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47 REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2017 Herói Incluir Oswaldo Cruz no Livro dos Heróis da Pátria é homenagem devida, afirma historiadora sobre projeto do Senado Fábio Iglesias e Haendel Gomes é eterna na ciência”, disse a historiadora Nara Azevedo ao lembrar a frase raciona- lista eternizada por Oswaldo Cruz para defini-lo. Em en- trevista, a ex-diretora da Casa de Oswal- do Cruz (COC/Fiocruz) – autora do livro Oswaldo Cruz, a construção de um mito na ciência brasileira – comentou ainda o projeto de lei que tramita no Senado Fe- deral para incluir o nome do patrono da Fiocruz no Livro dos Heróis da Pátria da Nação, o mesmo que homenageia Tira- dentes e outros símbolos nacionais. Uma “homenagem devida”, afirmou. A pesquisadora discorreu ainda sobre a importância de Belisário Pena para a cons- trução da imagem mítica em torno de Oswaldo Cruz. Um ano após a morte do sanitarista, em 1918, ele criou a Liga Pró- Saneamento do Brasil, que tinha como objetivo promover uma mudança na saú- de. “A reforma que eles pretendiam era assumida pelo Governo Federal porque, nesse movimento de natureza política, a ideia era criar um Ministério da Saúde que tivesse abrangência nacional”, explicou. Nara abordou a trajetória do cientista, a importância que teve para as políticas pú- blicas e seu trabalho à frente da Diretoria- Geral de Saúde Pública (DGSP), bem como sua representação política, científica e cul- tural para o país. da Pátria F ESPECIAL

da Pátria - Fiocruz · Monteiro Lobato. Ele escreve sobre isso na Revista do Brasil, publicação então muito importante, que tinha se Nara Azevedo: Belisário Pena foi o organizador

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HeróiIncluir Oswaldo Cruz no Livro dos Heróisda Pátria é homenagem devida, afirmahistoriadora sobre projeto do Senado

Fábio Iglesias e Haendel Gomes

é eterna na ciência”, disse ahistoriadora Nara Azevedoao lembrar a frase raciona-lista eternizada por OswaldoCruz para defini-lo. Em en-

trevista, a ex-diretora da Casa de Oswal-do Cruz (COC/Fiocruz) – autora do livroOswaldo Cruz, a construção de um mitona ciência brasileira – comentou ainda oprojeto de lei que tramita no Senado Fe-deral para incluir o nome do patrono daFiocruz no Livro dos Heróis da Pátria daNação, o mesmo que homenageia Tira-dentes e outros símbolos nacionais. Uma“homenagem devida”, afirmou.

A pesquisadora discorreu ainda sobrea importância de Belisário Pena para a cons-trução da imagem mítica em torno deOswaldo Cruz. Um ano após a morte dosanitarista, em 1918, ele criou a Liga Pró-Saneamento do Brasil, que tinha comoobjetivo promover uma mudança na saú-de. “A reforma que eles pretendiam eraassumida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política, aideia era criar um Ministério da Saúde quetivesse abrangência nacional”, explicou.Nara abordou a trajetória do cientista, aimportância que teve para as políticas pú-blicas e seu trabalho à frente da Diretoria-Geral de Saúde Pública (DGSP), bem comosua representação política, científica e cul-tural para o país.

da Pátria

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ESPECIAL

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Em seu livro Oswaldo Cruz, aconstrução de um mito na ciênciabrasileira a senhora afirma que aintenção dos cientistas de Mangui-nhos, ao levar adiante o processode mitificação do sanitarista, era ade mobilizar a sociedade, principal-mente a classe política, em tornodos ideais sanitaristas. De que ma-neira isso ajudou a consolidar avan-ços na saúde pública brasileira na-quele início de século 20?

