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JB 31/10/77 O encerramento, sábado de uma ex posição de folhetos, marcou o fim de uma semana sobre a Lite ratura de Cordel, na Escola de Artes Vi suais do Rio de Ja neiro, no P a r q u e Lage. Os eventos fo ram abertos com uma feira de cordelis tas, que deveriam vender seu produto enquan to se realizava um forró. Mas o que es crevem, o que pen sam, como moram os autores de cordéis qut vivem no Rio? Donoõ de uma poesia qu< sempre louva os bon!* costumes, o respeite ; à lei e a submissão 04 fé, os cordelistas de ci<ade grande são ope rários de baixa remu neração e moram lon ge, em casas humil des. Na noite de sua feira na Zona Sul, eles não chamavam aten ção alguma, perdidos entre as poucas deze nas de pessoas que se dispuseram a ir até o Parque Lage. O cen tro de t u d o era o forró, consumido sem jeito por um grupo de jovens vindo apa rentemente de Ipane ma, rapazes e moças que, sem nunca ter feito ou lido cordel, eram a alma da festa. Danúsia Bárbara 1 Fotos de Delfim Vieira y Damião Vieira de Oliveira, no Jardim Gramacho, em Duque de Caxias Apolônio Alves dos Santos, na favela da Barreira do Vasco 0 T0D0-DIA DOS POETAS POPULARES NA ZONA NORTE João Lopes Freire: “Moro com simplicidade e é um custo pagar os Cr$ 500 de aluguel. É difícil ser cordelista aqui’ folclore mense? Q UEM entrasse no Parque Lage, sexta-feira à noite, depois de passar o dia vi sitando os cordelistas em suas casas, levaria um susto: estaria diante da confraternização dos ditos nordestino e folclore ipane- Várlas pessoas povoavam o amplo pátio da Escola de Artes Vi suais, divididas em três grupos: os mú sicos, que tocavam num tablado sobre o lago; os jovens de roupas coloridas, que pulavam como podiam no cimen to, numa versão originalíssima de forró; e os cordelistas que, tímidos, tentavam vender seus folhetos. — Estou achando um barato. Is to é a realidade brasileira. O rock traz sensibilidade, mas a essência do Bra sil não tem nada a ver com rock. Maria das Graças Ferraz, mineira que há 20 anos mora no Rio, acaba de concluir seu curso de Português-Lite- ratura na Faculdade Pedro II. Joube da Feira atrvés de um cole, a, veio ’’Conhecer de perto”. O Nordeste é liido, eu ainda vou lá. Para Tereza Regina, segundanista de Belas-Artes, e seu amigo Augusto • Cesar Franco, terceido ano de Biolo gia da UFRJ, ambos com 21 anos, a festa estava ’’legal” : — Muito legal trazer coisas de lá para cá. Viemos porque a velha do Augusto disse que ouviu na TV que ia ter esse barato aqui. Gostamos de tu do quanto é tipo de música, ainda mais alegre como essa. E’ sair dançan do que pinta. Além disso, Augusto viajou pelo Peru, Bolívia, Amazonas, Pará, Ceará, Mato Grosso, conhece tudo isso, tinha que rever, me mostrar. A festa despertava uma reação favo rável nos jovens, embora eles desco nhecessem tranquilamente o conteúdo dos livros de cordel: ” nunca li, mas um dia vou 1er” — era a resposta pa drão, enquanto pulavam ao som do Esquenta Mulher. Duas figuras, à par te, olhavam: Sebastião Nunes Batista, autor de livros sobre cordéis, e Paulo Afonso Grisolli, diretor do Departa mento Cultural do Rio de Janeiro. — O romanceiro popular nordesti no — explicou Sebastião Nunes Ba tista — se divide em dois grupos: a poesia improvisada, divulgada, que produz os chamados folhetos de cor del. — Existe diferença entre o cordel fluminense e o nordestino? — Muita! Houve um transplante do cordel do Norte para o Rio, mas como aqui o ambiente é sofisticado, não surgem tantos motivos sofridos, o contato com a natureza é menor. — E os problemas urbanos? Não produzem ’’sofrimento”? — São grandes, mas veja que quem os canta é o nordestino imigrado. — Se são cordéis diferentes, como