23
O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4 Cadernos PDE VOLUME I

DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE

VOLU

ME I

Page 2: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

1

A INCLUSÃO DA LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

NA DISCIPLINA DE LÍNGUA PORTUGUESA

Autora: Rosilene Dias Batista1

Orientadora: Viviane Araújo Alves da Costa Pereira2

Resumo

Este artigo científico é o resultado de um trabalho de pesquisa que visou à construção de um projeto de intervenção voltado à aprendizagem, no intuito de amenizar os entraves e dificuldades em se trabalhar a literatura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e particulares, visto que a Lei 10.639/03 estabelece que seja obrigatória a aplicabilidade desta temática, principalmente nas disciplinas de Artes, História e Língua Portuguesa. Tocados pelo desejo de transformar a sociedade a que pertencemos, conscientes de nossos deveres de cidadãos transformadores e mediadores do saber, encontramos na Disciplina de Língua Portuguesa e suas práticas discursivas: oralidade, leitura, escrita e produção de textos, bem como na diversidade dos gêneros textuais, principalmente no universo literário, uma das formas de concretização do conhecimento do universo cultural africano e afro-brasileiro, através do contato com contos e lendas dentro desse horizonte espacial, e assim, ressaltar a sua importância na formação cultural, social e étnico-racial brasileira. Ao aproximar o leitor do universo dos contos e lendas africanas e afro-brasileiras, surgiu a oportunidade de valorização da nossa história, a integração do indivíduo, e subsídios para o rompimento de barreiras que foram criadas pela própria sociedade. Ao conhecer e inteirar-se com histórias e costumes deste povo tão valente, o que era obscuro para muitos educandos tornou-se claro e, desta forma, revigorou-se o respeito pelo povo africano e pelos afrodescendentes. Movidos pelo sonho de transformar nossa sociedade e concretizar o desejo de igualdade de direitos e deveres, bem como a consciência do exercício de nossos valores, de modo que a diversidade cultural, social e étnico-racial seja respeitada, desenvolvemos este projeto, que enfatizou a importância de se conhecer o universo mágico destas narrativas e a sua importância como expressão deste povo, e também a utilidade da literatura como instrumento permeador entre o saber popular e o saber histórico.

Palavras- chave: Inclusão; Literatura africana e afro-brasileira; Leitura; Ética;

Cidadania.

1 Pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura, Graduada em Letras (Língua Portuguesa,

Literaturas Portuguesa e Brasileira, Língua Francesa) pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho - Paraná, atual UENP. Professora da E. E Castro Alves. EF. MUN. Pinhalão NRE Ibaiti (2010). Removida em 2011 para C. E. “29 de abril” EFM. Mun. Guaratuba, NRE Paranaguá.

2 Professora Mestre da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus Jacarezinho,

na área de Literatura.

Page 3: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

2

1 INTRODUÇÃO

Em plena contemporaneidade, mesmo com tantos avanços e conquistas,

ainda existem vários sonhos que o ser humano deseja realizar, principalmente

quando se trata de buscar soluções para problemas que atingem a maioria dos

países. Um dos maiores desafios encontrados pelos nossos governantes é a difícil

tarefa de melhorar a educação brasileira, principalmente no Ensino Fundamental,

que é a chave para se decifrar o enigma do fracasso escolar, e das médias pouco

satisfatórias atingidas nas avaliações para se medir o índice de desenvolvimento

educacional.

Ao fazer parte do PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional), turma

2009, surgiu a oportunidade de desenvolver um estudo sobre a leitura, e que

envolvesse como tema o fantástico universo das narrativas africanas e afro-

brasileiras, bem como a concretização da Lei 10.639/03.

Este artigo científico é o resultado desse trabalho de pesquisa que teve

como objetivo principal a construção de um projeto de intervenção da aprendizagem,

no intuito de amenizar os entraves e as dificuldades em se trabalhar a literatura

africana e afro-brasileira nas escolas públicas e particulares, visto que a Lei

10.639/03 estabelece que seja obrigatória a aplicabilidade desta temática,

principalmente nas disciplinas de Artes, História e Língua Portuguesa. Sendo este

assunto de pouco conhecimento por parte dos educadores e por despertar opiniões

diversas entre professores, alunos e comunidade; por ofertar caminhos que possam

contribuir no combate ao racismo e ao preconceito, e ainda por reabrir velhas feridas

na alma e expor um dos maiores problemas enfrentados na educação, por ser a

escola o local de maior manifestação de discriminação explícita ou não, buscamos

estudar a referida Lei e desenvolver materiais de apoio para o trabalho do professor

na implementação da mesma. Fazer valer o que é estabelecido pelas normas é

sempre um ato que exige total dedicação, pois desencadeamos efeitos e

consequências, e devemos estar preparados para enfrentar os frutos colhidos,

sendo estes positivos ou negativos, de maneira que se possa atingir os objetivos

propostos sem a necessidade de ferir sentimentos, mas com a devida segurança em

ultrapassar barreiras, transformar velhos conceitos e renovar concepções.

A literatura é considerada uma das mais belas artes, é através desta que a

Page 4: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

3

palavra se manifesta, aflora a criatividade, a magia, a originalidade, a paixão, a

evolução e os costumes histórico-culturais do ser humano, que imbuído de suas

capacidades intelectuais e naturais, vive em busca de conhecer a si mesmo, sua

origem e sua evolução, em uma explosão de sentimentos ocultos ou explícitos, o

que permite a interação entre os povos e épocas, o que torna possível instigar a

sede de conhecer o universo a que pertence.

Trabalhar com a literatura não é tarefa de fácil aceitação, uma vez que

literatura está ligada à leitura, e esta última desperta no indivíduo reações de gosto

ou aversão, e dependendo da receptividade, o desânimo pode tocar o âmago do

educador e o mesmo desistir de incentivar o ato de ler.

A rejeição à leitura é causada por vários fatores, muitas vezes

desconhecidos pelo próprio educador, que no intuito de alcançar os objetivos

propostos, poderá aumentar ainda mais este sentimento no aluno. Cabe ao

professor incentivar o ato da leitura e não impor esta prática como forma de

mensuração. Ler deve ser um ato prazeroso, e o leitor deve perceber que o mundo

literário não é imóvel e que está presente em todos os momentos de nossas vidas

como algo vivo e transformador.

