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CURRÍCULO, DEMOCRACIA E SOBERANIA POPULAR
Resumo
Nesse artigo apresentamos resultados parciais de pesquisa em andamento na qual
visamos investigar meios de contribuição de alunos de graduação em licenciatura na
formulação dos currículos das disciplinas de formação pedagógica didática e prática de ensino
e estágio supervisionado.
Tendo por principal referencial teórico a Teoria da Argumentação de Perelman e
Olbrechts-Tyteca, investimos na hipótese de que, sendo o currículo uma produção socio-
histórica, que não se pauta em evidências, mas em raciocínios dialéticos que alcançam
verdades provisórias, sua democratização se efetiva através da participação de todos os
sujeitos interessados na constituição curricular, inclusive dos próprios alunos. Nessa
perspectiva, acreditamos que a formação de professores, que visa a autonomia e autoria futura
destes profissionais, inicia-se no sempre: nem antes, nem depois, de suas formações inicias.
A construção de tais currículos compartilhados parte, nessa perspectiva, do
reconhecimento dos acordos que norteiam professores e formandos a respeito do objeto de
conhecimento com o qual atuam. Por tanto, essa pesquisa visa conhecer esses acordos,
analisar as aproximações e distanciamentos entre as teses que sustentam e formular a partir
desses dados os currículos de formação pedagógica.
A pesquisa está sendo aplicada a estudantes de licenciatura em artes visuais de uma
Universidade Pública do Rio de Janeiro. Temos realizado grupos focais que debatem acerca
do objeto de conhecimento das artes visuais, através da estimulação com dez imagens
previamente selecionadas. A partir do resultado e análise retórica dos argumentos reincidentes
nos debates, os alunos que participaram dos grupos focais são convidados a debater
novamente com os pesquisadores e formular, a partir daí, um currículo que norteie o curso de
didática e objetos de investigação a serem pesquisados em seus estágios supervisionados.
Aqui apresentamos os resultados parciais do trabalho que vem sendo desenvolvido
com o grupo piloto desde o início deste ano.
Palavras-Chave: Teoria da Argumentação, Currículo, Formação de Professores.
Democracia: governo no qual a soberania é exercida pelo povo
Nossas pesquisas no campo do currículo visam à investigação dos sujeitos que
participam efetivamente das formulações curriculares. Tal questão surge da necessidade de
pensarmos os meios de democratização que temos utilizado na organização dos currículos.
Nesses termos faz-se necessário a reapresentação do conceito de democracia e sugerimos
aqui, aquela apresentada por Mafalda, de Quino, na qual: democracia (do grego: demos, povo
e kratos, autoridade) é governo no qual a soberania é exercida pelo povo. E como não poderia
deixar de ser, incluiremos nessa definição prévia, a reação de Mafalda que traduz, em nossa
presunção, um acordo que parece se referir ao senso comum: a descrença na democracia e a
chacota (Figura 1).
A escolha em referirmo-nos à Mafalda fundamenta-se no campo teórico com o qual
vimos trabalhando, a nova retórica de Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca em seu Tratado da
Argumentação (2002), uma vez que, para esses autores, todo debate argumentativo que visa
um acordo possível paras as questões que se apresentam em uma sociedade, parte de um
acordo vigente. A argumentação é o processo dialético pelo qual as pessoas negociam
soluções razoáveis para dar encaminhamento democrático aos problemas que se apresentam.
Entretanto, salientamos que a dialética a que nos referimos não é a que se propõe ser um
princípio organizador de macroestruturas, tão pouco compreende o diálogo como uma ação
apaziguadora que remete os sujeitos a verdades verdadeiras, em uma perspectiva platônica de
princípios metafísicos. O conceito aqui utilizado refere-se aos processos de construção de
conhecimentos que não são pautados em raciocínios demonstrativos, nem no apoio a
princípios primeiros e/ou naturais, e que se formam através da argumentação entre diferentes
teses com o objetivo de conseguir a adesão dos espíritos à tese consensual, compreendendo
que toda argumentação que serve à democracia deveria visar tal adesão. É a partir de
princípios democratizantes para a organização social que a nova retórica propõe o debate
regulamentado como uma forma de ser democrática que leva os sujeitos à condição de
negociação de valores e normas através do exercício do debate, julgamento e deliberação
sobre teses apresentadas por sujeitos em determinado momento sócio-histórico, gerando
respostas e verdades provisórias que se estabelecem para um grupo, até que novas teses
venham contestá-las.
