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48 Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano... TRASHUMANTE | Revista Americana de Historial Social 3 (2014): 48-73. ISSN 2322-9381 Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano—Brasileira pelos militares brasileiros no século XX Resumo: A partir de fontes, na maior parte inéditas, o objetivo deste artigo é de analisar a visão e a percepção da frontei- ra entre o Brasil e a Guiana Francesa, uma das mais problemáticas da época colonial, para os militares brasileiros, a partir da resolução do litígio fronteiriço em 1900. Isso, para entender a desconfiança manifestada em ambos os lados, que talvez possa explicar o atraso da inauguração de uma ponte fronteiriça cujas obras já terminaram há mais de dois anos. Palavras—chave: Brasil, Guiana Francesa, Fronteira, Exército brasileiro, Migrações, Integração regional. Entre contención y cooperación. La percepción de la frontra entre Brasil y Guayana Francesa por los militares brasileños en el siglo XX Resumen: A partir de fuentes en su mayoría inéditas, el objetivo de este artículo es analizar la visión y la percepción de los militares brasileños sobre la frontera entre el Brasil y la Guyana Francesa, una de las más problemáticas de la época colonial, a partir de la resolución del litigio fronterizo en 1900. Esto para entender la desconfianza manifestada en ambos lados de la frontera, que quizás pueda explicar el atraso de la inauguración de un puente fronterizo cuyas obras ya se terminaron hace más de dos años. Palabras clave: Brasil, Guyana Francesa, Frontera, Ejército brasileño, Migraciones, Integración regional. Between Contention and Cooperation. The Perception of the Brazilian—French Guianese Boun- dary by Brazilian Officers in the 20th Century Abstract: Drawing mostly from unpublished sources, the aim of this article is to analyze the images and perceptions that the Brazilian military have of the border between Brazil and French Guyana, one of the most problematic during the colonial period, even after the resolution of the border dispute in 1900. This helps to understand the manifested distrust on both sides of the border, and explain the delay in the opening of a frontier bridge built more than two years prior. Keywords: Brazil, French Guiana, Boundary, Brazilian Army, Migrations, Regional Integration. Fecha de recepción: 6 de septiembre de 2013 Fecha de aprobación: 25 de octubre de 2013 Stéphane Granger: Doctor en Geografía por la Université Sorbonne Nouvelle—Paris III. Profesor de historia y geografía en el Liceu International Melkior-Garré de Cayena, Guyana Francesa. Sus líneas de investigación giran en torno a los estudios de la frontera entre la Guyana Francesa y Brasil. Correo electrónico: [email protected]

da fronteira Guiano—Brasileira pelos militares ... · 50 Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano-Brasileira TRASHUMANTE Revista Americana de Historial

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Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano...

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Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano—Brasileira pelos militares brasileiros no século XXResumo: A partir de fontes, na maior parte inéditas, o objetivo deste artigo é de analisar a visão e a percepção da frontei-

ra entre o Brasil e a Guiana Francesa, uma das mais problemáticas da época colonial, para os militares brasileiros, a partir

da resolução do litígio fronteiriço em 1900. Isso, para entender a desconfiança manifestada em ambos os lados, que

talvez possa explicar o atraso da inauguração de uma ponte fronteiriça cujas obras já terminaram há mais de dois anos.

Palavras—chave: Brasil, Guiana Francesa, Fronteira, Exército brasileiro, Migrações, Integração regional.

Entre contención y cooperación. La percepción de la frontra entre Brasil y Guayana Francesa por los militares brasileños en el siglo XXResumen: A partir de fuentes en su mayoría inéditas, el objetivo de este artículo es analizar la visión y la percepción de

los militares brasileños sobre la frontera entre el Brasil y la Guyana Francesa, una de las más problemáticas de la época

colonial, a partir de la resolución del litigio fronterizo en 1900. Esto para entender la desconfianza manifestada en ambos

lados de la frontera, que quizás pueda explicar el atraso de la inauguración de un puente fronterizo cuyas obras ya se

terminaron hace más de dos años.

Palabras clave: Brasil, Guyana Francesa, Frontera, Ejército brasileño, Migraciones, Integración regional.

Between Contention and Cooperation. The Perception of the Brazilian—French Guianese Boun-dary by Brazilian Officers in the 20th CenturyAbstract: Drawing mostly from unpublished sources, the aim of this article is to analyze the images and perceptions that

the Brazilian military have of the border between Brazil and French Guyana, one of the most problematic during the colonial

period, even after the resolution of the border dispute in 1900. This helps to understand the manifested distrust on both

sides of the border, and explain the delay in the opening of a frontier bridge built more than two years prior.

Keywords: Brazil, French Guiana, Boundary, Brazilian Army, Migrations, Regional Integration.

Fecha de recepción: 6 de septiembre de 2013

Fecha de aprobación: 25 de octubre de 2013

Stéphane Granger: Doctor en Geografía por la Université Sorbonne Nouvelle—Paris III. Profesor de historia

y geografía en el Liceu International Melkior-Garré de Cayena, Guyana Francesa. Sus líneas de investigación

giran en torno a los estudios de la frontera entre la Guyana Francesa y Brasil.

Correo electrónico: [email protected]

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Stéphane Granger

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Entre contenção e cooperação. A percepção da fronteira Guiano—Brasileira pelos militares brasileiros no século XXStéphane Granger

Introdução

No mundo em via de globalização pelos fluxos humanos, de capitais e de merca-dorias que caracteriza o período pós-Guerra fria, com as integrações continentais

o papel das fronteiras parece se tornar menos decisivo, essas se tornando mais inter-faces do que barreiras principalmente nos continentes americano e europeu. Assim, a maior potência da América do Sul e motor da integração latino-americana, o Brasil, cuja famosa escola de geopolítica teorizou a necessidade e o papel de fronteiras bem marcadas, 1 está cada vez mais cercado de pontes transfronteiriços marcando amizade como a integração física com os países vizinhos. A última dessas pontes, três anos depois da inauguração da ponte transfronteiriça com a República da Guiana, fica em cima do rio Oiapoque, marcando a fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa, departamento e região de ultramar da França. Terminada em 2011, simbolizará um fronteira única, pois unindo fisicamente o Brasil à França! 2 Mas ainda está esperando por sua inaugu-ração, prevista somente para 2014, por que o Brasil decidiu finalmente antes terminar a construção da alfândega e o asfaltamento da estrada principal.

Parte integrante da República Francesa desde o novo estatuto de 1946 que pôs fim ao estatuto colonial, a Guiana Francesa conhece uma situação política semelhante ao caso do Havaí nos Estados Unidos, quinquagésimo estado da fede-ração mas situado longe do território continental, no mundo polinésio do oceano Pacífico: o interessante no caso é que a fronteira Guiana Francesa/Brasil torna-se assim, com 730 quilômetros, a maior fronteira terrestre da França. Mas a tomada de consciência das vantagens dessa vizinhança pelas autoridades nacionais ou federais da França e do Brasil é extremamente recente, tanto por causa do estatuto fran-cês da Guiana como do receio seguido do esquecimento decorrente da história tumultuada da demarcação dessa fronteira. De fato, a desconfiança, compartilhada

1. Shiguenoli Miyamoto, Geopolítica e poder no Brasil (Campinas: Edições Papirus, 1995).

2. Stéphane Granger, “La Guyane et le Brésil, ou la quête d’intégration continentale d’un département français d’Amérique” (Tese de Doutorado em Geografia, Université de Paris III/IHEAL, 2012) 688-690.

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pelos brasileiros como pelos franco-guianenses, caracterizou a percepção mutual de cada lado da fronteira durante a maior parte do século XX. 3

Como explicar tal fato, quando se sabe das calorosas relações que sempre man-tiveram a França e o Brasil? 4 Se a França ignorou muito tempo essa fronteira afas-tada demais, não foi o caso do Brasil, e principalmente do Exército, que sempre olhou com desconfiança essa fronteira com uma colônia e um território europeu na Amazônia, como mostram os documentos que estudaremos.

Nosso objetivo é de analisar, a partir de relatórios de oficiais do Exército em missão na fronteira ou no Amapá, na maior parte inéditos, a evolução da percepção e do uso dessa fronteira a partir da sua delimitação definitiva em 1900, do ponto de vista militar, até hoje, na véspera da inauguração de uma ponte transfronteiriça. Entre necessidades de afirmação territorial na cobiçada Amazônia e necessária abertura para acabar com o isolamento dessa região afastada dos centros políticos e econômicos brasileiros como franceses, essa percepção no entanto frequentemente foi influençada pelo contexto internacional: Segunda Guerra mundial, Guerra fria e globalização atual, assim como as necessidades da segurança nacional, opondo-se as vezes às aberturas econômicas impulsas pelas elites dirigentes.

