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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 233-254, jul./dez. 2004 DA LIÇÃO DE ESCRITURA * Bruno Mafra Ney Reinhardt** Universidade de Brasília – Brasil Léa Freitas Perez Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil Resumo: A partir da interpelação feita por Jacques Derrida à celebre Lição de Escritura, de Claude Lévi-Strauss, e das proposições de James Clifford sobre o texto etnográfico, propõe-se uma reflexão acerca do fazer etnográfico em sua dimensão escritural. Palavras-chave: escritura, etnografia, teoria antropológica, texto. Abstract: From the point of view of the interpelation of Jacques Derrida to Claude Lévi-Strauss’s The Writing Lesson and the propositions of James Clifford about the ethnographic text, this article proposes a reflexion about the written dimension of the etnographic métier Keywords: anthropological theory, ethnography, text, writing. Onde não há um texto, não há nem mesmo o objeto de estudo e de pensamento. Bakthine I Se a antropologia é aquilo que os antropólogos fazem, e se o que os antropólogos fazem é escrever, nada mais pertinente do que pensar sobre a * Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Fórum de Pesquisa 36, Antropologia, Trabalho de Campo e Subjetividade: Desafios Contemporâneos, 24 a Reunião Brasileira de Antropologia, Olinda (PE), 12 a 15 de junho de 2004. ** Mestrando em Antropologia.

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 233-254, jul./dez. 2004

    Da Lio de Escritura

    DA LIO DE ESCRITURA *

    Bruno Mafra Ney Reinhardt**Universidade de Braslia BrasilLa Freitas PerezUniversidade Federal de Minas Gerais Brasil

    Resumo: A partir da interpelao feita por Jacques Derrida celebre Lio deEscritura, de Claude Lvi-Strauss, e das proposies de James Clifford sobre otexto etnogrfico, prope-se uma reflexo acerca do fazer etnogrfico em suadimenso escritural.

    Palavras-chave: escritura, etnografia, teoria antropolgica, texto.

    Abstract: From the point of view of the interpelation of Jacques Derrida to ClaudeLvi-Strausss The Writing Lesson and the propositions of James Clifford about theethnographic text, this article proposes a reflexion about the written dimensionof the etnographic mtier

    Keywords: anthropological theory, ethnography, text, writing.

    Onde no h um texto, no h nemmesmo o objeto de estudo e depensamento.

    Bakthine

    I

    Se a antropologia aquilo que os antroplogos fazem, e se o que osantroplogos fazem escrever, nada mais pertinente do que pensar sobre a

    * Uma primeira verso deste texto foi apresentada no Frum de Pesquisa 36, Antropologia,Trabalho de Campo e Subjetividade: Desafios Contemporneos, 24a Reunio Brasileira deAntropologia, Olinda (PE), 12 a 15 de junho de 2004.

    ** Mestrando em Antropologia.

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    mas apenas (e no ser j suficiente?) arranjar o material tal como ele sedispunha para Claude Lvi-Strauss, Jacques Derrida e James Clifford. Nose trata, portanto, de um empreendimento de traduo interpretaodefinitria (Derrida, 2002, p. 24) , mas de translao, isto , marcao deafinidades intertextuais e de relaes virtualmente mas necessariamentecitacionais (Derrida, 1972, p. 111, traduo nossa).

    De Clifford, seguimos a proposio de que a etnografia est, docomeo ao fim, imersa na escrita e que compe um gnero literrio(Clifford, 1998, p. 21). Da perspectiva derridiana, na qual, por sua vez,apia-se Clifford, seguimos a reflexo acerca do logocentrismo e dofonocentrismo que comandam o pensamento ocidental, e onde a oposiodentro/fora tomada como matriz de uma cadeia de oposies quecomanda os conceitos de fala e de escritura e que pressupe a seguinterelao: fala dentro/inteligvel/essncia/verdadeiro; escritura fora/

    limitamos a apresentar, em sua irredutvel literalidade, uma das modalidadesde escritura etnogrfica exatamente aquela que escreve sobre a escritura,sobre seu surgimento, ou seja, a Lio de Escritura de Claude Lvi-Strauss(1981) colocando-a lado a lado com duas seminais escrituras sobre aescritura, a de James Clifford (1998) e a de Jacques Derrida (1999),igualmente tomadas em sua literalidade.1 Trata-se, bela e bem, de umexerccio de bricolage, pois, propositalmente, no quisemos colocar pautashermenuticas e nominativas (dado que assumimos que na ausncia do entepresente, ou seja, o referente, permanecem a referncia e os indecidveis),

    1 A teoria da escritura de Lvi-Strauss se encontra no captulo XXVIII de Tristes Trpicos (1981),sugestivamente intitulado Lio de Escritura. A desconstruo derridiana da teoria da escriturade Lvi-Strauss se encontra no primeiro captulo da segunda parte de sua Gramatologia(Derrida, 1999), intitulado A violncia da letra: de Lvi-Strauss a Rousseau.

    2 A filosofia de Derrida, principalmente em sua primeira fase, foi marcada pela incessanteperseguio crtica a um dos mecanismos conceituais mais recorrentes e sintomticos dametafsica ocidental em sua longa histria: a noo de que a escritura , de alguma forma,externa linguagem, uma ameaa vinda de fora que deve sempre ser contornada pelaestabilizante presena da fala (Norris, 1989, p. 40, traduo nossa). A estratgia deprivilegiar a fala no processo comunicativo, e assim destacar a qualidade derivada e imperfeitada escritura, constitui-se, na episteme ocidental, como uma maneira de administrar, naconstruo de um argumento, determinados aspectos do funcionamento da linguagem: se a

    atividade escritural do mtier. justamente sobre o carter escritural dofazer etnogrfico que este pequeno e modesto experimento textual, escritoa quatro mos, tem a inteno de tratar. Inteno modesta, uma vez que nos

    sensvel/aparncia/falso (Santiago, p. 30, 56).2

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    I II II II II I

    Grosso modo, pode-se dizer que juntamente com a antropologia comodisciplina e com o estabelecimento de suas pretenses cientficas deexplicao e conceitualizao da diferena, nascia um novo estilo literrio,a etnografia. Embora fundamental para a constituio e legitimao mesmada disciplina nascente, ela foi negada enquanto obra literria. Negaoestratgica, diante da obsesso objetivista do realismo etnogrfico que, aocentrar-se na experincia pessoal do antroplogo em campo o famosoestive l ancora-se numa ideologia que clama transparncia narepresentao e imediatismo na experincia (Clifford; Marcus, 1986, p. 2,traduo nossa). O realismo etnogrfico se quer, enquanto cincia, comouma descrio cultural sinttica baseada na observao participante, sendoassim configurador de uma modalidade de autoridade, o voc est lporque eu estava l, encenada na e pela escritura, a partir de determinadasconvenes literrias. Ou seja, o realismo etnogrfico uma prtica textualespecfica.

