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O Saber e a Verdade na Psicanálise e na Universidade Knowledge And Truth In Psychoanalysis And In The University El Saber Y La Verdad En El Psicoanálisis Y En La Universidad Artigo Leonardo J. B. Danziato Universidade de Fortaleza 872 PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2012, 32 (4), 872-881

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    O Saber e a Verdade na Psicanlise e na Universidade

    Knowledge And Truth In Psychoanalysis And In The University

    El Saber Y La Verdad En El Psicoanlisis Y En La Universidad

    Art

    igo

    Leonardo J. B. Danziato

    Universidade de Fortaleza

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    PSICOLOGIA: CINCIA E PROFISSO, 2012, 32 (4), 872-881

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    Resumo: O autor realiza uma discusso acerca da posio da psicanlise no mbito da Universidade e em sua relao com a cincia. Para tanto, promove uma problematizao sobre as relaes histricas entre o saber e a verdade na estrutura desses discursos, apresentando uma argumentao que considera a funo poltica do saber e da verdade na constituio do sujeito na modernidade. Para demonstrar a relao poltica e econmica entre cincia e capitalismo, de forma a fundamentar suas anlises das apropriaes que essas prticas e discursos realizam dessas categorias, articula proposies das obras de Lacan e Foucault, entendendo que essas anlises histricas e genealgicas so necessrias para aprofundar o debate sobre as relaes entre psicanlise, cincia e Universidade.Palavras-chave: Psicanlise. Universidades. Verdade. Conhecimento. Gozo (Psicanlise).

    Abstract: The author presents a discussion about the position of psychoanalysis within the university and its relationship to science. For that he promotes a questioning about the historical links between knowledge and truth in the structure of these speeches, presenting an argument that considers the political role of knowledge and truth in the constitution of the subject in modernity. To demonstrate the economic and po-litical relationship between science and capitalism, in order to substantiate his analysis of the appropriations that these practices and discourses carry on these categories, he articulates propositions from the works of Lacan and Foucault, considering that these historical and genealogical analysis are necessary to deepen the debate on the relationship between psychoanalysis, science and academia.Keywords: Psychoanalysis. Colleges. Knowledge. Truth. Fruition (Psychoanalysis).

    Resumen: El autor realiza una discusin acerca de la posicin del psicoanlisis en el mbito de la Universidad y en su relacin con la ciencia. Para eso, promueve una problematizacin sobre las relaciones histricas entre el saber y la verdad en la estructura de esos discursos, presentando una argumentacin que considera la funcin poltica del saber y de la verdad en la constitucin del sujeto en la modernidad. Para demostrar la relacin poltica y econmica entre ciencia y capitalismo, de forma de fundamentar sus anlisis de las apropiaciones que esas prcticas y discursos realizan de esas categoras, articula proposiciones de las obras de Lacan y Foucault, entendiendo que esos anlisis histricos y genealgicos son necesarios para profundizar el debate sobre las relaciones entre psicoanlisis, ciencia y Universidad.Palabras clave: Psicoanlisis. Universidad. Conocimiento. Verdad. Gozo (Psicoanlisis).

    As relaes entre psicanlise e Universidade comportam uma complexidade histrica, discursiva, poltica e institucional, que exigem uma discusso que no se restrinja s proposies internas de cada campo. O que a Universidade requer da psicanlise, a partir de suas mais variadas formaes no s na Psicologia, na Sociologia, na Antropologia e na literatura, consideradas cincia humanas, cincias afins, portanto, mas tambm no campo das cincias da sade implica uma instalao do discurso psicanaltico fora de seus modelos prticos e discursivos habituais. Esse fenmeno impe uma acomodao tambm discursiva e institucional, que rendeu muita polmica, recusa e uma luta simblica que at hoje parece no ter sido suficientemente elaborada. No consideramos que recusar o lugar que a psicanlise ocupa hoje nos meios acadmicos seja uma via lcida para iniciar e desenvolver esse debate, mesmo que no devamos abrir

    mo do singular da psicanlise no que tange a sua prtica e a sua formao. Procuraremos dirigi-lo por um caminho que desvele alguns movimentos histricos e discursivos que acreditamos fundamentar e esclarecer partes dessa polmica.

