia do poeta curitibano, que um dos marcos da poesia brasileira moderna,reaparece no ttulo da antologia de poetasbrasileiros contemporneos publicada nos EUApela Sun & Moon Press, de Los Angeles. Olivro Nothing the sun could not explain, que renea produo nacional de 20 poetas, dos anos 70aos 90, foi organizado e editado pelos poetasNelson Ascher e Rgis Bonvicino e pelo norte-americano Michael Palmer, tambm poeta.

    No ttulo, a homenagem a Leminski, quemorreu em 1989, e mais uma vez o cromo e seufolclore, mas aqui o emprstimo chega com amesma carga irnica. Apesar de o Brasil sernegociado l fora como pas tropical, a poesiaque consta neste livro no se rende a essapaisagem-cromo, folclrica e romntica. Todosos poetas escolhidos trazem a marca daurbanidade, das questes que giram em tornodas preocupaes tpicas dos grandes centros.Os temas passeiam pela paisagem culta (umquadro, uma citao de um poeta da tradio,

    uma cidade) e at mesmo por uma espcie depaisagem ntima, reflexo de um estado deesprito, mas sem desbordar no lirismo aguado.Para o leitor americano, certamente esta poesiagrande parte das vezes objetiva encontrarressonncia com a potica de um William CarlosWillians ou, mais recente, de um Robert Creeley,tradutor de alguns poemas deste livro.

    A atual antologia, segundo o prefcio doescritor e cnsul do Brasil em San Francisco,Joo Almino, tem como ponto de partidaselees publicadas anteriormente, como aorganizada por Elizabeth Bishop, EmanuelBrasil e William Jay Smith, que abarcou aproduo at os anos 70. A nova seleta parte dapoesia de Torquato Neto, um dos fundadoresdo movimento tropicalista, resvala na chamadapoesia marginal, com poemas de Ana CristinaCsar e Francisco Alvim, e desemboca na criaode nossos dias, revelando at mesmo para ns os poemas do indito (em livro) RuyVasconcelos de Carvalho.

    No h dvida de que a seleo feitarepresenta as tendncias da poesia atual. Comoressaltam os editores na introduo, estespoetas tm mostrado pouca inclinao idiade pertencer a um movimento ou escola. Porm,vale destacar que grande parte deles partem deum mesmo endereo, da casa de Haroldo deCampos, na rua Monte Alegre, corao dasPerdizes. Haroldo, um dos idealizadores doconcretismo, sempre exerceu forte influncia emSo Paulo, tornando-se uma referncia obriga-tria para os poetas mais jovens. Mesmo queRgis Bonvicino e Duda Machado, segundo o

    O poeta Heitor

    Ferraz comenta

    a antologia

    Nothing the sun

    could not

    explain, que

    acaba de ser

    lanada nos

    EUA, reunindo

    poemas de 20

    autores

    brasileiros

    selecionados por

    Nelson Ascher e

    Rgis Bonvicino

    OUNPIAE

    SROOASI

    OBDEBIR

    LAAASRLA

    Dilogo Literrio

  • 16JULHO 1997

    prefcio de Joo Almino, tenham rompidoideologicamente com o concretismo, o trioHaroldo de Campos, Augusto de Campos eDcio Pignatari permanece um marco.

    Podemos dizer que o livro rene algumasgeraes distintas. Com passagem ativa pelaTropiclia, esto Torquato Neto e Waly Salo-mo, alm de Duda Machado, que acaboupartindo para uma poesia mais enxuta, feita degrande economia expressiva. Ainda compresena ativa nos anos 70, mas seguindo o quese chamou de poesia marginal ou poesiamimegrafo, esto Ana Cristina Csar eFrancisco Alvim. Transitando por todas astendncias e sempre carregado com explosivosde ironia estava Paulo Leminski. Do mesmoperodo, mas tambm trilhando uma via paralela,temos Jlio Castaon Guimares, que veio sedestacar juntamente com os poetas dos anos 80 Lenora de Barros, Horcio Costa, Carlos`vila, Rgis Bonvicino, Josely Vianna Baptista,Nelson Ascher, Arnaldo Antunes e Age deCarvalho (que surgiu para pblico mais amplosomente em 1990, quando publicou Ror).

    Depois destes nomes, a antologia traz umagerao mais nova. Se for mesmo possvel umaclassificao por dcadas, esta representativados anos 90: Angela de Campos, CarlitoAzevedo, Frederico Barbosa, Ruy Vasconcelosde Carvalho e Cludia Roquette-Pinto.

    Porm, o que estranho nesta antologia odescompasso que existe entre o prefcio de JooAlmino e a introduo dos dois poetas-editores.Almino pincela sinteticamente e com objeti-

    vidade a trajetria da poesia brasileira desde aSemana de Arte Moderna, de 1922, chegandoat nossos tempos, cunhando a expresso ps-concretistas para caracterizar os poetasrepresentados no livro. J o texto de Ascher-Bonvicino prope uma discutvel releitura destemesmo perodo. S para citar como exemplo, osdois cravam como marco do primeiro moder-nismo a poesia de Oswald de Andrade, colocan-do em segundo plano, ou melhor, citandosomente de passagem (na lista entre outrospioneiros) o nome de Mrio de Andrade. Coisaque Almino no faz, pois sabe, como todos(basta conferir em qualquer obra que enfoqueeste perodo, seja ela de Alfredo Bosi, AntonioCandido, Mrio da Silva Brito e do prprioOswald de Andrade, como no artigo O meupoeta futurista), que Mrio foi um dosmentores do modernismo. E seu livro PauliciaDesvairada apontado como o livro inicial domovimento (Antonio Candido, em Iniciao literatura brasileira). Mais um vez, a velha maniade criar situaes bipolares sem nenhumfundamento histrico: este ou aquele, e nuncaeste e aquele.

    Mais estranha ainda parece a afirmao deque o programa de 22 era intuitivo e que coubeaos concretistas o papel de colocar esse programaem terrenos mais firmes da a importnciadada pelos concretistas ao debate crtico eterico; ao preenchimento das lacunas moder-nistas, incluindo a recuperao de trabalhos,inclusive os de Oswald de Andrade; e aatualizao e o refinamento da sintonia em

    QUEM PUBLICA

    Nothing the sun could notexplain - 20 contemporary

    brazilian poetseditado por Michael Palmer, Nelson

    Ascher e Rgis BonvicinoSun & Moon Press

    (Los Angeles, EUA) 306 pgs.

    Pode ser encomendado M&F Academic Book

    Rua Dr. Augusto de Miranda, 1186, So Paulo,

    CEP - 05026-001, tel./fax 011/872-6720 e

    262-3038, e-mail: [email protected]

    Nelson Ascherpoeta, ensasta e tradutor,autor, entre outras obras,

    dos livros de poesiaO sonho da razo e Algo de sol ,e do volume de ensaios Pomos da

    discrdia, pela Editora 34.

