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 1 Cultura Organizacional e Cultura Brasileira Revisitadas: Uma Atualização Hermenêutica do Dilema Brasileiro Autoria:  Alexandre Reis Rosa, César Tureta, Mozar José de Brito Resumo  Neste artigo apresentamos a crítica aos estudos sobre cultura organizacional brasileira. A  partir de uma abordagem hermenêutica, buscamos retomar as obras clássicas do pensamento social brasileiro de autoria dos três principais intérpretes culturalistas do Brasil: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta, colocando-os a prova da sociologia crítica e mostrando assim suas principais inconsistências e conseqüências para os estudos sobre a realidade nacional. Nesse sentido, partindo do pressuposto de que os principais trabalhos sobre cultura organizacional brasileira estão referenciados nestes autores, os objetivos deste trabalho são: apresentar a crítica ao essencialismo presentes nestas publicações e propor uma ampliação da análise culturalista incluindo as dimensões institucional e material da realidade brasileira e com isso reavivar as discussões em torno dos estudos sobre cultura. Assim, podem-se rearticular as interfaces entre cultura brasileira e cultura organizacional considerando a atualização destes intérpretes e a inclusão de outras interpretações sobre o Brasil. O resultado disso passa pela possibilidade de uma re-interpretação do dilema organizacional brasileiro e de uma teorização organizacional mais ampla. 1. Introdução Os estudos organizacionais em perspectiva histórica tem sido visto como um campo em eterna construção e, sobretudo contestado (REED, 1998). Além do caráter híbrido que lhe confere de um lado a oportunidade de uma abordagem interdisciplinar e de outro o risco de uma colcha de retalhos conceitual, considera-se também o caráter ideológico do campo. Nesse sentido, a pesquisa em administração ostenta a marca do funcionalismo que se encarrega de instrumentalizar o conhecimento em proveito de uma maximização de resultados organizacionais. A conseqüência desta perspectiva é a construção de uma visão ingênua e/ou equivocada de alguns fenômenos organizaciona is, entre eles o da cultura.  Nesse campo de estudos, segundo Schultz (1995), os primeiros estudos sobre cultura foram desenvolvidos sob o mainstream funcionalista. Em outros termos, a cultura era vista como algo que a organização possuía e, conseqüentemente, como algo que poderia ser gerenciado, modificado e construído de acordo com a vontade dos dirigentes. Porém, quando vista de uma perspectiva antropológica, esta visão de cultura como “posse” é substituída por uma visão de cultura enquanto “processo”. Uma vez que a organização não acontece de forma isolada, tampouco é imune ao ambiente. Na verdade, ela é mais um ator que interage na rede de significados mais ampla que é representada pela sociedade. Dessa forma, seus integrantes (da organização) não participam do espaço organizacional de forma esterilizada, eles trazem consigo idiossincrasias que são construídas e reconstruídas diuturnamente em seus múltiplos grupos de referência tais como a família, a escola, o sindicato e etc. (AKTOUF, 1993). Com efeito, o conceito de cultura organizacional ganha contornos mais amplos e sua complexidade deixa de caber dentro de uma visão meramente funcionalista. A visão torna-se menos ingênua e se aproxima da tradição interpretativa cujo enfoque da cultura, além de  passar por uma abordagem hermenêutica, o percebe como um fenômeno a ser descrito, interpretado e analisado. Por isso a necessidade de se realizar uma leitura dessa cultura

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    Cultura Organizacional e Cultura Brasileira Revisitadas: Uma AtualizaoHermenutica do Dilema Brasileiro

    Autoria:Alexandre Reis Rosa, Csar Tureta, Mozar Jos de Brito

    ResumoNeste artigo apresentamos a crtica aos estudos sobre cultura organizacional brasileira. Apartir de uma abordagem hermenutica, buscamos retomar as obras clssicas do pensamentosocial brasileiro de autoria dos trs principais intrpretes culturalistas do Brasil: GilbertoFreyre, Srgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta, colocando-os a prova da sociologiacrtica e mostrando assim suas principais inconsistncias e conseqncias para os estudossobre a realidade nacional. Nesse sentido, partindo do pressuposto de que os principaistrabalhos sobre cultura organizacional brasileira esto referenciados nestes autores, os

    objetivos deste trabalho so: apresentar a crtica ao essencialismo presentes nestas publicaese propor uma ampliao da anlise culturalista incluindo as dimenses institucional e materialda realidade brasileira e com isso reavivar as discusses em torno dos estudos sobre cultura.Assim, podem-se rearticular as interfaces entre cultura brasileira e cultura organizacionalconsiderando a atualizao destes intrpretes e a incluso de outras interpretaes sobre oBrasil. O resultado disso passa pela possibilidade de uma re-interpretao do dilemaorganizacional brasileiro e de uma teorizao organizacional mais ampla.

    1. IntroduoOs estudos organizacionais em perspectiva histrica tem sido visto como um campo

    em eterna construo e, sobretudo contestado (REED, 1998). Alm do carter hbrido que lheconfere de um lado a oportunidade de uma abordagem interdisciplinar e de outro o risco deuma colcha de retalhos conceitual, considera-se tambm o carter ideolgico do campo. Nessesentido, a pesquisa em administrao ostenta a marca do funcionalismo que se encarrega deinstrumentalizar o conhecimento em proveito de uma maximizao de resultadosorganizacionais. A conseqncia desta perspectiva a construo de uma viso ingnua e/ouequivocada de alguns fenmenos organizacionais, entre eles o da cultura.

    Nesse campo de estudos, segundo Schultz (1995), os primeiros estudos sobre culturaforam desenvolvidos sob o mainstream funcionalista. Em outros termos, a cultura era vista

    como algo que a organizao possua e, conseqentemente, como algo que poderia sergerenciado, modificado e construdo de acordo com a vontade dos dirigentes. Porm, quandovista de uma perspectiva antropolgica, esta viso de cultura como posse substituda poruma viso de cultura enquanto processo. Uma vez que a organizao no acontece de formaisolada, tampouco imune ao ambiente. Na verdade, ela mais um ator que interage na redede significados mais ampla que representada pela sociedade. Dessa forma, seus integrantes(da organizao) no participam do espao organizacional de forma esterilizada, eles trazemconsigo idiossincrasias que so construdas e reconstrudas diuturnamente em seus mltiplosgrupos de referncia tais como a famlia, a escola, o sindicato e etc. (AKTOUF, 1993).

    Com efeito, o conceito de cultura organizacional ganha contornos mais amplos e suacomplexidade deixa de caber dentro de uma viso meramente funcionalista. A viso torna-se

    menos ingnua e se aproxima da tradio interpretativa cujo enfoque da cultura, alm depassar por uma abordagem hermenutica, o percebe como um fenmeno a ser descrito,interpretado e analisado. Por isso a necessidade de se realizar uma leitura dessa cultura

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    organizacional considerando o contexto social mais amplo representado pela cultura nacionalque envolve, mediatiza e perpassa a vida organizacional. Nessa direo, salvo as limitaesque sero apresentadas adiante, o trabalho de Hofstede (1984) pode ser considerado um dos

    pioneiros nesta relao na medida em que nos chama a ateno para a necessidade de se

    compreender a dinmica organizacional a partir da dinmica nacional e como esta tende ainfluenciar aquela.

    Inspirados nesse pressuposto, Prestes Motta e Caldas (1997) publicam uma coletneade textos que teve como principal objetivo aproximar duas tradies de pesquisa que at entocaminhavam dissociadas: os estudos sobre cultura organizacional e os de cultura brasileira. Ainiciativa dos autores constituiu-se num marco de referncia para uma srie de trabalhos

    posteriores1que se apoiaram nesta proposta e, de forma similar, passaram a utilizar em suasanlises a contribuio dos principais intrpretes da cultura brasileira: Gilberto Freyre, SrgioBuarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e principalmente Roberto DaMatta.