explica o mesmo tipo de enfoque, a mesma moral? — Há de se entender que, na lite ratura de cordel, o poeta canta o meio em que vive. Essa literatura se situa entre a classe A, culta, e a C, inculta. Feita pela classe B, transmite cultura da classe A, para a C e vice-versa, daí, o dito moralismo: ela transplanta a visão de mundo de uma classe para outra. Note-se que 20% dessa literatu ra é feita de temas religiosos. — A Feira é válida? Não estaria havendo muita ’’curtição” e pouco cordel? — Acho a mostragem interessante e quanto à curtição acho ótimo! Bole com as pessoas. Paulo Afonso Grisolli explicou que a Feira fora a maneira encontrada para comemoram a Semana Nacional do Livro: — De um lado, mais erudito, lan çamos em Campos a II Semana da Cultura, com quatro co-edições de li vros de História, romance, pesquisa; de outro, mais popular, resolvemos fa zer uma festa da literatura de cordel, que se aculturou, se implantou e se assumiu no Rio. Para se chegar à Rua Amarante, no Jardim Gra macho, Duque de Caxias, anda-se muito. O pessoal que trabalha no posto de gasolina/churrascaria do bairro não sabe informar, alguns passantes ouviram falar e os policiais que ron dam a região em joaninhas azul e branco negam a exis tência da rua. Numa pada ria, indicam uma mercearia cujo dono tem o mapa da região. Ele o desenrola len tamente: é enorme, velhís simo, um mapa de pirata. Mas mostra, enfim, a Rua Amarante. E‘ um atalho que sobe em ladeira, sem placas ou in dicações. Ladeando a rua, casebres humildes. Num de les, mora Cosme Damião Vieira de Oliveira, vulgo Catapora, deyzarregador de caminhão, palhaço de Folia de Reis, cabelo black power, sorriso falho de dente. Pai de duas meninas, 32 anos. é também cordelista. Meu primeiro folheto falava da explosão da fá brica de pólvora no Sara- puí: explosão danada, não sobrou nada, nem cami- nhão.Pe9 uei de escrever e o negócio engrenou. E' só estudar que nasce idéia, mas só tem graça se o assunto for atual. — Dá para sobreviver es crevendo folhetos? Lógico que não. Sou trabalhador, des ca nego qualquer coisa de cav.i- nhão: cimento, madeira, cal, o que for. As cinco dc gente ^ estou no ponto — Infelizmente os jornais não dl- à ®?ic®rr° €xve~ vulgaram de maneira suficiente o diente. e domingo evento. Ainda assim, é uma Feira é dia de fiar em casa, to- aberta, singela, simpática. As pessoas mar ume e outras, sair p . - compram os folhetos, se informa so- fli- bre o assunto. Num tamborete, o cordelista Ca tapora olhava de longe a moçada dan çando. Pensava nos três ônibus que pegaria no trajeto Jardim Botânico/ Jardim Gramacho. — Como os vende? No serviço, na padaria, ■o bar. E' só dar umas pin celadas orais da história, convidar o pesoal para 1er. Vendo por Crí 4,00 ou Cr$ 5,00, o preo não è fixo. Não tenho pciência para ir à Feira de So Cristóvão, nem sou Azulo para bater trem da Cerrai vendendo os livrinhí. Eu é que com. — Vendendo muito? — Quase nada, mas parece que o pessoal está se divertindo e eu não posso me queixar: meu folheto sobre o Pacote Cultural vai ser editado em breve, sem ônus nenhum para mim. No caderno pautado, ele mostra os versos sobre as promoções do De partamento de Cultura, escritos numa prova muos dele, para d- - caligrafia caprichada. Eis uns trechos: corr. Em sua casa, há TV, ge ladeira, sofá. Há tambem um liquidificador coberto com capa de plástico verde, enfeitada de laço. Nas pc- redes que sobem sem en costar no teto sem forro, uma flamula do Vasco (apesar de Catapora ser América) e quadrinhos com conselhos. Quando a repórter chegou, crianças e cachonos vieram saudá-la. Um rapazinho tirava água do poço em frente, o cunhado apareceu, a mu lher se recolheu à cozinha. A pedidos, Catapora pegou