    Rgis Bonvicinopoeta e tradutor, autor de

    33 poemas, de Outros poemas(Iluminuras) e de Ossos de

    borboleta (Editora 34),entre outros.

    BanhistaApenas

    em frenteao mar

    um dia de vero quando tua voz

    acesa percorresse,consumindo-o,

    o pavio de um versoat sua ltima

    slaba inflamvel quando o sbito

    atrito de um nomeem tua memria te

    incendiasse os cabelos (e sobre tua pele

    de fogo abrisa fizesse

    rasgadurasde gua)

    Carlito Azevedo

    OndeOnde eu escrevoh o rudodo lixo da cidade depoisde recolhidosendo triturado

    h um abajuruma cmodacom espelhoe uma camadesarrumada

    o outono est prximoa janela fechada

    um cansao sbitotoma conta das palavras.

    Rgis Bonvicino

    Osw

    aldo

    Jos

    /Ag

    ncia

    USP

    Bel

    Pedr

    osa/

    Agn

    cia

    USP

  • CULT17

    relao aos contnuos efeitos internacionais domodernismo. Observa-se, neste revisionismo,duas intenes claras: negar todo o materialterico produzido a partir de 1922 (como ostextos do prprio Oswald e a atuao de Mriode Andrade); e colocar as coisas de tal maneiraque culminassem na poesia concreta e seusidealizadores. Esta tem sido uma discussomuito comum entre esses poetas, a de que ahistria da literatura culmina no concretismo,porm tendo ou no razo no acreditamosque preste algum servio ao ser includa dentrode uma antologia publicada nos EUA. O leitoramericano ter side by side duas leituras distintas,o que certamente causa confuso e no cumpreo papel fundamental deste tipo de livro: informarobjetivamente sobre a poesia brasileira.

    Feitas estas consideraes, o livro, comotoda e qualquer antologia, seqestra algunsautores. Sabemos que sempre um trabalho deescolha leva em considerao a importncia dospoetas e sem dvida o gosto pessoal dosorganizadores. No h como fugir. Os prpriosAscher-Bonvicino atentam a isso quandoescrevem: Antologias sempre correm o riscoexcessivo da parcialidade ou da superficialidade.Esperamos ter mantido distncia estes males.Entretanto, preciso deixar claro que outrasselees podem e devem ser feitas. Essa apenasa nossa leitura do que mais significativo erepresentativo da poesia moderna brasileira.

    Dentro dos perodos englobados, a mostra significativa, porm no se justifica a ausnciade poetas como Armando Freitas Filho, Orides

    Fontela, Paulo Henriques Britto (este, alm debom poeta, tradutor assduo do ingls) e Chacal,alm de outros, todos bastante representativose significativos da poesia brasileira atual.

    Contudo, esta antologia j engloba autoresque at os anos 80 permaneciam desconhecidosdo grande pblico, como Francisco Alvim, Agede Carvalho e Ana Cristina Csar, todos comlivros publicados nas duas mais importantescolees de poesia do perodo: a CantadasLiterrias, da editora Brasiliense, e a coleoClaro Enigma, da Livraria Duas Cidades.Mesmo estes dois marcos para toda umagerao de jovens poetas, infelizmente, no socitados nos textos introdutrios.

    Nothing the sun could not explain , dequalquer forma, um livro importante. Infeliz-mente, no h nenhum projeto de public-lotambm no Brasil. Todo e qualquer mapa daproduo potica recente sempre esperado enecessrio. Vale lembrar as antologias 26 poetashoje, de Helosa Buarque de Holanda, de 1976;Artes e ofcios da poesia, organizado por AugustoMassi, de 1991; e Antologia potica Brasil-Colmbia, de Aguinaldo Jos Gonalves e JuanManuel Roca (incluindo poetas colombianos).Um material que, juntamente com essa anto-logia americana, abre um dilogo entre poetascom dices to diversas. Nesse caso, jpodemos apontar como um primeiro fruto arecente edio do poema poliglota Together,escrito por 29 poetas (veja box esq.), umacriao de brasileiros, americanos, uruguaios etantos outros, que acaba de sair pela Ateli.

    QUEM CRITICA

    ANTOLOGIA GEROUPOEMA POLIGLOTA

    Heitor Ferrazjornalista e poeta, autor de

    Resumo do Dia (Ateli Editorial),livro finalista do Prmio Nestl na

    categoria poetas estreantes

    O intercmbio potico criadopor Nothing the sun could notexplain acabou por gerar uma novaobra: a renga poliglota Together1996. A iniciativa foi de RgisBonvicino. Recebendo o poetanorte-americano Robert Creeleyem So Paulo, Bonvicino compsuma estrofe a partir da palavracrunch (mastigar), que Creeleymurmurava enquanto observavaum caminho triturando lixo.

    Bonvicino sugeriu a Creeley quecontinuasse sua estrofe e, a partirda, criou-se um movimento decorrespondncia potica que incluiuautores de Brasil, EUA, Canad,Frana, Inglaterra, Espanha, Mxicoe Uruguai resultando num poemacoletivo e plurilingstico.

    Together1996

    org. de RgisBonvicino.

    Ateli Editorial (Al.Cassaquera, 982,S. Caetano do Sul,SP, tel. 011/442-3896), 32 pgs.

    A Pedrarvores me atropelamfolhas e galhos dentro de mim,vazio de tudo o que souverifico que os vegetais, como as

    [pedras,apodrecem

    Francisco Alvim

    O tempo solua no relgioas rugas horizontaisque no tatuam meu rosto.Ponteirosagulhas invisveisinjetam o ritmoque infecta o dia.

    Angela de Campos

    Meu coraoMein Herz, mein Herz ist trurig

    Heine

    Se tenho um corao maior queo mundo, por que seus ventrculosfecham-se em pontos to ridculosquando oxignio algum retorque

    as carncias da carne? parteisso, o lipdio sujo encarde osangue que irriga o miocrdiopor dentro at que o seu enfarte

    macio torne enfim as vriasfiguras lricas, diletas letais. Dizei-me, enfim, poetas:o amor entope as coronrias?

    Nelson Ascher

    c

    Fern

    ando

    Fi

    gueir

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  • 18JULHO 1997

    N O R B E R T O

    B O B B I OI N T E R N A C I O N A L

    A S M E M R I A S D O L T I M O H U M A N I S T A

    AutobiografiaNorberto Bobbio

    Editori Laterza 284 pg.Pode ser encomendado livraria

    La Bancarella (Trieste, Itlia,tel. 39/40/772358, fax 368862,

    http://www.bancarella.it)pelo custo aproximado de R$ 20,00

    Nunca fui um grande leitor de romances.Li muito Balzac porque em nossa casa de campohavia a Pliade, na qual os romances de Balzacocupam muitos volumes, e naturalmente osgrandes romances do Oitocentos que eramento leituras obrigatrias, ao passo que hoje,me parece, no o so mais , de Stendhal aFlaubert, de Dostoivski a Tolsti. O escritorque li quase integralmente em diversas pocasde minha vida, e tambm como escritor poltico,foi Thomas Mann. Como esquecer, na Monta-nha mgica, o famoso dilogo entre Settembrinie Naphta? E, na ltima pgina, o adeus a HansCastorp, cndido filho da Vida. E as ltimaspalavras: Ser que tambm da festa universalda morte, da perniciosa febre que ao nosso redorinflama o cu desta noite chuvosa, surgir umdia o amor?