Tocados pelo desejo de transformar a sociedade de que participamos e

conscientes de nossos deveres de cidadãos transformadores e mediadores do

saber, encontramos na Disciplina de Língua Portuguesa e suas práticas discursivas:

oralidade, leitura, escrita e produção de textos, bem como na diversidade dos

gêneros textuais, principalmente no universo literário real ou imaginário, uma das

formas de concretização do conhecimento do universo cultural africano e afro-

brasileiro, através do trabalho com contos e lendas deste horizonte espacial, e

assim, ressaltar a sua importância na formação cultural, social e étnico-racial

brasileira.

Ao aproximar o leitor do universo que aborda a temática das narrativas

africanas, surgiu a oportunidade de valorização da nossa história, a integração do

indivíduo, e subsídios para romper barreiras que foram criadas pela própria

sociedade. Ao conhecer e entrar em contato com histórias e costumes deste povo

tão valente, o que era obscuro para muitos educandos tornou-se claro e, desta

forma, revigorou-se o respeito pelo povo africano e pelos afrodescendentes. Assim,

percebemos que, a partir do momento em que conhecemos o outro, também

conhecemos a nós mesmos.

Page 5: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

4

Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa,

apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas, recebidas

e construídas. Baseados nessa construção do conhecimento, desenvolvemos a

pesquisa que nos propiciou material para este artigo.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Movidos pelo sonho de transformar nossa sociedade e concretizar o desejo

de igualdade de direitos e deveres, bem como a consciência do exercício de nossos

valores, de modo que a diversidade cultural, social e étnico-racial seja respeitada,

desenvolvemos este trabalho, que visou ressaltar a importância de se conhecer a

Literatura Africana e Afro-Brasileira, e a magia de seus contos e lendas, como

instrumento permeador entre o saber popular e o saber histórico.

A Lei Federal nº 10.639/03 de 09 de janeiro de 2003 determina que o ensino

da Cultura Africana e Afro-Brasileira seja incluído no currículo das Escolas Públicas

e Particulares em todo território brasileiro. Embora a Lei já exista há 08 (oito) anos,

os materiais ainda são desconhecidos por muitos educadores, o que se torna um

problema para que se faça cumpri-la. Ao realizarmos o projeto, procuramos

colaborar com a aplicabilidade da mesma, e ainda oferecemos subsídios àqueles

que se mostraram preocupados em exercer o que se está exposto nas Diretrizes do

Ensino de Língua Portuguesa e Literatura.

Ao elaborarmos uma prática pedagógica diferenciada, traçamos os objetivos

de elevar a autoestima do aluno negro, recuperar o orgulho de sua negritude,

oportunizamos o reconhecer de sua identidade histórica e a valorização das etnias e

respeito à cultura e diversidade social.

O ensino da Língua Portuguesa tem sido foco para muitos questionamentos,

pois trata-se de uma disciplina que envolve questões raciais, sociais e político-

culturais e ainda, por ter como principal objetivo o trabalho com o discurso como

prática social, abrange os conteúdos básicos de leitura, escrita e oralidade.

Page 6: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

5

Com a finalidade de angariar meios para estabelecer caminhos que

oportunizassem a abordagem dos problemas encontrados na prática da leitura e

ainda buscar a concretização deste trabalho, ressaltamos os seguintes problemas

para serem analisados e solucionados no decorrer do projeto:

De que maneira poderíamos tornar possível a abordagem dos contos e

lendas africanas e afro-brasileiras na segunda fase do ensino fundamental?

Que fatores e ações poderiam ser desenvolvidos ao abordarmos as narrativas

que retratam o misticismo e os mitos da África?

Qual o relacionamento dos alunos, principalmente os afrodescendentes, com

os textos literários africanos e os textos de narrativa popular apresentados no

ambiente escolar?

Ao descobrir-se leitor, quais ações poderiam ser desenvolvidas para que o

aluno construa seus conceitos, sua identidade e valorização das culturas e

etnias que contribuíram para a formação da cultura brasileira?

No decorrer do projeto, nos foi possível obter resultados positivos durante a

sua efetivação, bem como a concretização dos objetivos propostos. Dentre estes,

merece destaque o objetivo geral de despertar a consciência dos valores humanos e

o desejo de formar uma sociedade igualitária, ao ressaltar a importância de se

conhecer a literatura africana e afro-brasileira e a influência de suas raízes na

formação da cultura de nosso país, pois se permitiu a aproximação entre o saber

popular e o saber histórico, através das obras literárias de autores africanos e de

contos e lendas narradas de geração a geração.

Entendemos que o conhecimento é múltiplo e evolui rapidamente, sendo

necessário ao indivíduo aprender a conhecer sua própria história, a evolução e as

transformações, de modo a confirmar a teoria de que não conhecemos tudo, é

preciso sempre inovar o conhecimento, interligando o “aprender a fazer” ao

“aprender a conhecer” e, consequentemente, ao “aprender a ser”. Ao concretizarmos

a interligação entre os aprenderes, torna-se possível o viver junto com os outros,

com suas culturas. Desta forma, estabelecemos um processo de conhecimento, que

se inicia quando o indivíduo conhece a si mesmo para em seguida conhecer o seu

próximo. Neste momento inicia-se a interação entre os indivíduos, indivíduos estes

que percebem seus conceitos, sua cultura e seus ideais, respeitam seu espaço e o

espaço do outro.

Page 7: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

6

Como nos afirma Demerval Saviani (1999):

[…] o movimento que vai da síncrese (“a visão caótica do todo”) à síntese (“uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”) pela mediação da análise (“as abstrações e determinações mais simples”) constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de transmissão-assimilação de conhecimentos (o método de ensino). (SAVIANI, 1999, p. 83).