    No entanto, como os prprios autores afirmam no pargrafo final da introduo dolivro, tal aproximao [...] s pode ser entendida como um esforo sempre dinmico e

    continuo. [...] Ou seja, longe de pretender mapear o vasto territrio que essa aproximaoencerra, a coletnea procura exemplificar as diversas oportunidades de pesquisa e instigarnovos caminhosque a sua explorao abre ao analista organizacional (PRESTES MOTTA &CALDAS, 1997a, p.21, grifo original). Neste contexto, de buscar novos caminhos, estetrabalho busca, sob a tica da abordagem hermenutica, retomar as obras clssicas do

    pensamento social brasileiro de autoria dos trs principais intrpretes culturalistas do Brasil:Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta, colocando-os a prova dasociologia crtica e mostrando assim suas principais inconsistncias e conseqncias para osestudos sobre a realidade nacional. Nesse sentido, partindo do pressuposto de que os

    principais trabalhos sobre cultura organizacional brasileira esto referenciados nestes autores,os objetivos deste trabalho so: (i) apresentar a crtica ao essencialismo presentes nestas

    publicaes e (ii) propor uma ampliao da anlise culturalista incluindo as dimensesinstitucional e material da realidade brasileira e com isso reavivar as discusses em torno dosestudos sobre cultura. Assim, podem-se rearticular as interfaces entre cultura brasileira ecultura organizacional considerando a atualizao destes intrpretes e a incluso de outrasinterpretaes sobre o Brasil.

    Para tanto, o trabalho est dividido em trs partes: na primeira, apresentamos umadiscusso sobre a abordagem hermenutica nos estudos sobre cultura e seu potencial analtico

    para uma re-leitura dos textos sobre cultura brasileira, em seguida entramos numa revisocrtica dos principais trabalhos que compe o pensamento social brasileiro destacando anecessidade de uma atualizao de seus pressupostos, finalmente na terceira parte segue uma

    problematizao dos principais trabalhos que tratam da cultura organizacional brasileira e aspossveis conseqncias da leitura acrtica dos principais autores da cultura brasileira.Vale destacar nesta introduo que, no mesmo esprito do trabalho de Prestes Motta e

    Caldas (1997), este trabalho constitui-se numa exemplificaode diversas oportunidades deanlise sobre nossa cultura a partir de atualizao dos nossos principais colaboradoresoriundos das cincias sociais. Dessa forma, como veremos ao longo do texto, no se trata de

    julgar erros e acertos, mas sim, de reanimar o debate e como contribuir para a compreenso dacultura brasileira e a sua reproduo no espao organizacional.

    2. Por Um Enfoque Hermenutico da CulturaVista como a arte e a tcnica da interpretao, a abordagem hermenutica tem sua

    gnese no esforo dos gregos em preservar e compreender os textos dos seus principaispoetas. Em seguida ela se desenvolve a partir da tradio judaico-crist das sagradas

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    escrituras. Com o renascimento, a hermenutica dividiu-se em trs tipos bsicos de tcnica deinterpretao: a hermenutica jurdica (juris), filosfico-filolgica (profana) e teolgica(sacra). Destes dois ltimos, emergem os estudos de Friedrich Scheleiermacher que tidocomo o precursor dos conceitos de interpretao e compreenso que, no sculo XIX, serviram

    de sustentao para o desenvolvimento das cincias humanas e da chamada hermenuticamoderna em suas vertentes metodolgica e ontolgica (BRAIDA, 1999; TESTA, 2004).

    Da vertente metodolgica, destaca-se o trabalho de Wilhelm Dilthey que rompe com omonismo epistemolgico e prope a existncia de dois tipos de cincias: as cincias naturais,que buscam estabelecer leis e tem como objetivo a reduo de uma lei outra guiando suadinmica a partir do ato de explicar (Erklren) a realidade; e as cincias do esprito que,diferente da primeira, buscam apenas compreender (Verstehen) a mesma realidade e dessaforma promover um novo mtodo cientifico para contrapor o mtodo fsico (PORTA, 2002).J no rastro ontolgico, a hermenutica passa a se preocupar com o modo de ser, de pensar ede constituir sentido e seus principais colaboradores so Martin Heidegger e Georg-HansGadamer. Sendo que este ltimo tirou conseqncias significativas do primeiro, seu mestre,

    fundando em seu livro Verdade e Mtodo a chamada hermenutica filosfica. Nela,Gadamer (1996) reconhece as contribuies da hermenutica metodolgica, mas aponta suaslimitaes, sobretudo no que se refere verdade. Afasta-se da teoria moderna doconhecimento e por meio da ontologia finca suas razes na realidade vivida e no mundo davida como modo de constituir o sentido (GADAMER, 1996).

    Como mostra Braida (1999), a influncia da abordagem hermenutica no mbito dascincias sociais pode ser constatada, primeiramente no desenvolvimento da sociologiacompreensiva de Max Weber e mais recentemente na antropologia interpretativa de CliffordGeertz (1989). Dentro da tradio hermenutica, portanto, este autor formulou a perspectivade teia de significados como forma de representar o giro interpretativo sofrido pelascincias sociais nos anos de 1960 que rompeu com o positivismo baseado em leis que regiama sociedade a partir do isolamento e anlise das variveis sociais. A mudana de viso demundo na pesquisa social modificou-se, passando a priorizar as interpretaes da realidadecom base numa perspectiva compreensiva, superando a dicotomia entre sujeito e objeto,incluindo nas anlises a dimenso subjetiva associada a capacidade de subjetivao esimbolizao (JAIME JR, 2003).

    Para Geertz (1989), o homem s capaz de viver em um mundo que para si sejadotado de sentido, sendo a cultura o locus privilegiado da produo desse sentido. Suainterpretao assume a cultura como um texto, ou um conjunto de textos que os atores sociaislem para interpretar o curso dos acontecimentos a assim extrair deles as estruturassignificativas que produzem sentidos. Deste modo, o papel do antroplogo nesta abordagem

    reside em interpretar textos. Um tradutor cultural que, por sobre os ombros dos nativos,analisa o fluxo do discurso social com suas falas, silncios, gestos e aes localizadas numdado contexto. Trata-se da construo social de uma teia de significados que os sereshumanos tecem em suas interaes cotidianas e que funciona como um mapa para ao social.

    A postura do pesquisador hermenutico, portanto, deixa de ser caracterizada comoexperimental regida por leis e variveis determinantes, mas de um leitor que busca, no textocultural, um sentido que leva os sujeitos sociais a se localizarem no mundo. No entanto, como

    problematiza Jaime Jr. (2003) numa profcua discusso sobre o trabalho de Geertz, um mesmotexto cultural passvel de mltiplas interpretaes. Isto , a leitura do texto cultural produzinterpretaes que sero sempre provisrias e passveis de serem questionadas ereconstrudas. Diferente de Mota (1978) que os chama de explicadores do Brasil, o ato de

    reler o texto cultural elaborado pelos principais intrpretes do Brasil deve, segundo Reis(1999), considerar trs aspectos fundamentais de suas obras: a condio temporal, o lugar

    sociale apessoaque integram o processo de interpretao.