Uma vez que no contexto de nossas investigações entendemos o currículo como fruto
de um processo construtivo que se dá entre vários sujeitos interessados na educação e
influenciado, também, por outros discursos historicamente validados (Goodson, 1995), nos
interessa democratizar tais currículos viabilizando a participação dos alunos de graduação em
licenciatura, de modo objetivo e legitimado.
O sentido de democratização é, então, aquele ao qual Mafalda refere-se, pois ao
atuarmos na formação de futuros professores pretendemos que esses profissionais venham a
ser sujeitos de autoria. Essa autoria começa em um espaço de tempo que é sempre: nem antes,
nem depois de sua formação inicial. Se o aluno da licenciatura é o povo ao qual nos dirigimos,
cabe a ele a soberania sobre sua formação. Em outras palavras, cabe-lhe a palavra
argumentativa que lhe garanta o lugar de autor.
Tendo colocado essas premissas, apresentamos nesse artigo resultados parciais de
pesquisa que vimos desenvolvendo cujo objetivo é analisar e compreender os discursos e
juízos de valor de alunos de graduação em Licenciatura em Artes Visuais sobre as possíveis
definições que têm para o objeto de estudo das artes de modo a pensarmos uma configuração
curricular para suas disciplinas de formação pedagógica (didática e prática de ensino e estágio
supervisionado) da qual esses alunos participem, tornando-se coautores destes currículos.
Entre chacotas e incredulidade: a democracia é possível?
Dentre as críticas que tal proposta tem sofrido é mais reincidente a que destaca a
diferença hierárquica entre alunos e professores, salientando a diferença de saberes entre
ambos, ou seja: o aluno não sabe o bastante sobre o objeto para poder sugerir conteúdos,
práticas, etc.
Averiguamos em nosso grupo de trabalho a inclinação em nossa cultura pedagógica
para entender o objeto do conhecimento através de uma inércia que sedimenta seu contorno,
reduzindo-o a um elenco de conteúdos previamente estabelecidos que tem de ser alinhado ao
longo dos anos de formação, ainda que se pense de maneira crítica sua seleção (Forquin,
1992) e seus modos de didatização. Porém, a filosofia da nova retórica tem nos sugerido
alguns conceitos que se destacaram como essenciais à compreensão das possibilidades de se
repensar o conhecimento e sua matéria, bem como da possibilidade de argumentar com os
alunos a constituição do currículo e as práticas pedagógicas a partir dele forjadas.
Neste artigo, destacamos o conceito de acordo. Perelman coloca a necessidade de que
as teses entre debatedores partam de acordos comumente aceitos, uma vez que o acordo é a
matéria do debate. O acordo constitui o que é ou não aceito em consenso (teses, premissas,
valores) entre sujeitos que debatem e é ponto de partida para a argumentação. Reconhecer um
acordo é destacar os pontos em comum entre sujeitos que sustentam um objetivo conjunto e,
simultaneamente, apontar os lugares de conflito nos quais surgem novas e diferentes teses que
precisam ser negociadas. O acordo nada mais é que uma verdade provisória estabelecida em
determinado arranjo social e os conflitos, acordos que já não se sustentam para esse mesmo
grupo. O que um processo argumentativo conduz é à busca de novos acordos.
Isso nos dá pistas para reflexão. De um lado, garante grandiosidade e importância à
necessidade de conhecermos aquilo que é aceito em um grupo. Parte-se do acordo para o
debate e argumenta-se pela persuasão a favor de uma tese; porém, sendo o acordo a base
sobre a qual se argumenta, a própria tese adquire menor valor do que a importância de
conhecer as posições daqueles aos quais nos dirigimos, pois o objetivo desloca-se da tese
defendida pelo orador para os sujeitos que esse orador visa persuadir: o professor visa
persuadir ou apenas defender uma verdade sobre um conhecimento estratificado? Isso nos
alerta para a necessidade da busca de um equilíbrio na hierarquização gerada pelo binômio
objeto do conhecimento/sujeito cognoscente, na qual, normalmente, o sujeito tem menor valor
do que o objeto de conhecimento. Além disto, ao considerar que na contemporaneidade
averiguamos que os objetos de conhecimento, com exceção àqueles relativos aos
conhecimentos formais e demonstrativos, são construções relativas, temos de convir que o
próprio objeto de conhecimento seja um acordo estabelecido a partir de uma verdade
provisória, não fazendo sentido defendê-lo como tese se sua defesa sobrepujar os
questionamentos sobre seu status e, consequentemente, o reconhecimento do acordo comum
que deve envolver todos aqueles que investigam o saber. Defender a tese sobre um objeto de
conhecimento como se ela (a tese) ou ele (o objeto) representassem uma verdade verdadeira,
não só seria uma tautologia, como pode gerar a falta de significado e de relação com as
experiências concretas que tantos alunos reconhecem nas disciplinas que estudam, uma vez
que para aquilo que é demonstrativamente verdadeiro não precisaríamos apresentar
justificativa persuasiva. Estabelecer acordos junto aos os alunos expressa o compromisso de
compartilhar suas premissas sem que isso exclua as premissas trazidas pelos professores que
compõem o debate, possibilitando a formulação de novos acordos significativos para todos. O
objetivo do currículo passa a ser o de debater, dialogar, deliberar, enfrentar e construir novos
acordos sobre os saberes e valores necessários à docência.