Nara Azevedo: Ajudou muito, masnão foi o único elemento. Depois damorte de Oswaldo Cruz, o papel quehavia desempenhado para tentar mi-nimizar os problemas de epidemias nacapital federal contribuiu para a sensi-bilização da classe política e intelectu-al, como Monteiro Lobato. Até então,sua obra [Urupês, com o personagem]do Jeca, falava sobre os homens po-bres brasileiros; tinha um conteúdo ra-cista enorme. Jeca estava condenadoà miséria, à doença. Acho que essepersonagem representa muito bem o

que se pensava da população brasilei-ra. E não se pode desvincular a ima-gem da população dessa maneira por-que tínhamos acabado de sair doregime escravocrata. Belisário Pena,médico que acompanha Oswaldo Cruzdesde a campanha da febre amarelaem 1904, é o organizador do movi-mento de mitificação de sua figura ecria, um ano depois da morte do cien-tista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil.Oswaldo Cruz é o patrono da Liga, cujoobjetivo é promover uma mudança,uma reforma na saúde brasileira. Areforma que eles pretendiam era assu-mida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política,a ideia era criar um Ministério da Saú-de, que tivesse abrangência nacional.Era quase como se o Jeca fosse o alvocentral desse movimento, representan-do a vítima das endemias rurais, asprincipais doenças da nação. Não eraverdade, mas achavam que era. Do-ença de Chagas, ancilostomose, ma-lária, por exemplo, deveriam ser com-batidas pela Liga e o futuro Ministério.

Não podemos esquecer que esseé o contexto do pós-guerra, da Pri-meira Guerra Mundial, e existe umgrande movimento nacionalista capi-taneado por uma camada intelectu-al e política, à qual sanitaristas emédicos vão se articular. Então, o dis-curso sobre Oswaldo Cruz, o “sanea-dor do Rio de Janeiro”, o “fundadorda medicina experimental”, que sãoas imagens que consegui identificarno meu trabalho, são as mais usadaspara defini-lo nesse discurso mitoló-gico e simbólico sobre o que ele re-presentou para o Brasil. O InstitutoOswaldo Cruz se tornou a primeiragrande instituição de pesquisa no Bra-sil e é o fundador da medicina expe-rimental. O problema do Jeca não éque ele é ignorante; ele não tem saú-de. Esse discurso é recorrente atéhoje, chamamos de determinantessociais. O movimento sanitarista doBelisário Pena mudou a opinião deMonteiro Lobato. Ele escreve sobreisso na Revista do Brasil, publicaçãoentão muito importante, que tinha se

Nara Azevedo: Belisário Pena foi o organizador do movimento de mitificação da figura deOswaldo Cruz e criou, um ano depois da morte do cientista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil

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enganado e que, de fato, o Jeca nãoera culpado pela sua miséria. O cul-pado é o Estado, a sociedade que ti-nha que dar um jeito naquilo. Então,foi muito importante para o movimen-to, para o debate público sobre a saú-de. Resolveu? Não. Estamos com afebre amarela de novo.

Em que medida o contexto cul-tural e a própria personalidade deum Oswaldo Cruz “de carne eosso” explicam a construção deimagens como “general mata-mos-quito autoritário”, “apóstolo daciência”, “rei-todo-poderoso”,“Cristo da religião do saneamen-to”, “fundador da medicina expe-rimental no Brasil”?

Nara: Vamos separar essas coisas,porque esse general mata-mosquitonão tem nada a ver com Liga Pró-

Diretoria-Geral de Saúde Pública eimpõe políticas de cima para baixo.

“Apóstolo do saneamento” e“fundador da medicina experimentalno Brasil” são coisas que aparecemdepois da morte de Oswaldo Cruz.Eu me preocupei em entender porque se falava de Oswaldo Cruz como“Cristo da religião do saneamento”.A gente sabe que falar de Cristo noBrasil, um país católico, não é qual-quer coisa; comparar Oswaldo Cruza essa figura é algo muito significati-vo. Isso que me motivou a estudar oque eu chamei desse mito, é um mitomesmo. Fala-se dele como se proces-sasse um descolamento da vida datrajetória profissional, embora seusem os elementos dessa trajetória.O que ele fez na saúde pública, noInstituto de Manguinhos, é a base apartir da qual se projeta uma ideali-zação dessa figura. Quando escrevimeu trabalho, disse – e continuo

Saneamento. General mata-mosqui-to está nas caricaturas. Na verdade,são jornais da época, os caricaturis-tas que tinham um humor espetacu-lar, crítico; não sei se se repete noBrasil algo tão impressionante, aque-les jornalistas, desenhistas e artistas.Então, eles inventaram essa palavrade general mata-mosquito. Eu nãoquero cometer nenhum anacronismo.Nós vivemos em outra sociedade,temos outros tipos de relações; nãopodemos olhar com aquilo que cha-mamos de autoritarismo. Não vamosesquecer que a República tinha sidofeita por generais. É disso que elesestão falando também. Ele organizoucampanhas contra a febre amarelae, principalmente, contra a varíola,uma lei que já era obrigatória, só queninguém se vacinava. E aí houve umarevolta popular. General mata-mos-quito tem a ver com esse contextode 1903-1904, quando ele assume a