Segundo Saviani (1999), o professor e os alunos deverão buscar o

conhecimento teórico, refletir sobre sua prática no cotidiano, compreender a sua

totalidade social e histórica e aproximação aos fatos, ações e situações específicas

da realidade dos alunos. Assim, poderá se concretizar a aprendizagem, a partir do

conhecimento que já possuía, e transformar o que lhe era abstrato em concreto.

Quando se parte do conhecimento trazido pelo aluno, torna-se mais acessível

estabelecer conceitos, possibilitar a assimilação e consequentemente promover a

aprendizagem.

Ao estabelecermos comparações entre as teorias estudadas, foi possível

observar a existência de um diálogo entre os teóricos Saviani (1999) e Vygotsky

(2001 – sobretudo a Teoria do Pensamento, Linguagem e Desenvolvimento

Intelectual), que relata que o indivíduo constrói seu pensamento pautado na sua

história de vida, na sociedade e comunidade de convívio, isto quer dizer que a

história particular de cada um e a sociedade a que pertence é que determinam a

forma de pensar. Seus conceitos são construídos conforme o ambiente em que vive

e podem ser transformados ao longo do processo da aprendizagem e do

conhecimento, ou seja, o indivíduo se molda de acordo com seu ambiente de

convívio, época de vivência e contexto que se encontra.

Vygotsky (2001) aponta que o aprendizado humano é de natureza social e é

parte de um processo em que a criança desenvolve seu intelecto baseado na

intelectualidade daqueles que a cercam. Só haverá aprendizado se a criança

interagir em seu ambiente de convívio e sua história pessoal. Somos seres em

constante evolução, portanto o aprender é um processo em contínuo

desenvolvimento como um círculo em que o educando pode ir e vir, apropriando-se

do conhecimento e construindo novos conceitos.

É nesse sentido que o educador parte do saber, do conhecimento que o

Page 8: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

7

educando já possui, para que assim lhe apresente o conteúdo novo. É o que nos

afirma Vygotsky:

Em essência a escola nunca começa no vazio. Toda a aprendizagem com que a criança depara na escola sempre tem uma pré-história. Por exemplo, a criança começa a estudar aritmética na escola. Entretanto, muito antes de ingressar na escola ela já tem certa experiência no que se refere à quantidade: já teve oportunidade de realizar essa ou aquela operação, de dividir, de determinar a grandeza, de somar e diminuir […] a aprendizagem escolar nunca começa no vazio, mas sempre se baseia em determinado estágio de desenvolvimento, percorrido pela criança antes de ingressar na escola. (VYGOTSKY, 2001, p. 476).

O educador deve partir da ação que possibilite ao educando o saber fazer

para o que ainda não se sabe realizar, instigando-o a buscar o conhecimento

científico para se construir a aprendizagem. O professor e o ensino são

fundamentais entre a aprendizagem escolar e o desenvolvimento intelectual do

aluno neste processo. Desta forma, para Vygotsky:

[…] a aprendizagem é um momento interiormente indispensável e universal no processo de desenvolvimento de peculiaridades não naturais mas históricas do homem na criança. Toda a aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que suscita para a vida uma série de processos que, sem ela, absolutamente não poderiam surgir (VYGOTSKY, 2001, p. 484 ).

As teorias de Vygotsky (2001) sobre a aprendizagem relacionam-se às

teorias discorridas por Bakhtin(1997) em se tratando dos gêneros do discurso.

Para Bakhtin (1997), o sujeito é um ser inacabado e existe a partir do diálogo

com o outro. Segundo sua teoria, o indivíduo necessita de um grupo social, de uma

classe social para ascender a uma realidade histórica e a uma produtividade cultural.

O homem se reconhece, interage, compreende de acordo com a realidade que

convive, participando da sociedade, utilizando a língua, seus enunciados concretos e

únicos, na construção do conhecimento. Nesse sentido, o teórico afirma que

“qualquer enunciado considerado isolado, é claro, individual, mas cada esfera de

utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo

isso que denominamos gêneros do discurso” (1997, p. 279).

Na visão bakhtiniana, os enunciados podem estar separados no tempo e no

espaço, porém se confrontados no plano de sentido, revelarão relações dialógicas.

Isto quer dizer que mesmo que o enunciado não seja pertencente ao tempo e

espaço do leitor, porém se o leitor tiver conhecimento do discurso, então se

Page 9: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

8

estabelecerá o diálogo. O discurso é o resultado da interação oral ou escrita entre

sujeitos, podendo pertencer ou não ao mesmo tempo e espaço. “É a língua em sua

integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 1997, p. 181).

Ao ensinar a Língua Portuguesa e Literatura, o professor deve ter

consciência das diferenças e contradições que envolvem a contemporaneidade e ter

em mente o que se quer atingir. Há um horizonte em constante mudança, uma vez

que se trata de uma língua viva, e cabe ao educador buscar meios de viabilizar ao

aluno os caminhos para se seguir esse horizonte.

As Diretrizes Curriculares propostas pela Rede Pública de Educação Básica

do Estado do Paraná buscam caminhos que proporcionem um ensino dinâmico, por

meio de um processo dialógico de interação verbal, social e histórica, a fim de se

promover o conhecimento.

Faraco (2003) menciona que para que haja relações dialógicas, é preciso

que qualquer material linguístico tenha entrado na esfera do discurso transformado

num enunciado e tenha fixado a posição de um sujeito social, que se fará acolher à

palavra do outro, e buscar a ampliação dos horizontes.

Ao se produzir um texto, o autor pode ter uma intenção totalmente diferente

da interpretação ou expectativa do leitor. Ao se entrelaçar os fios, o leitor poderá

descobrir vários significados, independente do que o autor pretendeu. E então,

quando acontece essa interação é que se realiza verdadeiramente o discurso, uma

vez que um livro não é produzido para apenas um leitor, e sim para que se

estabeleça inúmeros diálogos com diferentes tipos de leitor.

De acordo com a concepção bakhtiniana (1997)

Se nós imaginarmos a intenção de uma tal palavra, isto é, sua direcionalidade para o objeto, na forma de um raio de luz, então o jogo vivo e irrepetível de cores e luz nas faces da imagem que ele constrói pode ser explicado como a dispersão espectral da palavra – raio, não no interior do objeto em si […], mas numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor e acentos através da qual o raio passa em seu caminho em direção ao objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca o objeto, faz as faces da imagem cintilar. (BAKHTIN, 1997, p. 277 apud FARACO, 2003, p. 50).