A segunda observação que temos enfrentado resgata a crítica a um psicologismo
excessivo, quiçá demagógico, que denuncia o esvaziamento da razão pedagógica do formador
e o risco do ambiente acadêmico ser subjugado a uma espécie de tirania estudantil,
considerando que tais estudantes não comungam necessariamente pontos de interesse com
seus professores. Ora, quando propomos pensar a possibilidade de construirmos com nossos
alunos os currículos de suas formações, intencionamos realizar um debate que busque acordos
para o grupo (a turma e o professor) e que norteie um trabalho de equipe. Se a argumentação
se propõe ao debate e à deliberação, "é indispensável confiar a uma pessoa ou a um corpo
constituído o poder de tomar uma decisão reconhecida" (Perelman, 2005, p 335). Portanto, no
cenário pedagógico, nos permitimos fazer uma analogia entre o professor e o juiz, reportando-
nos ao campo jurídico. Argumentamos a favor da autoridade docente propondo que essa se
constitua como uma autoridade fundamentada em uma perspectiva jurídica, ou seja, a daquele
sujeito que organiza o debate e, a partir das teses colocadas, julga e delibera para que o
trabalho tenha continuidade.
No âmbito das práticas docentes, consideramos que os reflexos de tal proposição nos
possibilitam investigar se a construção curricular insere os discursos e interesses dos
estudantes sobre a matéria estudada e se reflete sobre as aproximações e distanciamentos das
teses defendidas por professores e alunos, ao proporem tal currículo. Ainda que nos pareça
difícil, entendemos que a viabilização das distribuições de poder entre os sujeitos
docentes/discentes e a geração de espaços nos quais cada grupo possa colocar-se, é condição
essencial à democratização da formação dos futuros professores, bem como exercício legítimo
de cidadania que ultrapassa as fronteiras do ensinar, tocando as formas de ser e permitindo a
todos seu lugar de autoria, sem o qual escravizamo-nos no tecnicismo.
Democracia/Soberania: de que falamos afinal?
É a partir de princípios democratizantes para a organização social que Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2002) propõem sua retórica, entendendo que o debate regulamentado é
uma forma de ser democrática que leva os sujeitos à condição de negociação de valores e
normas.
Para que haja argumentação é necessário que tenhamos um orador que busca a adesão
do auditório para sua tese. Há um auditório, sujeitos que o orador quer influenciar. Há uma
tese admitida pelo auditório que normatiza os valores e ações em relação à determinada
sociedade ou condição social específica e outra que se diferencia total ou parcialmente da tese
admitida e que é proposta pelo orador. E há o próprio processo de argumentação, através do
qual o orador procurará obter adesão de seu auditório para sua tese. Estes são os ingredientes
que motivarão o debate e ao conhecê-los tanto podemos lograr maior êxito na construção de
nossos discursos, quanto teremos mais ferramentas para analisarmos argumentos alheios
garantindo nosso papel autoral em relação a nossos próprios valores.
Para tanto, o orador busca conhecer o auditório, suas crenças, seus valores e suas
opiniões, visando o caminho possível entre suas próprias teses e as opiniões de seu auditório.
Como colocam Perelman e Olbrechts-Tyteca, é em função do auditório que qualquer
argumentação se desenvolve (2002, p. 6), uma vez que não há porque argumentar junto a um
auditório se não houver distâncias entre este e o orador. Se o objetivo da argumentação é a
persuasão do outro ele desloca-se do objeto de discussão em si para os sujeitos que lidam com
este objeto.
De maneira breve, os principais pontos e categorias desenvolvidos por Perelman e
Olbrechts-Tyteca em seu Tratado da Argumentação (2002) envolvem os gêneros do discurso;
os acordos dos auditórios e as técnicas argumentativas.
