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Rev. Evaldo Beranger Rio de Janeiro 20/11/2015 Introdução à Interpretação Bíblica: Hermenêutica e exegese.

Curso introdutório de Interpretação da Bíblica - Hermenêutica e Exegese - Evaldo Beranger.pdf

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Rev. Evaldo Beranger

Rio de Janeiro

20/11/2015

Introdução à Interpretação Bíblica: Hermenêutica e exegese.

1

Sumário Professor 7

Redes sociais 7

Uma definição e entendimento dos termos: Exegese e Hermenêutica e a relação entre

os dois. 8

Definindo e Entendendo: Exegese e Hermenêutica 8

Relação entre Exegese e Hermenêutica 8

Exegese 8

Hermenêutica 9

Interpretar – Vem de Hermes Hermes 9

Definições das disciplinas teológicas e termos 11

O leitor como intérprete 12

Funções da Linguagem 12

A natureza da Bíblia 12

Elementos Subrenaturais da Bíblia 13

Identificando o Texto 13

Como abordar um texto narrativo 13

PRINCÍPIOS GERAIS 14

A Relação do Espírito Santo com a Interpretação 14

Simpatia ou aversão 15

As diversas leituras da Bíblia 16

Leitura Devocional 17

Leitura Litúrgica 18

Leitura catequética ou de discipulado 18

Leitura teológica 18

Leitura Exegética 18

Outros tipos de leitura da Bíblia 18

Leitura Ingênua da Bíblia 18

2. Leitura Intuitiva 19

3. Leitura Fundamentalista 19

Lendo contextualmente um Texto: 20

1. Aproximação do texto original: Contexto Histórico. 21

2. Aplicação do texto para nossa realidade: 21

Alegoria em Paulo 43

2

Como a Interpretação Bíblica caminhou desde a Patrística até os dias atuais? 46

Breve História da Interpretação da Bíblia 46

Período Pré-Crítico AS ESCOLAS PATRÍSTICAS: Séculos III a V d.C. 46

Escola de Alexandria 46

A Escola de Antioquia 46

Agostinho de Hipona – Século IV 46

Jerônimo e os nomes bíblicos 47

A Preparação para a Idade Média 48

Regula Fidei 49

Erasmo de Roterdã 49

Princípios da exegese Protestante 50

João Calvino 50

Princípio fundamental de Calvino 50

O PERÍODO CONFESSIONAL: 50

PÓS-REFORMA Séculos XVII -XVIII 50

“Idade das denominações” 51

Inspiração mecânica das Escrituras 51

O Movimento pietista: 51

O sentido psicológico: 51

O que eu sinto sobre... 51

O período histórico-crítico 52

Schleirmacher 52

O Liberalismo Teológico 52

Necessidade de nova abordagem. 52

A Escola Gramatical A Escola Historicista 53

A Escola Historicista 53

Racionalismo 53

MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO 53

ORIGENS 53

O Método gramático-histórico 54

DILEMAS 54

Histórico-crítico 54

Filho de sua época 55

NOVIDADE 55

3

Científico 55

IMPULSOS 55

Cânon: Normativo x formal 56

Lutero 56

Métodos diacrônicos de Pesquisa das Escrituras. 56

Métodos diacrônicos 59

Crítica das Fontes: 59

Crítica da Forma: 59

Crítica da Redação: 59

Deficiências no método 59

A. Problemática atual 61

B. O objetivo deste documento 63

I. MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO 63

A. Método histórico-crítico 63

2. Princípios 65

3. Descrição 65

4. Avaliação 66

B. Novos métodos de análise literária 67

1. Análise retórica 67

2. Análise narrativa 69

3. Análise semiótica 70

C. Abordagens baseadas na Tradição 72

1. Abordagem canônica 72

2. Abordagem com recurso às tradições judaicas de interpretação 73

3. Abordagem através da história dos efeitos do texto 74

D. Abordagens através das ciências humanas 75

1. Abordagem sociológica 75

2. Abordagem através da antropologia cultural 77

3. Abordagens psicológicas e psicanalíticas 77

E. Abordagens contextuais 79

2. Abordagem feminista 80

F. Leitura fundamentalista 82

II. QUESTÕES DE HERMENÊUTICA 84

A. Hermenêuticas filosóficas 84

4

1. Perspetivas modernas 84

2. Utilidade para a exegese 85

B. Sentido da Escritura inspirada 86

Princípios da hermenêutica Reformada. 91

A Exegese Histórica- Gramatical- Literária. 106

Síntese X Análise 112

Estrutura de uma exegese 113

Introdução 113

Pressupostos para a Exegese 114

Pressupostos Teológicos 114

Pressupostos Técnicos 114

Pressupostos metodológicos 114

Sincronia e Diacronia. 114

A Delimitação do Texto 114

Perícope: 114

Os limites do texto 115

Outros Exemplos 115

Critérios para a Delimitação do texto 115

Critérios Externos: 115

Texto Narrativo ou argumentativo? 116

Texto narrativo: 116

Texto argumentativo: 116

Elementos que indicam um novo início da perícope. 116

Mudança de Actantes ou personagens. 117

Mudança de argumento 117

Mudança de perspectiva 117

Anúncio de um novo tema 118

Títulos internos 118

Introdução ao novo discurso 119

Mudança de estilo 119

Elementos que indicam o término da perícope. 119

Elementos que aparecem ao longo texto e marcam a perícope. 119

Narrativas Históricas 121

Literatura Profética 121

5

Lei 122

Outras tantas... 122

Sabedoria 123

Salmos 123

Evangelho 123

Parábolas 125

Cartas 127

Apocalíptica 128

Conclusão 128

Interpretando Narrativas 128

Um pouco de História 129

Novo Testamento e os Novos Estudos Literários 129

O Estudo do gênero literário narrativo2 130

A análise das narrativas no contexto do Novo Testamento 131

TEXTO 131

A DELIMITAÇÃO DA NARRATIVA: 132

A INTRIGA: 132

OS PERSONAGENS: 133

O CENÁRIO OU QUADRO: 133

O TEMPO: 133

A VOZ NARRATIVA (focalização e ponto de vista): 133

A análise narrativa no contexto do intérprete 134

Introdução 137

Hermann Gunkel 137

Gattungsgeschichte 137

Gêneros Literários Maiores no Novo Testamento 137

Gêneros Menores 138

Classificação dos Gêneros dos Evangelhos 138

Divisão principal, segundo Bultmann 138

Tradição Histórica 138

Tradição da Palavra 138

Tradição Histórica: 138

Relato de Milagre 138

Relatos de Vocação 138

6

Controvérsias 138

Tradição da Palavra 139

Tradição da Palavra 139

Paradigmas ou apoftegmas 139

Taylor e Bultmann 139

Pardigmas Puros – Para Dibelius 139

Outros exemplos 139

Temas dos paradigmas ou apoftegmas 140

Pardigmas menos puros (híbridos) 140

Outros Exemplos 140

Apoftegmas 141

Controvérsias, diálogos e biográficos 141

Diálogos de Disputas ou Controvérsias 141

Outros exemplos 142

Apoftegmas Biográficos 142

Outros Exemplos 142

Dibelius e Bultmann apresentam os traços formais dos Paradigmas. 143

7

Curso introduto rio de Interpretaça o da Bí blica Hermene utica bí blica

Professor Rev. Evaldo Beranger - Professor Mestrando em

Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro PUC-Rio. Possui bacharelado em Teologia pelo

Seminário Presbiteriano do Sul (1982-5) e complementação

para mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro (2006-7). Tem experiência como

ministro presbiteriano e professor na área de Teologia, com

ênfase em Exegese do Novo e Antigo Testamento, língua

grega Coiné e hermenêutica bíblica. Como pastor, tem suas

ênfases em Pregação (Homilética), aconselhamento pastoral

com casais, noivos e jovens, após 9 anos atuando como pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana

do Rio de Janeiro - Catedral Presbiteriana do Rio, foi eleito pastor efetivo da Igreja Presbiteriana

Luz do Mundo - Laranjeiras - Rio de Janeiro, RJ para um mandato de 5 anos a começar de

09/01/2011. Leciona Exegese e Teologia Bíblica do Antigo Testamento no Seminário Teológico

"Escola de Pastores" Cúriculo Lattes CV: http://lattes.cnpq.br/2597207885006980

Redes sociais www.facebook.com/cursos.lidercristao

http://peninha-almanaque.blogspot.com.br

www.youtube.com/user/evaldoberanger

www.facebook.com/luzdomundo.igrejapresbiteriana

8

Para compreender o estado atual

dos estudos Exege ticos

Uma definição e entendimento dos termos: Exegese e

Hermenêutica e a relação entre os dois.

Definindo e Entendendo: Exegese e Hermenêutica

Relação entre Exegese e Hermenêutica

Exegese

Qual e a relação entre os dois, nos estudos da interpretação Bíblica?

Exegese evk ek

De dentro para fora agw agô

Conduzir

Hermenêutica e`rmhnei,a Hermes

Interpretar,

explicar, tornar

claro

9

A primeira tarefa da Exegese é “conduzir” “para fora” do texto o sentido original.

Precisamos aprender a ler o texto com os olhos, ouvidos e cultura da época (Método

Histórico-Crítico)

A Exegese descreve as etapas ou passos (método) que cabe dar na interpretação do

texto dentro de seu contexto histórico, linguístico e cultural. Sua tarefa é levar o leitor

atual a mergulhar no passado, para ouvir e perceber o texto Bíblico em seu contexto e

escopo próprio.

Hermenêutica

Os astros fixos visíveis no céu a olho nu são chamados de estrelas, Mas há cinco que

mudam de posição em relação as estrelas como se estivessem soltos no céus. São chamados

pelos gregos de planetas. Estes astros viajantes do céu – Planetas – do Grego: Planaô – que

significa ‘errantes” foram considerados como deuses e o mais rápido dele era Hermes, o deus

da comunicação, o mensageiro dos deuses.

Interpretar – Vem de Hermes Hermes

Do termo Hermes vem Hermenêutica e`rmhnei,a - (Gregos) ou Mercúrio (Romanos) era

o Mensageiro dos deuses na mitologia grega. Exegese e Hermenêutica Relação entre

A Hermenêutica Bíblica descreve os princípios e regras que regem a interpretação dos

textos conforme uma tradição – Atualização Bíblica.

Sua tarefa é trazer os textos para os dias atuais e aplicá-lo à vida e necessidade do

homem moderno

10

Diferença entre as disciplinas

teolo gicas

11

Entender a relação que

existe entre estas disciplinas do

estudo bíblico é essencial para

que possamos trabalhar com a

interpretação Bíblica.

Já vimos o que são

exegese e Hermenêutica e uma

rápida comparação entre as

duas. Precisamos agora, para

nos situar, entender o que é

teologia.

No quadro há algumas

perguntas para nos orientar:

Definições das disciplinas teológicas e termos

Teologia é o estudo das coisas concernentes a Deus. Em especial a teologia reformada

parte da Revelação que o próprio Deus faz de si mesmo através de seu filho Jesus Cristo e de

sua Palavra inspirada por ele.

Doutrina é o ensino que a Bíblia nos dá e nos orienta, já que a Bíblia é para os cristãos

protestantes, a única regra de fé e Prática.

Dogma é a formulação desta doutrina através de uma declaração da igreja ou de um

concílio.

Credos ou Confissões são documentos doutrinários que sintetizam as doutrinas e

dogmas estabelecidos pelo cristianismo em determinada época ou de um determinado

movimento teológico.

Podemos dizer que os principais dogmas do Cristianismo foram estabelecidos nos

primeiros 7 concílios cristãos e que estes são comuns aos cristãos católicos, ortodoxos e

protestantes. Constituem-se na espinha dorsal do cristianismo. À medida em que a igreja foi se

dividindo e se diversificando surgiram doutrinas divergentes, dogmas não aceitos

universalmente e cada movimento sintetizou sua fé (doutrinas) em credos, confissões ou

declarações doutrinárias, bulas, decretos ou documentos.

A Teologia sistemática é a ciência que estuda este desenvolvimento do que a igreja ou

igrejas creem. É uma sistematização das doutrinas (ensinos) usando metodologias da filosofia,

sociologia, surgindo assim modos diferentes de leitura e interpretação da Bíblia, conforme os

pressupostos teológicos adotados.

A leitura da Bí blia

12

Quando nos aproximamos da Bíblia estamos, na verdade, procurando métodos para a

sua leitura. Precisamos decodificar o texto que se nos apresenta, entende-lo em seu contexto

histórico, linguístico e social e tirar dele lições para os nossos dias e especialmente para a nossa

vida.

O leitor como intérprete

Funções da Linguagem Função Expressiva ou Subjetiva da Linguagem – Emissor

Função conativa ou apelativa da linguagem – Receptor

Função Objetiva ou Referencial da Linguagem – Objeto

Função fática da Liguagem – Canal.

Função metalinguística da Liguagem – código

Função poética da linguagem - mensagem

A natureza da Bíblia Livro divino: foi inspirado por Deus

Livro humano: Foi escrito por homens movidos por Deus

Livro histórico: Aconteceu no tempo e no espaço geográfico

Livro científico: Levava em conta a ciência da época e não a ciência atual ou

futura

Livro legendário: ”Legend” em inglês significa aquela memória coletiva que um

povo ou um grupo guarda de um acontecimento histórico. Muitas vezes,

detalhes são ampliados para dar vida à narrativa, mas permanece o fato

histórico dentro da memória coletiva e da tradição oral.

13

Livro com linguagem simbólica: Às vezes, o hagiógrafo (escritor sagrado) utiliza-

se da linguagem aparentemente mitológica pois é a linguagem entendida pelos

seus ouvintes originais. Faz parte deste gênero, por exemplo, o gênero

apocalíptico.

Não é um Livro e uma biblioteca.

Livro divino – humano

Elementos Subrenaturais da Bíblia Revelação

Deus revela-se a si mesmo aos homens de forma mais completa em Jesus Cristo. Ele é a

epifania de Deus, sua manifestação mais intensa, sua exegese. Os hagiógrafos (escritores

sagrados) são movidos por Deus a registrar esta revelação, por isso a Bíblia é também revelação

e tem o caráter divino-humano, como Cristo, Para a teologia reformada Deus se revela, de forma

geral na natureza e de forma especial nas Escrituras. Revela-se em seu filho salvando e

reconciliando consigo o pecador.

Inspiração

É o mover de Deus através de seu Espírito para que o hagiógrafo registre fielmente a

revelação de Deus, respeitando seus limites, cultura e cosmovisão e sem torna-lo um mero

amanuense, mas agindo dinamicamente em seu ser de modo que as Escrituras se tornam a

verdadeira Palavra de Deus, sem deixar de ser Palavra de homens. O testemunho da revelação.

É chamada dinâmico-plenária, pois envolve a dinâmica divino-humana e atinge todo o canon.

Iluminação

É a ação do Espírito Santo no leitor e intérprete da Bíblia, de tal forma que ele é guiado

por Deus no conhecimento e entendimento da mensagem do Senhor. A iluminação não dispensa

o conhecimento o humano, pelo contrário, o dinamiza e o direciona à medida que o leitor se

apropria da palavra de Deus com seu intelecto e razão acolhendo pela fé a orientação de Deus

Identificando o Texto Texto narrativo

Texto poético

Linguagem Histórica

Linguagem legendária

Linguagem mitológica

Linguagem apocalíptica

Conselhos, leis, doutrina, parênese.

Evangelho, biografia, parábola, alegoria.

Como abordar um texto narrativo Quem? - Sujeito do texto.

A quem? –

14

O quê?

Como ?

Quando?

Porque?

Com que propósito?

Quais as figuras de linguagem?

Que perguntas o texto levanta?

PRINCÍPIOS GERAIS

O Espírito Santo e a Hermenêutica

Princípios gerais

O Espírito Santo e a Hermenêutica

A Relação do Espírito Santo com a Interpretação

Uma Passagem Chave: Crux interpretum

Uma passagem chave em uma interpretação teológica é conhecida como uma crux

interpretum. Tal texto é um eixo, no qual o ponto de vista do indivíduo vai se apoiar.

Entre os textos mor das cruces hermenêuticas, há duas passagens:

1 Cor 2:12-14 e 1 João 2:20, 27. 1 Cor 2:12-14

NVI: 12 Nós, porém, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito procedente de Deus,

para que entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente.

13 Delas também falamos, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com

palavras ensinadas pelo Espírito, interpretando verdades espirituais para os que são espirituais.

14 O homem que não tem o Espírito não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus, pois lhe

são loucura; e não é capaz de entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente

1 João 2:20, 27

A Relação do Espírito Santo com a Interpretação

O trabalho do Espírito é primariamente no campo da convicção, ao invés do da cognição.

Ao mesmo tempo, até mesmo nesta área necessita-se de nuances. A convicção de um indivíduo

de fato tem um impacto em sua percepção. Assim, pode-se dizer que o Espírito Santo auxilia

nossa interpretação, mesmo que este papel se limitasse àquele da convicção. Como?

Conhecimento por experiência tem um efeito bumerangue na compreensão intelectual.

Em várias áreas, se um intérprete já experimentou o que lhe está sendo proposto, ele(a) pode

15

compreender tal verdade. Por exemplo, se alguém nunca se apaixonou, terá dificuldades em

compreender completamente tudo que um romance envolve.

Na medida em que alguém é desobediente às Escrituras, ainda que respeite sua

autoridade, pelo menos com seus lábios, ele irá distorcer as Escrituras (veja 2 Pedro 3:15-16).

Por outro lado, na medida em que alguém é obediente às Escrituras, ele(a) estará numa melhor

posição para compreender uma verdade e lidar com ela com honestidade.

Simpatia ou aversão O entendimento. O mais simpatizante exegeta é o crente. Um intérprete não-

simpatizante geralmente se equivoca, por causa da falta de desejo de compreender.

Isto pode ser facilmente ilustrado na arena política. Aqueles que são rigorosos quanto a

retidão de um certo partido tendem a criticar tudo que é do outro partido.

Até mesmo entre cristãos há frequentemente um “cânon dentro de um cânon. ” Isto é,

alguns livros/autores são mais altamente respeitados do que outros.

Se não cultivamos isenção por todos os ensinamentos das Escrituras, fechamo-nos ao

que ela nos têm a dizer.

Aqueles que abraçam em princípio uma crença no sobrenatural estão em melhores

condições na interpretação tanto de milagres, quanto de profecias. Estes elementos das

Escrituras simplesmente não podem ser tratados adequadamente por incrédulos. Isto vai muito

além da mera simpatia para a visão universal.

Se alguém consistentemente descrê que profecias podem ser cumpridas, então ele terá

que explicar as porções proféticas das Escrituras de outra maneira, e não como reais

comunicações de Deus.

Ou elas serão descreditadas como não realizadas, ou de outro modo serão tratadas

como vaticinium ex eventu (ou profecia após o fato). Milagres também necessitarão ser

reescritos para que sejam etimologizados.

A crítica de C. S. Lewis, muitas décadas atrás, ainda é tida como uma acusação válida

contra tal tratamento das Escrituras: tratar as Escrituras – especialmente o NT – como sendo

cheio de fábulas pressupõe uma linha do tempo que é demonstravelmente falsa.

O espaço entre o tempo dos eventos até o relato da narrativa é simplesmente muito

curto, não achando assim nenhum paralelo em qualquer literatura histórica acreditável. Lewis

conclui que aqueles que chamam o NT de “cheio de fábulas”, nunca na verdade estudaram

fábulas.

Ou como Vincent Taylor, o erudito britânico notou, considerar os documentos do NT

como cheios de mitos pressupõe que todas as testemunhas devam ter desaparecido quase que

imediatamente após os eventos se realizaram. Resumidamente, quando se trata de profecias e

milagres, o crente está em melhor posição para compreender a mensagem. Isto é parecido com

a acusação de Jesus aos Saduceus por não aceitarem a ressurreição: “Errais, não conhecendo as

Escrituras nem o poder de Deus.”

O testemunho interior do Espírito (veja Rom 8:16; 1 João 2:20, 27, etc.) é um fator

importante tanto na convicção, quanto na percepção de verdades centrais das Escrituras.

16

Iluminação geral é uma área na qual o Espírito ajuda nossa interpretação. Por iluminação

geral, eu quero dar a entender seu trabalho em nos ajudar a entender qualquer área da vida e

do mundo.

Iluminação corporativa e histórica: através de todo o corpo de Cristo, tanto em sua

manifestação atual, quanto através da história – crentes têm chegado a um melhor

entendimento da vontade de Deus e da palavra de Deus.

Nós não ousamos, contudo, elevar tanto a opinião consensual, quanto a tradição ao

status de autoridade infalível! Mas, tais áreas também não devem ser relegadas ao desdém.

Afinal de contas, o Espírito Santo não começou com você, quando ele começou a ensinar

a Igreja; ele tem estado neste empreendimento há alguns séculos.

Exegese e Hermene utica como

formas de leitura da Bí blia

As diversas leituras da Bíblia

17

Leitura Devocional É o direcionamento mais básico e espontâneo de nossa leitura: buscamos no texto

bíblico respostas para nossos anseios e luz para nossas decisões, pois nós o tomamos como

instrumento para dialogarmos com Deus

Lectio Divina: Método de leitura “orante” ou devociaonal desenvolvida pelos monges da

idade Média, em especial Inácio de Alexandria, também introdutor da chamada devoção

Inaciana. Parte-se do texto da Bíblia e vai se exercitando em práticas devocionais até que o

texto se transforma em ação através da vida do leitor.

A Leitura devocional (Jeito

protestante de se referir a ela) ou Orante

(Termo católico Romano) é o tipo de leitura

mais importante que se deve fazer

diariamente, pois, se constitui no alimento

da Palavra de Deus, sem o qual as outras

formas de leitura se tornam ineficazes e até

farisaicas.

18

Leitura Litúrgica Os vários textos lidos durante uma celebração litúrgica nos levam ao contato com Deus

e à reflexão. A leitura litúrgica pode ser aproveitada com mais profundidade quando se conhece

a História da Salvação. A comparação destes atos salvíficos na liturgia com a nossa vida,

aprofunda e avalia a nossa fé.

Leitura catequética ou de discipulado Este é um tipo de leitura que não é passiva, mas exige um substrato de conhecimento

da teologia e da história da Salvação. Trata-se de ter fundamentos sólidos para podermos

atualizar a experiência de fé, compreender e fixar os fatos e personagens bíblicos e usá-los

(atualizá-los) como elemento formador da fé, do intelecto e da vontade, colocando o ser

humano integral a serviço de Deus.

Leitura teológica É um nível de leitura que não visa só formar a fé, mas articular uma reflexão mais

racional. Pressupõe e requer instrumentais de base para a reflexão crítica da fé e dos dogmas,

tais como: filosofia, história, ciências da linguagem, etc..

Leitura Exegética Busca-se, neste nível, compreender o texto bíblico em si mesmo: as idéias, as intenções,

a forma literária de um texto específico e suas relações formais com outros textos. Entramos no

campo das ciências bíblicas, um conjunto de propostas de leitura, com metodologias,

pressupostos e critérios altamente elaborados ao longo dos séculos.

Outros tipos de leitura da Bíblia

Leitura Ingênua da Bíblia A leitura ingênua da Bíblia é um dos tipos mais comuns de leitura e interpretação dos

textos bíblicos em nossos dias. Vejamos a definição de Lara (2009, p.42) a respeito desse tipo de

leitura: “Leitura ingênua da bíblia pode ser definida como aquela que é feita sem a consciência

de mediações e interesses. Faz-se a leitura de modo a impor a nossa realidade (nosso pré-texto),

sem considerar o próprio contexto de quem escreve”.

Segundo esse mesmo autor (Lara, p.42), esse tipo de leitura comete dois erros básicos:

1. Não admite que a realidade do leitor condicione a leitura e, consequentemente,

a interpretação do texto;

2. Acredita que Deus mesmo ditou a Bíblia ou a escreveu de próprio punho.

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2. Leitura Intuitiva Alguns autores preferem chamar esse tipo de leitura de hermenêutica intuitiva. Bem,

independente disso, estamos diante de um dos tipos de leitura/interpretação mais praticados

na atualidade.

A comunicação nesse tipo de entendimento é direta. Deus fala e o leitor ouvinte,

automaticamente, assimila a mensagem completa. Nesse caso, todos os elementos por trás do

texto são ignorados.

Esse tipo de leitura é muito comum em nossas leituras bíblicas devocionais. Entretanto,

a meu ver, trata-se de um caminho um tanto quanto perigoso. Alguns estudiosos alertam para

as divisões e crises causadas por esse tipo de leitura já que seus leitores dependem

exclusivamente, conforme diz o termo, de sua intuição para chegarem a algumas conclusões

sobre o texto lido.

Existem aqueles que defendem a validade dessa leitura pelo argumento da ação e

dependência do Espírito Santo para compreensão e aplicação de um texto. Embora não

neguemos a iluminação do Espírito em qualquer instância do trabalho hermenêutico,

consideramos esse argumento um tanto quanto questionável.

3. Leitura Fundamentalista Não se trata de um método, propriamente dito. Entretanto é interessante abordar aqui

esse tipo de leitura, já que sua utilização é muito comum em vários ambientes e setores cristãos.

Vamos contar mais uma vez com Lara (p. 43) que define a leitura fundamentalista da seguinte

forma: “é a leitura presente em qualquer religião (e até mesmo denominações cristãs) que

impõe a sua própria fé como verdade única e absoluta”. Na sua forma de leitura bíblica

aparecem as seguintes características:

1. Leitura direta: sem considerar qualquer aspecto contextual;

2. Leitura literal: não leva em conta os aspectos literários na construção de um

texto, utilizados pelo autor;

3. As escrituras são a palavra direta do próprio Deus;

4. As escrituras são normas de comportamento universal. Isso significa uma leitura

moralista e legalista (leis absolutas acerca da conduta humana independente do contexto e

condições que cada situação se aplica).

Normalmente, nesse item (4), surgem dúvidas e a necessidade de exemplos. Vejamos,

então, uma amostra simples, mas que pode nos alertar quanto à dificuldade nesse tipo de

leitura.

• Texto: 1 Coríntios 11: 1-16

1. Tornem-se meus imitadores, como eu o sou de Cristo.

2. Eu os elogio por se lembrarem de mim em tudo e por se apegarem às tradições,

exatamente como eu as transmiti a vocês.

3-10. Quero, porém, que entendam que o cabeça de todo homem é Cristo, e o cabeça

da mulher é o homem, e o cabeça de Cristo é Deus. Todo homem que ora ou profetiza com a

20

cabeça coberta desonra a sua cabeça; e toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça

descoberta desonra a sua cabeça; pois é como se a tivesse rapada. Se a mulher não cobre a

cabeça, deve também cortar o cabelo; se, porém, é vergonhoso para a mulher ter o cabelo

cortado ou rapado, ela deve cobrir a cabeça. O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele

é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. Pois o homem não se originou da

mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas

a mulher por causa do homem. Por essa razão e por causa dos anjos, a mulher deve ter sobre a

cabeça um sinal de autoridade.

11-16. No Senhor, todavia, a mulher não é independente do homem, nem o homem

independente da mulher. Pois, assim como a mulher proveio do homem, também o homem

nasce da mulher. Mas tudo provém de Deus. Julguem entre vocês mesmos: é apropriado a uma

mulher orar a Deus com a cabeça descoberta? A própria natureza das coisas não lhes ensina que

é uma desonra para o homem ter cabelo comprido, e que o cabelo comprido é uma glória para

a mulher? Pois o cabelo comprido foi lhe dado como manto. Mas se alguém quiser fazer

polêmica a esse respeito, nós não temos esse costume, nem as igrejas de Deus.

• Observações Preliminares:

Antes de qualquer coisa é necessário entender que estamos diante de uma carta

(gênero literário). Isso significa que Paulo escreveu para um grupo específico, em um lugar

específico, em um momento específico, tratando de um problema particular daquele grupo.

Sem falar que vários dos conteúdos de suas cartas são respostas (provavelmente recebeu uma

carta primeiro) a respeito de situações isoladas, de conflito, que as igrejas estavam enfrentando.

Só isso já seria suficiente para não transformarmos o tema abordado em um conteúdo

universal. O problema da leitura fundamentalista é exatamente esse: transforma uma instrução

especifica em conteúdo universal. Em alguns casos, pior ainda, seleciona, arbitrariamente,

aquilo que considera um problema de ordem contextual – não aplicável aos nossos dias – e

aquilo que deve ser lido de forma literal.

• Assunto em Questão: as mulheres não cortem seus cabelos e usem um véu para

segurá-lo.

Lendo contextualmente um Texto: Uma leitura e, consequentemente, uma aplicação fundamentalista tendem a aplicar o

texto, em nossos dias, na forma que se apresenta. Entretanto, consideramos tal postura como

um problema e um erro. Mas o que fazer com o texto então? Já que não se aplica a nossa

realidade devemos ignorá-lo? Riscar de nossas bíblias? É certo que não! Precisamos nos lembrar

(unidades anteriores) dos dois passos fundamentais que a hermenêutica se ocupa:

1. Aproximação do texto original: Contexto do autor, contexto do fato descrito,

língua utilizada e suas particularidades, elementos culturais, elementos sociais, destinatários e

suas demandas, gênero literário, etc.

2. Aplicação do texto para nossa realidade: Cuidar para que a aplicação seja

coerente e honesta com as descobertas realizadas no processo de aproximação. Ou seja, de que

forma o mesmo rompe com as barreiras do distanciamento e se torna tão real e preciso para

nós como foi para os primeiros leitores, a quem os escritos foram destinados.

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1. Aproximação do texto original: Contexto Histórico. Passo a apresentar algumas questões sócio-históricas a respeito de Corinto. Perceba que

apenas esses elementos (nem entraremos em questões literárias) já seriam suficientes para

olharmos para nosso texto-exemplo com outros olhos. Vejamos:

Quando Paulo trata dos cabelos das mulheres, ele não está se posicionando contra as

mulheres. Muito pelo contrário. Esse texto é um avanço em favor das mulheres. Nas sinagogas,

por exemplo, as mulheres não podiam falar, dar opiniões, orar, estudar a Torah e muito menos

ensinar. Vejamos no texto que nas igrejas nascentes, inclusive a de Corinto, elas podem orar e

profetizar (anunciar a Palavra de Deus). A questão de Paulo é sobre o bom testemunho nas

assembleias e no cotidiano.

Corinto era uma cidade portuária, muitos viajantes passavam por lá. Era identificada

pelos altos índices de prostituição. Havia a prostituição normal e a prostituição sagrada (culto a

Afrodite). As mulheres que eram prostitutas na cidade (prostituição normal) raspavam o cabelo

para serem identificadas como tais e se diferenciarem das mulheres casadas e donzelas. Já as

prostitutas que serviam no alto da montanha (prostituição sagrada no templo de Afrodite)

enquanto dançavam iam soltando os cabelos (que até então estavam trançados) para seduzir os

homens. Nesse culto à deusa do sexo, soltar os cabelos era um ritual de sedução. Além disso,

naturalmente, o cabelo solto era um elemento sedutor.

Paulo enfrenta, então, esse conflito e precisa responder a essa questão específica. Qual

deveria ser a postura das mulheres nas comunidades cristãs, principalmente das que pregam e

oram nas assembleias? Veja que a resposta nasce de um problema. Portanto, universalizar esse

ensino, sem saber o que está acontecendo, assim como fazem os leitores fundamentalistas,

pode ser um erro grave de leitura e interpretação.

2. Aplicação do texto para nossa realidade: Isto é que chamamos de atualização ou aplicação do texto para a vida e contexto do

leitor e ouvinte da Plavra de Deus

Visa o Panora mica da Histo ria da

Interpretaça o da Bí blica

A seguir reproduzo uma apresentação Power- Point que fiz sobre a interpretação Judaica

das Escrituras para compreendermos melhor como os judeus da época de Jesus Cristo

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compreendiam as Escrituras e os métodos muitas vezes estranhos que eles se utilizavam para

interpretar as Escrituras.

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Alegoria em Paulo • O próprio Paulo não confessou estar usando de alegoria ao falar de Sara e Agar

em Gálatas 4.24-31 ?

• Existe uma linha muito fina de distinção entre o uso que Paulo faz de uma alegoria e

uma alegorização do Antigo Testamento.

• Esse ponto crítico encontra-se em Gálatas 4.24.

• Nesse versículo, Paulo usou uma expressão grega bastante incomum

que pode ser traduzida como "tudo aquilo que pode ser colocado em

uma alegoria".