    Psicanlise e Universidade so termos cuja origem deve remontar aos discursos e prticas modernos. Mesmo que a Universidade como instituio date da idade mdia, a forma atual do ensino universitrio foi gestada nesse ambiente que denominamos modernidade.

    A psicanlise, por seu turno, s pode emergir em uma cultura moderna, em que o sujeito sofre os efeitos da destituio do poder soberano (Foucault, 1977) e do ptrio poder, assim como de uma nova relao entre a verdade e o saber, de maneira que essa verdade se instala em uma relao com a fala e com o sexo, tal como nos

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    mutao operada por uma cumplicidade poltica e discursiva entre Filosofia, cincia e capitalismo. A verdade teria feito juno com o saber, o que fundou um mercado do saber e da verdade. A partir da, o saber passa a ser tambm um produto a ser ofertado, como lenitivo para a diviso subjetiva (Freud, 1972c) do sujeito, em suas catedrais universitrias, alm de participar na produo dos objetos no mercado do gozo capitalista.

    A modernidade, portanto, instaurou outra relao entre o saber e a verdade, instalando-a a verdade no mbito de uma formalizao matemtica e lgica do real. Se a verdade era garantida para Descartes em um grande outro deificado a substncia divina cartesiana foi apenas para logo desloc-la da para a atividade analtico-sinttica e transcendental do sujeito kantiano. A verdade passa a ser ou um saber que se retira do real como no realismo filosfico ou o produto da uma atividade analtico-sinttica do sujeito como no transcendentalismo kantiano.

    Para Lacan, uma cumplicidade poltica e discursiva entre Filosofia, cincia e capitalismo produziu, na modernidade, uma relao de totalidade entre o saber e a verdade. O cogito cartesiano teria sido o momento inaugural desse atrelamento moderno entre o saber e a verdade, momento de reforamento do sujeito da cincia, que ele define por um ancoramento no ser (1998a, p. 870) uma atadura do ser. O que Descartes inaugura, abrindo as portas da modernidade, uma relao de totalidade entre o saber e a verdade. Atravs do mtodo, ele teria includo a verdade toda no campo do saber. A partir da, passa a ser possvel produzir verdades, e no mais apreci-las como um saber divino, tal como funcionava em uma relao ritual (Foucault, 1979, p. 116) com a verdade na Idade Mdia.

    A relao entre verdade e saber, portanto, se modifica. Antes dessa operao discursiva, a

    informa Foucault (1988). Essas condies de possibilidade da psicanlise no so desconhecidas nem por autores de fora do campo psicanaltico como Foucault nem tampouco por autores internos, como Lacan; obviamente, esses autores no discorrem da mesma forma sobre tais assuntos, mas h uma proximidade possvel e importante em algumas consideraes.

    A funo poltica do saber na modernidade

    Esses dois autores, cada um a sua maneira e com objetivos diferentes, tentaram demonstrar que a modernidade operou mudana na relao discursiva entre o lugar do saber e da verdade, o que determinou a emergncia das mais variadas prticas e saberes.

    Foucault (1977, 1988) comprovou histori-camente a intensificao da produo desses saberes, que respondiam s demandas polticas de ordenao, de adaptao e de subjetivao, sustentados por uma lgica do poder disciplinar, por uma antomo-poltica e uma biopoltica que marcaram a condio genealgica da modernidade. Ele esclarece como se produziu uma nova economia poltica da verdade, atravs de uma srie de sistemas e de aparelhos de saber, que tm por funo constituir e controlar o sujeito em sua condio de objeto, assim como em sua subjetivao. Nesse mesmo sentido, analisa todo um processo tico-poltico de subjetivao pela sexualidade, atravs da produo incessante de uma scientia sexualis (Foucault, 1988), ou seja, de uma intensificao dos saberes sobre o sexo.

    Lacan, por sua vez, tentando entender certa posio da psicanlise diante da cincia e da modernidade, sugere que, nesse momento histrico, constitui-se um mercado do saber (Lacan, 1968-69/2004), fruto de

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    verdade, por mais que habitasse um lugar totalizante a substncia divina ainda assim se apresentava como desconhecida, ou como um saber divino que se manifestava na forma de um ritual1, muitas vezes mgico, da vontade de Deus. Da por diante, inserida em uma ambincia epistemolgica, a verdade pode ser sempre e toda conhecida e produzida; para tanto, basta que se utilize um bom mtodo. Assim procedendo, no h dvida de que se pode chegar a verdades claras e distintas (Descartes, 1986).