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    Tal preocupao remonta os conceitos de interpretao e de compreenso. Pois oprimeiro atribui sentido a um mundo histrico determinado em uma poca determinada e osegundo parte desta atribuio de sentido e se autolocaliza no tempo, retendo, articulando eintegrando suas prprias dimenses temporais. Dessa forma, a renovao terico-

    metodolgica se faz sob o signo da mudana. Uma vez que ao se mudar o contexto, muda-setambm a interpretao. Em termos especficos, significa dizer que no existe uma verdadehistrica definitiva numa dada interpretao. Pois o interprete est sujeito condiotemporal que est condicionada, segundo Reis (1999), a uma perspectiva histrica cuja

    premissa bsica a de que cada gerao, em seu presente especfico, une passado e presentede maneira original [...] e cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessaconhecer (REIS, 1999, p.9) e esse tempo provisrio perpassa o lugar socialcuja dinmicareflete o espao onde as temporalidades acontecem e com isso so re-significadas pelapessoada interpretao que tem a sua lente ajustada a partir da sua condio que pode ser a de umnativo ou estrangeiro, amigo ou inimigo, burgus ou campons, rebelde ou sdito. Gerandoassim, narrativas contraditrias e, paradoxalmente, verdadeiras (REIS, 1999).

    3. A Cultura Brasileira e Seus Principais Intrpretes: Uma Reviso CrticaSegundo o socilogo Octavio Ianni (2002), boa parte das interpretaes sobre o Brasil

    teve um s objetivo: buscar um conceito de Brasil. Seja nas cincias sociais ou na literatura,geraram-se vrias linhas de pensamento ou mesmo famlias de interpretao do Brasil quese mostram evidentes nos seus diversos estudos e narrativas. Trata-se da viso do Brasil, desua histria, como uma constelao de tipos, com alguns dos quais se constroem tipologias,sendo que em alguns casos desdobram-se em mitos2e mitologias (IANNI, 2002, p.6).

    Dentro da perspectiva tipolgica, que focaliza a realidade social ou histricaprincipalmente em termos culturais, Peres (2002) apresenta uma proposta de classificao dosprincipais intrpretes em trs tipos de famlias: (i) os institucionalistas, que remetem suasanlises aos problemas institucionais e buscam nesta esfera os constrangimentos e limitaes

    para o desenvolvimento brasileiro. Geralmente eles assumem como objetos de reflexo acentralizao e descentralizao, tipo de federalismo, o Estado, a burocracia, os partidos, etc.Entre os autores mais conhecidos dessa linha esto Raymundo Faoro, Guerreiro Ramos eOliveira Vianna que no sero analisados neste trabalho3; (ii) os culturalistas, cujo enfoquerecai sobre a questo cultural da populao por isso de vital interesse para ns, ressaltam osaspectos formadores do esprito nacional e a partir desse arcabouo refletem sobre osentraves ao desenvolvimento e a modernizao do Brasil. Assumem como objetos de anliseas razes culturais originrias, as matizes culturais resultantes, a cultura poltica constituda,

    etc. Entre os autores mais representativos desta vertente esto Gilberto Freyre, SrgioBuarque de Holanda e Roberto DaMatta; (iii) finalmente, os materialistasque conduzem suasanlises considerando as questes de ordem estrutural e econmica, isto , relativas ao mundodo trabalho e da produo material. Assumem como objetos de anlise as condies histricasobjetivas de um dado momento, as estruturas de classes e suas tenses, as relaes no mundoda produo, o mercado, a dominao a partir da situao produtiva, etc. Os autores maisrepresentativos, para efeito de ilustrao, so Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e FernandoHenrique Cardoso.

    Nas trs famlias apresentadas, segundo Peres (2002), observa-se um ponto deconvergncia: a investigao das barreiras, internas e externas, que influenciam nossodesenvolvimento e a nossa modernizao econmica e poltica. Como veremos nas

    interpretaes revisitadas, cada autor buscou em seu tempo e espao uma resposta para talproblemtica e transitaram habilmente pela condio hbrida de nossa singularidade que, emtermos weberianos, tende a oscilar ora entre a dominao tradicionale a dominao racional-

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    legal como o caso do coronelismo; ora entre a dominao racional-legal e dominaocarismtica como o caso do populismo. Essa dualidade nos leva a o incessante conflitoentre o clientelismo personalistae o insulamento burocrtico. Conflito este que tem marcado

    boa parte das analises contemporneas sobre o Brasil (PERES, 2002).

    Direcionamos, portanto, nossa anlise aos autores culturalistas que, alm da afinidadecom a presente discusso, em virtude do seu foco de anlise estar voltado para os aspectosculturais e de formao do esprito nacional, so os autores com maior nmero de citaesnos trabalhos sobre cultura organizacional brasileira. Outra justificativa para a escolha resideno fato de que suas anlises constituem-se nas primeiras reflexes sobre a dinmica social

    brasileira no caso de Freyre e Holanda e mais recentemente DaMatta e servem de basepara anlise das outras duas vertentes citadas anteriormente.

    3.1. Gilberto Freyre e a Casa Grande: continuidade e descontinuidade de uma narrativa

    elitistaEmbora Gilberto Freyre sempre se apresentasse como ensasta e jamais como

    pesquisador e de fato sua obra seja um misto de literatura e cincia social, sem dvida CasaGrande & Senzala (CG&S) se trata de um trabalho cientfico (REIS, 1999). Pouco ortodoxo,como veremos a seguir, mas, sobretudo inovador. Sua argumentao contm um visenigmtico e ocupa uma posio ambivalente que oscila entre o tradicional e o moderno.

    O livro de Freyre (1988) est organizado a partir de cinco teses centrais que soapresentadas no captulo inicial e desenvolvidas ao longo do texto. Sendo elas: (i) o encontrodas trs raas, em que o autor aborda as condies que levaram com que o portugus, vistocomo vencedor militarmente e tecnicamente, se rendesse aos deleites inter-raciais como formade suprir a ausncia de mulheres brancas e preencher a lacuna sentimental de constituremuma famlia; (ii) a possibilidade de miscigenao, que foi uma conseqncia direta doencontro das trs raas. O passado de miscigenao ibrica pelos mouros contribuiu para o

    portugus no ter escrpulos quanto miscigenao, tendo como caracterstica principal aplasticidade nas relaes, colocando-o numa posio de grande mobilidade diante daassimilao intercultural. Fundando assim, as bases do que Freyre vai chamar de democraciaracial; (iii) a casa grande como palco de encontro e miscigenao das trs raas, ou seja,como espao social privilegiado para a miscigenao e assimilao cultural do portugus. Namedida em que a casa grande no se separa da senzala, mas a inclui em seus domnios, bemcomo a capela, a milcia e a escola, constitui-se no ncleo das relaes sociais do perodocolonial. Assim, a casa grande foi a expresso mxima do sistema poltico, econmico esocial da poca, com ressonncias que vo do patriarcalismo ao coronelismo e representa o

    poder da aristocracia rural; (iv) o legado da miscigenao como algo positivo para o Brasil,

    que foi um alvio para as elites preocupadas com a inferioridade da raa brasileira. Aoassumir a miscigenao sob este prisma, Freyre rompe com as explicaes naturalistas desuperioridade da raa pura. Ao contrrio, ele ressalta que a miscigenao criou o tipo ideal dohomem moderno adaptado aos trpicos. Assim, a fraqueza atribuda ao brasileiro muitomais uma questo histrica das condies sanitrias (alastramento da sfilis) e alimentares(hiponutrio devido falta de viveres frescos e outros nutrientes) do que uma questo dedeterminismo biolgico; por fim, (v) o regime poltico mais apropriado ao povo miscigenadoe adaptado aos trpicosfoi um tema ambivalente da narrativa freyriana. De um lado, o autorafirma que a democracia racial sugere uma democracia social na medida em que a tolernciatnica do portugus foi o principal amortecedor das relaes que aproximaram e em certamedida igualaram as diferentes raas, de outro, flagrante que no houve um encontro to

    harmonioso entre dominantes e dominados e o mestio , sobretudo filho de um estupro.Dessa forma, ao ressaltar o carter sadomasoquista implcito nas relaes inter-raciais, Freyresugere tambm uma pr-disposio do brasileiro a um tipo de prazer-com-violncia que de

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    certa forma legitima um regime autoritrio nas relaes, cujo algoz principal o patriarca.Este por sua vez, ocupa a funo de engenho com pleno domnio poltico, econmico, social,cultural e sexual de todas as instancias da Casa Grande que por excelncia, segundo Freyre,o ncleo das relaes sociais no contexto colonial.

