118

Cultura - Inclusao e Diversidade - Silvia Cintra Franco

Embed Size (px)

Citation preview

  • Introduo para quem s quem

    Cultura, incluso cultural, diversidade cultural,multiculturalismo e outros termos assemelhados povoamnosso dia a dia sem que sejamos capazes de defini-los comexatido.O que cultura? Para uns, erudio; uma pessoa culta

    algum que sabe tudo sobre tudo, principalmente coisasantigas que j no interessam a ningum. Para outros, oconceito de cultura est mais prximo da noo de civilizao.Para Fernando Pessoa, o maior poeta da lngua portuguesa

    do sculo XX, vemos e ouvimos melhor no sentido de maiscompleta e interessantemente quanto mais ampla einformada a inteligncia que est por trs do nosso ver eouvir (Fernando Pessoa, p. 55). [1] Segundo o poeta, ainteligncia elabora elementos vindos do exterior que podemser de trs espcies:

    os que nos chegam por nossos sentidos; as sensaes e impresses que colhemos pelo convvio

    social; e os que nos chegam de influncias indiretas, impresses

    colhidas em livros, em museus, laboratrios.

  • As informaes que nos chegam por nossos prpriossentidos so limitadas, pois cada um de ns s quem .Desse modo, somente poderemos ver e ouvir bem eprofundamente quando nossa inteligncia for ampliada graas ajuda de informaes e sensaes que colhemos diretamentena convivncia com amigos e famlia ou indiretamente peloslivros, TV, museus, internet etc. Da ter razo o pintor e poetaingls William Blake ao dizer que um ignorante no v amesma rvore que v um sbio. A cultura faz parte desseterceiro elemento: dessas informaes e sensaes querecebemos ao longo da vida ao ler, freqentar museus etc.Cultura um alimento mental que para nutrir deve ser

    assimilado, declara Fernando Pessoa, o poeta dos famososversos Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma no pequena. Como diria, ainda, o filsofo espanhol Ortega yGasset, cultura aquilo que um homem possui quandoesquece tudo o que leu. Portanto, uma pessoa culta aquelaque tem a capacidade de assimilar cultura, de transmudar asinfluncias culturais em matria prpria do seu esprito. E acultura pode ser adquirida por meio do estudo formal, mastambm pela capacidade de absorver, de aproveitar o que sel e se ouve e pela multiplicidade de interesses culturais, isto ,a curiosidade intelectual e o interesse generalizado por artes,cincias etc. surpreendente a concluso a que chega o maiorpoeta portugus dos tempos modernos: um poeta que saiba oque a curva de Gauss tem mais probabilidades de escreverum bom soneto de amor do que um poeta que no o saiba.

  • Por qu? Porque um poeta que se deu ao trabalho de estudaruma equao matemtica tem em si o instinto da curiosidadeintelectual e por ter esse instinto, com certeza o ter usadopara colher pormenores do amor e do sentimento. Enfim, tervalido a pena o tempo despendido em saber o que a curvade Gauss e outras tantas coisas.Convive com essas noes propostas por Pessoa, Blake e

    Ortega a suspeita de que existem culturas especficas como ade uma nao, de um povo, de um bairro e at mesmo de umatribo ou de um grupo de adolescentes. E, por unanimidade,todos e cada qual acreditam que no h melhor cultura do queaquela em que foram criados.A miscelnea de conceitos que procuram abarcar o termo

    cultura universal. J em meados do sculo XX, osantroplogos fizeram um levantamento de 162 definies. E alino estavam includas as que aparecem nos dicionriosbrasileiros de Aurlio Buarque de Holanda e Antnio Houaiss.Assim, se voc no sabe bem o que cultura, no se sinta s,pois est muito bem acompanhado ou acompanhada.A cultura manifesta-se no somente atravs de instituies e

    costumes, mas tambm atravs da arte. Da a importncia de acultura como a educao ser reconhecida como um direitodo cidado, disponvel e ao alcance de todos. Por isso o temada incluso cultural do mesmo modo que a incluso social est hoje na pauta das discusses sobre direitos humanos.Promover o acesso cultura, seja ao apoiar a arte de raizpopular, seja a erudita, de modo que o povo possa apreciar as

  • manifestaes artsticas de sua prpria cultura onde sereconhece, assim como entrar em contato com as de outrospovos, obrigao do Estado, que deve garantir esse direitoatravs de polticas culturais de incluso.Para tanto, este livro se prope discutir a questo cultural

    no se restringindo em definir o que seja cultura, masdescortinando o vastssimo leque de possibilidades eperspectivas que se escondem sob o termo: os conflitos epreconceitos que gera, as oportunidades que abre, os direitosque devem ser estendidos a todos. O entendimento do que cultura criao e patrimnio da humanidade pode nosajudar a melhor enfrentar o mundo em que vivemos e exigir oacesso s riquezas desses bens culturais, nosso direito.

  • 1. Cultura segundo a antropologia e asociologia

    A ANTROPOLOGIA E A SOCIOLOGIA TM REVELADOIMPORTANTES ASPECTOS DA VIDA E DO

    DESENVOLVIMENTO DOS POVOS, TAIS COMO O DE QUEO Homo sapiens CRIA CULTURA E EST PRESO A UMA

    CULTURA, ASSIM COMO O USO QUE A SOCIEDADE FAZDESSE FENMENO PARA GARANTIR O status quo.OUTRA CONCLUSO A QUE ESSAS CINCIAS

    CHEGARAM DE QUE UM MITO QUE A RAA SEJAELEMENTO PRIMORDIAL NO AVANO DE UM POVO

    PARA O PROGRESSO.

    Vamos trabalhar com o conceito de cultura oferecido porduas cincias relativamente novas: a antropologia e asociologia. A primeira a cincia da humanidade e da cultura;abrange como cincia muito mais do que apenas o estudo dahistria da natureza fsica do Homo sapiens , porque o serhumano tambm um animal que produz cultura e est presoa uma cultura . A sociologia estuda a interao social dosseres vivos, principalmente da humanidade, em seus diferentesnveis de organizao. O entendimento desse fenmeno e douso que a sociedade faz dele para garantir o status quo (oestado ou situao existente) e nele nos manter agrilhoadospode nos libertar.Os cientistas dessas novas cincias utilizam mtodos

  • especficos para observar povos e tribos e a partir dessaobservao elaborar seus conceitos. Um dos primeirosetnlogos ou estudiosos de povos ( ethnos = povo em grego)e suas culturas foi o jesuta francs J. F. Lafitau, que no inciodo sculo XVIII verificou a semelhana de usos dos povos daAntiguidade e dos ndios do Canad. A partir dessaconstatao, povos primitivos deixaram de ser consideradoscuriosidades vivas (como nossos ndios levados Corteportuguesa) e passaram a ser vistos como homens que em seugnero de vida refletem estados de cultura que ns jtranspusemos. Ou seja, no h povos com culturas piores doque outras, mas em estgios menos desenvolvidos.

    Depois de Lafitau, surgiram outros, viajando, observando,convivendo com os povos que eles estudavam. MargaretMead, antroploga estadunidense, esteve em Samoa,observando a cultura local; o francs Claude Lvi-Strauss, noBrasil, lecionou na Universidade de So Paulo e conviveu comnossos ndios; o paulistano Caio Prado Jnior saiu peloscampos e estradas at os recantos e cafunds mais esquecidosde nossa terra para observar como se vivia, se produzia e setrabalhava em nosso pas. Temos ainda o pernambucanoGilberto Freyre, o mineiro Darcy Ribeiro para citar os maisconhecidos.

    No pouco o que esses estudiosos levantaram a respeitode ns, seres humanos, de nossas sociedades, de comocrescemos e evolumos. Descobriram, por exemplo, emescavaes pelo mundo afora, que o bumerangue que

  • conhecemos como de origem australiana no necessariamente uma criao apenas desse povo. Foramencontrados bumerangues em diversas regies do globoterrestre: no Lago Braband, na Dinamarca, datado do perodopaleoltico; no Egito, datado de 3 mil a.C.; no Congo; na ndiae com os ndios hopi do Arizona, Estados Unidos.Bumerangues, como quaisquer outros objetos criados pelahumanidade ou, mais simplesmente, pelo homem (aqui tomadona acepo ampla), so denominados elementos culturais ,porque provenientes de uma dada cultura. Assim, diferentesculturas, em momentos diferentes, produziram elementosculturais semelhantes.Outro achado, no menos interessante, que sociedades

    primitivas tm em comum o fato de se bastarem a si mesmas,de se considerarem os nicos homens verdadeiros,reservando aos estrangeiros um gesto de indiferena, quandono de desprezo. Os esquims chamam de inuit os membrosde sua prpria raa; do mesmo modo os khoikhoin,habitantes da frica do Sul, assim se autodenominam; essesdois termos significam simplesmente homens ou verdadeiroshomens, como se no os houvesse nas outras raas. Nalngua dos ianommi, importante etnia da Amaznia,ianommi significa homem, gente ou espcie. Quemno ianommi nape, isto , forasteiro, gente com quem preciso tomar cuidado, gente perigosa. Com esse termo,qualificam os outros. Os antigos gregos e romanoscostumavam chamar de brbaros os membros de outros

  • povos, pois os outros pipilavam como as aves em vez defalar uma lngua razovel como a deles... E aqui no Brasil dascapitanias os ndios tupis e os portugueses tratavam os tapuiase outros como brbaros porque no falavam tupi.

    O mito de raa e a capacidade cultural

    A antropologia vem demonstrando que o homem sedesenvolve nas diversas partes de nosso planeta, e a raa aque pertence no um elemento que faa muita diferena emseu avano para o progresso. O fator humano , pois,considerado uma constante, isto , as diferenas de raas etipos fsicos no so significativas se comparadas influnciada cultura. Isso significa que todas as raas so igualmentecapazes de desenvolvimento cultural, e a cultura ageindependentemente da herana racial: do tipo fsico ou da corda pele.So, portanto, consideradas mitos as seguintes afirmaes:

    Existem raas culturalmente mais adiantadas que outras. Os africanos s chegaram civilizao quando esta lhes

    foi levada pelos europeus. As civilizaes modernas mais elevadas foram

    desenvolvidas pelos brancos europeus.