É nesse sentido que ocorre a interação entre texto e leitores, entre o diálogo

e as concepções de ideais, a partir desta prática é que se dá o processo do

conhecimento, a construção da linguagem, dos conceitos e do saber propriamente

Page 10: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

9

dito, como um conjunto de luzes que reproduzem inúmeras cores, cintila entre os

falares, ilumina o outro e reflete no próprio ponto de partida, fazendo-se

compreendida e transmitida.

Pode-se entender que a linguagem é um fenômeno, ela é viva, repleta de luz

e se potencializa principalmente na escola. Portanto, Literatura e Linguagem

caminham juntas, revelam a magia do pensamento humano, suas experiências

verídicas ou não, seus sentimentos e sonhos. Ler, escrever e produzir textos são

partes fundamentais na construção da formação do indivíduo, como um tecido feito

do mais puro fio, o fio do conhecimento. Fio a fio, ponto a ponto, os valores sociais

são entrelaçados, e constituem um amplo caminho na jornada do saber. O que

propicia um labor feito da mais fina expressão da palavra, que irradia beleza e

encanto, seduz, conquista, envereda o leitor em sua amplitude, em seus mistérios.

Bakhtin (1997) deixa registrado que “não há uma palavra que seja a primeira

ou a última e não há limite para o contexto dialógico (ele se estira para um passado

e um futuro ilimitado)”. Como somos participantes do fenômeno da linguagem, é

preciso que percebamos os reflexos causadores da palavra e o que a mesma

poderá ocasionar. Uma vez que ao exercermos a missão de educadores, temos a

incumbência de “viver” o diálogo, refletir nossas teorias e receber novos conceitos, e

assim estabelecer a interação do diálogo, perceber o outro, para que só assim

possamos ser nós mesmos, sem negar a existência de um outro, de modo que se

permita conhecer e respeitar seus valores, seus direitos e responsabilidades. E

assim, entender o passado, o presente e direcionar um novo olhar para o futuro.

Segundo Magda Soares (2002), a entrada da pessoa no mundo da escrita

acontece pelo ato de ler e escrever, porém o aluno precisa saber fazer uso e

envolver-se nas atividades de leitura e escrita. Dá-se então o letramento, portanto, o

professor é interlocutor no encontro leitor e livro. Cabe ao professor ser convicto do

valor da leitura, tendo na mesma uma ferramenta para o aprendizado, para que o

aluno possa inserir-se neste caminho e em suas diversas interpretações.

[…] recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder as exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente. (SOARES, 2002, p. 20)

Page 11: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

10

A literatura é uma arte, e como tal é envolvente, e o estímulo maior para a

motivação do aluno deve vir do professor, que ofertará caminhos para que o

estudante se aproxime deste universo.

Ao lermos as afirmações de Jouve (2002) sobre o ato da leitura, as teorias

da recepção e os problemas encontrados no trabalho com esta prática, observamos

que há múltiplas formas de se ler um texto, e que a dimensão alcançada pelo texto e

leitor depende da receptividade, do contexto, da época, enfim, de vários fatores

vivenciados no ato da leitura, onde se percebe dois caminhos distintos: a estética da

recepção de Jauss (1970) e a teoria do leitor implícito de Iser (1976). Segundo

Jouve (2002), a estética da recepção parte do princípio de que a obra só sobreviverá

por meio de um público que interage com os acontecimentos e deve ser analisada

pelo impacto sobre a sociedade a que o indivíduo pertence. Já a teoria de Iser

(1976) parte do princípio de que o leitor é implícito, ou seja, a obra atinge o leitor de

modo individual, particular, o texto é que dirige o leitor, o indivíduo reage no plano

que a obra impõe.

Umberto Eco (apud JOUVE, 2002, p.76) diz que “o texto é uma engrenagem

preguiçosa que espera muita colaboração do leitor”. Para que haja interação e

cumplicidade entre autor e leitor, é preciso que o texto forneça condições para poder

confrontá-lo, surpreendê-lo ou simplesmente interessá-lo. O professor deve

estimular a ampliação dos horizontes do texto, lançar mão de estratégias que

permitam ao aluno tornar-se coautor da obra, estabelecendo um diálogo entre autor

e leitor, confrontando a obra com sua história de vida, reconstruindo o texto a partir

das próprias experiências, levando o leitor a questionar e procurar respostas para os

seus próprios questionamentos. A abordagem de Eco, segundo Jouve (2002), está

muito próxima da teoria de Iser, que nos apresenta um leitor cooperante com autor,

na maneira como o texto programa a sua recepção e os caminhos que o leitor deve

percorrer. Tais relatos direcionam a diversas teorias e nos mostra que na abordagem

contemporânea o universo autor e leitor depende do individual de cada ledor e da

doação do mesmo como comparsa da obra lida.

Segundo os estudos linguísticos da atualidade, a linguagem influenciou na

caracterização do texto, pois o diálogo acontecerá de acordo com o conhecimento e

universo de cada leitor. Portanto, o leitor é o elo fundamental no processo da leitura,

ou seja, o mais importante elemento da Estética da Recepção, que tem como

principal objetivo recuperar a experiência de leitura e apresentá-la como base para

Page 12: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

11

se pensar o fenômeno literário e a própria história.

O método recepcional “defende a ideia do relativismo histórico e cultural, já

que está ligado a mutabilidade dos objetos bem como da obra literária, dentro do

processo histórico” (FOKKEMA; KUNNE-IBISH, 1977, p. 138 apud AGUIAR;

BORDINI, 1993, p. 81).