na viola, explicou que mo 's, por aí continuavam as loas, em rava com família do cerca de 40 quadras. Se a noite era CUn h a d o ïffÆ iiîi: - “» z°bUmm cordel não, quem quiser que conte Para escrer. Nao falo outra. contra o Gemo nem con- 4 O Governo atendendo Os estudantes em geral Criou o Projeto Minerva E o Pacote Cultural Com isso o folclore ao vivo Para todo o pessoal 5 A Funarte também atuou Para fazer filmação Para todos assistirem Através da Televisão Isso é Brasil para frente E progresso da Nação 26 No Instituto Inepac Do Patrimônio Culfural O Diretor Alexandre Homem de grande moral E sua assistente Leila No quadro funcional. .. tra os marginais. Mas um dia escrevo um folheto so bre a marginalidade do Rio. Só que vou estar bem longe, prá não me pegarem. Quando Catapora (o ape lido é uma redução de seu nome como palhaço de Fo lia, Sereno de Catapora; o porquê ele não sabe expli car) canta, o tom muda, a lingua parece enrolar, ele se torna um caipya paulis ta. — Quer dizer que "é só estudar para nascer idéias"? O que você estuda? Bem, leio muito. Livro de bolso, faroeste, até Grande Hotel, mas não sou muito parado em história de amor. Escuto Benito de Paula, Nélson Gonçalves e os sertanejos Tonico e Ti- noco, Tião Carneiro e Par- dinho. — E dinheiro para fazer os folhetos? — O pessoal exige di nheiro adiantado. O jeito é recolher de amigos, arran jar. patrocinador: A iUOt Es .- cola Daniel, Casa de Mate rial Pantanal, a farmácia. A gente se vira. Da casa de Catapora pa ra a de João Lopes Freire, em Barros Filho, o carro ro da meia hora, no mínimo. O endereço è mais fácil de encontrar (Estrada João Paulo) mas ele não mora ali: quem mora é a sogra, que c-.o:a os recados e re cebe sua correspondência. Pc-z se chegar à morada áe João. e preciso um guia, enrodilhar-se por vielas, c:-.c'-sizr um beco. Parai bano de Bananeiras, 47 anos, pai de três meninas, ele enumera com orgulho seus ex-cargos: pertenci ao corpo de : urados da cidade de Rio T-.nza. ja fui fiscal de me- rz-ei, .pregado de indus trie, cubo eleitoral, encar regado de serviço em fábri ca de tecido. Hoje sou apo sentado. E o cordel? Escrevo desde cedo, a inspiração nasce junto. Trabalhei em rádio, tive programa, cantei em usi na, engenho, Universidade, congrgsso. a única coisa que u m poeta tem de apri- morar é seu trabalho, len do e pesquisando. — O que você pesquisa? A gente não pode con fiar nas coisas que nos di zem. tem de confirmar. Por exemplo: se canto na casa de um usineiro e ele se diz muito rico, mostra os em pregados chamando-os de ’ meus filhos", dizendo que não falta nada ali, o canta dor não diz nada mas de pois vai investigar. Corde lista não ê papagaio para repetir o que ouve. Ele tem sempre de duvidar. — Mas como você inves tiga? Conversando. O traba lhador do campo em geral é humilde, massacrado, burro. Uma mixaria. Quan do viajo de um lugar para outro quase nunca transporte regular: vou de pé ou em lombo de animal. Não reclamo. Esse negócio de viajar de avião ou de ônibus de luxo, de só fazer o caminho que já está tra çado pelos outros, não tem a menor graça. A gente fi ca sem conhecer coisa al guma. Mas eu vou parando, conversando, me informan do. 