    Ao afirmar que os africanos s alcanaram a civilizaoquando os europeus ali chegaram para saquear suas riquezas ecarreg-las para a Europa, as pessoas esquecem que

  • civilizaes como a egpcia j eram complexas e bemadiantadas h mais de 3 mil a.C., quando os europeus aindaengatinhavam.J quem cr que as civilizaes modernas mais elevadas

    foram desenvolvidas pelos brancos europeus, ignora quesomente na Renascena, portanto h poucos quinhentos anos, que os centros de inveno cultural se deslocaram para onorte da Europa. Por volta da Idade Mdia europeia, osndios maias da Amrica Central j haviam realizado feitosculturais maiores que os dos brancos europeus da mesmapoca.Um bom exemplo de que no a raa que

    preponderante, mas a cultura, est na histria dos uto-astecas.Os astecas, comanches e shoshones so ndios queapresentam semelhanas do ponto de vista de raa e delinguagem, o que indica uma tradio histrica comum. Hsetecentos anos, eram simples caadores, no estgio maissimples da escala cultural, vivendo nos desertos ocidentais daAmrica do Norte. Acontecimentos histricos, no entanto,alteraram radicalmente seus caracteres bsicos e seudesenvolvimento cultural.Os astecas foram para o sul e se estabeleceram no que

    hoje o Mxico Central, passando a conviver com povos deculturas mais avanadas que ali se encontravam. Em 1325, osastecas fundaram Tenochtitln, atual Cidade do Mxico, epassados 175 anos j eram os senhores absolutos da regio:plantadores de milho, construtores de estradas, astrnomos,

  • artistas e construtores de uma cidade com edifcios pblicosto imponentes que Fernando Cortez, o conquistadorespanhol, declarou, em 1519, que no havia em toda aAndaluzia nada que se comparasse com a glria daquelacidade.Os comanches foram para as plancies do sudeste dos

    Estados Unidos e a adquiriram cavalos e armas, entrando emcontato com a tradio guerreira das tribos das Plancies.Tornaram-se assaltantes nmades, truculentos e guerreiros,to violentos que at hoje se diz no Oeste norte-americanoselvagem como um comanche.Os shoshones no adquiriram armas nem cavalos, nem

    tampouco foram para terras habitadas por povos maisavanados. Conservaram as atitudes e a cultura que um diacompartilharam com astecas e comanches. Pacficos,acabaram por ser maltratados por estes ltimos e passaram ase esconder no deserto, desenvolvendo um forte complexo deinferioridade. Enquanto os comanches ostentavam nos cabosde suas colheres desenhos totmicos ricos em detalhes, osshoshones contentavam-se com colheres toscas feitas doschifres das ovelhas das montanhas (E. Adamson Hoebel eEverett L. Frost, p. 406). No por acaso foram os nicosndios norte-americanos que aceitaram bem a chegada dosbrancos (idem p. 33).Desse modo, por circunstncias histricas, povos com

    caractersticas semelhantes desenvolveram-se diferentemente.Os astecas (por terem entrado em contato com civilizaes

  • mais desenvolvidas) e os comanches (por terem adquiridoarmas e cavalos e a influncia de povos guerreiros) tornaram-se povos ativos e realizadores, enquanto os shoshones no.Como se viu, a raa no foi fator preponderante nodesenvolvimento desses povos.O contato entre os povos e portanto entre culturas faz

    avanar a cultura de uma sociedade, enquanto povos isolados,ilhados, sempre estagnam, no importa a que continente e raapertenam. Povos cuja cultura esteja voltada para o passadoso impermeveis s mudanas e, portanto, aodesenvolvimento.Desse modo, o que nos separa dos povos primitivos uma

    diferena de grau de desenvolvimento, e no de raa. Cadaelemento cultural (o bumerangue, por exemplo) a expressode certo desenvolvimento e, nesse sentido, representa certoprogresso.Apesar dessa constatao cientfica, Adolf Hitler e tantos

    outros tm se empenhado em provar a supremacia de suaprpria raa sobre as demais comportamento que recorda odas sociedades primitivas que tambm afirmam que osverdadeiros homens so os de sua prpria raa e os demais,lixo. A contragosto, Hitler foi obrigado a assistir vitria doafro-americano Jesse Owens sobre os arianos de sua raapura na prova de corrida dos 200 metros rasos dasOlimpadas de 1936.

    Infelizmente, o estado nazista (que enviou milhares dejudeus, ciganos, eslavos, poloneses e homossexuais aos

  • campos de extermnio) no foi o nico a tentar fazer umalimpeza tnica para eliminar do mundo raas consideradasmenos puras que a sua.

    No final do sculo XX, Slobodan Milosevic, presidente daento Iugoslvia, tambm providenciou sua limpeza tnica eassassinou milhares de muulmanos. Por seu lado, o governoda Frente Islmica Nacional e suas milcias racistas, asJanjaweed, exterminaram mais de 400 mil negros, expulsaramde suas casas outros 2 milhes, queimaram quase todos ospovoados negros, estupraram as mulheres negras parainsemin-las com semente rabe e destruir sua raa dedentro para fora. Em Darfur, fronteira geogrfica que separaa frica rabe da frica negra (no oeste do Sudo), desde adcada de 1980 os islmicos de Cartum anseiam por arabizarpor completo nossa parte da frica e expulsar do pas apopulao negra, inferior segundo eles (in Folha de S.Paulo, 8 out. 2005).

  • 2. Cultura e sociedade. Relatividade cultural.Tolerncia

    O PLANETA EM QUE VIVEMOS NO O MESMO PARACADA POVO QUE SE ORGANIZA EM SOCIEDADE PARA

    TORNAR A VIDA MAIS SEGURA E DESENVOLVE UMACULTURA PRPRIA PARA RESPONDER AOS DESAFIOSQUE O CLIMA E A GEOGRAFIA LHES IMPEM. PARATANTO, O GRUPO SOCIAL SELECIONA PADRES DE

    COMPORTAMENTO E COSTUMES QUE ASSEGUREM ASUA SOBREVIVNCIA E PUNE AQUELES QUE OS

    TRANSGRIDEM. COMPREENDER ESSE FENMENO ACHAVE PARA CONVIVER COM A DIVERSIDADE

    CULTURAL E O MULTICULTURALISMO.

    O trabalho dos antroplogos vem demonstrando queexistem sociedades com compreenso e solues diferentesumas das outras. Tais descobertas nos ajudam a entenderquem somos, o que fazemos e, mais importante que nunca,indicam que a soluo encontrada por nosso grupo social,aquele em que nascemos e fomos criados, no a nica, nemsequer absoluta.A humanidade busca compreender o mundo e organiz-lo

    para dar-lhe um sentido, colocar ordem no caos. Para tanto,procura interpretar e conferir um significado ao ambiente que acerca. A viso que um povo tem do mundo est contida emsua cultura, ou seja, a cultura reflete a cosmoviso, a

  • concepo de mundo desse povo.Desse modo, o planeta em que vivemos no o mesmo

    para cada povo. A concepo de vida e de mundo difere deuma cultura para outra. Por exemplo: na cosmoviso dosastecas, o ser humano foi criado pelo sacrifcio dos deuses e,por isso, incumbido de manter as divindades com o sangue dosacrifcio humano. Por isso que para os astecas os sacrifcioshumanos no eram vistos como uma barbrie, mas como umaforma de cumprir seu papel e de manter a ordem csmica.Em resumo, as instituies, os relacionamentos, as artes e

    as tecnologias variam em todo o mundo, porque dependem deuma concepo prpria do grupo social que as desenvolveu.Um exemplo simples so as cores do arco-ris, cujo nmerodepende do grupo social que o observa. Para os bretes, oarco-ris tem quatro cores, para ns sete, pois cada uma daslnguas recorta o continuum arco-ris. No cabe a discussose existem dois arco-ris. O que est em jogo o fato daexistncia das duas interpretaes, cujos significados estorelacionados a toda experincia cultural dos falantes de cadalngua (in A pesquisa: recepo da informao e produodo conhecimento, por Maria de Ftima G. M. Tlamo,DataGramaZero Revista de Cincia da Informao v.5 n.2 abr/04). Outro exemplo o gelo. Para os esquims,h diversas palavras para definir os diferentes tipos de gelo.Para ns, brasileiros, s existe um termo para defini-lo.

    Tolerncia, ento, fundamental, pois aquilo que para ns

  • uma verdade elementar em outras sociedades pode no oser. Um exemplo: Margaret Mead observou, em Samoa, queos adolescentes de l no passam pela crise que passamosns, em razo do tipo de sociedade em que vivem. Isso querdizer que a crise da adolescncia no acontecenecessariamente em todas as sociedades. Da mesma forma,no universal nem uma verdade absoluta a ideia de que alinhagem deva ser patrilinear, determinada pelo pai. Cientistasobservaram que nas ilhas Trobriand, no sul do Pacfico, asociedade est organizada em cls matrilineares; o que contaali a linhagem materna. Para os habitantes dessas ilhas, isso evidente e se justifica porque a gravidez resulta da entrada, nocorpo da mulher, do esprito ( balom) de um antepassadomorto do cl matrilinear; portanto, o pai no est relacionadogeneticamente com o filho este pertence somente ao cl desua me. Todos aceitam essa proposio como uma verdadeelementar. Mas no precisamos ir muito longe: durantesculos, as mulheres foram rejeitadas por no darem filhoshomens a seus maridos e at hoje, em muitos recantos denosso pas, acredita-se que responsabilidade da mulher onascimento de um filho homem. Mas a cincia j provou que adeterminao do sexo da criana somente pode ser dada pelohomem, jamais pela mulher, pois elas tm cromossomo XX eos homens, XY. Pela lgica, no h como a mulher com seusXX definir o sexo de seu filho XY.

    A capacidade de criar cultura e de simbolizar

  • A antropologia tem por objetivo o estudo da humanidadecomo um todo e de todas as suas manifestaes e atividades.Uma de suas constataes a de que o ser humano umanimal que cria cultura e est preso a uma cultura.O antroplogo britnico Edward Burnett Taylor emitiu em

    1871 um conceito que se tornou clssico: cultura um todocomplexo que inclui conhecimento, crena, arte, moral,legislao, costumes e quaisquer outras capacidades e hbitosadquiridos pelo homem como membro da sociedade.Em 1952, dois outros antroplogos, os estadunidenses A.

    L. Kroeber e Clyde Kluckhohn, afirmaram que a cultura uma abstrao ou, mais especificamente, uma abstrao docomportamento. A cultura avana e evolui de comportamentosinstintivos a comportamentos aprendidos; padres decomportamento so adquiridos e transmitidos de indivduo aindivduo, de gerao a gerao, at se chegar a um sistemacuja essncia o significado, que no pode ser apreendidoapenas pelos sentidos.Um exemplo: do instinto de sobrevivncia vem a

    necessidade de comer. Inicialmente comia-se com os dedos,depois se criou a colher, o garfo, e hoje, desde muitopequenos, nossos pais nos ensinam a usar os talheres paracomer, a nos sentarmos adequadamente mesa, a usarguardanapo, a limpar os lbios antes de levar o copo boca;enfim, aprendemos as chamadas boas maneiras, que nadamais so que um padro de comportamentos considerados

  • adequados para um determinado grupo social enquanto podeno ser para outro. As boas maneiras mesa so, em resumo,um comportamento aprendido e adquirido e um sinal derefinamento de grupo ou de classe. No entanto, observa osocilogo alemo Norbert Elias, com a crescente valorizaode quem tem dinheiro, os sinais distintivos de boas maneirasperdem significado para signos mais visveis como aostentao de roupas de grife ou carros de determinadasmarcas.

    Outro exemplo: um turista estrangeiro ao ver uma faixaalvinegra dependurada do lado de fora de uma casa na cidadede So Paulo poder imaginar que essa faixa simboliza algo,mas provavelmente no saber dizer com certeza o qu. J umtorcedor corintiano ou santista associar na hora a faixa ao seutime. Afinal, o torcedor se fez torcedor porque cresceu numambiente em que o futebol importante, e no menosimportante a adoo de um clube pelo qual torce e sofre. Poroutro lado, o mesmo turista estrangeiro poder no terdificuldade em identificar o simbolismo contido numa faixa emque estejam estampadas as cores do arco-ris. sabido que omovimento GLBT, de gays, lsbicas, bissexuais etransgneros, faz uso dessas cores, e elas podem ser vistas emmanifestaes e passeatas no mundo todo.Assim, cultura um ambiente criado pelo homem graas

    sua capacidade de criar smbolos.Para resumir, em termos antropolgicos, a cultura o

    sistema integrado de padres de comportamento aprendidos,

  • os quais so caractersticos dos membros de uma sociedade eno o resultado de uma herana biolgica (E. AdamsonHoebel e Everett L. Frost, p. 4).Para a sociologia, a capacidade humana de simbolizar o

    atributo que torna possvel a produo da cultura. Asociedade, ento, precede a cultura (Fernando HenriqueCardoso e Octavio Ianni, p. 17).