    Na minha famlia nunca tive a sensao doconflito de classes entre burgueses e proletrios.Fomos educados para considerar todos oshomens iguais, e a pensar que no h nenhumadiferena entre quem culto e quem no culto,quem rico e quem no rico. Recordei essaeducao de um estilo de vida democrticonuma pgina de Direita e esquerda na qualconfesso sempre ter me sentido mal diante doespetculo das diferenas, entre ricos e pobres,entre quem est no alto e quem est embaixo da

    escala social, enquanto o populismo fascistavisava arregimentar os italianos numaorganizao social que cristalizasse as desigual-dades. (...)

    Meu ingresso no antifascismo ativo estdocumentado em um desenho de Renato Guttuso.Vivendo em Camerino, tinha comeado a participarde reunies do movimento liberal-socialista, nascidoem torno de Guido Calogero, jovem professor defilosofia na Universidade de Pisa, e de AldoCapitini, que era o secretrio da Escola NormalSuperior, tambm de Pisa. Estas reunies aconte-ciam freqentemente na bonita villa, em Cortona,de Umberto Morra di Lavriano, que sempre tinhasido antifascista, amigo de Pietro Gobetti,colaborador da Rivoluzione liberale. Certa vez elenos apresentou um jovenzinho e acrescentou: um jovem pintor muito bom, que vai fazer sucesso.Imagine as brincadeiras do destino: quandoGuttuso fez em Parma uma de suas primeirasmostras, exps tambm um esboo executadonaquela reunio de 1939, em Cortona. (...) Nodesenho esto representados Guido Calogero, comum livro na mo e um dedo levantado, Morra,Capitini, Luporini e eu mesmo. No livro queCapitini tem em mos l-se o ttulo No violncia,naquele que Calogero tem em mos l-se Libera-lismo social. Assim foi testemunhada, diria que pormero acaso, uma das sesses em que se formou o

    Desenho de uma das primeiras reunies

    clandestinas do grupo liberal-socialista, porRenato Guttuso. Da esquerda para a

    direita: Bobbio, Luporini, Capitini, Morra,Calogero e o prprio Guttuso (de costas).

    18JULHO 1997

  • CULT19

    Norberto Bobbio nasceu em1909, na cidade de Torino, no Piemon-te (norte da Itlia). Foi professor defilosofia do direito e de cincia polticana Universidade de Torino. Senadorvitalcio desde 1984, democrata mili-tante e um dos maiores tericos dodireito e do Estado moderno, nosltimos anos vem se dedicando aescritos de teor memorialstico e moral,como o recente O tempo da memria:De Senectute e outros escritosautobiogrficos (Campus), alm daAutobiografia. Dentre seus livros,foram lanados no Brasil: Estudossobre Hegel, Direita e esquerda e Osintelectuais e o poder, pela editoraUnesp; Dicionrio de poltica (2 vols.),Direito e Estado no pensamento deEmanuel Kant, Comunismo, terceiravia e terceira fora, A teoria das formasdo governo e Teoria do ordenamentojurdico, pela Editora UnB.

    Leia nestas pginas trechosinditos em portugus daAutobiografia do filsofo do direitoe cientista poltico italianoNorberto Bobbio. O livro acaba deser lanado na Itlia e constitui odocumento definitivo da vida de umdos maiores humanistas destesculo, um democrata que resisteaos radicalismos contemporneose que vem se dedicando a escritosmemorialsticos e morais.

    grupo liberal-socialista: acho que devo fazerremontar a esta poca a minha passagem de umantifascismo de acepo ideal ao antifascismoconsciente e ativo. (...)

    Naturalmente sabamos que corramosriscos. Quando se anda por a com uma sacolacheia de jornais clandestinos, sabe-se muito bemo que se espera encontrar. Mas precisodistinguir entre resistncia ativa, resistnciaarmada e resistncia passiva. A resistnciaarmada foi uma parte da resistncia ativa. Mashouve uma resistncia ativa que no foi armada.Era aquela de quem fazia documentos ecredenciais falsas, ou de quem se ocupava dapropaganda. Estes tambm se arriscavam. Sepor infortnio fossem presos, acabariamtambm eles nos campos de concentrao. Azona cinzenta, ao contrrio que foi no apenasabsolvida, mas recuperou sua honra , foiaquela dos assim chamados precavidos, queesperavam para ver para onde soprava o vento.Eram pessoas que no queriam se comprometer.Na verdade, nenhum deles queria que osalemes vencessem, mas estavam na janela. (...)Mas tambm em relao ao colaboracionismo preciso distinguir entre o colaboracionistavoluntrio e o coagido: o colaboracionismodaqueles que tinham decidido ficar do lado daRepblica de Sal e o colaboracionismo dos que

    como os funcionrios pblicos deviamcolaborar fora. No digo que os italianosfossem filo-resistentes, mas certamente noeram, em sua enorme maioria, filo-germnicos.E tambm verdade que uma parte daquelesque foram para o lado dos resistentes o fizeramporque consideraram mais perigoso alistar-sena RSI [recrutamento do exrcito italiano] do queir para a montanha. Muitos estavam na idadedo alistamento. Mas em qualquer que seja ocaso, no se pode colocar no mesmo plano, comofazem os historiadores revisionistas, quemcombatia para libertar a Itlia dos nazistas e dosfascistas, e quem aceitava perpetuar o domniode Hitler no mundo. (...)

    Enquanto o progresso tcnico-cientfico nocessa de suscitar nossa maravilha e entusiasmo,ainda que misturados angstia em relao aosefeitos negativos que dele possam derivar,continuamos a nos interrogar sobre o tema doprogresso moral exatamente como h mil e doismil anos, repetindo ao infinito os mesmosargumentos, colocando-nos as mesmas perguntassem resposta ou com respostas que no nosapaziguam, como se estivssemos sempre imersosnaquilo que os crentes denominavam mistrioe os no-crentes problema do Mal, nos seusdois aspectos, do Mal ativo (a maldade) e doMal passivo (o sofrimento). traduo de Manuel da Costa PintoCULT 19

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  • 20JULHO 1997

    Ser difcil determinar quando Kafkapousou na minha vida. Imagino que entre 1949 e1950, ocasio em que j freqentava a faculdade.Integrei a minha primeira roda de amigos efalvamos de livros e autores, dia e noite.

    Caiu do ar, um certo dia, uma informao,como um plen dentro da alma: a obra deMurilo Rubio se parece com a de Kafka.