'As vezes me contam barbaridades. Costumo pa rar nas casas de terreno esquisito (na minha terra esquisito quer dizer desabi tado). Peço água, proseio, sei das coisas. Assim pes quiso. Em casa, João anda de camiseta, calça velha de tergal, chinelas. Mas só se apresenta de terno e gra vata: "Até hoje não deixei mal nossa representação, nosso título, nossa profis são. Cantador que se preze tem figura." Ele já não sabe quantos folhetos e roman ces escreveu, só sabe que são muitos e de tipos va riados. Aceita encomendas (uma recente foi para a Companhia do Metrô do Rio, contando como era a Cinelandia do passado) e consulta livros quando es creve (acaba de comprar o Dicionário de Vultos Brasi leiros Internacionais, em cinco volumes, e a Mitolo gia Greco-Romana), mas também improvisa, faz de sabafos: Escrevi A Corrupção Desfilando na Passarela do Diabo de puro desabafo. Estávamos em 1964 e a po lícia fez muita sujeira, me- tralhou muita gente na porta do Sindicato sem o menor motivo. Graças a Deus o Exército acabou com o abuso. Mas antes eu não aguentei e desabafei. Minhas histórias sempre partem de fatos. João, que já se apresen tou na Universidade de Minas Gerais, tem um fo lheto que se chama Ad vertência ao E s t u d a n t e Brasileiro : analisa "os grandes nomes brasileiros" (Rui Barbosa, Juscelino Kubitschek, João Calmon), coloca-se contra "o vicio" e aconselha aos diretores uma fiscalização rigorosa. Em O Poeta, A Viola e A Verdade, ele denuncia: Tanto dinheiro que gastam Em jogo e seleção Em festa de carnaval Eu vejo e presto atenção Em tanta criança chorando A falta de leite e pão. — Há alguma diferença entre cantar no Rio e can tar no Nordeste? Muita. Estou há sete anos no Rio trabalhando, freqüento a Feira de São Cristóvão, mas não há di vulgação. Enquanto em Pernambuco e Paraíba as rádios têm programas on de a gente recebe cartas do Acre ao Rio Grande do Sul, aqui a gente não tem nada. Vim para por causa da doença de minha filha mais velha. Moro com simplicidade e é um custo pagar os Cr$ 500,00 de aluguel. Ê dificil ser cordelista aqui. — Quanto se gasta para fazer um folheto? Um milhão e oitocen- tos mil cruzeiros, afora os Cr$ 250,00 do clichê. Isso por um milheiro de um jo- Iheto de 16 páginas. Mas o problema é a falta de di vulgação. Não temos aces so às rádios, quando nos convidam para cantar em alguma festa raramente pensam em nos pagar dig namente e querem nos pagar por uma hora de trabalho. Onde já se viu? Violeiro começa frio e só de madrugada o som da viola fica bom, a cabeça e a língua ficam afiadas. Apolônio Alves dos San tos, nascido em Guarabira, Paraíba, 57 anos, é um dos autores que constam da Antologia da Literatura tie Cordel, de Sebastião Nunes Batista. Tímido, miope. morando numa favela que há por trás do 16? Bata lhão da Polícia Militar, na Barreira do Vasco, foi la vrador de cana. fumo, al godão, milho e feijão. Ho je è biscateiro e vende seus folhetos na Feira de São Cristóvão. Ao contrário de Catapora e João Lopes Freire, não canta, só escre ve. Minha primeira his tória foi Maria Cara de Pau e o Príncipe Gregoria no: Maria perde os pais. seu padrinho quer se ca sar com ela, ela corre pe dindo auxílio a um mar ceneiro, ganha uma más cara de pau. Foge para um lugar em que não a co nhecem, sofre, vive aven turas. O final é feliz, ela se casa com o Príncipe Gregoriano. — Foi você quem a in ventou? É. A gente escuta, imagina, escreve. Poeta tem de partir dois fatos e depois fantasiar. Autor de A Briga do do Norte no Morro da Mangueira, O Mineiro que Comprou um Bonde no Rio de Janeiro, Discussão do Cachoeiro e o Crente, O Monstruoso Crime de Ser- ginho em Bom Jesus de Itabapoana, Biografia e Morte de Juscelino Kubits chek, O Encontro do Can gaceiro Vilela com o Ne grão do Parana, O Homem que Virou Bode por Zom bar de Frei Damião e mui tos outros folhetins ("es crevi mais de 60"), Apolô nio imprime suas histórias na Paraíba. Manda pelo correio dinheiro e origi nais, recebe meses depois os livretos: "Sai mais ba rato." Em seu barraco, há ge ladeira e TV; dois bancos de madeira, uma mesa de fórmica, uma pia, uma cama e mais nada. Aqui a vida é dura, ninguém quer saber da gente. Mas eu gosto de es crever e o público com pra. Ê uma questão de es pera e paciência.