    Entretanto, a validade das teses freyrianas est condicionada a trs aspectos que jelucidamos anteriormente: o tempo, o espao e a pessoa da interpretao. Sobre o tempo,

    preciso considerar a dcada de 1930 quando se publica a primeira edio de CG&S. Nesteperodo o Brasil, recm sado da Repblica Velha, iniciava sua primeira ruptura com asoligarquias que desde o inicio do sculo vinham, gradativamente, perdendo poder eagonizando diante de um horizonte industrial anunciado pelo Estado Novo. O espao, fundamentalmente nordestino. Marcado pelo coronelismo e pelos grandes latifndiosherdados do lucrativo ciclo da cana-de-acar. J apessoada interpretao, foi um filho dessaoligarquia em crise. Criado numa casa grande, de famlia protestante, teve uma educaoeminentemente estadunidense. Desde o ensino bsico na escola americana de Pernambuco ata graduao na Universidade de Baylor e o Doutorado na Universidade de Colmbia. Deste

    modo, considerando o contexto da obra, as teses de Freyre so marcadas por uma dualidadefundamental que tem sido discutida por diversos crticos do seu trabalho (REIS, 1999;MOTA, 1988; SOUZA, 2000a).

    A posio ambivalente que o livro ocupa est entre a continuidadepoltico-social e adescontinuidade terico-metodolgica. Isto , de um lado Freyre celebra a colonizao

    portuguesa e faz um re-elogio4ao colonizador portugus destacando sua enorme habilidade deadaptao cultural e sua criativa descentralizao poltica feita pela delegao de poder e terraaos senhores de engenho que constituram os poderes locais a despeito de um governo centralque seria a expresso burocrtica do Estado brasileiro. Esse compromisso com o passado,alm de legitim-lo, coloca-o numa posio pessimista em relao ao futuro industrial e

    burocrtico do Brasil. Sua defesa foi da continuidade colonial, da harmonia expressa pelomodelo de organizao familista5 em detrimento aos conflitos por ele ignorados, seu olharsaiu da janela da Casa Grande em plena passagem da nao-colonial para a nao-moderna,transio esta que ele recusava aceitar (REIS, 1999).

    Em termos terico-metodolgicos, Gilberto Freyre inova, revelando a sua capacidadede pensar a cultura brasileira de forma original. Como afirmam Reis (1999), Sor (1997) eSouza (2000, 2000a), sua narrativa rompe com o mainstream em dois pontos principais:

    primeiro Freyre rejeita a quantificao e realiza um estudo eminentemente qualitativo. Eleentra na realidade estudada e observa o Brasil a partir de seu interior e no como um objetoexterno, natural. Sua nfase na subjetividade, na busca em apreender o sentido e o espritoda vida colonial, o aproxima da hermenutica diltheana e ao criar tipos ideais como a Casa

    Grande e a Senzala, demonstra sua afinidade com a sociologia compreensiva weberiana. Ofoco de anlise est direcionado ao cotidiano, pois ele narra a historia do senso comum e dadinmica das relaes neste universo a despeito dos heris e dos grandes feitos militares,geralmente enfatizados nas pesquisas sobre a colonizao brasileira.

    A segunda ruptura, de grande importncia s narrativas que o sucederam, reside naadoo do conceito de cultura no lugar do de raa. Seguindo Franz Boas seu orientador deDoutorado , Freyre nega o determinismo geogrfico e racial predominante na antropologiade sua poca e se alinha ao historicismo alemo que enfatizava a cultura e a relatividade devalores, deslocando sua anlise para o enfoque cultural. Assim, no obstante ao carterensastico e a posio regionalista de sua obra, Freyre foi um verdadeiro criador. Pois osresultados de sua pesquisa esto muito alm do instrumental metodolgico que ele dispunha,

    tornando sua obra uma contribuio seminal para o conhecimento e entendimento dasingularidade brasileira (CARDOSO, 1993).

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    3.2. Sergio Buarque de Holanda e o homem cordial: rompendo com a tradioEm relao a Freyre, a posio de Srgio Buarque de Holanda se aproxima do quadro

    terico da anlise e se afasta radicalmente do posicionamento poltico. Holanda considera-setambm um ensasta. V seu trabalho como uma interpretao construda sem muito rigor e

    exausto (REIS, 1999). Epistemologicamente se faz valer da hermenutica diltheana e dasociologia compreensiva de Weber. Desenvolve sua obra sob perspectiva subjetiva e entra naanlise apresentando sua prpria impresso acerca da realidade brasileira. No entanto, assumeuma postura contrria a de Freyre em relao herana ibrica, em particular a lusitana.

    Em Razes de Brasil, seu principal trabalho, Holanda (1995) defende uma ruptura como passado lusitano. Sua anlise focaliza e critica o estilo neoportugus que permeia asrelaes sociais, assumindo uma postura de descontinuidade em relao ao passado como pr-condio para um Brasil moderno. Em linhas gerais, o argumento de Holanda no livro temduas etapas: a primeira ocupa os captulos iniciais e do conta de esclarecer as razes da nossaformao a partir de alguns tipos ideais bem no estilo weberiano cuja dinmica engloba osconceitos de trabalho eaventura, onde o autor busca ressaltar o embate destes dois tipos na

    estruturao da atividade humana. Ao passo que o trabalhador focaliza o meio e no o fim,buscando encarar as dificuldades como forma de crescimento durvel e realista, o aventureirobusca o fim no lugar do meio, ignora as dificuldades e busca colher o fruto sem nada plantar.Entre os dois, Holanda (1995) afirma que o trabalhador teve um papel residual em nossaformao; a herana rural, por sua vez, uma forma que Holanda utiliza para caracterizar olegado portugus em relao ao legado espanhol durante a colonizao. Ao passo que osespanhis conduziram uma colonizao urbana, metdica e racional com a criao de cidadescujo aparato administrativo era burocrtico e composto por unidades planejadas comuniversidades e espaos pblicos, o mtodo de colonizao portugus era ruralista econcentrava sua administrao na organizao familista que era um fim em si mesmo. Semuniversidades, nem cidades, a esfera privada determinava o poltico e o econmico comrelaes intestinais que refletiam o estilo neoportugus da nossa formao; ainda comoforma de distinguir portugueses e espanhis, Holanda trata do primeiro como um semeadorque no planeja, no modifica e no trabalha e o segundo como um ladrilhadormetdico,organizado e rigoroso. Finalmente, a figura do homem cordial que retrata o tipo ideal quecircula no mundo social fora da famlia. Uma figura que transborda afetividade e caracteriza acapacidade do brasileiro de ser generoso, afvel e acessvel diante da estrutura hierrquica dasociedade. Na verdade, trata-se de uma postura que visa suprimir as distncias impostas pelahierarquia e assim, ultrapassar o formalismo que marca as relaes sociais dando a elas umcarter mais pessoal. Para alguns autores (REIS, 1999; SOUZA, 2000), a figura do homemcordial carrega consigo certo cinismo, pois a cordialidade no trato com o outro acontece

    apenas nas relaes entre pares, ou seja, entre pessoas no mesmo nvel scio-econmico e nona relao superior-subordinado. Nesta, pelo contrrio, prevalece o autoritarismo e os maustratos. Principalmente se a relao se caracterizar por algum tipo de ameaa aostatus quo. Deoutra forma, quando as posies so estveis, o trato com o subordinado torna-secondescendente e paternalista.