Quanto ao gênero, consideramos importante pensar o discurso voltado para a formação
de professores com uma finalidade não imediata, mas cujo objetivo é o de desenvolver
predisposições para uma ação almejada que vise à construção do bem comum. Em nosso
entender, nosso objetivo, ao invés de ser o de inculcar valores e normas nos espíritos dos
alunos, poderia ser o de debater, dialogar, deliberar, enfrentar e construir esses valores.
Sugerimos que a educação contemporânea utilize os três gêneros argumentativos definidos na
nova retórica – o gênero epidíctico, o judiciário e o deliberativo – em diferentes situações. Se
for possível imaginar que o professor prepare um tema de seu interesse e o exponha aos
alunos, no desejo de reforçar sua adesão prévia (gênero epidíctico), é possível igualmente
antever situações em que os alunos se manifestem abertamente quanto às noções e valores
colocados, julgando-os apropriados ou inapropriados (gênero judiciário) e também que
deliberem sobre esses valores e normatizações, propondo, muitas vezes, outros
encaminhamentos para o tema ou mesmo para um curso inteiro (gênero deliberativo). Além
do que, como vimos investigando, os próprios graduandos podem trazer temas oriundos de
acordos já firmados em suas experiências de vida para iniciar um debate curricular, o que
significa dizer que os sujeitos que formamos já têm seus discursos e saberes sobre a educação.
Quanto aos acordos cabe-nos ressaltar que são o ponto de partida da argumentação.
Podem basear-se em uma estrutura do real (fatos, verdades e presunções), ou fundamentar-se
na preferência por determinados valores, hierarquias, ou lugares comuns. Cabe ao orador,
uma vez que é de seu interesse defender uma nova tese perante seu auditório, encontrar os
pontos em comum entre suas premissas sobre o assunto debatido e as premissas de seu
auditório, negociando e fazendo escolhas sobre o assunto em questão que devem ser
respeitadas ao longo do processo argumentativo.
As técnicas argumentativas constituem a parte mais extensa da teoria perelmaniana.
Segundo seus autores, podem-se identificar, quanto à forma, quatro tipos distintos de
argumentos que delineiam uma ampla possibilidade de argumentação: a) os argumentos
quase-lógicos que, embora não apresentem uma lógica formal, têm como força persuasiva a
aproximação ora com o raciocínio formal (relações entre conceitos de
contradição/incompatibilidade, identidade/definição, analiticidade, análise e tautologia) ora
com as relações matemáticas (argumentação em prol da reciprocidade, da transitividade, das
relações parte/todo, da comparação, das probabilidades, etc); b) os argumentos baseados na
estrutura do real que utilizam o real como modelo para garantir sua força persuasiva, seja por
ligações de sucessão que dão justificativa à argumentação (vínculos de causalidade, meio/fim,
fato/consequência, direção, etc), seja por ligações de coexistência (relações entre pessoa/ato,
ruptura de coexistências aceitas, relações entre grupo/membros, etc); c) os argumentos que
promovem ligações que fundam a estrutura do real, ao utilizarem o caso particular, a analogia
e a dissociação de noções para estabelecer novos modelos possíveis para o assunto em debate
e d) os argumentos que têm como recurso a própria interação dos argumentos, organizando-
os por convergência, estabelecendo ordenação que lhes garanta força, amplificando-os, etc.
Os estudos sobre as técnicas utilizadas na argumentação mostram também dois tipos
de recursos comumente utilizados por quem argumenta, em um deles, o orador dá preferência
à utilização de argumentos de ligação que se baseiam em processos que aproximam (ligam)
elementos distintos para permitir que eles sejam valorizados positiva ou negativamente uns
em relação aos outros, de acordo com seu interesse; em outra, os argumentos apoiam-se em
processos de dissociação que separam elementos de um todo, permitindo reconceituá-los e
recontextualizá-los, modificando noções admitidas como acordos em relação ao assunto
debatido.
O que nos importa chamar atenção, nesta brevíssima explanação, é para a importância
das escolhas do orador em qualquer que seja a estrutura na qual os argumentos dialéticos
apoiam-se. Embora esses raciocínios possam manter uma coerência interna, obedecendo a um
sistema filosófico, são sempre fruto de opções tanto no modo de se pensar uma questão,
quanto no de encaminhá-la. É em função dessa característica que o estudo dos argumentos
ganha justificativa e significação, uma vez que todo assunto debatido por raciocínio dialético
presume que uma verdade absoluta não esteja presente e que, portanto, a verdade estabelecida
ao final de um debate é uma verdade construída argumentativamente, dentro de um
referencial teórico cuja coerência é interna (e não demonstrativa), denotando ideologias dos
grupos e dos sujeitos. Desse modo as verdades provisórias estabelecidas para todo objeto que
não pode ser defendido demonstrativamente são carregadas de valores, premissas e
presunções, resultantes também de condições históricas e políticas. Se for assim, a revisão
dessas verdades provisórias, quando necessária, por já não atenderem às demandas sociais,
implica a análise da própria estrutura argumentativa pela qual elas foram estabelecidas para
que possam ser contra-argumentadas.