• Àquela altura, Paulo havia decidido que desejava tanto transmitir sua

mensagem que decidiu adotar, momentaneamente o método com o

qual tantos judeus do seu público estavam familiarizados.

• Entretanto, com isso ele não pretendia interpretar o que Gênesis havia afirmado sobre

aquelas duas mulheres ou aquilo que Gênesis estava ensinado por meio de um sentido

de hyponoia.

• Numa avaliação mais detalhada, portanto, esse suposto exemplo desaparece.!

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Como a Interpretação Bíblica caminhou desde a Patrística até

os dias atuais?

Breve História da Interpretação da Bíblia

Período Pré-Crítico AS ESCOLAS PATRÍSTICAS: Séculos III a V d.C.

Escola de Alexandria

Influência da Escola de Alexandria.

Rica Influência do Mundo Helenístico sobre a Cultura Cristã. Principais expoentes: Filo

de Alexandria, Clemente de Alexandria e Orígenes.

Método Alegórico de Interpretação das Escrituras. Clemente de Alexandria "Toda

Escritura deve ser entendida alegoricamente". Segundo Clemente, o sentido literal só podia

proporcionar uma fé elementar, enquanto que o sentido alegórico conduzia ao sentido mais

profundo e, portanto, verdadeiro

Orígenes de ALEXANDRIA: Segundo Platão o Homem se compõe de Corpo, Alma e

Espírito. A Escritura também tem 3 sentidos: O literal ou histórico que corresponde ao corpo. O

Moral que corresponde à alma. O Espiritual, que corresponde ao Espírito. A Escola Alexandrina

Tendia a desprezar o sentido literal e raramente se referia ao sentido moral das Escrituras. O

método alegórico a era a maneira de alcançar o sentido mais profundo das Escrituras. Era o

sentido espiritual. As coisas sempre significavam algo além, que estava escondido, dependendo

da imaginação do intérprete.

A Escola de Antioquia

Diódoro,- Escreveu um tratado sobre a Interpretação da Bíblia. João Crisóstomo –

Grande Pregador e Expositor da Bíblia. Teodoro de Mopsuestia – Teólogo.

João Crisóstomo e Teodoro de Mopsuéstia - Ambos propuseram como o princípio

exegético a necessidade de reconhecer o sentido original da Escritura a fim obter o benefício

espiritual dela. Não somente atribuíram grande valor ao sentido literal da Bíblia , mas

conscientemente repudiaram o método alegórico de interpretação. Teodoro tinha uma grande

capacidade para ver na Bíblia o fator humano, mas, lamentavelmente sua teoria da inspiração o

levou a negar a autoridade divina de vários livros. Contra a interpretação alegórica, defendeu o

método histórico-gramatical, com o qual se destacou em sua época.

Agostinho de Hipona – Século IV

Embora tivesse um conhecimento deficiente das línguas originais e não fosse

principalmente um exegeta, teve uma grande habilidade em sistematizar as doutrinas da Bíblia

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embora não fosse um grande intérprete dela. Seus princípios de hermenêutica eram melhores

do que sua exegese; considera que o intérprete deve estar equipado com a filologia, a história

e a crítica, porém, mais importante é o amor que deve ter para com o Autor, Deus. Agostinho e

a Alegoria Agostinho sobre a alegoria: “Chama-se alegoria a palavra que soa de um modo, mas

acaba significando outra coisa diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29);

acaso é Ele animal? Cristo é chamado leão (Apoc 5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (ICor

10,4); acaso é Ele dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é Ele elevação de terra? E, assim,

há muitas palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e a isto se chama

alegoria(sic)” (En. 103, 13).

Agostinho e os 153 peixes.

A explicação do fato de serem 153 peixes é a que costumo fazer-vos todos os anos na

missa de 6a. f. da Páscoa e muitos tomam-me a dianteira; no entanto, eu vou repeti-la

solenemente. Muitos esqueceram; e alguns nem a conhecem. Já aos que não esqueceram, peço

paciência e consideração para com os que esqueceram ou ignoram. Quando dois andam por um

caminho e um é mais rápido e outro mais lento, está em poder do mais veloz que não deixem

de caminhar juntos Estes 153 são 17. 10 mais 7. 10 por quê? 7 por quê? 10 por causa da lei, 7

por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se celebra nos dons do

Espírito Santo. Descansará -diz o santo profeta Isaías- sobre ele, o Espírito Santo com seus 7 dons

(Is 11,23) etc. Já a lei tem 10 mandamentos etc. etc. “Se ao 10 ajuntarmos o 7 temos 17. E este

é o número em que está toda a multidão dos bem-aventurados. Como se chega, porém, aos

153? Conta 17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e

chegarás ao 153. Por que estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta"(Sermão 250, 3)

1+2+3+4...+17= 153

Jerônimo e os nomes bíblicos

Jerônimo (347-419) é conhecido como o responsável pela edição latina da Bíblia

chamada Vulgata e como o famoso mestre e comentarista da Sagrada Escritura. O Livro da

interpretação dos nomes bíblicos é uma fusão de antigos Onomástica - referentes ao Antigo

Testamento e atribuídos no século IV a Filon - com os trabalhos de Orígenes para o Novo

Testamento. Jerônimo dá em seu livro o significado em latim de cerca de 2.000 nomes próprios

que aparecem na Bíblia. Em suas análises, segue o que o próprio texto bíblico diz sobre o

significado deste ou daquele nome, ou vale-se de seus conhecimentos do hebraico e do siríaco

para escrever seus verbetes. Jerônimo, tradutor nato, não foge, porém, à regra dos estudos

etimológicos medievais: diversas de suas interpretações são inexatas, dando a impressão de

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que, para a interpretação do Antigo Testamento, o latim é mais determinante do que o próprio

hebraico...

No entanto, não devemos julgar, repito, que autores antigos tão geniais como Agostinho

ou Jerônimo estivessem destituídos de espírito crítico, mas sim que, entre outras razões, neles

prevalecia a mentalidade alegórica (a busca do sentido espiritual e místico) sobre os nossos

critérios atuais de rigor. Seria impensável que um pregador moderno fizesse um comentário

como este, de Agostinho: "Deus julgará todo o orbe (...), pois também Adão (Adam) significa em

grego o orbe da terra. Quatro pontos cardeais, quatro letras: A, D, A e M. Em grego, as quatro

partes do orbe começam por essas letras: A de anatolen (oriente); D de dysin (ocidente); A de

arkton (norte); M de mesembrian (sul)" (En. 95,15)

Mais do que a presunção de que a palavra de Deus teria estado condicionada pelo futuro

aparecimento das línguas grega e latina, Agostinho valeu-se aqui de um engenhoso recurso de

pregação, nada chocante para uma mentalidade em que predominava fortemente o colorido e

a sugestividade da interpretação alegórica da Bíblia e do mundo

A Preparação para a Idade Média Agostinho defende a necessidade de respeitar o sentido literal e sempre basear a

interpretação alegórica no sentido literal. Não obstante, mais de uma vez, deixou-se levar pela

interpretação livre alegórica.

Nos casos em que a interpretação fosse duvidosa, Agostinho propôs a famosa “regula

fidei”; isto é, a autoridade da fé da Igreja. A interpretação oficial da Igreja da Idade Média.

Agostinho na prática adotou uma exegese baseada em quatro enfoques:

Histórico ou literal,

Tipológico,

Analógico

Alegórico.

Será esta quádrupla forma de interpretação a que se desenvolverá profundamente em

toda a Idade Média ocidental. Durante a idade média, a maioria dos cristãos, incluindo muitos

dentre o clero, viveu na ignorância mais completa do Bíblia.

Aqueles que a conheciam, era apenas através da tradução latina da Vulgata a a citava

apenas através dos escritos dos Pais da Igreja. A Bíblia Foi considerada como um livro cheio de

mistérios, que somente se poderia compreender de uma maneira mística.

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Em um sentido muito geral, a interpretação Bíblica foi guiada por quatro princípios:

o sentido literal,

o tipológico,

o analógico

E o alegórico.

Regula Fidei

O que Agostino entendia por Regula Fidei (Regra dos fiéis ou o consenso dos fiéis) eraa

o consenso da Igreja no decorrer dos séculos sobre a interpretação correta. Aos poucos, no

entanto, O que fruto de discussão e estudo sério passou a ser a simples repetição do que os

antigos padres ou pais da Igreja e da Patrística haviam dito sobre determinado assunto. Isto

acabou se tornando uma interpretação oficial da Igreja.

Durante esta época se estabeleceu definitivamente o princípio de que a interpretação

bíblica devia somente ser através da tradição e pela doutrina estabelecida pela Igreja.

REFORMA PROTESTANTE

O SÉCULO XVI, com a vinda do renascimento, princípios hermenêuticos mais técnicos e

racionais foram desenvolvidos. O grande nome do Renascimento desta época e do humanismo

foi Erasmo de Roterdã

Erasmo de Roterdã

O renascimento impôs como norma a investigação crítico-literária e a necessidade de

trabalhar com as línguas originais; Este princípio foi adotado muito especialmente por Erasmo,

que foi quem preparou a primeira edição crítica do NT no grego; Ao mesmo tempo, Reuchlin

publicou sua gramática e seu dicionário do Hebraico. Com estas ferramentas o estudo da Bíblia

tomou um poderoso impulso, e gradualmente foi abandonando a metodologia baseada nos

quatro princípios de sentido, e se estabeleceu que a Bíblia teria um só sentido.

O Reformadores acreditavam que a Bíblia era firmemente...

A palavra de Deus inspirada e autorizada.

Conceberam a Bíblia como um todo orgânico.

Afirmaram A Bíblia como suprema autoridade acima da autoridade da Igreja. A Bíblia,

não a Igreja, era o juiz supremo de apelação para qualquer disputa doutrinal. Sobre a pretendida

infalibilidade da Igreja, os Reformadores insistiam que é a Bíblia que determina a doutrina da

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Igreja o que a Igreja deve e tem que ensinar. Não é a Igreja que determina a doutrina da Bíblia

e sim a Bíblia que determina a doutrina da Igreja.

Princípios da exegese Protestante

João Calvino O maior Exegeta da Reforma. Seus escritos incluem comentários e sermões de quase

todos os livros da Bíblia. Usou os princípios de Lutero e de Melanchton, e rejeitou a alegorização

completamente. Ainda que tenha reconhecido alguns valores tipológicos no AT rechaçou a tese

luterana de que Cristo podia ser achado em qualquer parte do AT. João Calvino reduziu o

número dos salmos aceitos como messiânicos; Postulou que os livros proféticos tinham que ser

interpretados à luz da história de Israel e não da história da igreja.

Princípio fundamental de Calvino

O PERÍODO CONFESSIONAL:

PÓS-REFORMA Séculos XVII -XVIII

Durante o período imediatamente subseqüente à Reforma o Protestantismo manteve-

se fiel ao princípio “A Escritura seja interpretada pela Escritura”. Recusaram-se a submeter sua

exegese ao domínio da tradição eclesiástica e às doutrinas formuladas pelos Papas e Concílios..

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No entanto, caíram em um grave perigo que perdura até hoje: O de guiar-se pelos princípios

confessionais de cada denominação

“Idade das denominações”

A “idade das denominações” começou de maneira sutil. Cada cidade importante quis

ter sua própria confissão da fé. Este período de controvérsias teológicas sérias ameaçou dividir

o movimento protestante em diversas frações.

Cada um que tentava defender suas posições teológicas apelava à Bíblia.

Resultado: A exegese veio a se colocar ao serviço das confissões e degenerou em uma

simples busca de textos de prova. As Escrituras eram estudadas com o fim de achar nelas as

verdades doutrinárias abraçadas por cada Confissão ou Denominação.

Inspiração mecânica das Escrituras

Foi neste período que se levantou o conceito da inspiração mecânica da Bíblia Alguns

começaram afirmar que até as vogais do texto em hebraico foram inspiradas por Deus. Esta

tendência não desapareceu completamente, sobrevivendo no Fundamentalismo moderno.

O Movimento pietista:

Cansados das controvérsias dogmáticas dentro do Protestantismo, muitos cristãos

luteranos buscaram promover uma vida de piedade cristã verdadeira, iniciando uma reação

contra o dogmatismo exagerado da interpretação Bíblica.

Não obstante, insistiram no dever de estudar a Bíblia nas línguas originais porém sob a

iluminadora influência do Espírito Santo. Sua preocupação em destacar a aplicação dos ensinos

bíblicos à vida os levou a separar-se gradualmente da investigação científica das Escrituras.

Consideraram que o estudo gramático-histórico da Escritura apenas proporcionava um

conhecimento externo do pensamento do Deus, mas o estudo prático - procurando as

exortações, as advertências, e as repreensões - feitos em um espírito de oração os levaria a

penetrar até o sentido mais profundo da verdade.

O sentido psicológico:

O que eu sinto sobre...

Os pietistas enfatizaram o aspecto psicológico da interpretação; isto é, os sentimentos

do intérprete devem estar em harmonia com os do escritor bíblico estudado. O perigo desta

tendência mística foi a propensão em encontrar ênfases especiais onde não havia.

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O período histórico-crítico

Se durante o período pietista houve tal reação contra o estudo dogmático, com o

aparecimento de uma atitude crítica apareceu uma atitude contrária que levou a um controle

total do exegese e do hermenêutica.

Ação-Reação

Este período era de ação e reação; Pontos de vista muito divergentes foram expressos

com respeito à inspiração da Bíblia

Negou-se em geral A Inspiração e Infalibilidade da Bíblia.

Deu-se ênfase quase absoluta aos elementos humanos, Ainda que alguns aceitassem o

elemento divino nas Escrituras deram muita ênfase à relação mútua entre o humano e o divino.

Tentou-se sistematizr a doutrina da Inspiração em vários níveis: Alguns seguiram a teoria

de uma inspiração que variasse do grau, de acordo com as partes diversas da Bíblia. No grau

mínimo admitiram erros e imperfeições. Outros aceitaram a teoria de uma inspiração parcial

limitando-a à aquelas porções que se referem à fé e a moral, admitindo-se erros em questões

históricas e geográficas.

Schleirmacher

Autores como Schleirmacher negaram o caráter subrenatural da inspiração e o

identificaram com a iluminação espiritual do leitor cristão

Outros reduziram a inspiração ao poder que todo o homem tem pela virtude de uma luz

natural.

O Liberalismo Teológico

Durante o período crítico foi posto como a condição indispensável que o exegeta deve

ser absolutamente livre dos pressupostos dogmáticos e de princípios denominacionais da igreja.

Estabeleceu-se como princípio que a Bíblia deve ser interpretada como qualquer outro

livro. Os intérpretes limitaram-se a perguntas literárias, históricas e culturais, menosprezando

toda referência ao divino ou ao sobrenatural.

Necessidade de nova abordagem.

Como o resultado surgiu uma consciência da necessidade de uma interpretação

histórico-gramátical Mas também havia a convicção que tal interpretação deve ser

complementada com outros princípios que fizessem justiça à Bíblia como a revelação divina. O

fruto concreto deste período crítico foi o aparecimento de duas escolas diametralmente opostas

:

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A Escola Gramatical A Escola Historicista

A escola gramatical deu ênfase a quatro princípios:

É preciso aceitar somente o sentido literal para rejeitar a multiplicidade de

sentidos.

As tipologias e as interpretações alegóricas são rejeitadas, exceto naqueles

casos em que o autor indicar sua intenção clara de expressar um outro sentido

além do literal.

Posto que a Bíblia tem um sentido gramatical em comum com os outros livros,

deve ser tratada de uma maneira similar.

O sentido literal não pode ser determinado por uma pressuposição dogmática.

A Escola Historicista

A escola historicista paradoxalmente surgiu de dentro do pietismo. Colocou a ênfase no

ser humano e na origem histórica da composição da Bíblia. E no fato de que os livros da Bíblia e

a formação do Cânon tiveram uma origem histórica, e portanto estão condicionados pela

história.

Racionalismo

Esta escola de clara orientação racionalista destacou o caráter local e transitório de

muitos escritos Bíblicos Conseqüentemente negou o caráter da Bíblia como regra geral para

todos os homens em todos os tempos.

Escola Historicista.

Aceitou a mistura do erro e da verdade, pois os autores bíblicos se acomodaram aos

leitores aos quais se dirigiam. O verdadeiro valor da Bíblia está naquilo em que serve para

aperfeiçoar o caráter moral dos indivíduos. A Bíblia é um produto falível do homem e a razão

deve ser o árbitro final da fé.

MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO

ORIGENS

Faz uso de alguns princípios e regras que são derivados do bom senso, da razão e da

lógica, e que não são propriedade de nenhuma hermenêutica em particular.

Devedor das ideias do humanismo, da Renascença, do deísmo inglês, do ceticismo

francês e do iluminismo alemão no campo da teologia.

Da Renascença, absorveu a ênfase no humano em detrimento do divino.

Do ceticismo francês, a dúvida como pressuposto dogmático e metodológico.

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Do Iluminismo, a razão em detrimento da revelação.

O Método gramático-histórico

O métodp chamado Gramático-Histórico é uma tentativa de retormar o método da

época da Reforma, pois é de lá que vem este nome. Desconsidera, em princípio aquilo que os

seus defensores julgam como a causa do Método Histórico-Crítico levar ao liberalismo. O

cientificismo e historicismo exacerbado do período racionalista. Tenta levar em consideração:

o caráter divino e humano das Escrituras,

sua inspiração e infalibilidade,

a historicidade dos relatos bíblicos e

a intencionalidade dos textos em comunicar sentido de maneira proposicional.

Deu atenção ao caráter histórico das Escrituras, mas despreza, em geral os avanços que

o estudo através do Método Histórico-Crítico alcança, apesar de seu caráter liberal.

DILEMAS

O método histórico-crítico assumiu desde o início pressupostos dogmáticos que

refletem rejeição da autoridade e infalibilidade das Escrituras;

Estabelece distinção entre Palavra de Deus e Escritura, proposta por J. Solomo Semler

(1725-1791); O método histórico-crítico, por sua própria natureza, abriu uma enorme brecha

entre a academia e a Igreja.

Histórico-crítico

É um método histórico, não só porque ele se aplica a textos antigos — no caso, aqueles

da Bíblia — e estuda seu alcance histórico, mas também e sobretudo porque ele procura elucidar

os processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos algumas vezes

complicados e de longa duração.

É um método crítico, porque ele opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos

quanto possíveis em cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da redação),

de maneira a tornar acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos, muitas vezes difícil

de perceber.

É um método crítico “no sentido de que necessita emitir uma série de juízos

sobre as fontes que tem por objeto de estudo” (WEGNER, 1998, p. 17).

Método analítico, ele estuda o texto bíblico da mesma maneira que qualquer

outro texto da antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana.

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Filho de sua época

O método histórico-crítico nasceu debaixo da poderosa influência do racionalismo na

filosofia e do deísmo na teologia. A razão deveria julgar o que é aceitável, ou não, que se creia

sobre Deus, e substituindo a revelação e a tradição, tornou-se o novo árbitro da verdade. É

grandemente influenciado por:

Razão é o padrão para se medir tudo o que foi revelado nas Escrituras

Deísmo: religião resultante da simbiose de cristianismo e racionalismo.

NOVIDADE

O método histórico-crítico tinha chegado para esclarecer, mediante o uso metódico da

razão, a confusão reinante entre Palavra de Deus e Escritura, para separar a verdade do erro, a

fé da superstição. Crê que toda verdadeira pesquisa, em qualquer área do conhecimento

humano, pode ser feita de maneira isenta e neutra.

Científico

Até aquele momento, afirmavam eles, a pesquisa bíblica havia sido feita a partir de

pressupostos teológicos quanto à natureza da Bíblia, de Deus, de Cristo e da Igreja. Portanto,

segundo os críticos, era um método viciado, que já sabia de antemão os resultados a que iria

chegar. Portanto, não era científico.

Mas, agora, surgia um método realmente científico, liberado do condicionamento dos

pressupostos teológicos e capaz de sondar a Bíblia de forma neutra, de examinar livremente a

sua mensagem sem a influência do dogma, da tradição e da teologia, e ainda de separar o que

é verdadeiro daquilo que é falso.

IMPULSOS

Pressupostos rejeitados por seus críticos

Escritura contém erros e contradições, lado a lado com aquelas palavras que

provêm de Deus, bem como todos os pressupostos racionalistas do Iluminismo

quanto à não possibilidade do sobrenatural na história.

“a Escritura, à qual as pessoas se rendem de maneira não crítica, leva não

somente à multiplicidade de confissões, mas também a uma confusão

indistinguível entre fé e superstição”. Ernest Käsemann

Palavra de Deus que está dentro da Escritura, misturada com erros e

contradições.

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Cânon: Normativo x formal Estabelece uma diferença não bíblica entre o canon formal e o normativo, isto é, aquele

que devemos obedecer. Vejamos:

Cânon formal: consiste na coleção dos sessenta e seis livros que compõem a

Bíblia, formalmente reconhecidos pela Igreja antiga como a Escritura da Igreja

Cristã.

Cânon normativo: as partes destes livros que são realmente a Palavra de Deus.

É chamado de normativo porque contém aquilo que é autoritativo para o cristão e para

a Igreja, a verdadeira Palavra de Deus em meio às palavras humanas.

Lutero

Semler e outros que vieram depois dele disseram que, nesta busca, estavam se

inspirando na famosa declaração de Lutero, “was Christum treibet” (aquilo que nos impulsiona

a Cristo). Vários críticos usaram a declaração de Lutero como norma para achar o cânon dentro

do cânon

Métodos diacrônicos de Pesquisa das Escrituras.

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Métodos diacrônicos

Crítica das Fontes:

trata do estudo dos diferentes componentes do texto bíblico, que uma vez teriam

existido isoladamente e foram posteriormente agrupados num único texto.

Crítica da Forma:

objetivo é descobrir as formas originais dos textos bíblicos, ainda em sua fase oral de

transmissão, antes de serem submetidos à escrita, como aparecem no cânon formal. É ainda

identificar as alterações feitas, nesta fase, pelas comunidades que receberam essas tradições, e

que posteriormente os editaram e publicaram.

Crítica da Redação:

preocupa-se com os redatores, aqueles que se utilizaram destas fontes orais ou escritas

e lhes deram a forma final.

Deficiências no método Conforme Eta Linneman: Historical Criticism of the Bible.

Seu ponto central é que o método, na verdade, uma ideologia e que não deveria

ter lugar algum entre os hermeneutas cristãos.

Gerhard Maier: The end of the historical-critical method .

O argumento central dele é que o método crítico não se ajusta ao objeto de

análise, que é a Bíblia, pois utiliza pressupostos contrários à mesma.

Peter Stuhlmacher: Historical Criticism and Theological Interpretation of Scripture

Afirma a necessidade do método histórico-crítico para a teologia, mas questiona

sua adequação para tratar do estudo Bíblia

Suposta neutralidade e objetividade

Para pensar

O método histórico-crítico é, em realidade, um conjunto de métodos para a análise do

texto. Ele deve ser usado com critério e bom senso, pois possui poderosas ferramentas de

análise do texto Bíblico. O seu problema são os seus pressupostos racionalistas e iluministas.

Veja o que estava por detrás do método Histórico Crítico em sua origem:

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A interpretaça o da Bí blia na Igreja.

A Pontifícia Comissão Bíblica da Igreja Católica Romana assume uma posição sensata e

equilibrada sobre o assunto, além de fazer um excelente resumo do estado atual da Exegese

Bíblica. Lembre-se que nesta apostila assumimos a posição de uma hermenêutica reformada,

seguindo a tradição dos grandes reformadores do século XVI, mas não deixamos de cumprir o

que se diz em 1º Tessalonicenses 5:21 “julgai todas as coisa, retende o que é bom”

Transcrevo abaixo o documento:

A. Problemática atual

O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas

vezes se quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta

dificuldades. Ao lado de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo

certos oráculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn

9,2). Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século encontrava-se na

mesma situação a propósito de uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8) e reconhecia

ter necessidade de um intérprete (At 8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que «

nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretação particular » (2 Pd 1,20) e

ela observa, de outro lado, que as cartas do apóstolo Paulo contêm « alguns pontos

difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais

Escrituras, para sua própria perdição » (2 Pd 3,16).

O problema é, portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo:

doravante, para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bíblia, os leitores devem

voltar a quase vinte ou trinta séculos atrás, o que não deixa de levantar dificuldades. De

outro lado, as questões de interpretação tornaram-se mais complexas nos tempos

modernos devido aos progressos feitos pelas ciências humanas. Métodos científicos

foram aperfeiçoados no estudo do textos da antiguidade. Em que proporção esses

métodos podem ser considerados apropriados à interpretação da Sagrada Escritura? A

esta questão a prudência pastoral da Igreja durante muita tempo respondeu de maneira

muito reticente, pois muitas vezes o métodos, apesar de seus elementos positivos,

encontravam-se liga dos a opções opostas à fé cristã. Mas uma evolução positiva se

produziu, marcada por uma série de documentos pontifícios, desde encíclica

Providentissimus Deus de Leão XIII (18 novembro 1893 até a encíclica Divino afflante

Spiritu de Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela declaração Sancta

Mater Ecclesie (21 abril 1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo pele

Constituição Dogmática Dei Verbum do Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).

A fecundidade desta atitude construtiva manifestou-se de uma maneira inegável. Os

estudos bíblicos tiveram um progresso notável na Igreja católica e o valor científico

deles foi cada vez mais reconhecido no mundo dos estudiosos e entre os fiéis. O diálogo

ecumênico foi consideravelmente facilitado. A influência da Bíblia sobre a teologia se

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aprofundou e contribuiu à renovação teológica. O interesse pela Bíblia aumentou entre

os católicos e favoreceu o progresso da vida cristã. Todos aqueles que adquiriram uma

formação séria nesse campo estimam doravante impossível retornar a um estado de

interpretação pré-crítica, pois o julgam, com razão, claramente insuficiente.

Mas, ao mesmo tempo em que o método científico mais divulgado — o método «

histórico-crítico » — é praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese

católica, ele mesmo encontra-se em discussão: de um lado, no próprio mundo científico,

pela aparição de outros métodos e abordagens, e, de outro lado, pelas críticas de

numerosos cristãos que o julgam deficiente do ponto de vista da fé. Particularmente

atento, como seu nome o indica, à evolução histórica dos textos ou das tradições através

do tempo — ou diacronia — o método histórico-crítico encontra-se atualmente em

concorrência, em alguns ambientes, com métodos que insistem na compreensão

sincrônica dos textos, tratando-se da língua, da composição, da trama narrativa ou do

esforço de persuasão deles. Além disso, o cuidado que os métodos diacrônicos têm em

reconstituir o passado, para muitos é substituído pela tendência de interrogar os textos

colocando-os em perspectivas do tempo presente, seja de ordem filosófica, psicanalítica,

sociológica, política, etc. Esse pluralismo de métodos e abordagens é apreciado por

alguns como um indício de riqueza, mas a outros ele dá a impressão de uma grande

confusão.

Real ou aparente, essa confusão traz novos argumentos aos adversários da exegese

científica. O conflito das interpretações manifesta, segundo eles, que não se ganha nada

submetendo os textos bíblicos às exigências dos métodos científicos, mas, ao contrário,

perde-se bastante. Eles sublinham que a exegese científica obtém como resultado o

provocar perplexidade e dúvida sobre inumeráveis pontos que, até então, eram

admitidos pacificamente; que ele força alguns exegetas a tomar posições contrárias à fé

da Igreja sobre questões de grande importância, como a concepção virginal de Jesus e

seus milagres, e até mesmo sua ressurreição e sua divindade.

Mesmo quando não finaliza em tais negações, a exegese científica se caracteriza,

segundo eles, pela sua esterilidade no que concerne o progresso da vida cristã. Ao invés

de permitir um acesso mais fácil e mais seguro às fontes vivas da Palavra de Deus, ela

faz da Bíblia um livro fechado, cuja interpretação sempre problemática exige técnicas

refinadas fazendo dela um domínio reservado a alguns especialistas. A estes, alguns

aplicam a frase do Evangelho: « Tomastes a chave da ciência! Vós mesmos não

entrastes e impedistes os que queriam entrar! » (Lc 11,52; cf Mt 23,13).

Em consequência, ao paciente labor do exegeta científico estima-se necessário substituir

abordagens mais simples, como uma ou outra prática de leitura sincrônica que se

considera como suficiente, ou mesmo, renunciando a todo estudo, preconiza-se uma

leitura da Bíblia dita « espiritual », entendendo-se pela expressão uma leitura

unicamente guiada pela inspiração pessoal subjetiva e destinada a alimentar esta

inspiração. Alguns procuram na Bíblia sobretudo o Cristo da visão pessoal deles e a

satisfação da religiosidade espontânea que têm. Outros pretendem encontrar nela

respostas diretas a toda sorte de questões, pessoais ou coletivas. Numerosas são as seitas

que propõem como única verdadeira uma interpretação da qual elas afirmam terem tido

a revelação.

63

B. O objetivo deste documento

Há de se considerar seriamente, portanto, os diversos aspectos da situação atual em

matéria de interpretação bíblica, de esta atento às críticas, às queixas e às aspirações que

se exprimem a esse respeito, de apreciar as possibilidades abertas pelos novos métodos

e abordagens e de procurar, enfim, precisar a orientação que melhor corresponde à

missão do exegeta na Igreja católica.

Esta é a finalidade deste documento. A Pontifícia Comissão Bíblica deseja indicar os

caminhos que convém tomar para chegar a uma interpretação da Bíblia que seja tão fiel

quanto possível a seu caráter ao mesmo tempo humano e divino. Ela não pretende tomar

aqui posição sobre todas as questões que são feitas a respeito da Bíblia, como por

exemplo, a teologia da inspiração. O que ela quer é examinar os métodos suscetíveis de

contribuírem com eficácia a valorizar todas as riquezas contidas nos textos bíblicos, a

fim de que a Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais o alimento espiritual dos

membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de fé, de esperança e de amor,

assim como uma luz para toda a humanidade (cf Dei Verbum, 21).

Para alcançar este fim, o presente documento:

1. fará uma breve descrição dos diversos métodos e abordagens, (1) indicando suas

possibilidades e seus limites;

I. MÉTODOS E ABORDAGENS PARA A INTERPRETAÇÃO

A. Método histórico-crítico

O método histórico-crítico é o método indispensável para o estudo científico do sentido

dos textos antigos. Como a Santa Escritura, enquanto « Palavra de Deus em linguagem

humana », foi composta por autores humanos em todas as suas partes e todas as suas

fontes, sua justa compreensão não só admite como legítimo, mas pede a utilização deste

método.

1. História do método

Para apreciar corretamente este método em seu estado atual, convém dar uma olhada em

sua história. Certos elementos deste método de interpretação são muito antigos. Eles

foram utilizados na antiguidade por comentadores gregos da literatura clássica e, mais

tarde, durante o período patrístico, por autores como Orígenes, Jerônimo e Agostinho. O

método era, então, menos elaborado. Suas formas modernas são o resultado de

aperfeiçoamentos, trazidos sobretudo desde os humanistas da Renascença e o recursus

ad fontes deles. Enquanto que a crítica textual do Novo Testamento só pôde se

desenvolver como disciplina científica a partir de 1800, depois que se desligou do

Textus receptus, os primórdios da crítica literária remontam ao século XVII, com a obra

de Richard Simon, que chamou a atenção sobre as repetições, as divergências no

conteúdo e as diferenças de estilo observáveis no Pentatêuco, constatações dificilmente

conciliáveis com a atribuição de todo o texto a um autor único, Moisés. No século

64

XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda em dar como explicação que Moisés tinha se

servido de várias fontes (sobretudo de duas fontes principais) para compor o Livro do

Gênesis, mas, em seguida, a crítica contesta cada vez mais resolutamente a atribuição da

composição do Pentatêuco a Moisés. A crítica literária identificou-se muito tempo com

um esforço para discernir diversas fontes nos textos. É assim que se desenvolveu, no

século XIX, a hipótese dos « documentos », que procura explicar a redação do

Pentatêuco. Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de épocas

diferentes, teriam sido incorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o deuteronomista (D)

e o sacerdotal (P: do alemão « Priester »); é deste último que o redator final teria se

servido para estruturar o conjunto. De maneira análoga, para explicar ao mesmo tempo

as convergências e as divergências constatadas entre os três Evangelhos sinóticos,

recorreram à hipótese das « duas fontes », segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o

de Lucas teriam sido compostos a partir de duas fontes principais: o Evangelho de

Marcos de um lado e, de outro lado, uma compilação das palavras de Jesus (chamada Q,

do alemão « Quelle », «fonte »). Essencialmente estas duas hipóteses são ainda aceitas

atualmente na exegese científica, mas elas são objeto de contestações.