    Na segunda parte do livro, Holanda (1995) apresenta as condicionantes da rupturaapontando os novos temposque sobrepem o velho e trazem consigo a possibilidade de umamodernizao do Brasil. Esses novos tempos na verdade j vem ocorrendo, segundo Holanda,desde o desembarque da famlia real em 1808 que visto como a primeira ameaa ordemcolonial. O carter lento e processual dessa mudana ponto chave da nossa revoluo. Oesforo do autor, portanto, o de acelerar esta transio mostrando aos leitores de onde ela

    vinha e para onde tendia, bem como os entraves a ela relacionados.O contexto social em que Holanda viveu pode explicar, em parte, a sua viso e sua

    posio antagnica as consideraes de Freyre. Isto , o tempoque marca a primeira edio de

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    Razes do Brasil coincide com o de CG&S: a dcada de 30 e a j citada crise das oligarquiasrurais. Entretanto, o espao da obra urbano, industrial e cosmopolita representado pelacidade de So Paulo onde nasceu e viveu apessoada interpretao. Filho de um funcionriodo Estado de So Paulo, professor de Botnica na Escola de Farmcia e Odontologia, teve

    uma vida modesta. Formou-se em Direito e trabalhou inicialmente como crtico literrio ejornalista, tendo em seguida assumido o cargo de professor na Escola de Sociologia e Polticade 1947 a 1955 e na Universidade de So Paulo de 1958 a 1969. Ainda como jornalista fezvrias viagens para a Europa e viveu um ano na Alemanha onde teve contato com ohistoricismo alemo, em particular com as obras de Max Weber. Deste modo, a vida urbana ea influncia weberiana exerceram grande influncia em sua obra e no seu desejo [...] de umaorganizao racional da sociedade, onde todos possam encontrar o seu lugar e se exprimir emsua originalidade segundo regras universais e consensuais (REIS, 1999, p.122).

    A busca de um horizonte para o Brasil em contraste com o saudosismo freyriano,constitui-se na principal caracterstica de Razes do Brasil. A negao do estilo neoportuguse suas mazelas que levaram o Brasil estagnao poltica e econmica, segundo Holanda

    (2005), o primeiro passo para uma acelerao da mudana, assumindo a nova dinmica quese institua com a urbanizao e a industrializao do pas tornando-nos indivduos ps-

    portugueses, isto , brasileiros.

    3.3. Roberto DaMatta e o jeitinho: a inautenticidade do dilema brasileiroA interpretao do Brasil proposta pelo antroplogo Roberto DaMatta (1987; 1996)

    difere do carter historicista presente nos trabalhos de Freyre e Holanda. Sua abordagemcontempla a atualidade brasileira e, ao invs de focalizar o legado portugus de forma positivaou negativa como fazem os dois autores anteriores, trata dos aspectos do dia-a-dia do povo

    brasileiro. No entanto, ao fazermos uma leitura conjunta com os autores anteriores, foipossvel identificar a sistematizao feita por DaMatta de alguns pontos defendidos por eles.

    Os dois trabalhos mais citados do autor soA casa e a Ruae Carnavais, Malandros eHeris em que so apresentados seus principais conceitos que, segundo ele, explicam anatureza do dilema brasileiro. Em linhas gerais, as obras trazem uma discusso dual que visaantagonizar quatro categorias: o individuo e a pessoa e a casa e a rua que so perpassados

    pelo recurso de navegao social denominados por DaMatta como Jeitinho que tem suaverso autoritria expressa pela pergunta Voc sabe com quem est falando? Neste sentido,faremos uma breve reviso desses conceitos de forma imbricada e estabelecendo umaconexo com os autores discutidos anteriormente como forma de verificar o esforo deDaMatta em sistematiz-los em sua argumentao.

    Em face da assimetria de poder nas relaes de classe, o Jeitinho aparece como um

    expediente que visa obter uma igualdade simptica e minimizar as distncias sociais(DAMATTA, 1996). O Jeitinho est calcado no culto da pessoalidade, caracterizando avalorizao do individual em detrimento ao coletivo. Na medida em que as relaes entre

    posies assimtricas estabelecem regras formais de interao social e burocrtica, expressaspelo formalismo com poder de veto e negao ao individual dando primazia ao coletivo, oJeitinho se apresenta como uma estratgia de navegao social que visa driblar a regra, tidacomo meramente formal, e fazer prevalecer o interesse pessoal. Assim, o uso do jeitinhomostra que na cultura brasileira no h posies fechadas do tipo pode ou no pode, mash, sobretudo, um jeito de se resolver as questes. Tudo vai depender do argumentoapresentado pelo pedinte ou do interesse do cedente.

    Recuperando o conceito de Cordialidadediscutido por Holanda (1995) em conjunto

    com o conceito de Jeitinho damattiano, podemos dizer que eles acontecem de forma similar etem seu lugar demarcado por dois espaos simblicos muito distintos no trabalho de DaMatta:a Casae a Rua. A Casa representa um espao coletivo de harmonia entre os que nela vivem

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    ou freqentam (DAMATTA, 1987). Isto , o lugar onde uma maior ou menor intimidade epermitida, possvel ou abolida. Constitui-se no ambiente dos prazeres, da amizade, e datranqilidade. um lugar onde no se trabalha, no se discute e no se disputa. Mas sim, umlugar onde se compartilha a cordialidade e principalmente onde se ajuda os amigos e parentes.

    Seu habitante a Pessoa que o principal agente dessas relaes cujo carter determina osistema de compadrio e personalismo intrnsecos neste espao. Enfim, a Casa traz o ambienteonrico descrito por Freyre (1988), a calma do mundo rural e os laos intestinais dofamilismo colonial. Por outro lado, a Rua o espao individual onde no h harmonia nemtranqilidade entre os participantes, mas sim, um ambiente hostil onde o Indivduo, que ummero transeunte absorto pelas regras e desprovido de qualquer sistema de relaes, tentaarticular estratgias de navegao social que preservem ou conquistem seus interesses(DAMATTA, 1987). Isto , na Rua que buscamos o sustento do lar e a maximizao dosinteresses que podem melhorar a vida na Casa. o espao urbano, como almeja Holanda(1995), de um Brasil moderno, racional e meritocrtico onde a impessoalidade constitui-se namarca principal das relaes sociais.

    A capacidade de unir estes dois espaos (pblico e privado) depende da habilidade deconciliao e da forma como se utiliza a cordialidade e o jeito para conseguir defenderinteresses da Casa no espao da Rua. Ao estender os domnios de um espao sobre o outro,torna-se possvel conseguir aquele emprego para o parente ou amigo prximo e em outradireo transformar o local de trabalho num lugar de harmonia e tranqilidade, onde no setrabalha e no se produz conflitos. No entanto, de maneira transversal cordialidade, ao

    jeitinho e aos espaos simblicos da Casa e da Rua, tem-se o fenmeno do autoritarismo quecorta as relaes sociais e se manifesta de forma autnoma em relao a estas categorias.

    A herana escravagista dos tempos coloniais confere ao brasileiro o ethosautoritrio(REIS, 1999). A necessidade de dar ordens e de humilhar os subordinados deturpa acordialidade e elimina a possibilidade do jeitinho. Tanto na Casa como na Rua, a regraconsiste em reproduzir esta herana e fazer valer a sua vontade. Um expediente comum desta

    prtica foi apresentado por DaMatta (1996) com o famoso voc sabe com quem estfalando? cuja dinmica representa um rito utilizado para demarcar posies ou afiliaessociais e com isso dissipar qualquer restrio gerada por regras burocrticas oucomportamentos impessoalizantes numa determinada situao de conflito. Acaba por ser,mesmo de forma violenta, uma forma de se expressar uma postura conciliatria diante de umlitgio. A necessidade de ser reconhecido como especial mostra a averso das elites deserem tratadas como uma pessoa comum.