A teoria da Estética da Recepção é concebida pelos teóricos alemães da

Escola de Constança. A noção de concretização é derivada dos trabalhos do polonês

Roman Ingarden, década de 30, e do tcheco Félix Vodicka, década de 40. Para

Ingarden, “a obra literária é uma estrutura linguístico-imaginária, em que o ato de

criação ou da leitura atualizam o trabalho artístico do criador em objeto estético do

leitor”. Para Vodicka, a obra “é um signo estético dirigido ao leitor, o que exige a

reconstituição histórica do leitor para se entender sua concretização” (apud AGUIAR;

BORDINI, 1993, p. 82). Por isso, um texto se modificaria segundo a sociedade que a

avaliasse naquele momento. O sentido da obra varia de acordo com o tempo e o

espaço que pertence o leitor.

Hans Robert Jauss (1971) na historiografia literária contemporânea baseada

na Estética da Recepção, “compreende que a qualidade de uma obra literária

depende dos critérios de recepção, do momento e da interpretação do leitor e da

sociedade a qual pertence”.

A Estética da Recepção tem como objetivo ampliar o horizonte de

expectativas de um leitor quando este confronta uma obra que está lendo com sua

memória de leitura. Ao comparar um texto com outros já lidos, o leitor estará em

busca de um significado histórico, aproximando o universo da obra literária ao seu

conhecimento adquirido, havendo assim a ligação entre leitor e texto, o que constitui,

portanto, interação no processo da leitura.

Na consideração deste princípio, buscamos colocar em prática a Estética da

Recepção, por ser um excelente respaldo para o professor trabalhar a leitura em

sala de aula e também pelo fato de ser objeto de estudo de vários pesquisadores do

assunto. Pensar a leitura em sala de aula é valorizar o conhecimento histórico e

social do aluno, aproveitando sua visão de mundo para ampliar os conhecimentos e

interpretação do texto, possibilitando a interação entre leitor e texto. Jouve (2002)

afirma que “a leitura, longe de ser uma recepção passiva, apresenta-se como uma

interação produtiva entre o texto e o leitor”. Sendo assim, um texto estruturalmente

incompleto necessita da colaboração do leitor, que é levado a completar o texto, de

Page 13: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

12

acordo com o tempo, o espaço, as ações, a simbologia e a significação da obra.

A leitura interage com o momento vivido pelo leitor, bem como seu

conhecimento, sua formação e a sociedade em que convive. É o que nos afirma

Thérien (1990):

O sentido no contexto de cada leitura é valorizado perante os outros objetos do mundo com os quais o leitor tem uma relação. O sentido fixa-se no plano imaginário de cada um, mas encontra, em virtude do caráter forçosamente coletivo de sua formação, outros imaginários existentes, aquele que divide com os outros membros de seu grupo ou de sua sociedade. (THÉRIEN, 1990, p. 10 apud JOUVE, 2002, p. 22).

Ao interagir com o imaginário do leitor, a recepção passa a ser ativa, adquire

um novo valor na narrativa, insere-se no espaço e tempo vivenciado pelo leitor.

Ao viver um texto, o leitor pode transpor para sua experiência de vida as

situações encontradas na narrativa, e desta forma, imagina como a personagem da

obra lida, agiria em uma situação semelhante, consolidando a passagem do texto

para a realidade.

É a influência, o impacto da leitura na vida do leitor e os conceitos

estabelecidos, pois, de acordo com Jouve (2002), “o que a maioria dos leitores

busca não é apenas uma experiência desestabilizante, mas, ao contrário, uma

confirmação daquilo em que eles acreditam, daquilo que sabem e esperam”.

2.2 RELATO DE EXPERIÊNCIA

Durante o período de realização do GTR (Grupo de Trabalho em Rede) foi

possível estabelecer a troca de experiências, dialogar, refletir e debater com os

participantes sobre as temáticas abordadas nos textos para leitura e reflexão e

também ouvir as opiniões sobre o projeto de intervenção pedagógica. Nas unidades

trabalhadas, percebemos que todos os envolvidos na Educação têm consciência da

importância da leitura para a formação do homem, que é um ser movido pela

realidade, mas também seduzido pelo imaginário e irreal, em uma fantástica junção.

Ler é humanizar-se, e pensar na literatura como ato de humanização é concretizar o

conceito de que esta é uma arte que valoriza, dialoga, conceitua, transforma e

Page 14: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

13

reescreve a história do indivíduo.

Segundo as análises realizadas pelos participantes do GTR, o projeto de

intervenção e o material pedagógico apresentado como unidade didática atenderam

as expectativas do aluno/leitor, permeando a interação, a transformação de velhos e

novos conceitos, a fim de direcionar o indivíduo a conhecer e reconhecer a sua

identidade, e a perceber o outro não meramente como alguém de significância

medíocre e sim como um ser extremamente importante, necessário e transformador

da sociedade em que convive.

Ao possibilitarmos o trabalho com os contos e lendas africanas durante a

aplicação do projeto, percebemos que houve uma mudança significativa na maneira

de se pensar a implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteram a

Lei nº 9.394/96 de Diretrizes e Bases, e estabelece a obrigatoriedade da temática

História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares. Embora ainda

haja pouco conhecimento por parte dos educadores em relação a este rico universo

literário, muitos buscam se inteirar sobre o assunto através de grupos de estudos e

cursos de capacitação e aperfeiçoamento, e desta forma empenham-se para fazer

valer as referidas leis. Não se trata mais de um assunto desconhecido, porém ainda

é tema de muitos questionamentos, principalmente pelo fato de reabrir “velhas

feridas” e inovar conceitos ultrapassados.

Notamos também, que muitas vezes o próprio aluno recusa assumir sua

identidade e aceita a discriminação como um fato inevitável, reagindo de forma

negativa às atividades propostas. Sobre este fato, estabeleceu-se a concretização

das palavras de Munanga (1999):

A identidade é para os indivíduos a fonte de sentido e experiência onde se faz necessário que a escola busque o conhecimento da história dos afro-brasileiros. Ressaltando ainda que negar qualquer etnia, além de esconder uma parte da história, leva os indivíduos à sua negação. (MUNANGA apud SEED. PR, 2006, p.18 )

Para evitar ser assombrado pela discriminação implícita ou explícita, o aluno

nega sua identidade, evita participar de atividades que coloquem sua imagem à

mostra, recolhe-se ao seu espaço, com medo de sobressair-se aos outros, anula-se

e aceita humildemente os insultos. Essa postura torna-se inaceitável, visto que

grande parte da formação de nosso país se deve à influência e cultura do povo

Page 15: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

14

africano, que com sua sapiência, costumes e conhecimentos, colaboraram para que

esta terra seja considerada até hoje como a mais bela de todas, rica em cores,

sabores, odores, sons e mistura de tradições.