    A dimenso primeira da etnografia como escritura volta hoje como umaespcie de retorno do recalcado, abrindo um especfico campo dequestionamentos para a disciplina. Campo denominado por alguns meta-antropologia, ttulo que j vislumbra o fato de que as questes colocadasatingem profundamente o prprio cerne identitrio da antropologia.Perguntas reveladoras so postas: de um lado, como uma experinciaincontrolvel (leia-se o trabalho de campo) se transforma num relato escritoe legtimo? (leia-se a etnografia como descrio/interpretao cultural);como um encontro intercultural loquaz e sobredeterminado, constitudo porrelaes de poder e prenhe de propsitos pessoais, pode ser circunscrito auma verso adequada de um outro mundo mais ou menos diferenciado,composta por um autor individual? (Clifford, 1998, p. 21).

    O trabalho de campo, no h mais como se furtar evidncia, constitudo e atravessado por eventos de linguagem, os nossos (dos

    distncia, a falta, o mal-entendido, o obscurantismo e a ambigidade so caractersticas daescritura, ento, distinguindo escritura de fala, pode-se construir um modelo de comunicaoque toma como sua norma um ideal associado com a fala onde as palavras carregam umsignificado e o ouvinte pode, em princpio, captar precisamente o que o falante tem emmente (Culler, 1989, p. 101, traduo nossa).

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    pesquisadores de campo) dados so constitudos, como bem observaClifford, em condies discursivas, dialgicas. No entanto, avana ele,so apropriados apenas atravs de formas textualizadas. Vale dizer queos eventos e os encontros da pesquisa se tornam anotaes de campo; asexperincias tornam-se narrativas, ocorrncias significativas ou exemplos(Clifford, 1998, p. 41, 44).

    A representao da alteridade passa a ser tida e vista, num duplo ecomplexo jogo, como atividade e objeto de investigao da antropologia. Oque questionado no a diferena, mas sua representao, o seuadiamento, a sua ausncia, fato que teria como conseqncia mais imediataa desintegrao da chamada autoridade etnogrfica. A disciplina passa aser pensada como expresso exemplar dos modos pelos quais uma episteme,ao textualizar o outro (seu fora), enquanto objeto, constri, administra edefende a sua prpria economia de relaes e de enraizamentos.3

    Se levada a srio, a dimenso escritural do mtier produz efeitosimportantes, entre outros: libertao da narrao, debilitao da foracoercitiva da referncia (metafsica da presena), exposiodesmistificadora dos efeitos inquietantes e claustrofbicos do chamadocrculo hermenutico. Pensar a diferena continua a ser o nosso (daantropologia como cincia humana) telos. Mas introduzida a indagao: ese o pensar j estiver ligado diferena em sua prpria origem, num acordotcito, que anula todo o seu poder desvelador? E se a diferena, antes deobjeto, for uma fora disseminadora e produtiva, que envolve e supera oobservador, nos deixando apenas os rastros de sua passagem? E se a origemdo pensar, do experienciar e do textualizar for o prprio diferir?

    Tal indagao, caso aplicada autoridade discursiva da etnografia,produz efeitos reveladores. Como mostra Clifford (1998), a autoridadediscursiva do realismo etnogrfico se realiza, isto , textualiza-se, atravs daformulao de uma fico persuasria, ou seja, uma narrativa coerente docontato intercultural segundo uma lgica apaziguadora, que teria em signos-chave como cultura, sociedade, estrutura, observao participante,experincia, etc., um sistema capaz de subsumir as tenses provenientes da

    3 Como afirma Rabinow (1999, p. 116): Eu trabalho com a hiptese de que possvel analisara razo da mesma maneira geral que outros objetos etnogrficos so analisados, ou seja, comoum conjunto de prticas sociais em complexas relaes pragmticas com uma congeneridadede smbolos.

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    ao concreta de mltiplas subjetividades num outro generalizado. Trata-se de um tipo de mquina textual, que visaria a produo de sujeitoscoletivos e que, nesse processo, tentaria apagar os rastros de seufuncionamento atravs da obliterao do espao do eu autoral. Aetnografia um mecanismo articulador, num sistema coerente, de uma sriede operaes diferenciais; seu fim ltimo , portanto, a ordem.

    Enquanto prtica textual especfica, o realismo etnogrfico produziuuma tradio silenciosa que, desde Malinowski, funda sua eficcia num jogoescritural de mostra-e-esconde: primeiramente, afirmando a experinciasingular do eu estive l, para, em seguida, suprimir ou dissolver, ao longodo texto, a posio do sujeito, utilizando-se de uma narrativa de cunhorealista, baseada no famoso estilo indireto livre. Ou seja, defendendo-se daescritura, atravs dela prpria, o escritor torna-se cientista, procedimentopadro, segundo Derrida (1999), da metafsica ocidental no decorrer de todasua existncia.

    A cientificidade da antropologia construda, portanto, pela negao dasua textualidade. Afasta-se, assim, da literatura, da retrica e da arte,enquanto se aproxima da lgica, da razo e da verdade. A linguagem ficareduzida a um campo de expresso, de exposio de uma presena prvia,a observao participante. Por esse tipo de operao escritural, aantropologia produz discursivamente sua origem no-discursiva.