    Nossos ancestrais, os homindeos, viviam inicialmente emsociedade e, lentamente, pela coexistncia e interaes desuas vidas, comearam a desenvolver uma cultura primitiva:tinham sede e por instinto bebiam gua. Um dia produziramcom um pouco de barro uma tigela para carregar a gua. Atigela um primeiro elemento cultural. Eles saam caa efizeram um primeiro machado de pedra lascada. E no tardoumuito para que o machado adquirisse um novo significado, ouseja, alm de cortar e ferir passou a simbolizar poder eautoridade.Com a simbolizao, a humanidade deu um passo

    revolucionrio, pois o smbolo adicionou uma nova dimenso existncia humana. O machado passou a smbolo deautoridade, o acasalamento tornou-se matrimnio, e asrelaes sociais entre esposos, pais e filhos, irmos e irmspassaram a envolver obrigaes morais, deveres, direitos eprivilgios. Tudo passou a ter um significado prprio. E apsalgum tempo de domnio da tcnica de fazer tigelas,comearam a produzir riscos e desenhos sem funoinstrumental, isto , apenas para enfeitar as tigelas que

  • produziam. Comeavam a fazer arte. E essa tigela pode serconsiderada uma manifestao cultural artstica prpriadaquela sociedade.Convm esclarecer que sociedade e cultura no so a

    mesma coisa. A sociedade humana constituda por pessoas;a cultura, pelo comportamento dessas pessoas. A pessoapertence sociedade, mas no seria exato afirmar quepertence a uma cultura; ela manifesta a cultura de suasociedade.

    Sociedade: seleo de comportamentos

    A funo primeira da sociedade tornar mais segura a vidadas pessoas que a integram, garantir a continuidade dogrupo social.

    A cultura se desenvolve como resposta aos problemas davida enfrentados pelo indivduo e seu grupo social. Ela consistenum conjunto de meios para satisfazer as necessidades desobrevivncia dos indivduos, necessidades essas que no soapenas materiais. Assim, as culturas oferecem meios desobrevivncia para caar, pescar, fazer fogo, relacionar-secom os outros membros, curar suas doenas, aliviar suasaflies, medos e ansiedades.Segundo o antroplogo alemo Franz Boas, considerado o

    av da moderna antropologia, a humanidade uma, ascivilizaes so muitas (E. Adamson Hoebel e Everett L.Frost, p. 22). Os costumes, a moral, as vises de mundo e desi prpria diferem de sociedade para sociedade.

  • Cada sociedade seleciona seus padres de comportamentode acordo com o modo como percebe o mundo exterior e oprprio homem, isto , de acordo com certos princpios ouproposies. Tais princpios no so demonstrveis oucientificamente provados. So os chamados postuladosexistenciais. Retornemos ao exemplo dos habitantes das ilhasTrobriand com sua linhagem matrilinear. Muitas daspeculiaridades da vida social e sentimental desse povo socompreensveis somente dentro dos termos de sua sociedade.H tambm os postulados normativos ou os valores, que

    se referem bondade ou maldade. No Brasil, uma mulherpode conversar com um homem desconhecido na rua sem queisso seja considerado imoral e ela venha a ser punida. Noentanto, esse comportamento vedado s mulheres que vivemsob o regime do Taleban, no Afeganisto. Portanto, o certo eo errado ( os valores ) e os usos e atividades ( os costumes )so relativos sociedade da qual fazem parte. Talentendimento , no entanto, motivo de crticas, pois onde tudo relativo no h como fixar uma verdade absoluta paraestabelecer regras de comportamento.

    Do ponto de vista da sociologia, a cultura proporciona aseus membros um guia em todos os campos da vida, e sem elaesses membros no poderiam funcionar bem. Para oantropologista cultural estadunidense Ralph Linton, o fato dea maioria dos membros da sociedade reagir a uma dadasituao de determinada forma capacita qualquer um a prevero comportamento com um alto grau de probabilidade

  • (Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, p. 99). Apossibilidade de fazermos essa previso demonstra quevivemos numa sociedade e conhecemos bem seus postuladosexistenciais e normativos. Segundo o mesmo estudioso, aexistncia dos padres culturais nos d a segurana de que senos comportarmos de acordo com eles receberemosaprovao social, e se no o fizermos sofreremos presso.Assim, se algum desrespeita ou se afasta de qualquer um

    dos valores ditados pela sociedade, o resultado pode serdesastre, pois a sociedade s possvel dentro de uma ordemestabelecida pelos seus membros. No , pois, de admirar quesofra algum tipo de punio quem transgride as normas dasociedade em que vive: seja a legislao de seu pas, oscostumes de sua famlia ou o que pensa a sua roda de amigos.E essa punio pode ir da simples admoestao ao ostracismoou banimento.

    As funes bsicas da sociedade

    Enquanto filhotes de outros animais rapidamente se tornamindependentes, os filhos do Homo sapiens demoram muitosanos para poderem se defender e se alimentar sozinhos. Daque o relacionamento estvel da sociedade seja um requisitoindispensvel para a manuteno de nossa espcie.Para garantir sua sobrevivncia, as sociedades desenvolvem

    uma cultura prpria, isto , cada sistema cultural inclui meiosestabelecidos de prover alimento, abrigo, sade e de organizaras relaes sexuais, a educao cultural dos indivduos, a

  • economia, a tecnologia, o comrcio, o governo e as leis, aguerra e a defesa, o mundo significativo e as crenasreligiosas (E. Adamsom Hoebel e Everett L. Frost, p. 29).Os antroplogos identificam seis funes bsicas da

    sociedade: Manter o funcionamento biolgico dos membros do

    grupo. Reproduzir novos membros. Socializar os novos membros, transformando-os em

    adultos operantes. Produzir e distribuir bens e servios necessrios vida. Manter a ordem dentro do grupo, entre si e entre

    estranhos. Definir o significado da vida e manter a motivao,

    desempenhando atividades necessrias sobrevivncia.

    Componentes da cultura. Reais e ideais

    As culturas, como j vimos, so constitudas de normascomportamentais ou costumes. Na verdade, muitos de seuscostumes sofreram a influncia de outras culturas em virtudedas trocas entre os povos, tanto pelo comrcio entre elescomo pelas guerras ou pela proximidade. O viajante ecomerciante Marco Polo deixou Veneza, em 1271, e se dirigiu sia para estabelecer comrcio com outros povos. DaChina, ele trouxe, entre outras coisas, o macarro hojeidentificado como italiano.As culturas tambm no so estticas, paradas no tempo e

  • no espao; elas esto constantemente se modificando. Noincio do sculo XX, as famlias eram numerosas, com muitosfilhos. Com o advento da noo de que os pais devem provereducao a todos os filhos e de que est proibido o trabalhoinfantil, a manuteno de uma prole numerosa passou a exigirgrande soma de dinheiro, o que levou reduo do nmero denascimentos. Assim, igrejas que proibiam o controle danatalidade passaram a admiti-lo sob a justificativa dapaternidade responsvel, isto , o nmero de filhos deveestar de acordo com a capacidade dos pais em aliment-los eeduc-los.Os antroplogos identificam como cultura real o que os

    membros de uma sociedade fazem nas atividades do seu dia adia e como cultura ideal o que esses mesmos membrosexpressam verbalmente como um padro de comportamento.Uma boa ilustrao so os ditos na prtica, a teoria outraou faa o que eu digo, mas no faa o que eu fao. Osantroplogos sabem que h uma distncia entre o que se diz eo que se faz. Um exemplo o aborto, condenado pelasociedade brasileira mas amplamente praticado tanto nascamadas mais ricas como nas mais pobres da populao com a diferena de que as mulheres que tm dinheiro vo auma clnica clandestina, mas bem equipada, e as mulherespobres vo a clnicas precrias ou elas mesmas fazem uso decabide, ervas e, no raro, acabam morrendo. Pesquisa recentecom 14.320 ginecologistas-obstetras comprova que os quecondenam o aborto aceitam a prtica em casos excepcionais,

  • isto , quando sucede com a prpria mdica ou a parceira domdico (Anbal Fandes, Graciana Alves Duarte, JorgeAndalat Neto, Maria Helena de Sousa, nov./2004). Osautores da pesquisa comentam: A atitude dos mdicos mudaquando o dilema de uma gravidez no desejada os afetadiretamente.Pertencem cultura real, no Brasil, o jeitinho, a corrupo

    (rouba, mas faz), a impunidade (se o roubo for de umamargarina, certamente dar cadeia; se for de milhes,dificilmente), e o gnio (no preciso estudar, planejar e seesforar). A boa notcia a existncia de um movimentocrescente de cidadania que tem levado parcelas cada vezmaiores da populao a repudiar essas prticas na poltica,nos negcios e na famlia e a valorizar os que se empenham empreparar-se para assumir tarefas.

    A diversidade cultural brasileira

    Os Estados Unidos orgulham-se de ser um melting pot ,uma mistura de raas, de etnias. Para o antroplogoestadunidense Conrad Phillip Kottak, o Brasil temdemonstrado ser mais melting pot do que os Estados Unidosou o Canad, onde os grupos tnicos retm suassingularidades e identidades. O antroplogo recorda aprimeira vez em que foi a Porto Alegre, cidade que recebeuuma migrao massiva de poloneses, alemes e italianos.Kottak solicitou ento ao guia que lhe mostrasse os bairrostnicos como os que se veem nos Estados Unidos. Para sua

  • surpresa, o guia nem sequer entendeu a pergunta. exceoda regio da Liberdade em So Paulo, o bairro dosjaponeses, a ideia de um bairro tnico alheia ao Brasil(Conrad Phillip Kottak, p. 57). Segundo o antroplogo, oBrasil um pas que assimila mais e melhor minorias tnicas assimilao sendo aqui entendida como o processo em que aminoria adota os padres e normas da cultura que a recebe e incorporada de tal modo cultura dominante que deixa deexistir como uma unidade separada. Em bom portugus,somos um pas de mestios cuja cor verdadeira no branca,nem negra, nem mulata, nem amarela, mas o que delas todasreunidas resulta.

