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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PBLICA PARANAENSE
2009
Produo Didtico-Pedaggica
Verso Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
VOLU
ME I
I
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAO DO PARAN
SUPERINTENDNCIA DA EDUCAO
DIRETORIA DE POLTICAS E PROGRAMAS
EDUCACIONAIS
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL
DULCINER FERREIRA GLIR
CADERNO PEDAGGICO
(Imagem1) (imagem2)
CONTOS CLSSICOS UNIVERSAIS DE VOLTAIRE A
MACHADO DE ASSIS E OUTROS DESPERTANDO O
GOSTO PELA LEITURA
CURITIBA
2010
APRESENTAO
O Caderno Pedaggico foi criado para atender s necessidades
prticas da sala de aula e tambm para auxili-lo no desenvolvimento
dos contedos de leitura, especificamente de contos.
O caderno composto por 4 unidades. Cada uma delas tem como
ponto de partida textos, analisados em suas especificidades. Cada
atividade proposta tem o objetivo de contribuir para a aprendizagem dos
contedos relacionados anlise lingustica e literria. Os textos
escolhidos ilustram as prticas de leitura, favorecendo o desenvolvimento
da compreenso leitora, os procedimentos e planejamento do texto
escrito.
Este Caderno do Professor pretende auxili-lo na preparao dos
seus alunos. uma ferramenta para ser incorporada ao dia-a-dia escolar.
Professor,
Bem-vindo!
Esperamos que voc tenha uma experincia agradvel e
enriquecedora. Procuramos construir e dividir com voc alguns pontos
fundamentais para o ensino-aprendizagem de Lngua Portuguesa no que
concerne ao desenvolvimento da competncia comunicativa do
educando. Buscamos construir e reelaborar conceitos, a nosso ver
importantes para a apropriao de algumas manifestaes literrias
produzidas em lugares, pocas e culturas diferentes.
Voc pode estar pensando que este mais um tradicional caderno
de contos. No. Acreditamos que estamos lhe oferecendo a possibilidade
de rever a abordagem de questes como lnguas, dialetos, registros,
norma culta, modalidades da lngua, linguagem literria, parfrase,
pardias e finalmente contato com textos (contos) clssicos consagrados
se relacionando dialeticamente com textos (contos e crnicas)
contemporneas, ou seja, a intertextualidade ser recorrente.
Na primeira unidade, chamada Contos franceses e italianos,
iniciaremos nossa viagem pelas vrias culturas.
Na segunda unidade apresentam-se Contos norte-americanos,
ingleses e alemes.
Na terceira unidade focalizaremos os Contos russos, africanos e
do oriente.
Na quarta unidade os Contos Machadianos, estudaremos apenas
trs de seus contos mais lidos e analisados.
SUMRIO
APRESENTAO 2
APRESENTAO DAS UNIDADES 3
SUMRIO 4
INTRODUO: Organizaes terico-metodolgica 5
UNIDADE I - Contos franceses e italianos 10
UNIDADE II - Contos norte-americanos, ingleses e alemes 29
UNIDADE III - Contos russos, africanos e do oriente 70
UNIDADE IV - Contos Machadianos 98
LEITURAS SUGERIDAS 126
BIBLIOGRAFIA 127
CORREO DAS ATIVIDADES 130
- 5 -
A leitura
A maior parte das informaes recebidas pelos seres humanos
segundo Bosi (2002, p. 65) advm de imagens. E essas imagens so
originrias dos sistemas miditicos que percebem nesse artefato um
excelente e funcional elo de disseminao de sua ideologia. Esta deu
origem ao fenmeno da sociedade do espetculo, onde atravs da
espetacularizao e da profuso de imagens h a edificao da
sociabilidade condenando a maior parte da sociedade a uma passividade
e aceitao do mecanismo capitalista, conforme afirmou Jamenson
(2004). Bombardeados diariamente por aproximadamente mil imagens,
os grupos humanos passam a viver e a consumir a cultura imposta por
um seleto grupo de pessoas. Portanto o desenvolvimento tecnolgico e
as linguagens criam representaes viabilizantes do modo capitalista de
produo, tornando-o natural e, por isso expurgado de qualquer
questionamento, tornando-o assim a nica via possvel. Uma linguagem
se justape outra, irmanam-se e consequentemente no geram
oposio e to pouco substituio de uma pela outra. Isso conforme
afirmao de ngela Katuta, tambm respaldado por Milton Santos (
2008) quanto necessidade do capitalismo de sempre se impor como a
nica via possvel, pois a generalizao e a coisificao da ideologia de
informao tornam as percepes fragmentadas e estabelece um
discurso nico para o mundo trazendo srias consequncias na produo
econmica, na anlise da histria contempornea, na cultura de massa e
no mercado global.
Ainda para Milton Santos (2008), os fundamentos da globalizao,
que se mostra cada vez mais perversa, so a informao e o imprio e
encontram sua base na produo de imagens e do imaginrio, colocam-
se a servio do dinheiro, fundado este na economizao e na
monetarizao da vida social e da vida pessoal. As verdades repetidas
pela mquina ideolgica tornam-se a base de alimentao de crenas e
de um senso comum fabricado e verdadeiro sustentculo contnuo desse
sistema. O termo aldeia global faz crer na homogeneidade e
uniformidade do planeta, portanto uma difuso instantnea de notcias
- 6 -
informa de fato as pessoas, mas informa o que interessa a um seleto
grupo e diz ou no diz (para a grande maioria) o que lhe conveniente.
Nenhum tipo de linguagem (imagtica, oral, escrita, digital, etc.)
neutra e a relao de poder entre o produtor e o receptor infinitamente
maior na linguagem imagtica. Quem percebeu o poder desse artefato e
o usou de forma inescrupulosa, detm a hegemonia dos valores de certo
e errado, belo e feio, tico e no tico.
Como se opor a parmetros impostos e levar o educando a
perceber que atravs da compreenso dos mecanismos de
funcionamento da ideologia capitalista ocorre a emancipao consciente?
A leitura uma das vias possveis dessa emancipao.
As interaes sociais e as relaes dialgicas entre o texto e o
leitor so inerentes ao processo de leitura. As previses e inferncias do
leitor acerca do texto s sero possveis levando-se em conta as
experincias e os conhecimentos de quem diante do texto capaz de
procurar pistas formais, construir ou destruir hipteses calcadas em
tambm prvios conhecimentos lingusticos e acepo de mundo.
Atravs da intertextualidade o educando multiplica a possibilidade
dialgica do texto, construindo teias, elaborando assim, novos
significados amarrados e ao mesmo tempo possibilitando extrapolar os
limites do prprio texto.
A maior questo que se apresenta continuar seduzindo o aluno
para a leitura, uma vez que na primeira etapa e na segunda do ensino
bsico o aluno mais motivado nos ambientes escolares para a leitura. O
maior problema encontra-se na fase final da educao bsica, porque se
no foi bem consolidada a seduo do aluno para a leitura, perde-se
aquele que seria um eterno leitor motivado e capaz de continuar ao longo
da sua vida numa dimenso dialgica, discursiva e intertextual. Construir
inferncias e revelar sentidos e relaes de poder nos textos o que se
pretende de um aluno-leitor.
Por isso, as Orientaes Curriculares prope que o educando deva
conviver no s de forma crtica, mas tambm ldica com a leitura e
produo de textos. Para que atualizados, esses alunos, em diferentes
suportes e sistemas de linguagem escrita, oral, imagtico, digital e outros
- 7 -
possam compreender e fazer uso dessas multiplicidades de linguagens
presentes na sociedade contempornea. Transitar pelos diferentes
ambientes sociais, literrios, cientficos, publicitrios, religiosos, jurdicos,
culturais, polticos, econmicos, miditicos, esportivos e outros devem ser
o objetivo da formao do leitor.
O professor como mediador para promover o crescimento e a
capacidade de ler textos mais difceis uma das funes desejadas para
o educador. O amadurecimento do leitor se constri com o tempo e
quanto maior qualidade esttica o texto apresentar, maior ser o
crescimento do leitor, sempre levando em conta os aspectos de como se
constri sentidos nos textos lidos. Entre os inmeros gneros textuais
existentes, o conto, devido a sua forma mais concisa, apresenta-se como
um elemento importante na conquista de leitores.
O conto
De origem desconhecida, o conto remonta ao princpio da prpria
arte literria. Para Massaud Moiss (1983) alguns contos encontrados
antes do nascimento de Cristo, como O naufrgio de Simnides de
Fedro , A matrona de feso de Petrnio, A casa mal assombrada,de
Plnio, bem como as fbulas de Esopo e Fedro na Antiguidade Clssica
so os primeiros exemplares desse gnero. Alguns estudiosos indicam a
Bblia como uma fonte inesgotvel de contos e apontam o conflito entre
Caim e Abel, os episdios de Salom, Rute, Judite, do filho prdigo e
outros como exemplos. No antigo Egito, a histria de Os dois irmos, e
Setna e o livro mgico seriam tambm contos.?
Porm, no sculo XIX, o conto acaba por se distanciar da novela e
do romance angariando seu prprio espao. Contistas emergem em
vrias partes do mundo. Voltaire, Balzac, Maupassant, Flaubert na
Frana, Gogol e Tchekov na Rssia, Edgar Allan Poe nos EUA, Ea de
Queirs em Portugal, Machado de Assis e outros.
- 8 -
Na estrutura do conto h um s drama, um s conflito, uma nica
ao, desprezando os acessrios. Procura rejeitar as digresses e as
extrapolaes, buscando, para tanto, um s objetivo. Assim a dimenso
do conto reduzida: o autor usa a contrao, ou seja, economiza os
meios narrativos. A preferncia por conciso e concentrao torna o
conto uma narrativa curta, que se encerra justamente no clmax,
diferentemente do romance em que o clmax ocorre em algum ponto do
final, tradicionalmente o espao fsico da narrativa no se modifica muito
devido prpria dimenso do conto. E a variao temporal no possui
significado de peso, o passado e o futuro do fato narrado so
irrelevantes. Se for necessrio, o contista sintetiza o passado e o expe
em poucas linhas, pois as potencialidades e reservas emotivas j se
esgotaram no conflito principal.
Com caractersticas de pequena extenso e pouca variao
espacial e temporal o nmero de personagens reduzido, limitando,
tambm, o espao para personagens complexas. Dessa forma a nfase
posta em suas aes e no no carter das personagens. Essas
caractersticas do conto podem variar de uma poca para outra, de um
autor para outro, ainda que essas variaes possam ocorrer em maior ou
menor quantidade h sempre uma estrutura, uma matriz bsica que
configura o gnero.