    Em relao ao contexto da obra, desnecessrio abord-lo devido atualidade dainterpretao damattiana sobre a nossa realidade. Ambos os livros do autor foram publicados

    no contexto de um Brasil moderno, urbano e industrial, cujo cotidiano revela os rituais eprticas que ajudam a identificar nossos malandros e nossos heris (SOUZA, 2001). Porconseguinte, acreditamos ser este o motivo principal que leva Roberto DaMatta ser o autormais citado entre os culturalistas. Uma vez que suas anlises fornecem um instrumental maiselaborado para compreendermos o modus operandi do mundo social e organizacionalconforme veremos a seguir.

    4. Problematizando a Cultura Organizacional Brasileira: do Essencialismo aReinterpretao do Dilema Brasileiro

    Embora a coletnea de casos organizados por Fleury e Fischer (1989) tenha

    caracterizado o primeiro esforo de estabelecer uma conversao entre cultura organizacionale cultura brasileira, ele feito de forma implcita e em certa medida marginal. Pois aindaancora a maioria das anlises em teorias importadas. Deste modo, consideramos que a

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    abertura do dilogo acontece de forma explicita a partir do projeto organizado pelo grupo daEAESP-FGV animado pelos professores Fernando Cludio Prestes Motta e Miguel PintoCaldas que consolidado na coletnea Cultura Organizacional e Cultura Brasileira(COeCB)

    publicada em 1997.

    Ressaltando novamente que a partir da publicao deste livro foi realizada uma sriede pesquisas sobre cultura organizacional focadas nas razes, nas caractersticas de formao edesenvolvimento e, principalmente, nos traos e figuras recorrentes de nossa cultura. Noentanto, como apresentaremos ao longo desta seo, alguns problemas acompanham estasanlises que vo desde a generalizao (ALCADIPANI e CRUBELLATE, 2003) eultrageneralizao (LADEIRA e MESQUITA, 2005), que caracterizam um esboo inicial da

    problematizao, at as inconsistncias e lacunas tericas deixadas pelos principais intrpretesda cultura brasileira identificadas aps uma re-leitura crtica de seus pressupostos que foramignoradas ou no observadas pelos trabalhos na rea de cultura organizacional brasileira.

    4.1. A cultura organizacional brasileira de Fernando Prestes Motta e Miguel Caldas

    O trabalho de apropriao dos pressupostos defendidos por nossos principaisintrpretes pode ser entendido como um esforo de pensar nossas organizaes a partir dasteorias brasileiras. Nesse sentido, Holanda (1995) chama ateno para o fato de pensarmoscom idias inadequadas nossa realidade, idias que impedem nossa compreenso do Brasil.Por isso, o esforo dele de informar o Brasil sobre suas origens como condio fundamental

    para entender seus destinos. Com efeito, Prestes Motta e Caldas (1996) seguem esse turno eassim promovem uma interpretao mais sofisticada de nossa realidade organizacional.

    A coletnea de COeCB uma significativa contribuio para a teorizaoorganizacional brasileira na medida em que recorrem ao processo de formao da nossacultura, utilizam uma lente de anlise brasileira. Os dezenove captulos distribudos nas seisgrandes partes do livro discutem nossos principais intrpretes6, tanto do ponto de vista terico(no caso dos ensaios) como prtico (no caso dos estudos empricos), aplicando suas principaiscategorias analticas na compreenso da realidade organizacional. Com isso, puderamdemonstrar parte da nossa subjetividade e, conseqentemente, nosso estilo brasileiro deadministrar.

    As anlises buscam inicialmente sistematizar nossos traos culturais a partir de umacompreenso das matrizes de formao tnica que, em linhas gerais, resumem-se em trs:

    brancos (portugueses), ndios (nativos) e negros (africanos). O caldo cultural resultante damistura destas trs matrizes constitui-se na base das crenas e valores compartilhados pelos

    brasileiros e, conseqentemente, na base dos comportamentos que permeiam as relaesdentro do ambiente organizacional (PRESTES MOTTA e CALDAS, 1997). No decorrer dos

    captulos, o trabalho caminha no sentido de estabelecer uma relao desses traos com aprxis administrativa brasileira. Os casos empricos variam desde organizaes familiares,multinacionais, administrao pblica at organizaes populares, tais como clubes de futebole escolas de samba. Em todas elas o esforo o mesmo: demonstrar como se manifestam ascategorias scio-antropolgicas extradas dos trabalhos clssicos dos principais intrpretes doBrasil no espao organizacional.

    Jeitinho, formalismo, plasticidade, cordialidade, personalismo, coronelismo,patrimonialismo, clientelismo, esprito aventureiro, autoritrio, casa/rua, indivduo/pessoa,conciliador e hedonista so conceitos que permeiam todos os trabalhos, alguns com maisfreqncia que outros, indiscriminadamente e sem qualquer esforo de contextualizao e/ou

    problematizao dos seus pressupostos. So apropriados de forma essencialista, isto , num

    movimento oposto ao de Berger e Luckmann (1985) que vem a realidade como socialmenteconstruda e compartilhada pelos homens dentro de um o tecido de significados quecaracterizam uma sociedade, utilizam essas categorias como algo forado contexto particular

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    das interaes. Portanto, como algo universal e generalizvel. Ademais, do ponto de vistahermenutico, os trabalhos se furtam de uma leitura prpria. Pois se considerassem os

    pressupostos defendidos por Gadamer (1996) da incapacidade de se esgotar os objetos, deque o real, a vida, o mundo, extravasam os conceitos e de que a histria no nos pertence,

    mas ns que pertencemos a ela, poderiam ficar mais confortveis em apreendercontextualmente as nuanas de tais narrativas.

    No entanto, como salienta Souza (2003), este auto-engano fruto de uma posturareverencialque o brasileiro possui. Em se tratando da envergadura dos tericos apropriados edo seu enorme prestgio junto academia brasileira, a coletnea de Prestes Motta e Caldas(1996) assume uma postura cortes frente aqueles conceitos apresentados e limitam-se,enquanto tericos organizacionais, apenas a reproduzi-los. Nas sees abaixo, essa critica serdetalhada e a partir dela sero propostos, na parte final, alguns direcionamentos para a analiseorganizacional brasileira.

    4.2.Um esboo de crtica: generalizaes e ultrageneralizaes

    Na tentativa de compreender melhor a cultura dentro das organizaes, a coletnea seesforou em criar um modelo generalizvel de representao para o indivduo brasileiro, semconsiderar as diferenas regionais, econmicas, sociais e polticas existentes no vastoterritrio de nosso pas. Diferentemente da idia de homogeneidade, a cultura organizacional caracterizada pela ambigidade, em que as fronteiras das sub-culturas se apresentam comoaltamente permeveis, com manifestaes multifacetadas. Seus significados so, portanto,

    passveis de mltiplas interpretaes (JAIME JR, 2003). O povo brasileiro, como salientaDarcy Ribeiro (1995), um reservatrio de diferentes grupos tnicos que, na dinmica decada regio do Brasil, tiveram acesso a diferentes formas de socializao e institucionalizaode procedimentos. Assim, o brasileiro tambm gacho, carioca, sertanejo e caipira. Isto ,ser brasileiro e ser plural (RIBEIRO, 1995). Nesse sentido, torna-se impraticvel pensar acultura brasileira de forma universal, pois a diversidade regional, fruto de um pas continental,nos impede de ver o mundo da mesma forma. Evidentemente, existem olhares similares,valores nacionais, uma cultura nacional. Mas ainda assim, recebem o tempero local queformam os contornos da pluralidade aqui defendida. Nesta direo, os trabalhos de Alcadipanie Crubellate (2003) e de Ladeira e Mesquita (2005) apontam as dificuldades da generalizaoe da postura ingnua de se supor um carter nacional no mbito das organizaes brasileiras.