    Nossa diversidade cultural uma de nossas maioresriquezas, declarou Francisco Weffort, quando ministro dacultura. Desse melting pot sobressai a cultura europeia. Oprofessor Antonio Candido declara: Encaremos, porconseguinte com serenidade nosso vnculo placentrio com asculturas europeias, pois ele no uma opo, um fato quasenatural (Lucia Santaella, p. 49). Integram e enriquecem nossacultura, as culturas do povo que aqui chegou primeiro, osindgenas, assim como as do povo que aqui chegou agrilhoadoe escravo, os negros africanos. Contribuem em menor escalaas culturas asiticas, judias e rabes. Graas organizao domovimento negro, a riqueza e contribuio da cultura afro-brasileira valorizada hoje e alvo da ateno dos titulares daspastas de cultura do pas.Assim, no necessrio ser antroplogo para observar que

  • no quente Nordeste brasileiro uma das bebidas preferidas arefrescante gua de coco, enquanto no sul do pas toma-semuito o chimarro. A escolha das bebidas, comidas, trajes eoutros hbitos ocorre mais em funo do clima e de aspectosgeogrficos de cada regio do que pela raa. O Brasil, porsuas dimenses continentais, um pas de contrastes. Acultura do gacho com seu fogo de cho, churrasco e seumate diversa daqueles que se criaram nas agruras do sertoou junto s belezas naturais de nosso litoral.Embora a cana-de-acar tenha sido plantada inicialmente

    em So Vicente, no estado de So Paulo, foi no RecncavoBaiano e na Zona da Mata nordestina onde ela melhor sedesenvolveu, graas ao clima quente e mido, ao solo demassap, facilidade de transporte pelos rios que se dirigiamao oceano e presena da Mata Atlntica que forneciamadeira para fabricao de caixotes para transporte deacar, combustvel dos engenhos e madeira para asconstrues. Nos sculos XVI e XVII, o acar produzido alipassou a ser o produto de maior comrcio internacional e suaimportncia na poca se equipara do petrleo nos dias dehoje. No de admirar, pois, que banqueiros de Portugal eHolanda ali tenham investido to pesadamente que acabarampor transformar a cultura aucareira em monocultura, ou seja,a nica cultura, o que levou a regio a passar por crises desubsistncia por falta de lavouras bsicas para alimentar apopulao. A mo de obra foi garantida com o trabalhoescravo de negros da frica. Desse modo, a grande produo

  • aucareira gerou o latifndio, a monocultura e a escravido(Melhem Adas, p. 196).O caf, plantado inicialmente no sculo XVIII no Par,

    Maranho e Bahia, tornou-se a grande riqueza de So Paulono sculo XIX, graas ao solo mais apropriado para seuplantio. A cafeicultura nesse estado estimulou odesenvolvimento ferrovirio (para escoamento dos gros),influiu no aparelhamento do porto de Santos e estimulou ofluxo imigratrio de europeus provenientes da Itlia eAlemanha, principalmente, que substituram a mo de obraescrava a partir de 1880. Com a queda da importncia docaf como riqueza, a elite paulista passou a direcionar seusrecursos para a industrializao do estado.O cacau foi introduzido no sul da Bahia no sculo XIX e ali

    se desenvolveu. Foi essa cultura cacaueira a responsvel pelopovoamento da regio, aparecimento de cidades e de tipos dehabitao rural bem definidos. E porque seu cultivo exigepoucos trabalhadores, da a baixa densidade populacional. Ocacau elevou a cidade de Itabuna a centro comercial e Ilhus aporto para escoamento de cacau para o mercado externo,alm da construo de rodovias para escoar a produo(Melhem Adas, p. 200).Foi no Nordeste do perodo colonial que se desenvolveu

    melhor a pecuria bovina, devido ao relevo sem barreiras quefacilita o deslocamento do gado, a abundncia de pastagensnaturais, o sal-gema, importante para sua alimentao, o rioSo Francisco e o mercado consumidor de couros e carnes,

  • representado pelos engenhos. A partir dali se exportava ocouro, a carne-seca ou de sol (Melhem Adas, p. 206).

    O trabalho escravo que sustentou a economia brasileiraestendeu-se por sculos, desde o ciclo da cana-de-acar,nos sculos XVI e XVII, at o do caf, nos sculos XIX eXX.Pode-se depreender por essa breve exposio da

    agricultura e pecuria brasileira que o solo e os aspectosgeogrficos so fundamentais para a formao da populaolocal, seus costumes, riqueza, portanto, de sua cultura. Porexemplo, situam-se no Nordeste as principais festas folclricasbrasileiras ligadas ao ciclo do gado: remontam ao perodocolonial como o bumba meu boi, assim como sua culinria evestimenta em que o couro predomina. Pernambuco querecebeu numerosa populao africana como mo de obraescrava para o ciclo do acar tem no frevo sua dana tpicacuja origem provm dos capoeiristas que acompanhavam asbandas de msica e eram perseguidos pela polcia. Oscapoeristas passaram a disfarar os golpes da capoeira compassos estilizados, substituram suas armas e smbolos por umguarda-chuva que veio a ser substitudo por uma sombrinhaalegre e colorida. Nos estados do sul e sudeste festas deorigem europeia como a Oktoberfest ou a grande presena decantinas italianas ocorre devido s ondas imigratrias deitalianos e alemes, principalmente, que vieram a So Paulo,Paran e Santa Catarina para substituir a mo de obra escravalibertada pela Lei urea.

  • Da mesma forma, sabemos que no Brasil podemos usarmais e biqunis em nossas praias, enquanto nos pasesislmicos de regime teocrtico as mulheres devem usar umaverso radical do xador, a burqa ou burca, uma veste femininaque cobre todo o corpo, at o rosto e os olhos. E enquanto oadultrio da mulher, ou de qualquer um dos cnjuges, emnosso pas motivo legal de divrcio, nos pases rabes o quevale a lei islmica, a sharia, que prev como punio para amulher adltera que ela seja enterrada at o pescoo, ou atas axilas, e apedrejada at a morte.Convm recordar que o termo moral provm do latim mos,

    moris que significa uso, costume. Confirma-se, ento, quemoral e costumes so uma questo de latitude. Na verdade,uma questo de cultura.

  • 3. Cultura e poltica. Cruzamento ou

    confronto de culturas?

    A CULTURA NO INSTINTIVA, MAS ENSINADA DE UMAGERAO A OUTRA, DETERMINADA A GARANTIR APRESERVAO DE SUA CULTURA, COSTUMES,

    ORGANIZAES, CRENAS ETC., POIS H O TEMORDAS INOVAES E DAS INFLUNCIAS DE OUTRASCULTURAS. POR ISSO, NO DE ADMIRAR QUE OMULTICULTURALISMO E A DIVERSIDADE CULTURALSUSCITEM TANTOS DEBATES E LEVEM A REAES

    EXTREMADAS DE CONFRONTO.

    Vimos, anteriormente, que a sociedade precede a cultura.Ora, muitos animais tm uma vida social e at mesmo umaformidvel organizao social, como as formigas e as abelhas.A sociedade das formigas apresenta uma diviso bem

    delineada de trabalho entre zanges, operrias, soldados,machos, fmeas e rainha. Sua colnia provida de quarteiresativos, armazns para ovos, tudo muito bem ordenado. Asformigas se relacionam entre si por um conjunto integrado econstante de relacionamentos que so predeterminados emsua organizao gentica. Isto , pouco ou quase nenhum deseus comportamentos aprendido com formigas adultas.O zologo austraco e prmio Nobel Karl von Frisch

    estudou a comunicao entre as abelhas e descobriu que elasconseguem comunicar s outras abelhas da colnia a distncia

  • e a direo em que est o alimento, por meio de dois tipos demovimentos rtmicos ou danas: rodando e balanando. Eainda utilizam o sol como compasso. Para ele, as aes daabelha so governadas principalmente por instinto [...] padresinatos, impressos no sistema nervoso dos insetos (E.Adamson Hoebel e Everett L. Frost, p. 17).Monty Roberts que no antroplogo nem socilogo,

    mas um cowboy estadunidense muito perspicaz seguiu eobservou durante semanas, em 1948, as manadas selvagensde cavalos mustangues de Nevada, nos Estados Unidos.Nessa experincia ele notou uma comunicao entre oscavalos batizada por ele de lngua Equus que lhe permitiudomar potros selvagens sem a necessidade de chicote e maus-tratos. Percorreu o mundo apresentando e provando que seumtodo funciona com potros de todas as raas de qualquerpas. Eu mesma tive a oportunidade de test-lo em cavalos daraa manga-larga paulista. A lngua Equus no ensinadapelos cavalos adultos aos potros, mas est em sua gentica. um instinto.Enfim, a natureza da comunicao de animais e insetos

    diferente da dos seres humanos. Nenhuma abelha, formiga oucavalo adulto se dedica a ensinar sua comunicao; ela instintiva, est impressa em sua gentica.A linguagem humana de natureza diversa: comunica ideias,

    emoes e desejos por meio de um sistema de smboloscriados de modo voluntrio e no instintivo , segundo olingista alemo Edward Sapir. E a linguagem tem de ser

  • aprendida.Claude Lvi-Strauss estudou a funo simblica das

    pinturas faciais, visveis e artsticas dos ndios caduveus doBrasil. Segundo ele, as pinturas da face conferem aoindivduo sua dignidade como ser humano, ajudam-no atranspor as fronteiras da natureza para a cultura, e do animalsem razo para o homem civilizado (Claude Lvi-Strauss, p.176).A cultura de uma sociedade transmitida aos seus

    membros por um sistema de smbolos prprio dessasociedade. Ela no est impressa no cdigo gentico de seusmembros; deve ser ensinada por uma gerao e aprendidapela outra.

    Cultura: patrimnio e direito. Conservao e

    transformao

    A cultura , pois, prpria dos seres humanos; no instintiva, mas adquirida, aprendida e produzida apenaspelos seres humanos. Desse modo, todos tm direito cultura,assim como tm educao.O historiador brasileiro Jaime Pinsky enftico ao propor

    cultura como sendo o patrimnio que a humanidade acumulaa cada gerao. (...) Assim, uma questo de crena nopotencial humano defender o direito de todos terem contatocom obras fundamentais da cultura, produes do gniohumano (In Cultura, um direito de todos, Folha deS.Paulo, 8 nov. 2005).

  • Segundo o antroplogo Ralph Linton, as sociedades seperpetuam ensinando aos indivduos de cada gerao ospadres culturais referentes s posies que se espera queocupem na sociedade. Os novos recrutas da sociedadeaprendem como se comportar como maridos, chefes ouartesos e assim perpetuam essas posies e com elas osistema social como um todo . Desse modo, valores,costumes, organizaes, instituies, crenas, religies, artes,instrumentos, tecnologias etc. devem, ento, ser transmitidospor tradio de gerao a gerao e enriquecidos pelointercmbio com outras culturas e pelo prprio povo.H culturas mais conservadoras, isto , mais resistentes s

    mudanas. A luta pelo voto feminino no Ocidente, porexemplo, foi iniciada em 1848. As chamadas sufragistas,mulheres, mes e esposas, saram em passeatas, foram presase encarceradas em sua luta para obter o direito de voto. Essaluta demorou setenta anos no Ocidente e em alguns pasesrabes esse direito ainda negado s mulheres, como noKwait.Cada um de ns desempenha um papel duplo na sociedade,

    como observou Ralph Linton. Por um lado, se estivermos bemcondicionados e integrados na estrutura social, tanto maiorser nossa contribuio para o funcionamento uniforme daestrutura e mais certa a recompensa. Por outro lado, associedades funcionam num mundo em perptua mudana, eporque ns seres humanos temos uma capacidade fabulosa deadaptao podemos desempenhar um segundo papel na

  • sociedade, que o de transform-la. Nas palavras de Linton,a aptido sem paralelos de nossa espcie para o ajustamentoa condies em mudana e o desenvolvimento de reaescada vez mais eficazes a situaes comuns, se fundamenta noindivduo que sobrevive em cada um de ns, apesar dainfluncia decisiva da sociedade e da cultura (FernandoHenrique Cardoso e Octavio Ianni, p. 100). Como umasimples unidade do organismo social, cada um de nsperpetua o status quo de nossa sociedade, e, por outro lado,tambm pode ajudar a transform-la.Um exemplo desse papel duplo o dos principais

    protagonistas da Inconfidncia Mineira: os poetas Jos deAlvarenga Peixoto, Cludio Manoel da Costa, Toms AntonioGonzaga. Alm de cultivarem a poesia, tinham em comum ofato de serem ricos, possurem lavras de onde se extraam asriquezas das Minas Gerais. Quando a derrama se instala,passam do poema rebeldia, de poetas a insurgentes, atramar a independncia. O que levou Inconfidncia foi ocombustvel de sempre: a alta dos impostos. Alm dainformao de movimentos e ideais revolucionrios em outrasregies do mundo, as revolues francesa e americana.Outro exemplo o dos protagonistas da Semana de Arte

    Moderna de 1922, em So Paulo, na qual diversos artistasdecidiram apresentar no Teatro Municipal de So Paulo suasideias de vanguarda, com temas nacionais e esttica moderna.Eram jovens artistas que freqentavam, em sua maioria, afamosa Villa Kyrial, como era chamada a residncia do

  • senador poeta Freitas Valle, homem de viso que apoiava asartes e obtinha bolsas de estudos para que pudessem seaperfeioar na Europa, como a pianista Guiomar Novaes, omaestro Souza Lima e a pintora Anita Malfatti. Ali, muitosdeles podiam discutir suas ideias, ler em pblico suas poesias esubmeter sua arte a uma crtica exigente. Enfim, Freitas Valleao receber em sua casa esses jovens artistas, apoi-los eincentiv-los cumpria um papel que deveria ser do Estado.