Damião Vieira de Oliveira, Apolônio Alves dos Santos, 0

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O encerramento, sábado de uma ex­posição de folhetos, marcou o fim de uma semana sobre a Lite­ratura de Cordel, na

Escola de Artes Vi­suais do Rio de Ja­neiro, no P a r q u e Lage. Os eventos fo­ram abertos com uma feira de cor delis tas,

que deveriam vender seu produto enquan­to se realizava um forró. Mas o que es­crevem, o que pen­sam, como moram os

autores de cordéis qut vivem no Rio? Donoõde uma poesia qu<sempre louva os bon!* costumes, o respeite; à lei e a submissão 04

fé, os cordelistas de ci<ade grande são ope­

rários de baixa remu­neração e moram lon­ge, em casas humil­des. Na noite de sua

feira na Zona Sul, eles não chamavam aten­ção alguma, perdidos entre as poucas deze­nas de pessoas que se dispuseram a ir até o

Parque Lage. O cen­tro de t u d o era o forró, consumido sem jeito por um grupo de jovens vindo apa­

rentemente de Ipane­ma, rapazes e moças que, sem nunca ter feito ou lido cordel, eram a alma da festa.

Danúsia Bárbara □ 1 Fotos de Delfim Vieira

y

D am ião V ieira de O liveira, no Jard im G ram acho, em D uque de Caxias

A polônio A lves dos Santos, n a favela da B arreira do Vasco

0 T0D0-DIA DOS POETAS POPULARES NA ZONA NORTE

João Lopes Freire: “M oro com sim plicidade e é um cu sto pagar os Cr$ 500 de aluguel. É d ifíc il ser cordelista aqui’

folcloremense?

QUEM entrasse no Parque Lage, sex ta-feira à noite, depois de passar o dia vi­sitando os cordelistas em suas casas, levaria um susto: estaria d ian te da confraternização dos ditos

nordestino e folclore ipane- Várlas pessoas povoavam o

amplo pátio da Escola de Artes Vi­suais, divididas em três grupos: os m ú­sicos, que tocavam num tablado sobre o lago; os jovens de roupas coloridas, que pulavam como podiam no cimen­to, num a versão originalíssim a de forró; e os cordelistas que, tímidos, ten tavam vender seus folhetos.

— Estou achando um barato. Is­to é a realidade brasileira. O rock traz sensibilidade, m as a essência do B ra­sil não tem nada a ver com rock.

M aria das Graças Ferraz, m ineira que h á 20 anos m ora no Rio, acaba de concluir seu curso de Português-Lite- ra tu ra n a Faculdade Pedro II. Joube da Feira atrvés de um c o le ,a, veio ’’Conhecer de perto”.

— O Nordeste é liido, eu ainda vou lá.

P ara Tereza Regina, segundanista de Belas-Artes, e seu amigo Augusto

• Cesar Franco, terceido ano de Biolo­gia da UFRJ, ambos com 21 anos, a festa estava ’’legal” :

— Muito legal trazer coisas de lá para cá. Viemos porque a velha do Augusto disse que ouviu na TV que ia te r esse barato aqui. Gostamos de tu ­do quanto é tipo de música, ainda m ais alegre como essa. E’ sa ir dançan­do que pinta. Além disso, Augusto já viajou pelo Peru, Bolívia, Amazonas, P ará, Ceará, Mato Grosso, conhece tudo isso, tin h a que rever, me m ostrar.

A festa despertava um a reação favo­rável nos jovens, em bora eles desco­nhecessem tranquilam ente o conteúdo dos livros de cordel: ” nunca li, mas um dia vou 1er” — era a resposta p a­drão, enquanto pulavam ao som do Esquenta Mulher. Duas figuras, à p a r­

te, olhavam : Sebastião Nunes B atista, autor de livros sobre cordéis, e Paulo Afonso Grisolli, d iretor do D eparta­m ento C ultural do Rio de Janeiro.

— O romanceiro popular nordesti­no — explicou Sebastião Nunes B a­tis ta — se divide em dois grupos: a poesia improvisada, divulgada, que produz os cham ados folhetos de cor­del.

— Existe diferença entre o cordel fluminense e o nordestino?

— Muita! Houve um transp lan te do cordel do Norte p ara o Rio, mas como aqui o am biente é sofisticado, não surgem tan tos motivos sofridos, o contato com a natu reza é menor.

— E os problemas urbanos? Não produzem ’’sofrimento”?

— São grandes, m as veja que quem os can ta é o nordestino imigrado.

— Se são cordéis diferentes, como explica o mesmo tipo de enfoque, a mesma moral?

— Há de se entender que, n a lite­ra tu ra de cordel, o poeta can ta o meio em que vive. Essa litera tu ra se situa entre a classe A, culta, e a C, inculta. Feita pela classe B, transm ite cultura da classe A, para a C e vice-versa, daí, o dito moralismo: ela tran sp lan ta a visão de mundo de um a classe para outra. Note-se que 20% dessa lite ra tu ­ra é feita de tem as religiosos.