    Em 1951, ao conhecer pessoalmente o autorde O ex-mgico, ento chefe do gabinete dogovernador Juscelino Kubitschek, ouvi dele aconfisso de que escrevera sua obra inauguralsem ter conhecido, ainda, o autor de O processo.

    No fim da dcada de 50, preocupavam-nosas vanguardas. Escrevi para uma revista cariocaum artigo sobre Khlebnikov, Dois crculos deestrelas cadentes. O poeta russo reclamava oentrelaamento do som puro com a razo no

    Kaf kaEnsa i o

    O crtico Fbio Lucas relembraas primeiras leituras brasileirasdo autor de O processo

    interior da palavra potica. E li sua novela Ka,cuja personagem lembrava o nome de Kafka:Ka! Na poca, solicitei a Maria Lcia Lepeckitraduzisse do francs a preciosa obra queconseguimos sasse no Suplemento Literrio doMinas Gerais. Foi quando fiz amizade com oprofessor e fillogo tcheco Zdenek Hampejs. Naocasio, ele me brindou com uma srie defotografias de Kafka e famlia. Mais tarde,ofereceu-me postais sobre a Praga de Kafka,em que se vislumbravam a vida e a obra doescritor. Tivemos intensa correspondncia, atque veio o golpe de 64, que me desapropriou deuma de suas cartas e a exps em painel pblicocomo prova da subverso no Brasil.

    Por causa da revista Tendncia, que recla-mava uma vanguarda que fosse nacional esocialista, entrei em polmica com Otto Maria

    Carpeaux. Briga feroz. Um dia, ao dar balanodo ano literrio para o Boletim bibliogrficobrasileiro, como de hbito eu fazia, inclu umttulo de Carpeaux entre os melhores no gneroensaio. Ele considerou admirvel o meu gesto,pois achava que eu tinha comprado, com apolmica, uma inimizade eterna e cega. E passoua ser meu amigo. Toda vez que tirava folga noCorreio da Manh, onde trabalhava, tinha umnico passeio: passar alguns dias em OuroPreto, sozinho, na pousada do Chico-Rei. Einvariavelmente procurava uma nica pessoa emBelo Horizonte: eu.

    Carpeaux conheceu Kafka pessoalmente.Falou da sua voz rouca, conseqncia j datuberculose na laringe. E foi, segundo depe emartigo, o primeiro a dizer de Kafka no Brasil.Tinha uma histria rocambolesca acerca do

    esquerda, rua Stupartsk e igreja Tn, na CidadeVelha de Praga. Na pgina oposta, a rua Tn (fotomenor) e vista do Castelo de Praga e da Ponte Carlos,sobre o rio Vltava.

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    Atravessando o rio, o Vltava imortalizado pelo poema sinfnicode Smetana, levantei, na ponte, os olhos e vi l em cima, nacolina, o enorme Hradschin, o antigo Palcio Real, muito pertoe no entanto parecendo inacessvel nas alturas; e reconheci oCastelo de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedralgtica de So Vito, escura e vazia; e reconheci a igreja na qual ocondenado, em O processo, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinhaencontrado a realidade atrs daquele sonho fantstico.

    Otto Maria CarpeauxMeus encontros com Kafka

    volume de O processo que trouxe consigo aoBrasil, uma das raridades existentes da primeiraedio do autor, pois o editor da Die Brcke (APonte) falira com a publicao da obra recomen-dada por Max Brod.

    Falecido Otto Maria Carpeaux, a viva, D.Helene, encarregou-me de achar uma instituioque pudesse receber a sua biblioteca. Acabei mefixando na Biblioteca Mrio de Andrade.Infelizmente, a diretora da Biblioteca nopreservou o acervo e o dispersou gloriosamentena classificao universal. Somente ficou,identificvel, o volume Der prozess, encami-nhado seo de Obras Raras.

    Assim, So Paulo abriga o exemplar rarssimoda obra de Kafka. Curiosamente, quando secomemorou o centenrio do escritor, em 1983,os jornais paulistas e do resto do pas, para celebrar

    a data, se limitaram a reproduzir os artigos deCarpeaux, ignorando o fato de termos aqui araridade das raridades em termos de Kafka.

    Recentemente, travei conhecimento com umespecialista no autor de O castelo e em MuriloRubio: Alfred von Brunn. Ele me havia pedidoque obtivesse de Fernando Sabino o trecho deuma carta que Murilo Rubio lhe enviou daEspanha, falando de sua leitura de Kafka.

    Depois veio a So Paulo, quando o introduzia Carpeaux e primeira edio de Der Prozess.Hoje ele pensa em motivar uma organizaoitaliana no sentido de realizar uma edio fac-similar daquela obra, com base no original daBiblioteca Mrio de Andrade.

    A idia de Alfred von Brunn cobrir o vazioque existe na principal bibliografia de Kafka naAlemanha, em que se registra a repercusso do

    romancista em todo o mundo. H espao para aArgentina. Quanto ao Brasil, nada, nem umalinha sequer. nesse vcuo que ele trabalha,deseja cobrir essa falta. Estuda Murilo Rubio eoutros autores brasileiros que possam terparentesco com o grande escritor tcheco. Tcheco?

    Carpeaux diz: Franz Kafka no foi tcheco,porque escreveu em alemo. No foi alemo,porque se considera judeu. No foi judeu, porqueno tinha a f dos seus antepassados nem osentimento nacional dos seus contemporneos.

    Kafka no Brasil? A onda kafkiana chegou aser to forte em certa poca que CarlosDrummond de Andrade chegou a ironizar:Franz Kafka, escritor tcheco, imitador de certosescritores brasileiros. E Graciliano Ramosdenominava de literatura esprita a toda aquela,no Brasil, inspirada no romancista tcheco.

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  • 22JULHO 1997

    Na capital secreta da Europa (assimPraga era vista pelo surrealista Andr Breton)h um Kafka em cada esquina obra degrafiteiros, que demarcaram as vielas tortuosase fantasmticas da capital da Repblica Tchecacom o rosto e os olhos penetrantes do autor deO processo.

    A ao dessesjovens emblem-tica: aponta paraum estado de vigliae permanente in-quietao, como sefosse necessrio fa-zer uma pequenaRevoluo de Velu-do todos os dias.Quem visita hoje acidade de Praga,menos de dez anos aps a retirada dos comunis-tas, logo percebe por que Kafka teve seu gniotomado como smbolo da reabilitao culturaldo pas.

    Franz Kafka (1883-1924), judeu tcheco queescrevia em alemo, o maior representante dosymbiotic phenomenon essa fuso de trs

    Kafka nico neste sculo. Dizem que, pordetrs dele, havia a Cabala e SrenKierkegaard. Tinha uma tcnica narrativaobjetiva (seus autores preferidos eram Kleist eFlaubert, grandes realistas), mas de carterexpressionista. Era leitor do dramaturgoHebbel, que expressava o indivduo sado donexo universal em busca de emancipao.Articulava-se com um simbolismo de fundoreligioso e filosfico, bordejando o alegrico.Mas criava uma atmosfera de angstia e pesadelo,que mais o aproximava do surrealismo. Insistiuem mostrar a inocuidade da tentativa humana deromper com a lei de Deus. Tinha baixo teormimtico em relao realidade emprico-histrica. Predominam em sua prosa as imagensmticas ou as onricas, vizinhas do pesadelo, deum mundo enigmtico.