Colocado isto, entendemos que os currículos são construções argumentativas
localizadas historicamente e compõem as regulações éticas/morais das sociedades. Portanto,
tais currículos adquirem tanto uma dimensão de ética prática (o que ensinar, como, que
normas estabelecer para o bom funcionamento da aprendizagem, etc), quanto de uma ética
política (a que interesses respondem) e, portanto, é desejável que sejam democráticos,
garantindo o direito de participação e soberania popular em sua formulação.
Soberania popular: o que e como debater para ser professor de artes visuais?
Para podermos introduzir os graduandos em licenciatura em artes visuais no debate
constitutivo dos currículos que os formam, estabelecemos como primeira premissa de
investigação a necessidade de estabelecermos um acordo comum sobre o próprio objeto de
conhecimento/ensino que sua formação evoca. Arriscamos na hipótese de que o princípio que
poderia nortear tal currículo seria o entendimento comum em relação às artes visuais. Tendo
esse pressuposto, formamos grupos focais com turmas de Didática e Prática de Ensino e
Estágio Supervisionado de uma Universidade Pública no Rio de Janeiro.
Os grupos focais foram estimulados a debater, a partir da observação de dez imagens,
se estas seriam, ou não, do campo das artes visuais, justificando o porquê de suas definições.
A partir dos acordos e distanciamentos do grupo em relação a esses posicionamentos vem
sendo desenvolvidas propostas curriculares com auxílio dos estudantes.
A formação de grupos focais com uso de imagens apresentou-se como opção válida na
medida em que permitiu aos grupos de estudantes atuarem especificamente sobre seu objeto
de aprendizagem/ensino: visual e não discursivo. Além disso, trabalhamos a coleta de dados
de modo contributivo para os objetivos dessa pesquisa que busca o conhecimento dos acordos
já que, como coloca Wilkison (apud, Barbour, 2009, pg 49), durante as discussões do grupo
focal "um senso coletivo é estabelecido, os significados são negociados, e as identidades
elaboradas pelos processos de interação social entre as pessoas". O estabelecimento de tal
consenso nos remete ao senso comum que estabelece as bases dos acordos que buscamos
conhecer.
Uma importante questão metodológica que enfrentamos foi a definição das imagens a
serem usadas. Uma vez que defendemos que o objeto de conhecimento não é uma verdade a
priori, definimos aquilo que nosso grupo acordaria como sendo do campo artes visuais. Após
debate, formulamos a seguinte definição provisória que buscou contemplar nossas diferenças:
é arte aquilo que é construção humana cuja principal função é de caráter subjetivo e
simbólico e cuja aproximação se dá privilegiando a percepção e experiência estética
(Pereira, 2010), ainda que tais construções possam ter uma função objetiva/pragmática. Além
disso, não é arte tudo que advém do mundo natural. Não é nosso objetivo considerar essa
definição como balizadora de "acertos/erros" em relação a outras definições; apenas firmamos
nosso acordo inicial a partir do qual podemos debater o acordo dos estudantes. Com essa
definição, selecionamos as imagens a serem utilizadas e através das quais tentamos
contemplar algumas discussões presentes não apenas no campo das artes visuais, mas da
cultura artística escolar. São elas: imagem de um desenho infantil, realizado por criança de
oito anos (figura 2); imagem de uma festa junina escolar, registro pessoal de um dos
pesquisadores (figura 3); foto de conjunto de maracatu, em cerâmica policromada, da artista
Sueli, de Caruaru (figura 4); foto tirada aleatoriamente por um membro da equipe de
pesquisadores da Floresta da Tijuca (figura 5); imagem de parte do muro de Berlim, com
grafittes (figura 6); A Fonte, de Marcel Duchamp (figura 7); foto de Pixação Coletiva,
resultado do trabalho de conclusão de curso de graduação de Augustaitz na Escola de Belas
Artes de São Paulo, em 2008 (figura 8); foto de tatuagem, registro pessoal de um dos
membros da equipe (figura 9); A Sagrada Família, de Miguel Ângelo (figura 10) e foto do
trabalho Doze Meses, de Cadu (figura 11).