    Foi Descartes, portanto, quem instituiu o sujeito suposto saber, ou seja, um lugar transferencial onde o saber pode ser totalizado, um Outro onde se situa a garantia do tudo-saber. O deus de Descartes ocupa esse lugar, j que seria a garantia das verdades eternas (Lacan, 1988; Porge, 1998).

    Esses movimentos no se restringem a uma problemtica meramente filosfica que se elabora, mas impe-se como uma disposio discursiva que se inaugura na modernidade, isso porque essa nova localizao discursiva do sujeito, da verdade e do saber produz suas consequncias:

    l o real passa a ser considerado em termos matemticos e lgicos;

    l a lgica matemtica s possvel pelas capacidades transcendentais do sujeito moderno cartesiano-kanteano-hegeliano;

    l a modernidade, portanto, produz um sujeito que produz um saber e uma verdade;

    l assim, o saber e a verdade passam a se localizar nesse poder de sntese do sujeito;

    l sendo o sujeito que produz um saber, isso institui um mercado do saber (Lacan, 1968-69/2004), desenvolvido especialmente pela cumplicidade entre cincia e capitalismo e determinante no estabelecimento das Universidades.

    Em uma visada psicanaltica, e especialmente para Lacan (1967-68), essa operao implicaria uma recusa originria, por parte de Descartes, daquilo que caracteriza o sujeito freudiano: a clivagem do sujeito. Essa recusa movida pela angstia diante da dvida marcaria de uma vez por todas a relao discursiva da cincia com o saber e a verdade, implicando assim a recusa de uma verdade prpria da dvida, verdade essa que viria a se configurar como a verdade psicanaltica de uma diviso estrutural do sujeito, de uma falha inaugural. essa recusa, essa foracluso da verdade da diviso do sujeito que vai marcar de uma vez por todas as discusses e os desentendimentos entre psicanlise, cincia e Universidade.

    Essa operao termina por fazer uma sutura da clivagem do sujeito aberta pela dvida. A verdade, que se apresentava na prpria enunciao (Lacan, 1998a) da dvida e, portanto, na spaltung do sujeito fica assim desconhecida. O saber, assim considerado, passa a ser o operador de um fechamento subjetivo diante da dvida, na forma de uma foracluso2 da diviso subjetiva do sujeito. Para Lacan, isso que permite a emergncia da cincia como saber que foraclui a diviso do sujeito, da porque afirma ser a cincia uma parania bem sucedida (Lacan, 1998, p. 889). em oposio a essa atadura, mas a partir dela, que Lacan situa o sujeito freudiano.

    Cincia, capitalismo e mercado do saber

    Essa juno do saber com a verdade, efeito da cumplicidade entre cincia e capitalismo, teria possibilitado, ento, o surgimento da cincia e de seu mercado, que se estabelece como um mercado do gozo, com a produo dos objetos-mercadorias, mas tambm como um mercado do saber (Lacan, 2004), com as suas instituies universitrias. nessa condio de objeto de um mercado que podemos entender a economia dos saberes

    1 importante lembrar que

    Foucault, apesar de no ter produzido uma obra sobre a

    histria da verdade o que foi uma

    pena para todos ns sempre se referiu aos deslocamentos

    polticos da verdade, e sua

    transformao de uma verdade-ritual para uma verdade-

    prova (Foucault, 1979).

    2 Termo utilizado por Lacan para designar

    o mecanismo da psicose, mas tambm para dizer da relao

    da cincia com a diviso estrutural do

    sujeito (Lacan, 1998).

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    na contemporaneidade e o seu lugar de produo nas Universidades. Assim situado, o saber passa a ser tambm um produto a ser ofertado, como lenitivo para a diviso subjetiva do sujeito, em suas catedrais universitrias, alm de participar na produo dos objetos no mercado do gozo capitalista. Fala-se muito da oferta de objetos no campo de subjetivao contemporneo que se tornou o mercado, mas devemos tambm considerar a oferta de saberes como lenitivos e processos de subjetivao bastante intensos.