    Produz tambm uma das mais poderosas estruturas narrativas ouconstruo retrica caracterstica da prtica representacional dorealismo etnogrfico , a etnografia de resgate ou de redeno: oprimitivo ou o tradicional, objetos em extino, so resgatados no (e pelo)texto (Clifford, 1998, p. 84). A disciplina seria, assim, compreendida comoum processo de inscrio salvadora do outro perdido, encenando umaalegoria do resgate, isto , a defesa da pureza da oralidade primitiva/tradicional contra os inevitveis e nocivos avanos da historicidade moderna.A escritura, ainda que violncia e simulacro, salvaria (sempre com algumainevitvel perda) a pureza inquebrantvel da fala e da cultura nativa. Poresse tipo de operao escritural, o antroplogo, aquele que registra einterpreta o frgil costume, atua como o depositrio de uma essncia,testemunha inimputvel de uma autenticidade (Clifford, 1998, p. 84).

    O ponto-chave da alegoria do resgate revela-se quando se compreendea etnografia como um processo de escritura, especificamente de

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    textualizao. Sobre a alegoria de resgate diz Clifford (1998, p. 85): Todadescrio ou interpretao que se concebe como trazendo uma cultura parao terreno da escrita, movendo-se da experincia oral-discursiva (a donativo, a do pesquisador do campo) para uma viso escrita daquelaexperincia (o texto etnogrfico), est encenando a estrutura do resgate.Em uma palavra: a rejeio do significante escrito um princpio bsico daeconomia discursiva da antropologia: suplementa-se a experincia imediata(a observao participante) com o texto mediato (a etnografia), suplementa-se a oralidade nativa (a inocncia que essncia) com a escritura moderna(seu phrmakon, veneno e remdio formal).4

    Tudo se passa como se os antroplogos escrevessem apenas porrazes negativas. O texto necessrio, mas perigoso, posto que institui oespao da ausncia e do artifcio, onde antes havia a presena plena eevidente da experincia da alteridade. Revivncia textual da presena vividae insero textual nostlgica do outro, eis, pois, dois dos recnditosfantasmas da autoproclamada cincia do homem.

    I I II I II I II I II I I

    O escritor de Tristes Trpicos um dos fundadores dediscursividade na antropologia e, como tal, remete no somente paradeterminada obra, mas tambm para uma forma de abordar as coisasantropolgicas, ou seja, demarca a paisagem intelectual e diferencia ocampo de discurso (Geertz, 2002, p. 32-33).5 Diz ele textualmente:Claramente, Lvi-Strauss um dos verdadeiros autores da antropologia talvez o mais verdadeiro, se a originalidade for tudo. (Geertz, 2002, p. 43).

    Tristes Trpicos uma obra sui generis. Enquanto texto pode serclassificado de diferentes e variadas formas. Geertz (2002, p. 50), emsugestivo captulo de seu Obras e Vidas: o Antroplogo como Autor,intitulado O mundo em um texto como ler Tristes Trpicos, diz que olivro em questo consiste em diversos livros ao mesmo tempo, vrios tipos

    4 A relao escrita/phrmakon trabalhada por Derrida em A Farmcia de Plato, em LaDissmination (Derrida, 1972).

    5 Os outros so Boas, Benedict, Malinowiski, Murdock, Evans-Pritchard, Griaule. Para Geertz(2002, p. 32), apoiando-se na definio foucaultiana de autor, os fundadores de discursividadeno somente produziram suas obras, mas, ao produzi-las, produziram algo mais: aspossibilidades e as regras de formao de outros textos.

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    de textos muito diferentes, superpostos uns aos outros. O poemaformalista russo/tcheco ideal-tpico que Tristes Trpicos seria, segundoGeertz, simultaneamente um livro de viagem, um texto etnogrfico, umtexto filosfico e um tratado reformista (Geertz, 2002, p. 51-52, 54, 56,58).

    Tristes Trpicos uma pea da literatura francesa de viagens, queparadoxalmente comea pela negao da viagem. Esse gnero proporcionaao autor um tipo de liberdade enunciativa, que acaba por expor os elementoscentrais de seu pensamento. O cientista abaixa a guarda e, dessa forma,fornece ao leitor um belo ponto de entrada para as disposies subjetivasque ordenam o texto. Geertz (2002, p. 50) argutamente observa que TristesTrpicos, em termos de construo textual, (seria?) o arquitexto a partirdo qual, num sentido lgico, os outros so gerados.

    curiosa e sintomaticamente nesse clima literrio que Lvi-Strausspensa os germes de uma teoria da escritura, que viria a desenvolverposteriormente (e cientificamente) em Primitivos e Civilizados(Charbonnier, 1989), em Lugar da Antropologia nas Cincias Sociais eProblemas Colocados por seu Ensino (Lvi-Strauss, 1975, v. 1) e em OTempo Redescoberto (Lvi-Strauss, 1970). Se Lvi-Strauss escreveupoucas pginas sobre a escritura, no entanto, como nota Derrida (1999, p.127-128), so

    [] notveis sobre vrios aspectos: belssimas e feitas para espantar,enunciando na forma do paradoxo e da modernidade o antema queo Ocidente obstinadamente retomou, a excluso pela qual ele se cons-tituiu e se reconheceu, desde o Fedro at o Curso de lingsticageral.

    Trataremos agora de expor os termos da lio de escritura, seguindorigorosamente sua construo textual, cuja estrutura e o registro so, comobem nota Johnson (2001, p. 11), mais narrativos que argumentativos.

    Tudo se passa durante uma longa e desgastante viagem rumo aldeiaUtiariti, onde se realizaria uma espcie de reunio com outros bandos,aparentados ou aliados, que ensejaria, para o antroplogo, a oportunidadede realizar estimativas demogrficas da populao.

    O clima da reunio era tenso e desconfiado. noite, ningum dormiu,

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    toda a gente passou a noite a vigiar-se, polidamente. Teria sido poucosensato prolongar a aventura, relata Lvi-Strauss, que insiste junto aochefe para que se procedesse s trocas [de presentes] sem demora. quando verifica-se um incidente extraordinrio: o surgimento da escrituraentre os Nambikwara (Lvi-Strauss, 1981, p. 292). Vale lembrar que, parans (ocidentais) fonocntricos, os Nambikwara so um povo sem escritura.