1 A fronteira Amapá-Guiana Francesa, uma fronteira remota e pouco povoada

Uma fronteira, linha de divisão política separando dois Estados, “discontinuidade geopolítica com função de marcagem real, simbólico e imaginária”, 5 pode ter um papel de barreira ou contenção, ou pelo contrário um papel de zona de contacto e in-terface. A atual fronteira entre Brasil e Guiana Francesa está hesitando entre essas duas concepções. A França desenvolveu já na época do rei D. Luís XIV uma teoria de fron-teiras “naturais”, rios ou montanhas para separar-se de nações vizinhas, enquanto os portugueses queriam controlar bacias hidrográficas inteiras como a do Amazonas para dominar seu território colonial, o que não podiam fazer na metrópole com a Espan-ha. Porém, foi a concepção francesa que prevaleceu com a escolha de rios para separar as possessões francesas e portuguesas do norte da Amazônia, no tratado de Utrecht em 1713. O rio escolhido não só separava duas soberanias rivais como também dois mercados, proibindo o comércio entre as duas colônias. 6 Assim a fronteira, apesar de nunca demarcada, marcava a separação tanto política como econômica numa região disputada e cobiçada por duas potências rivais, consagrando até um isolamento con-tinental da Guiana Francesa que quase não se desmentiu até hoje. 7

3. Granger 74-88.

4. Mário Carelli, Cultures croisées, histoire des échanges culturels entre la France et le Brésil de la découverte aux temps modernes (Paris: Nathan, 1993) 147-205.

5. Michel Foucher, L’invention des frontières (Paris: Fondation pour les Etudes de Défense Nationale, 1986) 22.

6. “Tratado de Paz, entre sua magestade Christianíssima, e sua Magestade Portuguêsa, concluido em Utrecht a 11 de abril de 1713”, Joaquim Caetano da Silva, L’Oyapoc et l’Amazone, vol. 2 (París: Editions Lahure, 1899) Anexo s.p.

7. Marc-Emmanuel Privat, “Frontières de Guyane, Guyane des frontières”, 12 de septembre de 2011. www.terresdeguyane.fr/articles/frontieres/default.asp (12/09/2011).

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Mas um rio, que para os indígenas sempre serviu como via de comunicação, não forma uma barreira intransponível. O geopolítico brasileiro Everardo Bac-kheuser, inspirado pelo geógrafo alemão Ratzel, tinha definido, entre outras na sua obra Geopolítica geral e do Brasil (1952), a teoria das fronteiras vivas (em contacto com outros povos) opostas às fronteiras mortas (despovoadas), principalmente lo-calizadas na Amazônia, e com perigo de serem ocupadas por outras nações. Essa preocupação sempre foi muito forte no Brasil: a primeira constituição republicana de 1891 atribuía ao Estado toda a porção de territórios fronteiriços necessária à defesa do país, enquanto o presidente Vargas em 1934 militarizava a Comissão demarcadora de limites, determinando uma faixa de 150 quilômetros, confirmada pelas constituições posteriores. 8

De fato, os brasileiros rapidamente entenderam o perigo para a soberania na-cional dessas fronteiras em lugares despovoados, como era o caso da fronteira com a Guiana Francesa. Assim, o diplomata e historiador das fronteiras Teixeira Soares, ex-chefe da Divisão das Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores, quando Getúlio Vargas dirigia o Brasil nos anos 30, preconizando uma política ativa de po-voamento de toda a região amazônica do Venezuela às Guianas, vulnerável demais, afirmava: “Fronteira abandonada e morta não constitui afirmação de soberania. Pelo contrário constitui um desdém dessa soberania. Además, a fronteira aban-donada e morta convida à invasão clandestina de contrabandistas, aventureiros e elementos perigosos a soldo de governos estrangeiros”. 9

Essa situação podia aplicar-se ao caso do Oiapoque, fronteira viva na parte inferior de seu curso, mas separando dois lugares bastante despovoados e isolados do resto do território nacional, portanto com possibilidades de reivindicações por parte do vizinho. Como grande potência, o Brasil precisava de fronteiras seguras e reconhecidas, com um papel afirmado de barreira para que depois o país possa se abrir tranquilamente aos vizinhos, como já tinham definido os grandes diplomatas Alexandre de Gusmão na época colonial, Duarte da Ponte Ribeiro e o barão do Rio Branco no século 19, como no século 20 toda a escola da geopolítica militar brasileira. 10

O laudo suíço de 1900 que atribui definitivamente ao Brasil o Território con-testado pela França entre os rios Araguari e Oiapoque, pôs fim pacificamente a um litígio de três séculos decorrendo das rivalidades coloniais franco-portuguesas. 11 O Tratado de Utrecht, assinado em 1713 pelas principais potências europeias da épo-ca, tinha fixado a fronteira entre as possessões portuguesas e francesas da América do Sul num rio “Japoc ou Vicente-Pinção” nunca localizado com precisão, que só podia ser o Oiapoque para os portugueses (e mais tarde os brasileiros) e o Araguari,

8. Shiguenoli Miyamoto, Geopolítica e poder no Brasil (Campinas: Edições Papirus, 1995) 81.

9. Álvaro Teixeira Soares, História da formação das fronteiras do Brasil (Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972) 351.

10. Entre outros, o pensamento de Álvaro Teixeira Soares, Everardo Backheuser, os generais Golbery do Couto e Silva e Carlos de Meira Mattos, ver Miyamoto 94-105, 117-134, e Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil (Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 2002) 178-197, 372-377.

11. Arthur Henry, La Guyane, son histoire 1640-1946 (Cayenne: Laporte, 1950) 245-247; Fernando Rodrigues dos Santos, História do Amapá (Macapá: Autor, 1998) 50-52.

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perto das bocas do Amazonas, para os franceses. 12 Daí decorreram dois séculos de luta, os franceses conseguindo estender a Guiana Francesa até o rio Araguari pelo Tratado de Badajoz em 1801, os portugueses se vingando em 1809 pela ocupação da Guiana Francesa inteira, que só devolveram em 1817 com a fronteira no rio Oiapoque após a queda do imperador Napoleão I. 13 As reivindicações francesas após a independência do Brasil e a neutralização do território contestado em 1841 só acabaram com a arbitragem e o laudo suíço de 1900, atribuíndo o Contestado ao Brasil, confirmando assim a tese luso-brasileira da fronteira no rio Oiapoque, graças à atuação do barão do Rio Branco que mostrou a inanidade das pretensões francesas. 14 Isso marcou o triunfo das concepções da diplomacia e da geopolítica brasileiras, baseadas em arbitragens internacionais para evitar guerras, e adequação entre o território e o povoamento brasileiro. 15 A partir deste momento, Brasil e Guiana Francesa, separados definitivamente pelo Oiapoque, entraram num longo período de ignorância. Agora bem definida, a fronteira também se tornou mental e psicológica: magoados pelo conflito e suas consequências, brasileiros e franco-guianenses, apesar da proximidade geográfica, tiveram a partir deste momento pouquíssimas relações, tanto econômicas como culturais ou políticas. 16

Hoje, duas cidades gêmeas estão quase na frente, de cada lado do Oiapoque: a brasileira Oiapoque (aproximadamente 25.000 habitantes) e a franco-guianense Saint-Georges (com aproximadamente 5.000 habitantes, ambas com uma forte população clandestina), ligadas por 15 minutos de barco a motor, passando por baixo da ponte transfronteiriça ainda não em funcionamento. Essa fronteira tem uma outra conexão mais ao sul, entre as comunidades brasileiras de Vila Brasil e Ilha Bela, por enquanto sem existência oficial em pleno Parque nacional do Tu-mucumaque, e o município francês de Camopi, povoado de indígenas de etnia tupi-guarani todos cidadãos franceses, e invadido por milhares de garimpeiros bra-sileiros impedidos de efetuar suas atividades do outro lado do rio. Uma dinâmica demográfica portanto a favor do Brasil, situação semelhante à das fronteiras com Suriname, Uruguai, Bolívia ou Paraguai, ultrapassadas por garimpeiros, seringuei-ros ou agricultores brasileiros. 17 No entanto, uma fronteira que muito tempo foi

12. José Maria da Silva Paranhos, barão do Rio Branco, Frontières entre le Brésil et la Guyane française, 2ème mémoire du Brésil (Paris & Berna: Imprimerie Nationale/Imprimerie Staempfli, 1899) 13-14.

13. Arthur Henry, La Guyane, 194-195; Luis Felipe de Castilhos Goycochêa, A diplomacia de D. João VI em Caiena (Rio de Janeiro: Gráfica Tupy Ltda, 1963) 171.

14. José Maria da Silva Paranhos, barão do Rio Branco, Frontières entre le Brésil; Foucher, 225-227.

15. Cervo e Bueno 181, 196-197.

16. Granger 74-88, 411-416.

17. Entre outros (imprensa excluída): Alfredo Wagner Berno de Almeida, “Exportações das tensões sociais na Amazônia: Brasivianos, brasuelanos e brajolas, identidades construídas no conflito”, Travessia 21 (2005) 28-36; Hisakhana Pahoona Corbin, Brazilian migration to Guyana as a livelihood strategy, a case study approach (Belém: Mestrado NAEA/UFPa, 2007); Luis Aimberê Freitas, Fronteira Brasil/Venezuela, encontros e desencontro (São Paulo: Corprint-Gráfica Editora, 1998); Granger 205-228, Armando Zurita Leão, Amazônia, fronteira e internacionalização de conflitos, o aviamento das brasileiras trabalhadoras de sexo no Suriname (Belém: IDA, 2001); Márcia Maria de Oliveira, “A mobilidade humana na tríplice fronteira: Peru, Brasil e Colômbia”, Estudos avançados 20.57 (2006):183-196; Maria Cunha Pereia, “Processos migratórios na fronteira Brasil-Guiana”, Estudos Avançados 20.57 (2006): 209-219; Laetitia Perrier-Bruslé, “Intégration en Amazonie bolivienne”, Coopération et intégration, perspectives panaméricaines, org. Taglioni et Théodat (Paris: L’Harmattan, 2007) 253-275; Francilene Rodrigues, “Migração transfronteiriça na Venezuela”, Estudos Avançados 20.57 (2006): 197-207; Ricardo Marques Silva e

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considerada perigosa para o Brasil, e pondo em contacto o Brasil com um territó-rio europeu. A situação atípica dessa fronteira provocou várias missões e relatórios de oficiais brasileiros com funções militares ou políticas. Mas, como veremos, com percepções diferentes decorrendo do contexto internacional, mostrando a extre-ma sensibilidade de regiões parecendo isoladas e até desconectadas do Brasil e do mundo exterior.