No livro, Teoria do Conto, Gotlib (1984) diz que a diferena entre
novela, conto e romance reside em uma diferena de princpio,
caracterizada pela extenso da obra, recaindo tambm na questo do
efeito nico ou impresso total e da unidade da obra, onde h a
premeditada inteno de causar efeito no leitor. Para Cortzar (1974, p.
66-174) Um conto uma verdadeira mquina de criar interesses. E de
uma s assentada o autor tem para si a alma do leitor, o corao e o
intelecto sem influncias externas como o cansao ou interrupes
comuns leitura de um romance. A economia dos meios narrativos
proposital para com o mnimo de meios, obterem o mximo de efeito.
Se a novela ou o conto termina com o surgimento do clmax, no
romance o clmax deve ocorrer antes do final. Por isso, as trs
caractersticas do conto, ou a expresso em norte-americano short story,
- 9 -
so a unidade de construo, o efeito principal no meio da narrao e o
forte acento final. Entretanto a riqueza da obra do escritor est
justamente na quebra da unidade tradicional e por vezes no meio do
conto que est a originalidade da obra. Mesmo no conto moderno h uma
estrutura clssica do conto que se compe de incio, meio e fim.
O conto excepcional a certeza de qualidade literria, porque se
torna inesquecvel para quem o l. possvel reconhecer no conto
clssico (com incio, meio e fim) a sntese, a concentrao, o acidente, o
drama de uma situao, a tenso potica, a clareza, a objetividade e
tambm a novidade, a graciosidade e o realismo que representa para o
autor a liberdade do homem contra a opresso, os preconceitos, a
ignorncia, etc.
A revalorizao do conto uma necessidade premente, visto que o
exagero de regras, estereotipando-o e a criao de manuais, sacrificaram
o gnero. Outro elemento responsvel pela desvalorizao do conto foi a
constante mercantilizao no incio do sculo XX nos EUA, onde se
escrevia s para preencher exigncias de revistas e jornais. A
superioridade dos contos russos acaba em evidncia, pois estavam livres
da ditadura capitalista norte-americana dos editores e do pblico. Esse
carter comercial e as relaes editor/escritor que viam o conto como
mercadoria numa simples relao de oferta e procura, foi outra causa do
enfraquecimento do gnero. A situao do conto em diversos pases
tambm alude para essa viso mercantilizada.
tambm inevitvel a comparao do conto com outros tipos de
linguagem como o cinema, o teatro, a fotografia, o jazz.
- 10 -
Voltaire (imagem 3) Boccaccio (imagem 4)
Unidade1- Contos Franceses e italianos
Professor,
Esta unidade pode ser trabalhada com as seguintes sries:
7 e 8 do ensino fundamental e 1, 2 e 3 do ensino mdio.
Cabe a voc, aps explanaes sobre o assunto, escolher o
texto e s sugestes de atividades (sistematizao) que
melhor auxiliem a resoluo das dificuldades do seu aluno.
Sugerimos iniciar o trabalho com o filme Sete anos no Tibet.
O filme uma adaptao de romance homnimo, tem
relao com o tema, pois trata da busca do conhecimento,
h caractersticas que so comuns ao filme e aos contos
aqui selecionados. Sugerimos tambm trabalhar com o filme
Matrix ou trechos desse filme, pois aborda o mito da caverna,
isto , a busca da verdade ou do verdadeiro conhecimento.
De forma individual ou coletiva, aps a explorao do filme,
pea para seus educandos relatarem o que eles entenderam,
cenas que foram relevantes, temticas importantes (a busca
do conhecimento , o preconceito de classe, a amizade, a
filosofia e outros).
- 11 -
Solicite coletiva ou individualmente uma produo textual
escrita sobre os temas abordados por eles. Nessa produo
poder explorar as personagens principais, suas
caractersticas, comportamentos da poca, as variaes
lingusticas.
Proceda a leitura dos contos desta unidade e faa uma
intertextualidade entre contos e filme ou apenas entre conto
e conto.
Conduza a resoluo das atividades escritas.
Sugerimos trabalhar com a dramatizao de um trecho do
filme ou dos contos.
Sugerimos para a leitura dos contos Noite difcil e textos de
Decamero um sistema de leitura compartilhada, em que
cada aluno l um trecho do texto e expe para os demais um
resumo do que leu. Por tratar-se de um texto longo quase
uma novela, essa leitura compartilhada nos parece uma boa
soluo para a sala de aula, j que cada aluno passa a ter
contato com o texto e ainda o socializa com os colegas. Essa
experincia j foi utilizada em alguns locais com sucesso.
Para o texto Histria de um brmane sugerimos que cada
aluno tenha o seu exemplar, uma vez que no se trata de
texto extenso.
Esta unidade permite ao professor trabalhar com as
diferenas entre crnica e conto e reforar esse trabalho na
ltima unidade (unidade 4), onde so oferecidos um exemplo
de cada tipo.
Quanto aos contos italianos, cabe ao professor escolher
quais deles se encaixa melhor em sua atividade. O discente
pode utilizar todos os textos, uma vez que so contos curtos.
A escolha, entre textos curtos e extensos para cada unidade,
foi proposital para oferecer ao professor variadas opes
dentro da sua realidade escolar.
- 12 -
Sugerimos para os contos italianos trabalhar com o filme O
nome da rosa. O conto O inquisidor e o rei trata da mesma
temtica do filme, ou seja, da questo eclesistica. Portanto
um timo exemplo para trabalhar em sala de aula, fazendo
uma intertextualidade.
Trabalhar com o conto atravs da msica uma opo.
Inicialmente sugere-se tocar a msica e solicitar ao aluno
para anotar o maior nmero de palavras. Aguar a
curiosidade do educando que pedir para ver a letra da
msica, ento o primeiro movimento em direo ao
aprendizado se dar, pois partir dele a necessidade da
leitura e treinar seu ouvido.
Todas s vezes em que houver atividade escrita solicitando a
escrita de um final para o conto, o professor deve retirar o
final original e somente apresent-lo aps o trmino da
atividade. No Caderno Pedaggico o conto aparecer sem o
final que ser ofertado no caderno-resposta, se necessrio.
Contos franceses:
E para voc o que mais importa o conhecimento ou a ignorncia?
Franois Maria Arouet (1694-1778), mais conhecido como Voltaire,
pertencente classe mdia, estudou num colgio de jesutas, o Louis-le-
grande. Devido a seu esprito irreverente, passou inicialmente 11meses
na Bastilha. Foi um nome importante na Revoluo Francesa. Com vasta
bagagem literria contribuiu com poemas, epstolas e stiras para a
literatura universal.
HISTRIA DE UM BRMANE (Voltaire)
Encontrei nas minhas viagens um velho brmane, homem bastante
sbio, cheio de esprito e erudio; de resto, era rico, e por isso mesmo
ainda mais sbio; pois, como nada lhe faltasse, no tinha necessidade de
- 13 -
enganar ningum. O seu lar era muito bem governado por trs belas
mulheres que porfiavam em agradar-lhe; e, quando no se divertia com
elas, ocupava-se em filosofar.
Perto de sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de
encantadores jardins, morava uma velha hindu, imbecil e muito pobre.
"- Quem me dera no ter nascido!" - disse-me um dia o brmane.
Perguntei-lhe por qu. "- H quarenta anos que estudo" - respondeu-me -
"e so quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse
estado enche-me a alma de tal humilhao e desgosto, que me torna a
vida insuportvel. Nasci, vivo no tempo, e no sei o que o tempo; acho-
me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sbios, e
no tenho a mnima ideia da eternidade. Sou composto de matria,
penso, e nunca pude saber por que coisa produzido o pensamento;
ignoro se o meu entendimento em mim uma simples faculdade, como a
de marchar, de digerir, e se penso com a minha cabea como seguro
com as minhas mos. No s o princpio do meu pensamento me
desconhecido, mas tambm o princpio de meus movimentos: no sei por
que existo. No entanto, todos os dias me perguntam sobre todos esses
assuntos; preciso responder; nada tenho que preste para lhes
comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo
aps ter falado. O pior quando me perguntam se Brama foi produzido
por Vixnu, ou se ambos so eternos. Deus testemunha de que nada sei
a respeito disso, o que bem se v pelas minhas respostas."
"- Ah! meu reverendo" - imploram-me, - "dizei-me como que o mal
inunda toda a terra."
"- Tenho as mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal
pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possvel; mas
aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra no acreditam
nisso, nem eu tampouco: retiro-me acabrunhado da sua curiosidade e da
minha ignorncia. Vou consultar os nossos antigos livros, e estes
duplicam as minhas trevas. Vou consultar os meus companheiros:
respondem-me uns que o essencial gozar a vida e zombar dos
homens; outros julgam saber alguma coisa, e perdem-se em divagaes;
tudo concorre para aumentar o doloroso sentimento que me domina.
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Sinto-me, s vezes, borda do desespero, quando penso que, aps
todas as minhas pesquisas, no sei nem de onde venho, nem o que sou,
nem para onde vou, nem o que me tornarei."
O estado desse excelente homem causou-me verdadeira pena:
ningum tinha mais senso e boa-f. Compreendi que, quanto mais luzes
havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu corao, mais
infeliz era ele. Vi, no mesmo dia, a velha sua vizinha: perguntei-lhe se
alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. Nem chegou a
entender minha pergunta: nunca na sua vida refletira um momento sobre
um s dos assuntos que atormentavam o brmane; acreditava de todo o
corao nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes
pudesse conseguir gua do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz
das mulheres.
Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei ao
meu filsofo e disse-lhe: "- No te envergonhas de ser infeliz, quando
mora tua porta um velho autmato que no pensa em nada e vive
contente?"
"- Tens razo" - respondeu-me ele; - "mil vezes disse comigo que
seria feliz se fosse to tolo como a minha vizinha, e no entanto no
desejaria tal felicidade."
Essa resposta causou-me maior impresso que tudo o mais;
consultei a minha conscincia e vi que na verdade tambm no desejaria
ser feliz sob a condio de ser imbecil. Expus a questo a filsofos, e
eles foram da minha opinio.
"-No entanto" - dizia eu, - "h uma terrvel contradio nessa
maneira de pensar. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que
importa, pois, ter esprito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que esto
contentes consigo esto bem certos de estar contentes; mas aqueles que
raciocinam no se acham to certos de bem raciocinar.
"- claro" - dizia eu - "que se deveria preferir no ter senso
comum, uma vez que este contribua, o mnimo que seja, para o nosso
mal-estar. Todos foram da minha opinio, e todavia no encontrei
ningum que quisesse aceitar o pacto de se tornar imbecil para andar
- 15 -
contente. Donde conclu que, se muito nos importamos com a ventura,
mais ainda nos importamos com a razo.
Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razo
felicidade. Como se explica, pois, tal contradio? Como todas as outras.
A h muito de que falar.
. (Voltaire, Histria de um Brmane.) ************************************************************************************ Anlise do texto
ATIVIDADE ORAL PREPARO PARA A LEITURA
1. De onde vocs imaginam que esses textos foram extrados?
2. O que vocs acham do ttulo? O que um brmane? Voc j viu ou
ouviu falar de um brmane? (O professor pode levar os alunos a
relacionar a palavra desconhecida com outros tipos de texto, como o da
telenovela [gnero dramtico], onde aparecia um personagem brmane,
mas o ideal revelar isso s depois da leitura).
APS A LEITURA DO TEXTO ATIVIDADE ORAL
1. Quem o autor do texto? importante no confundir o narrador com
o autor do texto.
2. Em seguida, identifique o tipo de narrador.
3. Qual a relao entre o texto e outros tipos de linguagem verbal?
4. Existe relao entre o filme e os contos Histria de um brmane e
Um suicdio?
5. Quais so as personagens do conto?
ATIVIDADE DE ANLISE DO TEXTO
1. O narrador tem grande importncia no texto, mas somente aliado a
outros fatores como espao, enredo, tempo e caractersticas das
personagens pode contribuir para a interao entre leitor e obra. Localize
no texto uma frase como exemplo da presena do narrador.
- 16 -
2. Procure diferenas e semelhanas entre o filme e os contos ou
apenas entre os contos.
3. O mais provvel que o texto proceda:
a ( ) de um livro de contos;
b ( ) de um livro de crnicas;
c ( ) de algum jornal.
(Professor, aproveite o exerccio acima para comentar as caractersticas
da crnica e do conto.)
4. Que sentido pode ser atribudo seguinte afirmao aqueles que
esto contentes consigo esto bem certos de estar contentes; mas
aqueles que raciocinam no se acham to certos de bem raciocinar?
5. No 5 pargrafo do conto a personagem apresenta uma insatisfao.
Qual situao presenciada pelo brmane que o perturba?
6. Em espaos prximos, as personagens expressam estados
emocionais distintos. Quais so? Identifique esses espaos e estados
emocionais das personagens.
7. Nasci, vivo no tempo, e no sei o que o tempo; acho-me num ponto
entre duas eternidades, como dizem os nossos sbios, e no tenho a
mnima idia da eternidade. A noo de tempo subjetiva. Por qu?
Qual o sentido dessa afirmao?
8. Observe o seguinte perodo: "ensino aos outros, e ignoro tudo;.
Identifique a ideia expressa pela conjuno que liga a 1 orao
segunda. Que outra conjuno poderia substitu-la?
9. ...aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra no
acreditam nisso, nem eu tampouco. Explique o sentido dessa afirmao.
ATIVIDADE ESCRITA
Proposta1 Escreva o final do conto Histria de um brmane. Depois
compare com o original. Em grupo faa um debate sobre o final
escolhido.
Proposta 2 Reescreva o conto Histria de um brmane, agora, sob o
ponto de vista da vizinha.
- 17 -
Proposta 3 - Escreva outro final para o conto Um suicdio.
Proposta 4 - A partir de notcias de jornais sobre casamentos incomuns
escreva um conto.
************************************************************************************
O conto (narrativa) na msica:
Fragmento da letra da msica Faroeste Caboclo da banda Legio
Urbana.
Faroeste Caboclo Legio Urbana Composio: Renato Russo No tinha medo o tal Joo de Santo Cristo Era o que todos diziam quando ele se perdeu Deixou pra trs todo o marasmo da fazenda S pra sentir no seu sangue o dio que Jesus lhe deu Quando criana s pensava em ser bandido Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu Era o terror da sertania onde morava E na escola at o professor com ele aprendeu Ia pra igreja s pr roubar o dinheiro Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar Sentia mesmo que era mesmo diferente Sentia que aquilo ali no era o seu lugar Ele queria sair para ver o mar E as coisas que ele via na televiso Juntou dinheiro para poder viajar [...] Aos quinze, foi mandado pro o reformatrio Onde aumentou seu dio diante de tanto terror. No entendia como a vida funcionava Discriminao por causa da sua classe e sua cor Ficou cansado de tentar achar resposta E comprou uma passagem, foi direto a Salvador. E l chegando foi tomar um cafezinho E encontrou um boiadeiro com quem foi falar E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem Mas Joo foi lhe salvar Dizia ele: "Estou indo pra Braslia Neste pas lugar melhor no h T precisando visitar a minha filha Eu fico aqui e voc vai no meu lugar"
- 18 -
E Joo aceitou sua proposta E num nibus entrou no Planalto Central Ele ficou bestificado com a cidade Saindo da rodoviria, viu as luzes de Natal "Meu Deus, mas que cidade linda, No Ano-Novo eu comeo a trabalhar" Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro Ganhava cem mil por ms em Taguatinga [...] ************************************************************************************
ATIVIDADE:
1. O conto trata-se de uma narrativa e encontramos na msica a histria
narrada. Em alguns casos a msica serve de inspirao para escrever
um conto. Que elementos presentes no conto aparecem
aqui?(personagens, enredo, etc.)
2. Escreva uma pardia curta para a letra da msica Faroeste Caboclo.
3. Na letra da msica h a presena do discurso direto. Identifique o
sujeito e copie dois exemplos de discurso direto e discurso indireto.
************************************************************************************
Voc acredita na amizade sincera? UM SUICDIO
A Sra. de Garmont entrou no escritrio de seu marido. Tremia. Tomou
uma sobrecarta e, sentada mquina de escrever, sobrescritou-a
desajeitadamente. Tremiam-lhe as mos. Tremiam-lhe as pernas.
Tremiam-lhe as mandbulas. A custo se levantou e, com a sobrecarta
entre os dedos, dirigiu-se ao seu quarto em passo vacilante. Ali hesitou
ainda. Por fim se decidiu. Abriu uma gaveta, puxou um cofrezinho e,
tirando do mesmo uma carta, meteu-a no envelope. Fechou-o e chamou
a empregada.
- Pe esta carta no correio, imediatamente.
- Perfeitamente, senhora.
A Sr. de Garmont, Logo que a empregada saiu, deixou-se cair
numa poltrona. Estava feito. Acabava de suicidar-se.
- 19 -
Havia dito ao seu amante: "Juro-te, querido, que no posso viver sem ti.
Se te vais, matar-me-ei". Ele no acreditara em suas palavras e havia
partido. Ela no mentia. No podia viver sem ele, e se matava. Matava-
se como podia. Era miudinha, uma menina... Sentia ainda medos in-
fantis. Assustava-se com um rato; no campo, um inseto que lhe casse
em cima fazia-a gritar... No basta querer morrer. preciso que o corpo
queira executar o gesto final, o gesto que pe termo vida. Ela sabia
muito hem que era incapaz de apertar o gatilho dum revlver ou de
inclinar-se sobre um balco para se atirar rua. Porm, fazer-se matar
era uma forma de morrer.
Seu marido era um homem hercleo. Bom rapaz; porm, cleras
bruscas o convertiam num ser violento e perigoso. Uma vez discutiu com
o motorista dum caminho. Desceu do seu "auto" e quase o estrangulou.
Tinha dito sua mulher em certa ocasio: "Estou disposto a ser o melhor
dos maridos; mas, se te extraviares..." Ela havia-se extraviado, e se ele
chegasse a sab-Ia era incerto o final.
Por fim se abriu a porta e entrou o marido.
Instintivamente se fez mais mida em sua poltrona e cerrou os
olhos. [...]
[...]
Por fim, disse com voz bronca:
_ Escuta... : vim por que... H pouco recebi na fbrica uma
carta; ou melhor, um envelope escrito mquina e dentro dele uma
carta... , uma carta de amor escrita por um homem... Compreendes?
algum inimigo ou algum criado que se apoderou dessa carta e para
se vingar ma enviou. Odeiam-me tanto! Tudo isso para me dizer:
"A mulher que amas te engana, e aqui tens a prova" ... E de
fato, era indubitvel. Aquela carta! Quando a li, fiquei louco e corri...
corri ...
(Deu um passo e deixou-se cair numa poltrona).
-... e... preciso que te diga, pobre pequena, porque esta noite
serei preso. Acabo de matar minha amante!
- 20 -
Antes de ler o conto Um suicdio aconselha-se a preparao para
a leitura. Pode ser utilizada nos mesmos moldes da primeira atividade.
No se esquea de explicar a diferena entre novela e conto. Para o
aluno, a nica referncia que ele tem de novela so as de televiso.
Procure diferenciar o gnero dramtico ( teatro, novela de televiso,
cinema) e gnero narrativo (romance, novela, conto). Se preferir fazer
essas explanaes aps a leitura procure tornar bem atrativa a leitura
reunindo a sala em semicrculo. As explanaes nessa unidade se fazem
necessrias porque na unidade 2, 3 e 4 sero apresentados contos
longos prximos de uma novela.
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ATIVIDADES:
1. Selecione do texto algumas palavras significativas. Depois
construa um dicionrio( na ordem alfabtica). Discuta porque
algumas palavras no so mais utilizadas? As variaes da
lngua so classificadas como diatpicas, diastrticas e
diacrnicas. Dia em sua formao significa atravs de, por
meio de, ao longo de. Topos lugar. Stratus nvel,
camada, grupo social. Kronos-tempo.
2. A estrutura do conto tradicional permaneceu ou sofreu
alterao?
3. Identifique o tipo de narrador.
4. O que redeno? Voc j passou por algum processo de
redeno?
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Contos italianos:
Voc corajoso? Quanto? Como voc reagiria a uma situao
como essa?
- 21 -
Eugnio Montale (1896-1981) escritor de novelas, crnicas e
poemas, nasceu em Gnova e sua tendncia para o humorismo fica
evidente no conto a seguir. Narrador competente de pequenos casos
curiosos.
NOITE DIFCIL
(Eugnio Montale)
L pela meia-noite, o homem estava para apagar a luz quando uma
sombra flutuante e sinistra, um garrancho nas paredes, um ziguezague
rpido como um raio, passou sobre sua cabea, desaparecendo depois
sob a cortina do banheiro. Ouviu-se logo um grito agudssimo.
- Um morcego! - gritava ela, contorcendo-se de pavor. - A que
diabo de hotel voc me trouxe? Mande embora esse bicho horrvel,
mande-o embora!
