Daniel Defoe- Robinson Crusoe

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  • Robinson Crusoe

    A influncia de Robinson Crusoe na literatura

    universal imensa. Quase comparvel das grandes

    obras clssicas da Antigidade. De Jean Jacques

    Rousseau ao genial Goethe, todos lhe so

    tributrios. Depois dele, os Robinsons apareceram

    em nmero quase ilimitado em todas as literaturas.

    Cada pas quis ter o seu Robinson e surgiu, assim,

    um novo gnero literrio que at hoje perdura.

  • Daniel Defoe

    Robinson Crusoe

    Texto em portugus de

    Paulo Bacellar

    Ilustraes de

    Lee

    23a Edio

  • Ttulo do original:

    Robinson Crusoe

    Do texto em portugus EDIOURO S.A., 1970

    (Sucessora da Editora Tecnoprint S.A.)

    ISBN 85-00-78214-5

    EDIOURO S.A.

    (SUCESSORA DA EDITORA TECNOPRINT S.A.)

    SEDE: DEP. DE VENDAS E EXPEDIO

    RUA NOVA JERUSALM, 34S RJ

    CORRESPONDNCIA: CAIXA POSTAL 1880

    CEP 20001-970 Rio DE JANEIRO RJ

    TEL.: (021) 260-6122 FAX: (021) 280-2438

  • Vocabulrio

    As explicaes contidas nas notas de rodap visam um maior

    entrosamento do leitor com o texto.

    Muitas vezes, durante o decorrer da leitura, palavras ou formas

    de expresso so apenas parcialmente interpretadas ou nem mesmo

    isso acontece. Assim, o que se verifica um mau aproveitamento do

    trabalho literrio e, o que pior, um possvel desinteresse pela leitura.

    Objetivamos, ento, dentro de cada texto e de acordo com o

    contexto, abrir novas fronteiras para o pequeno leitor, oferecendo-lhe

    maiores esclarecimentos, proporcionando-lhe um enriquecimento de

    vocabulrio e, ao mesmo tempo, um aprimoramento de sua forma de

    expresso.

    Sempre existiro outras formas que no as usadas para fazer

    uma criana compreender o que leu.

    Em se tratando de interpretao, o trabalho estar sempre em

    aberto para quaisquer modificaes.

    Esperamos, assim, atingir nossos propsitos.

    A Equipe

  • Agradecimento

    A Editora agradece equipe de professores, escolhidos cri-

    teriosamente em um colgio que h muitos anos vem utilizando,

    sistematicamente, os livros da Ediouro. Esta equipe foi convidada pela

    Direo da Empresa para a difcil tarefa de examinar o vocabulrio de

    cada livro, procurar explicar o significado dos termos ao nvel de

    compreenso dos alunos e fazer uma classificao dos diversos livros

    de acordo com a idade dos presumveis leitores.

    Sabamos que muitas divergncias poderiam surgir e ainda

    surgiro no futuro, especialmente quanto ao modo de interpretar os

    vocbulos.

    Por isso os professores insistiram na idia de a Editora rever, no

    futuro, parte do trabalho ora efetuado.

    Assim a Editora espera que outros professores, no manuseio

    dirio destes livros, nos enviem sugestes e crticas para que possamos,

    com o passar do tempo, aperfeioar o que j foi feito.

    Desejamos expressar nossos agradecimentos pela to valiosa

    colaborao da equipe chefiada por Betty Zimmerman.

    EDIOURO S.A.,

    (Sucessora da Editora Tecnoprint SA)

  • Daniel Defoe

    Daniel Defoe, filho de James Foe, nasceu em Londres, Inglaterra,

    e faleceu em Moorfieldes. Apesar da origem modesta, estudou num

    seminrio de dissidentes.

    Dedicado ao comrcio, viajou pela Espanha, Itlia e Alemanha.

    Estabeleceu-se em 1863 e no ano seguinte casou-se com Mary Tuffley.

    Participou da campanha em defesa de Guilherme de Orange ao trono da

    Inglaterra.

    Depois da morte de Guilherme de Orange, sua situao poltica

    agravou-se at que foi preso e exposto ao pelourinho. Passou seis

    meses na priso. Arruinado, viveu como mercenrio.

    Mais tarde, fundou o jornal The Review. Publicou The Family

    Instructor, fundamentado em moral puritana, mas seu primeiro

    trabalho de cunho realmente literrio e seu grande sucesso foi

    Robinson Crusoe, que lhe valeu a imortalidade.

    Em Robinson Crusoe, Defoe nos oferece o mais digno conceito de

    educao natural. Inspirado num caso verdadeiro, o livro narra a

    histria de um homem que se v abandonado numa ilha deserta e

    que, fora da coragem e da perseverana, consegue vencer todas as

    dificuldades e viver feliz, mesmo longe da civilizao.

    A obra conseguiu prestgio universal e considerada um dos

    maiores romances de aventura da literatura mundial.

  • CAPTULO I

    Em Busca da Liberdade

    Eu partira do Brasil, onde possua uma plantao de fumo.

    Ia num barco de seis canhes e quatorze tripulantes, com destino

    frica. O barco levava um pequeno carregamento de mercadorias

    para negociar.

    Aqui tem incio a aventura principal de minha vida, mas

    talvez queiram saber o que fiz antes disso e como cheguei a ter

    coragem de arriscar tudo o que tinha para entregar-me aos

    caprichos do mar que tanto amo.

    Devo dizer, ento, que fui um menino como muitos outros...

    mas desde cedo aprendi a fazer valer minha vontade e minha opinio.

    Meus pais queriam que eu tivesse por profisso a advocacia

    ou qualquer outra que estivesse altura do nome da famlia.

    Mas nunca dei importncia a nome de famlia; queria, isto sim,

    descobrir os segredos do mundo, vivendo a vida que tinha

    escolhido para mim. Achava que meu futuro teria que ser decidido

    por mim e no pelos outros. E ainda acho.

    Desculpem, pois nem me apresentei ainda. Meu nome

    Robinson Crusoe. Nasci na cidade de Iorque, Inglaterra, em 1632.

    Vou contar alguns detalhes sobre minha famlia, para que vocs

    possam ter uma idia da minha infncia. ramos trs irmos,

    sendo eu o mais moo. O mais velho tornou-se oficial do Exrcito

    ingls e encontrou a morte numa batalha contra os espanhis,

    prximo a um porto ao Norte da Frana, chamado Dunquerque. O

    segundo era parecido comigo: tambm gostava de viajar. Mas teve

    menos sorte, pois desapareceu para sempre, numa de suas viagens.

    aos caprichos = vida perigosa tivesse ...advocacia = fosse advogado os segredos do mundo = a vida em todo lugar encontrou a morte = morreu

  • Nasci na Inglaterra porque meu pai, um alemo natural de

    Bremen, resolveu emigrar para aquele pas, estabelecendo-se

    inicialmente na cidade de Hull, como comerciante. Depois, apesar de

    ter obtido sucesso, decidiu sair de Hull e mudou-se ento para

    Iorque, onde conheceu minha me, que pertencia tradicional

    famlia Robinson. O nome Crusoe vem de meu pai: antes, seu

    sobrenome era Kreutznaer, um complicado nome alemo. Com a

    mudana para a Inglaterra, ele resolveu adapt-lo ao idioma ingls.

    Assim surgiu Crusoe. E, em conseqncia, o nome que me deram.

    possvel que vocs estejam um pouco cansados dessas

    histrias de famlia. Eu tambm cansei. E um dia fui passear em

    Hull e encontrei um amigo que estava de viagem para Londres.

    Navegava num barco de parentes e me ofereceu a passagem de

    graa. Pensei em meus pais e nos conselhos que ouvira contra

    minhas idias de aventura. Sabia que jamais consentiriam que eu

    partisse. Eu teria, pois, que escolher: ou me sujeitaria vontade

    deles ou levaria avante meu ousado ideal e assumiria a

    responsabilidade pelo que me pudesse suceder de bom e de mau.

    Tinha ento dezenove anos e essa era uma deciso muito

    importante para mim, pois envolvia um grande risco. As viagens que

    fiz no foram tranqilas como devero ser, espero, no tempo em que

    viverem as pessoas para as quais escrevo. As embarcaes eram

    rudimentares e freqentemente se desgovernavam, acabando por

    espatifar-se contra o que lhes aparecesse no caminho.

    Mas risco ainda maior era romper com meus pais e partir sem

    um tosto no bolso. Contudo, preciso partir! pensei.

    Pssaro adulto o que voa do ninho... dizia a mim mesmo

    ...em busca de seu prprio sustento.

    emigrar = mudar-se tradicional = antiga e conhecida adapt-lo = faz-lo parecido rudimentares = antigas e sem segurana se desgovernavam = perdiam a direo voa do ninho = sai de casa

  • Enfim, decidi-me. Em alguns segundos, s vezes, se decide

    uma vida. Seria melhor que meus pais soubessem por terceiros

    quando eu j estivesse longe, no mar que sempre fora um sonho

    para mim.

    No dia 1. de setembro de 1651, vi as ncoras subirem e senti o

    sopro do vento que dava vida vela do barco e minh'alma

    tambm. Vi o cais afastando-se e meu sonho transformando-se em

    realidade. Mas, quando um sonho se toma real, quase nunca

    corresponde, integralmente, s promessas da imaginao. Parece

    oferecer-nos muito pouco, em relao ao que espervamos. Depois,

    porm, percebemos que, apesar dos pesares, sempre compensa

    transformar um sonho em realidade.

    Foi duro suportar a primeira tempestade que presenciei a

    bordo. O mar estava furioso. Ondas gigantescas varriam o convs de

    lado a lado, quebrando mastros e rasgando velas, enquanto o

    vento parecia possudo por todos os demnios. Tive medo, sem

    dvida, mas no o suficiente para desistir.

    Suportando com valentia os transtornos da primeira viagem,

    cheguei a Londres e logo parti para a Guin, de onde trouxe p de

    ouro para vender na Inglaterra. Voltei depois em busca de mais ouro,

    mas um acontecimento terrvel me aguardava: no meio do caminho,

    o barco foi atacado por piratas mouros, na costa de Marrocos, e toda

    a tripulao foi levada pelos corsrios, como presa de guerra.

    Transformaram-nos em escravos. E assim vivi dois anos. No lhes

    vou narrar o que me sucedeu nesses dois anos, pois quero chegar

    logo aventura principal de minha vida, que creio ser a de maior

    interesse. Contudo, peo-lhes que imaginem o que ser escravo de

    piratas, durante dois anos, em Marrocos.

    por terceiros = por outras pessoas dava vida = movimentava promessas da imaginao = sonhos me sucedeu = me aconteceu

  • Ao fim desse tempo, encontrei meios de escapar num barco

    improvisado, e acabei tendo a sorte de ser recolhido por um navio

    portugus, que me levou ao Brasil.

    No Brasil juntei dinheiro e me tornei plantador de fumo, como

    vocs j sabem. Mas preferi ser fiel minha necessidade de

    aventura. E embarquei novamente para a frica.

    Vai comear, enfim, a viagem que vocs esperam que eu conte.