2 Anos 20: uma soberania brasileira ameaçada pela influência francesa

Apesar das boas relações que sempre mantiveram o Brasil e a França, as conse-quências psicológicas dessa tão difícil demarcação de fronteira foram enormes na região, e provocaram até hoje um sentimento de desconfiança e de receio em ambos os lados do rio Oiapoque: brasileiros como franco-guianenses temendo invasões por parte do vizinho, em retalhações ou vingança. De fato, o consulado brasileiro de Caiena conserva a memória de muitos incidentes de vizinhança oco-rridos na fronteira nas primeiras décadas do século 20, mostrando as tensões que lá existiam entre os brasileiros e os franceses, sejam eles crioulos 18 ou índios. 19

No âmbito de afirmação territorial já mencionado, em 1927, o famoso general Cândido Rondon, especialista das missões de fronteiras, foi encarregado de uma ins-peção nas remotas fronteiras guianenses, inclusive o Oiapoque. O relatório que deixou, disponível no acervo da Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites em Belém, mostra ao mesmo tempo a francofilia do general, típica das elites brasileiras da época, como as necessidades de assegurar uma soberania brasileira ainda fraca, e já percebia as possibilidades de comércio entre o Pará e a Guiana Francesa. A região que assim encontrou, 27 anos depois da atribuição do Contestado ao Brasil, ainda vivia sob uma forte influença francesa que conseguia se impuser à influência brasileira. Lá, crioulos e evadidos dos presídios franceses, frequentemente qualificados como árabes ou argelinos, e vivendo com índias, criaram uma cultura original:

Vai se formando no vale do Uaçá como nos lagos um povo original. Amoldado pela civilização

crioula da Guiana Francesa, que predominou no vale do Oiapoque, e ainda perdura naquele rio

pelo afastamento em que está dos centros de civilização brasileira, conserva habitos e costumes

guianenses. [...] A língua falada pelos índios nas suas relações com os civilizados é o patuá do

crioulo francês, que se infiltrou naquele meio. A moeda que recebiam por pagamento do seu

trabalho ou vendo dos seus productos era francêsa. 20

Tito Carlos Machado de Oliveira, “O mérito das cidades-gêmeas”, Revista OIDLES (Observatório Iberoamericao del Desarrollo local y la Economia social) 2.5 (2008) www.eumed.net/rev/oidles/05/msmo.htm (12/09/2011); Sylvain Souchaud, Pionniers brésiliens au Paraguay (Paris: Karthala, 2002); Marcia Anita Sprandel, “Brasileiros na fronteira com o Paraguai”, Estudos Avançados 20.57 (2006): 137-156; Marjo de Theije, “Insegurança próspera: a vida dos migrantes brasileiros no Suriname”, Revista Antropológicas 11.18 (2007): 71-93.

18. “Crioulo” na Guiana Francesa se usa para designar a população nativa não índia, largamente maioritária, descendente de escravos deportados da África mais ou menos mestiçados com franceses brancos e até chineses.

19. Granger 416.

20. General Cândido Mariano da Silva Rondon, Inspecção de fronteiras, relatório do General inspector (Rio de Janeiro: Ministério da Guerra, 1927) 20-21.

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Pode-se anotar que os índios do rio Uaça no Amapá, galibis e karipunas, ainda hoje falam o dialeto crioulo guianense e recebem um ensino fundamental nessa língua, considerada nativa pelas autoridades. 21 Essa forte influência cultural, pondo em perigo o sentimento nacional brasileiro nessas margens, foi explicitada por ou-tro oficial participando da operação, o tenente-coronel Rodrigues Pereira:

Sem a menor proteção por parte do Governo Brasileiro os nossos concidadões eram obrigados

a aceitar o predomínio do elemente francês solidamente amparado pela assistência da metropole.

Para a consagração dos actos da vida civil e religiosa eram os nossos compatriotas obrigados a

passar para a Guiana Francesa afim de recorrer a autoridades e padres estrangeiros. Isso conco-

rreu grandemente para o nosso desprestígio e permitiu que os nossos visinhos conseguissem

sem esforço impôr á população brasileira o uso da língua francesa, que ainda é geralmente falada

pelos nossos caboclos; e que a sua moeda, o franco, expelisse a nossa, rejeitada pelos próprios

brasileiros. 22

A supremacia da cultura e da economia francesa na região se explica então pela ausência do estado brasileiro mais do que a atitude ou a política da população fran-cesa, muito pouco numerosa na verdade na região. A resposta do governo brasileiro foi a criação, na margem brasileira, do Centro agrícola de Clevelândia do Nor-te para permitir a retomada da influência brasileira, oferecendo desenvolvimento econômico e maiores equipamentos para a população brasileira. A influência cul-tural também foi combatida pela atribuição de topónimos brasileiros substituindo os velhos topónimos decorrendo do antigo povoamento francês: assim o vilarejo de Martinique, fundado por um francês no lado agora brasileiro do rio Oiapoque, foi rebatizado após a visita de Rondon: Vila Rica do Espírito Santo do Oiapoque, mais conhecido como Oiapoque, agora o município mais setentrional do Brasil. 23

Mas apesar da falta de demarcação, nem Rondon nem seus oficiais adjuntos temiam uma possível invasão francesa decorrendo de uma negação do laudo de 1900, que a França pelo contrário aceitou sem condições. As elites como os ofi-ciais da Velha República tinham a França como um modelo, Rondon mostrou uma certa francofilia no seu relatório inclusive elogiando o Exército francês, e em momento nenhum o Estado francês foi visto como potencial invasor ou inimigo.

Mas tinha um risco de atitudes centrífugas a favor da colônia francesa que parecia mais equipada para satisfazer a população local. Esse receio se encontra por exemplo na obra de Backheuser (1952), que talvez por ser mais germanófilo e inspirado pela geopolítica alemã, desconfiava da atitude dos franceses em relação à demarcação: essa, atrasada pelas guerras mundiais e a falta mútua de prioridade nos orçamentos nacionais, só ocorreu em 1956 e 1962, concretizada pela edifi-cação de sete bornas de concreto na línea divisora das águas. É que, para os oficiais

21. Paulo e Jurandir Dias Morais, Geografia do Amapá (Macapá: Gráfica 2011) 82.

22. “Relatório apresentado pelo chefe de estado maior da inspecção tenente-coronel Renato Barbosa Rodrigues Pereira”, Silva Rondon Anexo 2, 11.

23. Rodrigues dos Santos 60.

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brasileiros, o perigo que podia apresentar a população da margem francesa era mais no contrabando e na fraca apetência ao trabalho do que em atitudes hostis. O major-adjunto Boanerges Lopes de Souza conta por seu lado os problemas que encontrou com os pilotos franco-guianenses:

[Os tripulantes crioulos franceses] não se apressam, estão acostumados a viajar á vontade, parando

onde muito bem entendem para pescar e caçar e com isso não dão muito trabalho e nos roubam

muito tempo. Os Crioulos são os senhores desta Região. Não contamos com eles para o arranjo

dos nóssos acampamentos. Enquanto os nossos três tripulantes brasileiros, tão bons ou melhores

canoeiros que eles, auxiliam espontaneamente o preparo dos nóssos acampamentos, os crioulos

franceses deixam-se ficar á vontade ou vão á procura de alguma traíra. 24

O que para ele também explica o fraco desenvolvimento do lado francês da fronteira, como se isso relativisasse a ameaça franco-guianense: “A Guyana France-sa definha. Ela sofre dos mesmos máles que os nossos Estados do Pará e Amazonas, e como é menor e dispoe de menos recursos que estes, vae em franca decadencia. Não tem vida própria, vivendo exclusivamente da indústria extractiva. Alí ainda não se ensaiou a agricultura”. 25

Esse trecho mostra uma percepção negativo do povo vizinho e estrangeiro, à favor da população brasileira. Assim, o Oiapoque separava o Brasil de um território mal desenvolvido com uma população indolente (que na verdade praticava uma agricul-tura de sobrevivência), cuja ameaça só era cultural devido ao fraco envolvimento do Estado brasileiro nesta margem. Mas Rondon já tinha percebido as possibilidades de intercâmbio comerciais ainda marginais e que só no final do século se realizariam, embora ainda de forma reduzida. Depois de ter destacado um fraco comércio informal apesar da exportação de gado paraense para Caiena que já se praticava, preconizava a construção de uma estrada ligando Macapá à fronteira do Oiapoque: “A estrada de rodagem Macapá-Cleveland dará lugar à fundação de novas fazendas desde que fique assegurada a facilidade de comunicação com os mercados consumidores, que a Guiana Francesa e Belém representam”. 26

Essa estrada, a atual BR 156, demorou até os anos 70 (o asfaltamento ainda não terminou), como demoraram as ligações comerciais. Mas a visita de Rondon e seus oficiais adjuntos marcou mesmo a tomada de consciência das fraquezas de uma fronteira marginal pela falta de soberania nacional. A colônia agrícola de Cleve-lândia, alguns quilómetros aos sul da cidade de Oiapoque, povoada com cearenses, fracassou, substituída por uma prisão política nos anos 20, que recebeu os presos do levante paulista. 27 O presidente Vargas com sua orientação nacionalista e desenvol-

24. “Relatório sobre a linha fronteiriça do Oyapock pelo Major-adjunto Boanerges Lopes de Souza”, General Cândido Mariano da Silva Rondon Anexo 3, 8.