Belisário Pena na sessãocomemorativa do 2º aniversárioda Liga Pró-Saneamento do Brasil,realizada na sede da SociedadeNacional de Agricultura, em 1919

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achando isso – é impossível saberquem é o Oswaldo Cruz, para alémou para aquém dessas imagens queforam criadas para torná-lo público.Acho difícil. O passado está sendosempre reconstruído, não está numlugar que os historiadores tiram dobaú. Construímos interpretações dopassado a partir de registros e vestí-gios que essas personalidades e essepassado deixam. Então, eu não sei,é muito difícil hoje saber quem eraOswaldo Cruz.

Como a classe médica, em es-pecial as instituições com forte re-putação científica como a Acade-mia Nacional de Medicina e aFaculdade de Medicina do Rio deJaneiro, se relacionou com Oswal-do e o Instituto?

Nara: Eu tratei isso no meu estudo. Eraum elemento importante para que eupudesse afirmar a ideia de que o dis-curso mitológico, hagiográfico [relato

sobre a vida de um santo], heroicizan-te dessa figura; esses símbolos que fo-ram criados em torno de OswaldoCruz pudessem ser diferenciados decomo ele era reconhecido em vida.Qual era o reconhecimento e, maisimportante, o reconhecimento cien-tífico que ele tinha no meio médicoe científico da época, no Rio de Ja-neiro, em particular. Oswaldo Cruznunca foi professor da Faculdade Na-cional de Medicina. O Instituto Soro-terápico Federal passa a ter o nomede Oswaldo Cruz em homenagem aoprêmio [recebeu a medalha de ouroem nome da seção brasileira presen-te no XIV Congresso Internacional deHigiene e Demografia] em Berlimpelas campanhas que acabaram coma febre amarela, peste.

Muitos estudantes da Faculdade deMedicina vinham para Manguinhosfazer uma especialização, conhecer oslaboratórios ligados ao estudo da pes-te bubônica e de outras doenças. Em1907-1908, Oswaldo Cruz cria a Esco-

la de Manguinhos, o chamado Cursode Aplicação. O curso é de 1909, anoem que Carlos Chagas descobre a do-ença de Chagas. Acho que foi umaousadia criar esse curso, que hoje po-deríamos chamar de extensão; duravadois anos e era rigorosíssimo. Eles vi-nham praticar a medicina experimen-tal, ou microbiologia, a ciência pasteu-riana. Isso criou uma disputa com aFaculdade de Medicina, velada emcertos momentos, mais aberta e deconflitos abertos em outros.

Oswaldo Cruz inspirou-se oufoi influenciado por intelectuais dasua época para buscar conhecer osproblemas do homem brasileiro dointerior do país?

Nara: Não tratei disso em meu es-tudo, então vou compartilhar uma es-peculação baseada no que acabei defalar sobre o interesse científico que no-tabilizou o Instituto no mundo, as cha-madas doenças tropicais. Eu não con-

Fé eterna na ciência. A frase deinspiração positivista constava doexlibris de Oswaldo Cruz, selo aplicadonos exemplares de seu acervo

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reira Passos. A capital federal era as-sim, mas, também, os confins da Ama-zônia. Essas experiências vão dando aele e a esse grupo de cientistas pilaresou elementos para a constituição deuma justificativa de um trabalho de ci-entista, sobre o que é fazer ciência.Acho que foram todos muito influenci-ados, inspirados por essas condições.E isso não acontece só com eles, mascom os intelectuais engajados e ospolíticos.

Das dez cidades do país quemais precisam e menos fizeramobras para coleta de esgoto nosúltimos cinco anos, metade está noRio de Janeiro. Nova Iguaçu, Duquede Caxias, Belford Roxo, São Gon-çalo e a própria capital aparecemna lista feita pelo Instituto TrataBrasil entre os municípios com maisurgência em reforçar a rede de co-leta de esgoto. Precisamos de um

novo líder capaz de mobilizar dife-rentes segmentos da sociedadepara reverter o quadro sanitárionacional ou essa estratégia se mos-trou historicamente ineficiente?