    Equipamos um barco de cento e vinte toneladas e deixamos o

    cais a 1. de setembro de 1659. Eu tinha, ento, vinte e sete anos.

    improvisado = feito s pressas ser fiel = atender cais = porto

  • CAPTULO II

    O Naufrgio

    Levvamos a bordo objetos sem valor mas que agradavam aos

    nativos da frica: contas para colares, pedaos de cristais coloridos,

    espelhinhos, canivetes, tesouras e machadinhas.

    Enquanto costeamos terras brasileiras, tudo foi fcil, apesar

    do calor sufocante. Pouco a pouco, encaminhamo-nos para o alto-

    mar, perdendo a terra de vista. Segundo nossos clculos, estvamos

    a sete graus de latitude norte quando um violento furaco nos

    desgovernou.

    O sopro do vendaval era terrvel. E durou doze dias, durante os

    quais nos arrastou como se fssemos bonecos em um barquinho de

    papel. Eu e meus companheiros sentimos que a morte estava

    realmente prxima: a fria do vento nos carregava, carregava...

    cada vez mais para longe, fora do alcance de qualquer possvel

    auxlio humano. Para dois dos nossos, tal pressentimento tornou-se

    realidade: um morreu de febre e o outro arrebatado por uma onda.

    O tempo melhorou depois de doze dias, mas o barco perdera a

    batalha: estava todo quebrado como um valente lutador depois de

    uma luta desigual.

    Ao consultarmos um mapa, constatamos que estvamos longe

    de qualquer regio habitada; ningum, portanto, poderia auxiliar-

    nos. Era certo que o barco no seria capaz de prosseguir viagem

    para a frica, nem de regressar ao Brasil. Nossa esperana

    restringia-se a algumas ilhotas de administrao inglesa, situadas na

    Amrica Central, que espervamos poder alcanar em breve.

    nativos da = nascidos na sopro do vendaval = fora do vento auxlio humano = ajuda de algum pressentimento = sentimento prosseguir = continuar regressar = voltar restringia-se a = era apenas

  • Mas nosso azar com aquela viagem era realmente grande:

    outra tempestade modificou-nos novamente o rumo, dessa vez nos

    tirando definitivamente a possibilidade de aportarmos em qualquer

    terra habitada.

    Ao amanhecer, aps uma noite de tormenta, ouvi um grito:

    Terra vista!. Samos dos camarotes para ver do que se tratava e

    fomos surpreendidos por uma onda que jogou o barco contra um

    banco de areia. Ondas incessantes ameaavam esmagar o que

    restava da embarcao, outrora bela e confortvel.

    Que estranho lugar comentou comigo um companheiro.

    Aposto que seremos os primeiros civilizados a pisar nesta terra.

    O pior que no se pode dizer o mesmo com relao aos

    animais. Deve haver muitas feras por aqui. Alm disso, no estou

    certo de chegarmos em terra com vida respondi-lhe.

    Mal pronunciara essas palavras percebi que a fria do mar

    abria a primeira brecha no casco do navio. Apelamos ento para

    uma pequena embarcao de salvamento, que transportvamos no

    barco. Mas, contra o mar enfurecido, que se poderia esperar de uma

    simples canoa, quase uma casca de noz?

    Toda a nossa esperana, porm, estava dependendo do que se

    pudesse obter com a canoa. E ela resistiu, durante quatro horas,

    num herico combate com as ondas. Ento foi virada e rapidamente

    afundou. Assim como a canoa, um de meus companheiros deu

    um longo mergulho sem retorno. Agora, ramos onze. Onze nufragos

    travando com o mar uma luta impossvel.

    O instinto de conservao fez-me nadar em direo a terra sem

    hesitao nem perda de tempo, pois um minuto de retardo, numa

    situao dessas, pode resultar na morte.

    fria do mar = fora das guas nufragos = nome que se d s pessoas que esto em uma embarcao e esta sofre um naufrgio, isto , afunda.

    instinto de conservao = vontade de viver hesitao = dvida

  • No final eu j no tinha foras para nadar; era carregado pelo

    mar, como um tronco de rvore. E uma onda, enfim, me depositou na

    praia.

    Estava meio morto de cansao, mas com um desejo muito forte

    de sobreviver. Animado por ele, pus-me de p. Comeava a andar,

    quando uma onda mais forte me ajudou, atirando-me longe, de

    encontro areia.

    Senti ento a terra firme sob meu corpo e respirei fundo,

    imvel sobre a areia mida, sem poder acreditar que havia

    conseguido salvar-me. Mas era verdade: eu estava vivo e salvo.

  • CAPTULO III

    A Primeira Viagem ao Barco

    A alegria por ter escapado desapareceu quando pensei em

    meus companheiros. Era terrvel a incerteza: que lhes teria

    acontecido? Talvez estivessem todos mortos, talvez alguns tivessem

    tido a mesma sorte que eu. Deles tinha visto, apenas, depois do

    naufrgio, alguns bons e sapatos carregados pelas ondas.

    Muitos outros problemas igualmente srios me abalavam o

    nimo: estava encharcado e no dispunha de roupa para mudar;

    tinha fome e sede, e nada para comer ou beber. A nica perspectiva

    possvel era a morte: morrer de fome ou devorado pelos animais

    selvagens eis minha alternativa.

    Ao anoitecer, refleti tristemente sobre a situao. Aquele

    mundo desconhecido onde me encontrava certamente era habitado

    por feras, que costumam rondar nas trevas, procura de presas.

    Talvez no veja o sol nascer amanh pensei.

    A nica defesa aconselhvel seria subir numa rvore e l

    meditar sobre o tipo de morte que o dia seguinte me reservaria. Mas

    antes disso caminhei pelos arredores, terra adentro, para ver se

    encontrava gua doce para beber. Por sorte, logo adiante encontrei

    um pequeno manancial, e em seguida passei a mascar um pedao

    de fumo para enganar a fome, enquanto subia na rvore escolhida

    para refgio.

    Todo meu desejo, ento, era mergulhar num sono de pedra e

    com isso afastar por algum tempo as preocupaes.

    me abalavam o nimo = me preocupavam perspectiva = idia alternativa = escolha rondar nas trevas = andar pelas noites. manancial = nascente de gua de pedra = profundo

  • Quando o medo nos domina, o melhor caminho de fuga

    dormir. E no precisei concentrar-me muito, pois a luta contra as

    ondas me esgotara as foras. Assim, dentro em pouco, estava imerso

    num sono profundo e reparador.

    Ao acordar, o sol estava a pino e o cu azul. Tudo era calma

    naquele trecho de praia e tambm o mar estava tranqilo. O barco,

    para minha grande surpresa, mantivera-se apoiado no banco de

    areia. J todo avariado, mas ainda no mesmo lugar. Eu ignorava se

    ele poderia permanecer para sempre ali encalhado, como recordao

    de minha tragdia, ou se iria finalmente afundar, nas prximas

    horas ou mesmo minutos. Sabia, porm, o quanto era importante

    que ele resistisse por mais algum tempo. Porque tentaria alcan-lo,

    para apanhar todos os objetos que se tivessem mantido mais ou

    menos utilizveis. E a fome me dava um nimo todo especial, pois me

    lembrava que existiam no barco vrios barris de mantimentos.

    Foi sem grande dificuldade que me aproximei dele, pois o mar

    estava tranqilo. A volta que talvez no fosse nada fcil. Uma

    coisa era nadar sozinho; outra seria transportar fardos pesados,

    utilizando-me apenas de umas toras, que havia encontrado no

    barco e que amarrara em seguida, para improvisar uma jangada.

    Essa preocupao diminuiu a alegria que senti ao verificar que as

    provises do navio no tinham sido atingi das pela gua.

    Depois de amenizar um pouco a fome com alguns biscoitos,

    coloquei em trs cofres algumas provises tais como po, arroz,

    queijo, carne-seca, trigo etc. e tambm bebidas (gua mineral e

    aguardente), roupas, ferramentas, armas e munies. Eu

    encontrara, no camarote do capito, trs espingardas e dois fuzis

    em muito bom estado, e ainda duas pistolas, um faco, alguns

    cartuchos de plvora, um saco com chumbo e duas velhas

    espadas.

    avariado = estragado um nimo todo especial = uma forte razo provises = alimentos amenizar um pouco = enganar

  • Lembrava-me de que havia mais alguns cereais entre as

    provises, mas depois observei, pelos seus restos, que os ratos do

    navio os descobriram antes de mim. Em compensao, tive a alegria

    de ver que dois dos trs barris de plvora que. transportvamos

    estavam secos e em condies de aproveitamento. Tentaria

    transport-los tambm.

    Arrastada pela correnteza, minha frgil jangada foi parar a

    vrios quilmetros do local em que eu pernoitara. Para sorte minha,

    nenhum dos volumes se perdeu durante a viagem.

    Ao pisar novamente aquele solo estranho, decidi subir ao topo

    de uma montanha que se avistava a certa distncia.

    Com um fuzil e uma pistola, um cartucho de plvora e um

    saquinho com chumbo, lancei-me subida da montanha. Percebi

    ento, com clareza, que me encontrava numa ilha e que no havia

    sinal visvel de habitao humana.

    em compensao = por sorte pernoitara passara a noite solo estranho = terra desconhecida

  • CAPTULO IV

    Preparativos Para a Longa Permanncia

    Voltando da montanha, atirei num grande pssaro que

    surpreendi pousado numa rvore beira de um denso bosque. No

    gosto de matar animais, mas ali, naquela ilha primitiva, vigorava a

    lei da selva: seria matar para comer ou morrer de fome.

    Creio que foi o primeiro tiro jamais ecoado naquelas paragens,

    desde a origem do mundo. Ao som do estampido, levantou-se, com

    grande alarido, um bando de pssaros dos mais diversos tipos,

    surgidos de todos os cantos do bosque. Quanto ao que eu abatera,

    no pude identific-lo. Parecia uma espcie de gavio, eis tudo o que

    percebi. O pior foi que sua carne rija e escura pouco contribuiu

    para melhorai; minha refeio.

    O prximo problema com que me deparava era a necessidade

    de proteo para passar aquela noite com alguma segurana.

    Formei ento, com os cofres e as tbuas, uma espcie de barricada,

    o que parecia satisfatrio, em face dos poucos recursos de que

    dispunha.

    No dia seguinte retornei ao barco. Foi ento que tive

    oportunidade de levar para a ilha duas gatas e um cachorro.

    Durante muitos anos, aquele co foi para mim um amigo e fiel

    servidor. Era capaz de carregar vrios tipos de objetos e parecia

    esforar-se ao mximo por me agradar.

    Essa segunda viagem serviu-me ainda para transportar

    volumes que s mais tarde pude identificar, pois estavam bem

    embrulhados.

    denso = fechado vigorava a lei da selva = vencia o mais forte ecoado = ouvido grande alarido = muito barulho me deparava = eu enfrentaria

  • Um deles continha canetas, tinta e uma boa quantidade de

    papel, e foi graas a isso que pude registrar os fatos que narro neste

    livro, pois decerto me seria impossvel arquivar tudo na memria.

    Neste embrulho havia, tambm, compassos, instrumentos

    matemticos, lunetas, mapas, livros de navegao e at trs Bblias.