Berrava debaixo dos lenis, com receio de ser atingida pelo voo
imundo. Suas palavras eram surdas e convulsas; sugeria dar-lhe caa
com uma bengala, com um guarda-chuva, conservando janela aberta e
a lmpada apagada. Talvez a atrao das luzes externas, qui ...
Nas trevas, de pijama, com a cabea protegida por uma toalha, ele
percorreu o aposento para cima e para baixo, tropeando nos mveis,
agitando as folhas de uma revista ilustrada ("O guarda-chuva!", gritava
ela, mas no tinham guarda-chuvas), emitindo sons inarticulados, at
que, encontrando ao seu alcance um boto na parede, fez jorrar uma
onda luminosa, que partia de uma concha transparente, situada ao alto,
bem ao alto.
- Deve ter ido embora - disse, procurando parecer calmo, - e
chegou-se janela para fech-Ia. Mas logo uma coisa viscosa lhe aflorou
a testa, a sombra doida borboleteou pela parede e extinguiu-se no
inatingvel cimo de um negro armrio.
- Socorro! Socorro! - bradava a mulher espiando de sob um
travesseiro que pusera na cabea. E depois, com voz j mais calma, no
vendo mais o mostrengo na parede: - Foi-se embora esse monstro?
- 22 -
Diga-me que j saiu!
- Creio que no - disse ele, procurando atenuar a dura realidade (a
sombra sussultava sobre o armrio como se o "monstro" estivesse sob
presso, pronto para librar-se ainda). - Receio que no; mas agora farei
com que se retire. Esconda bem a cabea, no tenha medo!
Subiu numa cadeira, enfaixou outra vez a cabea e, num lance
bem ajustado, fez cair seu cartapcio em cima do armrio, do qual, com o
baque, se levantou uma poeirada e o voo molambento e convulso do
pequeno monstro; uma breve parbola que acabou estremecendo, no
cestinho de papel usado.
- Socorro! Socorro! - continuava a esgoelar a mulher; mas j o
homem, armado de uma pantufa de couro, conservando um tapete diante
dos olhos, avanava cautelosamente para o cesto de vime, dizendo com
voz mais calma: - Deixe por minha conta, eu despejo o cesto e fao-o
prisioneiro. No se agite, no faa escndalos.
Quando lhe pareceu estar sob mira, mas no estava [...]
[...]
Apanhou a moeda, abriu a porta e cochichou no corredor. Ela, com
os olhos esbugalhados, fitou, ainda, a concha, agora imvel, e pensou
no restaurante das duas asas negras; depois, recordando-se de sbito
que, poucos anos antes, a curiosidade de assistir ao "Morcego", de
Strauss, a salvara da morte, da bomba que lhe destrura a casa, teve
outro mpeto e atirou-se loucamente sobre as cobertas, com um riso
prolongado e convulso.
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ATIVIDADE:
1-Voc tem medo de algum animal? Por qu?
2- Identifique elementos de humor e ironia no texto.
3- Como se criou o mistrio no conto acima? Lembre-se a vlvula
motriz de uma narrativa o suspense, o mistrio, a impossibilidade de
saber o que vai acontecer.
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- 23 -
Giovanni Boccaccio(1313-1375), contemporneo de Dante
Alighieri,Guido Cavalcanti e Francesco Petrarca; extraordinrio narrador,
deu valor de obra de arte prosa de fico e a obra desse autor
inaugura o Humanismo. Representou as paixes humanas com maestria
e em Decamero composto de cem novelas ou contos,escreveu uma de
suas maiores criaes.
SEXTA NOVELA
O INQUISIDOR E O REI
(Giovanni Boccaccio)
Com uma frase espirituosa, um bom homem confunde a maldade e a hipocrisia clerical.
Quando todas as auditoras acabaram de celebrar as virtudes da marquesa o
espirituoso castigo por ela infligido ao rei de Frana, Emlia, que estava sentada ao
lado de Fiammetta, comeou a falar afoitamente, logo que a rainha lhe fez sinal.
- Tambm eu - disse ela - no hesitarei em contar como um bom homem
secular deu uma til ferroada num religioso avaro. A frase merece tanto riso como
elogios.
H no muito tempo, queridas amigas, havia na nossa cidade um frade
menor, inquisidor da maldade hertica, que por mais que se desse ares de santo e
parecesse amar com toda a sua ternura a nossa F, fazia como todos os outros e no
se encarniava menos sobre quem tivesse a bolsa bem recheada do que sobre o
cristo de crena pouco firme. Por acaso, durante um inqurito, encontrou um bom
homem, bastante mais rico de dinheiro do que de delicadeza. No fora por falta de f,
mas por ingenuidade de linguagem e talvez mesmo por efeito do vinho ou do ardor de
uma excessiva alegria, que esse homem exclamara um dia num grupo de amigos que
o seu vinho era to bom que decerto Cristo gostaria dele. A frase foi contada ao
inquisidor. Este, sabendo que o indivduo em questo possua grandes herdades e
uma bolsa bem repleta, correu velozmente cum gladiis et fustibus e ps-lhe s costas
um processo extremamente grave. No que pretendesse com isso melhorar a fraca f
do ru: a sua nica finalidade era encher a mo de florins. Como, de fato, aconteceu.
Convocou-o, pois, e perguntou-lhe se a frase que lhe tinham contado era verdadeira.
- 24 -
O bom homem respondeu que sim e contou-lhe como tudo se passara. E o santssimo
inquisidor, o devoto de So Joo Barba-de-Ouro inquiriu:
- Fizeste ento de Cristo um bebedor, to vido de vinho generoso como se
fosse Cinciglione ou qualquer outro de vocs, grandes brios, rnseros beberres,
pilares de taberna! Agora falas humildemente e queres convencer-me de que foi uma
coisa sem importncia. , porm, mais grave do que julgas. Merecias o fogo, se
quisssemos fazer o nosso dever e agir contra ti.
E prosseguiu neste tom, de cenho descido, falando-Ihe como se estivesse a
dirigir-se a um Epicuro que negasse a vida eterna. Em suma, aterrorizou de tal
maneira o pobre homem que este lhe untou as mos, por meio de intermedirios, com
uma boa dose de leo de So Joo Barba-de-Ouro, leo esse que soberano contra
a pestilenta cupidez de clrigos e especialmente de frades menores, que no ousam
tocar em dinheiro. O homem pretendia com isso que tivessem piedade dele. O
poderoso remdio, de que Galeno no fala em nenhum dos seus tratados de
medicina, deu tanto efeito que o fogo com que o homem era ameaado se
transformou em uma cruz. E, como se ele tivesse de atravessar o mar,
pintaram-lha a amarelo sobre fundo negro para que a bandeira ficasse mais
bela. Para mais, apesar de j ter recebido o dinheiro, o clrigo conservou o
bom homem consigo durante alguns dias, dando-lhe como penitncia ouvir
todas as manhs uma missa em Santa Croce e comparecer junto dele hora
das refeies. Durante o resto do dia podia fazer o que mais lhe agradasse.
O nosso homem respeitou com o maior escrpulo as instrues
recebidas.
Certa manh ouviu na missa um Evangelho onde se salmodiava esta
frase: "Vs recebereis cem por um e possuireis a vida eterna." Tais palavras
ficaram-lhe gravadas na memria. Quando, segundo a ordem recebida, se
apresentou hora da refeio diante do inquisidor, que estava sentado mesa,
este perguntou-lhe se de manh tinha ouvido missa. Ao que ele prontamente
respondeu:
- Senhor, sim. E o inquisidor:
- Ouviste qualquer coisa de que duvides e acerca da qual desejes
informar-te?
- No duvido de nada que ouvi - disse o bom homem. - Creio firmemente
que tudo verdade. Ouvi mesmo uma frase que me encheu de grande
- 25 -
compaixo de vs e dos outros frades, pensando na m situao que vos
espera na outra vida.
- E qual foi essa frase que te fez ter tanta compaixo de ns? -
perguntou o inquisidor.
O homem respondeu:
- Senhor, foi aquela frase do Evangelho, que diz: "Vs recebereis cem
por um."
- Nada mais verdadeiro - disse o inquisidor. - Mas por que te comoveu
ela por nossa causa?
- Senhor, vou explicar-vos - respondeu o homem. - Desde que aqui
estou vejo darem, l fora, a muita gente pobre, umas vezes um, outras dois
tachos de sopa. So os restos que ficam da vossa escudela e das dos frades.
Ora, se no cu vos restituem cem marmitas por uma, acho que ficam todos
asfixiados l por dentro.
Todas as pessoas que estavam sentadas mesa do inquisidor
rebentaram a rir. Ele, porm, sentiu-se perturbado perante a troa que rasgava
a hipocrisia dos frades. Se no fossem as censuras de que j era alvo pela sua
ao judiciria, teria posto outro processo ao homem por causa daquela
brincadeira, cuja ferroada ele compartilhava com todos os outros frades.
Enfurecido, ordenou ao penitente que fizesse o que tinha na vontade e que
nunca mais aparecesse na sua frente.
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ATIVIDADE:
1. Como se construiu a crtica hipocrisia clerical?
2. A ironia est presente no texto de que forma?
3. Desde que aqui estou vejo darem, l fora, a muita gente pobre, umas
vezes um, outras dois tachos de sopa. So os restos que ficam da vossa
escudela e das dos frades. Ora, se no cu vos restituem cem marmitas por
uma, acho que ficam todos asfixiados l por dentro. Por que o inquisidor ficou
to contrariado e humilhado com essa afirmao?
4. O que um inquisidor? ( Professor, aproveite e faa uma retomada do
que foi a Santa Inquisio).
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NONA NOVELA
UM REI CAI EM SI
(Giovanni Boccaccio)
De covarde que era, o rei de Chipre torna-se valente, graas s censuras de uma dama
da Gasconha.
S faltava a Elisa receber o ltimo convite da rainha. Sem, no entanto, esperar
por ele, comeou com um sorriso nos lbios:
- Minhas jovens amigas, j tem acontecido inmeras vezes uma frase dita por
acaso - e nem por sobras intencional obter um resultado que nunca poderia ser
atingido pelas mais variadas e amadurecidas censuras. Na histria que contou,
Lauretta deu-nos disso prova flagrante, e eu, pela minha parte, vou tambm
demonstrar, em poucas palavras, como as frases espirituosas nos encantam, bom
fix-Ias cuidadosamente, quaisquer que sejam os seus autores.
No tempo do rei de Chipre, aps a conquista da Terra Santa por Godofredo de
Bolho. uma gentil dama da Gasconha, que regressava de uma peregrinao ao Santo
Sepulcro, passou por Chipre. Quando a chegou, foi grosseiramente ultrajada por
alguns facnoras. To ofendida que ficara inconsolvel, pensou ir queixar-se ao rei.