Nara: Eu não acredito muito em li-deranças carismáticas. O discurso domito é que tornou Oswaldo Cruz isso.Acredito que o enfrentamento que vocêacabou de falar, o saneamento...vocêestá falando do Rio [ de Janeiro], mas oBrasil inteiro é assim. Saíram pesquisasrecentes do IBGE mostrando isso. A gen-te precisa é de políticas públicas demo-cráticas, de representação política efi-ciente, coisa que não temos no Brasilhá alguns anos. Vivemos numa socie-dade muito diversa daquela de Oswal-do Cruz e acho que precisamos ter re-presentantes políticos que façam isso.Sempre ouvi dos sanitaristas, especia-listas dessa área, que o custo do Estadocom os problemas de saúde diminuiria

sigo desvincular o interesse científico,intelectual com o mundo em que elesvivem, com a sociedade na qual vivem,da sua vida prática. Pensando assim,me pergunto o quanto o livro Os ser-tões, de Euclides da Cunha, influen-ciou Oswaldo Cruz e aquela geraçãode jovens. O livro fez um sucesso imen-so. Foi publicado em 1902, quandoOswaldo está chegando à Diretoria-Geral de Saúde Pública com a incum-bência de tratar epidemias que mata-vam pessoas. Ao mesmo tempo vocêtem uma denúncia pública sobre o queaconteceu em Canudos, que foi umgenocídio; o Euclides, que era todo en-tusiasmado com o combate aos insur-retos, acabou se tornando o grande de-nunciador, sem ser panfletário. Fez umaobra fantástica para dizer o que é ohomem brasileiro. Aquele livro é umespetáculo, parece ficção, mas é pro-fundamente realista na maneira deescrever. Eu me pergunto: se eu fossejovem naquela época, lendo uma coi-sa como essa, o que eu diria? Comoisso repercutiria em mim? Eu que souum cientista, trato dessas doenças,dessa população que está morrendo,ou seja, acho que faz sentido eu pen-sar que Euclides da Cunha pode ter tidoalguma influência sobre a maneiracomo Oswaldo Cruz via o que ele fa-zia, dava sentido e os interesses queteve, científicos e público que, paramim, não são dissociados.

Nesse sentido a senhora diriaque Oswaldo Cruz teve dois impac-tos, com Canudos e a com a Ama-zônia, que ele visitou?

Nara: Ele escreve sobre a Amazô-nia [onde foi combater a malária] norelatório que entrega à Estrada de Fer-ro Madeira-Mamoré. Nesse relatório,fiquei muito impressionada porque se-ria um relatório médico: “Olha, apli-quei tal coisa quinino (que era o quese fazia) nos trabalhadores e tal”. Mas,não, ele faz uma descrição antropoló-gica de cidades; Santo Antônio, sobrea população, como as pessoas vivem,as valas, os animais mortos nas ruas, oesgoto correndo a céu aberto; pareceo Rio de Janeiro antes da reforma Pe-

Cruzada Oswaldo: os micróbios que escapam (O Malho, 25/6/1910)

Zé Povo: - Vai, sábio hygienista, que tanto honras o Brazil! Deus te acompanhenessa nova e santa cruzada, que empreendes com sacrificio da própria vida! Mas, sialém dos da malária, pudesses também destruir aquelles outros micróbios... isso,então, é que era uma pechincha!...Oswaldo Cruz: - Impossível meu caro Zé! São microbios da politicagem e não háhygiene pacifica que possa com elles... Só tú, a poder de protestos, poderás umdia acabar com esses bichos!...

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muito. Grande parte das doenças da po-pulação tem a ver com saneamento,principalmente entre as crianças. NoNordeste, a mortalidade infantil é pro-vocada por muitas coisas, mas umadelas é falta de condições higiênicas.Até parece que a gente está falandodo discurso do século 19: condições hi-giênicas, água limpa, esgoto, que é umacoisa incrível que o Brasil ainda não te-nha no século 21. Acho que hoje [o quefaltam] são políticas e representaçãopolítica comprometida com bem-estarda população.