    Antes de narrar o incidente extraordinrio, o antroplogo diz-seobrigado a voltar um pouco atrs e relembrar um experimento que realizoucom os Nambikwara. Relata ele, ento:

    Pensa-se que os nambiquara no sabem escrever nem tampoucodesenhar, com exceo de alguns pontilhados ou ziguezagues nas suascabaas. Tal como entre os caduveo, distribu, no entanto, folhas depapel e lpis, com os quais nada fizeram inicialmente; depois, um diavi-os todos ocupados a traarem no papel linhas horizontais onduladas.(Lvi-Strauss, 1981, p. 292).

    Que queriam eles fazer?, indaga-se o antroplogo.

    Tive de me render evidncia: escreviam, ou mais exatamente ten-tavam utilizar o lpis como eu dando-lhe a nica utilizao que elespodiam conceber, pois ainda no tinha tentado distra-los com os meusdesenhos. A maior parte deteve ali os seus esforos, mas o chefe dobando via mais longe. Foi provavelmente o nico que compreendeu afuno da escritura. Assim, exigia-me um bloco de apontamentos eestvamos equipados do mesmo modo quando trabalhamos juntos.No me comunica verbalmente as informaes que lhe peo, mastraa no papel linhas sinuosas e apresenta-nas como se eu devessepoder ler a sua resposta. Ele prprio meio levado pela sua comdia;cada vez que a sua mo acaba uma linha, examina-a ansiosamente,como se o significado devesse irromper dela e a mesma desiluso sepinta sempre no seu rosto. Mas no a admite; est tacitamente enten-dido entre ns que a sua garatuja possuiu um sentido que eu finjodecifrar; o comentrio verbal acompanha quase imediatamente e dis-pensa-me de exigir os esclarecimentos necessrios. (Lvi-Strauss,1981, p. 293).

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    Findada a rememorao, Lvi-Strauss d incio narrativa do incidenteextraordinrio. No momento da distribuio dos presentes, o chefe

    [] que mal havia juntado toda a sua gente, tirou de um cesto umpapel coberto com linhas tortas que fingiu ler e nos quais procurava,com uma hesitao fingida a lista dos objetos que eu devia dar emtroca dos presentes oferecidos: a este, contra um arco e flecha, umsabre de cortar? A um outro, prolas! Para os seus colares Essacomdia prolongou-se durante duas horas. (Lvi-Strauss, 1981, p.293).

    Que esperava ele?, pergunta-se Lvi-Strauss

    Enganar-se a si prprio, talvez; mas, ainda mais espantar os seuscompanheiros, persuadi-los de que as mercadorias passavam por seuintermdio, que ele tinha obtido a aliana do branco e participava dosseus segredos. (Lvi-Strauss, 1981, p. 293).

    A narrativa da cena do extraordinrio incidente comea com anarrativa de outro incidente, qualificado como um incidente ridculo, o deencontrar-se subitamente sozinho no mato, devido a problemas de marchade sua mula, que tinha aftas e sofria da boca. Aps algumas peripcias,como dar trs tiros de espingarda, uma corrida ao encalo da mula, perderseu material de trabalho, fato que o deixa desmoralizado, finalmente Lvi-Strauss recuperado pelos nativos, que tambm encontram o materialperdido, para eles uma brincadeira de criana (Lvi-Strauss, 1981, p. 293-294).

    De volta ao acampamento, ainda atormentado por este incidenteridculo, registra que dormiu mal e que enganou a insnia relembrando acena das trocas. Enganando a noite ameaadora com a segurana damemria e do mundo interior, reflete sobre o aparecimento da escritura:

    A escrita tinha, portanto, feito o seu aparecimento entre osnambiquara; mas no, como se poderia imaginar, ao fim de umaaprendizagem laboriosa. O seu smbolo fora utilizado, ao passo que asua realidade continuava estranha. E isso em vista de um fim maissociolgico do que intelectual. No se tratava de conhecer, de reter

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    ou de compreender, mas de aumentar o prestgio e a autoridade de umindivduo ou de uma funo custa de outrem. (Lvi-Strauss,1981, p. 294).

    Aps algumas consideraes empricas sobre o desenvolvimento daescritura como instituio social, Lvi-Strauss desenvolve uma segundainstncia de sua meditao noturna. Trata-se de uma reflexo filosficasobre a natureza e funcionamento da escritura:

    uma coisa estranha, a escrita. Aparentemente parece que a suaapario no deixaria de determinar modificaes profundas nas con-dies de existncia da humanidade; e que essas transformaesdeveriam ser principalmente de natureza intelectual. A posse da escri-ta multiplica prodigiosamente a aptido dos homens para preservaremos conhecimentos. Concebi-la-amos de boa vontade como uma me-mria artificial, cujo desenvolvimento deveria ser acompanhado poruma melhor conscincia do passado, portanto, por uma maior capaci-dade para organizar o presente e o futuro. (Lvi-Strauss, 1981, p.295).

    Avana sua reflexo, na seqncia da narrativa, na direo daconsiderao do movimento histrico e das temperaturas histricas dassociedades. Numa espcie de avant-premire do ncleo duro doestruturalismo, escreve:

    Depois de terem sido eliminados todos os critrios propostos para sefazer a distino entre a barbrie e a civilizao, gostaramos de reterpelo menos este: povos com ou sem escrita, uns capazes de acumularas aquisies antigas e progredindo cada vez mais depressa para oobjetivo que eles se propuseram, enquanto que os outros, impotentespara reter o passado para alm da franja que a memria individual suficiente para fixar, ficariam prisioneiros numa histria flutuante qual faltaria sempre uma origem e a conscincia duradoura de umprojeto. No entanto, nada daquilo que sabemos da escrita e do seupapel na evoluo justifica uma tal concepo. Uma das fases maiscriadoras da histria da humanidade coloca-se durante o advento doNeoltico: responsvel pela agricultura, pela domesticao dos animais

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    e por outras artes. (Lvi-Strauss, 1981, p. 295).