Disseram-lhe, porm, que perderia o seu tempo se o fizesse. O soberano era to mole
e covarde que, longe de vingar as ofensas de que os outros fossem vtimas, suportava
at com censurvel indiferena as afrontas de que ele prprio era alvo. De tal sorte que
todo e qualquer nele podia descarregar o seu furor, com palavras cidas e ruins, sem
lograr sequer ruboriz-Io. Ouvindo isto, a dama perdeu toda a esperana de se vingar.
Julgou, no entanto, poder suavizaras seus males, estigmatizando o defeito do rei.
Apresentou-se-lhe pois, chorando, e disse:
- Meu senhor, no venho tua presena pedir que me vingues da injria que
me foi feita. Para me aliviar, ensina-me a maneira como suportas as afrontas que te
fazem, de modo a que eu possa aguentar com pacincia aquela que sofri. Deus sabe
que, se me fosse possvel, pass-Ia-ia para ti, visto seres to complacente.
O rei, at ento lento e preguioso, pareceu ter acordado de um sonho.
Comeando pela injria feita quela dama, que vingou asperamente, tornou-se um
rgido perseguidor de todos aqueles que se atreveram a atentar contra a majestade da
sua coroa.
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Fragmento da msica Eduardo e Mnica da banda Legio
Urbana
Eduardo e Mnica
Legio Urbana
Composio: Renato Russo Quem um dia ir dizer Que existe razo Nas coisas feitas pelo corao? E quem ir dizer Que no existe razo? Eduardo abriu os olhos, mas no quis se levantar Ficou deitado e viu que horas eram Enquanto Mnica tomava um conhaque No outro canto da cidade, como eles disseram... Eduardo e Mnica um dia se encontraram sem querer E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer... Um carinha do cursinho do Eduardo que disse: "Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir" Festa estranha, com gente esquisita [...] E a Mnica riu, e quis saber um pouco mais Sobre o boyzinho que tentava impressionar E o Eduardo, meio tonto, s pensava em ir pra casa " quase duas, eu vou me ferrar... Eduardo e Mnica trocaram telefone Depois telefonaram e decidiram se encontrar O Eduardo sugeriu uma lanchonete, Mas a Mnica queria ver o filme do Godard Se encontraram ento no parque da cidade A Mnica de moto e o Eduardo de camelo O Eduardo achou estranho, e melhor no comentar Mas a menina tinha tinta no cabelo
[...]
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ATIVIDADE:
1. Encontre na letra elementos do conto (narrador, personagens,
enredo, espao e tempo) presentes nessa msica.
2. Quais as diferenas entre Eduardo e Mnica? Que elementos os
tornam to diferentes?
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ATIVIDADE ORAL PREPARO PARA A LEITURA
1. De onde vocs imaginam que esses textos foram retirados?
2. O que vocs acham dos ttulos? Faz algum sentido?
APS A LEITURA DO TEXTO ATIVIDADE ORAL
1. Quem so Bocaccio e Eugnio Montale?
2. Quais os objetivos dos textos? Os textos so de pocas
diferentes?
3. Qual a relao de semelhana entre os trs textos?
4. O narrador tem grande importncia em qualquer texto ou depende
do tipo de texto?
5. Existe relao entre esses contos? J ouviu falar em
Decamero?
ATIVIDADE DE ANLISE DO TEXTO
6. Qual a inteno principal do narrador nestes textos?
7. H diferenas e semelhanas entre o trs contos. O mais provvel
que os textos procedam de -------------------------------------------------
8. Por que o autor faz uso da ironia?
9. Os trs textos terminam da forma esperada?
PRTICA DA ESCRITA
Proposta 1 As pessoas sempre nos surpreendem. Relacione essa
afirmao com os textos e escreva um texto sobre esse assunto.
- 29 -
Proposta 2 Escreva um final diferente para o conto Uma noite difcil.
(Professor retire o final do conto original e s o apresente a turma aps o
trmino da atividade).
Proposta 3 - Escreva um incio diferente para os contos retirados do
livro Decamero.
Proposta 4 Recorde alguma experincia importante de sua vida e transforme-a em um conto. Crie um narrador que conduza a histria dando-lhe verossimilhana. (Explique aos seus alunos o que verossimilhana e a importncia de convencer o leitor. Os alunos devem ser bem mediados sabendo o qu, para qu, e para quem escrever.)
Proposta 5 Transforme a msica Eduardo e Mnica em um conto em prosa ou inspirado em uma outra msica crie um novo conto.
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Edgar Allan Poe (imagem5) James Joyce (imagem6)
Unidade 2- Contos norte-americanos, ingleses e alemes
Professor,
Esta unidade pode ser trabalhada com as seguintes sries:
7 e 8 do ensino fundamental e 1, 2 e 3 do ensino mdio.
http://www.snpcultura.org/tvb_a_lenda_s_juliao_hospitaleiro.html##http://www.snpcultura.org/tvb_a_lenda_s_juliao_hospitaleiro.html##http://www.snpcultura.org/tvb_a_lenda_s_juliao_hospitaleiro.html##http://www.snpcultura.org/tvb_a_lenda_s_juliao_hospitaleiro.html##
- 30 -
Cabe a voc, aps explanaes sobre o assunto, escolher o
texto e as sugestes de atividades (sistematizao) que
melhor auxiliem a resoluo das dificuldades do seu aluno.
Sugerimos iniciar o trabalho com o filme O paciente ingls.
Embora o filme seja uma adaptao de romance homnimo,
tem relao com o tema, pois trata da busca do
conhecimento e contato com uma sociedade diferente
daquela a qual pertence a personagem. H caractersticas
que so comuns ao filme e aos contos aqui selecionados.
De forma individual ou coletiva, aps a explorao do filme,
pea para seus educandos relatarem o que eles
compreenderam, cenas que foram relevantes, temticas
importantes (a busca do conhecimento , o preconceito de
classe, a amizade, a filosofia e outros).
Solicite coletiva ou individualmente uma produo textual
escrita sobre os temas abordados por eles. Nessa produo
poder explorar os personagens principais, suas
caractersticas, comportamentos da poca, as variaes
lingusticas.
Proceda a leitura dos contos e faa uma intertextualidade
entre contos e filme ou apenas entre conto e conto.
Conduza a resoluo das atividades escritas.
Sugerimos trabalhar com a dramatizao de um trecho do
filme ou dos contos.
Sugerimos para leitura de texto longo como o do conto
Lusa um sistema de leitura compartilhada, onde o
professor inicia a leitura em voz alta e posteriormente cada
aluno l um trecho do texto e expe para os demais um
resumo do que leu. Cada aluno passa a ter contato com o
texto e ainda o socializa com os colegas. Para o texto
Arbia sugerimos que cada aluno tenha o seu exemplar,
uma vez que no se trata de texto extenso. O conto Arbia
ser propositalmente apresentado sem o final, ou seja, sem
- 31 -
o ltimo pargrafo para que o aluno possa finaliz-lo.
Posteriormente o professor apresentar a verso oficial do
conto e juntos discutiro a pertinncia do final escolhido pelo
aluno.
Esta unidade permite ao professor trabalhar com as
diferenas e caractersticas dos contos.
Para os contos alemes, a estratgia de ao a mesma
sugerida para os contos ingleses, inclusive o mesmo filme.
Caso o professor deseje pode trabalhar com o filme Europa
ou trechos dele.
Sugerimos para leitura do conto A bela genovesa um
sistema de leitura compartilhada, em que cada aluno l um
trecho do texto e expe para os demais um resumo do que
leu. Por tratar-se de um texto longo quase uma novela, essa
leitura compartilhada nos parece uma boa soluo para a
sala de aula, j que cada aluno passa a ter contato com o
texto e ainda o socializa com os colegas. Essa experincia j
foi utilizada em alguns locais com sucesso. Para o texto As
aventuras do baro Munchausen sugerimos que cada aluno
tenha o seu exemplar, uma vez que no se trata de texto
extenso.
O professor pode preparar uma atividade geradora de
curiosidade, por exemplo, pode recortar figuras de barris e
coloc-las, cada uma dentro de um envelope. Ao abrir seu
envelope de carta e se deparar com pequenos barris a
curiosidade ser ativada e levar os alunos a relacionar texto
e envelopes. Outra sugesto para trabalhar com o conto
Arbia colocar nos envelopes desenhos do que seria um
mercado rabe, ou ainda papis em branco para que o aluno
desenhe, segundo sua concepo, o que seria um mercado.
Todas s vezes em que houver atividade escrita solicitando a
escrita de um final para o conto, o professor deve retirar o
final original e somente apresent-lo aps trmino da
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atividade. No Caderno Pedaggico o conto aparecer sem o
final que ser ofertado no caderno-resposta, se necessrio.
Contos norte-americanos:
Voc guarda mgoa? vingativo?
Edgar Allan Poe (1809-1849) o nico escritor americano que tambm
influenciou a poesia europia. Um dos contistas mais lidos, de esprito
inconformado e bomio que consegue manter o pblico preso sua obra.
o BARRIL DE AMONTILLADO
(Edgar Allan Poe)
Suportei, da melhor maneira que pude, as muitas injrias de Fortunato,
mas quando ele se atreveu a insultar-me, jurei vingana. Vs, que conheceis
to bem a natureza de minha alma, no haveis de supor tenha eu pronunciado
qualquer ameaa. Um dia eu me vingaria - isto era coisa to definitivamente
assentada que exclua qualquer ideia de risco. Eu no s deveria punir, como
punir com impunidade. Um insulto permanece sem troco quando os efeitos da
vingana atingem ao prprio vingador ou quando este falha em tornar-se
conhecido como tal daquele que o insultou.
Fique entendido que jamais dei oportunidade a Fortunato, quer por
palavras, quer por atos, de duvidar de minha boa disposio. Continuei a sorrir-
lhe, como antes, e ele no percebeu que, agora, eu sorria ideia de mat-Io.
Fortunato tinha um ponto fraco, muito embora, sob outros aspectos,
fosse homem para ser respeitado e mesmo temido. Ele se gabava de ser
conhecedor de vinhos. Poucos italianos tm o verdadeiro esprito do "virtuose".
Quase sempre, o entusiasmo que demonstram nasce da ocasio ou da
- 33 -
oportunidade que se lhes apresenta, de engambelarem milionrios ingleses ou
austracos. No que respeitava ao conhecimento de quadros ou pedras
preciosas, Fortunato era to impostor quanto seus compatriotas, mas, em
matria de vinhos velhos, era sincero. Nesse particular, alis, eu mesmo no
diferia muito dele -- era emrito conhecedor das vindimas italianas e, sempre
que podia, procurava enriquecer minha adega.