    Em pesquisa realizada a partir de um levantamento bibliogrfico nos peridicosnacionais, anais de congressos e artigos publicados em livros da rea de administrao, no

    perodo de 1990 a 2000, Alcadipani e Crubellate (2003) demonstram que a maioria dostrabalhos sobre cultura organizacional brasileira esto ancorados nos autores clssicos

    (Gilberto Freire, Srgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e RobertoDaMatta) que discutem a formao da cultura brasileira. A grande limitao assinalada porestes autores, nos estudos de cultura, reside nos aspectos culturais brasileiros apontados pelos

    principais intrpretes do nosso pas, so geralmente aceitos sem uma problematizao.Ademais, so largamente influenciados pela pesquisa de Hofstede (1989), cujo trabalhotambm tem sido criticado. Embora boa parte dos trabalhos analisados reconhea o carterdiverso e heterogneo da cultura brasileira, muitos deles acabam desconsiderando esseaspecto em suas anlises e generalizam determinados traos culturais nacionais. Com isso,observa-se que algumas caractersticas, tais como hierarquia, personalismo, malandragem,entre outras, tem sido transportadas para a anlise organizacional sem as devidascontextualizaes e muitas vezes so vistas como obstculo para mudanas ou como um

    entrave para a competitividade e para o aprendizado.Outro ponto crtico ressaltado na argumentao de Alcadipani e Crubellate (2003)

    refere-se aos traos culturais nacionais que so vistos, desde suas origens histricas, como

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    algo imutvel presente em nossa sociedade. Desta forma, os trabalhos sobre culturaorganizacional, desenvolvidos por autores brasileiros, utilizam as obras culturalistas para

    justificar a existncia de um estilo brasileiro de administrar, de traos para uma anliseorganizacional, do estrangeirismo e do paternalismo etc. (ALCADIPANI e CRUBELLATE,

    2003, p.72, grifo no original). Levanta-se, portanto, o questionamento se esses traos, desde1500 ou 1900, no mudaram assim como as significativas alteraes que ocorreram em todo o

    pas ao longo destes anos. Essa viso esttica pressupe que a realidade permaneceuinalterada, e que os traos esto, necessariamente, presentes em todos os brasileiros econtinuam influenciando todas as organizaes, gerando os pressupostos de uma possvelcultura organizacional brasileira.

    Na mesma direo, porm de forma ampliada, Ladeira e Mesquita (2005) tambmabordam a questo da generalizao de traos culturais por meio dos conceitos deultrageneralizaes e esteretipos. O conceito de ultrageneralizaes, trabalhado por AgnesHeller (1992), retrata que a universalidade dos indivduos tem seu ponto de partida na vidacotidiana, que por sua vez integra a vida de qualquer ser humano. Os indivduos tendem a

    generalizar o seu pensamento com base em situaes particulares de sua prpria existncia eexperincias anteriores de generalizaes j presentes no seu meio social (LADEIRA eMESQUITA, 2005). Assim, de acordo com Heller (1992, p.44), toda ultrageneralizao um juzo provisrio ou uma regra provisria de comportamento: provisrio porque se antecipa atividade possvel e nem sempre, muito pelo contrrio, encontra confirmao no infinito

    processo de prtica, manifestando-se por intermdio de alguns esteretipos ou sendoimputados pelo meio onde crescemos.

    Segundo Ladeira e Mesquita (2005), os esteretipos podem ser vistos como a reuniode determinados atributos que refletem e procuram perpetuar valores, produzindo umaidentidade cultural e retratando seus principais elementos (traos, manifestaes, prticas,etc.). Seriam uma espcie de simplificao modeladora de imagens, que sintetizam certasidias que os habitantes de uma regio possuem ou desejam que os outros tenham sobre elesmesmos. Assim, o grande problema associado aos trabalhos de cultura organizacional

    brasileira esta na generalizao de traos e caractersticas grupais, que na verdade acaba pornegligenciar as especificidades e peculiaridades regionais, locais e individuais. Ressaltandodessa forma o carter essencialista das anlises. Assim, ambos os crticos aqui expostosconcordam que o ato de reduzir a cultura brasileira a alguns traos tidos como universais egeneralizveis, tentando transpor essas idias para a anlise organizacional, pode engendrarinterpretaes que, muitas vezes, no correspondem a realidade cultural das organizaes, ouno limite, retratam-na de maneira parcial, deixando lacunas que poderiam ser preenchidascaso se fizesse uma leitura crtica dos principais intrpretes do nosso pas, problematizando

    suas proposies sobre a formao histrica brasileira.

    4.3. De volta ao ponto onde paramos: novas conversaes, novas reflexesIncorporando as criticas feitas por Alcadipani e Crubellatte (2003) e Ladeira e

    Mesquita (2005), o objetivo desta seo avanar demonstrando que as categorias de anliseda cultura brasileira apresentadas at aqui, alm de estarem intimamente relacionadas aos

    principais intrpretes da corrente culturalista, conferem um tipo de singularidade ao modusoperandi da sociedade brasileira. No entanto, trazem consigo alguns problemas de ordemterica que de certo modo tornam tais categorias uma espcie de sistematizao dos nossosauto-enganos, caracterizando uma sociologia da inautenticidade (SOUZA, 2000; 2001)cujos pressupostos no passam de uma reproduo mais ou menos equivocada da analise

    institucionalista e culturalista j realizada por outros autores em outros espaos sociais. Nemtanto pela categoria de homem cordial que defendida por Holanda, mas principalmente

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    pela dualidade descrita pela casa e a rua que, conseqentemente, sugerem a presena deoutra dualidade: o individuo e a pessoa.

    A explicao do Brasil proposta por DaMatta (1987, 1996), em comparao a ao dosoutros explicadores do Brasil, trata de aspectos do dia-a-dia do povo brasileiro. Com efeito, o

    impacto da explicao damattiana tem uma atualidade latente que acaba exercendo forteinfluncia na legitimao de prticas tanto institucionais como cotidianas da nossa forma de

    perceber as relaes sociais em nossa cultura. Por isso a nfase da crtica nesse autor que,indiretamente, articula conceitos dos demais autores culturalistas. Nesse contexto, o socilogoJess Souza (2000, 2000a, 2001 e 2003) se prope a expor as principais fissuras daabordagem damattiana e, a partir delas, apresenta uma alternativa de interpretao do dilema

    brasileiro, atualizando, com isso, a viso sobre a dinmica que regula as relaes sociais nacultura brasileira. De incio, o autor analisa as categorias de individuo e pessoa como sendo ocerne da discusso damattiana e, conseqentemente, a fonte principal dos problemas tericosque dela advm.

    Por indivduo, entende-se como uma categoria de sujeito que interage no espao social

    que DaMatta chama a rua. Nela o indivduo subjetivado por instituies sociaisrepresentadas pelo Estado racional e pelo Mercado capitalista que so responsveis pelatransformao do individuo num sub-cidado sujeito a regras impessoais e hostis. Por outrolado, entende-se a pessoa como um ser relacional que, seguro no espao da casa, goza dostatus de super-cidado na medida em que no est sujeito as regras impessoais e com isso capaz de fazer valer sua prpria vontade. Dessa forma, DaMatta acaba por delimitar duasvertentes sociolgicas: a institucionalista, caracterstica de uma sociologia do individuo e aculturalista, caracterstica de uma sociologia da pessoa (SOUZA, 2001). Ao criar estasdivises, DaMatta acentua as dualidades individuo/pessoa e casa/rua sugerindo que ambasacontecem como mundos distintos com fronteiras bem delimitadas na medida em que umtermina quando o outro acontece. Tendo, entretanto, breves momentos de interseco dos doismundos a partir de alguns eventos tpicos tais como a procisso, a parada militar e o carnaval.