    Realizei, ainda, uma dzia de viagens ao barco encalhado nos

    dias que se seguiram. Pude transportar, ento, muitos outros

    objetos teis: machados, pregos, barras de ferro, mosquetes com

    farta munio, apetrechos de caa, vela de barco, maca, colches,

    cobertores, lonas, cordas, barbantes, rum, acar, farinha de trigo,

    navalhas, tesouras, facas, garfos, e ainda artigos que eu j havia

    trazido na primeira viagem, mas cujo estoque era conveniente

    aumentar tais como plvora (levei, afinal, o barril molhado na

    esperana de recuper-lo), roupas, biscoitos, aguardente etc.

    Na ltima viagem que fiz ao barco encontrei algum dinheiro em

    moedas europia e brasileira, metade em ouro, metade em prata. A

    inutilidade de tal descoberta, que me seria to conveniente em

    circunstncias normais, me fez sorrir com ironia.

    Eu havia feito uma pequena tenda com a vela sobressalente e

    nela reunido tudo que era passvel de estrago se atingido pela chuva

    ou pelo sol. Com um dos colches que trouxera numa das viagens,

    podia agora dormir tranqilamente, em cama de verdade.

    Poucos dias depois de ter eu levado a ltima carga do navio,

    este afinal foi jogado por uma onda para fora do banco de areia. Ao

    amanhecer, fui olh-lo como de costume e dele no havia o menor

    sinal. Era agora refgio dos estranhos peixes que habitam as

    profundezas do mar.

    arquivar = guardar apetrechos = objetos circunstncias normais = vida comum era passvel de estrago = estragasse

  • Desaparecera o ltimo vestgio que me ficara como lembrana

    da civilizao: o navio onde, h bem pouco tempo, meus

    companheiros passeavam e conversavam, na alegre expectativa da

    chegada frica. Agora, por uma estranha ironia, meus

    companheiros, com certeza sendo destrudos pelos peixes vorazes,

    voltavam, talvez arrastados por eles, ao velho e querido barco de

    tantas viagens. De toda essa desolao, restava apenas um

    sobrevivente, para quem o futuro se apresentava sombrio e cruel.

    Que me reservaria ele?

    vestgio = coisa expectativa = espera desolao = acontecimento triste

  • CAPTULO V

    A Construo de Um Barco

    A proteo imediata contra possveis selvagens e feras era

    minha principal preocupao. Seria mais indicado cavar uma toca

    ou tratar de armar logo uma tenda? Decidi-me, afinal, por ambas.

    Primeiramente, era preciso escolher, como moradia, um lugar

    saudvel, perto de gua doce, fcil de defender e com vista para o

    mar. Esta ltima condio era muito importante: se o acaso levasse

    at aquele lugar algum barco, eu poderia facilmente comunicar-me

    com ele, pedindo socorro aos tripulantes.

    Encontrei, aps algumas buscas nas imediaes, um lugar

    conveniente, num rochedo em frente ao mar. Havia uma espcie de

    terrao naquele rochedo, e tambm uma entrada, no to

    pronunciada como uma caverna, porm suficiente para abrigar-me

    das feras e das chuvas. Um gramado me levava, em suave declive,

    do rochedo ao mar. Era at um lugar bem potico e agradvel.

    Antes de montar a tenda, tracei na rocha, diante da entrada

    que se transformaria em minha casa, um semicrculo de dez metros

    de raio. Na linha traada cravei duas fileiras paralelas de slidas

    estacas, afiadas em sua ponta superior e separadas entre si por

    uns quinze centmetros. O conjunto ficou parecendo um guarda-

    chuva aberto, ocupando a pequena caverna o lugar correspondente

    ao cabo.

    Em seguida, com o machado, rachei toras, que transformei em

    varetas, com elas compondo, entre as duas fileiras de estacas, um

    tranado em forma de cerca bem reforada e resistente.

    gua doce = gua para beber tripulantes = pessoas que trabalham em embarcaes ou aeronaves. conveniente = bom declive = descida

  • Cravei ainda, entre as j fincadas, uma terceira fileira de

    estacas, em posio oblqua.

    Transportei para o interior de minha fortaleza as provises,

    as munies e tudo o que conseguira retirar do navio. Constru

    ento uma grande tenda de cobertura dupla, visando a proteger-me

    das chuvas, muito freqentes naquela poca do ano. Com a maca

    e um dos colches encontrados no navio, improvisei uma cama

    bastante confortvel e que me permitia um sono tranqilo, aps as

    estafantes tarefas do dia.

    Aps colocar l em cima do rochedo o que me parecia mais

    importante, fechei a entrada da cerca, passando a utilizar-me

    apenas de uma escada de mo Agora, entrar na fortaleza s era

    possvel atravs dessa escada. Quando eu a retirasse, qual o

    animal ou homem capaz de chegar at meu abrigo? Assim eu

    poderia dormir tranqilo.

    Comecei ento a ampliar o orifcio da rocha. A terra e as pedras

    que retirei serviram para formar uma espcie de degrau que se

    elevava uns dois palmos junto cerca. Improvisei ainda uma

    espcie de celeiro em frente tenda.

    Durante esse trabalho, percebi que uma tempestade se

    aproximava e logo aps comecei a ouvir os troves. Temi por minha

    plvora pois, sem ela, como poderia carregar as armas com que

    obtinha alimento? Alm disso, um outro problema me inquietava: e

    se um raio casse sobre a plvora?

    Apesar do cansao, lancei-me imediatamente construo de

    caixas e sacos com que protegi a plvora. Dividi por vrios pacotes o

    contedo dos barris, colocando-os bem longe um do outro, para que

    a possvel combusto de um deles no se propagasse aos outros.

    oblqua = inclinada estafantes tarefas = trabalho cansativo ampliar o orifcio = aumentar a abertura celeiro = depsito combusto = queima

  • Ao fim do estafante trabalho, a plvora ficou dividida por mais

    de cem pacotes, ocultos entre as rochas e a certa altura do solo,

    para que no se molhassem.

    Em nova excurso pela ilha, foi grande minha alegria ao

    descobrir algumas cabras. Elas eram, porm, extremamente

    ariscas. Seria bastante difcil ca-las ou domestic-las.

    Levei alguns dias estudando o modo de viver das cabras. Foi

    fcil descobrir que seus olhos no lhes permitem ver de baixo para

    cima: quando eu estava no fundo do vale e elas nas escarpas,

    fugiam em desabalada carreira ao pressentirem minha presena; se,

    porm, as posies se invertiam, elas continuavam a pastar

    tranqilas, sem nada perceberem. Aprendi, ento, como deveria

    ca-las.

    Subi numa pedra antes que chegassem, e as esperei. Com um

    tiro abati uma fmea. E logo senti remorso, ao ver que um filhote a

    acompanhava. Enquanto os adultos fugiam deixando sua

    companheira cada, o cabritinho permaneceu guardando o corpo da

    morta.

    Tomei-o nos braos. Era frgil demais e talvez ainda no

    pudesse sobreviver sem a me. Se estivssemos na cidade, nenhum

    problema haveria: eu lhe daria leite na boca, com mamadeira. Ali,

    porm, era muito difcil criar o cabrito. No me queiram mal por

    isso. Foi azar meu: ao atirar na cabra, no sabia que era a me do

    cabritinho; ao tentar cri-lo, no tive culpa de estar to desprovido

    de recursos. De qualquer forma, foi intenso o meu remorso. Pois,

    recusando sempre a comida que lhe oferecia, o cabritinho foi ficando

    cada dia mais fraco, at que morreu.

    se propagasse = passasse ariscas = espertas guardando o corpo = perto do corpo desprovido de recursos = sem meios remorso = arrependimento

  • CAPTULO VI

    Os Primeiros Meses

    Muitos artigos essenciais me faltavam na ilha: enxada, p,

    agulha, linha de costura e uma srie de outras utilidades s quais

    no se d o menor valor quando podemos t-las mo, e que, no

    entanto, passamos a considerar extremamente importantes quando

    no temos possibilidade de obt-las.

    Tomemos uma agulha como exemplo. possvel a um homem

    construir sozinho um barco, uma casa e um mundo de objetos,

    desde que disponha de madeira, algumas ferramentas de corte, um

    martelo, pregos e outros artigos igualmente simples. Um homem

    sozinho levar muito tempo para fazer uma boa casa com

    instrumentos to precrios, mas um dia conseguir completar a

    tarefa. Uma agulha, porm... quem ousaria sequer pensar em fazer

    uma agulha, longe dos recursos da civilizao?

    Porm, quando um problema nos preocupa muito e no h

    qualquer possibilidade de resolv-lo, a nica sada razovel coloc-

    lo de lado.

    Se no tenho picareta para cavar um buraco no lugar em

    que quero, o jeito cavar com a mo, num terreno mais macio, ou

    tentar utilizar uma tora de madeira. Nunca, na verdade, a tora

    poder substituir com eficincia a picareta. Mas, se eu ficar

    lamentando a ausncia da picareta, nem farei o buraco nem

    aproveitarei o tempo em outra atividade. Foi pensando assim que

    comecei a me habituar com a vida na ilha. E resolvi enfrentar a

    realidade da minha situao, decidido a aproveitar a primeira

    oportunidade para sair dela.

    to precrios = to ruins recursos da civilizao = so assim chamados os instrumentos, objetos e mquinas inventados pelo homem para facilitar seu trabalho.

  • E chegara tambm a outra concluso fundamental: um homem

    pode sobreviver na floresta, com um pouco de sorte e muita vontade

    de resistir.

    A princpio eu olhava insistentemente o mar, na esperana de

    ver algum barco. Depois deixei de perder tempo com iluses que no

    levavam a nada. E concentrei meus esforos em procurar atenuar ao

    mximo as dificuldades de meu novo gnero de vida.

    A escassez de ferramentas tornava muito lento o trabalho.

    Assim, gastei quase um ano para acabar a paliada. As estacas,

    escolhidas entre as mais grossas e slidas, eram muito difceis de

    cortar. Carreg-las at a tenda era outra tarefa penosa. Gastava, s

    vezes, dois ou trs dias para carregar uma nica tora. Mas havia

    tempo de sobra. Minhas nicas preocupaes, alm da construo

    da moradia, eram a busca de alimentos e a confeco de mveis que

    me pudessem assegurar algum conforto para escrever e para comer.

    Para obter uma nica tbua, eu tinha simplesmente que

    cortar uma rvore inteira, de um lado e de outro, e depois aplain-

    la. E isto muito mais duro do que se pensa.

    Fiz a princpio uma cadeira e uma mesa, servindo-me de

    pedaos de tbuas, com as quais fiz tambm largas prateleiras,

    colocando-as umas sobre as outras, ao longo de um dos lados da

    caverna. Com isso pude acomodar todos os objetos pequenos de que

    dispunha.