25. Silva Rondon 18.

26. Silva Rondon 60.

27. Carlo Romani, “Clevelândia-Oiapoque: aqui começa o Brasil. Trânsitos e confinamentos na fronteira com a Guiana francesa (1900-1927)” (Tese de Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2003).

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vimentista foi quem concretizou os pedidos do general Rondon, com 15 anos de atraso: a Segunda Guerra mundial ía envolver essa tão remota e esquecida fronteira.

3 A Segunda Guerra mundial: contenção e esperanças de cooperação

Na verdade, essa fronteira só se encontrou ameaçadora durante a Segunda Guerra mundial mostrando que apesar do isolamento geográfico, podia se tornar sensível às consequências de um contexto mundial tormentado. Ainda nos anos 30, o primeiro oficial geopolítico brasileiro, o capitão Mário Travassos, na sua Projeção continental do Brasil (1935), considerava que “a região das Guianas é a desprezar” por causa do en-volvimento na situação política da Europa devido aos estatutos coloniais. 28 Só que a partir de 1940, o Oiapoque separava o Brasil de uma colônia cuja metrópole, a França, era ocupada pela Alemanha nazista. Daí o projeto do presidente Vargas de ocupá-la preventivamente, decorrendo das decisões tomadas na cúpula da Habana em 1940. 29 A ausência dos alemães que nunca invadiram a Guiana como a revolta dos franco-guia-nenses contra o governo colaboracionista em 1943, e que juntaram a França Livre do general De Gaulle, tornaram inútil essa ocupação. 30 Porém, Vargas decidiu neste mesmo ano 1943, depois de ter declarado a guerra à Alemanha, separar do Pará o antigo Con-testado, mais a margem esquerda do Amazonas com Macapá, para criar o Território Federal do Amapá, que assim contornava a Guiana Francesa. 31Esse novo território, muito dependente do governo central, foi administrado por um oficial do Exército, capitão Janary Nunes, aliás francófilo e francófono. 32 O motivo de facilitar assim a mili-tarização e o desenvolvimento desse território marginal concretizava as preconizações do general Rondon: ao mesmo tempo foi decidida a transformação da colônia de Clevelândia em uma colônia militar, que é até hoje, e foi iniciada a construção da es-trada Macapá-Oiapoque, só terminada nos anos 70 e ainda em asfaltamento. 33 De fato, proteção militar da fronteira, e conexão ao resto do Brasil para uma melhor integração nacional, bem na línea de uma geopolítica brasileira ainda em gestação. 34

Mas isso não impedia boas relações com o vizinho guianense: a França Livre do general De Gaulle, à qual pertencia a Guiana Francesa a partir de 1943, era aliada do Brasil na luta contra o Eixo. Mudou assim a percepção desta fronteira, que não apresentava mais risco militar. Portanto, essa fronteira não apresentava risco militar nenhum, mas ao contrário potencialidades econômicas. Assim, quando a Guiana francesa foi separada da metrópole francesa pelo bloqueio alemão a partir de 1940,

28. Mário Travassos, Projeção continental do Brasil (São Paulo: Editora Nacional, 1935) 98.

29. Cúpula Estados Unidos-América Latina em 30 de julho de 1940, permitindo aos estados americanos fronteiriços de colônias de países ocupados pela Alemanha nazista uma ocupação preventiva para proteger-se. Ver Roland Ely, “Brazilian presence in the Guianas: João VI to João Figueiredo, 1807-1985”, Revista/Review Interamericana 1-4 (1999): 145-168.

30. Rodolphe Alexandre, De Pétain à De Gaulle, la Guyane sous Vichy, 1940-1943 (Caiena: AC Editora, 2003) 52-54.

31. Rodrigues dos Santos 62-63; Jadson Porto, Amapá: principais transformações econômicas e institucionais (1943-2000) (Macapá: SETEC, 2003) 48-49.

32. Robert Vignon, Gran Man Baka (Paris: Davol, 1985).

33. Dias Morais 13.

34. Granger 441-443.

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foi abastecida pelo Pará graças a seu ouro com o qual comprava bois, as vezes ao detrimento da população paraense que sofria de uma escassez de carne... 35 Ex-plicou o interventor federal no Pará (equivalente a governador, nomeado pelo governo Vargas), o coronel Magalhães Barata, talvez para justificar essa escolha:

Logo ao assumir ao govêrno, tive de atender ao apêlo que me era feito pelo Governador [da

Guiana Francesa] para permitir a exportação de gado, arroz, farinha de mandioca e outros gêne-

ros de produção do Estado, dada a situação de penuria em que se encontrava aquela colônia [...]

Apesar das dificuldades de abastecimento em que nos encontrávamos, procurei dar a assistência

possível àquele povo, que tão estreitas relações tem tido sempre conosco e revela uma tendência

constante para se aproximar de nós, com a maior simpatia e mesmo entusiasmo. 36

Tinha portanto que atender a essas marcas de simpatia por parte de um terri-tório vizinho. Mas havia também motivos de segurança, a Guiana Francesa sendo sedes de vários presídios: “Essa crise [alimentar], que se esboçava, poderia provocar uma situação de desordem nos centros presidiários que o govêrno francês mantem e, certamente, conseqüências desastrosas para aquela colônia”. 37

Para Barata, a destabilização decorrendo da escassez de produtos alimentares na Guiana Francesa podia também afetar o Brasil, possível destino de foragidos de presídios enfraquecidos. O general Rondon já tinha denunciado 15 anos antes a presença e a influência negativa desses foragidos no lado brasileiro. 38 Ao mesmo tempo que destacava a simpatia do povo franco-guianense em relação ao Brasil, Magalhães Barata mostrava que a maior ameaça que parecia constituir a Guiana Francesa para o Brasil era então a presença desses presídios cujos ocupantes po-diam fugir e atravessar a fronteira. A percepção da fronteira se tornou menos hóstil, destacando só um risco apresentado por uma população marginal.

Essa percepção bastante positiva se concretizou quando, em 1944, o presidente Vargas mandou o coronel Magalhães Barata efetuar uma viagem e aproximação nas três colônias europeias vizinhas do Brasil, isto é, as Guianas inglesa, holandesa e francesa. O contexto da guerra e a posição antinazista de Vargas fizeram a percepção da fronteira do Oiapoque evoluir, já que finalmente separava dois aliados. Assim, de-pois de ter destacado a riqueza em ouro da colônia francesa e a falta de preconceito acentuado de cor, 39 Barata ressaltava a necessidade de estender a linha de navegação de Clevelândia até Caiena e até Paramaribo, capital da Guiana Holandesa: “Assim poderiamos obter as maiores vantagens com essas comunicações, não só porque fortaleceríamos o nosso prestígio político e comercial naquelas colônias vizinhas,

35. “Relações econômicas com Portugal e Brasil”, ADGF, Caiena, Serie D40, Doc. 6.

36. Coronel Joaquim de Magalhães Barata, Uma viagem às Guianas, anexo ao relatório apresentado ao Sr presidente da República pelo coronel Joaquim de Magalhães Cardoso Barata, interventor federal no Pará (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944) 10.

37. Magalhães Barata 10.

38. Mariano da Silva Rondon 20-21, 60-67.

39. Magalhães Barata 4-8.

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como porque tôda a importação que elas fizessem corresponderia a ouro que en-traria para o nosso país”. 40

Parece que o coronel Magalhães Barata já tinha ideia de uma futura cooperação regional depois da guerra, e também sugeriu a criação em Caiena de uma agên-cia do Banco do Brasil, “instrumento de consolidação de nosso prestígio naquela Guiana pelas facilidades que traria ao comércio local”. 41 Assim, um interesse bra-sileiro bem marcado, mas nenhuma visão nem imperialista nem receosa, a Guiana Francesa pertencia a um aliado, a França Livre, que o Brasil devia ajudar afim que recuperasse sua situação anterior. Mas essas possibilidades de cooperação e inter-câmbios com territórios vizinhos ricos em ouro não se concretizaram após o conflito: as Guianas conservaram uma orientação mais caribenha e europeia, e a francesa, reforçando sua integração à metrópole francesa com o novo estatuto de 1946 transformando-a em um departamento de ultra-mar, virou as costas a um mundo sul-americano ao qual na época os franco-guianenses não queriam se identificar, orgulhosos de morar num território agora plenamente francês. 42 Em plena Amazônia, o Oiapoque se tornou até uma fronteira entre a França (e por-tanto a Europa) e o Brasil.