— A Feira é válida? Não estaria havendo muita ’’curtição” e pouco cordel?

— Acho a mostragem interessante e quanto à curtição acho ótimo! Bole com as pessoas.

Paulo Afonso Grisolli explicou que a Feira fora a m aneira encontrada p ara comemoram a Sem ana Nacional do Livro:

— De um lado, m ais erudito, lan ­çamos em Campos a II Sem ana da Cultura, com quatro co-edições de li­vros de História, romance, pesquisa; de outro, mais popular, resolvemos fa ­zer um a festa da litera tu ra de cordel, que se aculturou, se im plantou e se assumiu no Rio.

Para se chegar à Rua Amarante, no Jardim Gra­macho, Duque de Caxias, anda-se muito. O pessoal que trabalha no posto de gasolina/churrascaria dobairro não sabe informar, alguns passantes ouviram falar e os policiais que ron­dam a região em joan inhas azul e branco negam a exis­tência da rua. Numa pada­ria, indicam um a mercearia cujo dono tem o mapa da região. Ele o desenrola len­tam ente: é enorme, velhís­simo, um mapa de pirata. Mas mostra, enfim , a Rua Amarante.

E‘ um atalho que sobe em ladeira, sem placas ou in ­dicações. Ladeando a rua, casebres humildes. Num de­les, mora Cosme Damião Vieira de Oliveira, vulgo Catapora, deyzarregador de caminhão, palhaço de Folia de Reis, cabelo black power, sorriso fa lho de dente. Pai de duas m eninas, 32 anos. é tam bém cordelista.

— Meu primeiro folheto falava da explosão da fá ­brica de pólvora no Sara- puí: explosão danada, não sobrou nada, nem cam i- nhão.Pe9uei de escrever e

o negócio engrenou. E' só estudar que nasce idéia, mas só tem graça se o assunto for atual.

— Dá para sobreviver es­crevendo folhetos?— Lógico que não. Sou

trabalhador, d e s c a n ego qualquer coisa de cav.i- nhão: cimento, madeira, cal, o que for. As cinco dc

gente ^ estou no ponto

— Infelizm ente os jornais não dl- à ®?ic®rr ° €xve~vulgaram de m aneira suficiente o diente. e domingoevento. Ainda assim, é um a Feira é dia de fia r em casa, to - aberta, singela, sim pática. As pessoas mar um e e outras, sair p . - compram os folhetos, se inform a so- fli- bre o assunto.

Num tam borete, o cordelista Ca­tapora olhava de longe a moçada dan­çando. Pensava nos três ônibus que pegaria no tra je to Ja rd im Botânico/ Jardim Gramacho.

— Como os vende?— No serviço, na padaria,

■o bar. E' só dar umas p in ­celadas orais da história, convidar o pesoal para 1er. Vendo por C rí 4,00 ou Cr$ 5,00, o preo não è fixo. Não tenho pciência para ir à Feira de So Cristóvão, nem sou Azulo para bater trem da Cerrai vendendo os livrinhí. Eu é que com .

— Vendendo muito?— Quase nada, mas parece que o

pessoal está se divertindo e eu não posso me queixar: meu folheto sobre o Pacote Cultural vai ser editado em breve, sem ônus nenhum para mim.

No caderno pautado, ele m ostra os versos sobre as promoções do De­partam ento de Cultura, escritos num a prova m uos dele, para d- - caligrafia caprichada. Eis uns trechos: corr.

Em sua casa, há TV, ge­ladeira, sofá. Há tambem um liquidificador coberto com capa de plástico verde, enfeitada de laço. Nas pc- redes que sobem sem en ­costar no teto sem forro, um a flam ula do Vasco (apesar de Catapora ser América) e quadrinhos com conselhos. Quando a repórter chegou, crianças e cachonos vieram saudá-la. Um rapazinho tirava água do poço em frente, o cunhado apareceu, a m u ­lher se recolheu à cozinha. A pedidos, Catapora pegou na viola, explicou que m o­

's, por aí continuavam as loas, em rava com fam ília do cerca de 40 quadras. Se a noite era CUnhado

ï f f Æ i i î i : - “» z°bUmmcordel não, quem quiser que conte Para escrer. Nao falo outra. contra o G em o nem con-

4 O Governo atendendo Os estudantes em geral Criou o Projeto Minerva E o Pacote CulturalCom isso o folclore ao vivo Para todo o pessoal

5 A Funarte também atuou Para fazer filmação Para todos assistirem Através da Televisão Isso é Brasil para frente E progresso da Nação

26 No Instituto Inepac Do Patrimônio Culfural O Diretor Alexandre Homem de grande moral E sua assistente Leila No quadro funcional. ..

tra os marginais. Mas um dia escrevo um fo lheto so­bre a marginalidade do Rio. Só que vou estar bem longe, p rá não m e pegarem.