    Depois de tudo arrumado ou pendurado nas prateleiras, minha

    caverna ficou parecendo uma loja de utilidades.

    fundamental = importante iluses = sonhos atenuar ao mximo = diminuir muito aplaina-la = alis-la Pude acomodar = arrumei dispunha = tinha

  • CAPTULO VII

    Algumas Pginas do Dirio

    Esqueci-me de dizer a data em que cheguei ilha. Da mesma

    maneira como me esqueci, a princpio, de contar o tempo, enquanto

    l estive. Talvez, no ntimo, eu tivesse esperana de ser socorrido em

    breve apesar de ser uma chance quase impossvel, conforme

    poderia concluir raciocinando friamente. Por isso, no me preocupei

    com o tempo como tambm no o fiz aqui, na pressa de narrar

    alguns episdios importantes. Aos poucos, porm, fui tendo

    conscincia de minha situao real e passei a sentir curiosidade em

    acompanhar a marcha incessante dos dias.

    Eu precisava improvisar um calendrio, pelo menos para tentar

    um programa especial na data do meu aniversrio. Pensando bem,

    era um bobo consolo esse. Mas eu precisava adotar qualquer medida

    para dar minha vida, dentro do possvel, um toque civilizado.

    A 30 de setembro havia posto o p na ilha. Quando j tinha

    permanecido por onze dias se no me engano percebi que

    comeava a perder a noo do tempo. J me era difcil distinguir os

    domingos dos dias teis.

    Na verdade tal dificuldade no tinha a menor importncia,

    pois no havia, na ilha, dias de descanso. Bastava passar um dia

    sem fazer nada para ter, como recompensa, uma mesa vazia

    minha espera. Resolvi, porm, s para satisfazer a curiosidade,

    montar um estranho calendrio, entre o rochedo e o mar.

    Tomei, como ponto de partida, o dia 30 de setembro. Cravei

    ento um poste perto da praia, nele escrevendo que chegara ilha a

    30 de setembro de 1659.

    no intimo = por dentro episdios = tatos a marcha incessante = o passar posto o p = chegado dias teis = dias de trabalho

  • Na superfcie do poste, fui marcando um trao para cada dia;

    no stimo dia um trao maior e, ao completar um ms, marcava um

    trao ainda maior que os das semanas.

    A qualquer momento bastaria olhar os traos do poste, para

    saber h quanto tempo estava na ilha. Acrescentando esse nmero

    de anos, meses e dias data inscrita no poste, eu obteria, como

    resultado, a data que procurava saber.

    Aps explicar isso, creio que posso transcrever alguns episdios

    do meu dirio, sem correr o risco de parecer estar inventando as

    datas. Como podero observar, as anotaes abrangiam s vezes

    vrios dias ou mesmo semanas, pois nem sempre eu tinha tempo

    para escrever.

    Dos relatos, escritos no ano em que cheguei ilha, destaco os

    de 5 a 18 de novembro e o de 27 de dezembro. So os seguintes:

    5 DE NOVEMBRO

    Sa com o fuzil e o co, matando um gato selvagem. Sua pele era

    macia, mas a carne imprestvel. Tive ento a idia de passar a

    arrancar a pele de todos os animais que fosse caando daquele dia

    em diante, para curti-las e utiliz-las em minha moradia e, sobretudo,

    como roupas e cobertores. Voltando dessa caada, vi bandos de

    pssaros marinhos ao longo da costa. Alguns deles me eram

    desconhecidos. Fui surpreendido tambm com a presena de algumas

    focas. Elas me retriburam o olhar, mas logo aps, assustadas com o

    tipo de monstro desconhecido que eu representava para elas,

    jogaram-se ao mar e desapareceram.

    abrangiam = continham curtir = preparar um couro ou pele de animal por meio de um processo especial para que no apodrea.

    retriburem o olhar = olharam tambm monstro desconhecido = bicho diferente

  • 18 DE NOVEMBRO

    Encontrei no bosque uma espcie de rvore que logo vi ser

    aquela que os brasileiros chamam pau-ferro, por sua extrema dureza.

    Cortei um pedao com grande esforo e quase inutilizei o machado.

    Com essa madeira consegui, afinal, obter uma p. Mas foi preciso

    aplicar muito tempo ao empreendimento, pois a falta de ferramentas e

    a dureza da madeira obrigaram-me a um trabalho penoso.

    Tinha agora necessidade de um cesto e um carrinho de mo,

    para transportar lenha e pedras. Com o que at ento conseguira

    obter, no havia condies para fazer um cesto, pois, para tal,

    necessitaria de fibras que pudessem ser tecidas matria-prima que

    no havia encontrado na ilha. No me parecia difcil, porm, a

    construo do carro. Lembrei-me em seguida da dificuldade que por

    certo encontraria para adaptar a roda, mas no desisti da tarefa;

    apenas a substitu, provisoriamente, pela construo de duas

    grandes calhas inclinadas, feitas de um tronco de rvore que dividi ao

    meio, arrancando, em seguida, todo o miolo. Obtive assim, por

    intermdio delas, um meio de puxar, com cordas, o que tivesse de

    levar para meu abrigo. Utilizei quatro dias nesse trabalho, mas

    verdade que no lhe dediquei todo o tempo: grande parte desse

    perodo passei caando.

    Em seguida, desabou o teto da casa quando por sorte eu estava

    ausente. Para evitar novo desabamento, reforcei com fortes vigas o

    teto, que passei a recompor. Mais tarde, quando eu iniciasse a

    construo dos compartimentos internos da casa, as vigas me

    serviriam como pontos de apoio, nos quais se sustentariam as

    paredes.

    matria-prima = material o miolo = a parte de dentro compartimentos internos = sala, quarto, etc...

  • 27 DE DEZEMBRO

    Matei um cabrito e feri outro. Levei este ltimo para casa e

    encanei a perna ferida, conseguindo, aps algum tempo, recuper-lo.

    Parece que ele gostou do trato que lhe dispensei, pois f icou to

    manso que se podia v-lo pastando prximo casa, sem pensar em

    fugir. Pensei ento que poderia domesticar algumas cabras e ter um

    rebanho de reserva para quando terminasse a plvora e eu j no

    mais pudesse caar.

    Alguns dias aps sa com meu co e o aticei contra as cabras

    selvagens. Elas se puseram a enfrent-lo e quase fiquei sem o fiel

    companheiro, o que me fez desistir provisoriamente da idia. De to

    assustado com a recepo que as cabras lhe ofereceram, o cozinho

    fugiu com a cauda entre as pernas e temi que ficasse acovardado para

    novas caadas.

    Enquanto isso, o bosque crescia ao redor do refgio, as plantas

    se entrelaavam de tal forma nas estacas do cercado, que se algum

    desembarcasse na ilha no poderia perceber ali o menor sinal de

    vida humana. Descobri uma raa de pombos selvagens que se

    aninhavam nas rochas. Apoderei-me de alguns e consegui domestic-

    los a muito custo, mas fugiram ao ficarem adultos por certo para

    buscar alimento, pois nunca apreciaram muito a comida que eu lhes

    dava.

    Iniciara a construo de um tonel e pequenos barris, mas no

    conseguia ajustar os fundos nem unir os lados com bastante

    perfeio para impedir que a gua vazasse. Sentia falta tambm de

    algum objeto que pudesse iluminar o local em que eu trabalhava. Sem

    ao menos uma vela, era-me necessrio parar o trabalho por volta

    das sete horas da noite, quando a escurido se instalava de forma

    inapelvel.

    recuper-lo = torn-lo bom aticei contra = mandei atacar ficasse acovardado = tivesse medo se instalava = chegava

  • S posteriormente ocorreu-me providenciar uma espcie de

    candeia, algo semelhante a uma lamparina, porm alimentado com

    gordura de cabra.

    posteriormente = depois

  • CAPTULO VIII

    A Inclemncia do Tempo

    Nos primeiros dias do ano seguinte, encontrei um saco cheio

    de cereais que haviam servido para alimentar as galinhas do navio.

    O saco estava no fundo de um dos cofres transportados na primeira

    viagem, e eu o deixara l por verificar que os ratos haviam rodo a

    maior parte dos gros; encontrei-os agora tambm mofados,

    Querendo livrar-me daqueles gros inteis, atirei-os terra, para

    poder, pelo menos, aproveitar o saco.

    Qual no foi minha surpresa, porm, ao verificar aps as

    freqentes chuvas que se seguiram, que ali, bem ao lado de meu

    abrigo, os gros espalhados haviam dado origem a pequenos brotos,

    que pude reconhecer como de milho, arroz, trigo, centeio e cevada.

    Estranhei que no houvesse pensado h mais tempo em

    garantir meu sustento, mas logo compreendi que no o fizera por ter

    tido, a princpio, a ilusria esperana de ser brevemente resgatado

    pela civilizao. Agora, porm, encarando sem iluses minha estada

    na ilha e estimulado pela germinao inesperada dos gros

    refugados, pude compreender um fato evidente: cada gro que, ao

    invs de guardar, eu atirasse terra, resultaria em inmeros

    outros, nada exigindo para isso, seno um pouco de pacincia. Como

    pudesse sobreviver independentemente dos gros que colhera,

    semeei-os todos, para na prxima colheita poder dispor de cereais em

    abundncia.

    Passei a trabalhar em novo sistema de fortificao. Certa vez,

    enquanto reforava com toras a cerca, percebi que a casa e a rocha

    em que esta se apoiava comeavam a tremer.

    meu sustento = minha comida a ilusria = a intil resgatado pela civilizao = salvo por um navio pela germinao = pelo nascimento independentemente = sem precisar

  • Tremia tambm a colina e as estacas rangiam fortemente. Sem

    saber o que estava acontecendo, pus-me a correr, tomado de pnico.

    Logo percebi que se tratava de um terremoto. Duas ou trs

    vezes o solo estremeceu sob meus ps e vi enorme pedra rolar do

    alto de um penhasco e cair ao mar, produzindo um estrondo

    aterrador, enquanto as ondas se agitavam e a espuma subia em

    remoinho. O sol foi encoberto por nuvens cinzentas prenunciando

    violenta tempestade.

    Depois da terceira convulso de terra, pareceu-me que o

    terremoto havia passado. Fiquei mais tranqilo, mas ainda com

    medo de voltar para casa. Sentado na areia em atitude de

    desnimo, lamentei mais uma vez a amarga sorte.

    De repente, percebi que as nuvens se tornavam cada vez

    mais escuras, enquanto aumentava a violncia do vento. Meia hora

    depois, um verdadeiro furaco aoitava a ilha inteira. O mar estava

    coberto de espuma e as guas fustigavam a costa, enquanto o

    terrvel vendaval chegava a arrancar rvores. Durou trs horas esse

    suplcio.

    Sem foras para procurar um abrigo, eu continuava sentado no

    cho; ocorreu-me que o vento e a chuva deveriam ser conseqncia

    do terremoto. Corri ento para a tenda, vendo a chuva aumentar a

    cada momento, o que me punha novamente em apuros. Chegou a

    chover to forte que me vi obrigado a abandonar a tenda e me

    refugiar na caverna. Pouco depois notei que o dilvio diminua, e que

    o perigo, mais uma vez, havia passado. Bebi ento uns goles de rum,

    para me aquecer um pouco.