3 Na Guerra fria: uma fronteira Norte/Sul

Foi aliás essa integração a uma metrópole com forte influência comunista que as-sustou alguns oficiais brasileiros quando começou a Guerra fria. Nitidamente pró-americano, o Brasil do presidente Dutra tinha rompido os laços diplomáticos com os países comunistas da Europa, a URSS em primeiro. 43 O brigadeiro Lysias Ro-drigues, na sua Geopolítica do Brasil (1947) temia a presença, tão perto da Amazônia brasileira, de uma Guiana Francesa sob a influência da metrópole francesa onde os comunistas ainda eram poderosos (foram expulsos do governo no mesmo ano); e preconizou até que o Estado brasileiro a comprasse para construir em Caiena uma base naval para proteger as bocas do estratégico rio Amazonas. 44

As lutas de influência da Guerra fria não poupavam a Guiana Francesa e sua remota fronteira, mas não foi necessário: como departamento francês, a Guiana era bem vigiada pelo Exército francês, aliado do Brasil no campo atlântico, e não apresentava riscos tão grandes como a Guiana Inglesa, preocupante com seu go-verno autônomo progressista e o contrabando na fronteira brasileira. 45 E se o ex-governador do Amapá Moura Cavalcanti evoca na sua autobiografia (1992) um suposto projeto do presidente Quadros de invadir a Guiana Francesa em 1961, que

40. Magalhães Barata 12.

41. Magalhães Barata 13.

42. Serge Mam Lam Fouck, Histoire générale de la Guyane française (Matoury: Ibis Rouge, 1996) 216-222.

43. Cervo e Bueno 269-272.

44. Lysias A. Rodrigues, Geopolítica do Brasil (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1947).

45. Everardo Backheuser, A geopolítica geral e do Brasil (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1952) 252-253; General Golbery do Couto e Silva, Geopolítica do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio, 1967) 56

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não chegou a ser concluído devido à sua demissão 46, esse deixa céticos os especia-listas para quem não tinha sentido invadir um território pertencendo a um aliado, além do mais potência atômica. 47

Para os militares brasileiros, o perigo vinha na verdade da forte influência econômica que ainda exercia a Guiana Francesa sobre a parte fronteiriça do Ama-pá, bem como tinha destacado o general Rondon em 1927. Assim, em 1963, o governador do Território Federal do Amapá, coronel Terêncio Furtado de Men-donça Porto, citado por Osvaldino Raiol, pedia a classificação da estrada Macapá-Oiapoque, ainda em obras, como “de interesse político-econômico-social”:

A finalidade da AP-BR-15 não é apenas ocupar e povoar o Território. É rodovia política de sig-

nificação internacional, que deverá funcionar como instrumento apropriador de áreas brasileiras

em confronto cultural com as Guianas Francesa e Holandesa [...] Sua conclusão, pela expansão

geopolítica, impõe-se notadamente porque o Município do Oiapoque é uma das áreas de menor

quociente de progresso do país, sem méios de comunicações terrestres, mantendo-se de verbas

insuficientes para ativar-lhe o processo de desenvolvimento, enquanto que as Guianas Francesa

e Holandesa exibem características de regiões dinâmicas, em franca e acelerada expansão [...] 48

O governador, militar como o antecessor, ressaltava que a região do Oiapoque ainda não se encontrava ligada à capital do Território nem ao resto do Brasil, fa-cilitando a forte influença exercida pelas Guianas vizinhas. Mas esse retrato pessi-mista da situação fronteiriça, insistindo sobre a pobreza do lado brasileiro, esquecia que o lado francês da fronteira era tão isolado como a parte brasileira: a pequena cidade franco-guianense de Saint-Georges, do outro lado do rio Oiapoque, só foi ligada por uma estrada a Caiena em 2003, e na época, economicamente subdesen-volvida e com apenas algumas centenas de habitantes, se encontrava com poucas condições de satelizar o vizinho brasileiro. Mas também havia, para o coronel Mendonça Porto, um motivo de afirmação de soberania:

O habitante da fronteira brasileira vai mais facilmente à Guiana francesa do que a qualquer cida-

de do Território [...] Por isso, esses contrastes de desenvolvimento podem criar problemas sérios

para os interesses do Brasil [...] Essa é a responsabilidade que o Governo do Território empresta

à construção da rodovia, porque representará a fundação de outras obras de infra-estrutura e de

suporte à afirmação de um modelo de civilização brasileira diante do estrangeiro. O domínio

de nossas terras de fronteiras atingirá os anseios de soberania e as aspirações da consciência na-

cional. 49

46. José Francisco de Moura Cavalcanti, Brasis que vivi (Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 1992) 130-131.

47. José Francisco de Moura Cavalcanti, Brasis que vivi; Osvaldino Raiol, A utopia da terra na Amazônia (a geopolítica no Amapá) (Macapá: Gráfica Ltda, 1992) 83-84; Gérard Police, €udorado: le discours brésilien sur la Guyane française (Matoury: Ibis Rouge, 2010) 83-91.

48. Raiol 37.

49. Raiol 37-38.

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Pois o perigo vinha mesmo, apesar do isolamento de Saint-Georges, do esta-tuto francês da Guiana, conferindo um padrão de vida e salários superiores aos do lado brasileiro graças à política trabalhista do governo francês da qual desfrutava como quaquer departamento da metrópole:

O Departamento Ultramarino da Guiana Francesa desenvolve uma política que fragiliza mais

ainda a economia dessa fronteira humana marginalizada, onde a maior proximidade de Saint-

Georges e Caiena do que Macapá ou Belém agrava essa debilidade que, na verdade, não se

resume na distância espacial, mas na distância social da fronteira em relação à própria Macapá

ou Belém. 50

Assim, longe das intenções expansionistas da qual frequentemente foi suspei-ta por parte dos franceses, essa estrada, atual BR 156, era uma resposta à atração exercida pelo padrão de vida do lado francês, como elemento de apropriação e dominação sobre um território brasileiro. Mas pode-se anotar que, ao contrário do general Rondon, o coronel Mendonça Porto não fez nenhuma alusão à possí-vel utilização dessa estrada para o comércio com a Guiana Francesa, só tinha uma visão defensiva, destacando como Rondon antes dele o perigo cultural apresenta-do pelo lado francês da Guiana. Aliás, outro famoso geopolítico brasileiro também tinha reparado essa atração exercida pelos altos salários do vizinho francês: o gene-ral Carlos de Meira Mattos que, em Geopolítica e teoria de fronteiras (1990) escrevia: “Atualmente Saint-Georges é uma localidade mais atraente pelo seu comércio (produtos franceses) e pela sua moeda forte, oferecendo empregos mais compensa-dores. Saint-Georges liga-se com Caiena por transportes marítimos e terrestres”. 51

Se a ameaça potencial apresentada pela Guiana Francesa não era ideológica, o contexto da Guerra fria deu novamente lugar a uma percepção negativa e ameaça-dora dessa fronteira, depois da abertura preconizada pelo coronel Magalhães Ba-rata. Essa visão exageradamente otimista em relação à Guiana , aliás, (evocando relações e transportes entre Saint-Georges e o resto da Guiana que ainda não existiam na época) confirma a de um oficial em estágio na fronteira para a Escola Superior de Guerra (EsG), o coronel Mauri Digiácomo. Criada em 1949 na então capital Rio de Janeiro, a EsG difundia nos seus ensinos a ideia de que a segurança nacional passava pela presença de fronteiras bem marcadas e integradas, impedido qualquer reivindicação estrangeira ou transformação em zona sem direito. 52 Afas-tada dos centros tanto brasileiros como franceses, a zona fronteiriça do Oiapoque apresentava tal risco. Assim, em 1986 este oficial em missão, fez este retrato bastante negativo da população da Guiana Francesa, lembrando o do relatório do major Boanerges, 60 anos antes: “A população da Guiana Francesa é basicamente negra. Falam o idioma francês e vivem basicamente da produção de filhos, principalmen-te na faixa de fronteira. A França paga um salário família suficiente para manter os

50. Raiol 41.

51. Carlos de Meira Mattos, Geopolítica e teoria de fronteiras (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990).