    Ao cabo da meditao, atinge-se o momento forte da escritura lvi-straussiana sobre a escritura. Trata-se da formulao de sua hiptese acercada funo da escritura, enunciada como explorao do homem pelo homem,como escravido, assim enunciada: a correlao entre o aparecimento daescritura e certos traos caractersticos da civilizao jaz

    [] na formao das cidades e dos imprios, isto , a integrao numsistema poltico de um nmero considervel de indivduos e a suahierarquizao em castas e em classes. Essa em todo caso a evo-luo tpica qual se assiste desde o Egito at a China, quando aescrita surge: ela parece favorecer a explorao dos homens, antes dasua iluminao. [] Se minha hiptese for exata, necessrio admitirque a funo primria da comunicao escrita a de facilitar aescravido. O emprego da escrita para fins desinteressados, com vistaa extrair dela satisfaes intelectuais e estticas um resultado se-cundrio, se que no se reduz, na maior parte das vezes, a um meiopara reforar, justificar ou de dissimular a outra. (Lvi-Strauss, 1981,p. 296).

    Aps a meditao noturna, e j encerrando a narrativa sobre osurgimento da escrita entre os Nambikwara, retoma o incidenteextraordinrio para, numa espcie de mea culpa tico-poltico, salvar daviolncia e da opresso, monoplio das sociedades ocidentais escreventes, afala inocente, autntica e no-opressora das culturas orais. Trata-se tambmde um elogio aos sbios nambikwara, que corajosamente resistiram escritura e mistificao do chefe:

    Aqueles que se afastaram do seu chefe, depois que ele ter tentadojogar a cartada da civilizao (a seguir minha visita, foi abandonadopela maior parte dos seus), compreendiam confusamente que a escritae a perfdia penetravam entre eles de brao dado. (Lvi-Strauss, 1981,p. 297).

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    6 Como peculiar escrita derridiana, seu texto caminha rente ao texto de Lvi-Strauss,envolvendo-o em seu prprio argumento, enquanto expe a lei recndita que ordena a suacomposio, estrutura cujo ocultamento se d como condio necessria de tudo que elemostra. Segundo Derrida (1971, p. 235), a qualidade e a fecundidade de um discurso medem-se talvez pelo rigor crtico com que pensada esta relao com a histria da Metafsica eaos conceitos herdados. Trata-se a de uma relao crtica linguagem das cincias sociaise de uma responsabilidade crtica do prprio discurso. Trata-se de colocar expressa esistematicamente o problema do estatuto de um discurso que vai buscar a uma herana osrecursos necessrios para a des-construo dessa mesma herana. Problema de economia ede estratgia.

    IVIVIVIVIV

    Toda a complexidade da problemtica da escritura na antropologia aprofundada, desdobrada e multiplicada pela interpelao feita por Derrida Lio de Escritura, que passamos a apresentar.6

    O interesse de Derrida por Tristes Trpicos se d na medida em que,nesse texto, e justamente em um de seus captulos etnogrficos, dedicadoaos Nambikwara, Lvi-Strauss constri uma teoria da escritura.

    Lio de Escritura, de acordo com Derrida (1999, p. 132), marca umepisdio do que se poderia denominar a guerra etnolgica, ou seja, aconfrontao essencial que abre a comunicao entre os povos e asculturas, mesmo quando esta comunicao no se pratica sob o signo daopresso colonial ou missionria. Trata-se, assim, de um relato feito noregistro da violncia contida ou diferida, violncia surda s vezes, massempre opressora e pesada (Derrida, 1999, p. 132). Violncia originria ecomplexa, realizada por um etnocentrismo disfarado de antietnocentrismo,por um movimento que se nega e que se mostra e que aparece noargumento de Lvi-Strauss quando ele repete um dos atos fundadores dametafsica ocidental: a negao crtica da escritura, tomada comoexternalidade violenta. Gesto que tambm indica a herana assumida e ahomenagem prestada quele a quem chamou de fundador das cincias dohomem, aquele a quem Derrida denominou o nome do problema: Jean-Jacques Rousseau. Se, para Lvi-Strauss, Rousseau, leitor apaixonado doslivros de viagem (sic!) e analista atento dos costumes e das crenasexticas foi quem concebeu, quis e anunciou a etnologia um sculo inteiroantes que ela fizesse sua apario (Lvi-Strauss, 1975, v. 2, p. 41), paraDerrida (1999, p. 123), Rousseau foi o nico ou o primeiro a fazer um temae um sistema da reduo da escritura, tal como era profundamente implicada

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    Da Lio de Escritura

    por toda a poca.Filha de uma longa tradio que vai de Plato a Saussure, a noo da

    escritura como exterioridade e rebaixamento encontra visibilidade plena(apesar de sempre contraditria), no fundamento rousseaunista da teorizaode Lvi-Strauss. escritura como agncia externa e corruptoracorresponderia uma fala nativa autntica. Esse tipo de estratgia discursivaindicaria a existncia de uma perene tica da fala no trabalho de Lvi-Strauss, que considera seletivamente determinados elementos de um sistemacomo suplementos no essenciais e nocivos a ele. Inflando metaforicamenteescritura e fala, organiza duas sries excludentes, onde o que essencial e pleno ope-se ao que formal e mediado.

    Um tal discurso/argumento , como sintetiza claramente Johnson (2001,p. 23), animado pelo desejo de que uma distino binria, entre preto ebranco, deva existir entre a fala e a escritura, a primeira como meio de umacomunicao autntica e prxima, a segunda como alienao no natural eviolenta da voz. Todavia, tal como mostra Derrida, o que se diz pertencerao primeiro plo tambm observado em seu oposto, indicando, desse modo,que toda a presena da fala j , desde sempre, habitada pelo germe daescritura.