No desejo de estabelecer a cronologia dos textos bíblicos, esse gênero de crítica literária

se limitava a um trabalho de cortes e de decomposição para distinguir as diversas fontes

e não dava uma atenção suficiente à estrutura final do texto bíblico e à mensagem que

ele exprime em seu estado atual (mostrava-se pouca estima pela obra dos redatores).

Dessa maneira a exegese histórico-crítica podia aparecer como fragmentária e

destrutora, ainda mais que certos exegetas sob a influência da história comparada das

religiões, tal como ela se praticava então, ou partindo de concepções filosóficas,

emitiam contra a Bíblia julgamentos negativos.

Hermann Gunkel fez o método sair do gueto da crítica literária entendida desta maneira.

Se bem tenha continuado a considerar os livros do Pentatêuco como compilações, ele

aplicou sua atenção à textura particular das diferentes partes. Ele procurou definir o

gênero de cada uma (por exemplo, « legenda » ou « hino ») e seu ambiente de origem

ou « Sitz im Lebem » ( por exemplo, situação jurídica, liturgia, etc.). A esta pesquisa

dos gêneros literários assemelha-se o « estudo crítico das formas » (« Formgeschichte »)

inaugurada na exegese dos sinóticos por Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Este

último misturou aos estudos de « Formgeschichte » uma hermenêutica bíblica inspirada

na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Em consequência, a Formgeschichte

suscitou muitas vezes sérias reservas. Mas este método, em si mesmo, teve como

resultado a declaração de que a tradição néo-testamentária obteve sua origem e tomou

sua forma na comunidade cristã, ou Igreja primitiva, passando da pregação do próprio

Jesus à predigação que proclama que Jesus é o Cristo. « Formgeschichte » aliou-se a «

Redaktionsgeschichte », « estudo crítico da redação ». Esta última procura colocar em

evidência a contribuição pessoal de cada evangelista e as orientações teológicas que

guiaram o trabalho de redação deles. Com a utilização deste último método, a série das

diferentes etapas do método histórico-crítico tornou-se mais completa: da crítica textual

passa-se a uma crítica literária que decompõe (pesquisa das fontes), depois a um estudo

crítico das formas, enfim a uma análise da redação, que é atenta ao texto em sua

composição. Desta maneira tornou-se possível uma compreensão mais clara da intenção

dos autores e redatores da Bíblia, assim como da mensagem que eles dirigiram aos

primeiros destinatários. O método histórico-crítico adquiriu então uma importância de

primeiro plano.

65

2. Princípios

Os princípios fundamentais do método histórico-crítico em sua forma clássica são os

seguintes:

E um método histórico, não só porque ele se aplica a textos antigos — no caso, aqueles

da Bíblia — e estuda seu alcance histórico, mas também e sobretudo porque ele procura

elucidar os processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos

algumas vezes complicados e de longa duração. Em suas diferentes etapas de produção,

os textos da Bíblia são dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que se

encontravam em situações de tempo e de espaço diferentes.

É um método crítico, porque ele opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos

quanto possíveis em cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da

redação), de maneira a tornar acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos,

muitas vezes difícil de perceber.

Método analítico, ele estuda o texto bíblico da mesma maneira que qualquer outro texto

da antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana. Entretanto, ele permite ao

exegeta, sobretudo no estudo crítico da redação dos textos, perceber melhor o conteúdo

da revelação divina.

3. Descrição

No estágio atual de seu desenvolvimento, o método histórico-crítico percorre as

seguintes etapas:

A crítica textual, praticada há muito mais tempo, abre a série das operações científicas.

Baseando-se no testemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como dos

papiros, das traduções antigas e da patrística, ela procura, segundo regras determinadas,

estabelecer um texto bíblico que seja tão próximo quanto possível ao texto original.

O texto é em seguida submetido a uma análise linguística (morfologia e sintaxe) e

semântica, que utiliza os conhecimentos obtidos graças aos estudos de filologia

histórica. A crítica literária esforça-se então em discernir o início e o fim das unidades

textuais, grandes e pequenas, e em verificar a coerência interna dos textos. A existência

de repetições, de divergências inconciliáveis e de outros indícios, manifesta o caráter

compósito de certos textos. Estes então são divididos em pequenas unidades, das quais

estuda-se a dependência possível a diversas fontes. A crítica dos gêneros procura

determinar os gêneros literários, ambiente de origem, traços específicos e evolução

desses textos. A crítica das tradições situa os textos em correntes de tradição, das quais

ela procura determinar a evolução no decorrer da história. Enfim, a crítica da redação

estuda as modificações que os textos sofreram antes de terem um estado final fixado,

esforçando-se em discernir as orientações que lhes são próprias. Enquanto as etapas

precedentes procuraram explicar o texto pela sua gênese, em uma perspectiva

diacrônica, esta última etapa termina com um estudo sincrônico: explica-se aqui o texto

em si, graças às relações mútuas de seus diversos elementos e considerando-o sob seu

aspecto de mensagem comunicada pelo autor a seus contemporâneos. A função

pragmática do texto pode então ser levada em consideração.

66

Quando os textos estudados pertencem a um gênero literário histórico ou estão em

relação com acontecimentos da história, a crítica histórica completa a crítica literária

para determinar seu alcance histórico, no sentido moderno da expressão.

É desta maneira que são colocadas em evidência as diferentes etapas do desenrolar

concreto da revelação bíblica.

4. Avaliação

Que valor dar ao método histórico-crítico, em particular no estágio atual de sua

evolução?

É um método que, utilizado de maneira objetiva, não implica em si nenhum a priori: Se

sua utilização é acompanhada de tais a priori, isto não é devido ao método em si mas a

opiniões hermenêuticas que orientam a interpretação e podem ser tendenciosas.

Orientado, em seu início, como crítica das fontes e da história das religiões, o método

obteve como resultado a abertura de um novo acesso à Bíblia, mostrando que ela é uma

coleção de escritos que, muitas vezes, sobretudo para o Antigo Testamento, não têm um

autor único, mas tiveram uma longa pré-história inextricavelmente ligada à história de

Israel ou àquela da Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretação judaica ou cristã

da Bíblia não tinha uma consciência clara das condições históricas concretas e diversas

nas quais a Palavra de Deus se enraizou. Ela tinha disto um conhecimento global e

longínquo. O confronto da exegese tradicional com uma abordagem científica que em

seu início fazia conscientemente abstração da fé e algumas vezes mesmo se opunha a

ela, foi seguramente dolorosa; depois, no entanto, ela se revelou salutar: uma vez que o

método foi liberado dos preconceitos extrínsecos, ele conduziu a uma compreensão

mais exata da verdade da Santa Escritura (cf Dei Verbum, 12). Segundo a Divino

afflante Spiritu, a procura do sentido literal da Escritura é uma tarefa essencial da

exegese e, para cumprir esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário dos textos

(cf E.B., 560), o que se realiza com a ajuda do método histórico-crítico.

Com certeza o uso clássico do método histórico-crítico manifesta limites, pois ele se

restringe à procura do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua

produção e não se interessa pelas outras potencialidades de sentido que se manifestaram

no decorrer das épocas posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja. No

entanto, esse método contribuiu à produção de obras de exegese e de teologia bíblica de

grande valor.

Renunciou-se há muito tempo a um amálgama do método com um sistema filosófico.

Recentemente uma tendência exegética orientou o método insistindo

predominantemente sobre a forma do texto, com menor atenção ao seu conteúdo, mas

esta tendência foi corrigida graças à contribuição de uma semântica diferenciada

(semântica das palavras, das frases, do texto) e ao estudo do aspecto pragmático dos

textos.

A respeito da inclusão no método, de uma análise sincrônica dos textos, deve-se

reconhecer que se trata de uma operação legítima, pois é o texto em seu estado final, e

não uma redação anterior, que é expressão da Palavra de Deus. Mas o estudo diacrônico

continua indispensável para o discernimento do dinamismo histórico que anima a Santa

67

Escritura e para manifestar sua rica complexidade: por exemplo, o código da Aliança

(Ex 21,23) reflete um estado político, social e religioso da sociedade israelita diferente

daquele que refletem as outras legislações conservadas no Deuteronómio (Dt 12,26) e

no Levítico (código de santidade, Lv 17-26). À tendência de reduzir tudo ao aspecto

histórico, que se pôde repreender na antiga exegese histórico-crítica, seria o caso que

não sucedesse o excesso inverso: o de um esquecimento da história, por parte de uma

exegese exclusivamente sincrônica.

Em definitivo, o objetivo do método histórico-crítico é de colocar em evidência, de

maneira sobretudo diacrônica, o sentido expresso pelos autores e redatores. Com a ajuda

de outros métodos e abordagens, ele abre ao leitor moderno o acesso ao significado do

texto da Bíblia, tal como o temos.

B. Novos métodos de análise literária

Nenhum método científico para o estudo da Bíblia está à altura de corresponder à

riqueza total dos textos bíblicos. Qualquer que seja sua validade, o método histórico-

crítico não pode pretender ser suficiente a tudo. Ele deixa forçosamente obscuros

numerosos aspectos dos escritos que estuda. Que não seja surpresa a constatação de que

atualmente outros métodos e abordagens são propostos para aprofundar um ou outro

aspecto digno de atenção.

Neste parágrafo B apresentaremos alguns métodos de análise literária que se

desenvolveram recentemente. Nos parágrafos seguintes (C, D, E) examinaremos

brevemente diversas abordagens, das quais algumas estão em relação com o estudo da

tradição, outras com as « ciências humanas », outras ainda com situações '

contemporâneas particulares. Consideramos enfim (F) a leitura fundamentalista da

Bíblia, que recusa todo esforço metódico de interpretação.

Aproveitando os progressos realizados em nossa época pelos estudos lingüísticos e

literários, a exegese bíblica utiliza cada vez mais métodos novos de análise literária, em

particular a análise retórica, a análise narrativa e a análise semiótica.

1. Análise retórica

Na realidade, a análise retórica não é em si um método novo. O que é novo, de um lado,

é sua utilização sistemática para a interpretação da Bíblia e, de outro lado, o nascimento

e o desenvolvimento de uma « nova retórica ».

A retórica é a arte de compor discursos persuasivos. Pelo fato de que todos os textos

bíblicos são em algum grau textos persuasivos, um certo conhecimento da retórica faz

parte do instrumental normal dos exegetas. A análise retórica deve ser conduzida de

maneira crítica, pois a exegese científica é um trabalho que se submete necessariamente

às exigências do espírito crítico.

Muitos estudos bíblicos recentes deram uma grande atenção à presença da retórica na

Escritura. Podemos distinguir três abordagens diferentes. A primeira se baseia na

retórica clássica greco-latina; a segunda é atenta aos procedimentos semíticos de

composição; a terceira inspira-se nas pesquisas modernas que chamamos « nova retórica

».

68

Toda situação de discurso comporta a presença de três elementos: o orador (ou o autor),

o discurso (ou o texto) e o auditório (ou os destinatários). A retórica clássica distingue,

consequentemente, três fatores de persuasão que contribuem à qualidade de um

discurso: a autoridade do orador, a argumentação do discurso e as emoções que ele

suscita no auditório. A diversidade de situações e de auditórios influencia imensamente

a maneira de falar. A retórica clássica, desde Aristóteles, admite a distinção de três

gêneros de eloqüência: o gênero judiciário (diante dos tribunais), o deliberativo (nas

assembléias políticas), o demonstrativo (nas celebrações).

Constatando a enorme influência da retórica na cultura helenística, um número

crescente de exegetas utiliza tratados de retórica clássica para melhor analisar certos

aspectos dos escritos bíblicos, sobretudo daqueles do Novo Testamento.

Outros exegetas concentram a atenção sobre os traços específicos da tradição literária

bíblica. Enraizada na cultura semítica, ela manifesta uma forte preferência pelas

composições simétricas, graças às quais as relações são estabelecidas entre os diversos

elementos do texto. O estudo das múltiplas formas de paralelismo e de outros

procedimentos semíticos de composição deve permitir um melhor discernimento da

estrutura literária dos textos e assim chegar a maior compreensão de sua mensagem.

Tomando um ponto de vista mais geral, a « nova retórica » quer ser algo mais que um

inventário de figuras de estilo, de artifícios oratórios e de espécies de discurso. Ela

busca o porquê tal uso específico da linguagem é eficaz e chega a comunicar uma

convicção. Ela se quer « realista », recusando de se limitar à simples análise formal. Ela

dá à situação de debate a atenção que lhe é devida. Ela estuda o estilo e a composição

enquanto meios de exercer uma ação sobre o auditório. Com esta finalidade ela

aproveita as contribuições recentes de disciplinas como a lingüística, a semiótica, a

antropologia e a sociologia.

Aplicada à Bíblia, a « nova retórica » quer penetrar no coração da linguagem da

revelação enquanto linguagem religiosa persuasiva e medir seu impacto no contexto

social da comunicação. Porque elas trazem um enriquecimento ao estudo crítico dos

textos, as análises retóricas merecem muita estima, sobretudo em suas recentes

pesquisas. Elas reparam uma negligência que durou muito tempo e fazem descobrir ou

colocam mais em evidência perspectivas originais. A « nova retórica » tem razão de

chamar a atenção para a capacidade persuasiva e convincente da linguagem. A Bíblia

não é simplesmente enunciação de verdades. E uma mensagem dotada de uma função

de comunicação em um certo contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo de

argumentação e uma estratégia retórica.

As análises retóricas têm, contudo, seus limites. Quando elas se contentam em ser

descritivas, seus resultados têm muitas vezes um interesse unicamente estilístico.

Fundamentalmente sincrônicas, elas não podem pretender constituir um método

independente que seja autosuficiente. Sua aplicação aos textos bíblicos levanta mais de

uma questão: os autores destes textos pertenciam aos ambientes mais cultos? Até que

ponto eles seguiram as regras de retórica para compor seus escritos? Qual retórica é

mais pertinente para a análise de tal escrito determinado: a greco-latina ou a semítica?

Não se arrisca em atribuir a certos textos bíblicos uma estrutura retórica elaborada

demais? Estas questões — e outras — não devem dissuadir o emprego deste tipo de

análise; elas convidam a não recorrer a ele sem discernimento.

69

2. Análise narrativa

A exegese narrativa propõe um método de compreensão e de comunicação da

mensagem bíblica que corresponde à forma de relato e de testemunho, modalidade

fundamental da comunicação entre pessoas humanas, característica também da Santa

Escritura. O Antigo Testamento, efetivamente, apresenta uma história da salvação cujo

relato eficaz torna-se substância da profissão de fé, da liturgia e da catequese (cf Sal

78,3-4; Ex 12,24-27; Dt 6,20-25; 26,5-11). De seu lado, a proclamação do querigma

cristão compreende a sequência narrativa da vida, da morte e da ressurreição de Jesus

Cristo, acontecimentos dos quais os Evangelhos nos oferecem um relato detalhado. A

catequese se apresenta, ela também, sob a forma narrativa (cf 1 Co 11,23-25).

A respeito da abordagem narrativa, convém distinguir métodos de análise e reflexão

teológica.

Numerosos métodos de análise são atualmente propostos. Alguns partem do estudo dos

modelos narrativos antigos. Outros se baseiam sobre um ou outro estudo atual da

narrativa, que pode ter pontos comuns com a semiótica. Particularmente atenta aos

elementos do texto que dizem respeito ao enredo, às características e ao ponto de vista

tomado pelo narrador, a análise narrativa estuda o jeito pelo qual a história é contada de

maneira a envolver o leitor no « mundo do relato » e seu sistema de valores.

Vários métodos introduzem uma distinção entre « autor real » e « autor implícito », «

leitor real » e « leitor implícito ». O « autor real » é a pessoa que compôs o relato. Por «

autor implícito » é designada a imagem do autor que o texto produz progressivamente

no decorrer da leitura (com sua cultura, seu temperamento, suas tendências, sua fé, etc.).

Chama-se « leitor real » toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os primeiros

destinatários que leram ou ouviram ler até os leitores ou ouvintes de hoje. Por « leitor

implícito » entende-se aquele que o texto pressupõe e produz, aquele que é capaz de

efetuar as operações mentais e afetivas exigidas para entrar no mundo do relato e assim

responder a ele da maneira visada pelo autor real através do autor implícito.

Um texto continua a exercer sua influência na medida em que os leitores reais (por

exemplo, nós mesmos no fim do século XX) podem se identificar com o leitor

implícito. Uma das maiores tarefas do exegeta é facilitar esta identificação.

À análise narrativa liga-se uma nova maneira de apreciar o alcance dos textos. Enquanto

o método histórico-crítico considera antes de tudo o texto como uma « janela », que

permite algumas observações sobre uma ou outra época (não apenas sobre os fatos

narrados, mas também sobre a situação da comunidade para a qual eles foram

contados), sublinha-se que o texto funciona igualmente como um « espelho », no

sentido de que ele estabelece uma certa imagem do mundo — o « mundo do relato »

que exerce sua influência sobre a maneira de ver do leitor e o leva a adotar certos

valores invés que outros.

A este gênero de estudo, tipicamente literário, associou-se a reflexão teológica, que

levando em consideração as consequências que a natureza de relato e de testemunho da

Santa Escritura representa para a adesão de fé, deduz disso uma hermenêutica de tipo

prático e pastoral. Reage-se desta maneira contra a redução do texto inspirado a uma

série de teses teológicas, formuladas muitas vezes segundo categorias e linguagem não

70

escriturísticas. Pede-se à exegese narrativa de reabilitar, em contextos históricos novos,

os modos de comunicação e de significado próprios ao relato bíblico, afim de melhor

abrir caminho à sua eficácia para a salvação. Insiste-se na necessidade de « contar a

salvação » (aspecto « informativo » do relato) e de « contar em vista da salvação »

(aspecto de « desempenho »). O relato bíblico, efetivamente, contém — explicitamente

ou implicitamente, segundo o caso — um apelo existencial dirigido ao leitor.

Para a exegese da Bíblia, a análise narrativa apresenta uma utilidade evidente, pois ela

corresponde à natureza narrativa de um grande número de textos bíblicos. Ela pode

contribuir a tornar fácil a passagem, muitas vezes sofrida, entre o sentido do texto em

seu contexto histórico — tal como o método histórico-crítico procura defini-lo — e o

alcance do texto para o leitor de hoje. Em contraposição, a distinção entre « autor real »

e « autor implicito » aumenta a complexidade dos problemas de interpretação.

Aplicando-se aos textos da Bíblia, a análise narrativa não pode se contentar de colar

sobre eles modelos pré-estabelecidos. Ela deve ao contrário esforçar-se em corresponder

à sua especificidade. Sua abordagem sincrônica dos textos pede para ser completada por

estudos diacrônicos. Ela deve, de outro lado, evitar uma possível tendência a excluir

toda elaboração doutrinária dos dados que contêm os relatos da Bíblia. Ela se

encontraria, então, em desacordo com a própria tradição bíblica que pratica esse gênero

de elaboração, e com a tradição eclesial que continuou nesta via. Convém, enfim, notar

que não se pode considerar a eficácia existêncial subjetiva da Palavra de Deus

transmitida narrativamente, como um critério suficiente da verdade de sua compreensão.

3. Análise semiótica

Entre os métodos chamados sincrônicos, isto é, que se concentram sobre o estudo do

texto bíblico tal como ele se apresenta ao leitor em seu estado final, coloca-se a análise

semiótica que, há uns vinte anos, se desenvolveu bastante em certos meios.

Primeiramente chamado pelo termo geral de « estruturalismo », este método pode se

propor como descendente do lingüista suíço Ferdinand de Saussure que no início deste

século elaborou a teoria segundo a qual toda língua é um sistema de relações que

obedece regras determinadas. Vários lingüistas e literatos tiveram uma influência

marcante na evolução do método. A maior parte dos biblistas que utilizam a semiótica

para o estudo da Bíblia recorre a Algirdas J. Greimas e à Escola de Paris, da qual ele é o

fundador. Abordagens ou métodos análogos, fundados sobre a Lingüística moderna, se

desenvolvem em outros lugares. É o método de Greimas que iremos apresentar e

analisar brevemente.

A semiótica repousa sobre três princípios ou pressupostos principais:

Princípio de imanência: cada texto forma um conjunto de significados: a análise

considera todo o texto, mas somente o texto; ela não apela a dados « externos », tais

como o autor, os destinatários, os acontecimentos narrados, a história da redação.

Princípio de estrutura do sentido: só há sentido através da relação e no interior dela,

especialmente a relação de diferença; a análise de um texto consiste assim em

estabelecer a rede de relações (de oposição, de homologação...) entre os elementos, a

partir da qual o sentido do texto se constrói.

71

Princípio da gramática do texto: cada texto respeita uma gramática, isto é, um certo

número de regras ou estruturas; em um conjunto de frases, chamado discurso, há

diferentes níveis, tendo cada um a sua gramática.

O conteúdo global de um texto pode ser analisado em três níveis diferentes:

O nível narrativo. Estuda-se, no relato, as transformações que fazem passar do estado

inicial ao estado terminal. No interior de um percurso narrativo, a análise procura

retraçar as diversas fases, logicamente ligadas entre elas, que marcam a transformação

de um estado em um outro. Em cada uma destas fases, apuram-se as relações entre os «

papéis » exercidos por « atuantes » que determinam os estados e produzem as

transformações.

O nível discursivo. A análise consiste em três operações: a) a identificação e a

classificação das figuras, isto é, dos elementos de significação de um texto (atores,

tempos e lugares); b) o estabelecimento dos percursos de cada figura em um texto para

determinar a maneira como esse texto o utiliza; c) a procura dos valores temáticos das

figuras. Esta última operação consiste em distinguir « em nome do que » (= valor) as

figuras seguem, nesse texto determinado, tal percurso.

O nível lógico-semântico. É o nível chamado profundo. Ele é também o mais abstrato.

Ele procede do postulado que formas lógicas e significantes são subjacentes às

organizações narrativas e discursivas de todo discurso. A análise a esse nível consiste –

em precisar a lógica que gera as articulações fundamentais dos percursos narrativos e

figurativos de um texto. Para isto um instrumento é muitas vezes empregado, chamado

de « quadrado semiótico », figura utilizando as relações entre dois termos « contrários »

e dois termos « contraditórios » (por exemplo, branco e negro; branco e não-branco;

negro e não-negro).

Os teóricos do método semiótico não cessam de apresentar desenvolvimentos novos. As

pesquisas atuais se referem notadamente a enunciação e à inter-textualidade. Aplicado

primeiramente aos textos narrativos da Escritura, que se prestam mais facilmente a isso,

o método é cada vez mais utilizado para outros tipos de discursos bíblicos.

A descrição dada pela semiótica, e sobretudo o enunciado de seus pressupostos, já

deixam perceber as contribuições e os limites deste método. Estando mais atenta ao fato

de que cada texto bíblico é um todo coerente que obedece a mecanismos linguísticos

precisos, a semiótica contribui à nossa compreensão da Bíblia, Palavra de Deus expressa

em linguagem humana.

A semiótica pode ser utilizada para o estudo da Bíblia apenas quando este método de

análise é separado de certos pressupostos desenvolvidos na filosofia estruturalista, isto

é, a negação dos sujeitos e da referência extra-textual. A Bíblia é a Palavra sobre o real,

que Deus pronunciou em uma história e que ele nos dirige hoje por intermédio de

autores humanos. A abordagem semiótica deve ser aberta à história: primeiramente

àquela dos atores dos textos, em seguida àquela de seus autores e de seus leitores. O

risco é grande, entre os utilizadores da análise semiótica, de ficar em um estudo formal

do conteúdo e de não liberar a mensagem dos textos.

72

Se ela não se perde nos mistérios de uma linguagem complicada mas é ensinada em

termos simples em seus elementos principais, a análise semiótica pode dar aos cristãos o

gosto de estudar o texto bíblico e de descobrir algumas de suas dimensões de sentido;

sem possuir todos os conhecimentos históricos que se relacionam à produção do texto e

a seu mundo sócio-cultural. Ela pode assim mostrar-se útil na própria pastoral, para uma

certa apropriação da Escritura em ambientes não especializados.

C. Abordagens baseadas na Tradição

Mesmo que eles se diferenciem do método histórico-crítico por uma atenção maior à

unidade interna dos textos estudados, os. métodos literários que acabamos de apresentar

permanecem insuficientes para a interpretação da Bíblia, pois eles consideram cada

escrito isoladamente. Ora, a Bíblia não se apresenta como um conjunto de textos

desprovidos de relações entre eles, mas como um composto de testemunhos de uma

mesma e grande Tradição. Para corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a

exegese bíblica deve levar em consideração este fato. Tal é a perspectiva adotada por

várias abordagens que se desenvolvem atualmente.

1. Abordagem canônica

Constatando que o método histórico-crítico encontra algumas vezes dificuldades em

alcançar o nível teológico em suas conclusões, a abordagem « canônica », nascida nos

Estados Unidos há uns vinte anos, entende por bem conduzir uma tarefa teológica de

interpretação partindo do quadro especifico da fé: a Bíblia em seu conjunto.

Para fazê-lo, ela interpreta cada texto bíblico à luz do Cânon das Escrituras, isto é, da

Bíblia enquanto recebida como norma de fé por uma comunidade de fiéis. Ela procura

situar cada texto no interior do único desígnio de Deus, com o objetivo de chegar a uma

atualização da Escritura para o nosso tempo. Ela não pretende substituir o método

histórico-crítico, mas deseja complementá-lo.

Dois pontos de vista diferentes foram propostos: Brevard S. Childs centraliza seu

interesse sobre a forma canônica final do texto (livro ou coleção), forma aceita pela

comunidade como tendo autoridade para expressar sua fé e dirigir sua vida.

Mais do que sobre a forma final e estabilizada do texto, James A. Sanders coloca sua

atenção sobre o « processo canônico » ou desenvolvimento progressivo das Escrituras

às quais a comunidade dos fiéis reconheceu uma autoridade normativa. O estudo crítico

deste processo examina como as antigas tradições foram reutilizadas em novos

contextos antes de constituir um todo ao mesmo tempo estável e adaptado, coerente e

fazendo união de dados divergentes, do qual a comunidade de fé tira sua identidade.

Procedimentos hermenêuticos foram acionados no decorrer desse processo e o são ainda

após a fixação do Cânon; eles são muitas vezes do gênero do Midrashim, servindo para

atualizar o texto bíblico Eles favorecem uma constante interação entre a comunidade e

sua Escrituras, fazendo apelo a uma interpretação que visa torna contemporânea a

tradição.

A abordagem canônica reage com razão contra a valorização exagerada daquilo que é

supostamente original e primitivo, como se somente isso fosse autêntico. A Escritura

inspirada é a Escritura tal como a Igreja a reconheceu como regra de sua fé. Pode-se

73

insistir a esse respeito, seja sobre a forma final na qual se encontra atualmente cada um

dos livros, seja sobre o conjunto que eles constituem como Cânon. Um livro torna-se

bíblico somente à luz do Cânon inteiro.

A comunidade dos fiéis é efetivamente o contexto adequado para a interpretação dos

textos canônicos. A fé e o Espírito Santo enriquecem a exegese; a autoridade eclesial,

que se exerce a serviço da comunidade, deve velar para que a interpretação permaneça

fiel à grande Tradição que produziu os textos (cf Dei Verbum, 10).

A abordagem canônica encontra-se às voltas com mais de um problema, sobretudo

quando ela procura definir o « processo canônico ». A partir de quando pode-se dizer

que um texto é canônico? Parece admissível dizer: desde que a comunidade atribui a um

texto uma autoridade normativa, mesmo antes da fixação definitiva desse texto. Pode-se

falar de uma hermenêutica « canônica » desde que a repetição das tradições, que se

efetua levando-se em conta os aspectos novos da situação (religiosa, cultural, teológica),

mantém a identidade da mensagem. Mas apresenta-se uma questão: o processo de

interpretação que conduziu à formação do Cânon deve ele ser reconhecido como regra

de interpretação da Escritura até nossos dias?

De outro lado, as relações complexas entre o Cânon judaico das Escrituras e o Cânon

cristão suscitam numerosos problemas para a interpretação. A Igreja cristã recebeu

como « Antigo Testamento » os escritos que tinham autoridade na comunidade judaica

helenística, mas alguns deles estão ausentes da Bíblia hebraica ou se apresentam sob

uma forma diferente. O corpus é, então, diferente. Por isso a interpretação canônica não

pode ser idêntica, pois c, da texto deve ser lido em relação com o conjunto do corpus.

Ma sobretudo, a Igreja lê o Antigo Testamento à luz do acontecimento pascal — morte

e ressurreição de Cristo Jesus — que traz um radical novidade e dá, com uma autoridade

soberana, um sentido decisivo e definitivo às Escrituras (cf Dei Verbum, 4). Esta nova

determinação de sentido faz parte integrante da fé cristã. Ela não deve, portanto, tirar

toda consistência à interpretação canônica anterior, aquela que precedeu a Páscoa cristã,

pois é preciso respeitar cada etapa da história da salvação. Esvaziar da sus substância o

Antigo Testamento seria privar o Novo Testamento de sua raiz na história.

2. Abordagem com recurso às tradições judaicas de interpretação

O Antigo Testamento tomou sua forma final no judaísmo dos quatro ou cinco últimos

séculos que precederam a era cristã. Esse judaísmo foi também o ambiente de origem do

Novo Testamento e da Igreja nascente. Numerosos estudos de história judaica antiga e

principalmente as pesquisas suscitadas pelas descobertas de Qumrân colocaram em

relevo a complexidade do mundo judeu, em terra de Israel e na diáspora, ao longo deste

período.

É neste mundo que começou a interpretação da Escritura. Um dos mais antigos

testemunhos de interpretação judaica da Bíblia é a tradução grega dos Setenta. Os

Targumim aramaicos constituem um outro testemunho do mesmo esforço, que

continuou até nossos dias, acumulando uma soma prodigiosa de procedimentos sábios

Para a conservação do texto do Antigo Testamento e para a explicação do sentido dos

textos bíblicos. Em todos os tempos, os melhores exegetas cristãos, desde Orígenes e

são Jerônimo, procuraram tirar proveito da erudição judaica para uma melhor

inteligência da Escritura. Numerosos exegetas modernos seguem esse exemplo.

74

As tradições judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a Bíblia

judaica dos Setenta, que em seguida tornou-se a primeira parte da Bíblia cristã durante

pelo menos os quatro primeiros séculos da Igreja, e no Oriente até nossos dias. A

literatura judaica extra-canônica, chamada apócrifa ou inter-testamentária, abundante e

diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo Testamento. Os

procedimentos variados de exegese praticados pelo judaísmo das diferentes tendências

reencontram-se no próprio Antigo Testamento, por exemplo nas Crônicas em relação

aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo, em certos raciocínios

escriturísticos de são Paulo. A diversidade das formas (parábolas, alegorias, antologia e

florilégios, releituras, pesher, comparações entre textos distantes, salmos e hinos,

visões, revelações e sonhos, composições sapienciais) é comum ao Antigo e ao Novo

Testamento assim como à literatura de todos os ambientes judaicos antes e após o

tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim representam a homilética e a

interpretação bíblica de grandes setores do judaísmo dos primeiros séculos.

Além disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos comentadores,

gramáticos e lexicógrafos judeus medievais e mais recentes, luzes para a inteligência de

passagens obscuras ou de palavras raras e únicas. Mais freqüentes que antigamente,

aparecem hoje referências a essas obras judaicas na discussão exegética.

A riqueza da erudição judaica colocada a serviço da Bíblia, desde suas origens na

antiguidade até nossos dias, é uma ajuda muito valiosa para o exegeta dos dois

Testamentos, à condição, no entanto, de empregá-la com conhecimento de causa. O

judaísmo antigo era de uma grande diversidade. A forma farisaica, que prevaleceu em

seguida no rabinismo, não era a única. Os textos judeus antigos se escalonam por vários

séculos; é importante situá-los cronologicamente antes de fazer comparações.

Sobretudo, o quadro geral das comunidades judaicas e cristãs é fundamentalmente

diferente: do lado judeu, segundo formas muito variadas, trata-se de uma religião que

define um povo e uma prática de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradição

oral, enquanto que do lado cristão é a fé ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado e

doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que reúne uma comunidade. Esses dois pontos

de partida criam, para a interpretação das Escrituras, dois contextos que, apesar de

muitos contatos e semelhanças, são radicalmente diferentes.