Seu estudo sobre a construçãode mitos pode ser também enten-dido como uma advertência?

Nara: Não sei, nunca pensei nisso.Eu acho que esse mito foi muito impor-tante e continua sendo. Para certas fina-lidades da área de saúde pública, asmesmas que mobilizaram o BelisárioPena e aquele grupo de médicos queestava em torno dele querendo reformara saúde pública. Eu acho que falar doOswaldo Cruz é uma chave importante,uma bandeira. Uma característica impor-tante que ele – e de vários da geraçãodele, não só médicos, políticos e outrosintelectuais – é essa característica de fa-zer da sua ação pública, da vida profissi-onal, algo que está a serviço do público.Se você olha para outros países, nemsempre vê esse tipo de intelectual. En-tão, acho que falar de personalidadescomo Oswaldo Cruz, não como “Cristoda religião do saneamento”, mas dessafigura que criou uma instituição de pes-quisa, produziu, formou muitos pesqui-sadores médicos no Brasil, todo o lega-do que essa instituição, o InstitutoOswaldo Cruz deu e a Fiocruz, é muito.Devemos continuar falando de OswaldoCruz quando a gente quiser ter avançosem termos de saúde e pesquisa no Bra-sil. Quem são nossos heróis?

Fiz pesquisa até 1972, quando secompletaram 100 anos do seu nascimen-to. Todos repetiam exatamente a mes-ma coisa que se dizia em 1918. Então,se sedimentam imagens simbólicas so-bre o que ele significava e representa-va. Isso é o mito, textos, signos, bustos,medalhas, as figurinhas Eucalol; muitascidades têm praças e ruas com o nome

de Oswaldo Cruz. Ele quase competecom Getúlio Vargas. Pensando nessagaleria dos heróis, temos o Tiradentestambém. Os heróis são um espelho doque a gente quer ser e do que há debom que podemos produzir. É uma pro-jeção idealizada das nossas ansiedades,expectativas, desejos. Quem é o únicomédico que está lá? Oswaldo Cruz! Naverdade, eu acho que ele está nessagaleria há muitos anos; há um séculose fala dele como herói da nação.

O Senado Federal está para ava-liar o Projeto de Lei 317/2016 so-bre a inclusão de Oswaldo Cruz noLivro de Heróis da Pátria, que reú-ne em sua maioria políticos e líde-res militares, religiosos e indíge-nas. Se aprovada a lei, a ciêncianacional terá oficialmente um per-sonagem heroico. Essa é uma ho-menagem devida?

Nara: Na historiografia também. Euacho que é devida, sim. Ele já existe namemória das pessoas, assim como Ge-túlio. Existem trabalhos que demonstramisso. Eu mesma participei, há muitosanos, quando trabalhava na FundaçãoGetúlio Vargas, de uma pesquisa de rua.Fiquei muito impressionada como sefalava de Getúlio, que é algo similar aoOswaldo Cruz, com muito mais ampli-tude; até porque é uma figura muitoimportante na sociedade, na políticabrasileira, na construção do Estado na-cional brasileiro. Falar de Oswaldo Cruznesses termos contribui para que se tor-ne aquilo que ele representa, símbolode mais saúde, políticas públicas quede fato contribuam para a melhoria davida das pessoas, e que esse Estado sejaeficiente nesse sentido; não seja o es-tado demagogo, populista. Sempre fa-lar dele é bom. Claro, perto de mim,eu vou dizer: “olha, lá! “; veja só, nãoé bem assim, olha o mito!”. Mas, poli-ticamente, falar de Oswaldo Cruz temhoje o mesmo significado e importân-cia que em 1918.

No início do século, quandoOswaldo Cruz assume a saúde pú-blica na capital federal, o “país dafebre amarela” precisava ser sane-ado, enfatizou Rui Barbosa em seu

discurso no Teatro Municipal emmaio de 1917. Com a persistênciade doenças como febre amarela emalária em diversas regiões brasi-leiras, podemos dizer que os ensi-namentos do cientista foram esque-cidos pelas autoridades sanitárias?