    Na perspectiva derridiana, o discurso/argumento lvi-straussiano sedesenvolve pela repetio de uma lei, pelo desdobramento metafrico dedois plos iniciais em duas sries bastante cerradas, que teriam a escriturae a voz como origem, conforme a seguinte equao: [escritura:externalidade: violncia: inautenticidade: cultura: ausncia] :: [voz:interioridade: inocncia: autenticidade: natureza: presena].

    Na teoria da escritura de Lvi-Strauss, tal como mostra Derrida, aescritura, a violncia e a diferena signos tpicos da mediao e daausncia (da fala autntica, da inocncia e da identidade nativas) , jestavam l, na suposta presena originria, o que, por fim, acaba por exporo fato de que nunca houvera origem presente a si, e que a origem seria,desde sempre, este movimento de diferir e de adiar, que transformafuncionalmente a ausncia e a relao em presena e identidade fundadoras.

    Vejamos, seguindo-lhe os rastros, como Derrida desconstri a Lio deEscritura, nos ensinando qual a lio da lio.

    O incidente extraordinrio constitui um primeiro nvel de narrao, ondeocorre uma lio de escritura, pois de escritura ensinada que se trata,

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    ou seja:

    O chefe nambiquara aprende a escritura do antroplogo, aprende-a deincio sem compreender; mais propriamente ele mimica a escritura doque compreende a sua funo de linguagem, ou melhor, compreendesua funo profunda de escravizao antes de compreender o seufuncionamento, aqui acessrio, de comunicao, de significao, detradio de um significado. (Derrida, 1999, p. 150).

    Trata-se, portanto, de uma situao histrica, emprica e observvel,onde o incidente extraordinrio irrompe a sucesso ordinria de eventos e percebido pelo antroplogo como o fruto de um aparente aprendizado, quese d como iniciao e imitao cmica.

    A parbola toma ento uma dimenso sinttica, englobando, segundoDerrida (1999, p. 155), toda a complexidade orgnica do fenmeno daescritura: a hierarquizao, a capitalizao pela mediao e a participaonum segredo. Tripla funo acionada pelo chefe, mesmo sem a realcompreenso das bases inteligveis do sistema que as possibilitava. Fato queabre espao para a narrativa da lio da escritura, isto :

    [] o ensinamento que o etnlogo acredita poder induzir do incidenteno curso de uma longa meditao, quando, lutando contra a insnia,reflete sobre a origem, a funo e o sentido da escritura. Tendoensinado o gesto de escrever a um chefe nambiquara que aprendiasem compreender, o etnlogo, por sua vez, compreende ento o quelhe ensinou e tira a lio da escritura. (Derrida, 1999, p. 150).

    A lio da escritura compe-se, assim, de dois momentos: a relaoemprica de uma percepo, ou seja a cena do extraordinrio incidente euma reflexo histrico-filosfica sobre a cena da escritura e o sentidoprofundo do incidente, da histria cerrada da escritura, que ocorre noite,na insnia (Derrida, 1999, p. 150). Vale dizer, portanto, que a lio daescritura no envolve mais a experincia vivida pelo antroplogo e pelochefe indgena, mas a rememorao solitria do intelectual, observada pelaausncia presente de seu leitor, o novo aluno dessa nova lio. Passa-se aonvel terico, metadiscursivo, onde o incidente ter seu carter extraordinriodomesticado e rotinizado por uma lio da lio.

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    O discurso de Lvi-Strauss sobre o aparecimento da escritura entre osNambikwara ancora, para Derrida, um argumento acerca do epigenetismoda escritura, fundado numa economia discursiva que vai do dentro ao forae vice-versa: a apario da escritura instantnea, no preparada.Um tal salto provaria que a possibilidade da escritura no habita a fala, maso fora da fala. Essa apario no se refere origem da escritura, mas sua imitao e mais ainda sua importao, ao seu emprstimo(Derrida, 1999, p. 156). Ou seja, a apario da escritura entre osNambikwara um movimento ficcional e instantneo a comdia do chefe e no um laborioso desenvolvimento interno da cultura nativa. Em sntese:a primeira lio da lio a da significao da escritura como externalidade,como o fora da fala.

    A significao da escritura como externalidade e fico leva Lvi-Strauss, segundo Derrida, a dar sua parbola um novo corte, e desdobrarsua primeira dicotomia (fala/escrita) em uma nova: entre fim sociolgico efim intelectual. O argumento o seguinte:

    J que eles aprenderam sem compreender, j que o chefe fez um usoeficaz da escritura sem conhecer nem o seu funcionamento nem ocontedo por ela significado, que a finalidade da escritura polticae no terica, sociolgica mais do que intelectual. (Derrida,1999, p. 156, grifo do autor).

    A comdia do chefe desvela uma verdade profunda, que constitui asegunda lio da lio: o carter poltico da escritura, que tambm seupoder escravizante.

    Enunciado o poder escravizante da escritura, na seqncia de seuargumento, e desde uma segunda corrente de meditao aquela acercado movimento histrico e das temperaturas histricas Lvi-Strauss, deacordo com Derrida, neutraliza a fronteira entre os povos sem escritura eos povos dotados de escritura: no quanto disposio da escritura, masquanto ao que da se acreditou poder deduzir, quanto sua historicidade oua sua no historicidade. Uma tal neutralizao autoriza o aparecimento nanarrativa de Lvi-Strauss, e a um s golpe, de temas fundamentais doestruturalismo, como o da relatividade essencial e irredutvel na percepodo movimento histrico; o das diferenas entre o quente e o frio na

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    temperatura histrica das sociedades e o das relaes entre etnologia ehistria, todavia no atribuindo escritura nenhuma pertinncia naapreciao dos ritmos e dos tempos histricos, nenhuma participao nachamada revoluo neoltica, poca da criao macia das estruturas queainda hoje so as nossas (Derrida, 1999, p. 157-158).

    Na perspectiva derridiana, o estruturalismo de Lvi-Strauss estprofundamente comprometido com o fonocentrismo, pois funda seuargumento na distino fala/escritura, ou seja, na excluso e rebaixamentoda escritura e na aproximao ntima da voz ao logos (inseparvel dasubstncia fnica) enquanto origem da verdade do ser e presena doadorade sentido. O fonologismo lvi-straussiano se explicita em duas frentes: a domodelo lingstico e fonolgico que utiliza e pela ocorrncia concreta dorebaixamento da escritura ao longo de toda a sua obra. A cena da aparioda escritura entre os Nambikwara, sobre a qual esse texto se debrua, parte de uma ampla srie de exemplos.