    No dia seguinte no pude sair de casa, pois a chuva ainda

    continuava.

    tomado de pnico = assustado convulso de terra = tremor suplcio = sofrimento em apuros = em perigo dilvio = grande chuva

  • Pus-me a pensar na convenincia de construir uma moradia

    ao ar livre, prevenindo-me contra a possvel repetio do terremoto, A

    seu redor, construiria um muro feito de estacas e cordas. Mas um

    novo acontecimento me fez esquecer os projetos da casa nova. Foi a

    descoberta inesperada dos restos do barco naufragado, que a

    tempestade trouxera tona e arrastara em direo praia.

    Reconheci partes de camarotes e procurei encontrar objetos

    teis, mas apenas consegui alguns pedaos de madeira que as

    ondas traziam um aps outro at a praia. Cuidadosamente os

    recolhi, pois poderiam ser de grande utilidade na construo da casa

    planejada.

    Encontrei, pouco tempo depois, uma grande tartaruga, numa

    de minhas andanas pela praia procura de destroos teis. Achei

    deliciosa sua carne e guardei com cuidado as vrias dzias de ovos

    que nela encontrei. Com carne e ovo de tartaruga, pude preparar

    uma refeio diferente, depois de me alimentar por tanto tempo

    quase que unicamente de carne de cabra e pssaros selvagens.

    convenincia = necessidade os recolhi = os guardei destroos teis = objetos bons

  • CAPTULO IX

    A Doena

    Por essa poca, junho de 1660, tive uma forte gripe. Adoecer num

    lugar como aquele uma provao terrvel. Comeou assim: o dia 18

    passei recolhido ao abrigo, fugindo da chuva teimosa e fria que no

    cessava de cair. Passei uma pssima noite, pois a umidade me fez mal e

    comecei a tiritar de frio.

    No dia seguinte, amanheci pior. Estava mesmo doente e o medo

    tomou conta de mim. Que faria, sem medicamentos nem auxlio

    humano? A febre aumentou; eu passava do frio mais intenso ao calor

    mais sufocante e estive meio inconsciente durante algumas horas, em que

    delirei bastante.

    Passei uma semana inteira com febre, que aumentava e diminua

    alternadamente, sem contudo desaparecer de todo. Nos ltimos dias

    transpirei em excesso, o que me fez melhorar. Como no tivesse mais

    vveres, peguei o fuzil e sa para a caa. Estava extremamente fraco,

    mas, mesmo assim, consegui abater uma cabra e transport-la para

    a tenda, assando na brasa alguns pedaos de sua carne.

    No dia seguinte, senti que o esforo me pusera em recada. A

    febre voltou to violenta que no pude sada cama, passando o dia

    inteiro sem comer ou beber. Eu morria de sede e no tinha foras

    nem para apanhar um pouco d'gua. Por fim passei do delrio ao

    sono, sem sentir. E despertei muito melhor, apesar de ainda mais

    fraco. Nessa noite tive um estranho sonho, que passo a contar:

    provao terrvel = sofrimento tiritar = tremer inconsciente = fora da realidade transpirei em excesso = suei muito em recada = doente de novo

  • Um homem diablico e ameaador, empunhando enorme

    lana, emergia de uma nuvem negra e descia a terra, em meio a um

    turbilho de chamas, dizendo: Todas as advertncias foram

    inteis. J que no te emendaste morrers. Em seguida, vi a lana

    se erguer sobre sua cabea. Estranhamente e sem que eu pudesse

    compreender o que ocorria, percebi que a lana se voltava contra

    seu prprio peito e que o homem, com um grito terrvel, esvaa-se em

    sangue.

    Ao acordar, lembrei-me do passado e das advertncias de meu

    pai. Mais do que nunca, tive a certeza de no estar arrependido de

    meu gesto de desobedincia. Pois, por mais cruel que tenha sido em

    alguns momentos, minha vida, pensei ainda uma vez que o mais

    importante era ter realizado meu desejo. Alm disso, talvez um dia

    aparecesse uma embarcao por aquelas paragens...

    Reanimado por esses pensamentos, dei um passeio pelos

    arredores para tomar um pouco de sol, comendo em seguida trs

    ovos de tartaruga.

    noite procurei um pedao de fumo de rolo que tinha

    guardado no abrigo; lembrei-me que os brasileiros o utilizam com

    freqncia como remdio caseiro e temia que a febre voltasse a

    atormentar-me. Ao encontrar o fumo, fiquei sem saber ao certo o

    que fazer com ele e comecei a experiment-lo de vrias maneiras:

    aspirei sua fumaa, queimando-o num carvo em brasa, mastiguei

    um pedao e, finalmente, desmanchei outro num pouco de rum e

    bebi a estranha mistura, que logo me subiu cabea, provocando

    um sono profundo.

    Mas no foi seno cinco dias mais tarde que a febre me deixou

    de vez.

    emergia = saa esvaa-se em sangue = perdia sangue caseiro = feito em casa subiu cabea = deixou tonto

  • Embora ainda muito fraco, comecei a fazer pequenos passeios.

    Creio que devo minha recuperao extrema vontade de viver que

    sempre me animou. Mas no foi nada fcil; houve momentos em

    que at essa vontade senti fraquejar, quase aceitando a morte como

    inevitvel. Sempre encontrei, felizmente, uma ltima reserva de

    fora fsica e mental. Agora a recuperao, embora lenta, era

    constante e progressiva, e pude ento dedicar-me a um

    reconhecimento mais detalhado da ilha em que vivia.

    A 15 de julho fiz minha primeira viagem. Dirigi-me logo baa

    onde ancorara a balsa com provises e mais adiante encontrei

    numerosas plantas silvestres de fumo, babosa e cana-de-acar.

    Avanando mais, cheguei selva e vi muitas espcies de frutas,

    entre as quais uma grande quantidade de meles. Descobri videiras

    que se entrelaavam com os troncos das rvores e ostentavam

    pesados cachos de uvas maduras. Servindo-me de alguns, pude

    comprovar o excelente sabor daquelas uvas. Cuidei, porm, de no

    me exceder, lembrando-me de uns ingleses que haviam morrido Por

    terem comido uvas em excesso. Decidi ento levar muitos cachos

    comigo, para secar e fazer passas.

    Encantado com o passeio, nem percebi que as horas se

    passavam. S prestei ateno quando j comeava a escurecer. Era

    ento muito tarde para regressar e tive que dormir por l, sobre os

    galhos de uma rvore.

    Continuei, pois, na manh seguinte, o trabalho de

    reconhecimento, percorrendo cerca de seis quilmetros de vale,

    sempre na direo norte. No percurso encontrei duas pequenas

    montanhas e um riacho que descia para oeste. As guas do riacho

    cortavam um vale frtil coberto de imensa variedade de plantas,

    at o lugar onde parecia florescer um jardim.

    extrema = grande fraquejar = diminuir inevitvel = certa excelente sabor = timo gosto me exceder = comer demais percurso = caminho

  • Aprofundei-me um pouco mais naquele delicioso vale,

    sentindo-me como o descobridor de um pas de maravilhas, e deparei-

    me com enormes rvores carregadas de frutos: laranjeiras, limoeiros,

    coqueiros, goiabeiras, cidreiras, castanheiras. Ajuntei vrios

    montes de frutas, os quais tencionava levar quando regressasse da

    expedio, e prossegui no meu reconhecimento. Dois dias aps,

    entretanto, ao passar novamente pelo local, encontrei as frutas

    espalhadas, pisoteadas e em parte comidas, no sabendo a que

    atribuir o estrago.

    O lugar era to belo e aprazvel que passei ali os meses de

    julho e agosto, aproveitando-os para construir uma casa semelhante

    que possua no litoral. Assim poderia variar de residncia quando

    julgasse conveniente: se estivesse cansado da praia, me mudaria

    para a serra, e vice-versa. Terminada a construo do abrigo, fui

    obrigado a me recolher casa da praia, que oferecia maior

    segurana na poca de chuvas que se iniciava. Levei comigo as

    passas que Obtivera com a secagem das uvas.

    As chuvas caram por muito tempo. Como os vveres fossem

    acabando, tive de me lanar caa, mesmo com mau tempo. Tendo

    conservado com sal carnes de cabra e de tartaruga, comia-as

    alternadamente no almoo para no enjoar; um dia cabra, outro

    tartaruga, novamente cabra, e assim por diante. O desjejum era

    um cacho de passas; o jantar, dois ou trs ovos dos muitos que,

    como de costume, encontrava na tartaruga.

    No trabalho de ampliao da caverna eu empregava,

    diariamente, duas ou trs horas. E assim, procurando tirar o

    mximo rendimento das possibilidades da idia, vi chegar o primeiro

    aniversrio do desembarque.

    pais de maravilhas = lugar maravilhoso pisoteadas = pisadas aprazvel = gostoso me recolher = voltar lanar a caa = caar

  • CAPTULO X

    Terra Vista

    Passei o primeiro aniversrio de minha chegada ilha imerso

    em profunda meditao. Apesar de ter sido um ano de permanente

    sobressalto, conseguira sobreviver. Escrevia observaes sobre o

    fato, quando verifiquei que a tinta estava prestes a acabar. Procurei

    ento economizar a que restava: resolvi, da por diante, limitar-me

    aos episdios mais importantes, deixando de registrar os detalhes.

    J comeava a perceber a regularidade das estaes. Sabia

    que a chuva e a seca chegavam a intervalos regulares, e me

    preparava para enfrentar as intempries. Dispunha, ainda, de

    pequena quantidade de gros de arroz e cevada e me decidi a

    seme-los, logo depois de passado o tempo das chuvas.

    Cultivei, o melhor que pude, um pedao de terra e o dividi ao

    meio, semeando de cada lado um tipo de gro. Por cautela guardei

    alguns, para poder contar com uma reserva, caso a colheita no

    fosse satisfatria.

    A providncia mostrou-se muito til, quando constatei, aps

    um perodo de secas, que os gros haviam morrido sem germinar.

    Procurei, ento, um terreno mais mido, perto de um bosque

    florido. Dessa vez germinaram todos os gros e obtive uma excelente

    colheita, tendo assim aprendido qual a estao e o local mais

    adequados ao plantio.

    Aps a colheita e como o tempo estivesse bom resolvi

    instalar-me na casa do bosque.

    imerso = preocupado profunda meditao = pensando muito prestes a acabar = acabando as intempries = o mau tempo adequados ao plantio = bons para as plantas

  • Encontrei-a como a tinha deixado e, na verdade, at mais

    agradvel, pois os troncos que fincara no cho haviam brotado,

    lanando ramos to frondosos, que a casa, agora, estava protegida

    por um vioso bosque em miniatura. Logo me ocorreu a idia de

    construir o mesmo tipo de cerca na casa do litoral e voltei at l para

    realizar o intento. Em pouco tempo obtive uma cerca que, alm de

    me proteger contra algum visitante indesejado, abrigava-me do sol.

    Veio a seguir novo perodo de chuvas e, como a umidade me

    prejudicava a sade, passei o tempo chuvoso na gruta, dedicado

    confeco de cestos com uma planta muito semelhante ao vime. Os

    cestos, como podem supor, estavam longe de possuir bom

    acabamento, porm me seriam muito teis naquelas circunstncias,

    permitindo o transporte de frutas, e pequenas caas e outros objetos

    de interesse que viesse a encontrar em meus passeios.