Ao entrarem em contato com o relato de histórias africanas, houve a

possibilidade do renascimento da contação de histórias, prática que despertou

curiosidade e grande aceitação por parte dos educandos, que muitas vezes foram

privados deste ato, pelo fato da “falta de tempo” dos pais ou responsáveis, que

inocentemente acreditam ser uma prática ultrapassada e sem valor de aprendizado.

Estamos em constante transformação e necessitamos perpetuar nossas

histórias no tempo, levá-las para outras gerações e povos, seja de forma escrita ou

de forma oral.

Como nos afirma Rosário (1989), “ao ler ou ouvir uma narrativa, o indivíduo

estará apto a compreender que os conflitos apresentados podem aproximar-se de

seu próprio universo, levando-o a refletir sobre situações por ele vividas”. Ao

defrontarem o real com o imaginário, os alunos reconheceram muitas experiências

vivenciadas por eles, semelhantes as narrativas lidas e também puderam

estabelecer comparações a outros personagens de narrativas de outros povos e

culturas, principalmente quando falamos dos heróis das narrativas africanas.

Estabeleceu-se ainda a comparação entre os heróis das epopeias gregas, das

histórias em quadrinhos, dos filmes e até mesmo os heróis populares, presentes nas

aventuras do nosso cotidiano.

A pesquisadora Angela Kleiman (2007) enfatiza que a leitura é fundamental

na aprendizagem da criança, principalmente para apropriar-se da escrita. Porém

para que haja essa interação, é necessário que o infante tenha um conhecimento

prévio que possa utilizar frente ao conhecimento que lhe será apresentado. Os

conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo são ativados na realização da

leitura, ou da contação de histórias.

Segundo Kleiman ( 2007):

A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto [...]. Pode-se dizer com segurança que sem o conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. (KLEIMAN, 2007, p.13)

Page 16: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

15

No momento em que apresentamos as narrativas orais e escritas aos

alunos, notamos grande interesse e vivacidade dos mesmos. A mistura do real e do

imaginário, das criaturas míticas em meio aos seres reais, seduziram os leitores,

teceram-se luzes de encantamento, e no âmago de seus pensamentos, surgiram

dúvidas, incertezas, soluções e surpresas, que amortecidas pelo tempo ressurgiram

como se procurassem alimento para a alma. A partir do contato com a diversidade

de narrativas, principalmente as que abordaram temas como a criação do mundo,

suas crenças, mitos, seus costumes alimentares, sua cultura e principalmente a

relação homem e natureza, houve possibilidade de compreensão e rompimento de

críticas, inverdades e tabus criados em relação ao povo africano.

Ao realizarmos estas práticas, confirmamos que a leitura não é um mero

passar de olhos, e sim um ato que implica ler nas entrelinhas, é uma busca por parte

do leitor, do seu passado, de informações retidas na memória, a fim de que se possa

entender as pistas fornecidas pelo texto e consequentemente ativar os novos

conhecimentos, estabelecendo, portanto, uma relação de cumplicidade entre leitor e

escritor, narrador e ouvinte.

Ao desenvolvermos o estudo teórico, a produção e a implementação do

projeto, não poderíamos abandonar uma prática ligada à leitura, escrita e oralidade,

que é o trabalho com a dramatização. O teatro é uma das formas mais prazerosas

de se trabalhar com a criatividade e a imaginação, além de tornar o ser humano

mais ativo e perceptivo as sensações e emoções.

Segundo Boal (2002):

o teatro ou teatralidade é a capacidade ou propriedade humana que permite que o sujeito observe a si mesmo […]. “O ser humano pode ver-se no ato de ver, de agir, de pensar. Ele pode se sentir sentindo, e se pensar pensando” (BOAL apud THOMAZ, on line).

Encontramos nesta arte mais uma oportunidade de olhar para nossa própria

história e para nós mesmos, entender que o ser humano é surpreendente e que

cada ser é único, com características particulares e múltiplas inteligências. Com esta

prática tivemos a oportunidade de despertar as particularidades de cada indivíduo,

observar seu potencial e colaborar para que viesse à tona toda sua capacidade

criativa, muitas vezes ocultada pela timidez ou receio de ser alvo de críticas

Page 17: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

16

destrutivas.

Durante a realização das atividades que permitiram a prática da

dramatização possibilitamos que o aluno conhecesse a si mesmo, e desta forma

percebesse o outro. No ensejo, trabalhamos com a valorização do próximo, o

respeito às diversidades, conceitos, culturas, crenças e costumes, e ainda

promovemos a interação e o diálogo, o que colaborou para amenizar preconceitos

incutidos pelo tempo, medos, anseios e barreiras.

Para implementarmos o referido projeto, adotamos procedimentos

metodológicos que favoreceram caminhos para a exploração do método recepcional

e na oportunidade abordamos cinco eixos: leitura, oralidade, escrita, produção

textual e dramatização. Dividimos as práticas em 05 (cinco) momentos:

1. Determinação do Horizonte de Expectativas

Levamos para a sala de aula alguns livros que continham lendas e contos de

diversos autores e épocas, os quais abordaram a temática da criação do mundo.

Houve interesse pela maioria, mas como já tínhamos previsto, os que mais

chamaram atenção foram os que abrangeram as lendas africanas, talvez pelo fato

desta última Copa do Mundo ter sido na África, o que favoreceu nosso trabalho. Foi

possível a interação com as obras literárias, aproximando-as ao universo do aluno.

2. Atendimento ao Horizonte de Expectativas

Realizamos leitura e interpretação oral sobre algumas lendas e contos africanos,

o que tornou possível o envolvimento dos alunos, principalmente durante a leitura

dramatizada dos contos.