Quando C atapora (o ape­lido é um a redução de seu nom e como palhaço de Fo­lia, Sereno de C atapora; o porquê ele não sabe expli­car) canta, o tom muda, a lingua parece enrolar, ele se torna um caipya paulis­ta.

— Quer dizer que "é só e s t u d a r p ara nascer idéias"? O que você estuda?

— Bem, leio muito. Livro de bolso, faroeste, até G rande Hotel, mas não sou m uito parado em história de amor. Escuto Benito de Paula, Nélson Gonçalves e os sertanejos Tonico e Ti- noco, Tião Carneiro e Par- dinho.

— E dinheiro p a ra fazer os folhetos?

— O pessoal exige di­nheiro adiantado. O jeito é recolher de amigos, arran­jar. patrocinador: A iUOtEs.- cola Daniel, Casa de M ate­rial Pantanal, a farmácia. A gente se vira.

Da casa de Catapora pa­ra a de João Lopes Freire,em Barros Filho, o carro ro­da meia hora, no m ínimo. O endereço è m ais fácil de encontrar (Estrada João Paulo) m as ele não mora ali: quem mora é a sogra, que c-.o:a os recados e re­cebe sua correspondência. Pc-z se chegar à morada áe João. e preciso um guia, enrodilhar-se por vielas, c:-.c '-s izr um beco. Parai­bano de Bananeiras, 47 anos, pai de três meninas, ele enumera com orgulho seus ex-cargos:

— Já pertenci ao corpo de : urados da cidade de Rio T-.nza. ja fu i fiscal de m e- rz -e i, .pregado de indus­trie, cubo eleitoral, encar­regado de serviço em fábri­ca de tecido. Hoje sou apo­sentado.

— E o cordel?— Escrevo desde cedo, a

inspiração nasce junto. Trabalhei em rádio, tive programa, cantei em usi­na, engenho, Universidade, congrgsso. a única coisa que u m poeta tem de apri- morar é seu trabalho, len­do e pesquisando.

— O que você pesquisa?— A gente não pode con­

fiar nas coisas que nos di­zem. tem de confirmar. Por exemplo: se canto na casa de um usineiro e ele se diz m uito rico, m ostra os em ­pregados chamando-os de ’ meus filhos", dizendo que não fa lta nada ali, o canta­dor não diz nada mas de­pois vai investigar. Corde­lista não ê papagaio para repetir o que ouve. Ele tem sempre de duvidar.

— Mas como você inves­tiga?

— Conversando. O traba­lhador do campo em geral é humilde, massacrado, burro. Uma mixaria. Quan­do viajo de um lugar para outro quase nunca há transporte regular: vou de pé ou em lombo de animal.

Não reclamo. Esse negócio de viajar de avião ou de ônibus de luxo, de só fazer o cam inho que já está tra­çado pelos outros, não tem a m enor graça. A gente f i ­ca sem conhecer coisa al­guma. Mas eu vou parando, conversando, m e in form an­do. 'As vezes m e contam barbaridades. Costumo pa­rar nas casas de terreno esquisito (na m inha terra esquisito quer dizer desabi­tado). Peço água, proseio, sei das coisas. Assim pes­quiso.

Em casa, João anda de camiseta, calça velha de tergal, chinelas. Mas só se apresenta de terno e gra­vata: "Até hoje não deixei mal nossa representação, nosso título, nossa profis­são. Cantador que se preze tem f igura." Ele já não sabe quantos folhetos e roman­ces escreveu, só sabe que são m uitos e de tipos va­riados. Aceita encomendas (um a recente fo i para a Companhia do Metrô do Rio, contando como era a Cinelandia do passado) e consulta livros quando es­creve (acaba de comprar o Dicionário de Vultos B rasi­leiros Internacionais, em cinco volumes, e a Mitolo­gia Greco-Rom ana), mas tam bém improvisa, fa z de­sabafos:

— Escrevi A Corrupção Desfilando n a Passarela do Diabo de puro desabafo. Estávamos em 1964 e a po­lícia fe z m uita sujeira, m e- tralhou m uita gente na porta do Sindicato sem o menor motivo. Graças a Deus o Exército acabou com o abuso. Mas antes eu não aguentei e desabafei. M inhas histórias sempre partem de fatos.