    At ento havia-me limitado a pequenas incurses pelos

    arredores, mas possua grande vontade de percorrer a ilha inteira,

    concluindo assim a tarefa de reconhecimento. Certo dia, galgando o

    ponto mais alto do vale onde construra a casa de emergncia,

    pude ver, ao longe, as praias do outro lado da ilha. Resolvi iniciar,

    sem demora, essa nova expedio, lanando-me com entusiasmo a

    mais uma aventura.

    Peguei uma arma e um pouco de plvora, o machado, alguns

    biscoitos e cachos de passas, e em companhia do cachorro, dei incio

    excurso. Uma montanha cortava o caminho e galgando-a

    descortinei a extenso melanclica e deserta do mar. Muito longe, a

    dezenas de quilmetros da ilha, vislumbrei o que me pareceu uma

    faixa de terra.

    Fiquei em dvida sobre a inesperada descoberta. Que parte

    do mundo seria aquela?

    do litoral = da praia confeco de = a fazer galgando o = subindo ao vislumbrei = vi

  • Estaria habitada por civilizados, por antropfagos ou, simplesmente,

    desabitada? Valeria a pena construir um barco e tentar chegar at

    l, ou seria melhor evitar esse novo risco?

    Resolvi continuar a expedio, e afastar, pelo menos

    temporariamente, a idia da viagem, por ignorar se teria a mesma

    sorte na eventualidade de um novo naufrgio alis muito mais

    provvel no caso de um barco improvisado.

    Atingindo a extremidade oposta da ilha, verifiquei que tivera a

    m sorte de naufragar no lado pior. Na parte que acabava de

    alcanar havia enormes tartarugas e infinidades de aves de vrias

    espcies. As praias eram mais belas e a vegetao mais exuberante e

    acolhedora.

    Apesar de tudo isso, comecei a sentir saudades das paisagens

    que diariamente contemplava, e resolvi regressar. Mas desta vez

    segui o curso de um riacho e aps ligeira caminhada me encontrei

    numa regio toda cercada de montanhas. Era um lugar mido, que

    o sol no aquecia. Segui em frente buscando inutilmente uma

    sada por onde prosseguir. Por fim desisti, regressando praia de

    onde partira, e de l retomei o itinerrio que havia utilizado na ida,

    pois estava exausto e sem nimo para tentar descobrir um novo

    caminho.

    O nico fato interessante que ocorreu durante a volta foi o

    encontro, pelo meu cachorro, de um pequeno cabrito monts. Salvei

    o animalzinho da investida do co e, para lev-lo comigo, utilizei um

    cip como corda e coleira.

    Revendo os objetos confeccionados com o suor de meus braos

    e aos quais me sentia intimamente ligado, pelo tempo e esforo

    neles despendidos descansei feliz durante vrios dias.

    antropfagos = nome dado aos ndios que comem carne humana; o mesmo que canibais, a expedio = o reconhecimento na eventualidade = em caso diariamente contemplava = via sempre itinerrio = caminho da investida = do ataque

  • E percebi que aqueles objetos familiares haviam adquirido, pelo uso

    dirio, um sentido todo especial, um sentido que certamente no

    teriam, se os houvesse comprado prontos e os trazido para ali. Eles

    eram importantes por serem o fruto de meu trabalho, do trabalho

    penoso e rduo a que fui obrigado para sobreviver.

    fruto de meu trabalho = feito por mim

  • CAPTULO XI

    Aprendendo a Gostar da Ilha

    Como houvesse deixado o cabrito na casa do vale, fui busc-lo

    to logo me recuperei do cansao da ltima viagem. Carreguei

    comigo uma corda bem forte para o caso de ter que arrast-lo, mas,

    para meu espanto, o animalzinho logo me veio comer na mo o

    capim que lhe estendi e passou a me seguir por toda parte. E me

    acompanhou, confiante, para a casa do litoral.

    Capturei na volta um belo papagaio, to manso que se deixou

    prender sem sequer desconfiar de minha inteno. Logo lhe constru

    uma gaiola e pouco depois percebi que j me conhecia e logo repetia

    as palavras que lhe ensinava. Minha famlia tinha ganho um novo

    membro; agora se compunha do co, das gatas e do papagaio.

    A esta altura, j tinha conscincia de minha solido

    irremedivel, e s vezes vacilava em plena caa, detendo-me para

    pensar na situao difcil em que me encontrava e pondo em dvida

    a importncia dos meus esforos para sobreviver. Logo conclu,

    porm, que, embora no fosse uma situao agradvel, era contudo

    o resultado do rumo que eu prprio escolhera. Fora exclusivamente

    minha a responsabilidade pela deciso tomada, cabendo-me,

    portanto, enfrentar-lhe as conseqncias. Alm disso, havia um

    motivo bastante pondervel para que me sentisse alegre: longe das

    cidades, onde homens como meu pai viviam e obrigavam seus

    semelhantes a viver uma vida sem sentido e cheia de preocupaes

    com as convenes sociais, eu podia, enfim, me considerar livre.

    capturei = prendi tinha conscincia de = reconhecia a vacilava = parava bastante pondervel = importante convenes sociais = costumes

  • Lamentava, apenas, a ausncia de companheiros, jovens

    rebeldes como eu, com quem pudesse conversar. Descobrira que a

    vida na selva poderia tornar-se bastante suportvel e at agradvel,

    apesar de sua dureza, se eu pudesse contar com a companhia de

    amigos imbudos do mesmo ideal de liberdade. E nesse estado de

    nimo, completei o segundo ano de exlio.

    No quero importun-los, com excesso de detalhes de minha

    vida cotidiana, mas deixo bem claro que nunca estive ocioso. De

    manh cedo inclua na refeio o suficiente para me fortalecer

    fisicamente e enfrentar o trabalho. No descuidava tambm dos

    exerccios espirituais, quase sempre meditaes sobre o valor da

    liberdade e seu lamentvel desconhecimento por parte da maioria

    dos seres humanos, demasiado mesquinhos e egostas para se

    preocuparem com isso.

    A partir das oito ou nove horas segundo meus clculos

    empricos, na falta de relgio punha-me a caar e assim passava o

    resto da manh. Aps o almoo, ficava, at escurecer, cuidando da

    plantao e da casa, ou ocupado em preparar para os dias

    seguintes alguma cabra ou tartaruga que houvesse abatido, a fim de

    evitar que sua carne logo se estragasse.

    A plantao prosperava, apesar de um ou outro contratempo,

    como, por exemplo, quando as cabras comeram as folhas novas,

    obrigando-me a construir uma cerca para proteger a plantao.

    Enquanto erguia a cerca, conservava ao ombro a espingarda

    carregada, para no me arriscar a perder tudo por novo capricho

    das incmodas visitantes. noite, o cachorro me substitua na

    viglia. E assim as intrusas acabaram perdendo o hbito de comer

    as folhas tenras e apetitosas. Afinal, no faltava pelos arredores

    capim bastante com que se alimentarem.

    exlio = viver em um lugar afastado de sua ptria e de seu meio. empricos = de observao tenras e apetitosas = macias e saborosas

  • Mal dei por concluda a cerca, percebi que um novo flagelo

    ameaava a plantao: os pssaros se lanaram ao ataque logo que

    as espigas comearam a amadurecer. Quase me desesperei com o

    problema, pois me seria impossvel conseguir uma tela

    suficientemente grande para cobrir toda a plantao. Os pssaros

    mais estranhos batiam asas quando eu me aproximava e pousavam

    nas rvores prximas, espera de que eu me afastasse para

    reiniciarem o trabalho de devastao do fruto do meu tenaz e

    persistente esforo.

    Tive, pois, que me valer de um expediente cruel, mas que,

    segundo conclu, era a nica maneira de me livrar dos agressores

    que punham em risco meu sustento e, em conseqncia, minha

    vida: atirei neles com chumbo mido, socado em grande quantidade

    no cano da espingarda. Espalhando-se por um amplo crculo onde

    se dava a maior concentrao dos pssaros, os chumbinhos

    atingiram muitos deles. Depois cravei cada pssaro morto na

    ponta de uma fina estaca e espalhei as macabras advertncias por

    toda a volta do cercado. O efeito foi imediato e fulminante: os

    pssaros no s abandonaram a plantao, como inclusive

    desertaram daquela parte da ilha.

    Efetuei a colheita em fins de dezembro. Debulhei as espigas,

    verificando que conseguira reunir uma boa poro de cevada e

    arroz. Era uma esperana de po. Mas como moer os gros e reduzi-

    los a farinha? Verifiquei que era impossvel naquelas circunstncias

    e encarei a questo da forma mais prtica e objetiva: era prefervel

    contentar-me em comer os gros inteiros, pois o importante no era

    o po macio que todos obtinham sem qualquer esforo, mas sim a

    alegria de ter cultivado os gros preciosos com o suor do meu rosto.

    flagelo = mal expediente = meio macabras advertncias = sinal de perigo imediato e fulminante = timo desertaram = fugiram

  • CAPTULO XII

    O Aprendizado de Oleiro e Padeiro

    Enquanto trabalhava, divertia-me com o papagaio. Como j

    disse, ele havia aprendido a falar, inclusive meu nome. Por terem

    sido suas as primeiras palavras que ouvi na ilha pronunciadas

    por outra voz que no a minha sentia-me muito ligado ao

    papagaio. Ele amenizava a solido e tornava divertido o trabalho,

    com seus chamados estridentes e cmicas imitaes dos meus, s

    vezes desesperados, monlogos.

    Eu andava ento muito empenhado na tentativa de fabricar

    potes de barro, apesar de ignorar completamente o processo de sua

    fabricao. Considerando o calor daquela regio, no havia dvida

    de que era possvel secar os utenslios modelados; bastaria,

    portanto, encontrar o barro adequado modelagem, Tinha

    esperana de que, depois de secos ao sol, os potes ao menos

    pudessem servir para guardar alimentos secos.

    Eis alguns dos fracassos que enfrentei antes de conseguir um

    mnimo de xito na nova tarefa que me havia imposto: s vezes os

    potes rachavam por excesso de sol; outras, ao contrrio, eles se

    desmantelavam ao mais leve toque, por no haverem endurecido o

    suficiente; e por fim, nas vezes em que me parecia ter acertado com

    a qualidade do barro e o tempo de exposio ao sol, observava que, ao

    fim da secagem, os potes estavam estranhamente deformados.

    Aps dois meses de trabalho, somente conseguira produzir dois

    modestos e grosseiros potes. Coloquei ento cada um, numa grande

    cesta, tomando o cuidado de completar com palha os espaos

    vazios, para melhor proteger minhas preciosas obras.

    oleiro = que trabalha com barro amenizava a solido = alegrava monlogos = conversas modestos e grosseiros = simples ter

  • Observando a tcnica que usara para obter as duas peas

    utilizveis foi bastante fcil repetir todas as fases da fabricao e,

    com isso, passei a ter xito em quase todos os objetos de barro que

    resolvi fabricar: pratos, travessas e demais utenslios de que

    necessitava. Sob o comando dos meus dedos geis a argila passava a

    assumir a forma que eu lhe desejasse imprimir, e os resultados

    eram cada vez mais durveis e aperfeioados.