    Tal fonocentrismo, que comanda o pensamento ocidental, constitui, paraDerrida, um modelo ontolgico-lingstico que remete o sujeito ao ouvir-sefalar da conscincia e da reflexividade, sistema que se viabiliza pela inflaode um evento pontual em lei de toda significao. Graas ao fato de que,no momento em que se fala, o significado espiritual e o significante materialse presentificam como uma unidade sem frestas, em que o inteligvelsubsumiu o sensvel, a fala pode defender seu liame imediato com o esprito.Assim:

    As palavras escritas podem aparecer como marcas que o leitor deveinterpretar e animar; pode-se v-las sem entend-las, e essa possibi-lidade de abertura parte de sua estrutura. Mas quando eu falo,minha voz no parece ser algo externo, que eu primeiro ouo e depoisentendo. Ouvir e entender minha fala so a mesma coisa. (Culler,1989, p. 107, traduo nossa).

    Como nossa teoria nativa, o fonocentrismo constri a possibilidade deum acesso direto ao pensamento proporcionado pela fala e pelo som,significante que, por no se manifestar em sua real materialidade externa,acaba por no separar o self de seus pensamentos. O apagamento dosignificante na voz , nesses termos, a condio mesma da idia de verdadena metafsica ocidental. Tal movimento articula um sentimento derivado de

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    objetividade resultado inferencial da repetida manifestao do sentido com a suposta existncia de um domnio do significado sobre a aparncia.Culler sintetiza bem tal movimento:

    J que a verdade requer a possibilidade de uma significao constan-te, que pode manifestar-se e permanecer inalterada e intocada peloveculo que a manifesta, a voz nos prov como um modelo necessrio.(Culler, 1989, p. 108, traduo nossa).

    Um ponto da desconstruo derridiana relativo construo lvi-straussiana, que fundamental para a reflexo da antropologia, diz respeito exposio da estrutura de demonstrao do argumento do clebreantroplogo sobre a externalidade e o poder escravizante da escritura.Evidenciando seu quadro de disposies, o filsofo diz tratar-se de umaestrutura que manipula paradoxalmente a diviso escritura/oralidade, que destacada quando se desvela o carter instantneo e, por isso, externo daescritura em relao oralidade, e dissolvida quando se encontra a verdadeda fico nambikwara, dissociando-se a insurgncia do progresso cientficoda comunicao escrita e confirmando-se a hiptese da funo opressiva daescritura sem comprometer o carter cientfico do ponto de fala do autor.Um complexo jogo, que mostra e esconde:

    O etnocentrismo tradicional e fundamental que, inspirando-se nomodelo da escritura fontica, separa a machado a escritura da fala, pois manipulado e pensado como anti-etnocentrismo. Ele sustentauma acusao tico-poltica: a explorao do homem pelo homem o feito das culturas escreventes de tipo ocidental. (Derrida, 1999, p.149-150).

    Estamos, portanto, no prprio cerne da constituio histrica eepistmica da antropologia, que, segundo Derrida, com o que concordamosintegralmente, s teve condies para nascer como cincia no momento emque se operou um descentramento, ou seja, quando a cultura europia epor conseqncia a histria da Metafsica e dos seus conceitos foideslocada, expulsa do seu lugar, deixando ento de ser considerada comoa cultura de referncia. Todavia, e por efeito de seu paradoxo fundante, aantropologia antes de mais nada uma cincia europia que utiliza,

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    7 O paradoxo fundante da antropologia considerado por Derrida como uma necessidadeirredutvel, no se tratando, assim, de uma contingncia histrica.

    embora defendendo-se contra eles, os conceitos da tradio (leia-semetafsica da presena e fonocentrismo). Por via de conseqncia, oantroplogo acolhe no seu discurso quer queira ou no, pois isso nodepende de uma deciso sua, as premissas do etnocentrismo no prpriomomento em que o denuncia (Derrida, 1971, p. 234-235).7

    VVVVV

    No senso comum antropolgico, a etnografia, como bem refere Clifford(1998, p. 88), traduz a experincia e o discurso em escrita. Foi exatamenteisso que vimos, e de forma paradigmtica, em Tristes Trpicos. No entanto,um tal senso comum no , nos lembra Clifford, inocente. Foi exatamenteisso que nos mostrou Derrida, ao analisar a Lio de Escritura comoprtica textual (um texto se d sempre uma certa representao de suasprprias razes que, por sua vez, vivem apenas desta representao),dando da Lio de Escritura uma dupla lio que pode ser assimsintetizada: 1) o que subverte um texto freqentemente aquilo que, estandoescondido, o faz texto; 2) o que est escondido a noo de escritura comorebaixamento e mero suplemento da fala (Derrida, 1999, p. 126). Essa lioaplicada etnografia, e nos termos de Clifford, nos desvela que: 1) apassagem da oralidade para a escritura, crucial para a histria do Ocidente, exatamente onde a antropologia situa sua prtica; 2) essa passagem umapoderosa histria (leia-se alegoria) que est no cerne da etnografia comopastoral. Em ltima instncia, e como bem sintetiza Clifford (1998, p. 93), anoo de que a escrita uma corrupo, de que algo irresgatavelmente purose perde quando um mundo cultural textualizado , aps Derrida, vistacomo uma difusa e contestvel alegoria ocidental.