    A Semana de 22 aconteceu com o apoio do maranhenseGraa Aranha, acadmico de prestgio, e da elite paulistana,que na ausncia de rgos oficiais atuantes no setor vinha,desde o sculo precedente, assumindo a tarefa de incrementareventos artsticos e culturais, [e] no s consentiu como atajudou a financiar o evento por meio de gordas contribuies(Marcia Camargos, p. 184). Durante a Semana, osmodernistas foram vaiados pelo pblico habituado arteacadmica europeizada. Mas, embora criticados, nodeixaram de seguir seu caminho de vanguardistas. Uma notadestoante foi Anita Malfatti, a incompreendida criadora doHomem amarelo, que no resistiu presso das crticas e daprpria famlia e acabou por abandonar a trilha vanguardista,como atesta uma carta sua de 1925 descrevendo uma de suasobras de tema e estilo que nem de longe esbarravam emqualquer tipo de vanguardismo (Marcia Camargos, p. 176).A Semana de Arte acabou por deslocar o eixo literrionacional para So Paulo e despertou uma nova mentalidadeque, entre outras coisas, levou criao da Universidade de

  • So Paulo em 1934.O Teatro Amazonas, em Manaus, inaugurado em 1896 e

    hoje tombado como monumento nacional foi construdo porinspirao e empenho da elite manauense no ciclo da borrachae ali recebeu nomes internacionais do canto e da dana.Outro exemplo de papel duplo transformador o de Lus

    Arrobas Martins. Nomeado secretrio da fazenda do estadode So Paulo (1967-1970) pelo governador Abreu Sodr, eleno se limitou a administrar sua pasta e chefiar importantemodernizao administrativa. Homem culto e amante dasartes, inspirou o governador a criar a primeira secretaria dacultura do pas. Alm disso, idealizou e criou os museus deArte Sacra, da Casa Brasileira e da Imagem e do Som (MIS)e o do Palcio da Boa Vista em Campos do Jordo. Foitambm o idealizador e o criador do Festival de Inverno deCampos do Jordo, o maior e o melhor do gnero na AmricaLatina. Com uma resoluo publicada no Dirio Oficial de 27de abril de 1970, Arrobas Martins criou a comissoorganizadora dos Concertos de Inverno de Campos doJordo, com programas de msica de cmera, de msicasinfnica e de canto, indicando o maestro Camargo Guarnieripara coordenar os trabalhos.[2]Mais um exemplo de papel duplo transformador o de

    Marcos Mendona na rea cultural. Foi o autor da primeira leide incentivos fiscais ao setor a chamada Lei Mendona que renovou a vida cultural em So Paulo e deu origem adezenas de leis semelhantes em outros estados, alm de servir

  • de modelo na rea federal para a Lei Rouanet. Comosecretrio da cultura, respondeu pela reforma e inauguraoda Pinacoteca do Estado, pela restaurao do antigo TheatroSo Pedro, pela inaugurao do Pavilho das Artes Manoelda Nbrega, no Ibirapuera, pela implantao do Memorial doImigrante, a reestruturao da Orquestra Sinfnica do Estadode So Paulo (Osesp) sob o comando do exigente maestrocarioca John Neschling (graas a ele considerada hoje amelhor da Amrica Latina), e o complexo cultural JlioPrestes, onde funciona a mais importante sala de concertos dopas a Sala So Paulo.Um ltimo exemplo de papel duplo de transformador o de

    Claudia Costin na administrao pblica e, principalmente, nocomando da cultura do estado de So Paulo (2003-2005).Em sua gesto, o Festival de Inverno de Campos do Jordoretornou proposta original, concentrado em msica clssicade qualidade, com nfase muito maior em formao demsicos. Entre outras realizaes suas, contam-se a reaberturado Museu de Imagem e do Som, a criao e implantao doAteli Amarelo, projeto de residncia para dez artistas visuaispor ano, sob a curadoria da artista plstica Maria Bonomi, quese comprometem a registrar poeticamente o centro da cidadede So Paulo em seu trabalho. No campo da msica, ClaudiaCostin ampliou os concertos da Sala So Paulo, oferecendoconcertos didticos e ensaios abertos a professores e alunosda rede pblica atravs de programas educacionais paraprofessores e escolas que visam oferecer acesso a variadas

  • vivncias culturais, enriquecendo os participantes comoindivduos conscientes de seu papel como agentestransformadores da sociedade em que atuam. Sob seucomando, a Orquestra Sinfnica do Estado de So Pauloganhou status jurdico que lhe permite melhor gesto, e asorquestras Jazz Sinfnica e Banda Sinfnica ganharamadministrao profissionalizada, sede e programa deassinaturas. O projeto Guri passou a contar com 185pequenas orquestras e cameratas envolvendo 25 mil jovens naFebem e em reas de risco social de todo o estado de SoPaulo.O Rio de Janeiro dedica 3% do oramento cultura,

    conforme preconiza a Unesco, com uma poltica pblica quevisa a promover a transformao social atravs da cultura,com projetos direcionados para a incluso social e aintegrao fsica e espacial da cidade e direcionam um grandevolume de projetos para as comunidades de baixo IDH(ndice de Desenvolvimento Humano), justamente as que maissofrem com a falta de equipamentos culturais. Ali, a reacultural acertadamente se denomina a Secretaria das Culturas(SMC) e dispe, em vrios pontos do Rio, de mais de 80equipamentos que atuam como polos de difuso de cultura.So bibliotecas, teatros (a maior rede da Amrica Latina),centros culturais, museus, clulas culturais e as BibliotecasVolantes, que percorrem o municpio emprestando livros e seresumem a uma Kombi, um toldo, uma mesa e quatrocadeiras, portanto com muito pouco pode-se fazer muito em

  • propiciar acesso cultura. Numa demonstrao de visoampla da importncia e legitimidade das diferentesmanifestaes de cultura, a SMC tanto apoia a tradicionalOrquestra Sinfnica Brasileira do Rio de Janeiro como aONG Jongo da Serrinha, que se dedica a preservar e divulgaro patrimnio cultural afro-brasileiro e desenvolver um trabalhode educao e de capacitao profissional junto a crianas ejovens que sofrem com a violncia e o subemprego.

    Cultura, arte e poltica. A via de mo dupla da incluso

    social

    Viver muito perigoso... j dizia Joo Guimares Rosaem Grande Serto: Veredas , pois a sociedade dispe deinmeros estratagemas para assegurar a perpetuao dostatus quo e punir severamente os que dele se desviam,mesmo quando no tenham transgredido a lei. H umarejeio pelo simples fato de que essas pessoas no seencaixam nos padres estabelecidos. Um exemplo a prticado bullying nas escolas. O bullying (expresso de origemestadunidense) o constrangimento que grupos deadolescentes impem a quem no se conforma com ospadres vigentes, seja porque pertence a uma das chamadasminorias (pela raa, religio, orientao sexual), seja porqueapresenta algum tipo de deficincia fsica ou mental. Enfim, asociedade costuma penalizar os que fogem aos padresestabelecidos e premia pelo reconhecimento e popularidade

  • os que seguem suas regras.Num cenrio mais amplo do que o da escola ou de uma

    agremiao esportiva cujos torcedores espancam pessoas quepertencem a times adversrios, pode-se constatar a existnciade uma espcie de bullying quando o Estado persegue ooutro (aquele que no pertence sua etnia e costumes). ParaEdward W. Said, o mais importante intelectual palestino denosso tempo, cada cultura define seus inimigos, o que existepara alm de seu espao e que a ameaa. Para os gregos, acomear por Herdoto, quem no falasse grego eraautomaticamente um brbaro, um outro que deveria sermenosprezado e combatido. [3] E acrescenta: a chamadacultura oficial aquela dos padres, dos acadmicos e doEstado. essa cultura que estabelece uma definio do que patriotismo, lealdade, fronteiras e o que Said chama delappartenance, o pertencer a , fazer parte de . essacultura que fala em nome de todo o conjunto, que tentaexprimir a vontade geral, as ideias e tica gerais, que detm opassado oficial, os pais e os textos fundadores, o panteo dosheris e dos traidores e purga o passado do que estrangeiro,diferente ou indesejvel. Dela vem a definio do que deve ouno ser dito, dos interditos e das necessrias proscries detoda cultura que se queira autoridade. margem da cultura oficial h outras, discriminadas,

    marginalizadas e dissidentes ou diferentes, no ortodoxas, quese opem oficial: so as dos pobres, dos imigrantes, dasminorias sociais, tnicas, sexuais, dos rebeldes e dos artistas.

  • No existe uma homogeneidade completa entre cultura eidentidade. E no h como negligenciar, como recorda Said, oque fecundo e vital dentro de cada cultura que essaagitao, essa dialtica e tenso constante entre a culturaoficial e a contracultura. Da a importncia do Estado, viasecretarias da cultura, de criar oficinas culturais e incentivardiferentes manifestaes culturais, pois ao apoiar um grupocomo, por exemplo, o Grupo Cultural Jongo da Serrinha, oEstado legitima o patrimnio cultural afro-brasileiro epossibilita que brasileiros que no pertenam a essa culturatenham contato com ela, aprendam a apreci-la e a respeit-la. Assim se d o acesso, se constri a via de mo dupla daincluso social. No somente disponibilizando o acesso dopovo a equipamentos como, por exemplo, a OrquestraSinfnica Brasileira, no Rio de Janeiro, mas divulgando entretoda a populao as manifestaes culturais prprias degrupos populares. A se faz no somente a incluso, mas,principalmente, a integrao social.A arte ou seja, as manifestaes artsticas de uma cultura

    sempre esteve intimamente relacionada poltica,principalmente no passado. E durante sculos, a religiofuncionou nas sociedades como um meio de controle social;por isso, no deve ser motivo de surpresa que a religio e suasinstituies reforcem o status quo social. Marilena Chaudeclara que entre os oficiantes dos cultos, dirigentes deigrejas e de seitas e dominantes polticos se estabelece, faceaos fiis e aos dominados, um tipo de relao que torna quase

  • impossvel discriminar a contemplao religiosa do poder e ainstaurao da autoridade poltica (Marilena Chau, p. 81).No passado, para fortalecer esse controle, a classe dominanteatrelava as habilidades dos artistas s imposies religiosas deobedincia e de santificao do status quo.A arte eclesistica geralmente interpreta o mundo em

    conformidade com a ideologia dominante, justificandoinjustias e explorao. Como revela Marvin Harris, a artetransforma deuses em dolos visveis. Basta recordar otamanho monumental das pirmides, construdas sobre osombros de escravos, muitos deles do povo judeu; asprocisses, a pompa e os magnficos ritos sob o comando desacerdotes instalados em cenrios espetaculares como altaresdourados, templos cujas colunas se erguem aos cus e cujasaltssimas janelas filtram a luz celestial.A Igreja e o Estado foram os maiores patronos da arte at

    poucos sculos atrs. Inmeros e valiosos documentos antigoschegaram at ns graas aos monges copistas da IgrejaCatlica.Com o advento do capitalismo, as instituies civis e

    eclesisticas se descentralizaram e indivduos com possespassaram a patronos da arte, promovendo maior flexibilidadee liberdade de expresso. Assim, a arte passou, no Ocidente,a ter um carter mais individual e laico e a promover a artepela arte.Governos totalitrios, autoritrios, sejam de Estado ou de

    cunho religioso de esquerda ou de direita costumam se

  • ocupar do cerceamento de manifestaes artsticas pelo riscoinerente a toda obra de arte: a afirmao de postuladosdiversos daqueles que o regime pretende imporhomogeneamente sobre todo o povo, seja ele o de uma naoou de uma crena religiosa.At mesmo pases democrticos podem apresentar

    censuras de carter no oficial, mas entranhadas em seuscostumes: em Israel, no executada a msica de RichardWagner ( exceo das apresentaes de Zubin Mehta eDaniel Barenboim, quando parte do pblico se retirou da salade concertos), por conta do anti-semitismo do compositoralemo que influenciou a concepo de cultura dos nazistas eseu dio aos judeus.A Igreja Catlica contava com seu Index Librorum