    Mas eu tinha uma pretenso mais audaciosa: tencionava fazer

    um pote capaz de suportar o fogo e que servisse para cozinhar e

    guardar alimentos lquidos. A idia nasceu quando encontrei,

    remexendo nas brasas em que cozinhara a ltima refeio, uns

    pedaos de argila dura como pedra.

    Fiquei assim convencido da possibilidade de obter um

    recipiente capaz de resistir ao fogo, se conseguisse improvisar

    substitutos para o forno dos oleiros e para o verniz protetor que eles

    usam. No tinha a menor idia de como consegui-los, mas talvez

    fosse possvel obter tais recipientes por um processo muito mais

    simples.

    Logo na primeira tentativa, obtive resultado satisfatrio:

    preparei uma fogueira com lenha muito seca e empilhei no centro

    alguns jarros e pratos. Alimentei o fogo com mais lenha, at perceber

    que a argila, j em brasa, no rachava. Conservei o fogo intenso

    durante cinco ou seis horas e, aps esse tempo, tratei de diminuir

    bastante as chamas, retirando algumas toras.

    Quando as ltimas toras de madeira terminaram de arder,

    fiquei ansioso aguardando o esfriamento dos preciosos utenslios.

    Ainda estavam meio quentes quando os toquei, e pude constatar que

    haviam adquirido a solidez da pedra. Da em diante no me faltaram

    recipientes de barro.

    xito = bom resultado argila = barro pretenso = idia solidez da pedra = dureza

  • Fabriquei excelentes pratos e potes que, embora desprovidos de

    qualquer valor artstico, atendiam muito bem s minhas

    necessidades.

    Depois dessa penosa vitria, vi que tinha necessidade de um

    recipiente onde pudesse moer o trigo. Cansei de procurar uma pedra

    que oferecesse conveniente concavidade e resolvi utilizar madeira

    para tal servio. Meu primeiro pilo foi obtido com enorme esforo,

    pois o pau-ferro madeira dificlima de trabalhar, mesmo quando

    dispomos de ferramentas apropriadas. No sendo esse o meu caso,

    levei uma infinidade de tempo para abrir, num tronco de pau-ferro,

    uma cavidade adequada.

    Com o pilo eu j poderia transformar o trigo em farinha. Era

    meio caminho andado para chegar ao po. Eu havia desistido

    provisoriamente de muitas comodidades, mas agora, j com a vida

    mais organizada e dispondo de melhores utenslios, voltava a me

    preocupar com problemas que, por insuficincia de meios, deixara

    de lado. Um deles, como vocs sabem, era o fabrico do po.

    Ao contrrio dos primeiros tempos que passei na ilha

    quando minha sobrevivncia dependia de muita tenacidade e

    perseverana minha vida seria ento at montona, se me

    satisfizesse com o mnimo necessrio para sobreviver. E como

    sempre recusei uma vida ociosa e sedentria, esbocei mentalmente

    uma certa prioridade para minhas necessidades, procurando sempre

    satisfaz-las pela ordem em que as selecionara. E chegara a vez do

    po.

    Para obt-lo, faltava ainda uma peneira onde pudesse separar

    os gros de trigo das partes inteis que os acompanham. Mas

    consegui resolver tambm esse problema, utilizando uns trapos

    encontrados no barco.

    conveniente concavidade = um fundo de acordo meio caminho andado = uma grande ajuda ociosa e sedentria = parada esbocei mentalmente = planejei as selecionara = as escolhera

  • Por outro lado, submetendo alguns recipientes de argila

    especialmente modelados ao processo de endurecimento pelo fogo,

    obtive substitutos para o forno.

    Finalmente, coloquei algumas pores de massa sobre uma

    chapa feita de ladrilhos de barro e cobri cada poro com um

    recipiente, rodeando-o de carves em brasa, sempre bem acesos. Foi

    assim que fiz meus primeiros pes que alis chegaram no

    momento exato, pois a proviso de biscoitos havia acabado pouco

    antes.

    Mais tarde, por incrvel que parea, cheguei a fazer pastis e

    bolinhos. Mas confesso que essa tarefa no foi fcil e levou quase um

    ano para concretizar-se.

  • CAPTULO XIII

    Tentativas Para Poder Navegar

    Enquanto me ocupava com as tarefas dirias, no me saam

    da lembrana as terras desconhecidas, entrevistas do outro lado da

    ilha. Tinha uma vontade enorme de conhec-las de perto. Quem

    sabe no seriam um continente habitado e com possibilidades de me

    fornecer um meio de regressar Europa?

    Mas, e se se tratasse de uma das ilhas do Caribe? A idia me

    apavorava, pois diziam que seus habitantes eram ferozes como

    panteras e at mesmo antropfagos. No sentia o menor desejo de

    experimentar uma aventura desse gnero, pois muitos europeus

    haviam encontrado naquelas ilhas uma morte terrvel.

    Apesar desses prudentes pensamentos, fui vrias vezes at a

    praia, para contemplar os restos da canoa que as ondas haviam

    trazido do barco naufragado.

    A embarcao continuava jogada na areia, quase como no

    primeiro dia. Se pudesse consert-la, talvez me animasse a tentar

    empreender a travessia at o Brasil. Parecia-me uma empresa

    impossvel de realizar sozinho, mas mesmo assim decidi-me a tent-

    la, como recurso extremo para voltar civilizao.

    Fui ao bosque cortar madeira para algumas tbuas e durante

    trs semanas trabalhei duramente no conserto da embarcao, at

    que ela me pareceu em condies de uso. Mas to grande era seu

    peso, que logo verifiquei a impossibilidade de arrast-la at a gua,

    embora mais do que nunca desejasse chegar terra desconhecida.

    Pensei em construir outra canoa mais leve utilizando o tronco

    de uma rvore gigantesca que crescia na selva. Embora fosse uma

    tarefa possvel, no resolveria o problema principal: o transporte.

    desse gnero = assim uma empresa = um trabalho recurso extremo = nico jeito

  • Naquele momento, entretanto, sentia-me demasiadamente

    entusiasmado para poder raciocinar com lgica. E at parece

    incrvel que eu tenha passado trs meses preparando uma nova

    canoa, quando a que havia recuperado permanecia abandonada,

    apenas por impossibilidade de remoo.

    Animado por um entusiasmo indescritvel, cavei com fogo o

    grande tronco selecionado e derrubado para a misso. Aps trs

    meses, tive a satisfao de ver pronta uma bela canoa com

    capacidade para transportar mais de vinte homens, e, portanto,

    mais que suficiente para me transportar com toda a carga til que

    havia na ilha. Faltava somente o mais importante: lanar a

    embarcao ao mar.

    No consegui mov-la um milmetro, apesar do desesperado

    esforo de cavar a terra nas laterais, formando uma espcie de

    canal desgraadamente seco por onde a canoa pudesse

    deslizar. Vendo que havia dedicado meses inteiros a um esforo

    intil, sentia-me frustrado e abandonei novamente a idia.

    * * *

    No quarto ano de minha permanncia na ilha, senti fortalecer-

    se em mim a convico de que o mundo dos homens era uma

    realidade distante que j no me dizia respeito. Submisso vontade

    divina, podia agora contemplar serenamente o mundo maravilhoso

    que tinha volta: a melodia dos pssaros, a variedade de flores e

    rvores estranhas, os regatos de guas cristalinas, o cenrio

    encantado que tive a ventura de conhecer ainda no esplendor de

    sua beleza natural e do qual era o nico e privilegiado espectador.

    raciocinar com lgica = pensar certo impossibilidade de remoo = no poder tirar do lugar frustrado = desanimado a convico = a certeza no me dizia respeito = no era para mim

  • E me agradava particularmente o fato de ter livrado minha vida da

    perniciosa influncia dos fatores mais negativos do mundo civilizado:

    a competio, a explorao do homem pelo homem, a maldade e a

    injustia.

    Pensava nas moedas de ouro que encontrara no barco

    naufragado e sorria ironicamente. Enfim, fui adquirindo uma nova

    filosofia de vida, e com ela uma inalterada e permanente serenidade.

    Dormia tranqilamente porque vivia em paz comigo mesmo e

    amanhecia feliz por estar vivo.

    Com o tempo, muitos dos objetos que trouxera do barco

    comearam a se acabar. Assim foi com a tinta. Precisei adicionar-lhe

    um pouco d'gua, para faz-la durar mais algum tempo. Ficou

    porm de uma tonalidade azul muito plida, que mal me permitia

    distinguir no papel as palavras escritas. Os biscoitos ainda duraram

    menos.

    Depois dos biscoitos e da tinta, chegou a vez das roupas, que

    se haviam transformado em farrapos. Felizmente tinha guardado

    com cuidado as camisas quadriculadas de marinheiro que

    encontrara s dzias no barco. Alis, encontrara tambm uns

    pesados capotes sem qualquer utilidade numa regio quente como

    aquela. Comecei a consertar meus trapos e fiz tambm calas e

    casacos, utilizando-me de peles de animais e do tecido dos espessos

    capotes.

    Alguns anos se passaram sem que nada de especial ocorresse;

    os dias eram praticamente iguais e minhas ocupaes muito pouco

    variavam.

    Mas muitas surpresas ainda me estavam reservadas...

    fatores mais negativos = coisas ms filosofia de vida = modo de pensar me estavam reservadas = eu teria

  • CAPTULO XIV

    Novas Expedies

    J com mais de oito anos de permanncia na ilha, assisti a

    uma violenta enchente. Nunca vi, desde a minha chegada, o mar

    subir to alto quanto naquele dia. E presenciei as guas realizarem,

    em poucos segundos, o que todo o meu esforo fora incapaz de fazer:

    a canoa abandonada na areia foi tragada por uma onda violenta e

    arrastada, sem rumo, mar adentro. Com uma forte corda presa ao

    pescoo, nadei at ela e a amarrei, prendendo depois a outra ponta

    rvore mais firme que encontrei por perto.

    Observei em seguida que as dimenses da precria

    embarcao no me permitiam realizar a viagem projetada na direo

    da nesga de terra firme, divisada a dezenas de quilmetros ao longe,

    do outro lado da ilha. Deveria consolar-me em costear o litoral. E

    para isso fiz um mastro e uma vela, adaptei caixas de guardar man-

    timentos, amarrei a espingarda na proa e instalei na popa um

    guarda-chuva antigo. Aps abastecer a canoa com algumas

    provises metade de uma cabra, po, arroz e rum, alm de

    casacos que me serviriam de colcho e cobertor durante a noite

    pude, afinal, partir a seis de novembro para uma viagem que acabou

    sendo mais longa do que eu supunha.

    A razo do retardo foi a existncia, na regio oriental da ilha,

    de uma rea infestada de rochedos, uns aflorando perigosamente

    superfcie e outros traioeiramente submersos. O choque com o

    menor deles bastaria para cortar ao meio a canoa e, para evit-lo,

    tive que me afastar bastante do litoral.

    presenciei = vi tragada = levada divisada = vista retardo = demora

  • Antes, porm, logo ao topar com os primeiros rochedos, ancorei

    a canoa e subi a uma colina para melhor observar a regio.