Ao relatarmos a história das Bonecas Abayomi (bonecas africanas) e sua

importância cultural e histórica, todos ficaram curiosos e encantados com alguns

modelos levados. Neste momento, não houve discriminação de forma alguma,

principalmente por parte dos meninos, que nesta faixa etária costumam excluir

certas práticas, achando ser “coisa de menina”.

3. Ruptura do Horizonte de Expectativas

Aproveitamos para levar os educandos ao laboratório de informática para que

fizessem pesquisas sobre escritores africanos e suas obras, e também alguns

contos e lendas do povo africano.

Fizemos visitas a bibliotecas de outras escolas e também à biblioteca municipal

com intenção de procurar mais contos e lendas. Esta foi uma atividade muito

agradável, mas foi possível perceber que alguns dos alunos ainda não estavam

Page 18: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

17

familiarizados com esta prática e mostraram-se receosos em manusear os livros,

talvez pelo fato de que biblioteca seja vista como um local severo, o qual muitos

frequentam para realizar atividades que simbolizam “castigo”, ou ainda pelo fato de

que muitos encarregados de cuidar das bibliotecas não apresentem características

de pessoas agradáveis, amáveis, e passem a ideia de que livros devem ser

deixados no lugar e jamais serem manuseados, a fim de se manter a ordem nas

prateleiras.

Solicitamos que os alunos realizassem pesquisas e entrevistas com familiares,

vizinhos ou conhecidos a fim de saber mais histórias africanas e afro- brasileiras, e

desta forma aproximar o que parecia distante e ainda promover o encontro de

gerações. Muitos alunos trouxeram material coletado e desconheciam o fato de que

seus parentes e conhecidos soubessem histórias deste povo, e que na própria

localidade em que vivem tivesse passagens históricas sobre os escravos e suas

culturas.

4. Questionamento do Horizonte de Expectativas

Solicitamos que os alunos expusessem as pesquisas para os colegas de classe e

tecessem comentários a respeito das histórias lidas e ouvidas. Voluntariamente os

alunos se transformaram em contadores de histórias. E um universo que parecia tão

distante tornou-se próximo e presente em muitas práticas culturais e cotidianas do

nosso viver.

5. Ampliação do Horizonte de Expectativas

Após a leitura, análise e interpretação dos contos, solicitamos que os alunos

escolhessem um conto e o transformassem em texto dramático. Para facilitar,

dividimos a turma em pequenos grupos, que após produzirem os textos, ensaiaram

em alguns encontros e realizaram a dramatização para os demais colegas e para as

outras turmas da escola. A surpresa maior foi que os alunos tímidos também

participaram e conseguiram vencer a barreira construída pela timidez.

Fizemos a confecção das bonecas Abayomi e foi com grande surpresa que vimos

lindas e delicadas obras nascerem, realizamos uma exposição para que os demais

pudessem contemplar.

Para encerrar de maneira grandiosa, apresentamos as peças dramáticas e os

trabalhos de construção de releituras e as bonecas abayomi confeccionadas para a

comunidade em geral, que também foi presenteada com uma linda dança africana

apresentada pelos alunos de uma sétima série, os quais foram dirigidos e ensaiados

Page 19: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

18

durante as aulas de língua portuguesa.

Durante o desenvolvimento desta proposta, observamos que houve grande

aceitação e participação dos alunos, bem como o desempenho satisfatório nas

atividades realizadas, e ainda, percebemos que este projeto poderá continuar nos

demais anos letivos, e estender-se as demais séries, por ser bastante instigador e

produtivo.

No início das atividades do projeto, muitos alunos demonstraram- se

acanhados, mas no decorrer dos encontros o que lhes parecia distante tornou-se

próximo da realidade de convívio, então se mostraram entusiasmados e curiosos na

realização das atividades. Principalmente nas que envolveram a dramatização,

ilustração e confecção de materiais, pois a criatividade dos educandos foi bastante

explorada e estes se sentiram motivados a participar.

3 CONCLUSÃO

Embora estejamos sempre preocupados em encontrar soluções para

amortização do preconceito racial e cultural, ainda percebemos que se trata de um

assunto delicado, principalmente no setor educacional, local em que a figura

fantasmagórica da discriminação é presença constante. Realizar trabalhos que

envolvam o universo da cultura africana e afro-brasileira ainda desperta

manifestações de rejeição muitas vezes por parte dos próprios educadores, pelo

receio em abordar um tema enigmático para a maioria dos envolvidos na educação,

que, ao buscarem aperfeiçoamento e renovação do conhecimento, deixam em

segundo plano assuntos que não são diretamente relacionados a sua disciplina de

formação. Desta forma muitos se mantêm alheios ao que se prega a Lei 10.639/03,

e abordam o assunto de maneira sorrateira e descomprometida, somente nas datas

comemorativas.

Há muitas teorias que nos direcionam aos caminhos de um ensino eficaz e

sedutor, basta que se pesquise e analise as melhores formas de se aproximar do

educando e instigá-lo ao conhecimento. Não necessitamos seguir apenas um roteiro,

mas é necessário que tracemos metas para serem atingidas, sempre tendo o aluno

como ponto principal e mais importante no processo da aprendizagem.

Page 20: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

19

Percebemos também que a música, a dança, a poesia, o teatro e o cinema

estão interligados com a literatura, e apresentam grande oportunidade de

envolvimento tanto da criança quanto do jovem, e consequentemente do adulto.

Toda arte tende a transformar pensamentos e opiniões. O que notamos é que educar

também é uma arte, e nesta arte, o artista tem que estar envolvido de corpo, mente

e alma, tendo o outro como objetivo principal. Em busca de aperfeiçoar a arte de

ensinar, não se deve medir esforços, mas aumentar cada vez mais a capacidade de

se doar ao próximo. Só através da conscientização da importância do aluno e

professor no processo ensino-aprendizagem, é que se obterá sucesso na educação

do nosso país.

A conclusão a seguir retoma e responde as questões levantadas na

introdução deste artigo. Na oportunidade de desenvolver o projeto de pesquisa,

ressaltamos alguns questionamentos e os resultados obtidos durante a

implementação permitiram que encontrássemos as seguintes soluções:

De que maneira poderíamos tornar possível a abordagem dos contos e

lendas africanas e afro- brasileiras na segunda fase do ensino fundamental?