3. Abordagem através da história dos efeitos do texto

Esta abordagem apóia-se sobre dois princípios: a) um texto torna-se uma obra literária

somente se ele encontra leitores que lhe dão vida apropriando-se dele; b) essa

apropriação do texto, que pode se efetuar de maneira individual ou comunitária e toma

forma em diferentes domínios (literário, artístico, teológico, ascético e místico),

contribui a fazer compreender melhor o texto em si.

Sem ser totalmente desconhecida da antiguidade, esta abordagem se desenvolveu entre

1960 e 1970 nos estudos literários, logo que a crítica interessou-se pelas relações entre o

texto e seus leitores. A exegese bíblica só podia obter benefícios com esta pesquisa,

ainda mais que a hermenêutica filosófica afirmava por seu lado a necessária distância

entre a obra e seu autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta perspectiva,

começou-se a fazer entrar no trabalho de interpretação a história do efeito provocado

por um livro ou uma passagem da Escritura (« Wirkungsgeschichte »). Esforça-se em

medir a evolução da interpretação no decorrer do tempo em função das preocupações

75

dos leitores e em avaliar a importância do papel da tradição para iluminar o sentido dos

textos bíblicos.

Colocar-se em presença do texto e de seus leitores suscita uma dinâmica, pois o texto

exerce uma irradiação e provoca reações. Ele faz ressoar um apelo, que é ouvido pelos

leitores individualmente ou em grupos. O leitor, aliás, não é nunca um sujeito isolado.

Ele pertence a um espaço social e se situa em uma tradição. Ele vem ao texto com suas

questões, opera uma seleção, propõe uma interpretação e, finalmente, ele pode criar uma

outra obra ou tomar iniciativas que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura.

Os exemplos de uma tal abordagem já são numerosos. A história da leitura do Cântico

dos Cânticos oferece um excelente testemunho disso; ela mostra como esse livro foi

recebido na época dos Padres da Igreja, no ambiente monástico latino da Idade Média

ou ainda por um místico como são João da Cruz; assim ele permite melhor descobrir

todas as dimensões do sentido deste escrito. Da mesma maneira no Novo Testamento é

possível e útil esclarecer o sentido de uma pericope (por exemplo, aquela do jovem rico

em Mt 19,16-26) mostrando sua fecundidade no curso da história da Igreja.

Mas a história atesta também a existência de correntes de interpretação tendenciosas e

falsas, com efeitos nefastos, levando, por exemplo, ao antisemitismo ou a outras

discriminações raciais ou ainda a ilusões milenaristas. Vê-se por isso que esta

abordagem não pode ser uma disciplina autônoma. Um discernimento é necessário.

Deve-se evitar o privilégio de um ou outro momento da história dos efeitos de um texto

para fazer dele a única regra de sua interpretação.

D. Abordagens através das ciências humanas

Para se comunicar, a Palavra de Deus se enraizou na vida de grupos humanos (cf Ecle

24,12) e ela traçou a si mesma um caminho através dos condicionamentos psicológicos

das diversas pessoas que compuseram os escritos bíblicos. Resulta disso que as ciências

humanas — em particular a sociologia, a antropologia e a psicologia — podem

contribuir a uma compreensão melhor de certos aspectos dos textos. Convém, no

entanto, notar que existem várias escolas, com divergências notáveis sobre a própria

natureza dessas ciências. Dito isto, um bom número de exegetas tirou recentemente

proveito desse gênero de pesquisas.

1. Abordagem sociológica

Os textos religiosos estão unidos por uma conexão de relação recíproca com as

sociedades nas quais eles nascem. Esta constatação vale evidentemente para os textos

bíblicos. Consequentemente, o estudo crítico da Bíblia necessita um conhecimento tão

exato quanto possível dos comportamentos sociais que caracterizam os diversos

ambientes nos quais as tradições bíblicas se formaram. Esse gênero de informação

sócio-histórica deve ser completado por uma explicação sociológica correta, que

interprete cientificamente, em cada caso, o alcance das condições sociais de existência.

Na história da exegese, o ponto de vista sociológico encontrou seu lugar há muito

tempo. A atenção que a « Formgeschichte » deu ao ambiente de origem dos textos («

Sitz im Leben ») é um testemunho disso: reconhece-se que as tradições bíblicas levam a

marca dos ambientes sócio-culturais que as transmitiram. No primeiro terço do século

76

XX a Escola de Chicago estudou a situação sócio-histórica da cristandade primitiva,

dando assim à crítica histórica um impulso apreciável nesta direção. Não decorrer dos

vinte últimos anos (1970-1990), a abordagem sociológica dos textos bíblicos tornou-se

parte integrante da exegese.

Numerosas são as questões feitas a esse respeito à exegese do Antigo Testamento.

Deve-se perguntar, por exemplo, quais são as diversas formas de organização social e

religiosa que Israel conheceu no decorrer de sua história. Para o período anterior à

formação de um Estado, o modelo etnológico de uma sociedade acéfala segmentária

forneceu uma base de partida suficiente? Como se passou de uma liga de tribos, sem

grande coesão, a um Estado organizado em monarquia e, de lá, a uma comunidade

baseada simplesmente sobre as ligações religiosas e genealógicas? Quais

transformações econômicas, militares e outras foram provocadas na estrutura da

sociedade pelo movimento de centralização política e religiosa que conduziu à

monarquia? O estudo das normas de comportamento no Antigo Oriente e em Israel não

contribui com mais eficácia à inteligência do Decálogo do que as tentativas puramente

literárias de reconstrução de um texto primitivo?

Para a exegese do Novo Testamento, as questões são evidentemente diferentes. Citemos

algumas delas: para explicar o gênero de vida adotado antes da Páscoa por Jesus e seus

discípulos, qual valor pode-se dar à teoria de um movimento de carismáticos itinerantes,

vivendo sem domicilio, nem família, nem bens? Foi mantida uma relação de

continuidade, baseada sobre o chamado de Jesus a segui-lo, entre a atitude de

desprendimento radical adotado por Jesus e aquela do movimento cristão após a Páscoa,

nos mais diversos ambientes da cristandade primitiva? O que sabemos da estrutura

social das comunidades paulinas, levando-se em conta, em cada caso, a cultura urbana

correspondente?

Geralmente a abordagem sociológica dá uma abertura maior ao trabalho exegético e

comporta muitos aspectos positivos. O conhecimento dos dados sociológicos que

contribuem a fazer compreender o funcionamento econômico, cultural e religioso do

mundo bíblico é indispensável à crítica histórica. A tarefa da exegese, de bem

compreender o testemunho de fé da Igreja apostólica, não pode ser levada a termo de

maneira rigorosa sem uma pesquisa científica que estude os estreitos relacionamentos

dos textos do Novo Testamento com a vivência social da Igreja primitiva. A utilização

dos modelos fornecidos pela ciência sociológica assegura às pesquisas dos historiadores

das épocas bíblicas uma notável capacidade de renovação, mas é preciso, naturalmente,

que os modelos sejam modificados em função da realidade estudada.

É o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociológica faz correr a

exegese. Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades

vivas, é previsível encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus métodos

a ambientes históricos que pertençam a um passado longínquo. Os textos bíblicos e

extra-bíblicos não fornecem forçosamente uma documentação suficiente para dar uma

visão de conjunto da sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a dar mais

atenção aos aspectos econômicos e institucionais da existência humana do que às suas

dimensões pessoais e religiosas.

77

2. Abordagem através da antropologia cultural

A abordagem dos textos bíblicos que utiliza as pesquisas de antropologia cultural está

em ligação estreita com a abordagem sociológica. A distinção dessas duas abordagens

situa-se ao mesmo tempo a nível da sensibilidade, do método e dos aspectos da

realidade que retêm a atenção. Enquanto que a abordagem sociológica — acabamos de

dizê-lo — estuda sobretudo os aspectos econômicos e institucionais, a abordagem

antropológica interessa-se por um vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na

linguagem, arte, religião, mas também nos vestuários, ornamentos, festas, danças,

mitos, lendas e tudo o que concerne a etnografia.

Geralmente a antropologia cultural procura definir as características dos diferentes tipos

de homens no ambiente social deles — como por exemplo, o homem mediterrânico —

com tudo o que isso implica de estudo do ambiente rural ou urbano e de atenção voltada

aos valores reconhecidos pela sociedade (honra e desonra, segredo, fidelidade, tradição,

gênero de educação e de escolas), à maneira pela qual se exerce o controle social, às

idéias que se tem da família, da casa, do parentesco, à situação da mulher, dos binômios

institucionais (patrão-cliente, proprietário-locatário, benfeitor-beneficiário, homem

livre-escravo), sem esquecer a concepção do sagrado e do profano, os tabus, o ritual de

passagem de uma situação a uma outra, a magia, a origem dos recursos, do poder, da

informação, etc.

Tendo-se por base esses diversos elementos, constitui-se tipologias e « modelos »

comuns a várias culturas.

Esse gênero de estudos pode evidentemente ser útil para a interpretação dos textos

bíblicos e ele é efetivamente utilizado para o estudo das concepções de parentesco no

Antigo Testamento, a posição da mulher na sociedade israelita, a influência dos ritos

agrários, etc. Nos textos que relatam o ensinamento de Jesus, por exemplo as parábolas,

muitos detalhes podem ser esclarecidos graças a essa abordagem. Ocorre o mesmo para

as concepções fundamentais, como aquela do reino de Deus, ou para a maneira de

conceber o tempo na história da salvação, assim como para os processos de aglutinação

das comunidades primitivas. Esta abordagem permite distinguir melhor os elementos

permanentes da mensagem bíblica cujo fundamento está na natureza humana, e as

determinações contingentes segundo culturas particulares. Todavia, não mais que outras

abordagens particulares, esta não está em si à altura de levar em conta as contribuições

específicas da revelação. Convém estar ciente disso no momento de apreciar o alcance

de seus resultados.

3. Abordagens psicológicas e psicanalíticas

Psicologia e teologia não cessaram jamais de estar em diálogo uma com a outra. A

extensão moderna das pesquisas psicológicas ao estudo das estruturas dinâmicas do

inconsciente suscitou novas tentativas de interpretação dos textos antigos, e assim

também da Bíblia. Obras inteiras foram consagradas à interpretação psicanalítica de

textos bíblicos. Vivas discussões seguiram-nas: em qual medida e em quais condições

as pesquisas psicológicas e psicanalíticas podem contribuir para uma compreensão mais

profunda da Santa Escritura?

78

Os estudos de psicologia e de psicanálise trazem à exegese bíblica um enriquecimento,

pois, graças a eles os textos da Bíblia podem ser melhor entendidos enquanto

experiências de vida e regras de comportamento. A religião, sabe-se, é sempre em uma

situação de debate com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, à correta

orientação das pulsões humanas. As etapas que a crítica histórica percorre

metodicamente precisam ser complementadas por um estudo dos diversos níveis da

realidade expressa nos textos. A psicologia e a psicanálise esforçam-se em avançar

nesta direção. Elas abrem a via para uma compreensão pluridimensional da Escritura, e

elas ajudam a decifrar a linguagem humana da revelação.

A psicologia e, de outra maneira, a psicanálise deram particularmente uma nova

compreensão do símbolo. A linguagem simbólica permite exprimir zonas da experiência

religiosa que não são acessíveis ao raciocínio puramente conceitual, mas têm valor para

a questão da verdade. É por isso que um estudo interdisciplinar conduzido em comum

por exegetas e psicólogos ou psicanalistas apresenta vantagens certas, fundadas

objetivamente e confirmadas na pastoral.

Numerosos exemplos podem ser citados, que mostram a necessidade de um esforço

comum dos exegetas e dos psicólogos: para esclarecer o sentido dos ritos do culto, dos

sacrifícios, dos interditos, para explicar a linguagem cheia de imagens da Bíblia, o

alcance metafórico dos relatos de milagres, a força dramática das visões e audições

apocalípticas. Não se trata simplesmente de descrever a linguagem simbólica da Bíblia,

mas apreender sua função de revelação e de interpelação: a realidade « luminosa » de

Deus entra aqui em contato com o homem.

O diálogo entre exegese e psicologia ou psicanálise em vista de uma compreensão

melhor da Bíblia deve evidentemente ser crítico e respeitar as fronteiras de cada

disciplina. Em todo caso, uma psicologia ou uma psicanálise que fosse atéia se tornaria

incapaz de considerar os dados da fé. Úteis para definir a extensão da responsabilidade

humana, psicologia e psicanálise não devem eliminar a realidade do pecado e da

salvação. Deve-se, aliás, evitar de confundir religiosidade espontânea e revelação

bíblica ou de prejudicar o caráter histórico da mensagem da Bíblia, que lhe assegura um

valor de acontecimento único.

Notemos ainda que não se pode falar da « exegese psicanalítica » como se houvesse

apenas uma. Existe, em realidade, provenientes de diversos domínios da psicologia e

das diversas escolas, uma grande variedade de conhecimentos suscetíveis de contribuir à

interpretação humana e teológica da Bíblia. Considerar absoluta uma ou outra posição

de uma das escolas não favorece a fecundidade do esforço comum, ao contrário lhe e

nocivo.

As ciências humanas não se reduzem à sociologia, à antropologia cultural e à

psicologia. Outras disciplinas podem também ser úteis para a interpretação da Bíblia.

Em todos esses domínios é preciso respeitar as competências e reconhecer que é pouco

freqüente que uma mesma pessoa seja ao mesmo tempo qualificada em exegese e em

uma ou outra das ciências humanas.

79

E. Abordagens contextuais

A interpretação de um texto é sempre dependente da mentalidade e das preocupações de

seus leitores. Estes últimos dão uma atenção privilegiada a certos aspectos e, sem

mesmo pensar, negligenciam outros. É então inevitável que exegetas adotem, em seus

trabalhos, novos pontos de vista que correspondam a correntes de pensamento

contemporâneas que não obtiveram, até aqui, uma importância suficiente. Convém que

eles o faça m com discernimento crítico. Atualmente os movimentos de libertação e o

feminismo retêm particularmente a atenção.

1. Abordagem da libertação

A teologia da libertação é um fenômeno complexo que é preciso não simplificar

indevidamente. Como movimento teológico ele se consolida no início dos anos 70. Seu

ponto de partida, além das circunstâncias econômicas, sociais e politicas dos países da

América Latina, encontra-se em dois grandes acontecimentos eclesiais: o Concilio

Vaticano II, com sua vontade declarada de aggiornamento e de orientação do trabalho

pastoral da Igreja em direção às necessidades do mundo atual, e a 2ª Assembléia

plenária do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellin em 1968,

que aplicou os ensinamentos do Concilio às necessidades da América Latina. O

movimento se propagou também em outras partes do mundo (África, Ásia, população

negra dos Estados Unidos).

É difícil discernir se existe « uma » teologia da libertação e definir seu método. É tão

difícil quanto determinar adequadamente sua maneira de ler a Bíblia para indicar em

seguida as contribuições e os limites. Pode-se dizer que ela não adota um método

especial. Mas, partindo de pontos de vista sócio-culturais e políticos próprios, ela

pratica uma leitura bíblica orientada em função das necessidades do povo, que procura

na Bíblia o alimento da sua fé e da sua vida.

Ao invés de se contentar com uma interpretação objetivante, que se concentra sobre

aquilo que diz o texto em seu contexto de origem, procura-se uma leitura que nasça da

situação vivida pelo povo. Se este último vive em circunstâncias de opressão, é preciso

recorrer à Bíblia para nela procurar o alimento capaz de sustentá-lo em suas lutas e suas

esperanças. A realidade presente não deve ser ignorada, mas, ao contrário, afrontada em

vista de iluminá-la à luz da Palavra. Desta luz resultará a práxis cristã autêntica,

tendendo à transformação da sociedade por meio da justiça e do amor. Na fé, a Escritura

se transforma em fator de dinamismo de libertação integral.

Os princípios são os seguintes:

Deus está presente na história de seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus dos pobres, que

não pode tolerar a opressão nem a injustiça.

É por isso que a exegese não pode ser neutra, mas deve tomar partido pelos pobres no

seguimento de Deus, e engajar-se no combate pela libertação dos oprimidos.

A participação a esse combate permite, precisamente, de fazer aparecer sentidos que se

descobrem somente quando os textos bíblicos são lidos em um contexto de

solidariedade efetiva com os oprimidos.

80

Como a libertação dos oprimidos é um processo coletivo, a comunidade dos pobres é a

melhor destinatária para receber a Bíblia como palavra de libertação. Além disso, os

textos bíblicos tendo sido escritos para comunidades, é a comunidades que em primeiro

lugar a leitura da Bíblia é confiada. A Palavra de Deus é plenamente atual, graças

sobretudo à capacidade que possuem os « acontecimentos fundadores » (a saída do

Egito, a paixão e a ressurreição de Jesus) de suscitar novas realizações no curso da

história.

A teologia da libertação compreende elementos cujo valor é indubitável: o sentido

profundo da presença de Deus que salva; a insistência sobre a dimensão comunitária da

fé; a urgência de uma práxis libertadora enraizada na justiça e no amor; uma releitura da

Bíblia que procura fazer da Palavra de Deus a luz e o alimento do povo de Deus em

meio a suas lutas e suas esperanças. Assim é sublinhada a plena atualidade do texto

inspirado.

Mas a leitura tão engajada da Bíblia comporta riscos. Como ela é ligada a um

movimento em plena evolução, as observações que seguem não podem que ser

provisórias.

Essa leitura se concentra sobre textos narrativos e proféticos que iluminam situações de

opressão e que inspiram uma práxis tendendo a uma mudança social: aqui ou lá ela pôde

ser parcial, não dando tanta atenção a outros textos da Bíblia. É certo que a exegese não

pode ser neutra, mas ela deve também evitar de ser unilateral. Aliás, o engajamento

social e politico não é a tarefa direta do exegeta.

Querendo inserir a mensagem bíblica no contexto sócio-político, teólogos e exegetas

foram levados ao recurso de instrumentos de análise da realidade social. Nesta

perspectiva, algumas correntes da teologia da libertação fizeram uma análise inspirada

em doutrinas materialistas e é nesse quadro também que elas leram a Bíblia, o que não

deixou de provocar questões, notadamente no que concerne o princípio marxista da luta

de classes.

Sob a pressão de enormes problemas sociais, o acento foi colocado principalmente

sobre uma escatologia terrestre, muitas vezes em detrimento da dimensão escatológica

transcendente da Escritura.

As mudanças sociais e políticas conduzem esta abordagem a se propôr novas questões e

a procurar novas orientações. Para seu desenvolvimento ulterior e sua fecundidade na

Igreja, um fator decisivo será o esclarecimento de seus pressupostos hermenêuticos, de

seus métodos e de sua coerência com a fé e a Tradição do conjunto da Igreja.

2. Abordagem feminista

A hermenêutica bíblica feminista nasceu por volta do fim do século XIX nos Estados

Unidos, no contexto sócio-cultural da luta pelos direitos da mulher, com o comitê de

revisão da Bíblia. Este último produziu o « The Woman's Bible » em dois volumes

(New York 1885, 1898). Esta corrente se manifestou com grande vigor e teve um

enorme desenvolvimento a partir dos anos '70, em ligação com o movimento de

libertação da mulher, sobretudo na América do Norte. Melhor dizendo, deve-se

distinguir várias hermenêuticas bíblicas feministas, pois as abordagens utilizadas são

81

muito diversas. A unidade delas provém do tema comum, isto é a mulher, e do fim

perseguido: a libertação da mulher e a conquista de direitos iguais aos do homem.

Deve-se mencionar aqui três formas principais da hermenêutica bíblica feminista: a

forma radical, a forma neo-ortodoxa e a forma crítica.

A forma radical recusa completamente a autoridade da Bíblia, dizendo que ela foi

produzida por homens em vista de assegurar a dominação do homem sobre a mulher

(androcentrismo).

A forma neo-ortodoxa aceita a Bíblia como profecia e suscetível de servir, na medida

em que ela toma partido pelos fracos e assim também pela mulher; esta orientação é

adotada como « cânon no cânon », para colocar em relevo tudo aquilo que é em favor da

libertação da mulher e de seus direitos.

A forma crítica utiliza uma metodologia sutil e procura redescobrir a posição e o papel

da mulher cristã no movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas. Naquela época teria-se

adotado o igualitarismo. Mas esta situação teria sido mascarada, em grande parte, nos

escritos do Novo Testamento e ainda mais na sua sequência, tendo progressivamente

prevalecido o patriarcalismo e o androcentrismo.

A hermenêutica feminista não elaborou um método novo. Ela se serve dos métodos

correntes em exegese, especialmente o método histórico-crítico. Mas ela acrescenta dois

critérios de investigação.

O primeiro é o critério feminista, tomado do movimento de libertação da mulher, na

linha do movimento mais geral da teologia da libertação. Ele utiliza uma hermenêutica

da suspeita: tendo a história sido regularmente escrita pelos vencedores, para encontrar

a verdade não se deve confiar nos textos, mas procurar neles indícios que revelem outra

coisa.

O segundo critério é sociológico; ele se baseia no estudo das sociedades dos tempos

bíblicos, de sua estratificação social e da posição que a mulher ocupava.

No que concerne os escritos neo-testamentários, o objeto do estudo, em definitivo, não é

a concepção da mulher expressa no Novo Testamento, mas a reconstrução histórica de

duas situações diferentes da mulher no primeiro século: aquela que era habitual na

sociedade judaica e greco-romana e a outra, inovadora, instituída no movimento de

Jesus e nas Igrejas paulinas, onde teria-se formado « uma comunidade de discípulos de

Jesus, todos iguais ». Um dos apoios invocados para sustentar esta visão das coisas é o

texto de Gal 3,28. O objetivo é redescobrir para o presente a história esquecida do papel

da mulher na Igreja das origens.

Numerosas são as contribuições positivas que provêm da exegese feminista. As

mulheres tomaram assim uma parte mais ativa na pesquisa exegética. Elas conseguiram,

muitas vezes melhor do que os homens, perceber a presença, o significado e o papel da

mulher na Bíblia, na história das origens cristãs e na Igreja. O horizonte cultural

moderno, graças à sua maior atenção à dignidade da mulher e ao papel dela na

sociedade e na Igreja, faz com que sejam dirigidas ao texto bíblico interrogações novas,

ocasiões de novas descobertas. A sensibilidade feminina leva a revelar e a corrigir certas

82

interpretações correntes, que eram tendenciosas e visavam justificar a dominação do

homem, sobre a mulher.

No que concerne o Antigo Testamento, vários estudos esforçaram-se de chegar a uma

compreensão melhor da imagem de Deus. O Deus da Bíblia não é projeção de uma

mentalidade patriarcal. Ele é Pai, mas ele é também Deus de ternura e de amor

maternais.

Na medida em que a exegese feminista se fundamenta sobre uma idéia preconcebida,

ela se expõe a interpretar os textos bíblicos de maneira tendenciosa e portanto

contestável. Para provar suas teses ela deve muitas vezes, na falta de melhor, recorrer a

argumentos ex silentio. É sabido que estes são geralmente duvidosos; eles não podem

nunca bastar para estabelecer solidamente uma conclusão. De outro lado, a tentativa

feita para reconstituir, graças a indícios fugitivos discernidos nos textos, uma situação

histórica que esses mesmos textos pretendem querer esconder, não corresponde mais a

um trabalho de exegese propriamente dito, pois ela conduz à rejeição dos textos

inspirados preferindo uma construção hipotética diferente.

A exegese feminista propõe muitas vezes questões de poder na Igreja que são, sabe-se,

objeto de discussões e mesmo de confrontos. Nesse domínio, a exegese feminista só

poderá ser útil à Igreja na medida em que ela não cair nas armadilhas mesmas que

denuncia e quando ela não perder de vista o ensinamento evangélico sobre o poder

como serviço, ensinamento endereçado por Jesus a todos os seus discípulos, homens e

mulheres.(2)

F. Leitura fundamentalista

A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus

inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus

detalhes. Mas por « interpretação literal » ela entende uma interpretação primária,

literalista, isto é, excluindo todo esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta

seu crescimento histórico e seu desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do

método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para a interpretação

da Escritura.

A leitura fundamentalista teve sua origem na época da Reforma, com uma preocupação

de fidelidade ao sentido literal da Escritura. Após o século das Luzes, ela se apresentou

no protestantismo como uma proteção contra a exegese liberal. O termo «

fundamentalista » é ligado diretamente ao Congresso Bíblico Americano realizado em

Niagara, Estado de New York, em 1895. Os exegetas protestantes conservadores

definiram nele « cinco pontos de fundamentalismo »: a inerrância verbal da Escritura, a

divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a

ressurreição corporal quando da segunda vinda de Cristo. Logo que a leitura

fundamentalista da Bíblia se propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras

espécies de leituras, igualmente « literalistas », na Europa, Ásia, Africa e América do

Sul. Esse gênero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da última parte

do século XX, em grupos religiosos e seitas assim como também entre os católicos.

Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir sobre a inspiração divina da

Bíblia, a inerrância da Palavra de Deus e as outras verdades bíblicas inclusas nos cinco

83

pontos fundamentais, sua maneira de apresentar essas verdades está enraizada em uma

ideologia que não é bíblica, apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma

forte adesão a atitudes doutrinárias rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento a

respeito da vida cristã e da salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo

questionamento e toda pesquisa crítica.

O problema de base dessa leitura fundamentalista é que recusando de levar em

consideração o caráter histórico da revelação bíblica, ela se torna incapaz de aceitar

plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo foge da estreita

relação do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir

que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi

redigida, sob a inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos

eram limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como se ele tivesse sido

ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus

foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionadas por uma ou outra

época. Ele não dá nenhuma atenção às formas literárias e às maneiras humanas de

pensar presentes nos textos bíblicos, muitos dos quais são fruto de uma elaboração que

se estendeu por longos períodos de tempo e leva a marca de situações históricas muito

diversas.

O fundamentalismo insiste também de uma maneira indevida sobre a inerrância dos

detalhes nos textos bíblicos, especialmente em matéria de fatos históricos ou de

pretensas verdades científicas. Muitas vezes ele torna histórico aquilo que não tinha a

pretensão de historicidade, pois ele considera como histórico tudo aquilo que é

reportado ou contado com os verbos em um tempo passado, sem a necessária atenção à

possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo.

O fundamentalismo tem muitas vezes tendência a ignorar ou a negar os problemas que o

texto bíblico comporta na sua formulação hebraica, aramaica ou grega. Ele é muitas

vezes estreitamente ligado a uma tradição determinada, antiga ou moderna. Ele se omite

igualmente de considerar as « releituras » de certas passagens no interior da própria

Bíblia.

No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo não leva em consideração o

crescimento da tradição evangélica, mas confunde ingenuamente o estágio final desta

tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio inicial (as ações e as palavras

do Jesus da história). Ele negligencia assim um dado importante: a maneira com a qual

as próprias primeiras comunidades cristãs compreenderam o impacto produzido por

Jesus de Nazaré e sua mensagem. Ora, aqui está um testemunho da origem apostólica da

fé cristã e sua expressão direta. O fundamentalismo desnatura assim o apelo lançado

pelo próprio Evangelho.

O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma grande estreiteza de visão, pois ele

considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada, só porque

encontra-se expressa na Bíblia; isso impede o diálogo com uma concepção mais ampla

das relações entre a cultura e a fé. Ele se apóia sobre uma leitura não-crítica de certos

textos da Bíblia para confirmar idéias políticas e atitudes sociais marcadas por

preconceitos, racistas, por exemplo, simplesmente contrários ao Evangelho cristão.

84

Enfim, em sua adesão ao princípio do « sola Scriptura », o fundamentalismo separa a

interpretação da Bíblia da Tradição guiada pelo Espírito, que se desenvolve

autenticamente em ligação com a Escritura no seio da comunidade de fé. Falta-lhe

entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja cristã e que ele é

Escritura Santa desta Igreja, cuja existência precedeu a composição de seus textos.

Assim, o fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial; ele considera negligenciáveis os

credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que se tornam parte da tradição eclesiástica,

como também a função de ensinamento da própria Igreja. Ele se apresenta como uma

forma de interpretação privada, que não reconhece que a Igreja é fundada sobre a Bíblia

e tira sua vida e sua inspiração das Escrituras.

A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que

procuram respostas bíblicas para seus problemas da vida. Ela pode enganá-las

oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, ao invés de lhes dizer que a

Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas.

O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele

coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitações

humanas da mensagem bíblica com a substancia divina dessa mensagem.

II. QUESTÕES DE HERMENÊUTICA

A. Hermenêuticas filosóficas

A atividade da exegese é chamada a ser repensada levando-se em consideração a

hermenêutica filosófica contemporânea, que colocou em evidência a implicação da

subjetividade no conhecimento, especialmente no conhecimento histórico. A reflexão

hermenêutica teve nova força com a publicação dos trabalhos de Friedrich

Schleiermacher, Wilhelm Dilthey e, sobretudo, Martin Heidegger. Na trilha destes

filósofos, mas também distanciando-se deles, diversos autores aprofundaram a teoria

hermenêutica contemporânea e suas aplicações à Escritura. Entre eles mencionaremos

especialmente Rudolf Bultmann, Hans Georg Gadamer e Paul Ricceur. Não se pode

aqui resumir-lhes o pensamento. Será suficiente indicar algumas idéias centrais da

filosofia deles, aquelas que têm uma incidência sobre a interpretação dos textos

bíblicos.(3)

1. Perspetivas modernas

Constatando a distância cultural entre o mundo do primeiro século e aquele do século

XX, e preocupado em obter que a realidade da qual trata a Escritura fale ao homem

contemporâneo, Bultmann insistiu na pré-compreensão necessária a toda compreensão e

elaborou a teoria da interpretação existencial dos escritos do Novo Testamento.

Apoiando-se no pensamento de Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bíblico

não é possível sem pressupostos que dirigem a compreensão. A pré-compreensão («

Vorverständnis ») é fundamentada na relação vital (« Lebensverhältnis ») do intérprete

com a coisa da qual fala o texto. Para evitar o subjetivismo, é preciso no entanto que a

pré-compreensão se deixe aprofundar e enriquecer, até mesmo se modificar e se

corrigir, por aquilo do qual fala o texto.

Interrogando-se sobre a conceituação justa que definirá o questionamento a partir do

qual os textos da Escritura poderão ser entendidos pelo homem de hoje, Bultmann

85

pretende encontrar a resposta na analítica existencial de Heidegger. Os existenciais

heideggerianos teriam um alcance universal e ofereceriam as estruturas e os conceitos

mais apropriados para a compreensão da existência humana revelada na mensagem do

Novo Testamento.

Gadamer sublinha igualmente a distância histórica entre o texto e seu intérprete. Ele

retoma e desenvolve a teoria do círculo hermenêutico. As antecipações e as pré-

concepções que marcam nossa compreensão provêm da tradição que nos sustenta. Esta

consiste em um conjunto de dados históricos e culturais, que constituem nosso contexto

vital, nosso horizonte de compreensão. O intérprete deve entrar em diálogo com a

realidade à qual se refere o texto. A compreensão se opera na fusão dos horizontes

diferentes do texto e de seu leitor (« Horizontverschmelzung »). Ela só é possível se há

uma dependência (« Zugehörigkeit »), isto é, uma afinidade fundamental entre o

intérprete e seu objeto. A hermenêutica é um processo dialético: a compreensão de um

texto é sempre uma compreensão mais ampla de si mesmo.

Do pensamento hermenêutico de Ricoeur retém-se primeiramente o relevo dado à

função de distanciação como condição necessária a uma justa apropriação do texto.

Uma primeira distância existe entre o texto e seu autor, pois, uma vez produzido, o texto

adquire uma certa autonomia em relação a seu autor; ele começa uma carreira de

sentidos. Uma outra distancia existe entre o texto e seus leitores sucessivos; estes devem

respeitar o mundo do texto em sua alteridade. Os métodos de análise literária e histórica

são assim necessários à interpretação. No entanto, o sentido de um texto só pode ser

dado plenamente se ele é atualizado na vida de leitores que se apropriam dele. A partir

da própria situação, os leitores são chamados a realçar significados novos, na linha do

sentido fundamental indicado pelo texto. O conhecimento bíblico não deve se fixar só

na linguagem; ele procura atingir a realidade da qual fala o texto. A linguagem religiosa

da Bíblia é uma linguagem simbólica que « faz pensar », uma linguagem da qual não se

cessa de descobrir as riquezas de sentido, uma linguagem que visa uma realidade

transcendente e que, ao mesmo tempo, desperta a pessoa humana à dimensão profunda

de seu ser.