Para evitar uma narrativa à sequência de imagens, elas foram embaralhadas ao início
da sessão e distribuídas aleatoriamente ao grupo pesquisado. Além disso, os pesquisados
foram informados que deveriam reportar-se ao conteúdo da imagem e não à fotografia, com o
que corríamos o risco de que todas as imagens fossem generalizadas sob a égide de
"fotografia" e não analisadas individualmente.
Aqui, apresentamos os resultados da coleta de dados piloto, realizada com uma turma
de licenciandos, composta por oito alunos, cinco dos quais do sexo feminino e três do sexo
masculino, em abril de 2012, ao início do curso.
O debate durou 64 minutos, foi filmado e averiguamos a participação ativa dos
estudantes. A partir da análise do filme e de sua transcrição, a primeira observação a ser feita
refere-se à grande quantidade de classes de argumentos utilizada, ao todo 29 (ver gráfico,
figura 12), para um total de 172 argumentações. Isso faz com que boa parte dos argumentos
experimentados tenha sido utilizada apenas uma ou duas vezes pelos debatedores, sendo,
logo, substituída por outros argumentos no esforço de cada debatedor fazer valer sua tese.
Além disso, as diferentes problemáticas trazidas por cada imagem suscitou diferentes recursos
argumentativos para justificar a escolha dos pesquisados ao categorizar tais imagens. Isso
também denotou que os critérios que norteavam os juízos de valor a respeito delas eram
flutuantes, podendo cair algumas vezes em contradição. Em algumas passagens do debate os
pesquisados perceberam isso e apontaram as contradições como recurso argumentativo.
Conforme o debate avançou a tendência foi a do fortalecimento de algumas teses e
acordos principais que prevaleceram sobre outros argumentos. Destaca-se o uso de
argumentos de dissociação das noções, em particular o uso da ruptura de ligação (17%);
seguido de argumentos quase lógicos de inclusão da parte no todo (9,5%) e, por fim,
argumentos baseados na estrutura do real que utilizam técnicas de ruptura ou refreamento
de ligações de coexistência (6,5%).
O uso da dissociação de noções visa denunciar ligações que não se sustentam entre
elementos. A ruptura de ligação rompe a solidariedade entre noções e conceitos que se
apresentam ligados em um argumento (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2002, p 219-221). Os
argumentos quase lógicos têm aparência demonstrativa, inspirada nos raciocínios lógico-
formais, porém realizam operações de redução e de generalização que permitem inserir dados
e valores nos argumentos, de modo que a aparente demonstração pode ser contrargumentada
(Id ibdem, p 219-221). No caso da inclusão das partes no todo, pretende-se defender,
quantitativamente, que o todo tem maior valor que as partes, relacionando o que é
compreendido, com aquilo que o compreende (Id ibdem, p 262-265). Já os argumentos de
ligação baseados na estrutura do real se valem do estabelecimento de uma solidariedade
entre juízos admitidos e aqueles que se procura promover (Id ibdem, p 297). O recurso às
técnicas de ruptura ou de refreamento, nesse contexto, surge da necessidade de relativizar a
força que liga o ato de uma pessoa à própria pessoa, ao reconhecer-se a incompatibilidade
entre o que julgamos da pessoa e o que pensamos de seus atos (Id ibdem, p 353-361).
De modo geral, ao início do debate uma atitude diplomática estabeleceu-se entre os
participantes que simulavam acordos que viriam romper ao longo da discussão. Na medida
em que cada um avançou na defesa de suas justificativas para a definição das artes visuais,
observou-se que duas grandes teses estavam em curso, dividindo os participantes. Para o
grupo que chamamos A as artes visuais se definem por aquilo que já a legitimou
historicamente – a crítica, a acolhida pela instituição acadêmica, a trajetória do artista – e
pelas estratégias de legitimação mercadológicas contemporâneas, a saber, a força do conceito.
Para o grupo B a definição está na capacidade do objeto promover a experiência estética, que,
no caso, não vem separada da expressão da beleza, traduzida em domínio técnico por parte do
artista.
O primeiro grupo apoiou-se mais enfaticamente na ruptura de ligações, denotando um
lugar mais rígido de negociação. Já o segundo grupo utilizou prioritariamente os argumentos
de inclusão das partes no todo e de refreamento das ligações. Como na maior parte do tempo
marcou-se o debate por estratégias próximas de ruptura, os grupos não chegaram a consenso
como veremos em alguns exemplos abaixo.