Oswaldo Cruz emcharge publicadana revista francesaChanteclair, em 1911

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Nara: Não. Até porque OswaldoCruz teve continuadores. Carlos Chagasfoi uma figura muito importante na con-tinuidade ao que Oswaldo Cruz tinhafeito na Diretoria-Geral de Saúde Públi-ca. Ele saiu da diretoria em 1909 e Cha-gas assumiu dez anos depois, em 1919.Quando Chagas cria o Departamento Na-

cional de Saúde Pública, nos moldes doque se pensava o que seria importanteem termos de saúde da população, asendemias, isso teve continuidade depois.Chagas fica até 1925-26, mas, quandoGetúlio Vargas assume o poder em 1930,já havia esse movimento político lidera-do pelo Belisário Pena em 1918. Todoseram médicos, mas com o Chagas e aentrada da Fundação Rockefeller no Bra-sil, com quem faz um acordo, formam-se pessoas nos anos de 1930. Getúlioadotou isso, formar pessoas especifica-mente especializadas na saúde pública.Então, não houve uma perda: a mortedo Oswaldo, o que ele iniciou – e não éele sozinho, insisto, é um grupo de mé-dicos –, teve sequência. Esse caso [defebre amarela ] em Minas Gerais e Espi-rito Santo que a gente está vendo agoraé falha de política pública, porque hojese sabe o que se tem que fazer; esseconhecimento está assentado, consoli-dado. É uma falha do aparato burocrá-tico estatal. O que tenho lido é isso, ine-ficiência operacional. Você pode ver emoutros casos de ameaças de epidemia,rapidamente se consegue controlar. Afebre amarela urbana não existe aqui[no Rio de Janeiro] desde 1942. É muitodiferente do que havia 100 anos atrás,quando ninguém sabia como as pesso-as tinham febre amarela.

Outro mito destacado em seulivro é o do progresso social resul-tante da atividade científica. A se-nhora verifica a permanência daideia da ciência como uma chavepara a resolução dos problemassociais do país?

Nara: A ideia da ciência como uminstrumento do progresso é um discursodo final do século 19. A geração doOswaldo Cruz, grande parte dela, estáinfluenciada por essa ideologia. A par-tir dos anos 1960/70, certos tipos de co-nhecimento, como a biologia, a física,campos que têm muito impacto na so-ciedade, passaram a ter uma crítica so-cial muito forte. De lá para cá, achoque isso só se intensificou. Pessoalmen-te acho que a ciência é um instrumentocada vez mais importante. Eu sou umaracionalista, acho que continua tendoimportância para a minimização das

nossas necessidades, dos nossos sofri-mentos humanos. Acho também quese Oswaldo Cruz estivesse vivo estariapreocupado com isso, porque acho queele era um exemplo de um cientista comalguns cuidados. A gente não pode ima-ginar que a ética médica que se temhoje é a mesma daquele período. Hojesão proibidas ou reguladas coisas quese faziam naquele momento, como usode pessoas em experiências científicas.

Que lugar algumas das ideiasque nortearam Oswaldo Cruz –como a defesa da ciência e da saú-de pública como instrumentos dedesenvolvimento do país – têm nomundo de hoje, em uma conjuntu-ra de recessão econômica, ajustefiscal pesado e crise política?

Nara: A gente tem que continuarlutando por isso, porque é um instrumen-to importante de desenvolvimento. A ci-ência e a tecnologia são coisas muitoimportantes para que o Estado brasileirodê atenção e a gente vive uma crisemuito séria nesse campo, com um Mi-nistério da Ciência e Tecnologia [Inova-ção e Comunicações] com grandes difi-culdades de recursos para financiarpesquisa e ensino, mas a gente não podedesistir. Temos que continuar achandoque isso é importante e cobrar dos go-vernantes que não fique lá no último lu-gar das prioridades do governo.

Que frase usaria para definirOswaldo Cruz?

Nara: Eu vou usar uma frase deleque eu acho que o define muito bem.Ele tinha alguns lemas, esse é um famo-so. Dizia e escrevia: “Fé eterna na ciên-cia”. Ele era um racionalista, um cientis-ta que acreditava que o conhecimentocientifico poderia contribuir para a cons-trução de uma nação brasileira civiliza-da, moderna, tal como ele vislumbrounas numerosas viagens que fez. Enfim,Oswaldo Cruz achava que poderíamoster outro padrão econômico e cultural, ea ciência era um instrumento disso.

Também se considera racionalista?

Nara: Sim, com certeza: “Fé eter-na na ciência”!