2. Utilidade para a exegese

O que dizer dessas teorias contemporâneas de interpretação dos textos? A Bíblia é

Palavra de Deus para todas as épocas que se sucedem. Consequentemente não se

poderia dispensar uma teoria hermenêutica que permite incorporar os métodos de crítica

literária e histórica em um modelo de interpretação mais amplo. Trata-se de ultrapassar

a distância entre o tempo dos autores e primeiros destinatários dos textos bíblicos e

nossa época contemporânea, de modo a atualizar corretamente a mensagem dos textos

para alimentar a vida de fé dos cristãos. Toda exegese dos textos é chamada a ser

completada por uma « hermenêutica », no sentido recente do termo.

A necessidade de uma hermenêutica, isto é, de uma interpretação no hoje do nosso

mundo, encontra um fundamento na própria Bíblia e na história de sua interpretação. O

conjunto dos escritos do Antigo e do Novo Testamento apresenta-se como o produto de

um longo processo de reinterpretação dos acontecimentos fundadores, ligado com a vida

das comunidades de fiéis. Na tradição eclesial, os primeiros intérpretes da Escritura, os

Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos só era completa

quando eles evidenciavam o sentido para os cristãos do tempo deles e na situação em

86

que viviam. Só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida que se tenta

reencontrar no coração de sua formulação a realidade de fé que eles exprimem, e se esta

se liga à experiência dos fiéis do nosso mundo.

A hermenêutica contemporânea é uma reação sadia ao positivismo histórico e à tentação

de aplicar ao estudo da Bíblia os critérios de objetividade utilizados nas ciências

naturais. De um lado, os acontecimentos narrados na Bíblia são acontecimentos

interpretados. De outro lado, toda exegese dos relatos desses acontecimentos implica

necessariamente a subjetividade do exegeta. O conhecimento justo do texto bíblico só é

acessível àquele que tem uma afinidade viva com aquilo do qual fala o texto. A

pergunta que se faz a todo intérprete é a seguinte: qual teoria hermenêutica torna

possível a justa apreensão da realidade profunda da qual fala a Escritura e sua expressão

significativa para o homem de hoje?

É preciso reconhecer, efetivamente, que certas teorias hermenêuticas são inadequadas

para interpretar a Escritura. Por exemplo, a interpretação existencial de Bultmann

conduz ao aprisionamento da mensagem cristã na argola de uma filosofia particular.

Além disso, em virtude dos pressupostos que comandam esta hermenêutica, a

mensagem religiosa da Bíblia é esvaziada em grande parte de sua realidade objetiva (na

sequência de uma excessiva « demitização ») e tende a se subordinar a uma mensagem

antropológica. A filosofia torna-se norma de interpretação invés de ser instrumento de

compreensão daquilo que é o objeto central de toda interpretação: a pessoa de Jesus

Cristo e os acontecimentos da salvação realizados em nossa história. Uma autêntica

interpretação da Escritura é primeiramente acolhida de um sentido dado nos

acontecimentos e, de maneira suprema, na pessoa de Jesus Cristo.

Este sentido é expresso nos textos. Para evitar o subjetivismo, uma boa atualização deve

então ser fundada sobre o estudo do texto e os pressupostos de leitura devem ser

constantemente submetidos à verificação através do texto.

A hermenêutica bíblica, se ela é da competência da hermenêutica geral de todo texto

literário e histórico, é ao mesmo tempo um caso único dentro dela. Suas características

específicas vêm-lhe de seu objeto. Os acontecimentos da salvação e sua realização na

pessoa de Jesus Cristo dão sentido a toda a história humana. As novas interpretações

históricas só poderão ser descoberta e desdobramento dessas riquezas de sentido. O

relato bíblico desses acontecimentos não pode ser plenamente entendido só pela razão.

Pressupostos particulares comandam sua interpretação, como a fé vivida na comunidade

eclesial e à luz do Espírito. Com o crescimento da vida no Espírito cresce, no leitor, a

compreensão das realidades das quais fala o texto bíblico.

B. Sentido da Escritura inspirada

A contribuição moderna das hermenêuticas filosóficas e os desenvolvimentos recentes

do estudo científico das literaturas, permitem à exegese bíblica de aprofundar a

compreensão de sua tarefa, cuja complexidade tornou-se mais evidente. A exegese

antiga, que evidentemente não podia levar em consideração as exigências científicas

modernas, atribuía a todo texto da Escritura sentidos de vários níveis. A distinção mais

corrente se fazia entre sentido literal e sentido espiritual. A exegese medieval distinguiu

no sentido espiritual três aspectos diferentes que se relacionam, respectivamente, à

verdade revelada, à conduta a ser mantida e à realização final. Daí o célebre dístico de

87

Agostinho da Dinamarca (século XIII): « Littera gesta docet, quid credas allegoria,

moralis quid agas, quid speres anagogia ».

Como reação a esta multiplicidade de sentidos, a exegese histórico-crítica adotou, mais

ou menos abertamente, a tese da unicidade de sentidos, segundo a qual um texto não

pode ter simultaneamente vários significados. Todo esforço da exegese histórico-crítica

é de definir « o » sentido preciso de um ou outro texto bíblico nas circunstâncias de sua

produção.

Mas esta tese choca-se agora com as conclusões das ciências da linguagem e das

hermenêuticas filosóficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos.

O problema não é simples e ele não se apresenta da mesma maneira para todos os

gêneros de textos: relatos históricos, parábolas, oráculos, leis, provérbios, orações,

hinos, etc. Pode-se, entretanto, dar alguns princípios gerais, levando-se em conta a

diversidade das opiniões.

1. Sentido literal

É não apenas legítimo mas indispensável procurar definir o sentido preciso dos textos

tais como foram produzidos por seus autores, sentido chamado de « literal ». Já são

Tomás de Aquino afirmava sua importância fundamental ( S. Th., I, q.l, a. 10, ad. 1).

O sentido literal não deve ser confundido com o sentido « literalista » ao qual aderem

os fundamentalistas. Não é suficiente traduzir um texto palavra por palavra para obter

seu sentido literal. É preciso compreendê-lo segundo as convenções literárias da época.

Quando um texto é metafórico, seu sentido literal não é aquele que resulta

imediatamente do palavra por palavra (por exemplo: « Tende os rins cingidos », Lc

12,35), mas aquele que corresponde ao uso metafórico dos termos (« Tende uma atitude

de disponibilidade »). Quando se trata de um relato, o sentido literal não comporta

necessariamente a afirmação de que os fatos contados tenham efetivamente acontecido,

pois um relato pode não pertencer ao gênero histórico, mas ser uma obra de imaginação.

O sentido literal da Escritura é aquele que foi expresso diretamente pelos autores

humanos inspirados. Sendo o fruto da inspiração, este sentido é também desejado por

Deus, autor principal. Ele é discernido graças a uma análise precisa do texto, situado em

seu contexto literário e histórico. A tarefa principal da exegese é de bem conduzir esta

análise, utilizando todas as possibilidades das pesquisas literárias e históricas, em vista

de definir o sentido literal dos textos bíblicos com a maior exatidão possível (cf. Divino

afflante Spiritu: E. B., 550). Para esta finalidade, o estudo dos gêneros literários antigos

é particularmente necessário (ibid. 560).

O sentido literal de um texto é único? Geralmente sim; mas não se trata aqui de um

princípio absoluto, e isso por duas razões. De um lado, um autor humano pode querer se

referir ao mesmo tempo a vários níveis de realidade. O caso é comum em poesia. A

inspiração bíblica não desdenha esta possibilidade da psicologia e da linguagem

humana; o IV Evangelho fornece numerosos exemplos disto. De outro lado, mesmo

quando uma expressão humana parece ter um único significado, a inspiração divina

pode guiar a expressão de maneira a produzir urna ambivalência. Este é o caso da

palavra de Caifás em Jo 11,50. Ela exprime ao mesmo tempo um cálculo político imoral

88

e uma revelação divina. Estes dois aspectos pertencem um e outro ao sentido literal,

pois eles são, os dois, colocados em evidência pelo contexto. Se bem que ele seja

extremo, este caso é significativo; ele deve advertir contra uma concepção muito estrita

do sentido literal dos textos inspirados.

Convém particularmente estar atento ao aspecto dinâmico de muitos textos. O sentido

dos Salmos reais, por exemplo, não deve estar limitado estritamente às circunstâncias

históricas da produção deles. Falando do rei, o salmista evocava ao mesmo tempo uma

instituição verdadeira e uma visão ideal da realeza, conforme ao plano de Deus, de

maneira que seu texto ultrapassava a instituição real tal como ela tinha se manifestado

na história. A exegese histórico-crítica teve muitas vezes a tendência de fixar o sentido

dos textos, ligando-o exclusivamente a circunstâncias históricas precisas. Ela deve antes

de tudo procurar determinar a direção do pensamento expresso pelo texto, direção que,

ao invés de convidar o exegeta a fixar o sentido, sugere-lhe, ao contrário, de perceber

seu desenvolvimento mais ou menos previsível.

Uma corrente da hermenêutica moderna sublinhou a diferença de estatuto que afeta a

palavra humana logo que ela é colocada por escrito. Um texto escrito tem a capacidade

de ser colocado em circunstancias novas, que o iluminam de maneiras diferentes,

acrescentando ao seu sentido novas determinações. Esta capacidade do texto escrito é

especialmente efetiva no caso dos textos bíblicos, reconhecidos como Palavra de Deus.

Efetivamente, o que levou a comunidade de fiéis a conservá-los foi a convicção que eles

continuariam a ser portadores de luz e de vida para as gerações vindouras. O sentido

literal é, desde o início, aberto a desenvolvimentos ulteriores, que se produzem graças a

« releituras » em contextos novos.

Não se deve concluir que se possa atribuir a um texto bíblico qualquer sentido,

interpretando-o de maneira subjetiva. E preciso, ao contrário, rejeitar como inautêntica

toda interpretação que seja heterogênea ao sentido expresso pelos autores humanos e no

texto escrito por eles. Admitir sentidos heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem

bíblica de sua raiz, que é a Palavra de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta

a um subjetivismo incontrolável.

2. Sentido espiritual

Não é o caso, no entanto, de tomar « heterogêneo » em um sentido estrito, contrário a

toda possibilidade de realização superior. O acontecimento pascal, morte e ressurreição

de Jesus, deu origem a um contexto histórico radicalmente novo, que ilumina de

maneira nova os textos antigos e os faz sofrer uma mutação de sentido. Particularmente

certos textos que nas antigas circunstancias deveriam ser considerados como hipérboles

(por exemplo, o oráculo onde Deus, falando de um filho de Davi, prometia afirmar «

para sempre » seu trono: 2 Sam 7,12-13; 1 Cron 17,11-14), doravante esses textos

devem ser tomados ao pé da letra, porque o « Cristo, tendo ressuscitado dentre os

mortos, já não morre » (Rom 6,9). Os exegetas que têm uma noção limitada, « histórica

», do sentido literal estimarão que aqui há heterogeneidade. Aqueles que são abertos ao

aspecto dinâmico dos textos reconhecerão uma continuidade profunda ao mesmo tempo

que uma passagem a um nível diferente: o Cristo reina para sempre, mas não sobre o

trono terrestre de Davi (cf também Sal 2,7-8; 110,1.4).

89

Nos casos desse gênero, fala-se de « sentido espiritual ». Em regra geral, pode-se definir

o sentido espiritual, entendido segundo a fé cristã, como o sentido expresso pelos textos

bíblicos, logo que são lidos sob influência do Espírito Santo no contexto do mistério

pascal do Cristo e da vida nova que resulta dele. Esse contexto existe efetivamente. O

Novo Testamento reconhece nele a realização das Escrituras. É, assim, normal reler as

Escrituras à luz deste novo contexto, que é aquele da vida no Espírito.

Da definição dada pode-se fazer várias precisões úteis sobre as relações entre sentido

espiritual e sentido literal:

Em sentido contrário a uma opinião corrente, não há necessariamente distinção entre

esses dois sentidos. Quando um texto bíblico se refere diretamente ao mistério pascal do

Cristo ou à vida nova que resulta dele, seu sentido literal é um sentido espiritual. Este é

o caso habitual no Novo Testamento. Conclui-se que é a respeito do Antigo Testamento

que a exegese cristã fala muitas vezes de sentido espiritual. Mas já no Antigo

Testamento, os textos têm em vários casos como sentido literal um sentido religioso e

espiritual. A fé cristã reconhece aqui uma relação antecipada com a vida nova trazida

pelo Cristo.

Quando há distinção, o sentido espiritual não pode jamais ser privado de relações com o

sentido literal. Este último permanece a base indispensável. De outra maneira não se

poderia falar de « realização » da Escritura. Para que haja realização efetiva, é essencial

uma relação de continuidade e de conformidade. Mas é preciso também que haja

passagem a um nível superior de realidade.

O sentido espiritual não pode ser confundido com as interpretações subjetivas ditadas

pela imaginação ou a especulação intelectual. Ele resulta da relação do texto com dados

reais que não lhe são estranhos, como o acontecimento pascal e sua fecundidade

inesgotável que constitui o grau supremo da intervenção divina na história de Israel em

proveito da humanidade inteira.

A leitura espiritual, feita em comunidade ou individualmente, descobre um sentido

espiritual autêntico somente se ela se mantém nessas perspectivas. Entram assim em

relação três níveis de realidade: o texto bíblico, o mistério pascal e as circunstâncias

presentes de vida no Espírito.

Convencida de que o mistério de Cristo dá a chave de interpretação a todas as

Escrituras, a exegese antiga se esforçou de encontrar um sentido espiritual nos menores

detalhes dos textos bíblicos — por exemplo, em cada prescrição das leis rituais —

servindo-se de métodos rabínicos ou inspirando-se no alegorismo helenístico. A exegese

moderna não pode dar um verdadeiro valor de interpretação a esse gênero de tentativa,

qualquer que tenha sido no passado sua utilidade pastoral (cf Divino afflante Spiritu, E.

B., 553).

Um dos aspectos possíveis do sentido espiritual é o aspecto tipológico, do qual se diz

habitualmente que pertence não à Escritura em si mas às realidades expressas por ela:

Adão figura de Cristo (cf Rm 5,14), o dilúvio figura do batismo (1 Pd 3,20-21), etc. De

fato, a relação de tipologia é ordinariamente baseada sobre a maneira pela qual a

Escritura descreve a realidade antiga (cf a voz de Abel: Gn 4,10; He 11,4; 12,24) e não

90

simplesmente sobre esta realidade. Consequentemente, trata-se de um sentido da

Escritura.

3. Sentido pleno

Relativamente recente, a denominação de « sentido pleno » suscita discussões. Define-

se o sentido pleno como um sentido mais profundo do texto, desejado por Deus, mas

não claramente expresso pelo autor humano. Descobre-se sua existência em um texto

bíblico quando se estuda esse texto à luz de outros textos bíblicos que o utilizam ou em

sua relação com o desenvolvimento interno da revelação.

Trata-se, então, ou do significado que um autor bíblico atribui a um texto bíblico que

lhe é anterior, quando ele o retoma em um contexto que lhe confere um sentido literal

novo, ou ainda do significado que a tradição doutrinal autêntica ou uma definição

conciliar dão a um texto da Bíblia. Por exemplo, o contexto de Mt 1,23 dá um sentido

pleno ao oráculo de Is 7,14 sobre a almah que conceberá, utilizando a tradução dos

Setenta (parthenos): « A virgem conceberá ». O ensinamento patrístico e conciliar sobre

a Trindade expressa o sentido pleno do ensinamento do Novo Testamento sobre Deus

Pai, Filho e Espírito. A definição do pecado original pelo Concilio de Trento fornece o

sentido pleno do ensinamento de Paulo em Rm 5,12-21 a respeito das consequências do

pecado de Adão para a humanidade. Mas, quando falta um controle desse gênero — por

um texto bíblico explicito ou por uma tradição doutrinal autêntica — o recurso a um

pretenso sentido pleno poderia conduzir a interpretações subjetivas desprovidas de toda

validade.

Em definitivo, poderia-se considerar o « sentido pleno » como uma outra maneira de

designar o sentido espiritual de um texto bíblico, no caso onde o sentido espiritual se

distingue do sentido literal. Seu fundamento é o fato de que o Espírito Santo, autor

principal da Bíblia, pode guiar o autor humano na escolha de suas expressões de tal

forma que estas últimas expressem uma verdade da qual ele não percebe toda a

profundidade. Esta é revelada mais completamente no decorrer do tempo, graças, de um

lado, a realizações divinas ulteriores que manifestem melhor o alcance dos textos e

graças também, de outro lado, à inserção dos textos no Cânon das Escrituras. Assim é

constituído um novo contexto, que faz aparecer potencialidades de sentido que o

contexto primitivo deixava na obscuridade.

91

Uma ana lise da Hermene utica Reformada e sua origem

Este apêndice é parte da tese de doutorado do Ver. Dr. Edvaldo Beranger orientada por

Dr. Augustus Nicodemus, no Centro de Pós-graduação Andrew Jumper sob o título: A Pratica

Hermenêutica Pastoral e a Exegese.

Princípios da hermenêutica Reformada.

A hermenêutica Reformada não surgiu na Reforma e nem o Método Histórico-

Gramatical surgiu ali. Este método foi desenvolvido pela Escola de Antioquia1 que por

sua vez utilizou a interpretação judaica e a interpretação de alguns pais apostólicos para

estabelecer critérios para a hermenêutica2. Por isso a Reforma foi um momento crucial

para a hermenêutica não só por purificar excessos da história da interpretação, mas por

colocar em provas os princípios deste método objetivamente. Desta forma houve uma

purificação do método hermenêutico na história da Igreja (LOPES 2004, p. 159).

O primeiro princípio da Reforma e talvez o mais explícito seja o critério do Sola

Scriptura, somente a Escritura, que provavelmente é o maior. Este princípio foi

desenvolvido com a tarefa de que a tradição dos dogmas católicos não podiam entrar

nas controvérsias religiosas porque suas pressuposições eram falhas3. Neste sentido,

percebe-se a singularidade de que a Bíblia interpreta a própria Bíblia, e ao mesmo tempo

1 Provavelmente fundada por Doroteu e Lúcio no fim do terceiro século que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais (BERKOF 1981, p.23) e (LOPES 2004, p. 134). 2 É interessante notar que grande parte das crises que a Igreja passou na era pós-apostólica foram decisivas para o estabelecimento da doutrina cristã e de sua interpretação (DOCKERY 1992, p. 55). 3 A Igreja católica admite que as Escrituras não tenham erros, mas admite que a tradição dos pais apostólicos e o papa têm a mesma infalibilidade. É claro, portanto, que a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Sagrado Magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo plano da Deus, de tal maneira se relacionam e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo sob a ação do mesmo Espírito Santo, colaboram eficazmente para a salvação das almas (CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM - SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA 1965).

92

ressalta o caráter divino-humano das Escrituras. Sendo assim, toda crítica ou

interpretação crítica é bem vinda, desde que esteja de acordo com a Escritura de

maneira clara4. A tese maior da Reforma e a razão do sola Scriptura é a inspiração e que

não há em nenhum outro livro, Van Groningen define:

Esta inspiração é a vertente base das outras quatro qualidades. Daí ser importante compreender o conceito de inspiração divina. O Espírito Santo habitou em certos homens, inspirou-os, e assim dirigiu-os que eles, em plena consciência, expressaram-se na sua singular maneira pessoal. O Espírito capacitou homens a conhecer e expressa a verdade de Deus. O Espírito impediu-os de incluir qualquer coisa que fosse contrária a essa verdade. Ele também impediu-os de escrever coisas verdadeiras que não eram necessárias. Assim, homens escreveram como homens, mas, ao mesmo tempo, comunicaram a mensagem de Deus, não a do homem (GRONINGEN 1995, p. 64-65).

Para os Reformadores a inspiração era a fonte principal deste princípio. Desta

maneira havia quatro sub-doutrinas atreladas a inspiração. Elas estão expostas nas

Confissões e nos escritos deles como um corretivo para o desenvolvimento

hermenêutico, que são: A Escritura é de inspiração plenária, isto é em sua totalidade; a

Escritura é orgânica ou dinâmica, porque Deus não anulou as pessoas, mas usou-as de

forma a fazer sua vontade sem anular a vida dos escritores; a Escritura é verbal porque

o Espírito usou a linguagem humana, os signos conhecidos da cultura e os autógrafos

originais e copiados para verbalizar sua vontade e por último, a Escritura é Sobrenatural,

por que é a Palavra de Deus, distinta de todas as palavras dos homens (COSTA 2002, p.

88-90).

Os Reformadores sabiam que o Sola Scriptura era o principal ponto de

interpretação de todas as futuras interpretações e conseqüentemente as Confissões de

fé Reformadas5 seguiram essa orientação que em latim significa: Scriptura, scripturae

interpress, a Escritura interpreta a Escritura (ANGLADA 2006, p. 165). Desta forma a

determinação da Reforma está em observar a princípio de interpretação que a própria

Escritura traz. Se a interpretação dependesse de qualquer outro fator, a Reforma havia

previsto que esta interpretação fugiria da Escritura.

4 Os reformadores sempre insistiram neste ponto, isto é que a Escritura tem autoridade total de julgar todas as interpretações e ela é suficiente, isto é, não precisa de nenhum esclarecimento humano, (ANGLADA 2006, 73). 5 Especialmente a Confissão de fé Helvética de 1561 composta por Eurico Zwinglio e Henrique Bullinger (Cap. II ) e a Confissão de fé de Westminster (Cap. I); (LIBRO DE CONFESIONES 1995, p. 57 e 129).

93

A Reforma não parou no tempo e nem restringiu o conhecimento epistemológico

interpretativo ao seu momento. A Reforma cria numa Iluminação progressiva6 em que

o conhecimento suficiente da Escritura está na Palavra de Deus, mas a teologia é

derivada da iluminação do Espírito de Deus segundo o seu querer. Assim, desde os

Concílios de Nicéia até hoje a teologia está em progresso. A teologia da Igreja é derivada

da Escritura, mas não é a Escritura, por que ela julga toda a teologia (LARSEN 2002, p.

15). Ao contrário, abre-se a interpretação aos tempos e épocas segundo as Escrituras.

Esta observação é necessária porque é uma observação lógica dentro da exegese e

hermenêutica. Não será aceita nenhuma interpretação que fuja da objetividade e da

lógica do conhecimento humano e nem da Escritura.

Smith critica a ortodoxia de impor uma interpretação Reformada para textos da

Escritura, ele defende a interpretação pós-moderna de vários autores7 e diz: “para

muitos cristãos que tem proclamado sua prática denominacional como o: “ensino claro

das Escrituras”, ... estes materiais são “claros” somente por causa dos óculos coloridos

de uma tradição interpretativa.” (SMITH 2000, p. 43). O que Smith não leva em

consideração é o caráter da lógica8. Mesmo sendo teologia Reformada, ou qualquer

outra teologia antiga, moderna ou pós-moderna, deve estar dentro dos critérios de

avaliação da própria Escritura. Por isso os reformadores não pouparam ninguém

(STROHL 1963, p.78). A grande questão hoje é que muitos têm estabelecido

pressupostos9 e paradigmas sobre a fonte da Escritura para lhe tirar toda a autoridade

e impor nela sua própria ideologia.

6 Essa Iluminação progressiva ou Revelação progressiva dentro dos círculos evangélicos é muito discutida. Alguns podem usar este princípio para criticar a tradição (OSBORNE 1991, p. 274). Stott em seu comentário aos Efésios sobre o texto de 1:18 diz: “É por causa de sua confiança neste ministério do Espírito que Paulo pôde continuar sua oração: iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes...Na linguagem bíblica, o coração é o completo eu, que consiste da mente bem como da emoção. Portanto os olhos do coração são simplesmente os nossos “olhos interiores”, que precisam ser abertos ou iluminados antes de podermos compreender a verdade de Deus” (STOTT 1986, p. 31, itálicos do autor). 7 Ele defende Derrida e Gadamer em seus critérios subjetivos de leitura e interpretação para mostrar como a pluralidade é melhor que a singularidade. Deus prefere a pluralidade e queda da interpretação, que é a sua tese, foi o erro desde a imposição da reforma (SMITH, J. K. A. 2000, p. 53). 8 Talvez seja importante relembrar que o caráter de interpretação de textos hoje tem rejeitado toda a lógica, os postulados da lógica semiótica foram rejeitados tanto pela interpretação existencial de Gadamer, como a psicológica de Ricoeur e o desconstrucionismo de Derrida. 9 Pressupostos são suposições pré-estabelecidas sobre uma determinada base necessária para estabelecer outras idéias. Assim, necessitamos da lógica para estabelecer critérios de julgamento entre o certo e o errado nas pressuposições. Não há arbitrariedade e sim ordem no meio do caos hermenêutico.

94

O segundo princípio da Reforma sobre a hermenêutica é a analogia fidei que

significa a analogia da fé,10 este se deriva do primeiro. Segundo Anglada há varias

formas de entender essa expressão dentro da teologia reformada, mas de forma geral

é a expressão da analogia totius scripturae, ou analogia de toda a Escritura (ANGLADA

2006, p.168). Este método é concernente àquilo que é comum na Escritura e que forma

um corpus cristianus. Isto significa que uma passagem não pode significar algo que a

Escritura desconhece e ao mesmo tempo significa que a passagem deve ser interpretada

pela totalidade da Escritura.

Berkof dispõe que o ponto de vista do intérprete deve ser coerente com o ponto

de vista exegético e que por sua vez deve ser explicada a luz da Escritura, então

recomenda a livre-interpretação protestante, mas ao mesmo tempo limita a

interpretação dentro da analogia fidei, ele diz:

As interpretações da Igreja têm autoridade divina somente enquanto estão em harmonia com os ensinos da Bíblia como um todo. Cada indivíduo tem o direito de julgá-las por si mesmo. Os protestantes negam que Deus tenha constituído a Igreja como intérprete especial da Palavra divina, e sustentam que cada cristão tem o direito de estudar e interpretar a Escritura (BERKOF 1981, p. 69).

Para a Reforma, a analogia tem um papel de ponto comum dentro da teologia,

isto é o próprio sistema que a Escritura esboça de um corpo doutrinário. Isto levanta a

questão de que para a Reforma havia uma unidade de pensamento na Escritura. Anglada

levanta dentro do tópico da analogia da fé a questão da teologia sistemática como

pressuposto ou não da exegese11. Isto levanta a questão de que certas pressuposições

estabelecidas são inegociáveis, se assim não fosse a ciência exegética e hermenêutica

seriam insolúveis porque todos os pressupostos do texto deveriam ser examinados e

cairíamos num abismo como o desconstrucionismo.

Calvino utilizou a expressão “analogia fidei” referente àquilo que é o corpo da

Escritura como um todo na introdução das Institutas da Religião Cristã para demonstrar

10 Este termo é retirado de Romanos 12:6 que versa literalmente: kata th.n avnalogi,an th/j

pi,stewj( (segundo a analogia da fé), em que analogia significa ponto de semelhança entre coisas

diferentes, ou semelhança, similitude ou parecença. Este princípio denota que há algo comum na fé, cf. Judas 3. Kaiser tem três significados possíveis sobre Rm 12:3, mas afirma que o verdadeiro profeta jamais contraria a revelação já usada, veja (KAISER e SILVA 2002, p. 188). 11 Este assunto será visto mais a frente na p. ????

95

ao Rei Francisco I a importância desse princípio hermenêutico que surge por causa dos

inimigos da Reforma:

Nossos adversários, é verdade, vociferam em contrário que nos servimos aleivosamente da Palavra de Deus, da qual, a seu ver, seríamos os mais depravados corruptores. [...] Quando Paulo quis que toda profecia fosse conformada à analogia da fé (Rm 12.6), estabeleceu uma regra extremamente segura, pela qual deva ser testada a interpretação da Escritura. Portanto, se a doutrina nos é esquadrinhada à base desta regra de fé, nas mãos nos está a vitória (CALVINO 1985, p. 17).

Calvino chama a analogia fidei de o corpo da verdadeira religião que foi

transmitida pelas Escrituras e diz ele: “deverá manter-se constante entre todos” (1985,

p. 18). Vê-se que o terreno de discussão é transferido não só por Calvino, mas pelos

Reformadores para a Escritura, pois a fé na época da Reforma implicava em submissão

à igreja católica (STROHL 1963, p. 70). Quando Lutero apelou pela primeira vez para a

autoridade da Escritura contra o cardeal Cajetano (1518) e depois no debate de Eck

(1519), em Leipzig, lembrou:

[...] que seu primeiro dever era reconhecer a autoridade da igreja e, de início, declarar-se pronto a aceitar a interpretação que ela, a Igreja, fazia, ou viria a fazer dos textos por ele citados. O mesmo lhe foi exigido em Worms quando, chamado a retratar-se, lançou a célebre declaração de que não se retrataria dos seus escritos a menos que seu erro fosse provado por argumentos corretamente tirados da Escritura [...] estando a sua consciência ligada à Palavra de Deus, ‘não era nem certo nem recomendável proceder contrariamente a sua consciência’ (STROHL 1963, p. 72, sic.).

Estes indícios demonstram que a analogia da fé era usada pelos reformadores

como um supremo tribunal de apelação. Como diz Strohl, nesse grande dia evidenciou-

se que a autoridade da Escritura havia ultrapassado a Igreja católica (1963, p.72). H.

Bullinger escreveu sobre a autoridade da Bíblia de forma clara em 1538. Ele defendeu

que o intérprete da Escritura deveria de levar em conta as peculiaridades do autor e os

períodos da história. Ele foi o primeiro12 a esboçar uma noção do “circulo hermenêutico”

com dois entendimentos: primeiro o entendimento da lingüística do texto e a relação

com o todo da Escritura, segundo o entendimento do argumento do autor (THISENTON

12 Também Matthias Flacius Illyricus que escreveu Clavis Scripturae Sacrae em 1567 cujo teor (junto H. Bullinger), resultou na primeira obra explícita sobre hermenêutica de J. C. Dannhauser intitulada: Hermeneutica Sacra escrita em 1654 (THISENTON 1992, p. 194).

96

1992, p. 194-95). A Confissão Escocesa de 1560 reafirmou a analogia fidei quando

ressaltou as marcas da verdadeira igreja dizendo:

[...] afirmamos que em estes livros estão suficientemente explicados todas as coisas necessárias para a crença de nossa salvação. Confessamos que a interpretação das Escrituras não pertence a nenhuma pessoa, seja pública ou privada, também a nenhuma igreja por sua preeminência ou por sua procedência, pessoal ou local que tenha sobre outras, senão a que pertence ao Espírito de Deus por quem foram elas escritas (LIBRO DE CONFESIONES 1995, p.20, Tradução nossa).

Nesta perspectiva da analogia da fé vê-se que o foco não era somente o sola

Scriptura, mas também toda a Escritura. Isto fica claro na Segunda Confissão Helvética

de 1561 que diz: “A Escritura ensina tudo o que se refere a piedade cristã, [...] toda a

escritura é inspirada por Deus, [...]” (LIBRO DE CONFESIONES 1995, p.55, Tradução

Nossa). Tudo, porque para os reformadores não há outra fonte nem igual e nem superior

que a Escritura. Por não compreender este ensino reformado é que o pietismo, bem

como outras linhas protestantes, desenvolveram formas e introduziram filosofias fora

da Escritura.

A Confissão de fé de Westminster de 1642 expressou bem o princípio da analogia

da fé quando define que “todos os livros” são inspirados; que a autoridade da Escritura

é inquestionável e que “todo o conselho de Deus no tocante ao necessário para sua

própria glória e salvação, da fé e da vida do ser humano consta expressamente na

Escritura” (LIBRO DE CONFESIONES 1995p.128-129, Tradução Nossa). Ainda que para os

Reformadores a Escritura era a própria analogia fidei, posteriormente os de linha

Calvinista entenderam o termo como uma exposição sistemática de assuntos conhecida

por teologia sistemática. Calvino foi um dos primeiros a esboçar uma teologia

sistemática mais completa e a partir dela, a mesma se tornou modelo para muitos outros

reformados (SANTOS 2006, p. 125).

Anglada usa o termo analogia fidei numa discussão simbolizando os seguintes

aspéctos dentro do pensamento reformado: “(1) a fé apostólica; (2) os axiomas ou

doutrinas fundamentais da fé cristã; (3) passagens bíblicas claras; (4) verdades bíblicas

previamente reveladas”, desta forma o princípio implica numa expressão do ensino

bíblico geral chamado analogia totius Scripturae,(analogia de todo o ensino da Escritura)

97

e pode ser definido como a harmonia geral de doutrinas bíblicas fundamentais

(ANGLADA 2006, p.168).