Foi num entardecer, durante a suprema loucura da estao
carnavalesca, que encontrei meu amigo. Saudou-me com excessiva
cordialidade; havia estado a beber copiosamente fantasiado de palhao. Trazia
um traje muito justo, de listas, e a cabea coberta por um chapu cmico, cheio
de guizos. Fiquei to encantado em v-Io que quase lhe quebrei a mo, ao
apert-Ia. Disse-lhe;
- Meu caro Fortunato, que sorte encontr-Ia! Voc parece estar
admiravelmente bem. Mas recebi um barril de vinho que passa por Amontillado
e tenho minhas dvidas.
- Como? - disse ele - Amontilado? Um barril? Impossvel! Em pleno
carnaval?
- Tenho minhas dvidas --- repliquei --- e fui tolo a ponto de pagar por
ele, sem o consultar primeiro. Mas que no consegui encontr-Io e fiquei com
medo de perder um bom negcio.
- Amontillado!
- Tenho minhas dvidas.
- AmontilIado!
- E quero esclarec-Ias.
- Amontillado!
- Caso voc tenha algum compromisso, vou procurar Luchesi.
Se existe algum de senso crtico, ele. Ele me dir...
Luchesi incapaz de distinguir um Amontillado de um Sherry.
E, no entanto, alguns tolos diriam que o paladar dele se compara ao
seu.
- Vamos embora.
- Para onde?
- Para sua adega.
- No meu amigo. No quero abusar de sua boa vontade.
- 34 -
Percebo... que voc tem um compromisso, Luchesi...
- No tenho compromisso algum. Vamos.
- No, meu amigo. No pelo compromisso, mas porque vejo estar voc
severamente resfriado. A adega insuportavelmente mida. Est cheia de
incrustaes de salitre.
- Vamos, mesmo assim. O resfriado no nada. Amontillado.
Assim falando, Fortunato apossou-se de meu brao. Colocando sobre o
rosto uma mscara de seda preta e envolvendo-me numa roquelaure,
apressei-me a gui-Io ao meu palcio.
No havia criados em casa; tinham ido divertir-se. Eu lhes havia dito que
no voltaria seno de manh e tinha-lhes dado ordens explcitas de no se
ausentarem da casa. Tais ordens eram suficientes, sabia-o bem, para faz-Ios
desaparecer imediatamente, to logo eu lhes voltasse s costas.
Tirando duas tochas de seus suportes, e entregando uma a Fortunato,
guiei-o atravs de vrias sries de quartos at o arco que levava adega
subterrnea. Desci uma longa e sinuosa escada, pedindo a Fortunato que
tivesse cuidado ao acompanhar-me. Chegamos, por fim, ao p da escada e
paramos, por um instante, sobre o cho mido das catacumbas dos
Montresors.
O modo de andar de meu amigo no era firme, e os guizos de seu
chapu tilintavam a cada passo.
- O barril - disse ele.
- Est logo adiante - respondi. - Mas observe o fino rendilhado que brilha
nas paredes desta cava.
Ele se virou para mim e olhou-me nos olhos com duas rbitas opacas
que destilavam a reuma da intoxicao.
- Salitre? --- perguntou, por fim.
- Salitre. - repliquei - H quanto tempo est voc com essa tosse?
- Ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! ugh! Ugh! ugh! ugh! ugb!
ugh!
Meu pobre amigo estava impossibilitado de responder por muitos
minutos.
- No nada - disse-lhe, afinal.
- Venha - acrescentei com deciso, - vamos voltar; uma sade
- 35 -
preciosa. Voc rico, respeitado, admirado, amado; feliz, como um dia eu
tambm o fui. Sua falta ser sentida; a minha, no. Vamos voltar; voc ficar
doente e eu no quero responsabilizar-me por isso. Ademais, h Luchesi...
- Chega - redarguiu, - a tosse no tem importncia, no me matar. No
morrerei de uma simples tosse.
- Certo, certo - respondi - e, na verdade, no tinha inteno de alarm-Io
desnecessariamente, mas voc deve ter todo o cuidado. Um trago deste
Medoc nos defender da umidade.
Quebrei o gargalo de uma garrafa, que retirei de uma longa fileira de
outras semelhantes empilhadas sobre o cho.
- Beba - disse, apresentando-lhe o vinho.
Com um olhar de soslaio, ele o levou aos lbios. Fez uma pausa e
assentiu para mim, com familiaridade, enquanto os guizos tilintavam.
- Bebo - disse ele- aos mortos que repousam nossa volta.
- E eu, sua longa vida.
Ele de novo me tomou pelo brao e continuamos. - Estas cavas -
observou - so amplas.
- Os Montresors - repliquei - eram uma famlia grande e numerosa.
- No me lembro do seu braso.
- Um enorme p humano, de ouro, sobre um campo azul; o p esmaga
uma serpente cujas presas esto embebidas no calcanhar.
- E a legenda?
- Numa me impune lacessit.
- Bom! - disse ele.
O vinho fizera seus olhos brilhantes e os guizos tilintavam.
[...]
- O salitre! - disse eu - veja como aumenta. Pende como musgo das
paredes. Estamos abaixo do. leito do rio. As gotas de umidade pingam entre os
ossos. Venha, voltemos antes que seja tarde demais. Sua tosse...
- No nada - disse ele, - continuemos. Mas, antes, outro trago de
Medoc.
Quebrei o gargalo e estendilhe uma garrafa de De Grve. Esvaziou-a de um
s flego; seus olhos brilhavam com luz cruel. Riu e atirou a garrafa para cima,
com um gesto que no entendi.
- 36 -
Olhei-o surpreendido. Ele repetiu o movimento grotesco.
Voc no compreende? - disse, - Eu no repliquei-lhe.
- Ento voc no pertence irmandade.
- Como?
- Voc no dos maons.
Sim, sim disse-lhe - sim, Sim. Voc? Impossvel! Um maom? Um
maom - repliquei.
- D-me um sinal - pediu.
- Ei-lo - respondi, extraindo uma tralha de sob as pregas da minha
roquelaure.
- Voc graceja - exclamou, recuando alguns passos. Mas vamos ao
Amontillado.
- Assim seja - disse eu, guardando a ferramenta sob a capa e de novo
oferecendo-lhe o brao. Ele se apoiou sobre mim, pesadamente. Continuamos
nosso caminho, procura do Amontillado. Passamos por uma srie de arcos
baixos, descemos, continuamos e, descendo novamente, chegamos a uma
cripta profunda, cujo ar confinado enfraquecia a chama de nossas tachas.
Na extremidade mais afastada dessa cripta, havia outra, menos
espaosa. Suas paredes estavam ocultas por uma pilha de despojos humanos
que subia at a abbada, maneira das grandes catacumbas de Pans. Trs
lados da cripta interior estavam assim ornamentados. No quarto, os ossos
haviam sido derrubados ao cho e jaziam promiscuamente, formando, em certo
ponto, um monte de alguma altura. Na parede, exposta pela remoo dos
ossos, percebemos ainda mais um recesso, de quatro ps de profundidade,
trs de largura e seis ou sete de altura. Parecia no ter sido construdo para
qualquer fim especial, e sim originado meramente do intervalo entre duas das
colossais colunas que suportavam o teta da catacumba, sendo o seu fundo
uma das paredes circunscreventes, de slido granito.
Foi em vo que, erguendo a tocha de luz mortia, tentou Fortunato
esquadrinhar as profundezas do recesso. O fraco claro no nos permitia ver-
lhe o fundo.
- Continue - disse eu, - a dentro est o Amontillado.
Quanto a Luchesi...
- um ignorante - interrompeu meu amigo, conforme avanava, seguido
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de perto por mim. Num instante, alcanou a extremidade do nicho e,
encontrando seu progresso obstado por uma rocha, parou, estupidamente
surpreso. Um momento depois, eu j o tinha algemado ao granito. Soldados a
este, havia dois grampos de ferro, distantes um do outro dois ps, em sentido
horizontal. De um deles pendia uma corrente curta, do outro um cadeado.
Enrolados os grilhes ao redor do seu pulso, foi coisa de poucos segundos
algem-lo. Ele estava atnito demais para resistir. Retirando a chave do
cadeado, sa do recesso.
- Passe a mo - disse eu, - por sobre as paredes e no poder deixar de
sentir salitre. muito mido, na verdade. Mais, uma vez, deixe-me que volte.
No? Ento, vejo-me positivamente forado a abandon-Io. Mas, antes disso,
devo prestar-lhe todas as pequenas atenes ao meu alcance.
- Amontillado - balbuciou meu amigo, ainda no restabelecido do seu
espanto.
- Certo, - repliquei - o Amontillado.
Dita estas palavras, pus-me em atividade por entre a pilha de ossos de
que j falei. Atirando-os para o lado, deixei a descoberto certa quantidade de
pedras para construo e argamassa. Com estes materiais com a ajuda da
minha tralha, comecei a emparedar com vigor, a entrada do nicho.
Tinha apenas assentado a primeira camada de alvenaria quando descobri que
a intoxicao de Fortunato havia, em grande parte, se dissipado. A primeira
indicao que tiver a esse respeito foi um grito surdo lamentos vindo das
profundezas do recesso. No era o grito de um bbado. Houve, depois, um
longo e obstinado silncio. Assentei a segunda camada, e a terceira, e a
quarta; ouvi, ento, agitar furioso das cadeias. 0 rudo prolongou-se por
vrios minutos, durante os quais, para ouvi-lo com maior satisfao, interrompi
o trabalho e senteime sobre os ossos. Quando por fim o rudo acalmou-se,
retomei, a trolha e terminei, sem interrupo, a quinta, a sexta e a stima
camadas. A parede erguia-se, agora, altura do meu peito. Fiz nova pausa e,
erguendo a tocha por sobre a alvenaria, lancei seus dbeis raios luminosos
sobre a figura l dentro.
Uma sucesso de gritos altos, e agudos, arrancados subitamente da
garganta do vulto algemado, pareceu empurrar-me para trs. Por breve
momento, hesitei - tremi. Desembainhando o espadim, comecei a apalpar,
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com ele, o recesso, mas um pensamento instantneo tranquilizou-me. Coloquei
a mo sobre a slida estrutura da catacumba e senti-me satisfeito. Voltei
parede. Repliquei aos gritos do que clamava. Fiz-lhes eco - ajudei-os -
ultrapassei-os em volume e intensidade. Fiz tudo isso e o gritador calou-se.