    A exegese de Kafka hoje imensa e incon-cludente. Sob a influncia de Max Brod, amigo etestamenteiro, que felizmente no obedeceu recomendao de queimar os originais quedeixou, houve grande concentrao sobre ostemas religiosos de sua obra. A voga do existen-cialismo explorou Kafka sob todos os aspectosdo desespero humano. A frustrao, na arte doromancista, um dado permanente.

    Depois veio a psicanlise. A relaoedipiana ganhou fora interpretativa da ficokafkiana. Mas o pequeno barco da dvidainfinita transportava a obra do escritor tchecopor entre as ilhas do saber hermenutico, semjamais atracar num cais duradouro.

    Segundo Gnter Anders, o poder equivale,para Kafka, ao direito; o homem sem direito e,portanto, sem poder, por isso mesmo culpado.O conto Diante da lei diz tudo. Por mais que sequeira integrar o interminvel labirinto da lei, osuplicante fica de fora. H uma vigilncia eternaque impede o seu acesso norma. O homem um banido, um desterrado eterno (um judeu,sob a tica de Kafka). No consegue ingressarna lei dos homens. Intil bater porta. Da opensamento de Kafka: Talvez haja s umpecado capital: a impacincia.

    Fbio Lucascrtico literrio e presidente da UBE (Unio Brasileira de Escritores), autor

    de Vanguarda, histria e ideologia da literatura (cone), Do barroco ao

    moderno (` tica) e O carter social da fico do Brasil (` tica).

    culturas distintas que moldaram no s aliteratura (a Escola de Praga gerou expoentescomo Rainer Maria Rilke), mas a prpria almada cidade. Recuperar essa chama de singula-ridade parece ser uma das formas de os tchecosreencontrarem um passado frtil, nascido das

    cinzas do ImprioAustro-Hngaro.

    De outro lado,Kafka e sua obrafuncionam comosmbolo de resis-tncia e de alertapara os perigos dafalta de liberdade deexpresso. Kafka te-ve seus escritos sis-tematicamente ba-nidos durante os

    perodos de ocupao da Tchecoslovquia.Primeiro, foram os nazistas, em 1939. Mais tarde,em 1948, foi a vez dos comunistas retirarem seuslivros das livrarias e bibliotecas. O escritorpequeno-burgus incomodava os soviticos eos membros do Partido Comunista com asuperexposio dos absurdos da burocracia.

    T u r i s m o L i t e r r i o

    Praga vive kafkamaniaRosto do escritor de O castelo est estampadoem cada viela da capital da Repblica Tcheca

    Jos Guilherme R. Ferreira

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    Temiam que suas histrias, irreais, estimu-lassem a contestao do stalinismo. (Kafka teriarebatido, premonitoriamente: No se trata deexpressionismo. a vida toda nua. Somosarrastados para a verdade como os criminosospara o cadafalso.)

    por razes como estas que a gnese daobra de Kafka passou a ser fundamental paraos tchecos. Eles agora tm na Sociedade FranzKafka, criada em maio de 1990, um centroaglutinador de seu legado.

    Enfrentar um roteiro kafkaesco, contudo,exige hoje em dia alguma dose de pacincia. bom, por exemplo, abstrair todos os excessos dakafkamania, que transformou o escritor emmotivo de canecas e em estampa de camisetas.

    O ideal seria comear caminhando pelocentro de Praga, sem muito rumo, como seestivesse na pele de um de seus personagens.Por que no Joseph K.? bom lembrar que,na alta temporada, o teatro Franz Kafkacoloca em cartaz uma srie de peas a partirda vida e da obra do mais cult dos escritoresda Escola de Praga.

    Kafka sempre nutriu uma relao de amor edio com sua cidade natal, a querida me comgarras que no deixava ningum dela escapar.Cheia de emaranhados, com uma organizaoespacial que beira o surrealismo, esta a Pragarevelada cruamente nos seus romances.

    Um giro pelos arredores da Praa da CidadeVelha (Staromestske Namesti) capaz de mostrarcomo os limites entre o pblico e o privado sofrgeis e sutis na antiga capital da Bomia. Paracruzar de uma rua a outra, muitas vezes necessrio usar pequenas passagens que invadem,sem qualquer cerimnia, os limites de umaresidncia. Dessa geografia nasceu O processo,onde a Lei penetra em toda a parte da cidade eemerge, de repente, em ticos misteriosos,escreveu Jeremy Adler no livreto Kafka e Praga.

    Adler conta que at mesmo os apartamentosmais antigos da cidade so peculiares: raramentedivididos por corredores, quartos ligados aquartos, como na casa de Gregor Samsa, de Ametamorfose. O prprio Kafka morou numa casa,na rua Celetn, que tinha um quarto com vistapara o interior de uma igreja.

    Kafka viveu em oito casas. A mais visitadadelas, a Casa da Torre, onde o escritor nasceu,abriga uma exposio permanente, que renefotos, cartas e fac-smiles de algumas de suasobras. A U Minuty, onde passou a infncia, uma das mais bonitas e est localizada na praa

    central. J na lista de curiosidades est a casinhaacanhada (servia de abrigo guarda real no sculoXVIII), na rua dos Alquimistas, circunscrita smuralhas do Castelo Hradschin. Nela o escritormorou por um ano para escrever a srie de curtasnarrativas de O mdico rural.

    Na rotina de Kafka sempre estiveramjustapostas as escolas alems, que freqentou nainfncia e adolescncia, e as ruas do gueto de seusavs. Nas imediaes de uma das mais antigassinagogas da Europa encontra-se o VelhoCemitrio Judeu, com suas centenas de lpidesempilhadas, um cenriode contemplao paraKafka, uma maneiraatvica de busca daespiritualidade perdida,como analisou Adler.

    O cemitrio, a sina-goga e todas as ruazinhasdo Bairro Judeu mere-cem uma visita. As es-colas tambm podem serfacilmente includas noroteiro. Kafka cursou aescola secundria noPalcio Kinsky, nocorao de Praga. (Nossales trreos do mesmoprdio, seu pai, Her-mann Kafka, mantinhaprspero comrcio.) De-pois, completou os es-tudos de direito naCarolinum a maisvelha universidade daEuropa Central, fun-dada em 1348 pelo reiCarlos IV.

    O ciclo de visitaspode ser completadonos prdios das duascompanhias de seguropara as quais trabalhou, to desesperadoquanto um rato aprisionado. Ou ainda smargens do rio Vltava, dominado pelo impo-nente castelo que inspirou Kafka.