    Proibitorum de obras proibidas at o final de 1965, em quefiguravam, entre outros, os brasileiros Monteiro Lobato eMachado de Assis.Outra forma de cerceamento de artista para no

    mencionar outras profisses a de gnero. At meados dosculo XX, na cultura ocidental, o ideal de mulher eradisciplinado por cdigos culturais que exigiam delas uma bocafechada (silncio), um corpo fechado (castidade) e uma vidaencerrada (confinamento domstico). [4] Mulheres nodeveriam se dedicar a qualquer outra coisa que no fossem osfilhos e o lar, algo muito prximo dos trs K definidos como afuno da mulher na sociedade alem do sculo XIX peloKaiser Wilheim II e depois adotados pelos nazistas: Kirche,

  • Kueche, Kinder, igreja, cozinha e crianas.Embora se exigisse que as mulheres fossem prendadas,

    isto , soubessem pintar, cantar, cozer e tocar, a criaoartstica lhes era interditada. Escritoras diversas foramobrigadas a adotar pseudnimos masculinos para se verempublicadas. Um exemplo famoso o de Amandine AuroreLucie Dupin, ou George Sand. Nas artes plsticas, a francesaCamille Claudel viveu grandes dificuldades para aprender oofcio de escultora, pois a Escola de Belas Artes no aceitavamulheres. Por ser independente, Camille acabou abandonadapor todos e pela prpria famlia e veio a falecer num hospitalpsiquitrico. Tambm ser compositora no era bem visto, e asmulheres eram proibidas por suas famlias e sociedade decompor ou se apresentar como profissionais da composio. o caso da brasileira Chiquinha Gonzaga, que precisouseparar-se do marido e lutar muito para ser respeitada comocompositora; de Clara Wieck Schumann, pianistatalentosssima e compositora; de Alma Mahler, esposa dofamoso e sensvel compositor Gustav Mahler, que a obrigou aassinar um contrato pelo qual renunciava a qualquer iniciativade compor; de Fanny Mendelssohn-Hensel, irm de FlixMendelssohn, o famoso compositor da Marcha Nupcial.Talentosa, comps mais de duas centenas de peas, esomente no final da vida recebeu a permisso de seu pai e deseu irmo para apresentar-se publicamente. Emborareconhecesse a qualidade da msica de Fanny, Flix no sno apoiava a irm como compositora como incluiu trs de

  • suas canes em seu Opus 8 publicado em 1827 e mais tardeincluiu outras trs canes dela em seu Opus 9, sem jamaismencionar o nome da irm em qualquer um desses trabalhos.Quem tiver a oportunidade de ouvir as composies dessasmulheres, h de conferir a beleza e a qualidade da msicacomposta por elas.H que se registrar tambm o interesse de pases em

    conquistar outros povos para sua prpria cultura e hegemonia.Um bom exemplo a Voz da Amrica, rdio de alcanceinternacional fundada em 1942 pelos Estados Unidos e hojecom site na internet. Desde esse tempo, os Estados Unidosvm conquistando com sucesso o cotidiano de europeus,latino-americanos, africanos e asiticos com suas msicas,filmes e literatura. No raro toparmos com gente cujo olhar esensibilidade esto educados to completamente que tmdificuldade em assistir a filmes que no sigam a esttica deHollywood, ouvir msicas que no estejam no hit paradeestadunidense e ler livros que no sejam os best sellers daterra do Tio Sam.Em termos polticos, a arte um cavalo de Troia, os povos

    se encantam com sua beleza e acabam engolidos pelaideologia e cultura que ali vem embutida. Assim sucedeu comRoma, que havia conquistado a Grcia e acabou cativa dacultura dos conquistados. O resultado do encontro dessasduas culturas (a grega e a romana) leva o nome de culturaocidental. Acrescentando-se a cultura crist s duas primeiras,temos o que se convencionou chamar de civilizao crist-

  • ocidental.No de admirar, portanto, que Estados totalitrios se

    ocupem em estimular a produo de obras que atendam aosditames de sua esttica e de seus postulados ao mesmo tempoem que censuram o que lhes parece nocivo. So verdadeiraspolticas culturais de Estado que amordaam artistas eentorpecem sensibilidade e conscincias. Como j declarouClaudia Costin, uma das manifestaes de governostotalitrios negar o acesso a produtos da cultura. suprimiruma voz. Fica-se apenas com a voz do Estado (In Folha deS. Paulo, 23 fev. 2003).

    No Brasil da ditadura, foram incentivadas msicas comoEu te amo, meu Brasil ou filmes como Independncia oumorte, comemorativo dos 150 anos de nossa independncia.A Unio Sovitica promoveu a esttica do realismo

    socialista, imposta como estilo artstico oficial de Estado entre1930 e 1960, com efeitos danosos para a arte e artistas.Seguindo a linha stalinista, persiste ainda hoje uma visosimplificadora e maniquesta de cultura. Segunda esta [viso],tudo que no seja produzido para o povo, na linguagem dopovo, burgus e elitista. (...) Da que, segundo a visomaniquesta, qualquer produto cientfico e artstico, quandono se encaixa na estipulada categoria de para o povo,passa imediatamente para a categoria de burgus, alienado eopressor (Lucia Santaella, p. 40). O resultado disso opresso, falta de liberdade. E liberdade a matria-primapara a confeco de qualquer obra de arte. Se viver

  • perigoso, fazer arte pode ser fatal. Que o diga o escritorindiano Salman Rushdie, condenado morte desde 1989 pelolder espiritual iraniano Khomeini, aps a publicao deVersos satnicos .H casos tambm em que se prope uma esttica para

    estimular uma arte de cunho nacionalista. o caso de Mriode Andrade, segundo a musicloga e produtora musicalCynthia Gusmo. Mrio elaborou uma cartilha de como fazermsica brasileira e deu diretrizes para a composio do queele entendia por msica erudita brasileira. Nacionalistas antesde Mrio de Andrade j o eram Alexandre Levy e AlbertoNepomuceno.H que apontar tambm a existncia da arte comprometida

    com uma ideologia ou movimento. a esse tipo de arte, aengajada, a que se refere o francs Andr Malraux: No apaixo que destri a obra de arte, mas a vontade de provar.Tais palavras vindas de quem vm so extraordinrias, poisAndr Malraux, alm de novelista brilhante, foi escritorengajado, intelectual revolucionrio, pr-marxismo,antifascista, anticolonialista, viveu uma vida tumultuada,aventurosa, combateu na Guerra Espanhola contra as forasfranquistas e foi membro da Resistncia na Segunda GuerraMundial. Para ele, a arte a suprema expresso dacriatividade humana que habilita a humanidade a transcender oabsurdo de sua prpria insignificncia.Efetivamente, o tempo o melhor crtico de arte se

    encarrega de deletar obras engajadas. Obras de arte no

  • deveriam ser usadas para provar o que quer que seja, emboradescortinem, revelem e denunciem muitas coisas. A obra dearte engajada deixa de ser obra de arte e se reduz a umpanfleto, perde seu carter universal porque panfletos somatria datada e to envolvidos com outros objetivos queperdem seu carter de arte; no h espao para o prazeresttico, para a apreciao do belo. Em geral, so obras queespumam de raiva e, passado o motivo, no comovemningum mais. verdade que, no raro e de modo sutil, o artista aproveita

    para se desforrar de algum desafeto. o caso de DanteAlighieri, que ps no Inferno de sua Divina Comdia vrios deseus inimigos, assim como no poucos pintores os colocaramnas pontas do tridente do demnio.Em sntese, pode-se dizer que existe:

    a arte produzida para servir ao Estado; a arte que serve a uma ideologia ou movimento; e a arte que no serve para nada. a arte pela arte, a

    melhor de todas. No est datada, no se torna anacrnica epode se tornar universal, capaz de emocionar a todas asgentes.

    Globalizao. Diversidade cultural e multiculturalismo

    A questo da diversidade cultural no se reduz a umaquesto de gosto ou preferncia, como se eu dissesse quegosto de feijoada e o outro de tabule, que aprecio vatap e o

  • outro, hambrguer ou sashimi. O problema no de gosto ouconflito de preferncias. A questo de identidade, depercorrer as ruas de sua cidade e perceber de repente queest tomada por publicidade em ingls, como foi o caso emQuebec, ou espanhol, hoje em dia, em Nova York ou Texas.Ou quando voc topa com mulheres cobertas de xadorandando pelas ruas de sua cidade. Como declara documentoda Unesco, a cultura o fundamento da identidade. E h quemse revolte quando v sua vizinhana tomada por uma culturacom a qual no se identifica nem reconhece como sua.

    Anteriormente, as culturas permaneciam isoladas eprotegidas pela geografia, apenas entrando em contato noraro em conflito em caso de guerras de conquista. Emvirtude da intensa globalizao que hoje vivemos, diversidadecultural e multiculturalismo tornaram-se assunto de nosso dia adia. Vive-se a aspirao da harmonia e da paz mundial, mas arealidade que a competio comercial e os equvocos depolticas externas entre as naes acirram o choque de culturase levam ao conflito violento.O processo de globalizao no de hoje, remonta s

    conquistas de Alexandre o Grande, s do imprio romano,seguidas pelas rotas das caravelas na descoberta dasAmricas e pelas conquistas europeias na frica e na sia. Ehoje se assiste onda tsunmica de cultura estadunidense.(Embora haja uma adoo generalizada do termo norte-americano identificado com os Estados Unidos que seautodenominam american como se no houvesse no

  • continente americano outro povo seno o deles , prefiroadotar o termo estadunidense, j que na Amrica do Nortetambm se encontram o Canad, o Mxico, a Groenlndia eas Bermudas.)

    No entanto, ainda que o processo de globalizao no sejarecente, foi a partir da ltima metade do sculo XX quepassamos a viver uma globalizao intensa.Globalizao a acelerao de elos entre naes e povos

    num sistema mundial conectado econmica e politicamente porpoderosos meios de comunicao e transporte. Segundo oantroplogo estadunidense Conrad Phillip Kottak, aglobalizao promove a comunicao intercultural, incluindoviagens e migrao, que colocam em contato direto pessoasde diferentes culturas (Conrad Phillip Kottak, p. 360). Ecomo lamenta Lvi-Strauss, em Tristes trpicos , o paradoxo insolvel, pois quanto menos uma cultura se comunica comoutra, menor a probabilidade de se corromperem mutuamente;mas, por outro lado, menor a probabilidade, nessascircunstncias, de os integrantes dessas culturas perceberem ariqueza e a importncia de sua diversidade.Por volta de 200 a.C., Cornlio Scipio, o Africano,

    general que derrotou o cartagins Hanbal e conquistou paraRoma praticamente todo o mundo conhecido da poca,escandalizava a opinio pblica romana tradicionalista ao usarroupas gregas e exibir seu interesse pela arte e culturahelnica. Foi sua famlia o sobrinho neto Cornlio Scipio, oNumantino, e sua filha Cornlia, me dos Gracos, famosa pelo

  • cuidado que tinha pela educao de seus filhos (contratoupedagogos e filsofos gregos para a formao das crianas),admirada por Ccero pela qualidade de seu estilo literrio, esegundo alguns estudiosos a inspiradora da reforma agrriaproposta pelos filhos que levou Roma Republicana toda abeleza da Grcia: sua arte, como o teatro, a poesia, suafilosofia e costumes: banhos dirios, atividade esportiva nosginsios etc. Apesar da resistncia inicial, a cultura gregaconquistou Roma e por meio dela ganhou o mundo epermanece viva at os dias de hoje.