João, que já se apresen­tou na Universidade de Minas Gerais, tem um fo ­lheto que se cham a Ad­vertência ao E s t u d a n t e Brasileiro : a n a l i s a "os grandes nomes brasileiros" (Rui Barbosa, Juscelino Kubitschek, João Calmon), coloca-se contra "o vicio" e aconselha aos diretores um a fiscalização rigorosa. Em O Poeta, A Viola e A Verdade, ele denuncia: Tanto dinheiro que gastam Em jogo e seleção Em festa de carnaval Eu vejo e presto atenção Em ta n ta criança chorando A fa lta de leite e pão.

— Há algum a diferença en tre can ta r no Rio e can ­ta r no Nordeste?

— Muita. Estou há sete anos no Rio trabalhando, freqüento a Feira de São Cristóvão, mas não há di­vulgação. Enquanto em Pernambuco e Paraíba as rádios têm programas on­de a gente recebe cartas do Acre ao Rio Grande do Sul, aqui a gente não tem nada. Vim para cá por causa da doença de m inha filha mais velha. Moro com simplicidade e é um

custo pagar os Cr$ 500,00 de aluguel. Ê dificil ser cordelista aqui.

— Q uanto se gasta para fazer um folheto?

— Um milhão e oitocen- tos m il cruzeiros, afora os Cr$ 250,00 do clichê. Isso por um milheiro de um jo- Iheto de 16 páginas. Mas o problema é a fa lta de di­vulgação. Não temos aces­so às rádios, quando nos convidam para cantar em alguma festa raramente pensam em nos pagar dig­nam ente e só querem nos pagar por um a hora de trabalho. Onde já se viu? Violeiro começa frio e só de madrugada o som da viola fica bom, a cabeça e a língua ficam afiadas.

Apolônio Alves dos San­tos, nascido em Guarabira, Paraíba, 57 anos, é um dos autores que constam da Antologia da L ite ra tu ra tie Cordel, de Sebastião Nunes Batista. Tímido, miope. morando num a favela que há por trás do 16? B ata­lhão da Polícia Militar, na Barreira do Vasco, fo i la­vrador de cana. fum o, al­godão, m ilho e feijão. Ho­je è biscateiro e vende seus folhetos na Feira de São Cristóvão. Ao contrário de Catapora e João Lopes Freire, não canta, só escre­ve.

— M inha primeira his­tória fo i M aria C ara de Pau e o Príncipe G regoria­no: Maria perde os pais. seu padrinho quer se ca­sar com ela, ela corre pe­dindo auxílio a um mar­ceneiro, ganha um a m ás­cara de pau. Foge para um lugar em que não a co­nhecem, sofre, vive aven­turas. O fina l é feliz, ela se casa com o Príncipe Gregoriano.

— Foi você quem a in ­ventou?

— É. A gente escuta, imagina, escreve. Poeta tem de partir dois fatos e depois fantasiar.

Autor de A Briga do Zé do Norte no Morro da M angueira, O Mineiro que Comprou um Bonde no Rio de Janeiro, Discussão do Cachoeiro e o Crente, O Monstruoso Crime de Ser- ginho em Bom Jesus de Itabapoana, Biografia e M orte de Juscelino K ubits­chek, O Encontro do C an­gaceiro Vilela com o Ne­grão do P arana, O Homem que Virou Bode por Zom­bar de Frei Damião e m ui­tos outros fo lhetins ("es­crevi mais de 60"), Apolô­nio imprime suas histórias na Paraíba. Manda pelo correio dinheiro e origi­nais, recebe meses depois os livretos: "Sai mais ba­rato."

Em seu barraco, há ge­ladeira e TV; dois bancos de madeira, uma mesa de fórmica, um a pia, uma cama e mais nada.

— Aqui a vida é dura, ninguém quer saber da gente. Mas eu gosto de es­crever e o público com­pra. Ê uma questão de es­pera e paciência.