    J para aguar o interesse por uma boa cervejatcheca, a melhor opo talvez seja a regio do CafSavoy, onde Kafka batia papo com os amigos efalava de literatura: Tudo o que no literaturame aborrece.

    Jos Guilherme R. Ferreirajornalista, editor-assistente de Geral no Jornal da Tarde

    Acima, rua Tn, na Cidade Velha de Praga.No alto, detalhe de janela de uma das casas de

    Kafka, com vista para dentro de igreja.Na pgina oposta, no alto, rua Kozn, na Cidade

    Velha; embaixo, grafite em muro de Praga.

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  • 24JULHO 1997

    Che Guevara o nico emblema daesquerda que resistiu intocado ao fim da utopiasocialista, ao colapso da Cuba que ele criou comFidel Castro, ao declnio do comunismo soviticoe converso da China maosta ao livre mercado.

    Por isso, os trinta anos de sua morte, em 9de outubro de 1967, na Bolvia, esto sendolembrados com uma avalanche de publicaes:Che Guevara, uma biografia, do jornalistanorte-americano Jon Lee Anderson, CheGuevara: a vida em vermelho, do cientistapoltico mexicano Jorge Castaeda, ErnestoGuevara, tambm conhecido como Che, dotambm mexicano Paco Igncio Taibo, Che nalembrana de Fidel (Casa Jorge Editorial), comdepoimentos do presidente cubano sobre ocompanheiro de guerrilha, e Che ErnestoGuevara, une lgende du sicle, de Pierre Kalfon(editado na Frana pela Seuil). Alm disso, a

    editora Record prepara para este semestre umaedio do Dirio do Che na Bolvia.

    As obras biogrficas, escritas com distan-ciamento histrico, oscilam entre a precisojornalstica (Anderson), a interpretao socio-lgica (Castaeda) e a simpatia ideolgica(Taibo). So leituras empolgantes, comparveis fruio de um romance, relatos de uma vidaque se encerrou aos 39 anos, mas que teve umaintensidade pica capaz de preencher volumesque podem chegar a mil pginas.

    No h nenhuma revelao bombstica noslivros, apesar do grande nmero de depoimentose dos documentos inditos consultados pelosbigrafos em arquivos da ex-Unio Sovitica,de Cuba e dos EUA. Mas isso no um defeito.A vida de Che , como os livros clssicos e ashistrias infantis, uma fbula que j conhecemosmas que no nos cansamos de reler. Talvez seu

    Trinta anos depois de sua morte, asbiografias do guerrilheiro mostram queele continua povoando o imaginrio dasnovas geraes e servindo de conelibertrio, apesar do realismo polticoque o fez comandar os fuzilamentosdos inimigos da Revoluo Cubana

    Che Guevara, umabiografia

    Jon Lee AndersonTraduo de M.H.C. Corts

    Editora Objetiva924 pgs. - R$ 49,50

    Che Guevara: a vida emvermelho

    Jorge CastaedaTraduo de Bernardo Joffily

    Companhia das Letras536 pgs. - R$ 35,00

    Ernesto Guevara, tambmconhecido como Che

    Paco Igncio TaiboTraduo de Cludia Schilling

    Scritta (programado para agosto)

    ANATOMIAD O M I T OC H E G U E V A R A

    Manuel da Costa Pinto

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  • CULT25

    O Cristo de Vallegrande

    Limparam seu rosto, j sereno e claro, e desco-briram-lhe o peito dizimado por quarenta anos deasma e um de fome no rido Sudeste boliviano. De-pois o estenderam no leito do hospital de NuestraSeora de Malta, alando sua cabea para que todospudessem contemplar a presa cada. (...) Quando osjornalistas e populares curiosos comearam adesfilar, a metamorfose j era completa: o homemabatido, iracundo e esfarrapado at as vsperas damorte se convertera no Cristo de Vallegrande,refletindo nos lmpidos olhos abertos a tranqilidadedo sacrifcio consentido. O exrcito boliviano cometeuo nico erro da campanha depois de consumada acaptura de seu mximo trofu de guerra. Transfor-mou o revolucionrio resignado e encurralado, o indi-gente da quebrada del Yuro, vencido por todos ospreceitos da lei, envolto em trapos, com o rostosombreado pela fria e a derrota, na imagem de Cris-to da vida que sucede morte. Seus verdugos deramfeio, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo.

    Extrado de Che Guevara: a vida em vermelho, de Jorge Castaeda

    fascnio esteja justamente a, no fato de sabermosque esse guerrilheiro inverossmil transformourevolta juvenil e romantismo livresco emrealidade histrica, desafiando o maior impriomilitar do mundo e alimentando a utopia delibertrios que compensam cada derrota com osonho tornado possvel do Che.

    para isto, alis, que servem os sonhos, oimaginrio, a literatura: corrigir a realidade noque ela tem de limitado e precrio, abalar suasestruturas simblicas e semear novas possi-bilidades empricas a partir da aparenteirrealidade da fico e do mito. E se isso equivalea dizer que os mitos so mais subversivos erevolucionrios do que os homens, ningummelhor do que Che Guevara encarnou essasduas faces: ele foi, ao mesmo tempo, o guerri-lheiro que, uma vez no poder, teve que aprendera amarga lio da real politik, e a efgie

    Fotos/Divulgao

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  • 26JULHO 1997

    estampada em psteres e camisetas como umgesto eternizado de rebeldia e inconformismo.

    Seus bigrafos procuram justamente flagraressa ambivalncia, descrever as iluses, maniase fraquezas do argentino Ernesto Guevara de laSerna tendo como pano de fundo o grandeafresco que retrata, em quadros sucessivos, aconverso, o sacrifcio e a canonizao do Checomo um apstolo da revoluo perptua. JorgeCastaeda, por exemplo, tira o mximo efeitodramtico da imagem do Che morto na Bolvia(leia trecho na pg. 25), seu corpo exangue comoo de um Cristo aps a deposio da cruz.

    Na anatomia do mito, enfim, quaseimpossvel separar os acontecimentos de uma vidaordinria dos passos que conduzem ao cadafalsoe beatificao. Quem escreve sobre o jovemErnesto Guevara guarda na mente o destino finaldo Che, fazendo de cada pensamento e de cadapequeno ato de excentricidade adolescente um

    anncio premonitrio de seu martirolgio.Mas o fato que como mostra Anderson

    o prprio Ernesto Guevara tinha de si mesmoa imagem de um predestinado. Filho de umadecadente famlia da alta burguesia de BuenosAires, ele nasceu na cidade de Rosrio em 14de maio de 1928 (seu registro de nascimentoassinala, porm, o dia 14 de junho pequenamanipulao de datas feita para encobrir o fatode que sua me se casara no terceiro ms degravidez).