    Em realidade, ao adotar costumes e cultura, Roma adotouideias e valores gregos. Nosso sistema poltico, a democracia,nossa filosofia e nosso teatro vm de l. Nossa religio acrist foi claramente influenciada por ideias gregas, j queparte do Novo Testamento foi escrito nessa lngua, e a maioriados padres e doutores da Igreja usou ferramentasintelectuais gregas para construir os pilares da religio.

    Assim, do cruzamento de culturas resulta grande riqueza,embora tambm se d certa corrupo de cada uma dessasculturas, como alertou Lvi-Strauss.Diversidade cultural e multiculturalismo tornaram-se,

    nos dias de hoje, termos correntes.Diversidade cultural se d quando culturas diversas

    convivem entre si. Pressupe o respeito a um princpio bsicode Direitos Humanos: a liberdade do outro de participar dacultura de sua escolha. Quando a diversidade cultural vistacomo algo bom e desejvel, temos o multiculturalismo.

  • O multiculturalismo encoraja a prtica das tradies tnico-culturais e busca formas de as pessoas se entenderem einteragirem no porque tm as mesmas razes, mas porquerespeitam suas diferenas.

    No Brasil, o que temos mais uma assimilao dasdiferentes etnias (imigrantes europeus aqui chegados em finaldo sculo XIX, ndios, africanos e portugueses) do que ummovimento multicultural, pois embora haja diferenas culturaisentre as diversas regies brasileiras, comparado a outrasnaes, verifica-se que houve em nosso pas uma assimilaodas etnias. comum entre os brasileiros perguntar qual aorigem da pessoa. Num ambiente multicultural, a pergunta dispensvel, pois os grupos mantm claramente suasdistines. Um exemplo: a Espanha com etnias basca, catal egalega, cada qual com seu prprio idioma, ou os EstadosUnidos com populaes grandes de mexicanos, porto-riquenhos e outras etnias que mantm lngua e costumesacentuadamente diferentes. Nos primeiros tempos dacolonizao de So Paulo, o cacique Tibiri e o portugusJoo Ramalho souberam superar suas diferenas. JooRamalho casou-se com Bartira, filha de Tibiri, e juntosestabeleceram uma aliana que permitiu a paz na regio. Estohoje sepultados na cripta da Catedral da S.

    Confronto de culturas

    No intuito de preservar a cultura francesa no Canad, pasoficialmente bilnge mas predominantemente anglfono (que

  • fala ingls), a provncia canadense de Quebc (colonizadapelos franceses) aprovou anos atrs uma lei que probeestabelecimentos comerciais de anunciar suas ofertas emingls. A maior parte da populao de l francfona (quefala francs). Alm disso, o governo dessa provncia vemtomando medidas para incentivar as famlias a ter o maiornmero de filhos a fim de garantir a sobrevivncia da culturafrancesa. J o Texas reconheceu oficialmente o espanhol comosua segunda lngua.Receosa de uma islamizao de sua cultura, a Frana

    proibiu o uso de smbolos religiosos nas escolas pblicas como objetivo de banir o uso do vu ou xador pelas meninasmuulmanas, ao menos nas dependncias do ensino pblico.No entanto, crianas do imprio colonial francs aprenderam ahistria, a lngua e a cultura francesa a partir de livros didticosproduzidos na Frana. Crianas do Taiti, Malsia, Vietn eSenegal aprenderam o francs recitando nossos ancestrais, osgauleses... A Frana e outros pases europeus, hoje no maisimprios, reclamam da onda de imigrantes. Esquecem-se deque essa invaso resultado direto de um passado deconquistas e de uma poltica colonial de espoliao.

    No incio de 2006, um brasileiro foi espancado na Austrlianuma atitude xenfoba (de averso a pessoas e coisasestrangeiras). O jovem brasileiro se negara a dar um cigarro aum jovem australiano. Foi o bastante para que este avisasse aoutros que ali havia um brazilian. O brasileiro foi parar nohospital com o maxilar fraturado entre outros graves

  • ferimentos.Nos ltimos dias de 2005, os jornais noticiaram que o

    presidente do Ir havia proibido a execuo de msicaocidental nas rdios e TVs do pas, retomando um dos maisseveros ditos culturais adotados nos dias iniciais da revoluoislmica que tomou o poder em 1979. A fiscalizao decontedo nos filmes, sries de TV e dublagens deve serenfatizada, a fim de apoiar o cinema espiritual e eliminar cenasgrotescas e violentas, ordenava, alm de proibir filmesestrangeiros que promovam potncias arrogantes em alusoaos Estados Unidos (In Folha de S.Paulo, 21/ dez. 2005).

    Nos anos 50 do sculo XX, o senador McCarthy lanouuma perseguio cruel contra artistas, escritores e intelectuaisconsiderados comunistas ou simpatizantes do marxismo.Atores, roteiristas e tcnicos de Hollywood como LaurenBacall e Humphrey Bogart foram perseguidos. Osconvocados a depor eram pressionados a delatar, e os que serecusassem eram tidos como antiamericanos. Ser delatadosignificava automaticamente entrar para as listas negras, oque, por sua vez, implicava desemprego, clandestinidade eexlio. Como no havia perspectiva de sair das listas, muitoseram levados ao desespero e, em casos extremos, ao suicdio.

    No de hoje que naes procuram evitar o contgio dasculturas ou o vrus cultural exportado de um povo para outro.No entanto, o mundo vive atualmente um momento deradicalizao, resultado de polticas europeias eestadunidenses em regies diversas do globo como Palestina,

  • Israel, mundo islmico etc. O ataque ao World Trade Centerem 11 de setembro de 2001 o Nine Eleven como dizem osnova-iorquinos (que por ironia o nmero do telefone deemergncia daquele pas) foi uma ao contra a polticaexterna estadunidense nos pases islmicos, principalmente naquesto Palestina X Israel. A partir desse ataque terrorista ede outros em regies diversas do mundo, atribudos ao grupode Osama Bin Laden e da Al-Qaeda, iniciou-se no mundoocidental uma onda de temor e demonizao dos muulmanos,que levou, no final de 2005, a charges num pequeno jornaldinamarqus que apresentava o profeta Maom com umturbante em forma de bomba enquanto em outro ele diz, numanuvem, que o paraso estava ficando sem virgens para oshomens-bomba, em clara aluso ao terrorismo islmico. Omundo rabe revoltou-se contra as charges, indignado com airreverncia, pois a tradio islmica probe a representaode Maom ou de Al (Deus). Em diversos pases foramqueimadas bandeiras dinamarquesas, fechadas suasembaixadas e seus cidados retirados s pressas. Para muitos,a questo das charges ultrapassou os limites da Dinamarca ese tornou uma disputa entre a liberdade de imprensa ocidentale os tabus islmicos.Portanto, quando o presidente do Ir probe a transmisso

    de msica ocidental nas rdios e TVs, ou Stlin proibia o jazze a msica de vanguarda ou Mao Ts-tung condenava amsica burguesa, e McCarthy perseguia artistas com receio deque inoculassem em seus filmes e obras o vrus antiamericano,

  • nada mais faziam do que resistir s ideias e valores que nelasvinham ali imbudos, como um efeito colateral pernicioso.Como j disse anteriormente, a cultura um cavalo de

    Troia, pois traz encerrada dentro de si muitas outras coisasque no so visveis num primeiro momento.

    No so poucos os que reclamam da invaso culturalestadunidense. Em A invaso cultural norte-americana ,Jlia Falivene Alves denuncia a amplitude e as conseqnciasdessa invaso em nosso pas. Segundo a autora, mais do que aqualidade da cultura importada, o que se questiona oexclusivismo ou a hegemonia dos modelos norte-americanos esua adoo sumria pela nossa populao, sem que se adoteuma postura crtica ou haja um processo de reelaborao(Jlia Falivene Alves, p. 9). At o incio do sculo XX,vivamos no Brasil sob a influncia inglesa e, principalmente,francesa com a mesma ausncia de senso crtico. As famliasabastadas passavam vrios meses por ano na Europa e, paraseguir a moda de alm-mar, acabavam por usar aqui roupaseuropeias totalmente inadequadas ao nosso clima. Tempohouve em que filhos de famlias abastadas de nosso pasdeviam estudar em colgios franceses, e a literatura que noschegava era a de clssicos daqueles pases, como AlexandreDumas, Jlio Verne, Maupassant, Charles Dickens, JaneAustin, Charlotte Bront, para citar uns poucos.Lamentavelmente, o Brasil no repete na balana cultural o

    que se v h dcadas na balana comercial, que sempre pendepara a exportao. Nossa balana cultural de exportao

  • registra alguns poucos nomes, entre eles Carlos Gomes, Villa-Lobos e Tom Jobim na msica; Guiomar Novaes, Bidu Sayo,Nelson Freire e Cristina Ortiz, intrpretes; Carmen Miranda,Sonia Braga, Bruno Barreto, Fernando Meirelles, WalterSalles, no cinema; Jorge Amado e Paulo Coelho na literatura;nas artes plsticas Tarsila do Amaral, Portinari. Dois nomesmenos conhecidos no Brasil, porque residentes no exterior,so a bailarina Mrcia Hayde e o artista plstico Arthur LuizPiza, que tem obras suas em museus como o Guggenheim e ode Arte Moderna de Nova York, no Centro GeorgesPompidou e na Biblioteca Nacional, em Paris, e no Victoriaand Albert Museum de Londres.Durante a poca da ditadura, o pas viveu de certa forma

    fechado para a economia mundial e outras influncias. Eramuito difcil importar livros e revistas, tal o peso dos impostosde importao e as barreiras que o governo impunha. Viajarpara fora era um luxo ao qual pouqussimos tinham acesso.Com o advento do governo Collor no incio de 1990,finalmente aconteceu a to desejada abertura econmica. Ascarroas (assim chamados os carros nacionais) receberam ochoque da competio de carros importados de maiorqualidade mecnica e conforto, obrigando as montadoras aquiinstaladas a melhorarem o padro dos produtos que ofereciamaos brasileiros. E no foi somente a indstria automobilsticaque precisou melhorar a qualidade, mas a indstria brasileirade modo geral. Tambm a importao de livros e revistas foiescancarada, e se permitiu ao brasileiro portar cartes de

  • crdito internacionais. At ento, o brasileiro viajava comdlares em papel-moeda, geralmente em notas gradas, eramos vistos como se fssemos mafiosos ou bandidos, osnicos que vivem de caixa dois ou no tm crdito. Com oadvento do real, uma moeda forte, e os dias de paridade entreeste e o dlar, a classe mdia comeou a viajar para fora dopas e a tomar contato com a cultura e a realidade democrticade outros pases, onde o transporte pblico oferece nibuscom ar-condicionado e o uso de bilhete nico a norma. Ainflao est contida; os livros so acessveis, em formato delivro de bolso; o comrcio lhe devolve o dinheiro se voc noficar satisfeito com a compra, e existem inmeras organizaesno governamentais comprometidas com causas comoecologia, defesa dos animais, trabalho voluntrio etc.Esta segunda abertura dos portos foi importante para

    aumentar o nvel de exigncia de nosso povo, pois mesmo aclasse mdia de menor renda pde, principalmente nos anosde paridade cambial (um dlar para um real), viajar econhecer outros pases. Alm disso, no final da dcada de1980 deu-se o primeiro movimento migratrio de brasileirospara o exterior, principalmente Estados Unidos, Portugal eJapo, decepcionados com o pas e sem esperanas demelhora. As notcias e informaes que essas pessoas enviama familiares e amigos tm produzido um cruzamento deculturas tambm. No de admirar que date dessa poca com a migrao no final do governo Sarney, a abertura dogoverno Collor e o real forte de Fernando Henrique Cardoso

  • um forte crescimento dos movimentos de defesa deconsumidores e de cidadania. Infelizmente, em nosso pas oabismo entre as classes continua enorme e os pobrescontinuam a viver margem da riqueza, sem acesso a recursosbsicos como gua encanada, esgotos, assim como dos bensculturais que o Estado oferece s classes mais abastadas.