Logo à primeira imagem apresentada, da Tatuagem, estabeleceu-se para o Grupo A a
ruptura entre arte e não arte a partir da dissociação entre aquilo que é "legítimo", ou
legitimado, no campo, e outras produções que, embora possam ter algum valor estético,
definitivamente não serão compreendidas como arte:
L: Ter um valor artístico não necessariamente admite que seja arte, aquela com "a"
maiúsculo, que é a que você vai determinar, por que, obviamente..., - aliás, eu
discordo que a técnica seja necessária... já foi, mas hoje em dia não mais, muito pelo
contrário, o conceito é muito mais importante, do que a técnica. Obviamente, a
tatuagem, assim como a moda, dependem muito de técnica e de uma elaboração, mas
eu não acredito que seja "a" arte a que a gente está se referindo que é, não
necessariamente institucionalizada, mas... não sei definir, né?
Vale ressaltar que o orador, além de mostrar a clara ruptura entre "aquilo" que é arte e
outras manifestações, tais como a tatuagem ou a moda, presume um acordo entre os
participantes do debate – "não acredito que seja "a" arte a que a gente está se referindo". Aqui
há uma clara petição de princípio ao tomar-se como ponto de partida a tese que se pretende
defender. Na contrargumentação um dos estudantes responde:
M: Na minha corrente de pensamento não deveria precisar de mais do que a imagem
porque a imagem é a obra e acabou, meu irmão. Porque eu não concordo com o
pensamento contemporâneo que você até falou que você tem todo um caminho para
chegar até o resultado final e é o que conta. Eu não acho legal, entendeu? Eu não acho
legal. Não estou dizendo que é certo nem que é errado é meu, entendeu? Na minha
concepção, o caminho pouco importa, importa é o cara olhar e falar e se é legal... Ou:
isso é uma bosta. Para mim, o que importa é isso.
Observa-se que a estrutura argumentativa é a mesma: ambas rompem ligações
possíveis, porém em direção oposta. Esses dois posicionamentos vão firmar-se e enrijecer-se
ao longo do debate e aparecerão de maneira clara na discussão sobre a imagem do desenho
infantil:
L: aliás, eu queria falar uma coisa, você falou sobre a questão do gostar, tipo... Eu
gostei muito desse negócio, eu, honestamente, não sei se foi uma criança ou não, mas
se foi uma criança, é uma criança que saiu totalmente do senso comum e da questão da
casinha e de não sei o que... E desenhou uma coisa super diferente, uma espécie de
monstro e tal que não é comum, não é comum para uma criança, mas, eu gostar não
significa que é arte.
Essa posição ganha adesão de parte do grupo e podemos destacar outro argumento
que, além de apoiar-se na ruptura, usa o exemplo para o reforço da tese:
B: é complicado falar da parte estética, assim como ela falou do desenho da criança
(referindo-se a L), que pode ser esteticamente lindo e não se circunscrever como arte,
ou não... Assim como se você vir, sei lá..., uma mulher bonita... Sei lá, ou alguma
comida maravilhosa, aquilo lá tem características sensoriais muito fortes e nem por
isso se inscreve nesse meio.
O mesmo teor de discussão vai se repetir entorno das imagens que não fazem parte do
circuito legitimado da arte acadêmica, de museus e de galerias – imagens da Festa Junina, do
trabalho de Sueli de Caruaru, do muro de Berlim, do grafitte de Augustaitz – e gerará dúvida
sobre o trabalho de Cadu, já que alguns o conheciam e outros o consideraram como fotografia
de uma conta de eletricidade. Nota-se o acirramento do debate, na medida em que os esforços
para convencimento do adversário diminuem e os argumentos tendem a apresentar-se
tautologicamente, como no caso da argumentação de B a respeito do trabalho de Augustaitz:
B: não se inscreve como arte, foi a primeira coisa que ela falou (referindo-se a L),
porque é só um protesto, para mim não tem o menor valor artístico.
No grupo B observamos o uso inicial da argumentação quase lógica na tentativa de
inclusão das partes no todo como meio de persuadir os demais para a justificativa do objeto
artístico, considerando outros valores que não apenas a legitimação em um mercado oficial da
arte e a intensidade conceitual da obra. Ao apresentar-se a imagem da obra de Sueli,
argumentaram do seguinte modo:
M: eu acho assim, se a gente for analisar que tudo é expressão, qualquer tipo de
expressão, então tem que ser arte também. Porque tudo bem, ele pode não ter feito
com a intenção de ser reconhecido, com a intenção de levar isso para uma galeria, mas
ele estava buscando representar o que está se volta dele ali, de alguma forma... Então
para mim tem que ser também...
Para reforçar esse posicionamento, o estudante T também irá colocar que:
T: para mim, uma manifestação cultural é arte.