Era agora meia-noite, e minha tarefa chegava ao fim. Completara a
oitava, a nona e a dcima camadas. Terminara a maior parte da dcima
primeira e ltima; faltava apenas a ltima pedra para ser assentada. Lutei
contra o seu peso e consegui coloc-Ia parcialmente no lugar que lhe era
destinado. Mas, nesse momento, veio do nicho um riso surdo que fez meus
cabelos se eriarem. Foi seguido por uma voz triste, que tive dificuldade em
identificar como a do nobre Fortunato. Disse a voz;
- Ha! Ha! ha! - he! He! he! - boa brincadeira, muito boa, na verdade -
uma piada excelente. Daremos boas risadas, no palcio - he! he! he! - quando
estivermos bebendo nosso vinho - He! He! He!
- O Amontillado! - disse eu.
- He! he ! he! - he! he! he! - sim, o Amontillado. Mas no est ficando
tarde? No estaro nos esperando, no palcio, Lady Fortunato e os outros?
Vamos embora.
- Sim - disse eu, - vamos embora.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim - disse eu, - pelo amor de Deus!
Mas esperei em vo por resposta a estas palavras. Impacientei-me.
Chamei alto:
- Fortunato!
Nenhuma resposta. Chamei de novo: - Fortunato!
Nenhuma resposta ainda. Enfiei uma tocha pela abertura que testara e
deixei-a cair dentro do recesso. Ouviu-se, de volta, apenas um tilintar de
guizos. Eu j estava nauseado pela umidade das catacumbas. Apressei-me a
terminar o trabalho. Forcei a ltima pedra at coloc-Ia no lugar certo e
cimentei-a. Contra a alvenaria recm-terminada, reempilhei o velho monte de
ossos. H meio sculo que mortal algum os perturbou. ln pace requiescat!
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ATIVIDADE:
1-Aparecem vrias expresses, frases ou palavras em outra lngua. Identifique o
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significado da expresso: In pace requiescat.
2-Novamente o mistrio, o suspense nos aprisiona, tornam-nos
refns da curiosidade, da necessidade de saber como tudo vai acabar.
Quando voc percebeu o que iria acontecer a Fortunato?
3-Pesquise mais sobre a vida de Edgar Allan Poe.
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Contos ingleses:
Voc j ouviu falar em bulling, j conviveu com pessoas
manipuladoras ou ingratas? Leia os contos a seguir e chegue a uma
concluso.
Oscar Wilde nasceu 1854 em Dublin, Irlanda. Filho de William
Robert Wilde, cirurgio-oculista que servia rainha. A me, Jane
Speranza Francesca Wilde, escrevia versos irlandeses patriticos com o
pseudnimo de Speranza.
Foi educado no Trinity College, Dublin e mais tarde em Oxford,
influenciado por Walter Pater e da doutrina da "arte pela arte". Uma
coletnea de seus poemas rendeu fama e fortuna.
Casou-se com a bela Constance Lloyde publicou o "Retrato de Dorian
Gray", com este sua carreira literria deslancha. Oscar e Constance
tinham 2 filhos: Cyril e Vyvyan. Oscar foi preso com acusaes de
conduta homossexual e sentenciado a 2 anos de priso com trabalhos
forados, sendo a ltima parte em Reading Gaol. As condies da priso
causaram uma srie de doenas e o debilitou. Foi declarada sua falncia.
Morreu arruinado em 1900.
O FAUTOR DO BEM
(Oscar Wilde)
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Era noite, e Ele estava s.
E Ele avistou ao longe os muros de uma cidade circular, e caminhou em
direo cidade.
E, aproximando-se, ouviu na cidade o passo dos ps da alegria, e o riso da
boca do prazer, e o ressoante rumor de muitos alades. E bateu porta, e um
dos guardas lhe abriu.
E Ele viu uma casa que era de mrmore e tinha na fachada alvas
colunas de mrmore. As colunas eram vestidas de grinaldas, e por dentro e por
fora havia tochas de cedro. E Ele entrou na casa.
E, quando transps a sala de calcednia e a sala de jaspe, e atingiu a
longa sala dos festins. Ele viu deitado num leito de prpura marinha algum
cujos cabelos estavam coroados de rosas vermelhas e cujos lbios estavam
rubros de vinho.
E aproximou-se-lhe, por detrs, e tocou-lhe no ombro, e disse-lhe:
- Por que levas essa vida?
E o mancebo voltou-se, e O reconheceu, e disse em resposta: - Eu era
leproso, e tu me curaste. Que outra vida poderia eu levar?
E Ele deixou a casa e tornou para a rua.
E pouco depois viu algum de face e vestes arrebicadas e ps calados
de prolas. E vinha seguindo-a, como caador, um mancebo que trajava um
manto de duas cores. Ora, a face da mulher lembrava a bela face dum dolo, e
os olhos do mancebo faiscavam de concupiscncia.
E Ele adiantou-se depressa, e tocou a mo do mancebo, e perguntou-lhe:
- Por que olhas assim para aquela mulher?
E o mancebo voltou-se, e O reconheceu, e disse:
- Eu era cego, e tu me deste a vista. Para que outra coisa poderia eu
olhar?
E Ele avanou, e tocou as vestes arrebicadas da mulher, e disse-lhe:
- No h outro caminho para trilhar que no seja o caminho do pecado?
E a mulher voltou-se, e O reconheceu, e, rindo-se, disse:
- Tu me perdoaste os meus pecados, e o caminho que trilho um
caminho agradvel.
E Ele saiu da cidade.
E, depois de haver sado da cidade, Ele viu, sentado beira da estrada, um
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mancebo a chorar.
E Ele dirigiu-se ao mancebo, e tocou os longos anis dos seus cabelos,
e perguntou-lhe:
- Por que choras?
E o mancebo levantou os olhos, e O reconheceu, e respondeu-lhe:
- Eu tinha morrido, e tu me ergueste dentre os mortos. Que poderia eu
fazer seno chorar?
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ATIVIDADE:
1. A ideia de conto moralizante desmontada? Como? Em que ponto
do texto pode-se chegar esse contraponto?
2. O bem somente se constitui no bem dependendo do ponto de vista
do agraciado e do bem feitor?
3. O que concupiscncia?
4. Por que a palavra Ele inicia sempre com letra maiscula?
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LUSA
(Somerset Maugham)
Nunca percebi o motivo pela qual Lusa se aborrecia comigo. A
verdade que no gostava de mim e eu sabia que, pelas minhas
costas, mas de maneira muito diplomtica, ela raras vezes perdia a
oportunidade de dizer coisas desagradveis a meu respeito. Era
demasiado fina para fazer referncias diretas, mas, com uma
insinuao, um suspiro, um simples gesto dos seus lindos dedos,
tinha a habilidade de explicar tudo quanto queria. Era mestra nos elo-
gios perigosos. De fato, havamo-nos conhecido quase Intimamente,
durante vinte e cinco anos, porm jamais acreditei que ela se
considerasse obrigada a quaisquer laos de amizade ou s
desimpatia. Achava-me grosseiro, brutal, cnico, ordinrio. Admirei-me
sempre que ela no fizesse o que seria mais natural: desconhecer-
me. Pelo contrrio, nunca me largava. Andava sempre a convidar-me
para almoos e jantares, e duas ou trs vezes por ano pedia-me que
fosse sua casa de campo passar o "fim de semana". Por fim,
suspeitei de que havia descoberto o motivo de tudo isso. Ela
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desconfiava de que eu no a tomava a srio, e, se era a razo de no
gostar de mim, era tambm a causa pela qual procurava o meu
convvio: irritava-a o fato de eu a crer ridcula e no descansava sem
me forar a reconhecer o erro e me impor o seu triunfo. Talvez se
capacitasse de que eu lhe via a face por baixo da mscara e pretendia
que, mais tarde ou mais cedo, me convencesse de que a mscara
que era a genuna face. Entretanto, nunca achei que fosse to
embusteira com isso; o que eu perguntava a mim mesmo era se Lusa
troava consigo prpria da mesma forma que o fazia quanto aos
outros; isto , se no seu esprito havia alguma centelha de humorismo.
Em caso afirmativo, talvez existisse maior atrativo para mim e nos
dssemos bem um com o outro, visto partilharmos dum segredo
desconhecido do resto do mundo.
Conhecera Lusa antes de ser casada. Era ela, ento de
corao fraco, exigindo sempre os mximos cuidados, uma rapariga
frgil e delicada com olhos grandes e melanclicos. O pai e a me
adoravam-na num verdadeiro culto. Quando Tom Maitland pediu a
mo dela, os pais ficaram aterrados, pois se tinham persuadido de
que a rapariga, no resistiria s complicaes do matrimnio. Mas,
enfim, no, eram muito abastados, e Tom Maitland passava por ser
rico.
Prometeu ele fazer tudo por Lusa e eles, por fim,confiaram-lha como
um tesouro sagrado. Tom Maitland era alto, seco, de bom parecer e
consumado atleta, e amava-a perdidamente. Porm, sabendo-a fraca
do corao, no esperava conserv-Ia muito tempo na sua
companhia, e meteu-se-lhe na cabea arranjar as coisas de forma a
desforr-la nesses curtos anos que seriam os da sua vida terrena.
Renunciou aos desportos em que fora exmio, no porque ela lho
pedisse (gostava at que ele jogasse golfe e fosse caa), mas
porque, por coincidncia, tinha sempre um ataque cardaco quando
ele se propunha deix-Ia s, durante um dia.
Se havia entre eles divergncia de opinies, ela sempre cedia
em favor do marido, pois no havia esposa mais submissa neste
mundo; mas o corao ressentia-se e Lusa caa de cama, dcil, sem
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uma queixa, e ficava assim por uma semana inteira. Nem ele seria to
mau que a quisesse contrariar, pois isso acarretaria nova discusso
sobre quem havia de condescender e Tom s com muita dificuldade a
obrigava a manter-se dentro do seu ponto de vista. Numa ocasio,
vendo-a disposta a fazer uma caminhada de oito milhas (coisa que
particularmente a interessava) sugeri eu a Tom Maitland que ela
talvez fosse mais forte do que se supunha ele abanou a cabea e
suspirou.
"No, no, muitssimo melindrosa. Tem consultado os
melhores especialistas do corao e todos dizem que a vida lhe est
por um fio. O que possui uma grande fora de vontade". E contou
mulher a observao que eu tinha feito.
"Amanh pagarei tudo isto", disse-me ela, lamentando-se. "Vou
estar s portas da morte".
"s vezes chego a crer que muito capaz de realizar aquilo que
tem em vista", repliquei.