    No se pode negar a existncia de uma generalizadaresistncia dos povos contra as invases culturais. Para povosindgenas, por exemplo, a invaso cultural pode significar oaniquilamento de sua prpria cultura e grave ameaa suasobrevivncia. o caso dos ianommi. O ento presidenteJos Sarney havia assinado um decreto limitando o territrioianommi a uma rea menor do que a de seus ancestrais edando a mineiros e fazendeiros o direito de explorar minas eterras ianommi. Em seu mandato, o presidente FernandoCollor reagiu s crticas internacionais com um decreto querescindia o de Sarney, reconhecia os direitos ianommi a umarea maior e restringia o acesso de forasteiros.Tambm os kaiap, povo do norte do Mato Grosso e sul

    do Par, vm lutando contra seu extermnio. Para tanto,tornaram-se seus prprios advogados, etngrafos ehistoriadores. O apoio do astro de rock internacional Stingcontra a construo de uma represa que iria inundar suasterras parte de sua bem-sucedida campanha liderada pelocacique Raoni.

  • 4. Incluso cultural. Cultura e suas

    manifestaes. Arte e esttica

    EMBORA CULTURA COMPREENDA GRANDE VARIEDADEDE CONQUISTAS, A INCLUSO CULTURAL TENDE A

    CONCENTRAR-SE NAS MANIFESTAES ARTSTICAS DEUM POVO AO CRIAR OFICINAS E OUTROS

    EQUIPAMENTOS CULTURAIS. DA A NECESSIDADE DEREVER CONCEITOS DE ARTE, ESTTICA,

    FINANCIAMENTO, CULTURA POPULAR, DE MASSA,ERUDITA ETC. PARA MELHOR COMPREENDER OS

    FUNDAMENTOS DE UMA BOA POLTICA DE INCLUSOCULTURAL.

    Como vimos em captulos anteriores, cultura o conjuntode solues de sobrevivncia que uma determinada sociedadeelegeu como convenientes e transmitido de gerao a geraopor meio de aprendizado. Um exemplo a democracia dosEstados Unidos, fruto da reflexo e ao de um grupo deimigrantes puritanos ingleses que desembarcaram doMayflower em Cape Cod, em 1620, na Nova Inglaterra,dispostos a estabelecer um novo tipo de ordem poltica quefosse diversa da monarquia da Inglaterra. Em 1636, foifundada ali a Universidade de Harvard e, em 1641, criaramsua prpria legislao, que garantia justia igual para todos,proteo contra toda priso arbitrria, liberdade de ir e vir ede expresso e o direito de se reunir. As mulheres eram

  • protegidas da brutalidade dos maridos e os servidores da dospatres. Embora o sistema colocado em prtica fosseoligrquico, funcionou como aprendizado da democracia, jque em seus conselhos e igrejas locais as pessoas deliberavame elegiam responsveis dentro de suas prprias fileiras (LilianeCrt, As razes puritanas, in Histria Viva, n. 17).A cultura criao da humanidade, e, precisamente por

    isso, patrimnio, um bem que resulta da experincia e dotrabalho de uma sociedade para se chegar melhor soluo.As sociedades costumam assimilar costumes de outrassociedades desde que o vejam como teis e bons para ela.Por exemplo: os cruzados que iam ao Oriente para conquistara Terra Santa ao voltarem trouxeram consigo em sua bagagemos usos e os costumes orientais que mais lhes pareceramconvenientes. Marco Polo em sua viagem tambm fez suaseleo e de l trouxe a pasta entre tantas outras coisas . Osconquistadores espanhis levaram Espanha o chocolate, abebida deliciosa que descobriram na Amrica. Levaram ocacau, mas no a tecnologia desenvolvida pelos incas parasuas espigas de milhos, cujos gros eram especialmentegrados.

    Por outro lado, sociedades isoladas acabam por estagnar,paralisadas em seu conservadorismo, por falta de contato comoutras. Os integrantes de uma sociedade so refns da culturaque criaram e aqueles que ousam romper com os usos ecostumes, geralmente, so perseguidos. O intercmbio entreculturas , pois, alm de tema de reclamaes dos mais

  • conservadores, fermento de evoluo, matria-prima para odesenvolvimento. Portanto, a incluso cultural importanteferramenta para o crescimento e benefcio de um povo aogarantir o acesso de um grupo social s conquistas e soluescriadas por outros. uma necessidade, porque permite oavano, e um antdoto, porque evita a estagnao.A incluso cultural compreende as conquistas de tecnologia,

    de ideais e das artes de uma sociedade. A estocontemplados desde os avanos no campo das ideias at nasreas da sade, do trabalho, da informao e conhecimentocomo a internet (a chamada incluso digital) e smanifestaes artsticas culturais. As classes mais abastadaspor terem recursos so, em geral, as primeiras a terem contatocom outras culturas e seus benefcios. O povo depende daboa vontade de particulares ou do governo para ter acessoaos benefcios.Da a necessidade de polticas pblicas de incluso cultural,

    porque a cultura um bem, um patrimnio que deve estar aoalcance de todos, que deve incluir a todos no importa a queclasse, gnero, etnia, religio pertenam. Estadosdesenvolvidos e bem-sucedidos se mantm porque contamcom o trabalho e a colaborao de todos seus membros,igualmente capacitados. Um pas como o Brasil com essaescandalosa desigualdade social que temos no chegar potncia, a ser o pas do futuro enquanto no se eliminar asrazes dessa diferena. como querer que uma mesa sustenteuma carga pesada, quando suas pernas tm tamanhos e foras

  • desiguais, umas mais curtas e outras mais finas do que asoutras., pois, interesse e dever do Estado prover que tambm os

    pobres tenham acesso cultura e possam deixar o estado depenria. Os pases chamados Tigres Asiticos tornaram-sepotncias econmicas porque investiram pesadamente naeducao de toda a populao. Educao por ser oaprendizado formal das conquistas da humanidade inclusocultural por excelncia. Um povo com grande grau deeducao formal deixa de ser miservel e capaz de construirriqueza para todos. Estudos tm demonstrado que a educaodas mulheres primordial, pois famlias cujas mes tiveramacesso educao e sade so famlias com melhorqualidade de vida.

    No entanto, a incluso cultural como as moedas apresenta duas faces, a cara de seu criador e a coroa doquanto vale. Da que seja uma perda lamentvel para asociedade quando se probe por questes de gnero, raa,religio etc. que algum seja criador de bens culturais, ou nose reconhea o valor dos bens culturais produzidos pelaschamadas minorias.Quando se discute incluso cultural, discute-se tambm o

    receio de que a globalizao leve perda de costumes elnguas pela imposio dos modelos culturais de pases ricos.Essa preocupao, como j vimos, no de hoje: Cato jreclamava uma centena de anos antes de Cristo da invaso dalngua e costumes gregos em Roma, como certamente

  • reclamaram os povos conquistados pelos romanos ou porAlexandre o Grande. Aparentemente a marcha da conquistade uns sobre outros inexorvel, como se a lei darwiniana domais forte tambm prevalecesse em termos culturais.Para a antroploga argelina Tassadit Yacine, especialista

    em sociedades berberes, a integrao internacional podesignificar uma desintegrao nacional. Na Arglia, acreditava-se que o atraso da civilizao estava relacionado inferioridade de sua raa e incapacidade gentica doscolonizados. Est claro, porm, que essa viso era eficaz paraos colonizadores, afirmou na Conveno Global do FrumCultural Mundial, realizada em junho de 2004 no Anhembi, emSo Paulo. No pode haver uma cultura mundial. S podehaver a coligao de culturas que preservem suaoriginalidade, disse, mencionando a ideia do antroplogofrancs Claude Lvi-Strauss. Para tanto, necessrio orespeito diversidade cultural como tambm entender aimportncia da cultura no desenvolvimento econmico esocial. A incluso social a soluo para a exclusoeconmica e a cultura tem a um papel fundamental. ParaGilberto Gil, ministro da cultura no governo Lula e compositorde msica popular brasileira, a indstria cultural um meio decolocar em posio de destaque os pases emdesenvolvimento, tornando-os produtores e no apenasconsumidores. A cultura e as indstrias criativasdesempenham papel importante na gerao de renda eemprego, na qualificao das relaes entre os indivduos e na

  • construo da paz entre os pases, afirmou (In Folha de S.Paulo, 30 jun. 2004).Portanto, aes de incluso cultural e fortalecimento da

    cultura de um pas so fundamentais para evitar a perda daidentidade cultural de um povo e incentivar o desenvolvimento.A incluso cultural costuma ser entendida num sentido mais

    restrito, como as manifestaes artsticas de um povo: sualngua e literatura, sua msica, seu teatro, seu cinema, suadana, suas cerimnias e festas, como a Procisso do Crio deNazar, a maior festa religiosa do norte do pas, em Belm doPar, ou o carnaval, em todo o Brasil mas, principalmente, noRio de Janeiro, onde predomina o desfile das escolas desamba, e na Bahia, onde o carnaval de rua o ator principal.Ou a farra do boi introduzida em Santa Catarina pelosaorianos h 250 anos e celebrada na Pscoa , que motivode repdio das associaes de proteo aos animais, pois osbois so perseguidos e espancados como se fossem aencarnao de Judas Iscariotes ou do demnio.Assim, importante que ao discutirmos a incluso cultural,

    revisitemos conceitos fundamentais sobre arte, esttica emovimentos artsticos. Convm recordar tambm que a aocultural deve ser de mo dupla: garantir ao povo o acesso cultura e facilitar ao criador e produtor cultural a realizao edivulgao de seu trabalho.

    O que arte?

    Aqui, como em outros campos do saber, as definies do

  • que seja arte so inmeras e dependem do ponto de vista dosque as formulam, sejam eles os artistas, os historiadores, osestetas, os filsofos ou os polticos.

    Propomos definir a arte a partir do ponto de vista daantropologia cultural e da sociologia, para quem arte todo equalquer aformoseamento da vida. Segundo o antroplogo J.M. Herskovits, que se dedicou a estudar o negro americano ese opunha ideia de que a frica deveria seguir o modeloocidental ou permanecer sob o jugo europeu, quem estudacultura deve considerar como arte tudo o que o povoreconhece como manifestaes do impulso para tornar maisbonito e assim elevar o prazer de qualquer fase da vida (E.Adamson Hoebel e Everett L. Frost, p. 405). Par