    Introspectivo e insubordinado, amante doxadrez e do rugby, mal vestido e sedutor, leitor deJlio Verne e Alexandre Dumas na infncia, deBaudelaire, Verlaine, Mallarm, Zola, Faulkner eSteinbeck na adolescncia, Ernesto passou ajuventude s voltas com crises de asma. A doenaacabaria determinando sua deciso de ser mdicoe suas pesquisas com alergistas argentinos paradescobrir uma vacina contra a asma.

    Ainda como universitrio, o inquietoGuevara faz viagens rocambolescas em cima deuma bicicleta com motor pelo interior daArgentina e de regies pauprrimas de Chile,Peru, Bolvia, Colmbia e Venezuela. Passa pormdico formado em alguns leprosrios queencontra pelo caminho e leva na bagagem vriaspginas de um dirio que denota seu progres-sivo interesse pela literatura social e por autorescomo Freud, Bertrand Russell, Huxley, Kafka,Camus, Sartre, Lorca e, sobretudo, o poetaPablo Neruda.

    Nas correspondncias com Celia, sua me,Ernesto j esboa dois traos de personalidade queantecipam sua austeridade de guerrilheiro: aobstinao em enfrentar e at mesmo provocar aadversidade (para tornar maior o mrito dasuperao) e a crena na prpria invulnerabilidade.

    De volta a Buenos Aires para concluir seucurso na Faculdade de Medicina, deixa nova-

    esquerda, no alto, o grupo guerrilheiro de Che; abaixo, Fidel e Che detidos em cela da polcia mexicana (1956). Na foto maior, Che na poca da Revoluo Cubana.

  • CULT27

    mente a Argentina logo depois de fazer osltimos exames. Dessa vez, seu itinerrio apontapara a Amrica Central e nessa viagem quecomea a ser gestado o guerrilheiro ErnestoChe Guevara.

    Numa regio em que paira onipresente asombra da United Fruit Company, empresa querepresenta os interesses do imperialismo norte-americano, Ernesto Guevara testemunha naNicargua, em El Salvador, em Honduras e noPanam a sinistra associao entre oligarquiaslocais e ditaduras submissas aos EUA.

    As nicas excees so os governos demo-crticos de Costa Rica e Guatemala, e a queGuevara presencia o debate entre esquerdistasreformistas e radicais. Sua opo serdeterminada em 1954, quando o presidenteguatemalteco Jacobo Arbenz deposto comostensivo apoio do governo Eisenhower. A essaaltura, Guevara est envolvido at o pescoo

    O comandanteChe deslocou suas foras da universidade para dentro da cidade, tendo comoalvos todas as posies inimigas, mas se concentrando no trem blindado. Transferiusua comandancia para um edifcio do departamento de obras pblicas, a umquilmetro da cidade, fez remover um trecho dos trilhos com tratores, e entoordenou que seus homens atacassem a sede da polcia, as Colinas Capiro e o tremblindado. Ao mesmo tempo, a coluna do Directorio, chefiada por Cubela, que entrarapelo sul no dia anterior, sitiou os quartis do 31 e de Los Caballitos. A batalhacomeara.Nos trs dias que se seguiram, medida que os rebeldes avanavam lentamentepela cidade, Santa Clara transformou-se num sangrento campo de batalha. Emalguns lugares, os rebeldes avanavam abrindo buracos nas paredes internas dascasas, enquanto outros, do lado de fora, travavam combates encarniados nasruas. Inmeros civis responderam ao apelo de Che, fazendo coquetis Molotov,dando abrigo e comida aos combatentes e erguendo barricadas nas ruas.

    Extrado de Che Guevara - Uma biografia, de Jon Lee Anderson

    com militantes polticos e, em 1955, obrigadoa fugir para o Mxico com sua primeiramulher, Hilda Gadea, peruana exilada queconhecera na Guatemala.

    No Mxico, os grupos esquerdistas espe-ravam ansiosamente a chegada de um jovemque havia sido preso aps liderar o assaltofrustrado a um quartel na cidade de Santiago,em Cuba, e cuja libertao estava sendonegociada com o ditador Fulgencio Batista:Fidel Castro.

    Com Fidel no Mxico, iniciam-se os treina-mentos do grupo guerrilheiro que ir mudar ahistria da Amrica da guerra fria. E o Che,por sua vez, demonstra-se um comandante militarimplacvel, o companheiro ideal de Fidel na altaesfera do comando revolucionrio.

    O relato da campanha apenas refora aimagem de invulnerabilidade que ErnestoGuevara tinha de si mesmo. O desembarque em

    Cuba um fracasso: dos 82 homens quecompem a fora guerrilheira, apenas 15 sereagrupam (os outros morrem, so presos oudesertam) e um verdadeiro milagre que essepequeno contingente tenha conseguido sobre-viver e organizar o movimento que tomouHavana no dia 1 de janeiro de 1959.

    Nesse sentido, no resta dvida de que, seo comando estratgico coube a Fidel, o sucessono campo de batalha se deveu ao Che. Comoexemplo, basta dizer que o grande confronto queselou a sorte da Revoluo Cubana foi o assalto cidade de Santa Clara, comandado por ele (leiatrecho nesta pg.).

    Lder implacvel e s vezes impiedoso, queexecutava friamente inimigos e desertores, CheGuevara correu o risco de se tornar, a partir da fugade Fulgencio Batista e do estabelecimento dogoverno de Fidel Castro, um burocrata do terror,uma verso latina de Stalin e os fuzilamentos

    Acima, efgie de Che em nota e em selo cubanos.

  • 28JULHO 1997

    dos rivais polticos, nos primeiros dias da vitria,sugerem isso de maneira constrangedora (leiatrecho nesta pg.).

    A fora do mito, porm, parece ter sidomaior do que o compromisso histrico (sempreambguo, como demonstra a trajetria doprprio Fidel). Depois do fracasso dos planoseconmicos que idealizou e da discordnciacom Fidel em relao Unio Sovitica (que,para Che, fizera da ilha um joguete na guerrafria contra os EUA, especialmente no episdioda instalao dos msseis nucleares em Cuba),ele renuncia cidadania cubana, deixa AleidaMarch (sua segunda mulher, que conheceradurante os combates) e se lana em malfadadasaventuras guerrilheiras na Argentina, noCongo Belga e na Bolvia onde finalmentecapturado e executado.

    Esta trajetria mpar, herica, cuja morteilumina o passado com uma aura de idealismo e

    O terror revolucionrio

    Durante todo o ms de janeiro [de 1959],suspeitos de serem criminosos de guerraestavam sendo capturados e trazidos paraLa Cabaa diariamente. Na maioria dos casos,no eram os principais carrascos do antigoregime. Estes ou tinham escapado antes deos rebeldes assumirem o controle da cidadee sustarem todos os avies e embarcaespara fora do pas, ou continuavam enfurnadosnas embaixadas. Ao contrrio, a maioria dosque foram deixados para trs eram subchefesou chivatos [informantes], e torturadorescomuns da polcia. No obstante, Che, comopromotor supremo, dedicou-se sua tarefacom singular determinao, e as velhasmuralhas da fortaleza ecoavam todas asnoites com os disparos dos pelotes defuzilamento.