Entretanto, não houve persuasão dos demais;
B: eu acho que a minha questão, por exemplo, com o mestre Vitalino, é uma coisa
assim, maravilhosa, é incrível. Mas eu acho que o único problema disso, a meu ver, é
que a gente falar que isso é arte dentro de um conceito de museu, de instituição, ainda
por menos mal que seja, é agente introjetar dentro dessa prática conceitos burgueses
nossos, porque quando ele fez isso ele não estava querendo levar esse status de artista
e ser tarimbado como artista.
Ainda que B, além do simples reforço à argumentação de ruptura – arte de museu, de
instituição – utilize, aqui, uma argumentação que presume ligações de coexistência entre a
pessoa e seus atos – "porque quando ele fez isso ele não estava querendo levar esse status de
artista e ser tarimbado como artista" – o faz de maneira a cometer uma petição de princípio, já
que não podemos afirmar que o artista não se via como tal.
Um currículo de soberania popular: isso é possível?
Na conclusão deste artigo vamos retomar o acordo do qual nosso grupo de pesquisa
partiu ao definir um conceito para as artes visuais:
É arte aquilo que é construção humana cuja principal função é de caráter subjetivo e
simbólico e cuja aproximação se dá privilegiando a percepção e experiência estética,
ainda que tais construções possam ter uma função objetiva/pragmática. Além disso,
não é arte tudo que advém do mundo natural.
Após analisar a coleta de dados, nosso grupo retornou ao grupo de estudantes
pesquisados e com base no material que analisamos e no acordo do qual partimos para essa
pesquisa, entramos no debate, contrargumentando algumas questões. Entre elas, ganharam
destaque os argumentos que buscavam novas ligações para o estatuto das artes visuais,
fundados, principalmente, em ligações que permitissem uma oposição à forte estrutura
argumentativa baseada na ruptura de ligações utilizada por parte dos estudantes. Além disso,
questionou-se a divisão de partes e todo da arte e as hierarquizações daí resultantes. Buscou-
se argumentar a favor da interação dos argumentos e questionar-se a negação das contratições
possíveis na constituição das culturas artísticas.
Ganhou força o debate sobre as especificidades locais e históricas das produções
culturais, com base na sociologia, em defesa do reconhecimento de especificidades brasileiras
que permitam aos futuros professores uma reflexão que os aproxime das experiências
artísticas de seus futuros alunos, relativizando o entendimento da arte a partir da perspectiva
eurocêntrica estabelecida em seus estudos universitários.
Após esse debate, foi elaborado conjuntamente pelos estudantes um currículo
norteador para o curso de didática e objetos de pesquisas para serem investigados durante seu
estágio supervisionado.
Esse programa está em curso no presente ano e é parte constitutiva dessa pesquisa que
se desdobrará ao ano de 2013, quando poderemos averiguar a viabilidade de um currículo de
soberania popular.
Bibliografia
BARBOUR, Rosaline. Grupos Focais. Porto Alegre: Artmed, 2009
.
FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria
& Educação: Discurso pedagógico, cultura e poder, Porto Alegre, Pannonica Editora, nº 5, p.
28-49, 1992.
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Coleção Ciências sociais da educação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, 7ª edição.
PEREIRA, Marcelo A. A Materialidade da Comunicação Docente. In ICLE, Gilberto (org).
Pedagogia da Arte: entre-lugares da criação. Porto Alegre: Ed UFRGS, 2010.
PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova
Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Imagens
Figura 1
fonte: Disponível em: <http/:www.opiniaocritika.blogspot.com/2012/03/50-anos-de-
mafalda.html> Acessado em: 20/06/2012.
Figura 2
fonte: acervo de pesquisa.
Figura 3
fonte: acervo de pesquisa.
Figura 4
fonte: FUNARTE. Instituto Nacional do Folclore, Museus de Folclore Edison Carneiro, 1981,
p 31
Figura 5
fonte: acervo de pesquisa.
Figura 6
fonte: acervo de pesquisa.
Figura 7
fonte: MINK, J. Marcel Duchamp 1887-1968: a arte como contra-arte. Colônia, Al: Taschen,
1996, p 66.
Figura 8
fonte:<http://www.flickr.com/photos/choquephotos/4079638159/> Acessado em 01/10/2011.
Figura 9
fonte: acervo de pesquisa.
Figura 10
fonte: BERTI, L. Tutte le opere di Michelangelo. Firenze, It: Bonechi Editore, 1980, p 45.
Figura 11
fonte: VENANCIO, P Fº. Nova arte nova. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil,
2008, p 56-57.
Figura 12