52. Miyamoto 77-78.

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habitantes da Guiana sem trabalhar. Todas as facilidades são proporcionadas para conservar a colônia povoada e sem qualquer idéia separatista”. 53

Assim ressaltava o papel da política social da França na Guiana, mostrado que tinha entendido o motivo estratégico de povoar essa fronteira para assegurar sua soberania, e combater seus efeitos, como a atração exercida sobre o lado brasileiro: “A mão de obra, especializada ou não, é normalmente brasileira. Os francos fran-ceses tornaram-se um grande atrativo para os trabalhadores do Amapá e do Pará, que imigram para a Guiana, legal o ilegalmente para trabalhar. Periodicamente a política da Guiana atua contra os imigrantes ilegais [...] e os deporta para o Brasil”. 54

O coronel já apontava as consequências, que seriam anos depois o grande pro-blema entre a Guiana Francesa e o Brasil: a migração ilegal de milhares de brasilei-ros para o território francês e a repressão pelas autoridades francesas. As vezes aliás associadas às brasileiras como no caso da operação REBRACA (REtornos dos BRAsileiros de CAiena) que viu em 1974 a polícia brasileira ajudar a francesa: o Brasil precisava de essa mão de obra para construir a estrada Transamazônica. Para os militares brasileiros da época da ditadura e da Guerra fria, o perigo apresentado pelo vizinho franco-guianense, ao contrário das outras Guianas, independentes e com regimes políticos abertamente marxistas, não era Oeste/Leste (capitalismo contra comunismo) mas sim Norte/Sul (países desenvolvidos contra subdesen-volvidos), a Guiana Francesa sendo mais atraente pela situação de departamento francês. Ora, essa situação podia destabilizar o frágil Amapá vizinho, e atrair uma mão de obra local da qual o Brasil precisava para desenvolver a Amazônia.

Mas outros oficias minimizaram o perigo apresentado pela atração franco-guianense, destacando o fraco desenvolvimento e a boa disposição da população local. Em 1964 instalou-se no Brasil um regime militar, cujo mentor era o ge-neral e geopolítico Golbery do Couto e Silva, teórico da EsG e da doutrina de segurança nacional. O grande receio da junta militar no poder era a utilização das fronteiras amazônicas, ainda despovoadas e pouco integradas, por grupos de guerrilheiros brasileiros e estrangeiros podendo destabilizar o Brasil. Em 1968, no quadro de uma missão de estudos das fronteiras setentrionais, um outro estagiário da EsG, o coronel aviador Wilson Rezende Nogueira comparava a situação pou-co favorável do vizinho francês à do Amapá supostamente mais desenvolvido: “A Guiana francesa não apresenta ação vitalizante significativa ao longo da fronteira, entretanto o Território do Amapá desenvolve uma intensa ação polarizadora pelo desenvolvimento que vem alcançando”. 55

Assim essa fronteira não apresentava ameaças, pois “a população não é suficien-te para ocasionar pressões modificadoras de fronteira”. 56 E dava uma explicação

53. Coronel de Infantaria Mauri Digiácomo, Ocupação da faixa de fronteira do Brasil com a Guiana francesa. Participação do Exército, reativação da colônia militar do Oiapoque (Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 1986) 28.

54. Digiácomo 28.

55. Coronel aviador Wilson Rezende Nogueira, Analisar os problemas atuais e potenciais que possam perturbar a vitalização da faixa de fronteiras com a Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia (Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 1968) 29.

56. Rezende Nogueira 29.

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bastante pertinente para explicar a diversidade cultural e religiosa das Guianas (ín-dios, crioulos, católicos, protestantes, indus, muçulmanos...) que podia constituir uma fraqueza: “Tanto a França como a Holanda e a Inglaterra não pretenderam desenvolver suas colônias; pelo contrário, parece que cultivaram as diferencias so-ciais, religiosas e lingüisticas, para mantê-mas dóceis e internamente divididas”. 57

Concluía depois com a necessidade de continuar o desenvolvimento do Ama-pá “para acelerar o processo de vitalização de uma possível área-problema”. 58 Não explicitava o tipo de problema possível, mas, se como Backheuser em 1952 ele parecia suspeitar a França de não ter aceito o laudo suíço de 1900, reconhecia pelo menos que “sua marcação está hoje definida” 59 descartando qualquer problema de vizinhança entre o Brasil e a França que, aliás, era um aliado na Guerra fria.

Em 1969, enquanto a ditadura se tinha radicalizada no Brasil, o também es-tagiário da EsG em missão nessa fronteira, general de divisão Lauro Alves Pinto, escrevia, depois da descrição muito exagerada e nacionalista de um suposto sen-timento pró-brasileiro dos franco-guianenses, que: “Apesar da política lusitana de anti-relações com o povo da Guiana, política menos contra o povo do que contra o receio de expansão por via das relações, o Guianense crê no brasileiro como amigo, a ponto de sair às ruas, como o fêz durante a última guerra, pedindo ane-xação ao Brasil”. 60

Pedido de “anexação ao Brasil” que provavelmente leu na obra de Lysisas Ro-drigues (1947) que tinha mencionado tal fato que na verdade nunca ocorreu, 61 para mostrar a ausência de ameaça por parte do povo do outro lado da fronteira. Portanto, se apontava o antigo risco de expansão por parte da França, minimizava este suposto perigo, como também mostra este retrato sem concessões da política colonial francesa:

O francês transitou nesses trezentos anos pela Guiana francesa sem demonstrar a esta que a

tratava como a continuação da própria metrópole. Enquanto que Portugal, com possibilida-

des humanas bem menores, deu sua gente em vagas permanentes para povoar o Brasil […],

a França agia de longe, parecendo cuidar de não sujar suas mãos no prato colonial que tanto

esperava receber. 62

Assim, segundo ele, a Guiana Francesa não apresentava nenhum perigo para o Brasil, por ser desprezada pela própria metrópole francesa. Esquecia o general que, como departamento, a Guiana tinha sido incluída na política trabalhista do governo francês, da qual também desfrutou como observou o coronoel Digiáco-

57. Rezende Nogueira 30.

58. Rezende Nogueira 30.

59. Rezende Nogueira 29.

60. General Lauro Alves Pinto, Analisar as relações entre Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa (Rio de Janeiro: Escola Superior de Guerra, 1969) 134.

61. Segundo Rodolphe Alexandre, os guianenses pediam pelo contrário uma ajuda dos Estados Unidos e uma integração resforçada à França. Ver Alexandre 53-54.

62. Alves Pinto 136.

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mo. Então, para ele, cabia ao Amapá de ajudar este vizinho com o qual são “mais ligados do que separados pelas águas do Oiapoque”. 63 “Ao Amapá, hoje com um PIB maior do que o PNB da Guiana Francesa; está reservada a grande tarefa con-tinental de aproximar cada vez mais os dois povos vizinhos de lado. Brasileiros e Guianenses acotevelam-se na mesma mirada para o Atlântico infinido e somam-se no mesmo ecúmeno”. 64

Nada estranho: a ideia desenvolvida pelo general Meira Mattos na EsG e nas suas obras, como veremos, era um desenvolvimento mutual dos dois lados das fronteiras, inclusive com ajuda brasileira, para evitar uma destabilização que podia afetar o Brasil.

Depois dessa visão negativa da Guiana Francesa, oposta às visões mais ameaça-doras dos coronéis Mendonça Furtado e Digiácomo e do general Meira Mattos, o general Alves Pinto concluía, como aliás o coronel Digiácomo mais tarde, que essa estava sem condições de se tornar independente, o que era o grande receio do Exército brasileiro:

A condição de dependência à França é bem maior, comparativamente com as duas outras Guia-

nas e a Inglaterra e Holanda. Aquelas – uma já independente e a outra tentando fazê-lo – tinham

um suporte mínimo para se autodeterminar. Esta está na primeira infância, balda de possibilida-

des próprias, todavia com alma nacional bem individualizada, sem as grêtas da insoldadura racial

[...] Tudo indica que a Guiana francesa não está em condições de marchar para uma campanha

emancipacionista. 65

Apesar da inclinação ideológica do Exército brasileiro a favor da independên-cia da Guiana Francesa, último território continental sul-americano dependendo de um Estado europeu, grande era o temor de vê-la caminhar no caós político ou numa orientação marxista, à imagem das Guianas inglesa e holandesa após a emancipação. 66 Pelo menos, a França mantinha a Guiana Francesa na estabilidade e no campo ocidental e capitalista, o que afastava qualquer perigo de ameaça à soberania nessa margem, e trazia algumas possibilidades de cooperação econômica muitas vezes evocadas mas ainda não concretizadas.

3 Anos 80-2000: entre cooperação e velhas suspeitas

Os últimos anos da ditadura militar no Brasil foram marcados por um certo afas-tamento dos Estados Unidos e uma aproximação com os outros Estados ama-zônicos, supostamente ameaçados com uma despossessão da Amazônia pelas po-

63. Alves Pinto 137.

64. Alves Pinto 137.

65. Alves Pinto 136-137.

66. Independante do Reino Unido em 1966, a República Cooperativa da Guiana escolheu uma política de inspiração marxista e se aproximou de Cuba. Independente dos Países Baixos em 1975, o Suriname tomou uma orientação similar depois de uma revolução à iniciativa de jovens oficiais terceiro-mundistas em 1980.