Alguns autores recentemente têm levantado uma questão quanto a exegese e o

uso da analogia da fé. Essa questão é quanto ao uso da teologia sistemática e a teologia

dogmática no processo exegético da teologia bíblica. Carson levanta essa questão

analisando autores recentes que não conseguem encontrar um centro canônico para

toda a Escritura, dizendo que a Bíblia contém várias “teologias” e por isso perdeu a sua

autoridade (CARSON 2001, p.18). Desta forma, a analogia fidei desde o Iluminismo vem

sendo amplamente questionada. Kaiser aumenta a discussão ao separar a analogia fidei

da analogia Scripturae. Para ele este princípio hermenêutico exige que a intepretação

de cada trecho da Escritura deve estar de acordo com os ensinamentos da Bíblia como

um todo e não da teologia sistemática, ele explica:

Ela pressupõe (1) a coerência das Escrituras, (2) a naturesa orgânica da Bíblia e (3) um cânon completo do Livro Sagrado. Quando a analogia da fé é aplicada dessa maneira, as Escrituras interpretam as próprias Escrituras, especialmente no uso de passagens verbal e topicamente paralelas. Normalmente, entretanto, o uso da analogia da fé é reservado para o momento em que o intérprete já está preparado para conferir sua interpretação da passagem em relação ao resto das Escrituras. A analogia da Escritura refere-se ao uso exegético de textos mais antigos que serviram de fonte para passagens mais recentes, oferecendo base, profundidade e emoção às palavras usadas (KAISER e SILVA 2002, p. 186).

Verifica-se que os termos analogia fidei usados por Kaiser são quanto a

referência às Escrituras em sua totalidade depois da exegese. A explicação para a

analogia das Escrituras conciste em termos dentro do texto que estão carregados de

significação especial, quer sejam citações diretas e indiretas e referênciais. Mas ele

admite que a suposição contrária a unidade da Bíblia, mais do que qualquer outro fato,

tem afastado evangélicos de buscar os princípios internos na teologia bíblica, na ética

bíblica de modo a não compreenderem a legitimiodade da teologia sistemática (KAISER

e SILVA 2002, p.189 e 191). Anglada explica como a analogia da fé tem sido debatida:

Uma questão que é debatida nos círculos evangélicos [...] diz respeito como o princípio deve ser utilizado na interpretação, sem permitir que a dogmática domine a exegese como ocorreu na Idade média, particularmente entre os escolásticos. Alguns evangélicos [...] sugerem que o princípio deve ser utilizado apenas depois de concluída a exegese. Outros, entretanto chamam a atenção para o fato de que o exercício da exegese bíblica abstraído de qualquer pré- compreensão teológica é simplesmente

98

impossível, e mesmo indesejável popondo que a analogia fidei deve ser um entre outros elementos da exegese, sendo balanceado por eles (ANGLADA 2006, p. 169).

Verifica-se que para os primeiros reformadores o princípio se referia a toda a

Escritura, mas posteriormente surgiu a sistematização que é comum na época das

definições da pós-Reforma. Então Anglada estabelece que a analogia da fé, deve ser

vista destas duas formas: primeiro, toda a Escritura, segundo, de acordo com a

sistemática, e que esta era a prática dos reformadores e dos puritanos, ele afirma:

Ao sistematiza todo o ensino bíblico sobre um determinado tema, indicando as suas relações horizontais e verticais com outros temas, a teologia sistemática propicia uma estrutura de pensamento com referência a qual, o sentido de uma determinada passagem é geralmente elucidado (ANGLADA 2006, p. 171).

Osborne levanta a mesma questão em seu livro: The hermeneutical Spiral (A

hermenêutica Espiral) demonstrando que a teologia bíblica deve ser o passo depois da

exegese. O primeiro passo, a exegese tem três objetivos dentro do texto, (a perícope)

dentro da revelação de Deus em termos de: 1) o estudo do fundo cultural; 2) a

organização semântica e 3) a mensagem filológica do texto. O segundo passo a teologia

bíblica mostra o desenvolvimento através da história em três passos básicos: 1) estudar

o texto dentro do livro individualmente; 2) explorar a teologia do autor e 3) traçar o

progresso da revelação unindo os testamentos. O último passo, a teologia sistemática é

a síntese de vários aspectos das verdades adquiridas como proposições ou dogmas

(OSBORNE 1991, p.265).

Para Osborne este desenvolvimento estabelece a teologia fidei em seu devido

lugar como um corretivo e chave para a teologia bíblica, mas lembra que há dois perigos:

o primeiro afirmado por Carson sobre a “conformidade artificial” da analogia e segundo,

o perigo de limitar os significados por causa da teologia sistemática13 (OSBORNE 1991,

p. 273). Toda essa discussão levanta a questão de que o princípio da analogia fidei está

atrelado ao princípio de toda a Escritura, que por sua vez está unido ao Sola Scriptura.

13 Ele chama isto de o perigo de “harmonizar” ou o de criar uma “paralelomania”, o contrário pode ser visto como criar um cânon dentro do cânon (DOCKERY 1992, p.171). Tanto ele como Kaiser criticam a analogia fidei por causa do “progresso da revelação”. Seu exemplo é significativo pois se aplicarmos a analogia da fé em textos como: Mt 24:29-31 (posição do arrebatamento pós-tribulacionista); Ap. 3:10 (posição do arrebatamento pré-tribulacionista) e Ap 20:1-10 (posição amilenista), como aplicar a teologia da fé? (OSBORNE 1991, p. 274).

99

Esses postulados ou princípios de interpretação foram questionados pelo Iluminismo. A

crítica histórica procurou destruir a analogia da fé, ou a unidade da Escritura

demonstrando que não há uma linha única de teologia na Bíblia e que é impossível uma

teologia que abranja ambos os testamentos (CARSON 2001, p. 12). Isto fere

sensivelmente com estes princípios da Reforma.

Mondim comenta sobre a analogia fidei esboçada em Barth, perguntando: “de

que modo, com que método o teólogo deve tratar a Palavra de Deus para poder

entendê-la e interpretá-la corretamente?” (MONDIN 1980, p. 29). A resposta de Barth

em sua fase de voltar da teologia liberal para as bases da Reforma tem uma apreciação

ressaltando a analogia fidei. Ele vê o problema de que o signo nas Escrituras não

corresponde ao significado, desta forma, analogia para ele é a linguagem dos conceitos,

especialmente quando se atribui a Deus uma linguagem humana, ele diz:

Quando atribuímos a Deus espírito, soberania, olhos, orelhas e boca..., estamos entendendo algo diverso de quando usamos essas mesmas palavras em relação às criaturas? Devemos estar atentos àquilo que queremos afirmar se dissermos sim a isso. [...] porque, se o conhecemos, devemos conhecê-lo com os meios que foram colocados à nossa disposição; caso contrário, não o conhecemos de maneira alguma. O fato de que o conhecemos quer dizer que, com os nossos conceitos, as nossas palavras, visões, nós não descrevemos algo absolutamente diverso dele, mas que com esses nossos meios – os únicos a nossa disposição – descrevemos e significamos o próprio Deus. Caso contrário, supondo uma completa diversidade, sem qualquer relação, não pode existir nem mesmo o problema do nosso conhecimento de Deus. Em tal caso, toda a Revelação deve ser considerada como exclusivamente negativa, como uma relação de exclusão mútua. E por isso não se poderia falar de nenhuma comunhão entre “cognoscente” e conhecido. A revelação divina seria só um esconder-se, não podendo ser concebida como Revelação... Nessa perplexidade, a teologia das épocas passadas aceitava o conceito de analogia para descrever a comunhão em questão. Com esse termo, tanto a falsa tese da diversidade eram atacadas e destruídas, mas os elementos de verdade contidos em cada uma delas eram evidenciados. Ao invés de igualdade e disparidade, “analogia” significa semelhança, isto é, correspondência e acordo parcial (isto é, de maneira a limitar tanto a igualdade como a disparidade entre dois ou mais seres diversos) (MONDIN 1980, p.31-32 sic.).

A contribuição de Barth é interessante porque ele manifesta a preocupação da

analogia fidei além dos conceitos formulados pela teologia sistemática e a questão dos

signos e significados construídos a partir de uma teologia bíblica, mas ele usa com as

suas palavras: a “comunhão” entre o “ser” e a “revelação” que é possível por causa da

100

própria revelação de Deus ao ser humano. Com isto Barth atrela na interpretação a

analogia fidei da Reforma e rejeita a analogia entis14 (analogia do ser) dos católicos.

Analogia é o critério da linguagem teológica, por isso ele sustenta que nós não

possuímos nenhuma analogia que nos possa tornar acessíveis a natureza e o ser de Deus

como Senhor, Criador, reconciliador e redentor (MONDIN 1980, p. 32-33). Em certo

sentido, Barth tem razão sobre os signos humanos atribuídos a Deus. O problema da

interpretação de Barth é que ele vai além da teologia sistemática e da unidade da

Escritura construindo uma analogia dialética entre o entendimento do ser e o que a

hermenêutica cristã já havia proposto. Em outras palavras, seu conceito triádico da

Escritura é um conceito místico e estranho na teologia (DUARTE 2001, p. 5).

Gruden que é um reformado levanta a questão da analogia fidei subdividindo o

conceito em quatro princípios hermenêuticos importantes: a autoridade da Escritura, a

clareza da Escritura, a necessidade da Escritura e a suficiência da Escritura. Ao olhar para

as propostas dadas por Gruden pode-se notar que há uma coerência lógica para a

interpretação da própria Escritura, por que a aceitação do primeiro ponto, ou seja, a

autoridade da Escritura compromete a forma de toda a exegese e hermenêutica. Como

ver a clareza, se não há autoridade nenhuma? Como compreender a necessidade se não

há autoridade e nem clareza? Como pregar a suficiência se não há uma unidade em toda

a Escritura? Sobre a autoridade da Escritura, ele afirma:

A autoridade da Escritura significa que todas as palavras da Escritura são palavras de Deus de tal modo que descrer ou desobedecer a qualquer palavra da Escritura é descrer ou desobedecer a Deus (GRUDEN 2005, p.33).

Disto pode-se concluir que há na teologia reformada um corpo hermenêutico

que entrelaça todas as partes. Kaiser sistematiza alguns princípios atrelados a analogia

fidei: a coerência da Escritura que se encontra nela mesma; a natureza orgânica da

Escritura em que encontramos formas “seminais” a medida que a revelação progride15

e uma terceira parte da analogia da fé que está no cânon completo, demonstrando uma

14 Essa teologia católica foi plenamente desenvolvida por Tomás de Aquino que defendia a existência de uma analogia ou ponto de contato entre Deus e a criação como resultado do processo da criação. Esta idéia concede a possibilidade e a justificação teórica de certas conclusões acerca de Deus, partindo-se de objetos e relações já conhecidos pelo homem, sem a revelação especial que é a Palavra de Deus (MCGRATH 2005, p.649). 15 Existe nas revelações especialmente do V.T.

101

unidade intrínseca na Escritura no meio de sua diversidade16 (KAISER e SILVA 2002, p.

191-192). Esta autoridade para o mundo reformado implica na doutrina da inspiração e

revelação da Escritura, Berkof afirma:

Este é um dos grandes princípios da Hermenêutica Sacra. Não pode ser ignorado impunemente. Qualquer teoria de interpretação que o despreze é fundamentalmente precária e não nos levará à compreensão da Bíblia com a Palavra de Deus (BERKOF 1981, p.44, sic.).

Gruden em segundo lugar levanta um princípio reformado chamado claritas

Scripturae ou clareza da Escritura. Este princípio foi encontrado nos escritos de Lutero

especialmente nos trabalhos dos Salmos, os quais, ele afirmou que eram a síntese e

resumo da Bíblia (STROHL 1963, p. 76). Essa clareza da Escritura pode ser vista apenas

em algumas partes, pois existem outras que são de difícil compreensão e interpretação,

assim as partes difíceis devem ser interpretadas pelas fáceis. A definição de clareza dada

por Gruden é:

A clareza da Escritura significa que a Bíblia foi escrita de tal modo que seus ensinos são passíveis de ser entendidos por todos os que lêem procurando pela ajuda de Deus e que são desejosos de recebê-la (GRUDEN 2005, p. 53).

Pode-se dizer que a Escritura Sagrada é clara em si mesma, mas depende ao

mesmo tempo de outras partes mais claras para a interpretação. Isto significa que há

afirmações ou proposições que esclarecem outras partes menos claras: “O que é

obscuro em um trecho bíblico pode ser esclarecido em outro trecho. Devemos

interpretar o que está implícito à luz do que está explícito” (CAMPOS 2008, p. 42). Desta

forma essa observação reformada visa a objetividade e também retira da academia a

arrogância de pensar que somente estudiosos versados é que detém o conhecimento.

A Confissão de Westminster afirma este princípio geral de interpretação:

Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; [...] que não somente os doutos, mas também os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas” (MARTINS 1991, p. 11).

16 É importante ressaltar que o Iluminismo bem como seus filhos intentou destruir não só o conhecimento adquirido pela igreja (a teologia), mas a noção de que a Escritura tem uma unidade de pensamento. Ao contrário, para o liberalismo ela tem várias vozes e não contém harmonia. Uma reação conservadora foi o surgimento da escola de Erlangen em 1841, que não considerava a Bíblia como uma coleção de textos-prova ou um repositório de doutrina, mas como o testemunho ao que Deus tinha feito na história salvífica (LADD 1984, p.15-16).

102

Fica evidente que os Reformadores entendiam que a Escritura não é clara para

todos, por isso atribuiam alguns problemas quanto a interpretação. Alguns destes

problemas são: o pecado na natureza humana, um limitado conhecimento, erros de

pressupostos e falta de discernimento do Espírito Santo. Sem o Espírito é impossível a

interpretação correta da Escritura Sagrada, sendo que a clareza total só pode vir pela

revelação do Espírito. Nunca, os refomadores atribuiam à Escritura o sentido múltiplo,

por causa dessa clareza, eles afirmavam o sentido único da Escritura. Gruden afirma que

este princípio (doutrina para ele) encoraja a Igreja a praticar duas coisas em caso de

discordância, ele diz:

Ela nos diz que onde há áreas de discordância ou ética (por exemplo, sobre o batismo, predestinação ou governo de igreja), há somente duas causas possíveis de discordância: 1) de um lado, pode ser que estejamos procurando fazer afirmações onde a Escritura silencia. [...] 2) De outro lado, é possível que tenhamos cometidos erros em nossa interpretação da Escritura. Isso pode ter acontecido por que os dados que usamos para decidir uma questão de interpretação foram inexatos ou incompletos (GRUDEN 2005, p. 54).

Na realidade a interpretação é um ato de humildade porque em si mesma ela

requer dependência. Dependência do Espírito de Deus, dependência do autor do texto,

dependência da sabedoria, depedência em reconhecer a própria natureza humana.

Neste sentido há que prevalecer que a exegese e a hermenêutica da Reforma era

extremamente dependente da Escritura e do espírito de Deus. Assim a subjetividade e

a tentativa de dar multiplos enfoques não se ajustam à este modelo.

O terceiro princípio mencionado é a necessidade da Escritura. Embora este

princípio geral esteja dentro da analogia fidei, ele é mencionado pelos Reformadores de

duas formas: como um meio de graça e como um corretivo interpretativo para aqueles

que buscam compreender e estudar a Escritura. A definição dessa necessidade é:

A necessidade da Escritura significa que a Bíblia é necessária para o conhecimento do evangelho, para a manutenção da vida espiritual e para certo conhecimento da vontade de Deus, mas não é necessária para saber que Deus existe ou para saber algo a respeito do caráter de Deus e das leis morais (GRUDEN 2005, p. 55).

103

Neste sentido, a definição enfatiza o uso da Escritura como meio de graça e de

vida17; mas por outro lado pode ser compreendida como hermenêutica por causa do

princípio progressivo da revelação. Isto significa que o estudo contínuo é necessário para

dar entendimento da própria Escritura. Quanto mais à necessidade da leitura como diz

a Confissão de Westminster: “...podem alcançar uma suficiente compreensão delas”,

isto é, da própria Escritura.

Embora as alegações acerca da necessidade da Escritura dadas por Gruden como

uma doutrina, sua intenção também está na afirmação de que na leitura da Escritura há

um conhecimento progressivo da revelação geral e da revelação especial de Deus. A

revelação geral pela Escritura elucida e aponta tudo para a glória de Deus; já na

revelação especial, a Escritura aponta e demonstra a obra de Deus pai, Deus filho e Deus

Espírito Santo na salvação dos perdidos (GRUDEN 2005, p. 58-59).

O quarto princípio que Gruden levanta é a suficiência da Escritura que enfatiza

que somente nela há o conhecimento necessário para a salvação, sendo esta a revelação

total no que concerne ao necessário ao ser humano (GRUDEN 2005, p.60). Este princípio

da Reforma alude que não precisamos de nada além da Escritura. Costa lembra que no

início do século passado havia grupos independentes nos Estados Unidos que diziam:

“nenhum credo senão a Bíblia” como uma forma de negar as Confissões elaboradas pela

Reforma bom como os catecismos (COSTA 2002, p. 14). Mas a suficiência da Escritura

não exclui esses métodos que tem a seguinte definição:

A suficiência da Escritura significa que a Escritura continha as palavras de Deus que ele pretendeu que seu povo tivesse em cada estágio da história redentora, e que agora ela contém tudo o que precisamos que Deus nos diga para a nossa salvação, para confiarmos nele perfeitamente e para que lhe obedeçamos perfeitamente (GRUDEN 2005, p. 60).

Esta definição demonstra que fora da Escritura não necessitamos de mais nada.

A própria Confissão de Westminster declara essa suficiência na inspiração da Escritura

como norma da analogia fidei:

17 Este é o enfoque da teologia de Westminster quando afirma que ela é “indispensável” (Cap. I:I), e que ela deve ser “recebida porque é a Palavra de Deus” (Cap.I:IV), e ainda no Catecismo Maior em sua pergunta, n.154 que afirma que os sacramentos (batismo e Ceia) e a Palavra de Deus e a oração são meios eficazes de bênçãos para os crentes, ainda na pergunta n. 157 na qual recomenda a necessidade de ler e ouvir a Palavra de Deus para a “habilitação do entendimento” e como meio de graça de Deus em abençoar sua igreja (MARTINS 1991, p. 3, 7, 9, 336 e 340).

104

O Velho Testamento em hebraico (língua nativa do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em grego (a língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que foi escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus, e pelo seu singular cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são, por isso, autênticos, e assim em todas as controvérsias religiosas a igreja deve apelar para eles como para um supremo tribunal; [...] (MARTINS 1991, p. 10).

A doutrina da inspiração da Escritura é um pressuposto da teologia sistemática

que implica sempre na crítica bíblica. Embora a Bíblia tenha recebido um tratamento

diferenciado a partir do Iluminismo, a doutrina da inspiração foi fundamental para a

conservação dela diante do MHC. Desta forma pode-se dizer que o antigo MHC sempre

intentou rejeitar a unidade da Escritura e sua autoridade porque rejeitou a possibilidade

do fenômeno além do racionalismo.

Como é impossível uma hermenêutica sem pressupostos, a Reforma estabeleceu

alguns métodos e princípios balizadores para a exegese. Antes de compreendermos o

primeiro trabalho hermenêutico (a exegese) veremos algumas diretrizes e

pressuposições da teologia Reformada18.

A Confissão de fé de Westminster estabelece alguns pressupostos doutrinários

que o intérprete necessita conhecer além dos já mencionados de forma geral: 1) A Bíblia

contém um caráter divino e humano em que não há confusão; 2) sua doutrina é eficaz

em tudo a que se propõe; 3) há para o cristão uma necessidade da Escritura como meio

de graça; 4) todos os livros são inspirados como a única regra de fé e prática; 5) na

Escritura há um aspecto maravilhoso da presença de Deus em que somente os cristãos

podem perceber este aspecto; 6) todas as suas partes são harmoniosas e não há

contradições; 7) a finalidade maior da Escritura é dar toda a glória à Deus e santificar

por sua eficácia a Igreja; 8) a Escritura demonstra que há um único caminho até Deus,

seu Filho Jesus, o qual em todas as suas partes apontam para a obra de Cristo realizada

pelos santos; 9) a Escritura persuade e convence com a ação do Espírito e neste sentido

ela é autoridade suprema objetivamente, desta forma o Espírito ordinariamente utiliza

a Escritura para o chamado interno e externo; 10) a Escritura é autoridade em todas as

18 Deve-se notar que estes princípios não foram desenvolvidos todos dentro do período da Reforma, mas forma elucidados e destacados não só na Reforma mas em vários períodos da história da Igreja.

105

instâncias em todas as épocas; e 11) O Espírito de Deus dá testemunho no coração dos

homens pela Palavra (LIBRO DE CONFESIONES 1995, p.127-130).

Além da Confissão de fé de Westminster observa-se que os Reformadores

tinham pressupostos para a exegese. Destacam-se alguns Reformadores e suas chaves

de interpretação dados por Anglada (2006, p.72-75): William Tyndale (1494-1536), que

foi um dos primeiros a traduzir a Bíblia para o inglês sustentava: 1) A autoridade e

suficiência da Escritura; 2) A importância da doutrinas evangélicas básicas como chave

hermenêutica e controle da interpretação; 3) Ênfase na unidade cristocêntrica entre os

dois testamentos; 4) A rejeição da interpretação alegórica escolástica medieval; 5) A

adoção de um sentido único e de uma interpretação literal da Escritura e 6) atenção ao

contexto e a outras passagens da Escritura.

Ulrich Zuínglio (1484-1531) defendia as seguintes pressuposições: 1) A Bíblia tem

autoridade suprema; 2) para a interpretação correta da Escritura é necessário a

iluminação do Espíito Santo; 3) há uma visão orgânica entre os Testamentos, isto é uma

harmonia; 4) Ele utiliza o método gramatical, literal e contextual. O interessante neste

reformador é que ele trabalhou seus próprios métodos de interpretação (ANGLADA

2006, p. 77-78).

Em Martinho Lutero (1483-1546) vê-se de forma mais clara os princípios e

pressupostos hermenêuticos: 1) Um elevado conceito acerca da natureza da Escritura;

2) A necessidade da Iluminação do Espírito; 3) rejeição do método alegórico e ênfase no

sentido claro, único e gramatical da Escritura; 4) ênfase no conhecimento das línguas

originais; 5) Princípio Cristológico que é o conteúdo essencial de toda a Escritura; 6) a

importância da distinção entre a Lei e o Evangelho; 7) Tentação e aflição, para Lutero as

aflições e provações fazem o teólogo (ANGLADA 2006, p.79-85).

João Calvino (1509-1564) que é o Reformador que mais escreveu tem os

seguintes pressupostos: 1) Uma alta visão da autoridade, inspiração e suficiência da

Escritura; 2) a relação profunda entre a Escritura e o Espírito Santo na tarefa

hermenêutica; 3) A revelação especial e a revelação geral; 4) O scopus Cristus que

demonstra que a compreensão da Escritura depende da percepção de toda a Escritura;

5) A fé é um pré-requisito hermenêutico; 6) a rejeição consistente do método alegórico

de interpretação; 7) a busca da intenção do autor com base no contexto, o que ele

106

chama de mens scriptoris; 8) sua interpretação é voltada para a pregação; 9) tradição e

humildade. Embora Calvino reconheça a tradição como fonte de pesquisa, ele afirmava

que tudo deve ser analisado pela Escritura (ANGLADA 2006, p. 85-93).

Agora que foi exposto os princípios hermenêuticos gerais e os princípios da

Reforma, este trabalho visa estabelecer os princípios reformados quanto a exegese

histórico-gramatical.

A Exegese Histórica- Gramatical- Literária.

Esta parte deseja salientar métodos de interpretação gerais para o devido uso da

exegese. A exegese é a primeira parte do estudo crítico de um texto, pois envolve duas

pesquisas: o texto e a intenção do autor do texto. Osborne estabelece paradigmas para

o processo hermenêutico da compreensão: O que significa este texto? É à base da

exegese. Depois, a pergunta é acrescentada: O que o texto significa para mim? Que

adquire um caráter devocional dentro do estudo, e por fim o caráter pragmático: Como

compartilhar com outros o que o texto significa pra mim? (OSBORNE 1991, p. 6).

Nesta breve explicação demonstra que a exegese é uma necessidade de

esclarecer e retirar o conteúdo de um texto (perícope) específico e depois aplicar os

princípios hermenêuticos para que se extraiam lições práticas da Escritura. Osborne

informa que a exegese estuda o significado do autor sob a base das considerações

literárias, (gramática e o pensamento desenvolvido) e o pano de fundo histórico. Neste

sentido pode-se examinar qualquer texto a luz de um diálogo entre cinco

compartimentos que ele chama de hermenêutica espiral: a exegese, a teologia bíblica,

a teologia histórica, a teologia sistemática e a teologia prática (OSBORNE 1991, p. 273).

Ao estipular que a exegese se ocupa concretamente com o texto e faz referência

à hermenêutica somente para argumentar algum aspecto (TURNBULL 1976, p. 7),

pressupõe-se que é o aspecto hermenêutico mais importante da epistemologia. Ela é

definida como o estudo sistemático e crítico que extrai do texto a intenção do autor em

seu aspecto histórico, social, linguístico e teológico. Além de evidenciar a mensagem (o

caráter divino-humano) da Escritura e contextualizá-la para os nossos dias. Assim, tanto

107

a exegese como a hermenêutica dependem dos métodos utilizados (WEGNER 1998, p.

11). Kaiser expressa o caráter da exegese da seguinte maneira:

O termo exegese (usado frequentemente pelos estudiosos bíblicos, mas raramente por especialistas em outros campos) é uma forma rebuscada de se referir à interpretação. Pressupõe que a explicação do texto envolveu análise cuidadosa e detalhada. A descrição gramático-histórica indica, naturalmente, que essa análise deve prestar atenção tanto na linguagem em que o texto original foi escrito quanto ao contexto cultural específico que deu origem ao texto (KAISER e SILVA 2002, 17).·.

As grandes perguntas exegéticas são: Quais os pressupostos por detrás da

exegese? Qual a sua Cosmovisão? Quê teologia se usará para determinar nossa

compreensão bíblica? Quais as fontes que devemos recusar e aceitar? Estas e muitas

outras perguntas começaram a inquirir todas as bases da teologia desde os primórdios

do Cristianismo. Não é a intenção de este trabalho expor detalhadamente os passos

exegéticos, mas demonstrar que a exegese histórico-gramatical-literária tem como base

a objetividade do signo, da sintaxe e do contexto imediato e contexto maior do texto.

Realmente a chave para a boa exegese seria uma leitura cuidadosa do texto fazendo

perguntas importantes (FEE e STUART 1982, p.22). Werner já amplia esta visão em três

tarefas importantes:

A primeira tarefa da exegese é aclarar as situações descritas nos textos, ou seja, redescobrir o passado bíblico de tal forma que o que foi narrado nos textos se torne transparente e compreensível para nós que vivemos em outra época e em circunstâncias e cultura diferentes. A segunda tarefa da exegese é permitir que possa ser ouvida a intenção que o texto teve em sua origem. A terceira tarefa da exegese é verificar em que sentido opções éticas e doutrinais podem ser respaldadas e, portanto, reafirmadas, ou devem ser revistas e relativizadas (WEGNER 1998, p. 12-13).

Este método histórico-gramatical desenvolve a prática simples e objetiva de

Chamberlain que recomenda: primeiro, interprete o texto com o léxico; segundo,

interprete o texto sintaticamente; terceiro, interprete o texto contextualmente; quarto,

interprete o texto historicamente e por fim interprete o texto segundo a analogia da

Escritura19 (CHAMBERLAIN 1989, p. 25). Aqui, adiciona-se algo recente na interpretação

que tem chamado a atenção de vários estudiosos20: a interpretação literária da

Escritura, pois a exegese nada mais é do que lidar com literatura de forma objetiva.

19 Esta analogia não é a Teologia Sistemática e sim o teor geral da Escritura (CHAMBERLAIN 1989, p.28). 20 Após Bultmann, Joaquim Jeremias iniciou seu criticismo dentro das escolas críticas da literatura (LAMBIASI 1978, p.91-94).

108

Bailey percebeu que o MHC criou a crítica retórica para a investigação do gênero literário

e que o método histórico-gramatical não incentivava a busca dos gêneros literários21,

ele diz:

A investigação da estrutura literária na literatura bíblica tem sido chamada de crítica retórica. É um campo amplo e em constante desenvolvimento [...]. Estamos tentando descobrir a repetição padronizada de palavras e frases, e o seu significado para a interpretação do texto (BAILEY 1985, p. 21).

Bailey e Broek afirmam que um dos passos mais problemáticos dos estudantes

na exegese está na determinação das formas literárias. Intérpretes inexperientes não

oferecem nenhum levantamento de como o texto comunica sua mensagem devido ao

aspecto literário (1992 p.11). Desta forma a exegese deve dar ênfase a este aspecto

também.

Há cinco fases ou aspectos geralmente aceitos da exegese histórico-gramatical-

literário como trabalho científico e objetivo. Estes são: o texto e sua delimitação, o

contexto menor e maior; a análise semântica que envolve o significado geral da

passagem e a intenção do autor; o estudo lexicográfico da morfologia e a análise

sintática e por fim a análise do gênero literário. Parta analisar a integridade do texto é

necessário desenvolver as seguintes etapas: primeiro deve-se confirmar os limites da

perícope; segundo, comparar as versões e encontrar incongruências; terceiro,

reconstruir o texto denotando as formas bem como o gênero literário, quarto, deve-se

fazer uma tradução de modo objetivo (STUART e FEE 2008, p.31-33). Quanto ao aspecto

crítico do texto chamado de critica textual ou “baixa crítica” consiste na análise dos

manuscritos gregos e a determinação deles22.

Depois de determinar os aspectos textuais, a exegese examinará o contexto

histórico do texto. Nesta parte a exegese deve trabalhar as questões do pano de fundo

em que o texto está inserido, tais como: ambiente social, aspectos geográficos, culturais

e a possível data do texto. No contexto menor deve-se perguntar: qual o papel deste

21 É interessante notar que os livros de exegese mais antigos não citam a interpretação literária do texto. Anglada (2006, p.236 e 242) sugere que houve uma contribuição da lingüística e em especial do estruturalismo para que as “estruturas” das Escrituras fossem mais exploradas numa leitura sincrônica e não somente diacrônica. 22 Dois livros interessantes sobre a crítica textual são: O Novo Testamento: metodologia da pesquisa textual de B. P. Bittencourt e Crítica Textual do Novo Testamento de W. Paroschi.

109

texto no capítulo? Depois, no contexto maior, pergunta-se quanto ao livro e por fim com

respeito a toda a Escritura (STUART e FEE 2008, p.36).

O aspecto semântico23 trata da analise do significado do autor. Este significa o

que deve ser extraído na exegese. Egger, tem um definição interessante: “Sob o aspecto

semântico, o texto é visto como o conjunto de relações (estrutura) entre os seus

elementos significantes: forma um todo, constituindo uma espécie de microuniverso

semântico” (EGGER 1994, p.91).

Depois de olhar para o aspecto semântico, Chapman aponta para o estudo das

palavras do texto analisando o significado. Deve-se separar o texto em partes analisando

seu significado. Aqui, deve-se trabalhar exclusivamente com o texto, exatamente o que

o autor disse, e precisamente o que ele quis dizer. Olhe para a ênfase e o foco do autor.

Também, deve-se usar o conhecimento da gramática (CHAPMAN 1992, p. 1). Isto é a

análise sintática, pois “no uso cotidiano, a compreensão das palavras depende da

consideração do seu contexto” (EGGER 1994, p. 107).

Por fim a análise do gênero literário deve ser o passo antes de avaliar a teologia

bíblica e a sistemática. No contexto literário temos: essencialmente a estrutura do texto

exposto dentro de frases sintáticas24 e na exposição do gênero literário do texto25. Isto

é definido pela exegese neste momento. Se há paralelismos, casuística, profecia,

parábola, metáforas e narrativas devem ser clarificados pela análise. As perguntas

concernentes a esta fase são: Qual a razão desta frase? Devemos procurar descobrir a

linha de pensamento desenvolvida pelo autor26 bem como as conexões semânticas do

texto. A interpretação da literatura é um passo fundamental para a exegese, pois não

podemos tratar o gênero literário sem levar em consideração objetivamente que ele é

proposto culturalmente pelo autor.