    Chegamos aqui ao que consideramos (os autores deste texto) comoponto nevrlgico: a reflexo sobre a teoria da significao que subjaz etnografia. Trata-se de uma teoria da significao de tipo fonocntrico, quese apresenta na antropologia, como notamos na introduo, em duas frentesprivilegiadas. A primeira denominamos de experincia-presente do outro, asegunda, de experincia do outro-como-presena. A experincia-presente dooutro corresponde, para ns (os autores deste texto), ao trabalho de campo,

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    e a experincia do outro-como-presena observao participante, onde acultura se apresenta como oralidade. Consideramos essas frentes comocorrespondendo, tambm e respectivamente, ao fora e ao antes do textoetnogrfico. Uma formulao possvel da teoria da significao daantropologia, tomada como nossa teoria nativa, seria: [experincia-presentedo outro: trabalho de campo: fora do texto etnogrfico] :: [experincia dooutro-como-presena: observao participante: antes do texto etnogrfico] ::[escritura: externalidade: violncia: inautenticidade: cultura: ausncia]:: [voz:interioridade: inocncia: autenticidade: natureza: presena].

    Nossa (da antropologia) teoria da significao toma a voz como veculopleno da experincia do outro, isto , da diferena. Em tal esquema deinteligibilidade, a voz se manifestaria, inicialmente, quando articulada emcampo pelo antroplogo; todavia, posteriormente, ela seria suplementadapela marca morta da escritura. Haveria, portanto, de acordo com nosso (dosautores deste texto) argumento uma aproximao da voz em relao vivncia intuitiva do outro, verdade protelada pelo texto. Mantm-se, dessemodo, a crena na relao direta da voz com o significado, no signoespontneo e quase-transparente, na empatia com o outro atravs do soprodo esprito. Ignora-se, assim, que a escritura, como evidencia Derrida, spode ter tal carter compensatrio, suplementar, em relao fala, porquea fala sempre esteve marcada pelas qualidades geralmente aferidas escritura: a ausncia, a incerteza, a materialidade e a exterioridade.

    Por outro lado, percebida enquanto objeto do olhar antropolgico, a vozviria a se cristalizar como cultura oral. No mais, pensamos (ns, osautores deste texto), como veculo autntico, mas como signo da prpriaautenticidade, ou do prprio. O texto etnogrfico apareceria, ento, comoa escritura, tal como j mencionado antes, salvador de uma voz presente-a-si, substncia autntica de um modelo comunicativo fadado ao ocasohistrico. Segundo Clifford (1998, p. 87), o aspecto mais problemtico epoliticamente carregado do resgate a sua incansvel alocao de outrosnum presente-que-est-se-tornando-passado.

    O contedo tico de tal apercepo posicionaria a antropologia em umafuno contracultural, de resgate textual da diferena contra os ataques dacivilizao da qual faz parte. Defendendo um outro textualmente anterior, aantropologia constituir-se-ia como um fora frente a sua prpriaprovenincia histrica: o Estado-Nao e o colonialismo. Vale dizer que aalegoria do resgate, metamorfoseada em pastoral da salvao, gera uma

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    tica da fala que, como revela a Lio de Escritura, creditada, propomosns (os autores deste texto) a um engodo fundamental: o de buscar na fala(do outro) o exemplo da presena (dominada), revelando a nostalgia de umaplenitude h muito tempo perdida nesse nosso (ocidental moderno) mundo deausncia, de fragmentao e de virtualidade.

    Defendendo o tema de uma violncia constitutiva e de uma moralidadeoriginada num espaamento, ou num entre-signos, Derrida (1981, p. 171)evidencia uma tica da escritura, onde os paradoxos da antropologiapodem encontrar um belo ponto de ressonncia e de reflexo:

    Reconhecer a escritura na fala, isto , a diffrance e a ausncia dafala, comear a pensar o engodo.8 No h tica sem presena dooutro mas, tambm e por conseguinte, sem ausncia, dissimulao,desvio, diffrance, escritura. A arqui-escritura a origem damoralidade como da imoralidade.9 Abertura no tica da tica. Aber-tura violenta. Como foi feito com relao ao conceito vulgar de es-critura, sem dvida necessrio suspender rigorosamente a instnciatica da violncia para repetir a genealogia da moral.10

    Atentando para a complexidade da economia simblica que move ofora do discurso antropolgico, e que o posiciona como um dado pr-simblico e pr-discursivo, o pensamento de Derrida problematiza, e deforma aguda, a nobre inteno antropolgica de dar voz ao outro. Ilumina,assim, as tenses de um movimento complexo e paradoxal, que pretendedar ao outro, atravs da relao e pela escritura, sua prpria presenafalante, tida como no-relao expressa enquanto voz. Reconstruindo amemria longnqua, a genealogia, de um gesto aparentemente tocontemporneo, o filsofo desvela a funo enraizante de nossos outros

    8 Diffrance o jogo sistemtico de diferenas, de traos de diferenas, de espaos(espaamentos) por meio dos quais elementos esto relacionados entre si. Este espaamento a produo simultaneamente ativa e passiva de intervalos (o a de diffrance indica estaindeciso que concerne atividade e passividade, aquilo que no pode ser governado porou distribudo entre os termos desta oposio) sem os quais os termos integrais nosignificariam, no funcionariam. (Derrida, 1981, p. 27).

    9 A arquiescritura a escritura primeira, no no sentido de precedncia histrica palavraproferida, mas que antecede a linguagem falada e a escrita vulgar (Santiago, 1976, p. 11).

    10 Para Derrida (1971, p. 69), o conceito vulgar de escritura s pde historicamente impor-se pela dissimulao da arquiescritura, pelo desejo de uma fala expelindo seu outro e seu duploe trabalhando para reduzir sua diferena.

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    Da Lio de Escritura

    texto, o que lhe prprio, a textualizao.

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    (os objetos de estudo da antropologia), que nos (os antroplogos) tmservido, falando ou silenciados, como pontos de captura de identidade, doprprio de nossa (ocidental) histria e de nosso (do sujeito) desejo.

    Se a etnografia nada mais do que encenao da passagem daoralidade para a escritura, querendo ou no, no depende de deciso sua (doetnogrfo), pela escritura (suplemento, artifcio, exterioridade) que eleresgata e salva a voz (substncia autntica) do outro. Em outros termos, nosomente il ny a pas hors texte (Derrida, 1999, p. 194), como o prprio

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 233-254, jul./dez. 2004

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    Recebido em 20/06/2004

    Aprovado em 07/07/2004