    Em perspectiva comparada, a proposio damattiana de desvendar a gramtica socialbrasileira a partir de um sistema dual, no uma caracterstica particular da sociedadebrasileira. Em outras culturas ocidentais modernas tambm possvel identificar tal dualidade(SOUZA, 2000). Assim, pensar nela como algo tpico da nossa formao social consiste numexerccio de particularizao de algo universal. Por isso a assertiva de Souza (2001, 2000 e2000a) da sociologia da inautenticidade ser vlida neste caso. Na verdade, o que ocorre decaracterstico em nossa cultura a forma com que estes dois mundos se confundem. Comoum influencia o outro no dia-a-dia das relaes. Nesse sentido, torna-se possvel tambmdestacar a impossibilidade da separao entre eles. Pois ao acreditar na dualidade entre o

    mundo da rua e o mundo da casa, DaMatta pressupe uma perda da eficcia do Estado e domercado na vida social, deixando o mundo da casa imune a suas regulaes. Quando naverdade, o Estado e o Mercado no so o mundo da ruaque para na porta da casasem entrar.Pelo contrrio, ele arromba a porta, entra em nossa intimidade e diz o que devemos querer ecomo devemos fazer (SOUZA, 2001).

    Essa seria uma viso institucionalista, portanto estrutural do dilema brasileiro que visacontrapor a viso culturalista exposta por DaMatta. O esforo de Souza (2000, 2000a, 2001 e2003) passa por uma releitura dos principais autores brasileiros no com o intuito dedescredenci-los, mas, sobretudo de mostrar que possvel fugir do essencialismo de suasexplicaes e construir interpretaes alternativas acerca da nossa realidade. Em linhas gerais,a crtica de Jess Souza no se limita apenas a mostrar um possvel curto circuito

    sociolgico nas afirmaes de Roberto DaMatta e apontar suas inconsistncias tericas, masdestacar que a possibilidade de se pensar numa re-interpretao do dilema brasileiro disposto pela dinmica dual entre individuo e pessoa e entre a casa e a rua passa por

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    abandonar esta viso estanque entre dois mundos falaciosamente separados einautenticamente particularizados em nossa experincia. Significa, portanto, pensar numaterceira instituio social disposta a partir do conceito habermasiano de esfera pblica ondeos problemas tanto da casa como da rua so postos em debate (SOUZA, 2000a e 2001).

    Evidentemente trata-se de um construto terico ainda em fase de amadurecimento naexperincia brasileira. Mas a partir dele torna-se possvel rever o dilema brasileiro ecompreender de fato o que faz o Brasil,Brasil.

    5. Por Uma Concluso InacabadaJulgamos que nossa concluso inacabada pelo fato de reconhecermos a

    impossibilidade de se parar por aqui. Isto , da nossa incapacidade de, no espao disponvelde um artigo, dar conta da complexidade disposta pela singularidade da nossa cultura. Assim,em linhas gerais, o objetivo do nosso trabalho foi de retomar os principais autores da correnteculturalista de interpretao do Brasil e, sob a orientao hermenutica, posicion-los dentro

    do contexto de produo de seus trabalhos. Dessa forma, pudemos mostrar que boa parte dassuas formulaes foi condicionada pelo tempo, pelo espaoe pela prpria formaode cadaum dos autores. Ressaltando assim a importncia da contextualizao no momento daapropriao de conceitos formulados em algum contexto diferente do nosso. O que noacontece no caso das apropriaes feitas pelos tericos organizacionais brasileiros conformeapontam as crticas formuladas anteriormente que tambm mostram a falcia da generalizaodessas apropriaes como um procedimento acptico a despeito dessa impossibilidade.

    No rastro deste esboo de crtica, avanamos em demonstrar, por meio dasformulaes do socilogo Jess Souza, as principais fissuras e inconsistncias tericas de taisconceitos, bem como as conseqncias de tal situao para a teoria e para a estruturao denossa prtica cotidiana. Alm disso, destacamos tambm nesta concluso inacabada alimitao de uma narrativa estritamente culturalista. Embora a cultura seja um profcuocaminho para se atingir uma parcela do real, concordamos com Souza, sobre ascomplementaridades geradas a partir de uma anlise que leve em conta tambm aspectosinstitucionais e materiais da realidade.

    Nesse sentido, propomos aqui uma ampliao do conceito de organizao. Entendendoque ela no se resume apenas a organizao empresarial, pelo contrrio. Trata-se de umacategoria de anlise que atravessa as esferas do Estado, do mercado e da sociedade na medidaem que est presente nas trs dimenses e, como afirma Prestes Motta (1978), acabamdeterminando o rumo no s dos indivduos, mas, sobretudo da coletividade. Assim,acreditamos ser possvel rever algumas questes deixadas por nossos intrpretes, tais como:

    Por que a democracia racial freyriana um mito? Ou quem o agente da nossa revoluodescrita por Holanda? E qual a natureza das esferas pblica e privada na sociologia dual deDaMatta? A partir de uma agenda de pesquisa anloga proposta de Prestes Motta e Caldas,no entanto, considerando os autores mais relevantes das outras correntes (institucional ematerial) e claro, levando em conta tambm o contexto e as devidas problematizaesdecorrentes da apropriao desses autores. Com efeito, acreditamos tambm ser possvel, poresta via, atingir nveis mais sofisticados de teorizao organizacional e finalmente rompercom as teorias estrangeiras produzindo uma teoria local que pudesse ser inserida no circuitocientfico internacional.

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    6. Referncias BibliogrficasAKTOUF, Omar. O simbolismo e a cultura de empresa: dos abusos conceituais s liesempricas. In: CHANLAT, Jean F. (Org.) O individuo nas organizaes: as dimenses

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    Notas

    1 Prestes Motta, Alcadipani e Bresler (2001) em sua introduo apresentam uma boa sntese destesdesdobramentos.2Em se tratando dos mitos e mitologias, Ianni (2002) est se referindo as interpretaes do Brasil elaboradaspela literatura e pelas artes tais como as personagens conhecidas do Jeca Tatu, Macunama, Pedro Malazarte,Padre Ccero, Lampio, Joo Grilo, Zumbi etc. que mesmo sendo expresses soltas ou fantasias da imaginao,possuem suas razes na sociedade, na cultura e na histria.3 Embora tenhamos delimitado nossa anlise nos trs autores (Freyre, Holanda e DaMatta) da correnteculturalista, em virtude da freqncia com que so citados nos trabalhos sobre cultura organizacional brasileira,s outras correntes da tipologia apresentada adiciona-se um rol de outros autores que so largamente citados no

    mbito das cincias sociais que, por questes de escopo e objetivo, deixaram de aparecer nesta anlise. O queno diminui em nada suas contribuies para a compreenso da dinmica social brasileira. Para acessar taisautores ver Peres (2002).4 Utilizamos o prefixo re-elogio devido precedncia do trabalho pioneiro de Francisco Adolfo Varnhagen(1816-1878) que considerado o primeiro intrprete do Brasil. Seu livro mais importante Histria Geral doBrasil publicado em 1850 que refletiu o esforo do recm fundado Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro(IHGB) em documentar o passado brasileiro a partir da sua fauna, flora e costumes. Como foi uma obra escritano corao do Regime Imperial, sua principal funo foi a de ressaltar as virtudes do legado portugus atravs deum elogio aos colonizadores. Para detalhes ver Reis (1999).5O termo refere-se organizao social predominante no perodo colonial onde a famlia era a expressomxima dessa dinmica. Isto , a esfera privada tinha um papel determinante nos rumos da economia e daadministrao colonial e, de certa forma, predominou tambm no perodo imperial (ARAJO PINHO, 1998).6Alm dos culturalistas por ns apresentados, o livro em questo utiliza tambm as contribuies de RaymundoFaoro e Caio Prado Jr.