    Verifiquei que era muito acidentada, mas no o suficiente para me

    impedir de contorn-la. Tive medo, contudo, quando observei o

    mar do outro lado do rochedo. Percebi uma forte correnteza e

    tambm sinais de remoinho perto da margem. Como o vento

    soprasse muito forte, permaneci dois dias ali; no terceiro, vendo a

    calma do mar, resolvi aventurar-me.

    Quando me afastei um pouco da costa, encontrei-me em

    guas muito profundas e vi-me arrastado por uma correnteza to

    vertiginosa que mal podia manter a embarcao na superfcie.

    Procurava desesperadamente sair da correnteza, aplicando aos

    remos toda a fora de que pude dispor. Tudo em vo: a correnteza

    me arrastou para alto-mar e me senti seriamente em perigo.

    De repente, quando o sol se aproximava do ocaso, notei uma

    ligeira brisa a sudoeste. Icei as velas e percebi que o vento as

    inflava e conduzia o barco de volta ilha.

    Na praia, amarrei o barco e fui a p em direo a oeste,

    caminhando vrios quilmetros at alcanar a casa. Mergulhei num

    sono profundo e durante muito tempo no tive a menor vontade de

    navegar.

    Os anos passavam e a munio se acabava. Estudei um meio

    de construir armadilhas para cabras, mas os primeiros dispositivos

    que armei saram frgeis: prendiam a caa mas a deixavam escapar

    antes de minha chegada. Mudei de sistema, portanto, cavando

    grandes buracos nas clareiras, os quais eram cobertos de gravetos

    que no suportariam o peso de uma cabra. Por fim, camuflava o

    local com ramos de rvores e punha em cima capim fresco, cevada e

    arroz, para atrair os animais.

    muito acidentada = perigosa vertiginosa = forte se aproximava do ocaso = ia se esconder camuflava o local = tampava o buraco

  • Certa manh encontrei um bode numa dessas armadilhas;

    noutra, uma cabra com dois filhotes. O macho estava to feroz que

    no me atrevi a descer para busc-lo; como tambm no quisesse

    mat-lo, preferi deixar que fugisse, pois no me ocorreu que poderia

    amans-lo pela fome. Consegui levar os outros para casa, aps

    amarr-los. Posteriormente outras cabras e bodes caram nas

    armadilhas. Amansei-os todos e constru para eles um cercado,

    evitando assim que voltassem a ter contato com os companheiros

    selvagens.

    Um ano aps, j dispunha de um rebanho de doze cabras, que

    no ano seguinte se transformariam em quarenta e trs, sem contar

    as abatidas para meu sustento. Alm da carne, as cabras me

    forneciam leite em abundncia, e sempre ouvi dizer que o leite de

    cabra o mais nutritivo que existe. Com o leite que sobrava eu fazia

    manteiga e queijo, dando-me os parabns por saber aproveitar to

    bem os pobres recursos que possua.

    Retomei ento a tarefa de observar a parte desconhecida da

    ilha. Evidentemente preferi viajar por terra, pois ainda trazia bem

    viva a lembrana da minha ltima e fracassada excurso martima.

    No posso deixar de rir ao rabiscar aqui um desenho de como

    ia vestido. Por essa poca minha aparncia era bastante estranha:

    usava um complicado chapu de pele de cabra, que me protegia um

    pouco do sol e da chuva; vestia um largo calo e um sobretudo

    esfarrapado; e nos ps, umas botas improvisadas completavam meu

    extico traje. Levava ainda duas machadinhas em torno da cintura,

    alm de um par de bolsas uma contendo chumbo de caa e a

    outra plvora. Por fim, longas barbas me cobriam o pescoo, pois,

    como podem imaginar, eu no perdia tempo em barbear-me.

    no me atrevi = no tive coragem no me ocorreu = no lembrei abatidas para meu sustento = que matei para comer sobretudo = casaco extico = esquisito

  • Assim parti para mais essa viagem, chegando pouco depois

    ao lugar onde havia enfrentado o ltimo grande perigo.

    Caminhava tranqilamente pela praia, quando, junto a meus

    ps, vi umas marcas que me fizeram disparar o corao ao mesmo

    tempo de satisfao e de temor.

    disparar o corao = assustar

  • CAPTULO XV

    Estranhas Descobertas

    Logo reconheci a natureza das marcas: eram de ps

    humanos! As pegadas de um homem!

    Parei estarrecido. Subi numa rvore e depois numa colina,

    para observar os arredores. No vi ningum. Voltei praia para me

    certificar de que no estava enganado.

    Eram mesmo pegadas humanas!

    Assustado, voltei para casa, parando sobressaltado ao menor

    rudo. Queria muito encontrar algum, mas temia o tipo de pessoa

    que poderia encontrar. Porque era quase certo que se tratava de

    algum selvagem antropfago. E no via com bons olhos a idia de

    terminar meus dias transformado em churrasco.

    Cheguei em casa pulando de dois em dois os degraus da

    escada de mo. Nem uma lebre espavorida ou raposa perseguida

    seriam capazes de igual destreza. A dvida e o medo me dominavam,

    quase no podendo acreditar na inquietante descoberta.

    O mais provvel era que fossem selvagens, cujo barco

    desviado pela correnteza tivesse ali aportado. Mas onde estariam?

    Talvez me tivessem visto e, como eu, tambm fugissem

    sobressaltados, mas era igualmente possvel que estivessem

    reunindo reforos para me devorar sem demora. Esgotado por esses

    inquietantes pensamentos, acabei adormecendo.

    No dia seguinte, procurei voltar ao ritmo normal de vida,

    tentando aliviar um pouco a forte tenso em que me encontrava.

    no via com bons olhos = no gostava espavorida = assustada destreza = ligeireza esses inquietantes pensamentos = essas preocupaes a forte tenso = o nervosismo

  • Ordenhei as cabras, espaireci pelos arredores, cuidei das plantaes

    e brinquei com os animais. Diga-se de passagem que, alm do

    cachorro e do papagaio, eu possua, por essa poca, dois belos gatos

    filhos das gatas que trouxera do barco, cruzadas com gatos

    selvagens da ilha.

    Resolvi ento olhar mais uma vez as misteriosas pegadas e

    para l me dirigi, desejando intimamente no encontr-las.

    Mas l estavam elas, exatamente como eu as vira antes. Sendo

    muito menores que a marca de meus ps, no poderiam ter sido

    feitas por mim. Era certo, portanto, que algum havia desembarcado

    na ilha; talvez um nufrago como eu, talvez um habitante da terra

    que se via ao longe.

    Ao regressar, pensei em tornar mais segura a defesa da casa

    do litoral, e para isso constru uma nova cerca de fortes estacas,

    bem afiadas na parte superior. Para melhor proteo, abri orifcios

    na paliada, de tamanho suficiente para neles introduzir o cano da

    espingarda.

    Sentindo a necessidade de preparar um novo abrigo para

    provises, pus-me a procurar um local adequado. Numa dessas

    buscas, vislumbrei, ao longe, algo que me parecia uma

    embarcao. Lamentei no ter comigo uma das lunetas que

    encontrara no barco; assim poderia verificar se se tratava

    realmente de uma embarcao aquele ponto distante no mar. Mas,

    como a mancha desaparecesse em seguida, fiquei quase certo de se

    tratar mesmo de um barco. De qualquer forma quela distncia

    seria intil qualquer tentativa para chamar a ateno da

    tripulao.

    O dia me reservava surpresas, e a prxima seria muito mais

    terrvel e macabra.

    espaireci = andei orifcios na paliada = buracos na cerca introduzir = enfiar

  • Afastando-me um pouco de casa, subitamente deparei com

    crnios e ossos humanos atirados areia. Arrepiei-me todo,

    pensando que idntico poderia tambm ser meu fim. Ao lado da nova

    descoberta, percebi os sinais de uma fogueira, na certa levantada

    para o preparo de um banquete cujo prato principal poderia ter

    sido a carne daqueles ossos.

    Abandonei o local s pressas e preocupado refugiei-me na

    cabana. Da em diante nem me atrevi a usar a espingarda nas

    caadas, temendo que os tiros denunciassem minha presena.

    Tinha-a, porm, sempre comigo, e mesmo ao dormir deixava-a ao

    alcance das mos.

    Enfrentava mais uma vez a implacvel lei da sobrevivncia, e

    chegava concluso de que somente eliminando o perigo que me

    ameaava poderia evitar que me devorassem ou escravizassem.

    Pensei tambm em tentar libertar as vtimas dos selvagens e com

    elas organizar uma resistncia efetiva e eficaz contra o inimigo

    comum.

    idntico = igual levantada = feita prato principal = comida implacvel lei da sobrevivncia = luta pela vida

  • CAPTULO XVI

    Um Novo Refgio

    Comecei a procurar, nos arredores do ponto de reunio dos

    supostos canibais, um esconderijo de onde pudesse vigiar a costa e

    t-los ao alcance de minhas armas, caso voltassem.

    Preparando o local, nele me instalei disposto a esper-los. Mas

    em vo os aguardei por muitos meses, sem que nada de novo

    acontecesse, e j comeava a me cansar dessa espera intil.

    Os selvagens, ao agirem de forma to cruel, sem dvida no

    tinham conscincia do crime que praticavam. Devoravam seus

    semelhantes para no morrer de fome, e essa era a lei da sua

    sobrevivncia. Elimin-los, e acabar assim com a ameaa em

    potencial que eles representavam, era, porm, a lei da minha

    sobrevivncia.

    Sabendo que eles poderiam chegar numa ocasio em que eu

    no os estivesse observando, continuei a viver em constantes

    sobressaltos. J nem me atrevia a fazer fogueira, para evitar que

    me localizassem se acaso estivessem na ilha. Passei a fabricar

    carvo vegetal, queimando lenha enterrada, e assim conseguia

    assar a carne e o po com que me alimentava.

    Certo dia, quando cortava lenha, percebi, por trs de uma

    moita de capim, uma estranha escavao. Aproximei-me curioso e

    cheguei boca de uma caverna suficientemente alta para que eu

    pudesse permanecer em p no seu interior. Fixando bem os olhos no

    ponto mais escuro de sua parte interna, percebi dois grandes olhos

    que brilhavam diabolicamente e piscavam com a dbil luz que

    entrava pela abertura.

    em vo = sem resultado constantes sobressaltos = preocupao escavao = buraco dbil = fraco

  • Apressei-me em sair, mas logo refleti que depois de tantos anos

    de solido naquela ilha, nem a presena do Diabo deveria assustar-

    me. E aquele ser parecia ter tanto medo de mim quanto eu dele.

    Com uma tocha na mo, voltei caverna e entrei. Ouvi ento um

    gemido de dor.

    Suei frio, mas me aproximei mais. E deparei com um velho

    bode agonizante, que morria de fome e velhice. Verifiquei ento que a

    caverna era do tamanho de um quarto comum e at parecia ter sido

    feita por mos humanas. No fundo havia um estreito corredor, que

    s rastejando poderia atrave