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tências do Norte. 67 É para afirmar essa soberania que oito países da América do Sul, inclusive a “progressista” República da Guiana e o recentemente emancipado Suriname, assinaram em 1978 o Tratado de Cooperação Amazônica, cuja iniciativa era do general Carlos de Meira Mattos. Mas a Guiana Francesa foi excluída pelo seu estatuto francês considerado “anomalia colonial”, a fim de impedir que sua a metrópole, a França, interferisse em assuntos propriamente sul-americanos. 68

Porém, o general Meira Mattos, na ânsia de desenvolver toda a faixa fronteiriça do Brasil, tinha concebido uma política “pan-amazônica” na qual a Guiana Fran-cesa se encontrava incluída: “Articular e acrescentar ao patrímonio econômico dos respectivos países às áreas fronteiriças do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana francesa, adquirir força de viabilidade com áreas de intercâmbio se idéntica iniciativa vier-se a ser realizada por parte da Guia-na francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia”. 69

O Brasil precisava de interações comerciais com a vizinha e próspera Guiana Francesa para desenvolver e desencravar o Amapá, e apesar da ideologia antico-lonialista, não podia esquecer este território, que constituía a única saída terrestre para o Amapá isolado do resto do Brasil pelo delta do rio Amazonas. Mas nesses anos a França ainda muito centralizadora a mantinha dentro de um isolamento continental, devido à falta de interesse em comprometer-se com projetos de inte-gração nesta região afastado. 70

O esboço de uma tal aproximação e cooperação à nível nacional e estadual foi facilitado pela democratização do Brasil e as mudanças institucionais que conhe-ceram tanto a Guiana Francesa como o Amapá nos anos 80. Na escala nacional, como já na época assistia-se às inumerosas travessias da fronteira por migrantes brasileiros à procura do eldorado na Guiana Francesa, iniciaram-se em 1983 en-contros oficiais transfronteiriços para tratar deste problema. 71 Na escala estadual, em 1982 as leis de decentralização da França deram maiores poderes ao presidente eleito do Conselho Regional da Guiana Francesa, e em 1988, com a nova Cons-tituição pondo fim a 21 anos de regime militar no Brasil, o Território Federal do Amapá se tornou Estado da Federação. Os dois vizinhos aproveitaram esses poderes alargados para se aproximar, e em 1996 assinaram acordos de cooperação regional com o apoio das duas potências de tutela, França e Brasil, cujos presiden-tes, Jacques Chirac e Fernando Henrique Cardoso, se encontraram o ano seguinte na cidade fronteiriça de Saint-Georges, primeira viagem oficial de um presidente brasileiro na Guiana Francesa. Lá, ambos decidiram, à iniciativa dos governadores

67. Cervo e Bueno 409-411.

68. Samuel Benchimol, O Pacto amazônico e a Amazônia brasileira (Manaus: Universidade do Amazonas/Faculdade de Estudos Sociais, 1978) 10.

69. General Carlos de Meira Mattos, A Geopolítica e as projeções do poder (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1977) 110.

70. Pedro Motta Pinto Coelho, Fronteiras na Amazônia: um espaço integrado (Brasilia: Fundação Alexandre de Gusmão, 1992) 132.

71. Institut des Hautes Etudes de La Défense Nationale, Le Brésil, situation politique et relations extérieures (Paris: Section des Affaires Diplomatiques, février 1983).

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do Amapá e da Guiana Francesa, a construção de uma ponte binacional ligando os dois vizinhos por cima das águas do rio Oiapoque. 72

O contexto desses anos 90 pós-Guerra fria era a aproximação do Brasil com as Guianas e a integração sul-americana da qual fazia parte a Guiana Francesa enfim reconhecida como pertencendo à região amazônica. Mas alguns setores do Exér-cito temiam a presença à fronteira do Brasil de um território ainda dependendo de uma potência do Norte, no caso a França. Se o projeto Calha Norte de fortale-cimento e desenvolvimento da faixa fronteiriça do Brasil em 1985, reativado em 2000, não visava explicitamente a Guiana Francesa, muito mais tranquila do que vizinhos sensíveis como Colômbia, Venezuela ou República da Guiana, houve alguns generais para apontar o perigo que apresentava este território europeu em plena Amazônia. Pouco depois da assinatura dos acordos de cooperação entre o Amapá e a Guiana Francesa, o coronel Roberto Machado Mafra de Oliveira, chefe da Divisão Estudos Pesquisas e Doutrinas da EsG declarava, numa entrevista a um oficial e geopolítico da Costa do Marfim em dezembro de 1997: “A Guiana Fran-cesa é a única fronteira que constitue uma ferida nas nossas costas e não sabemos como curá-la. Orgulhariamonos muito de acolhê-los [os franco-guianenses] se pedissem a independência à França”. 73

Curiosamente, na entrevista o coronel não explicita a ferida “nas costas do Brasil”. Mas outras declarações de oficiais ajudam a entender este pensamento hostil à presença da Guiana Francesa. O ensaísta franco-guianense Gérard Police mostrou na sua polêmica mas estimulante obra €udorado : le discours brésilien sur la Guyane française (2010) como a França é suspeita por setores militares brasileiros, de querer internacionalizar e portanto desapossar o Brasil da Amazônia por mo-tivos ambientais a partir de sua “base colonial” na América do Sul. 74 Esses setores também baseavam-se em declarações do presidente francês François Mitterrand e seu primeiro ministro Michel Rocard, como mostra esse trecho de um relatório do GTAM (Grupo de Trabalho sobre a Amazônia), organismo composto de militares e policiais ligado aos serviços de inteligência brasileiros, a ABIN, publicado em janeiro de 2007:

Da pressão internacional sobre a região, basta lembrar que em 1989 o presidente francês

(François) Mitterrand afirmou que o Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Ama-

zônia [...] A Guiana francesa é uma caso a parte, pois se encontra sob domínio colonial da França,

que a considera parte integral do território francês, como se a Guiana se encontrasse na Europa

continental. 75

72. Granger 599.

73. “La Guyane française est la seule frontière qui constitue une plaie sur notre dos et nous ne savons pas comment la soigner. Nous serons très fiers de les accueillir [les Guyanais] s’ils demandent leur indépendance à la France Tradução do autor”, Jean-Marie Bohou, “Contribution à l’analyse de la pensée géopolitique des stratèges brésiliens sur la politique de conquête des «aires stratégiques» de nature géographique (1945-95): théories et pratique politique” (Tese de Doutorado em Geopolítica, Université de Paris III/IHEAL, 2003) 51.

74. Police 566-570.

75. “Influença norte-americana sobre vizinhos do Brasil estaria causando desemprego e avanços do crime organizado e da

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Assim muitos oficiais brasileiros ainda temem a presença de um território eu-ropeu fronteiriço do Brasil como posto avançado do Norte no alvo de contestar a soberania brasileira sobre a Amazônia. Mas é verdade que a criação rápida pelo Es-tado brasileiro em 2002 do Parque nacional dos Tumucumaque no Amapá, maior reserva de floresta tropical do mundo, explica-se pelo projeto francês de Parque nacional da Guiana Francesa. Contestado por sua gestão do problema ambiental amazônico, o Brasil quis dar um sinal de boa vontade ecológica, ultrapassando a França cujo projeto de Parque encontrava-se bloqueado pela oposição de boa parte da classe política franco-guianense e só foi concluído em 2007. No mesmo momento, a França em 2004 foi aceita através da Guiana Francesa como membro observador da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, para facilitar projetos de cooperação ambiental. Apoiada pelo Brasil, essa admissão embora par-cial mostrava uma volta à concepção da fronteira como ligação com um parceiro, mas que não podia ser como membro verdadeiro por não ter soberania própria.

Mas o Exército brasileiro não gosta dessa política de reservas, sejam elas am-bientais ou indígenas, pois limitam para ele a sua soberania e margem de manobra. Em 2008, o general de brigada Luiz de Rocha Paíva, ex-comandante da Escola de Comando e Estado-major do Exército (ECEME) denunciava a demarcação dessas reservas, colocando o Brasil “a reboque dos índios”. Acusava formalmente as ONG ligadas à potências estrangeiras, de levar as populações indígenas a negar a cidadania brasileira: “O risco maior está na região entre Roraima e Amapá, devido à influência da Inglaterra (sobre a Guiana), França (Guiana Francesa) e Holanda (Suriname) e aos interesses dos EUA. Eu acho que podemos perfeitamente carac-terizar a ameaça e dizer o nome desses atores”. 76

Assim, enquanto o perigo comunista e soviético tinha-se afastado, o general via a Guiana Francesa seria como um cavalo de Tróia para uma despossessão da Amazônia brasileira em nome da defesa dos índios por parte dos países do Norte. Talvez essa opinião possa parecer paranoica para militares obsecados pela soberania brasileira sobre a Amazônia 77, mas mostra que, apesar da dinâmica migratória fron-teiriça e a influência cultural serem agora a favor do Brasil, da estabilidade política decorrendo do estatuto francês e dos recursos permitidos pelas políticas trans-fronteiriças da União Europeia (o Programa Operacional Amazônico, envolvendo Guiana Francesa, Suriname, Amapá, Pará e Amazonas desde 2008), alguns setores do Exército (e da classe política aliás, como mostra Police), ainda estão vendo a presença francesa na Guiana como ilegítima e ameaçadora para a soberania brasi-leira. Seria um dos motivos da demora da inauguração da ponte do rio Oiapoque,

violência”, Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 29 de janeiro de 2007.

76. Hudson Corrêa e Sérgio Lima, “Fronteira não pode ficar ‘a reboque’ de índios, diz general”, Folha de São Paulo (São Paulo) 29 de junho de 2008.