Havia eu notado, tambm que, se um baile estava divertido, ela ficava
a danar at de madrugada; mas, se a festa era sensaborona, Lusa
sentia-se indisposta e Tom via-se obrigado a lev-Ia para casa mais
cedo. Receei, pois, que a minha rplica no tivesse agradado, pois,
concedendo-me, embora, um sorriso, nenhuma satisfao mostrou
nos grandes olhos azuis.
"No h de querer que eu caia morta s para lhe dar esse prazer", -
tal foi a sua resposta.
Lusa sobreviveu ao marido, que adoecera mortalmente em
certo dia por causa dum resfriamento apanhado quando passeavam
em barco a vela. Lusa, nessa ocasio, tinha-se apoderado de todas
as mantas e cobertores a fim de se preservar do frio. Tom deixou-lhe
uma filha e abundante soma de haveres. A viva parecia
inconsolvel. Considerar-se-ia milagre se ela pudesse resistir
comoo, e os parentes e conhecidos calculavam que iria em breve
reunir-se ao marido na sepultura. ris, a filha, era j considerada rf
de pai e me e todos a lastimavam bastante. Quanto a Lusa,
redobravam os cuidados para com ela; no a deixavam mexer-se
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sequer, insistindo para que fizesse o possvel para atenuar o
desgosto. Pensavam que, se ela fizesse alguma coisa que a
aborrecesse mais ou a fatigasse, o corao fatalmente lhe
rebentaria. Ela, por seu lado, declarava que estava perdida sem
remdio, visto no ter um homem para a, tratar; nem sabia como,
assim de sade to delicada, poderia educar a sua querida ris. Os
amigos perguntaram-lhe por que motivo se no tornava a casar. Oh,
com o corao naquele estado, no se punha semelhante problema
... ainda que ela tivesse a certeza de que Tom a desculparia e de
que, para a filha, representava isso a melhor soluo. Mas quem
desejaria ligar-se a uma doente sem esperana, como ela?
Aconteceu, todavia, a singular circunstncia de mais de um jovem se
achar pronto a tomar esse encargo; e, um ano depois da morte de
Tom, Lusa consentiu que Jorge Hobhouse a acompanhasse ao
altar. Jorge era rapaz aprumado, bem parecido, e no estava muito
mal de finanas. Nunca ningum mais reconhecido do que - ele, - s
pelo privilgio de ser autorizado a cuidar daquela criaturinha frgil.
"No te incomodarei durante muito tempo", observou ela.
O marido era militar e cheio de ambies, mas renunciou a tudo. A
sade da mulher obrigava-o a passar o inverno em Monte Carlo e o
vero em Deauville. Hesitara um pouco em desistir da sua carreira.
Lusa, a princpio, no queria ouvir falar em semelhante coisa; mas,
por ltimo, rendeu-se ao fato, como sempre sucedia, e Jorge
preparou-se para tornar os derradeiros anos da sua cara metade to
venturosos quanto possvel.
"No ser por muito tempo", volveu ela. "Procurarei no te ser
incmoda".
Durante os dois ou trs anos que se seguiram, e no obstante a
fraqueza do corao, Lusa arranjou maneira de ir a todas as festas,
sempre muito bem vestida. Jogava forte, danava, e at se distraa
com outros homens do seu agrado. Jorge Hobhouse no tinha a fibra
do primeiro marido de Lusa e, para compensar o seu trabalho de
segundo esposo, entregava-se, de vez em quando, a um pouco de
bebida. possvel que esse hbito tendesse a enraizar-se, embora
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com a reprovao de Lusa, mas felizmente (para ela) a guerra
estalou. Jorge reuniu-se ao regimento a que pertencera, e encontrou a
morte no campo de batalha trs meses depois. Foi grande a dor que a
mulher sentiu; em semelhante conjuntura, no quis desgostar os
outros com as suas prprias mazelas: se teve ataques cardacos,
ningum ouviu falar de tal. Para se distrair e atenuar o desgosto,
transformou a sua vila de Monte CarIo num hospital destinado
convalescena dos oficiais. Os amigos diziam que tamanho esforo
lhe apressaria sem dvida a morte...
"Com certeza que isto me vai matar", confirmou Lusa.
"Bem o sei. Mas que importa? Fao o meu dever".
A tarefa no a matou. Teve tempo para continuar a viver. No havia
casa de repouso que fosse ento mais popular em Frana. Encontrei-
a por essa altura, e acidentalmente, em Paris. Estava ela a almoar
no Ritz com um francs alto e de belas feies. Explicou-me que fora
ali em servio relacionado com o seu hospital, e revelou-me que todos
os oficiais a tratavam com a maior deferncia. No ignoravam quanto
a sade dela era delicada e, portanto, no a deixavam fazer o mnimo
trabalho. Procediam com todas as atenes, como se fossem "seus
maridos". Disse isto, e suspirou.
"Pobre Jorge, mal sabias tu que eu, com este corao, te
sobreviveria!"
"Pobre Tom, tambm", acrescentei eu.
No percebo por que que ela no gostou da minha frase.
Concedeu-me um sorriso forado e ficou com os belos olhos repletos
de lgrimas. E ento observou:
"Voc fala sempre como se invejasse os poucos anos que terei
de vida".
"A propsito: o seu corao vai melhor, no verdade?" "Nunca
h de ir melhor. Consultei esta manh um especialista que me
aconselhou a preparar-me para o pior que pode acontecer".
"Ora, h quase vinte anos que anda nesses preparativos, no
acha?"
[...]
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"Tomar cuidado em mim", esclareceu Lusa. "Ser-lhe-a sem
dvida, penoso habitar com uma invlida como eu, mas deve ser por
pouco tempo, e por isso acredito que ela no se importe muito".
ris era uma rapariga engraada. Haviam-na educado na ideia
de que a sade da me era bastante precria. Enquanto criana no
lhe permitiram que fizesse barulho, e compreendia que a doente no
devia, de nenhum modo, ser perturbada. E, ainda que Lusa dissesse
agora filha que valia a pena fazer sacrifcios por causa duma velha
maadora, a rapariga persistia nos seus cuidados. Sentia prazer em
sacrificar-se; considerava-se feliz fazendo tudo quanto pudesse por
essa me estremecida. Lusa suspirava, e deixava-a agir livremente.
A pequena satisfaz-se em pensar que me est a ser til explicava
a me.
"Nunca pensou que ela a podia abandonar? E em tudo mais
que natural que acontea?" inquiri eu.
o que sempre lhe tenho dito. Eu por mim no conseguirei
proporcionar-lhe distraes. Mas Deus sabe que, por minha causa,
nunca privei delas a ningum".
ris, quando eu abordei o assunto, redarguiu: "Coitada da me,
quer que eu v s festas com as pessoas amigas, mas receio que,
estando eu fora de casa, lhe d algum dos seus ataques. De maneira
que prefiro no sair".
O caso, porm, que a rapariga se apaixonou. Um amigo meu,
rapaz de boa parecena, declarou-se-lhe e ela aceitou-o. Sempre
simpatizei com a filha de Lusa e alegrei-me com o fato, pois havia
assim probabilidade de ver a ris levar a vida a que tinha direito. Ela
que jamais suspeitava que tal coisa fosse possvel. Um dia o
namorado veio ter comigo e disse-me, desgostoso, que o casamento
ficava indefinidamente transferido. ris era de opinio de que no
podia separar-se da me. Se bem que eu nada tivesse com que
assunto, aproveitei a oportunidade e fui visitar Lusa, que apreciava
receber os amigos hora do ch. Agora, que estava a envelhecer
cultivava a companhia de artistas e de escritores. verdade, rompi
eu a certa altura, "consta-me que o casamento j no se realiza".
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"Nada sei a esse respeito. ris, ao que parece, que no quer
casar to cedo quanto eu desejaria. Pedi-lhe de joelhos que se no
importasse comigo, mas recusou-se em absoluto a abandonar-me ".
"No lhe parece que um tanto duro para ela?"
"Se ! J se sabe que ser apenas por uns meses, mas eu
detesto s a ideia de que os outros se sacrificam por mim".
"Querida Lusa, voc enterrou dois maridos; no vejo nenhuma
razo por que no enterre mais outros dois".
"Acha que isso engraado?" replicou-me num tom que tornou
to ofensivo quanto pde.
"Creio que voc nunca reparou numa coisa: que, para fazer o
que lhe apraz, tem sempre fora suficiente, e s se lembra do
corao fraco quando se trata de negcios que a aborrecem".
"Oh, bem sei o que pensa de mim! Nunca acreditou que eu
fosse doente, no isso?"
Olhei para ela sem pestanejar.
"Sim, senhora, nunca acreditei. Estou convencido de que,
durante vinte e cinco anos, nos tem pregado uma partida estupenda.
Considero-a a mulher mais egosta e monstruosa que jamais
conheci. Destruiu as vidas desses dois maridos e agora d cabo
daquela da sua prpria filha".
No ficaria surpreendido se Lusa tivesse um ataque cardaco.
Esperei, pelo menos, uma indignao em forma. Ela, todavia, limitou-
se a um sorriso gracioso.
"Meu caro amigo, qualquer dia arrepender-se- de me haver
dito essas coisas".
"Resolveu, afinal, que a ris no case com aquele rapaz?" "Eu
mesma lhe pedi que casasse. Sei que isso me h de matar, mas no
fao caso. Ningum se importa comigo. Sou uma carga pesada para
toda a gente".
"Disse-lhe que o casamento dela a mataria?" "Obrigou-mo a
dizer".
Como se algum a obrigasse a dizer ou a fazer as coisas que
voc no deseja!"
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"Se a pequena quiser pode casar amanh. Se tenho de morrer
por essa causa, morrerei..."
"Visto isso, pode-se arriscar a experincia?" "No tem
compaixo de mim?"
"Como posso apiedar-me de quem se diverte consigo mesmo
... e que me diverte?"
Nas faces desmaiadas de Lusa apareceu um leve rubor.
Embora sorrisse, os olhos continuaram duros e ferozes. "ris
casar dentro dum ms", declarou ela. "Se alguma coisa me
acontecer, espero que voc e ela se penitenciem ao menos..."
Lusa cumpriu a palavra. Fixou-se a data, encomendou-se um
enxoval pomposssimo, distriburam-se convites ris e o noivo
andavam radiantes. No dia dos esponsais, s dez horas da manh,
Lusa, essa mulher diablica, teve um dos seus ataques - e morreu.
Morreu perdoando amavelmente filha por ter sido a causadora do
desenlace fatal.
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ATIVIDADE:
1- Lusa se constitui na tpica manipuladora, entretanto teria
sido o cmulo da manipulao o que se sucedeu a ela?
2- A culpa inerente aos humanos?
3- Voc j se sentiu muito culpado por