Sabemos que somos seres em constantes transformações e que o aprender

é um processo contínuo. Neste processo a criança desenvolve o aprendizado

baseado na intelectualidade daqueles que a cercam, desta forma interage em seu

ambiente de convívio e sua história pessoal. A partir deste momento, o educador

parte deste saber acumulado para só então lhe apresentar o conteúdo novo e partir

de uma ação que possibilite o saber fazer para o que ainda não se sabe realizar, e

assim instigar a busca pelo conhecimento.

Cabe ao professor ter consciência das diferenças e contradições, e ter em

mente o que se quer atingir, para que se possa haver a motivação necessária para

que o aluno se aproxime deste universo, sempre com o cuidado de não ferir

sentimentos e transmitir ideia de obrigatoriedade e imposição nas ações.

O trabalho com a literatura africana e afro-brasileira é de grande importância

para que o aluno entre em contato com a cultura deste povo e perceba que é

possível romper estigmas, quebrar tabus, respeitar os valores e compreender a

nossa própria história.

Que fatores e ações poderiam ser desenvolvidas ao abordarmos as narrativas

que retratam o misticismo e os mitos da África?

Ao trabalhar com narrativas que retrataram o misticismo e os mitos

Page 21: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

20

africanos, proporcionamos ao educando um maior contato com a cultura e literatura

pertencente ao povo africano, o que permitiu que houvesse aproximação do aluno a

este universo desconhecido e por este motivo, incompreendido por muitos de nós.

O contato com os contos e lendas africanas, desencadeia fatores

esquecidos, ou camuflados pelo tempo e reaviva ações para que se possa refrear a

discriminação, o preconceito racial e social, bem como a negação da identidade

vivida por muitos educadores e educandos.

Ao desenvolver atividades que permitiram o contato com o maravilhoso

universo das narrativas africanas, oportunizamos ao leitor uma entrada nesse

fantástico mundo de magia e riqueza cultural, obtendo a participação ativa dos

alunos e consequentemente uma aprendizagem de qualidade.

Qual o relacionamento dos alunos, principalmente os afrodescendentes, com

os textos literários africanos e os textos de narrativa popular apresentados no

ambiente escolar?

Houve grande participação dos alunos, independente da descendência à

qual pertencem. Todas as atividades realizadas foram satisfatórias e os objetivos

propostos foram alcançados, visto que os educandos mostraram-se motivados e

instigados a conhecer a cultura, a história e o universo deste povo mítico, e foi

possível reconhecer nos mesmos grandes personagens que podem ser classificadas

como heroicas. Muitos dos alunos demonstraram que estavam impregnados de

conceitos errôneos e que com as atividades realizadas puderam transformar seus

conceitos e aceitar a diversidade cultural, e olhar o outro com o devido respeito que

lhe cabe.

Ao descobrir-se leitor, quais ações poderiam ser desenvolvidas para que o

aluno construa seus conceitos, sua identidade e valorização das culturas e

etnias que contribuíram para a formação da cultura brasileira?

Olhar para nossa própria história e para nós mesmos, entender que somos

surpreendentes e únicos, com características particulares e múltiplas inteligências já

nos permite conhecer o outro, superar preconceitos, vencer medos e barreiras,

buscar a exploração do nosso potencial, conhecer e respeitar os valores, e acima de

tudo, exercer a cidadania com consciência e responsabilidade são ações que todo

leitor poderá desenvolver e concretizar.

A Literatura é o melhor caminho para trabalharmos os valores, a história, os

costumes e a cultura dos povos, através dos livros podemos percorrer caminhos

Page 22: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

21

antes inatingíveis, viajar sem sair do lugar, estar no passado enquanto se vive o

presente, caminhar pelo futuro e idealizar anos e anos à frente de nós mesmos. O

universo das narrativas é amplo e, por mais que queiramos conhecê-lo em sua

totalidade, jamais chegaremos ao final, é um enigma a ser estudado, uma arte com

a qual devemos estar em contato o tempo todo, para que possamos nos sentir

humanos, transformadores de realidades as quais não aceitamos.

O ensino da literatura africana deve ser incentivado, não por ser parte de

uma lei, mas por fazer parte da nossa formação cultural, sendo de grande

importância conhecer e valorizar a história deste povo tão oprimido, e ao mesmo

tempo lutador, forte e decidido. Assim nos será permitido entender nossos

ancestrais, potencializar a beleza e o valor das etnias e a riqueza das diversidades

culturais.

A magia das histórias contadas de geração a geração faz com que

aproximemos o que parecia distante, esquecido no tempo, ao nosso cotidiano e

assim criarmos oportunidades de integração e respeito ao próximo. Não há fórmulas

para vencermos o preconceito, mas há caminhos que nos levam a transformações

de conceitos, e assim refrear situações de discriminação que venham ferir a

liberdade de cada indivíduo.

Promover a aprendizagem é tarefa de todos os educadores, mesmo ao

encontrar dificuldades não nos permitamos fraquejar, é preciso desenvolver

atividades que permeiem o saber, sendo cada vez mais necessário o

comprometimento do educador e a paixão pelo que se faz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura e formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.

Page 23: DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Não nascemos prontos, o conhecimento é adquirido de forma gradativa, apropriamo-nos do conhecimento de acordo com as experiências vividas,

22

______. Questões de literatura e estética. Trad. Aurora Bernardini. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

CURRÍCULO BÁSICO PARA A ESCOLA PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ – 3ª. Ed. Curitiba. 1997.

DIRETRIZES CURRICULARES DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ESTADO DO PARANÁ. SEED. Curitiba - Paraná: 2005.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. Brigitte Hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 1999.

SAVIANI, Demerval. Escola e democracia. 32. ed. Campinas, Autores Associados, 1999.

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2002.

THOMAZ, Sueli Barbosa. Teatro na Escola: Cultura e imagens do corpo no processo educativo. UNIRIO/PPGT-GE ; Educação e Arte/nº 01.

VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1989.