    Extrado de Che Guevara - Uma biografia, de Jon Lee Anderson

    justia, acabou transformando Che no cone deuma gerao que cantava com Jim Morrisonwe want the world, and we want it now.

    Entretanto, difcil avaliar onde acaba ahistria e onde comea a hagiografia. Numaperspectiva estritamente poltica, o homem queum dia afirmou que as execues por pelotesde fuzilamento so no s uma necessidadepara o povo de Cuba, como tambm umaimposio desse povo lembra um Saint-Justmarxista-leninista. O livro de Jorge Castaedaparece sugerir, alis, que Che (que desejava arevoluo permanente) est para Trotski comoFidel (o aliado da URSS) est para Stalin o que no deixaria dvida quanto a seu lugarcativo no panteo comunista e quanto derrotafinal de seu legado.

    Entretanto, possvel observar a partirda leitura de Lee Anderson que suasensibilidade social nasceu muito antes do

    contato com a obra de Marx, j nos temposem que era um easy rider que cortava asestradas da Amrica Latina. Foi esse mpetojuvenil e libertrio que o impediu de seembrutecer nas vestes do dirigente de partido e este Che que os estudantes de Maio de68 idolatravam.

    Pouco antes de partir de Cuba para suasltimas batalhas, ele escrevia aos pais: Umavez mais sinto sob os calcanhares as costelasde Rocinante e finalizava dizendo: Lem-brem-se de vez em quando deste pequenocondottiere do sculo XX. A referncia aocavalo do Dom Quixote e aos aventureirosflorentinos do sculo XVI no gratuita.Como os heris do Renascimento, ele tambmestava em busca do homem novo, quesepultasse de vez uma ordem social dilacerante.Ainda que, pelo caminho, tivesse que deixarum rastro de sangue.

    Em 1960, Simone de Beauvoir e Sartre visitam Che em Cuba; o filsofo francs disse que Che era o mais completo ser humano da nossa poca.

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  • CULT29

    estou eu, ocupando este espao que opessoal da revista CULT me confia. E no deixo pormenos! Quero comear gritando contra nosso incrvelcomplexo de inferioridade, verdadeira macaquice,estpida mania de imitar, ignorantemente, tudo aquiloque os queridos irmos do norte fazem.

    No basta a verdadeira humilhao a que sesubmetem os brasileiros nas interminveis filas doconsulado americano, com o intuito de obter o preciosovisto para comprar tnis em Miami? No basta obesteirol lingstico de gente como Luciano do Valle,que insiste em dizer arina, steidium e outrastolices, em explcitas demonstraes de colonialismocultural e de desconhecimento da origem e dosignificado das palavras? E o incrvel Elia Jnior,com o seu delay? Tivemos um pequeno delay natransmisso, diz o inventor do p e bola!.

    Um locutor de uma FM anuncia o TempraStail, burra pronncia inglesada da palavra italianastile, que significa estilo. A Fiat, fbrica italiana,no tem vergonha de sua lngua ptria e batiza seusprodutos com nomes italianos: Tempra, quesignifica tmpera, Palio, que significaestandarte e o nome de uma festa tpica deSiena e Lucca, Mille, que significa mil etc.Ns, macacos, no fazemos a mnima questo depronunciar direito nada que venha de lnguaestrangeira que no seja o ingls. E mais:encarregamo-nos de inglesar tudo.

    Como se no bastassem todas essas manifestaesde americanismo doentio, bobo, sou obrigado agoraa agentar mais uma novidade. Foi um queridomdico e jornalista de Curitiba, Freitas Neto, umculto e respeitvel senhor de 74 anos, que me deu adica. Perguntou-me se eu j havia notado uma prolaque as emissoras brasileiras de televiso adotaram halgum tempo. Trata-se da palavra vivo, escrita numcanto da tela, para indicar, obviamente, que a

    transmisso ao vivo. Fui verificar e constatei queo bem-humorado Freitas tinha razo.

    Por que vivo? De onde ter vindo a inspiraopara tamanha demonstrao de criatividade? Claro,da matriz. Como nas emissoras (CNN e companhiabela) aparece live (que, ao p da letra, significavivo), num canto da tela, pronto! Palavra mgica!Se na matriz uma palavra s, na colnia, na filial,tambm basta uma palavra. Ento o que era aovivo virou simplesmente vivo. melhor colocarmorto. E terminar com uma inscrio: Aqui jaz alngua portuguesa, assassinada por basbaques,incultos, presunosos, vendilhes do templo etc.

    Existia em So Paulo uma empresa pblicaconhecida por CMTC, sigla que significavaCompanhia Municipal de Transportes Coletivos.A expresso perfeitamente adequada estrutura dalngua portuguesa: um substantivo, companhia,caracterizado pelo adjetivo municipal e pela locuoadjetiva de transportes; por sua vez, o substantivotransportes, base da locuo adjetiva, caracterizadopelo adjetivo coletivos. Repito que a expresso toda portuguesssima. Pois bem, o ex-prefeito de SoPaulo resolveu fechar a CMTC, para fundar a SoPaulo Transporte. Esse nome no portugus, ingls. Em ingls, possvel combinar dessa maneiradois substantivos (London Airport, New York City,Chicago Bulls). A lngua portuguesa no combinadois substantivos assim. Em portugus, seriaTransporte de So Paulo. E exatamente a quemora o perigo. Os lingistas dizem que uma lnguacomea a ruir quando sua estrutura comea a serdestruda. Mais uma vez, parabns aos incultos,basbaques, presunosos, vendilhes do templo etc.

    Quando a demonstrao de ignorncia vem dopoder pblico, ento, que maravilha!

    Veja-se o caso da palavra memorial. Experi-mente verificar seu significado em um bom

    dicionrio da lngua portuguesa. Em quem vocacredita mais? Em Jos Saramago, monumentovivo da lngua portuguesa, ou numa otoridadequalquer? Jos Saramago escreveu a obra-primaMemorial do convento, em que, como o nome diz,relata memrias, fatos memorveis relativos construo do Convento de Mafra, encantadoracidade portuguesa. Se voc prefere acreditar numde nossos cultos governantes, cuidado! Algumdeles, certamente babando diante de algummonumento visto durante uma visita ptria-me(United States of America), voltou colnia coma palavra certa para batizar monumentos erguidospor aqui. Memorial, em ingls, palavra usadaexatamente para isso. Memorial, em ingls,significa monumento comemorativo.

    Algum basbaque tupiniquim, deslumbradocom as tranqueiras compradas na Galeria Paj desculpem, em Miami , fez a traduo ao pda letra. Essa palavra usada indevidamente noBrasil como sinnimo de monumento (MemorialJK, em Braslia, e Memorial da Amrica Latina,em So Paulo, por exemplo). D-lhe colonialismo!D-lhe macaquice!

    O que faz