23 Semântica é o estudo das palavras e das frases. É a arte da significação, dic. Aurélio. É o ramo da lingüística que se ocupa do estudo da significação como parte dos sistemas das línguas naturais; pode ser abordado sincrônica ou diacronicamente, Dic. Houaiss. (Nota do tradutor). 24 A sintaxe é parte da gramática que estuda a disposição das palavras na frase e nas frases do discurso, bem como a relação lógica do discurso (FERREIRA 2004). (A. B. FERREIRA 2004) 25 Na Bíblia há inúmeros gêneros. Para uma boa visão recomendamos a leitura do livro: Literary Forms in the N.T. BROEK 1992. 26 Reconhecemos que há na pós-modernidade uma tendência de desconstruir o texto (Jaques Derrida) ou autor, dando subjetivamente relevo ao leitor. Declaramos que não concordamos com esse tipo de exegese pois anula os dados (semióticos) do texto e a intenção do autor. Para uma compreensão disto veja: “O Dilema do Método Histórico-Crítico na Interpretação Bíblica” em Fides Reformata, 2005.

110

Antes de analisar a exegese do ponto de vista moderno, Dockery demonstra que

o problema hermenêutico contemporâneo não é totalmente novo. Esses problemas são

encontrados em cinco modelos de exegese desde a igreja primitiva, que são: o modelo

funcional; o modelo autorizado ou dogmático; o modelo de Antioquia da perspectiva do

autor; o modelo Alexandrino da perspectiva do leitor e o modelo da perspectiva do texto

(DOCKERY 1992, p.167).

A primeira abordagem chamada funcional vem de uma leitura de forma

devocional em que os elementos exegéticos não estão presentes. Nesta abordagem o

caráter individual é mais importante que o coletivo. A segunda abordagem chamada

autorizada ou dogmática “é necessária para todos os que tentam interpretar a Escritura

por uma perspectiva confessional, seja judaica, católica, protestante, ortodoxa seja da

igreja livre”. (1992 p.167). O ponto forte dessa abordagem é o impedimento das

heresias, pois o foco é guiado pela ortodoxia. Os pontos fracos são: as respostas são

formuladas antes das perguntas, ela priva a criatividade e cria respostas separatistas.

A terceira abordagem chamada perspectiva Antioquena do autor deve-se

afirmar que o significado pretendido pelo autor bíblico é o significado objetivo do texto.

Aqui, ressalta-se o que os estudiosos chamam de Sensus Plenior ou sentido pleno que é

definido por Kaiser e Silva da seguinte forma: “A visão de que passagens das Escrituras

contêm um significado (ou significados) pretendido por Deus, além do significado

histórico pretendido pelo escritor humano” (2002 p.277). A questão sobre o significado

de determinado texto depende de uma compreensão maior além do pretendido pelo

autor.

A quarta abordagem é o modelo da escola de Alexandria chamado perspectiva

do leitor, hoje com perspectivas existenciais. Muitas das chamadas “teologias” voltada

para contextos específicos com a teologia negra e feminista, estão dentro desse modelo

hermenêutico, pois o leitor determina o significado. Dockery argumenta que o leitor

tem seu papel, mas não é ele quem determina o significado. O significado objetivo é

mediado pelo próprio texto:

Embora enfatizemos o significado histórico do texto, não podemos negligencia as preocupações do leitor contemporâneo. O conceito de significação do texto, dessa forma, é tão importante quanto o significado, embora não esteja equacionado com ele. Foco sobre o significado no texto

111

bíblico, em vez de se concentrar no autor ou no leitor, reconhece que o significado verbal de um texto pode ser interpretado com base em suas próprias possibilidades lingüísticas (DOCKERY 1992, p. 170).

Em quinto há a abordagem do texto como o agente principal de significado. As

escolas lingüísticas, estruturalistas e de abordagens literárias enfatizam mais o texto em

si. As dificuldades da hermenêutica contemporânea incluem alguns aspectos

importantes dentre todas as abordagens deste trabalho:

1) A abordagem do texto com os pressupostos corretos, que Agostinho identificou como fé [...]; 2) o reconhecimento de que o sentido histórico e literal de um texto é o significado primordial, mas não é o limite do significado; 3) o reconhecimento da possibilidade de um significado mais profundo no testemunho profético-apostólico; 4) a afirmação da autoria humana do texto, bem como sua origem divina; 5) a consideração do texto bíblico, mais do que a mente do autor, como o local onde se concentra o significado; 6) entender que um texto se apóia em seu contexto histórico, literário e canônico; 7) a visão da Escritura como um comentário acerca da Escritura, afirmando assim a analogia da fé e o sensus plenior da Escritura; 8) a expectativa da iluminação pela capacitação para a interpretação e 9) a expectativa de que o texto fale às preocupações contemporâneas do leitor.

Agora se analisará a exegese do ponto de vista moderno e pós-moderno. A

exegese pelo MHC demonstrou que suas críticas procuravam estabelecer pressupostos

não do texto ou da Escritura e sim de critérios sob a perspectiva da mente do homem

moderno. Seus principais pressupostos foram: o racionalismo, a razão elimina tudo o

que é sobrenatural, ou aquilo que não se encaixa dentro dela; o historicismo, a Escritura

não é um registro divino e sim um registro histórico de idéias sobre Deus, ao mesmo

tempo em que sua historicidade sempre é questionável e o objetivismo que é uma

aproximação da Bíblia sem preconceitos ou dogmas. Claro que não existe ninguém que

possa aproximar-se de qualquer texto sem pressupostos, como foi demonstrado.

A “verdade” objetiva era a grande questão do século XIX. A pergunta era: é

possível encontrar a “verdade”, partindo de fundamentos cristãos? A exegese se tornou

dentro da hermenêutica moderna a ferramenta que destruiu a objetividade. Talvez pelo

fato de procurar tamanha objetividade. Schaeffer demonstra que o racionalismo elevou

tanto a razão que os críticos bíblicos extrapolaram o uso dela (SCHAEFFER 2003, p. 91 e

93).

112

No período moderno ainda havia esperança de se encontrar a verdade. Com a

chegada da filosofia existencialista27 a verdade começou a se tornar impossível. Essa

filosofia levanta questões do ser e ao mesmo tempo a destrói reduzindo-a nada. Não há

verdade, não há moralidade, não há Deus, a única coisa que há é a existência e o mundo

ao seu redor. Embora a filosofia e a teologia estivessem o criticismo exegético neste

período utilizaram essa visão.

O que estamos a expor aqui é o problema hermenêutico do século XIX e XX.

Deseja-se neste estudo que o leitor possa visualizar a importância da exegese e construir

estudos de forma a contribuir e enriquecer a igreja com a objetividade exegética. Não

há espaço para expor aqui todos os problemas hermenêuticos que surgiram depois da

Reforma, mas pelo menos deve o leitor estar atento que uma exegese que não procura

a intenção do autor e os pressupostos do texto devem ser rejeitados. Agora se olhará o

problema da subjetividade dentro da interpretação bíblica.

Metodologia Exege tica disponí vel ao estudante moderno

Síntese X Análise Sin–tese: Unir, coligir, construir – tem a ver com o método dedutivo. Começa com o

parcial e visa o todo. Vai do particular para o geral.

Aná-lise: Dividir, partir, descontruir – tem a ver com método indutivo. Parte do geral

para o particular.

27 Há dois tipos de existencialismo: o religioso e o ateu. Para uma compreensão sobre este tema veja: o site: http://ocanto.esenviseu.net/lexe.htm acessado ás 16Hs em 20/09/2007.

113

Estrutura de uma exegese

Introdução 1. Tradução

1. Dos textos originais – Edição crítica.

2. Comparação com outras traduções.

2. Crítica Textual

1. A partir da leitura do aparato crítico

2. Interpretação do aparato

3. Delimitação da Perícope

4. Determinar o início e fim da perícope.

5. Justificar criticamente a divisão

6. Analisar o contexto imediato anterior e posterior.

3. Análise Literária

3. Estrutura da Perícope

1. Segmentação da perícope

2. Como se divide o texto e como se relacionam suas partes.

4. Análise Literária

2. Análise morfológica e sintática

3. Análise Lexicográfica e semântica

4. Análise estilística

5. Considerações introdutórias e subsidiárias ao texto

1. Autoria, data e questões críticas

2. Contexto próximo e remoto da perícope

3. Situação sociocultural e geográfica

6. Análise diacrônica da perícope

1. Análise da redação – Crítica da redação

2. Análise das formas – Crítica das formas

3. Análise da História da Transmissão dos textos

7. Considerações sobre o gênero

1. Determinação do gênero da Perícope

2. Determinação do Sitz im Leben

8. Análise Teológica

114

1. Comentário sobre o texto – Consulta a comentários e exegetas.

2. Implicações teológicas do texto

9. Tradução final

10. Atualização

11. Conclusão

Pressupostos para a Exegese

Pressupostos Teológicos Fundamentalismo

Liberalismo

Visão reformada

Pressupostos Técnicos Conhecimento das línguas originais

Conhecimentos do Desenvolvimento da transmissão do texto original.

Uma boa análise das traduções existentes e de seus pressupostos

Pressupostos metodológicos

Sincronia e Diacronia. Sincronia –

Sin: Em conjunto Cronos: Tempo.

Métodos que que analisam o texto como um produto acabado, sem levar em

consideração o seu desenvolvimento Histórico.

Diacronia –

Diá: Através de Cronos: Tempo.

Métodos que que analisam o texto levando em consideração o seu desenvolvimento Histórico

e pré histórico. Quais as etapas que a tradição percorrer até ser fixada em uma redação final.

A Delimitação do Texto

Perícope: Quais são os limites de um Texto ? Um texto precisa ter começo meio e Fim.

Versículos, Capítulos, parágrafos, seções, coleções, livros e testamentos.

115

Os limites do texto Em geral, nossas edições da Bíblia já trazem os livros divididos em perícopes, cada uma

delas ostentando um título. No entatno, nem o título, nem a divisão constam do original. Ambos,

divisão e título, são definidos pelos editores. Em trabalho editorial, podem ocorrer dois

fenômenos.

1- Pode-se quebrar quebrar uma unidade textual

Uma má delimitação da perícope

Isolam – se versículos de seu contexto

Exemplo: 1 Coríntios 12:30 - 13:1

30 Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas? Interpretam-nas todos?

31 Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons.

O amor é o dom supremo

E eu passo a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo excelente.

13:1 Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como

o bronze que soa ou como o címbalo que retine.

2- Agrupar perícopes que deveriam estar separadas

Ecl 4:1 - 6:12

Outros Exemplos

Lucas 14:25-35 – BJ, RA, TEB, EP e RC

João 10:1-21– BJ, RA, TEB, EP e RC

Critérios para a Delimitação do texto

Critérios Externos:

Marcas Editorias modernas

116

Marcas editoriais antigas

Critérios internos:

Critérios literários

Texto Narrativo ou argumentativo?

Texto narrativo:

Relata um acontecimento, uma ação. Tem personagens que agem no tempo e no

espaço.

O que? Quem?, Quando? Onde? Como e Porque?

Texto argumentativo:

Apresenta um argumento, uma explicação, tira conclusões.

Elementos que indicam um novo início da perícope.

Mudança de Tempo e Espaço.

Mudança de Actantes ou personagens.

Mudança de argumento

Anúncio de um novo tema

Títulos internos

Vocativos ou novos destinatários

Introdução ao novo discurso

Mudança de estilo

Mudança de Tempo e Espaço.

Exemplo

2 Samuel 11:1 Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para a guerra,

enviou Davi a Joabe, e seus servos, com ele, e a todo o Israel, que destruíram os filhos de Amom

e sitiaram Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém.

2 Reis 4:38 Voltou Eliseu para Gilgal. Havia fome naquela terra, e, estando os discípulos

dos profetas assentados diante dele, disse ao seu moço: Põe a panela grande ao lume e faze um

cozinhado para os discípulos dos profetas.

Mateus 4:1 A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo

diabo.

Mateus 8:5 Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, apresentou-se-lhe um centurião,

implorando:

Marcos 16:1 Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé,

compraram aromas para irem embalsamá-lo.

117

Lucas 1:5 Nos dias de Herodes, rei da Judéia, houve um sacerdote chamado Zacarias, do

turno de Abias. Sua mulher era das filhas de Arão e se chamava Isabel.

Mudança de Actantes ou personagens. Êxodo 1:22 - 2:1

22 Então, ordenou Faraó a todo o seu povo, dizendo: A todos os filhos que nascerem

aos hebreus lançareis no Nilo, mas a todas as filhas deixareis viver. ARA Êxodo 2:1 Foi-se um

homem da casa de Levi e casou com uma descendente de Levi.

2 Reis 4:40-42

40 Depois, deram de comer aos homens. Enquanto comiam do cozinhado, exclamaram:

Morte na panela, ó homem de Deus! E não puderam comer. 41 Porém ele disse: Trazei farinha.

Ele a deitou na panela e disse: Tira de comer para o povo. E já não havia mal nenhum na panela.

42 Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe ao homem de Deus pães das primícias, vinte

pães de cevada, e espigas verdes no seu alforje. Disse Eliseu: Dá ao povo para que coma.

Marcos 6:56 - 7:2

56 Onde quer que ele entrasse nas aldeias, cidades ou campos, punham os enfermos

nas praças, rogando-lhe que os deixasse tocar ao menos na orla da sua veste; e quantos a

tocavam saíam curados.

7:1 Ora, reuniram-se a Jesus os fariseus e alguns escribas, vindos de Jerusalém. 2 E,

vendo que alguns dos discípulos dele comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar

Lucas 1:24-27

24 Passados esses dias, Isabel, sua mulher, concebeu e ocultou-se por cinco meses,

dizendo: 25 Assim me fez o Senhor, contemplando-me, para anular o meu opróbrio perante os

homens. 26 No sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, para uma cidade da

Galiléia, chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com certo homem da casa de Davi, cujo

nome era José; a virgem chamava-se Maria.

Mudança de argumento

Mudança de assunto, as vezes, introduzida por formulas de passagem:

Finalmente,

quanto a,

a propósito de,

por essa razão

Mudança de perspectiva

Diatribe – Interlocutor fictício

2 Timoteo 4:5-6

5 Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um

evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério. 6 Quanto a mim, estou sendo já oferecido

por libação, e o tempo da minha partida é chegado.

118

Romanos 7:11-13

11 Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento, me

enganou e me matou. 12 Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom.

13 Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Pelo contrário, o pecado, para

revelar-se como pecado, por meio de uma coisa boa, causou-me a morte, a fim de que, pelo

mandamento, se mostrasse sobremaneira maligno.

Filipenses 4:7-8

7 E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa

mente em Cristo Jesus. 8 Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável,

tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma

virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento.

1 Pedro 3:7-8

7 Maridos, vós, igualmente, vivei a vida comum do lar, com discernimento; e, tendo

consideração para com a vossa mulher como parte mais frágil, tratai-a com dignidade, porque

sois, juntamente, herdeiros da mesma graça de vida, para que não se interrompam as vossas

orações. 8 Finalmente, sede todos de igual ânimo, compadecidos, fraternalmente amigos,

misericordiosos, humildes,

Romanos 10:21 - 11:1

21 Quanto a Israel, porém, diz: Todo o dia estendi as mãos a um povo rebelde e

contradizente. 1 Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum!

Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim.

Anúncio de um novo tema Alguns textos retóricos, ao término de uma parte da argumentação, introduzem ou

antecipam os assuntos que serão tratados a seguir.

Heb 2:17-18 – 3:1-5:10

17 Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos

irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer

propiciação pelos pecados do povo. 18 Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado,

é poderoso para socorrer os que são tentados.

3:1 Por isso, santos irmãos, que participais da vocação celestial, considerai atentamente

o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus,

2 Coríntios 12:1-2

Se é necessário que me glorie, ainda que não convém, passarei às visões e revelações

do Senhor. 2 Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi arrebatado até ao terceiro

céu (se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe)

Títulos internos Sentença contra o deserto do mar. Como os tufões vêm do Sul, ele virá do deserto, da

horrível terra. 2 Dura visão me foi anunciada: o pérfido procede perfidamente, e o destruidor

119

anda destruindo. Sobe, ó Elão, sitia, ó Média; já fiz cessar todo gemer. 3 Pelo que os meus

lombos estão Is 21.1–3.

Isaías 21.10–14

o trigo da minha eira! O que ouvi do SENHOR dos Exércitos, Deus de Israel, isso vos

anunciei.

11 Sentença contra Dumá. Gritam-me de Seir: Guarda, a que hora estamos da noite?

Guarda, a que horas? 12 Respondeu o guarda: Vem a manhã, e também a noite; se quereis

perguntar, perguntai; voltai, vinde.

13 Sentença contra a Arábia. Nos bosques da Arábia, passareis a noite, ó caravanas de

dedanitas. 14 Traga-se água ao encontro dos sedentos; ó moradores da ....

Vocativos ou novos destinatários

1 Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo

exposto como crucificado? Gal 3.1.

Introdução ao novo discurso

Mudança de estilo

3 Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um

os outros superiores a si mesmo. 4 Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão

também cada qual o que é dos outros.5 Tende em vós o mesmo sentimento que houve também

em Cristo Jesus, 6 pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser

igual a Deus; 7 antes, a Fp 2.3–7.

Elementos que indicam o término da perícope.

Actantes ou personagens

Espaço

Tempo

Ação ou função de partida

Ação ou função terminal

Ruptura do diálogo

Comentário

Sumário

Elementos que aparecem ao longo texto e marcam a perícope. Ação com princípio, meio e fim.

Campo Semântico

Intercalação

Inclusão

Quiasmo ou Estrutura Quiástica

120

Ge neros Litera rios Do Antigo Testamento

( Conforme a apostila de Hermenêutica do Curso de Teologia da Faculdade Teológica Sul

Americana)

1. Apresentação dos principais gêneros literários encontrados na bíblia e a sua

importância no processo interpretativo de um texto.

121

Gênero Literário

O termo gênero significa “tipo” e refere-se às diferentes formas de se escrever e

classificar um texto. Poesia, reportagem, piada, um sermão, uma narrativa, estatísticas, novela,

ficção, aventura, etc. Tudo isto são gêneros literários específicos e devem ser lidos de maneira

diferente. Esse principio, básico, se aplica também as escrituras. A Bíblia é composta por

diversos gêneros e cada um deles tem suas características. Portanto, cada tipo de texto deve ser

encarado de maneira particular. Sobre a importância do estudo de gêneros Rodrigues afirma:

Ler a Bíblia com competência é lê-la estando consciente dos gêneros nela presentes.

Este é um aspecto fundamental da interpretação bíblica. Se não levarmos em conta a análise

literária, podemos cair em erros graves de interpretação (RODRIGUES, 2004, p.54).

Vale observar que Um texto (livro, capitulo, ou perícope) não contém um único gênero.

Antes, pode ser formada por mais de um gênero. Além disso, existem textos que ainda carecem

de uma melhor classificação quanto ao seu gênero.

Em linhas gerais – e de forma resumida – podemos separar os gêneros da seguinte

forma.

Narrativas Históricas Os textos históricos foram escritos para comunicar fatos e situações concretas. Para

Rodrigues (2004, p.54): “Sua grande preocupação é recuperar o passado e torná-lo conhecido”,

seu objetivo é “entender o presente e sonhar o futuro! Assim, a obra histórica não apenas

satisfaz nossa curiosidade, mas nos desafia em nossas ações”.

Na Bíblia, esse gênero se aplica, especialmente, (mas não exclusivamente), aos livros de:

Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Esse conjunto de livros é chamado de Obra Histórica

Deuteronomista graças à importância do livro de Deuteronômio como guia de leitura da história

do povo, narrada nos livros que fazem parte desse conjunto.

Esses livros, claramente, estão preocupados com os fatos neles mencionados. São os

fatos a prioridade e o ponto de partida para a reflexão de sua mensagem. Entretanto, “podemos

encontrar livros que só aparentemente são históricos. Devemos tomar cuidado para não

considerar históricos textos que não tem a finalidade maior de contar sobre o passado”

(RODRIGUES, 2004, p.54).

Cito como exemplo os evangelhos. Sue autores não estão preocupados em contar uma

história exata a respeito da vida de Jesus. Antes, sua finalidade principal é uma reflexão sobre a

pessoa de Jesus e suas ações. Calma! Isso não significa que a história mencionada seja uma

invenção. Não é uma invenção, mas seus autores não estavam preocupados em contar uma

história. Eles usaram os fatos para fazer teologia e não simplesmente narraram os mesmos. É

por isso que encontramos detalhes diferentes sobre o mesmo fato.

Literatura Profética Os escritos dos profetas também se constituem como um gênero literário próprio.

Existem os profetas anteriores que aparecem como personagens nos livros históricos (Natã,

Elias, Eliseu, etc.) e fazem uma leitura profética da história de Israel em seus respectivos

122

contextos. Existem também os profetas posteriores, ou profetas literários (de Isaias a

Malaquias) que escreveram e trouxeram a memória da palavra profética, uma vez que esta era

primeiramente oral.

Entre as características principais desse gênero literário/tipo de texto estão:

A indicação de que se trata de uma palavra que simboliza a comunicação direta de Deus;

Oráculos de condenação contra uma pessoa ou um sistema;

Oráculos de salvação;

Denúncia de injustiças;

Anúncio de promessas ou castigos.

Lei Encontramos na Bíblia diversas leis, códigos e normas. Pois bem, elas fazem parte de um

gênero literário particular conhecido como Lei. A lei não existe como regra externa, “mas sim

como ensinamento que se guarda no coração”28. Seu intuito na palavra de Deus é ensinar e

instruir a respeito da caminhada, nos ajudando, assim, a viver melhor.

Esse gênero é organizado de forma variada e apresenta:

Leis para a vida intima;

Normas civis gerais (específicas para a nação de Israel);

Leis cerimoniais (ligadas ao culto no A.T); 4. Normas para a vida comunitária;

Outras tantas... Basicamente, as leis se apresentam de duas formas29. (1) Forma Condicional: “Se

acontecer isso, então proceda assim”; (2) Forma Incondicional: “Faça aquilo, não faça isso”.

A lei é um tema extremamente delicado em sua interpretação e exige mais do

interprete do que qualquer outro gênero. RODRIGUES30 propõe três passos básicos para não

cairmos nas armadilhas universalistas. Elas ainda nos ajudam em questão fundamental: “quais

leis ainda continuam valendo para nós, hoje?”

– Procurar saber em qual contexto determinada lei – ou

conjunto de leis – foi escrita;

– Perguntar-se: a quem tal lei interessava?

– Dar o devido peso a cada uma das leis e procurar entender o sentido que está por

trás delas.

28 Ibidem, p. 66. 29 Ibidem 30 Ibidem, p.69

123

Sabedoria Os textos de sabedoria (Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cantares) aparecem nas escrituras

como forma de orientação e conselhos para vida cotidiana. Além disso, servem de ajuda para a

análise da realidade do povo e para gerar ânimo frente a tantos desafios da vida aos quais o

povo de Deus estava exposto.

Entres suas características e formas literárias aparecem:

Constante repetição de palavras e frases;

Conselhos (“Filho meu...”), advertências e exortações;

Comparações;

Perguntas didáticas para levar o leitor a pensar;

Canções e poesias.

Salmos Os salmos, conforme define RODRIGUES31: “São orações acompanhadas de melodia.

São poemas para orar, não só com palavras, mas também com música e dança”. Esse conjunto

de orações cantadas é também classificada como um gênero literário.

Suas principais características literárias são:

Reconhecimento do próprio ser diante da vida e seus dilemas;

Um caminho de intimidade e experiência profunda com Deus;

Levar outros a abrirem suas vidas para Deus;

Revelar o caráter de Deus;

Expressão de momentos concretos da vida e da fé do povo de Deus.

Ge neros Litera rios do Novo Testamento

(Estudo Sincro nico)

Evangelho Os quatro primeiros escritos do Novo Testamento recebem o nome de evangelho e

formam um gênero literário próprio. Os três primeiros – Mateus, Marcos e Lucas – são

conhecidos como sinóticos e são muito parecidos em seus escritos – basicamente, relatam a

vida de Jesus e sua atuação nos últimos três anos de sua vida.

31 Ibidem, p. 70

124

Cada um dos sinóticos tem suas particularidades, o mesmo relato apresenta uma

estrutura diferente, com detalhes e, até mesmo, ênfases diferentes. Isso varia de acordo com o

contexto do autor de cada evangelho e com o momento histórico de cada comunidade a quem

o texto foi destinado – conhecidos como “os primeiros leitores”. Isso mesmo, cada autor

selecionou e organizou alguns fatos da vida e ministério de Jesus e construiu seu texto (Leia: Lc

1: 1-4) de acordo com as demandas (sociais, religiosas, políticas, econômicas, existenciais, etc.)

de um determinado povo/comunidade.

O autor Gordon Fee (1984, p.113) trabalha com essa perspectiva e afirma que “Havia

dois princípios operantes na composição dos Evangelhos: a seletividade e a adaptação. De um

lado, os evangelistas como autores divinamente inspirados selecionaram e adaptaram aquelas

narrativas e ensinos que eram apropriadas para seus propósitos”.

Sendo assim, os relatos da vida de Jesus possuíam um significado profundo e se

aplicavam de forma concreta ao que estavam vivenciando essas comunidades.

Quando lemos uma passagem dos evangelhos seria bom considerar não apenas a

memória da palavra e da ação de Jesus ali presente, mas também o esforço das comunidades

que o seguiram em aplicar esses ensinamentos e atitudes na própria vida. É esse empenho que

acaba tornando um evangelho diferente do outro: cada um reflete os desafios de uma

comunidade em atualizar a prática de Jesus e de seus primeiros discípulos e discípulas

(RODRIGUES, 2004, p.82).

Portanto, escrever um texto sobre a vida de Jesus não significava apenas relatar aquilo

que Ele fez e falou, mas também estimular as comunidades a construírem sua própria

caminhada de fé a partir do exemplo do mestre e, além disso, ter nele uma esperança capaz de

dar real sentido à vida.

No evangelho de João (20: 31), por exemplo, encontramos a seguinte frase: Esses sinais

foram escritos para que vocês acreditem. Isso significa que quando os evangelhos foram escritos

pensou-se primeiramente no “vocês”, nas comunidades! Vejamos outros comentários dessa

mesmas autora:

Foram os problemas e desafios do cotidiano da comunidade que conduziram o processo

de escrita do evangelho, e inclusive da escolha do que teria que fazer parte da narração. Para

atender às necessidades da comunidade, foram inseridos alguns textos e deixados de fora tantos

outros. (RODRIGUES, 2004, p. 83

Por tudo isso, concluímos então que os evangelhos não devem ser abordados, do ponto

de vista hermenêutico, como um escrito

“No caso da comunidade de João o ambiente era de perseguição, de ameaças, inclusive

de morte. Resultado: vamos encontrar em João 9, 1-41 e 10,19-21 um longo relato sobre alguém

que enfrentou as autoridades com coragem, mesmo tendo sido expulso da sinagoga: o cego de

nascença. Uma postura bem diferente da de seus pais (9,21-22)! E ainda, o Evangelho segundo

João é diferente dos demais porque sua comunidade vive uma situação específica, que o

evangelho quer encarar de frente” (RODRIGUES, 2004, p. 83).

biográfico e até mesmo histórico. O interesse primário do autor ao narrar alguns

acontecimentos sobre Jesus é levar as pessoas – os primeiros leitores e agora todos nós – a se

125

comprometerem com Jesus e com as causas que ele se comprometeu e as estimularem a trilhar

com perseverança e esperança os caminhos da fé.

Normalmente, aqui temos uma pedra no sapato já que “temos o hábito de ler os

Evangelhos somente como meios de se alcançar os acontecimentos históricos para os quais eles

apontam. Todavia, esses escritos são muito mais que isso”32. Mais do que contar um história

cada evangelista é um interprete dos fatos. Eles apresentaram seus escritos de uma forma que

refletisse sua própria interpretação e aplicação dos fatos.

Essa perspectiva, porém, não é uma unanimidade. É comum, encontrarmos algumas

afirmações de que minimizar a base histórica dos evangelhos compromete a mensagem dos

mesmos. Entretanto, precisamos lembrar que “os Evangelhos foram escritos não apenas para

comunicar informação factual, e nem foram compostos de acordo com os métodos e

expectativas do jeito moderno de escrever história”33.

Ainda sobre o mesmo tema, Kaiser (2003, p.102) afirma que: “a fidedignidade dos

Evangelhos não deve ser posta em termos da historiografia moderna, que dá ênfase à sequência

cronológica rígida e clara”. Já os autores dos Evangelhos, segundo o mesmo autor, “são

pregadores [...] Eles organizam o material nem sempre com base na ordem sequencial, mas com

a perspectiva de imprimir sobre os leitores certas verdades”.

A partir de tudo que vimos, na hora de interpretar um texto contido nos Evangelhos,

devemos ter em mente algumas perguntas cruciais:

quem é o autor do texto?

onde estava quando escreveu?

quais eram suas condições?

para quem escreveu?

como viviam essas pessoas?

Depois de feitas essas descobertas, é hora de interpretarmos e aplicarmos os textos para

a nossa realidade. Afinal, a vida de Jesus tem muito a nos dizer a partir de nossas realidades,

especialmente na América Latina. Conforme Fee (1984, p.100,101): “Num certo sentido,

portanto, os Evangelhos já estão funcionando como modelos hermenêuticos para nós, insistindo

por sua própria natureza que nós, também, narremos de novo a mesma história em nossos

próprios contextos”.

Parábolas A Parábola não é um gênero literário exclusivo do Novo Testamento. Ela também

aparece no Antigo Testamento, priciplamente em textos de sabedoria (Salmos, Provérbios,

Eclesiastes). Como qualquer outra forma literária, tem suas características próprias. Rodrigues

destaca as seguintes regras, entre outras:

32 CARVALHO, Tarcízio. Apostila (não publicada): Princípios de Interpretação da Bíblia – interpretando

evangelhos e cartas. 33 Ibidem

126

Reflete uma situação que poderia ter acontecido: Ou seja, fala de algo que “poderia

realmente ter acontecido; não contém elementos explícitos do mundo da fantasia”;

Refere-se a uma realidade em si mesma: Ou seja, “deve ser interpretada a partir da

lógica dos próprios fatos que narra. Não é um texto que tenta explicar outros textos ou fatos

externos, como a alegoria”.

Possivelmente estamos diante do tipo de texto mais abusado quando o assunto é

interpretação, especialmente com o uso de alegorias. Para Rodrigues (2004, p.112) “isso faz

perder a mensagem que a história queria transmitir originalmente. A alegoria, muitas vezes,

torna-se camisa de força que tira a riqueza de sentidos possíveis da parábola”. Vejamos um

exemplo do uso inadequado do método alegórico na interpretação de uma parábola feito por

Agostinho.

Parábola do Bom-Samaritano

Cena Representa

Judeu que desce de Jerusalém para Samaria

Adão

Ele é assaltado Queda Humana

Sacerdote e Levita Lei e Sacrifício que não

podem ajudar o homem caído

Bom Samaritano Jesus

Vinho nas feridas Sangue pelos nossos

pecados

Levanta o homem Novo nascimento

Leva até a estalagem Igreja

Estalageiro Pastor

Pede que cuide do homem até que ele volte

Segunda vinda de Jesus

127

Para Fee (1984, p.112): “Por mais novo e interessante que tudo isto possa ser, podemos

ter a certeza de que não é isso que Jesus queria dizer. Afinal de contas, o contexto claramente

exige uma compreensão de relacionamentos humanos (‘Quem é o meu próximo?’), e não os

relacionamentos divinos e humanos”.

• Atenção Especial com os Detalhes

Os detalhes, às vezes, estão cheios de significado (a partir do contexto geral) para ajudar

na construção da mensagem. Mas os detalhes não são/contém a mensagem central em si, são

partes que dependem de outras partes para a construção do todo. São apenas elementos para

dar colorido à história criada. A mensagem da parábola está no todo. Para tarefa hermenêutica,

portanto, é importante destacar que:

É no todo (construído pelas partes) que se encontra o significado do texto;

É do todo que se extrai o conteúdo para aplicação;

• Cabe aqui um pequeno Exercício de Fixação:

Lc 15: 11-32: Parábola do Filho Pródigo

Depois de ler a parábola, cuidadosamente, reflita:

Qual é a Mensagem Principal?

Encontre alguns detalhes que contribuem para a construção da mensagem principal.

Até que ponto esses detalhes podem ser confundidos com a mensagem principal?

O que mudaria [na aplicação] se os detalhes assumissem o papel da mensagem principal na parábola ?