77. O motivo da defesa da Amazônia em nome da segurança nacional é a famosa teoria do uti possidetis: quem possui a terra de fato, se torna o dono legítimo. Foi assim que o Brasil conseguiu a possessão da maior parte da Amazônia espanhola no tratado de Madri em 1750. Mas percebeu que, pelo mesmo motivo, a falta de povoamento também podia provocar reivindicações por parte dos vizinhos como, supostamente, dos EUA e até da França, mas que no entanto estariam sem possibilidade efetiva caso essas reivindicações fossem reais. Ver Catherine Prost, “Organisation et rôle géopolitique de l’Armée au Brésil (Tese de Doutorado em Geopolítica, Université de Paris VIII, 1998).

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que representa no entanto o maior símbolo das crescentes relações entre o Brasil e a Guiana Francesa? Um desses oponentes declarados à presença francesa, o en-tão senador de São Paulo Aloízio Mercadante 78 agora tem um papel importante (ministro da Educação) no atual governo brasileiro. Olhares e interesses políticos e militares nem sempre concordam.

Considerações finais

Assim, essa fronteira continua bastante fechada, inclusive psicologicamente: 79 apesar da falta de reivindicações brasileiras sobre a Guiana Francesa, muitos franco-guia-nenses ainda acreditam numa invasão brasileira, já ocorrida em 1809 no contexto colonial e das guerras napoleônicas. Esse medo também vem da derrota francesa em 1900 no caso do Contestado franco-brasileiro, que os franco-guianenses con-sideravam deles devido à forte presença crioula. Hoje, a importância da imigração brasileira na Guiana Francesa (talvez 25.000 pessoas, isto é 10 % da população total) e acima de tudo a pilhagem dos recursos pesqueiros e auríferos guianenses por clandestinos brasileiros estão confirmando este sentimento: lembramos que em julho de 2012, dois suboficiais do Exército francês foram mortos em missão na Amazônia franco-guianense por uma trilha de assaltantes brasileiros. Foram, fora dos policiais militares (a “Gendarmerie”), os primeiros soldados franceses mortos por estrangeiros em território francês desde o fim da Segunda Guerra mundial.

É que, na verdade, ao contrário do que temiam muitos oficiais brasileiros, hoje a dinâmica está do lado brasileiro, onde aliás este fantasma de invasão também é compartilhado, pois na época do Contestado as tentativas mais vinham da França do que do Brasil. Depois do laudo suíço de 1900, aceito sem condições pela França e que atribuiu o Território contestado ao Brasil, a ameaça francesa só residia na influência que exercia a margem francesa do Oiapoque sobre a margem brasileira, sem ligações com o resto do Brasil, o que motivou a missão do general Rondon em 1927. Depois, na Segunda Guerra mundial, a Guiana Francesa como território “aliado” foi abastecida pelo Brasil e começou a apresentar pespectivas de parcerias econômicas. Mas a “departamentalização” da colônia guianense em 1946, transfor-mando-a num território “do Norte” trouxe dois novos perigos: atração devida aos melhores salários e condições de vida do lado francês, e suspeitas de utilização pela França como ponta avançada na cobiçada Amazônia. Enquanto as fronteiras com as ex-Guianas inglesa e holandesa (República da Guiana e Suriname), no contexto da Guerra fria, quase se transformaram em fronteiras Oeste/Leste por causa de re-gimes políticos progressistas apoiados por Cuba, a fronteira com a Guiana Francesa transformou-se numa fronteira Norte/Sul. Essa, considerada colonial, e onde o pa-drão de vida da Guiana podia aspirar e destabilizar o frágil e isolado Amapá apesar

78. “Mercadante propõe declaração sobre ‘enclaves coloniais’ na América do Sul”, 19 de agosto de 2008. http://www.senado.gov.br/noticias/print.aspx?codNoticia=77686 (19/08/2008).

79. Granger 74-88, 411-416; Marc-Emmanuel Privat, “Frontières de Guyane”, 12 de septembre de 2011. www.terresdeguyane.fr/articles/frontieres/default.asp (12/09/2011). Trata-se do mutual receio, ignorância e falta de relações entre o Brasil e a Guiana Francesa compartilhada por grande parte da população até hoje, Ver nota 16.

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da falta de ligação terrestre com o resto da Guiana Francesa, assustou numerosos oficiais brasileiros obcecados pela soberania brasileira sobre a Amazônia, enquanto outros eram tranquilizados pela presença francesa que mantinha a Guiana Francesa na estabilidade e no campo atlântico. Contradição que o ex-governador do Amapá e iniciador da cooperação com a Guiana Francesa, o hoje senador João Capiberibe, conseguiu pragmaticamente superar para desenvolver e desencravar seu Estado: “Olha, há 25 anos, inclusive na época em que estávamos militando no movimento clandestino, nós ainda tivemos contato para ajudar os independentistas guianenses a jogar os franceses no mar. Só que hoje a realidade do mundo mudou, acabou a bipo-larização, então [...] hoje não vejo nenhuma razão para você ter o mesmo conceito de 25, 30 anos atrás”. 80

A percepção da fronteira pelo governador Capiberibe também evoluiu: depois da denúncia do colonialismo francês quando guerrilheiro na época da ditadura militar, percebeu como o general Rondon, o coronel Magalhães Barata ou o ge-neral Meira Mattos antes dele, as vantagens de uma fronteira atípica na Amazônia. Essa está ligando dois territórios isolados: um brasileiro com a mão de obra e agora o dinamismo demográfico e cultural, e o outro francês com a prosperidade relativa e os euros mas pouco povoada, isso num mundo cada vez mais com necessidades de integração devido às exigências da globalização. O monumento comemorando o centenário da anexação do Território contestado ao Brasil, erigido em 2000 na cidade do Oiapoque, também comporta uma placa homenageando a cooperação regional que se iniciava entre o Amapá e a Guiana Francesa... Como declarou o diplomata brasileiro Marcelo Jardim em 1999, comentando o projeto de ponte binacional: “Separados pelo Atlântico, França e Brasil daqui a pouco serão ligados pelo lindo rio Oiapoque”. 81 Um século depois da fixação definitiva da fronteira no rio Oiapoque, bem no contexto de globalização e de integrações regionais das quais não escapa, esta deixa de ser uma barreira para se tornar, com vários acor-dos de cooperação cultural e econômica, uma interface entre Amapá e Guiana Francesa, Brasil e França, Mercosul e União Europeia. Além do mais, oficiais do Exército brasileiro se formam com o Exército francês na luta contra a garimpagem clandestina na Guiana Francesa, e oficiais da Legião Estrangeira baseada na Guiana Francesa fazem estágios no Batalhão de Selva sediado em Manaus.

Mas essa abertura tem seus limites. Se a suposta ameaça militar desapareceu, e se fica claro que não tem qualquer ameaça do lado francês, as desconfianças mos-tradas pelos militares ainda subsistem de cada lado da fronteira, embora mais por caso dos tráficos ilícitos. A ponte do Oiapoque, ainda não inaugurada dois anos depois do fim das obras em junho de 2011, provocou preventivamente um refor-çamento recíproco dos controles e equipamentos de vigia das polícias nacionais ou federais e das alfândegas: por medo da imigração e da garimpagem clandestinas do

80. Elson Martins e outros, Amapá, um norte para o Brasil diálogo com o governador João Alberto Capiberibe (São Paulo: Cortez Editora, 2000) 26.

81. “Séparés par l’Atlantique, la France et le Brésil seront bientôt reliés par le beau fleuve Oyapock” e “Le point de rencontre entre deux mondes”, France-Guyane (Caiena) 22-23 de março de 1999.

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lado francês, e de tráficos diversos (principalmente a cocaina) vindos do planalto das Guianas, facilitados pela ligação terrestre recente de Saint-Georges, do lado brasileiro. 82 A globalização dos intercâmbios e as aberturas econômicas não acabou com as fronteiras e sua função de contenção, também porque exemplos como o Oiapoque constituem uma boa ilustração do que declarou a escritora chilena Isa-bel Allende em 1990: “As fronteiras são uma forma de medo”. 83

82. “Amapá, 8 millions de reals pour sécuriser la frontière”, Brasilyane.fr, 12 de novembro de 2012. http://brasilyane.com/index.php/actualites-bresiliennes/actualites-amapa/572-1211-amapa-8-millions-de-r-pour-securiser-la-frontiere (12/11/2012).

83. Isabel Allende, “Les frontières sont une forme de peur”, entrevista ao Correo del Sur, Lausana (Suiça), junho de 1990, citado por Pedro Motta Pinto Coelho, Fronteiras na Amazônia: um espaço integrado (Brasilia: Fundação Alexandre de Gusmão, 1992) 91.

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Foto 1. Stéphane Granger, “Monumento em Oiapoque erguido em 2000, comemorando o centenário da anexação do Contestado ao Brasil, com uma placa homenageando a cooperação transfronteiriça com a Guiana Francesa” (imagem digital) Oiapoque, 2013. Coleção particular.

Fuente:. Stéphane Granger, “As dinâmicas da fronteira Brasil-Guiana Francesa” (sem escala) 2014. Coleção particular.

Foto 1. Monumento em Oiapoque

Mapa 1. Dinâmicas da fronteira Brasil-Guiana Francesa

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