Cartas O maior (em quantidade de material escrito) gênero literário do Novo Testamento são

as cartas. Em resposta a uma carta recebida sobre um problema especifico, ou em resposta a

algum problema que alguma comunidade nascente estava enfrentando, nascem às cartas. Com

o passar do tempo, achou-se necessário classificá-las como um gênero literário próprio. Esse

tipo de abordagem foi fundamental para o processo de interpretação do conteúdo das mesmas.

Infelizmente, até hoje, existe a insistência em desconsiderar a carta como um tipo de

texto que deve ser lido a partir de suas categorias históricas e literárias. Dessa forma,

128

continuamos convivendo com interpretações questionáveis, fundamentalistas e universalistas

frente a problemas específicos.

Suas principais características literárias, entre tantas, são:

linguagem que reproduz um discurso oral, isso se deve ao fato de que essas

cartas eram lidas nas assembleias litúrgicas;

o conteúdo é uma resposta a algum problema vigente na comunidade que

recebeu a carta;

reforçando: toda carta é circunstancial;

por se tratar de uma carta aparecem: saudações e identificação do autor,

destinatário, etc.;

quanto ao conteúdo, não se tratam de verdades universais, antes, de palavras

de orientação, conselhos, exortações e encorajamento;

caminhos que apontam à superação de conflitos instalados, conflitos que

geraram a necessidade da carta.

Apocalíptica O gênero literário “apocalipse” não é uma referência exclusiva ao livro do apocalipse

de João. Este pertence, também, ao gênero apocalipse, mas não é o único. Joel, Daniel e outros

pequenos textos fazem parte desse gênero.

Suas características principais são:

remete a acontecimentos do passado para falar do presente;

linguagem em forma de protesto e resistência ao poder estabelecido;

surgem em períodos de perseguição com o intuito de gerar esperança no

coração dos leitores;

Usam linguagem simbólica e usam a imaginação para criar suas cenas;

Conclusão A falta de noção quanto ao tipo (gênero) de texto que estamos trabalhando (lendo) pode

comprometer nosso trabalho de interpretação. Nas próximas unidades vamos trabalhar com

alguns critérios e métodos importantes aplicados a alguns gêneros selecionados. Até breve!

Interpretando Narrativas As narrativas são um dos meios privilegiados pelos quais podemos penetrar nos

contextos, bíblico e do leitor/ intérprete, a fim de realizar a fusão de horizontes, isto é, perceber

o significado do texto bíblico para o aqui e agora, quando ele se torna a Palavra de Deus para

nosso tempo. Esta se realiza no encontro e confronto de narrativas, as do texto bíblico e as

nossas e nos leva a refazer o nosso presente e redirecionar nosso futuro, pela nossa ação neste

129

mundo. Por tudo isso (e considerando ainda que boa parte dos textos bíblicos são de gênero

narrativo), entendemos a importância e necessidade de estudá-las com dedicação.

Um pouco de História O Novo Testamento se tornou um conjunto de obras literárias quando a proclamação

oral do Evangelho passou a ser acompanhada pelo anúncio escrito do Evangelho. E isto tem

muito a ver com o processo de canonização destas obras. Daí em diante, só era possível estudá-

las com a ajuda, por vezes excessiva...

Das ciências históricas Das ciências teológicas

O que aconteceu? Qual é a verdade?

Ambas as maneiras se tornaram o modelo dominante de interpretar o Novo Testamento

até a primeira metade do século 20. Este consistia em reconstruir a vida e o pensamento por

trás das obras através de um estudo objetivo das circunstâncias históricas que cercavam o

período de transmissão do texto bíblico, também chamado da tradição oral, até os primeiros

registros desta tradição, chamado período de composição. Para isso, se formaram três conjuntos

de estudos:

O estudo das fontes: que pessoas e grupos produziram e se utilizaram destas obras?

O estudo das formas: onde viviam essas pessoas e grupos (sitz in leben)?

O estudo da redação: com quais propósitos e intenções elas produziram e utilizaram

estas obras?

Esses três conjuntos de estudos eram antecedidos pelo estudo literário que se

desdobrava em duas partes:

Análise filológica: a constituição linguística da escrita.

Análise histórica: a autenticidade, integridade da escrita; data e lugar; conteúdo;

ocasião ou propósito da escrita; pano de fundo (fontes primárias, conforme vimos em unidades

anteriores).

Novo Testamento e os Novos Estudos Literários34 Na segunda metade do século 20, recentes desenvolvimentos nas ciências literárias

contribuíram para a constituição de uma nova maneira de estudar as obras literárias do Novo

Testamento. Entendese, por exemplo, que as narrativas do Novo Testamento são, em muitos

aspectos, semelhantes a uma história atual. Elas possuem: enredo, personagem, cenário e um

ponto de vista.

Porém, não se pode perder de vista a natureza teológica destas histórias. O interesse da

parte de quem estuda o contexto bíblico deve ir além do gênero literário narrativo, para se

34 REYES, 1999, pp. 39-59. Usaremos esse texto de Reyes para início de nossa apresentação do assunto. 2PORTER, 2007, pp. 202-204; POWELL, 1990, pp. 19-21.

130

estender à relação entre a narrativa e a teologia. Por um lado, se trata de distinguir a narrativa

bíblica da simples literatura. Por outro lado, se trata de reconhecer a narrativa bíblica como um

discurso complexo.

O Estudo do gênero literário narrativo2 O estudo do gênero literário narrativo, ou a crítica narrativa, ou a análise narrativa,

constitui um conjunto de procedimentos que procura demonstrar o caminho pelo qual o leitor

de uma narrativa é conduzido ao seu entendimento por determinada organização presente na

própria história. A abordagem fundamental à forma de organização da narrativa. Desse modo,

a narrativa pode ser estudada como uma sequência de quatro etapas:35

Primeira A personagem passa a ter um querer ou um dever,

um desejo ou uma necessidade de fazer algo;

Segunda A personagem adquire um saber e um poder, isto é,

a competência necessária para fazer algo;

Terceira A personagem realiza aquilo que quer ou deve fazer;

Quarta A personagem tem a recompensa daquilo que

realizou;

Ou pode ser estudada como uma ação-problema que se desenrola ao longo de cinco

elementos macroestruturais básicos:36

1. Situação Inicial

2. Ação-Problema (nó)

3. Ação Transformadora

4. Desenlace

5. Situação Final

Considerando os diversos pontos acima, entendemos que um modo prático de efetuar

a análise do gênero literário narrativo é:37

Delimitar a Narrativa;

A Intriga;

Os personagens;

Cenário ou Quadro;

O Tempo;

Voz Narrativa;

Vejamos algumas características de cada um dos passos:

35 FIORIN, SAVIOLI, 2006, p. 228.

36 MARGUERAT, BOURQUIN, 2009, pp. 75ss. 37 MARGUERAT, BOURQUIN. 2009.

131

A DELIMITAÇÃO DA NARRATIVA: Trata-se de determinar o início e o fim da história, com

o objetivo de estabelecer seus limites como uma unidade produtora de sentido, abrindo-a para

a leitura e análise.

A INTRIGA: Trata-se de descobrir o percurso da história, desde a situação inicial ao

clímax e até o desenlace.

OS PERSONAGENS: Trata-se de apresentar os personagens, a partir de todas as

informações disponíveis sobre eles na história: descrição física, social, cultural, étnica, familiar

etc, e as ações, a linguagem, os pensamentos, as crenças e valores de cada um.

O CENÁRIO OU QUADRO: Trata-se de descrever o lugar ou lugares localizáveis no tempo

e no espaço, bem como o ambiente social, onde os eventos da história ocorrem e são

representados.

O TEMPO: Trata-se de indicar o tempo da história. Este pode ser cronológico, por

exemplo: o encontro de dois amigos, realizado em questão de minutos. Ou pode ser narrativo:

como a história prolonga esses poucos minutos indefinidamente.

A VOZ NARRATIVA (focalização e ponto de vista): Trata-se de apontar os procedimentos

do Autor Implícito que, à semelhança de uma Voz presente na história, guia o Leitor Implícito,

ao lhe fornecer todo tipo de esclarecimentos que ele necessita para que ele compreenda a

história como o Autor Implícito deseja.

Dando continuidade ao estudo de textos narrativos, hoje, veremos um exemplo dos

passos apresentados na última unidade. Para tanto, utilizaremos a história da cura do escravo

do centurião romano, registrada em Mateus 8:513. Vamos lá!

A análise das narrativas no contexto do Novo Testamento Conforme vimos na unidade anterior, uma maneira prática de analisar um texto

narrativo do Novo Testamento é a utilização dos passos abaixo:

Delimitar a Narrativa;

A Intriga;

Os personagens;

O Cenário ou Quadro;

O Tempo;

Voz Narrativa;

Vejamos agora cada um dos passos aplicados à história da cura do escravo do centurião

romano, registrada em Mateus 8:5-13.

TEXTO Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, apresentou-se-lhe um centurião, implorando:

Senhor, o meu criado jaz em casa, de cama, paralítico, sofrendo horrivelmente.

Jesus lhe disse: Eu irei curá-lo.

132

Mas o centurião respondeu: Senhor, não sou digno de que entres em minha casa; mas

apenas manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado.

Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, tenho soldados às minhas ordens e

digo a este: vai, e ele vai; e a outro:

vem, e ele vem; e ao meu servo: faze isto, e ele o faz.

Ouvindo isto, admirou-se Jesus e disse aos que o seguiam: Em verdade vos afirmo que

nem mesmo em Israel achei fé como esta.

Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com

Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus.

Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e

ranger de dentes.

Então, disse Jesus ao centurião: Vai-te, e seja feito conforme a tua fé. E, naquela mesma

hora, o servo foi curado.

A DELIMITAÇÃO DA NARRATIVA: Não há indício cronológico da entrada de Jesus em Cafarnaum (8:5), mas há referência

de uma sequência temporal na casa de Pedro (8:14), e, depois, ao anoitecer (8:16). O episódio

acontece na cidade de Cafarnaum (8:5), sem indicação de qual espaço foi ocupado dentro da

cidade. A seguir, Jesus entra na casa de Pedro (8:14) e, à noite, não há indicação de local onde

esteja (8:16). Os personagens mencionados são: Jesus, aqueles que o seguem, o centurião e o

seu escravo adoecido. A história é acerca de como a fé do centurião contribuiu para a cura do

seu escravo.

A INTRIGA: A história está organizada do seguinte modo esquemático:

Passos Texto: versículos

1. Situação Inicial 5,6

2. Ação-Problema (nó) 7,9

3. Ação Transformadora 10-12 / 13a

4. Desenlace 13b

5. Situação Final xxxx

A história possui duas intrigas: a cura do servo do centurião e a fé do centurião. Trata-

se de uma intriga dentro da intriga.

Na primeira, o escravo está muito doente, o centurião vai até Jesus e pede que o cure,

Jesus diz a sua palavra, e ele é curado.

133

Na segunda, o centurião se recusa a receber Jesus em casa e explica a razão contando

uma breve história. Jesus elogia a fé do centurião e diz a sua palavra em resposta a esta fé. A

verdadeira lição não se trata da cura do enfermo, mas da aprovação da fé do centurião, por

meio da qual o enfermo foi curado. Ela se torna modelo de qualquer fé verdadeira, na apreciação

de Jesus, conforme a breve história do Reino dos Céus que ele narra.

OS PERSONAGENS: São três os personagens individualizados: Jesus, o centurião e o escravo doente. Eles são

os protagonistas da história. Há um personagem coletivo: os que seguiam a Jesus.

Estes atuam como testemunhas do diálogo entre Jesus e o centurião, bem como das

declarações de Jesus. Jesus é construído como o personagem central da história: ele é seguido

por todos; é procurado pelo centurião, que concentra nele a esperança de cura de seu escravo;

faz comentários nos quais julga a fé do povo de Israel e do centurião, anuncia o banquete

escatológico do Reino dos Céus. Também é sensibilizado pelo apelo do centurião e manifesta

profundo espanto e admiração pessoal por ele. O centurião é identificado com a força de

ocupação romana na Galiléia, o que lhe dá um status diferenciado dentre todos.

Sua compaixão pelo escravo adoecido e apelo a Jesus desfaz o préjuízo inicial, dispondo-

o à aceitação por Jesus e pelos ouvintes/leitores. Seu discurso sobre a autoridade é fundamental

para a sua identificação. O escravo é identificado com o serviçal, o que já determina de antemão

o seu status. Adoecido, vítima de uma enfermidade torturante, tornase passivo e dependente

da ação do centurião e da resposta de Jesus. Os seguidores de Jesus são espectadores e

testemunhas do acontecimento, lugar sempre reservado a eles. Cabe a eles confirmar o

testemunho e glorificar a Deus.

O CENÁRIO OU QUADRO: A descrição do ambiente físico é pobre, apontando para um local público ignorado, em

Cafarnaum. O ambiente social pode ser explorado a partir: do discurso de Jesus, no qual

relaciona o povo de Israel a si mesmo – a palavra que realiza a cura – e ao banquete no Reino

dos Céus; das relações entre judeus e a força de ocupação romana representada no centurião;

das relações entre o centurião como senhor do escravo adoecido.

O TEMPO: O tempo se desenvolve na medida em que as ações se sucedem umas às outras. A certa

altura, o tempo das ações é suspenso, para que se dê o comentário de Jesus acerca da fé do

centurião e do banquete do Reino dos céus, e retorna para a sua palavra de cura, criando um

clímax, cujo desenlace se dá quando o tempo da cura do escravo adoecido é vinculado à hora

que Jesus falou a palavra de cura.

A VOZ NARRATIVA (focalização e ponto de vista): É evidente a intenção do Autor Implícito em despertar a simpatia do Leitor Implícito pelo

centurião romano, solícito e compassivo por seu escravo adoecido. O comentário de Jesus, no

qual elogia a fé do centurião, somente afirma o centurião como modelo a ser imitado. Em

contrapartida, o juízo negativo que Jesus emite acerca da fé do povo de Israel, coloca os seus

contemporâneos na situação oposta à vista do Leitor.

134

No comentário adicional, o Autor Implícito mostra Jesus, à maneira de um profeta,

estabelecendo a fé do centurião como condição para participar no banquete do Reino dos Céus,

igualando-a aos patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. É possível identificar aqui o fenômeno da

intertextualidade. O símbolo do Reino dos Céus substitui a terra prometida, alvo da fé dos

patriarcas. Um veredito é, finalmente, lançado: por isso, os que vêm do “Oriente e do Ocidente”

terão entrada no Reino, enquanto os seus súditos serão lançados fora dele, em um espaço que

é oposto à alegria do Reino: choro e ranger de dentes.

O Autor Implícito manipula o Narrador, que está por trás e totalmente onisciente de

todas as ações da história, dando pleno domínio ao Leitor acerca dela, inclusive antecipando-

lhe a cura do escravo adoecido, quando o centurião ainda nem havia chegado à sua casa.

A análise narrativa no contexto do intérprete Trabalhamos a leitura da narrativa de Mateus 8:5-13. Precisamos agora compreender

que esse exercício não pode ser feito de modo objetivo sem conexão com a realidade do

leitor/intérprete. Quer dizer, o leitor atual se coloca no contexto, ambiente e mundo dos autores

e leitores antigos, vendo as coisas de sua perspectiva original e eliminando qualquer opinião

moderna que afete sua interpretação.

Aliás, qualquer leitura objetiva de um texto literário do Novo Testamento é impossível,

pois aqueles que poderiam dar significado a ela, o autor e o leitor originais, não existem mais. E,

também, é desnecessária, pois, se fosse possível acesso a eles, o significado que eles dariam

para a história não faria o menor sentido para nós, hoje.

Acentua-se, então, a subjetividade, isto é, a maneira pessoal como cada leitor faz a

leitura do texto literário do Novo Testamento (embora tenhamos apontado em unidades

anteriores os problemas como prétexto, chegou a hora de considerá-los e assumi-los de forma

honesta e em função de uma análise e interpretação bíblica coerente). Neste caso, a

subjetividade é assumida nas tradições que o leitor possui e pelas quais aprendeu a ler o texto

bíblico. Estas foram, normalmente, aprendidas em uma comunidade cristã. Estas tradições

funcionam como: orientação principal para a vida; legitimação de uma forma de vida cristã, do

próprio leitor, de um grupo, de uma família, de uma comunidade, de uma igreja; como parte

das condições de mundo no qual se vive.

Isto leva diretamente à questão mais controversa na análise do gênero literário

narrativo, no Novo Testamento: o lugar da Teologia. Especificamente acerca do caráter

descritivo (não-confessional), ou prescritivo (confessional) desta leitura teológica.

Para o tipo prescritivo, o texto literário é um texto sagrado, é a Palavra de Deus, que

implica em:

Ele registra as palavras de Deus;

É a melhor apresentação da realidade;

Sua autoridade ultrapassa a de qualquer outro texto literário;

Ele tem um papel central em guiar a fé e a prática de indivíduos e comunidades.

135

Para os teólogos que trabalham com esses pressupostos, a interpretação só pode ser

feita desde dentro e para uma comunidade de fé, e ao resultado da exegese o indivíduo e a

comunidade devem se submeter.

Para o tipo descritivo, o que importa é o lugar e papel histórico do texto literário na

época de sua composição e na forma como se encontra escrito. Isso implica em:

Valorizar o significado passado do texto;

Tratar o texto bíblico como uma literatura antiga;

Em formas históricas mais radicais, reduzir referências sobrenaturais a uma

determinada época histórica;

O problema aqui é que o conceito de história do exegeta, de antemão, já determina os

resultados da exegese.

Contudo, os textos narrativos do Novo Testamento são tanto um registro do que criam

as antigas comunidades cristãs, no sentido histórico, como também o meio pelo qual creem as

comunidades cristãs atuais, no sentido teológico. A questão mais profunda, então, é: como

vincular o sentido histórico com o sentido teológico através da mediação hermenêutica da

narrativa praticada em ambas as comunidades de fé?

A reflexão acima foi necessária para que você percebesse que a análise das narrativas

do Novo Testamento se faz em conversação com as narrativas das pessoas e das comunidades

cristãs de hoje, e de todos os tempos, em seus diversos contextos, nos quais as narrativas se

tornam espaços de aprendizagem. Vejamos como isso acontece.38

Quando alguém conta uma história, a sua ou a de outrem, inclusive um personagem

bíblico, está dando ênfase, não às ideias, mas à vida, da maneira como ela acontece, na medida

em que uma pessoa ou uma coletividade humana vai experimentando tais eventos. Daí, que o

conjunto ou contexto da vida é que se faz presente em cada narrativa. É a vida que se narra.

Quando alguém conta uma história, o faz para que outra pessoa ou comunidade a ouça.

Quem conta é o narrador, e quem ouve é o leitor/ ouvinte. O narrador usa a memória que tem

dos acontecimentos para dar vida, novamente, a eles, enfatizando certos aspectos,

obscurecendo ou omitindo outros, organizando os eventos, contextualizando-os de modo que

possa surgir um significado para a vida.

Por meio da história, o leitor/ouvinte se relaciona com o narrador, porém,

principalmente, ele penetra na vida que está configurada na história. Ele pode concordar ou

discordar, isto é, aceitar o convite para fazer ou não parte dos acontecimentos que são narrados.

Ele pode assumir uma atitude:

Idealista Como era bom aquele modo de viver

Resignada Se foi assim, não há o que podemos fazer de

diferente.

38 BRAVO, 1986, pp. 73-83.

136

De esperança e transformação

Esta história nos permite ver nossa vida de outra

maneira, e podemos mudar as coisas.

Por causa desta última atitude perante a narrativa ouvida, é preciso dizer que a narrativa

jamais é apenas uma apropriação individual cujo impacto se restringe à vida particular do

ouvinte. Ela possui um caráter e um impacto social, atinge a coletividade, seja a igreja, seja a

comunidade que circunda a igreja, transformando o contexto, modificando os acontecimentos

futuros.

Como toda história parte e é reflexo de um contexto, não há como narrar e ouvir uma

história sem abrir-se e apegar-se ao contexto. Isto quer dizer que é preciso tomar partido, situar-

se ao lado, e deixar que as pessoas contem suas histórias a partir e da maneira como elas as

entendem e como sabem fazê-lo.

Ajudar as pessoas a contar suas histórias, e de suas comunidades, é permitir que seu

contexto se manifeste, a fim de que elas mesmas tomem nas mãos os acontecimentos narrados

e deem continuidade às suas histórias. A este evento final, chamamos a fusão de horizontes,

quando a narrativa bíblica se torna parte da narrativa do leitor de hoje, seja ele uma pessoa ou

uma comunidade cristã.

Reflexões a partir do texto de Mateus 8:5-13

No caso específico da narrativa do centurião, ficam óbvias algumas conclusões,

resultantes do diálogo entre o contexto da narrativa e o do leitor/intérprete:

PRIMEIRO, as narrativas de doenças, fé em Jesus e a cura consequente são mais comuns

do que se imagina, seja nos dias de Jesus, seja em nossos dias.

SEGUNDO, os papéis sociais pouco têm valor, em tais narrativas, visto que a doença e a

necessidade da cura nivelam a todos, e coloca a todos sob a dependência da vontade exclusiva

de Deus, o que é chamado de fé.

TERCEIRO, o lugar de Jesus Cristo como Agente da cura divina, plenamente consciente

de que ele realiza o papel de Deus, fazendo que a sua boa vontade se cumpra em meio aos seus

semelhantes.

QUARTO, a narrativa promove a superação de todas as barreiras, colocando novos

critérios para o relacionamento com Deus, baseado na fé e livre recepção da sua boa vontade.

É evidente que você poderá chegar a muitas outras conclusões. Porém, lembre-se que

isto é provisório, e que é preciso continuar o diálogo, enquanto houver histórias, isto é,

enquanto houver vida. Até a próxima, pessoal!

137

Estudo dos Ge neros Litera rios no Novo Testamento (Diacro nica)

Introdução Desde os primeiros decênios do Século XX, um grupo de exegetas, em base às

conclusões trazidas pela Crítica Literária, começou a comparar textos formalmente

semelhantes, mesmo se tais textos apresentassem diferenças quanto ao seu conteúdo.

Hermann Gunkel

Segundo Gunkel, que realizou estudos em Gênesis e Salmos, em Culturas

eminentemente orais, diferentes gêneros literários indicam diferentes contextos sociais. A partir

deste pressuposto, Gunkel estabeleceu os princípios básicos

De um método que denominou Crítica dos Gêneros Literários – Gattungsgeschichte

Gattungsgeschichte Determinar a Estrutura Formal de um texto

Comparar tal texto com outros estruturalmente semelhantes, a fim de

identificar o Gênero Literário

Determinar em que situação concreta esse gênero Literário era usado (Sitz im

Lebem)

Determinar a finalidade desse Gênero Literário e, especificamente, do texto

estudado.

Gêneros Literários Maiores no Novo Testamento Evangelhos

Os Atos dos Apóstolos

Epístolas

Apocalipse de João

138

Gêneros Menores

Classificação dos Gêneros dos Evangelhos

Rudolf Bultmann propôs para os evangelhos uma divisão em duas grandes e

abrangentes Tradições:

Divisão principal, segundo Bultmann

Tradição Histórica

É o Material Narrativo, no qual encontramos os feitos de Jesus.

Tradição da Palavra

Neste grupo encontramos as frases e Ditos de Jesus. É o material discursivo.

Tradição Histórica:

Relato de Milagre

Introdução (descrição ambiente e do encontro)

Maiores detalhes (O problema e os esforços par superá-lo)

A súplica do Pedinte

A intervenção de Jesus

O efeito produzido

A reação dos espectadores ou do curado

Relatos de Vocação

Quem chama passa

Quem chama vê

O nome do futuro vocacionado

Relações de parentesco

O futuro vocacionado desenvolve sua atividade costumeira

Dito (no imperativo ou gesto vocacional)

Objeção e resposta

Despojamento

Execução do apelo Vocacional

Controvérsias

A pergunta dos adversários

Uma contra-pergunta de Jesus

A (não-)resposta dos adversários

A contra-resposta (ou a não resposta) de Jesus

139

Tradição da Palavra • Comparações, parábolas, alegorias e fábulas

Tradição da Palavra

Paradigmas ou apoftegmas Paradigmas (Dibelius) ou Apoftegmas (Bultmann) são pequenas histórias que se

concentram em torno de uma ou mais palavras de Jesus. A designação “paradigmas” foi

empregada por Dibelius, por se tratar, segundo ele, de narrativas que originalmente eram

usadas como ilustrações, ou seja exemplos para a pregação nas primeiras comunidades.

Taylor e Bultmann

Taylor designou essas mesmas perícopes de “pronuncement stories”, ou seja, estórias

que giram em torno de um pronunciamento de Jesus.

Bultmann as designou de apotegmata (plural de apofqegma = sentença; em português

– apotegma ou apoftegma), pela sua semelhança com histórias curtas de filósofos ou santos,

que igualmente terminavam em breves sentenças

Pardigmas Puros – Para Dibelius

Mark 12:1 Depois, entrou Jesus a falar-lhes por parábola: Um homem plantou uma

vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um lagar, edificou uma torre, arrendou-a a uns

lavradores e ausentou-se do país. 2 No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para

que recebesse deles dos frutos da vinha; 3 eles, porém, o agarraram, espancaram e o

despacharam vazio. 4 De novo, lhes enviou outro servo, e eles o esbordoaram na cabeça e o

insultaram.

5 Ainda outro lhes mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes enviou, dos quais

espancaram uns e mataram outros. 6 Restava-lhe ainda um, seu filho amado; a este lhes enviou,

por fim, dizendo: Respeitarão a meu filho. 7 Mas os tais lavradores disseram entre si: Este é o

herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e a herança será nossa.

8 E, agarrando-o, mataram-no e o atiraram para fora da vinha. 9 Que fará, pois, o dono

da vinha? Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros. 10 Ainda não lestes

esta Escritura: A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular;

11 isto procede do Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos? 12 E procuravam prendê-lo, mas

temiam o povo; porque compreenderam que contra eles proferira esta parábola. Então,

desistindo, retiraram-se.

Outros exemplos

Marcos 2:18-22

Marcos 2:23-28

Marcos 3:1-6

Marcos 3:31-35

Marcos 10:13-16

Marcos12:13-17

140

Marcos 14:3-9

Temas dos paradigmas ou apoftegmas

Sobre o Jejum

Jesus é o Senhor do Sábado

O homem da mão ressequida

Família de Jesus

Jesus abençoa as crianças

O tributo a César

Unção em Betânia

Pardigmas menos puros (híbridos)

Mark 1:23 Não tardou que aparecesse na sinagoga um homem possesso de espírito

imundo, o qual bradou: 24 Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos?

Bem sei quem és: o Santo de Deus! 25 Mas Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai desse

homem.

26 Então, o espírito imundo, agitando-o violentamente e bradando em alta voz, saiu

dele. 27 Todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si: Que vem a ser isto? Uma nova

doutrina! Com autoridade ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem! 28 Então,

correu célere a fama de Jesus em todas as direções, por toda a circunvizinhança da Galiléia.

Luke 9:51

E aconteceu que, ao se completarem os dias em que devia ele ser assunto ao céu,

manifestou, no semblante, a intrépida resolução de ir para Jerusalém 52 e enviou mensageiros

que o antecedessem. Indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos para lhe preparar

pousada. 53 Mas não o receberam, porque o aspecto dele era de quem, decisivamente, ia para

Jerusalém. 54 Vendo isto, os discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que

mandemos descer fogo do céu para os consumir? 55 Jesus, porém, voltando-se os repreendeu

e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. 56 Pois o Filho do Homem não veio para destruir as

almas dos homens, mas para salvá-las. E seguiram para outra aldeia.

Outros Exemplos

Marcos 2:13-17

Marcos 6:1-6

Marcos10:17-22

Marcos10:32-45

Marcos 10:46-52

Marcos 11:15-19

Marcos 12:18-27

Lucas 14:1-6

Vocação de Levi

Rejeição de Jesus

O jovem rico

O pedido de Tiago e João

Cego de Jericó

141

Purificação do templo

Os saduceus e a Ressurreição

Cura de um hidrópico

Apoftegmas

Bultmann dividiu os Paradigmas ou Apoftegmas em duas categorias:

Controvérsias e Dialogos didáticos

Apresentam Jesus em discussão com outras pessoas.

Oponentes – Controvérsias

Pessoas neutras ou discípulos –Didáticos

Apoftegmas Biográficos

Apresentam dados interessantes sobre a biografia de Jesus, muitas vezes

fornecidas por ele próprio, através de Palavras e ações.

Controvérsias, diálogos e biográficos

A pergunta dos adversários

Uma contra-pergunta de Jesus

A (não-)resposta dos adversários

A contra-resposta (ou a não resposta) de Jesus

Diálogos de Disputas ou Controvérsias

Mark 3:22 Os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele está possesso de

Belzebu. E: É pelo maioral dos demônios que expele os demônios. 23 Então, convocando-os

Jesus, lhes disse, por meio de parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? 24 Se um reino

estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; 25 se uma casa estiver dividida

contra si mesma, tal casa não poderá subsistir.

26 Se, pois, Satanás se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir, mas

perece. 27 Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem primeiro

amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa. 28 Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos

filhos dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. 29 Mas aquele que blasfemar

contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno. 30 Isto,

porque diziam: Está possesso de um espírito imundo.

Outros Exemplos

Mc 2:1-12

Mc 2:15-17

Mc 2:18-22

Mc 2:23-28

Mc 3:1-6

Mc 3:22-30

Mc 7: 1-23

Mc 10:2-12

Mc 11: 27-33

Mc 12:13-17

142

Mc 12:18-27

Lc 7:36-50

Lc 13:10-17

Lc 14:1-6

Diálogos didáticos

Mark 11:20 E, passando eles pela manhã, viram que a figueira secara desde a raiz. 21

Então, Pedro, lembrando-se, falou: Mestre, eis que a figueira que amaldiçoaste secou. 22 Ao

que Jesus lhes disse: Tende fé em Deus; 23 porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser

a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração, mas crer que se fará o

que diz, assim será com ele. 24 Por isso, vos digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede

que recebestes, e será assim convosco. 25 E, quando estiverdes orando, se tendes alguma coisa

contra alguém, perdoai, para que vosso Pai celestial vos perdoe as vossas ofensas.

Outros exemplos

Mc 9:38-40

Mc 10:17-31

Mc 10:35-45

Mc 11:20-25

Mc 12:28-34

Lc 7:18-23/Mt 11:2-6

Lc 9:51-56

Lc 12:13-14

Lc 13:1-5

Lc 17:20-21

Apoftegmas Biográficos

Mark 6:1 Tendo Jesus partido dali, foi para a sua terra, e os seus discípulos o

acompanharam. 2 Chegando o sábado, passou a ensinar na sinagoga; e muitos, ouvindo-o, se

maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas coisas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada?

E como se fazem tais maravilhas por suas mãos?

3 Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E não

vivem aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se nele. 4 Jesus, porém, lhes disse: Não há

profeta sem honra, senão na sua terra, entre os seus parentes e na sua casa. 5 Não pôde fazer

ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. 6 Admirou-se da

incredulidade deles. Contudo, percorria as aldeias circunvizinhas, a ensinar.

Outros Exemplos

Mc 1:16-20

Mc 3:20; 31-35

Mc 6:1-6

Mc 7:24-32

Mc 10:13-16

143

Mc 11:15-19

Mc 12:41-44

Mc 14: 3-9

Lc 7:1-10/ Mt 8:5-13

Lc 9:57-62/ Mt 8:19-22

Lc 10:38:-42

Lc 13:31-33

Lc 17:11-19

Lc 19:1-10

Lc 19:39s/Mt 21:15s

Lc 23:27-31

Mt 17:24-27

Dibelius e Bultmann apresentam os traços formais dos Paradigmas.

Uma ação ou comportamento de Jesus ou dos discípulos provoca uma pergunta

indignada dos adversários.

Textos compactos, breves e auto-suficientes – originalmente eram autônomos.

Parte Narrativa sóbria. Não dão detalhes sobre o local, tempo, situação. Pessoas

descritas sem detalhes.

O Objetivo principal é realçar um dito ou pronunciamento de Jesus

O estilo é “Religioso edificante“

Há no final um destaque para um pensamento ou ação específica aproveitável para

prédicas, seja através do dito de Jesus, de uma ação exemplar sua ou do louvor prestado pela

multidão diante da ação praticada.

144

Refere ncias Bibliogra ficas

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RODRIGUES, Maria Paula. Palavra de Deus, palavra da gente: as formas

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