    A Universidade e esses saberes modernos, portanto, no so simplesmente o produto de uma evoluo cientfica interna de algumas disciplinas. Foucault (1999, 1999b, 2003) j demonstrou, em sua arqueogenealogia, as relaes de poder intrnsecas a todo saber. Uma genealogia dos discursos esclarece que o poder dos discursos no depende fundamentalmente de sua preciso e objetividade, mas da assuno de um lugar de poder de enunciao da verdade. Se a verdade poltica (Foucault, 1979a), porque ela se deve ser considerada dentro dessas relaes genealgicas de poder.

    Assim, ao instituir um mercado do saber, a modernidade delimita um lugar poltico da verdade, e encena relaes muito precisas de poder, que demarcam a instaurao de um novo mestre o mestre moderno (Lacan, 1992) assim como um espao institucional e discursivo responsvel pela sua sustentao e produo: a Universidade e a cincia.

    No desenvolvimento histrico desse processo de atadura entre o saber e a verdade, Lacan (1968-69/2004, 1992) esclarece que aquela recusa cartesiana diante da clivagem do sujeito teria sido, enfim, deslocada por Hegel para uma consistncia do saber, fundando assim o saber absoluto. Se a primeira figura do sujeito suposto saber o deus de Descartes, a segunda certamente o saber absoluto de Hegel. Este ltimo se fundaria em uma

    circularidade que se fecha em si mesma, descrita por Hegel em seu mtodo dialtico. Esse movimento equivaleria a uma topologia circular e fechada da esfera, prpria da ideia de um saber como totalidade (Lacan, 1968-69/2004, p. 24).

    O saber moderno, portanto, se institui como o lugar da verdade recusando toda verdade para fora da dialtica do sujeito e do saber (Porge, 1998, p.117). O real fica, assim, escamoteado; delira-se com a possibilidade do sujeito tudo-saber, e no h buraco que no possa ser tamponado. assim que se apresentam as intervenes da cincia contempornea no real do corpo, tamponando imaginariamente os orifcios pulsionais.

    Isso tem, inevitavelmente, repercusses polticas, j que esse novo saber, esse tudo-saber (Lacan, 2004, p. 29) estabelece o que Lacan denomina uma nova tirania do saber (2004, p. 30), instituindo-o como o operador poltico da verdade na modernidade. A partir dessa injuno entre o saber e a verdade, a modernidade buscou incessantemente e sintomaticamente uma grafia plena do real, da qual a obra de Bentham paradigmtica, mas tambm os movimentos poltico-discursivos, como o nazismo e o comunismo.

    Esse seria o sintoma da modernidade, pois, na nsia totalitria e utilitarista de ordenao e de disciplinamento, ela termina por produzir aquilo que busca excluir: o resto. Com j afirmava Freud (1921/1976), o valor social da igualdade tem como efeito colateral a segregao do diferente.

    O que se estabelece aqui uma outra relao entre o saber, a verdade e o real, na forma de uma absolutizao do mercado do saber (Lacan, 2004). O que se produz neste momento uma iluso ideolgica, cientificista, de apreenso e de ordenamento de todo o real pelo simblico, da constituio

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    de uma nova tirania do saber (Lacan, 2004). O saber cientfico ou no onipotente passou a tentar reger todo o real; acreditou-se piamente que tal saber poderia suturar, obturar todos os buracos da humanidade, curar todas as suas mazelas; bastava que fosse aplicado ao real.

    O projeto poltico moderno todo ele determinado por essa relao totalizante entre o saber e a verdade. A partir da que podemos entender melhor a constituio genealgica dessa nsia de ordenamento e de disciplinamento do mundo, que se manifesta como uma parania disciplinar uma parania bem sucedida, como a nomeia Lacan (1998, p. 889) dirigida ao corpo e ao espao social, assim como uma obsesso quanto assepsia do corpo e dos costumes tal como descreveu Elias (1994).

    A cincia e a Universidade na relao com o real

    A relao que cincia e Universidade mantm com o real se estabelece a partir dessa forma do saber-agente (S2), de um tudo-saber, que se apresenta como a crena de que se pode saber toda-a-verdade e assim, formar sujeitos topologia prpria do discurso universitrio, tal como formulado por Lacan (1992). Essa relao topolgica s poderia determinar vrios contratempos e desentendimentos nas relaes entre psicanlise, cincia e Universidade, isso porque, como nos lembra Lacan (2004), o saber da psicanlise o saber de uma falha, um saber impossvel, um saber do seu objeto o objeto pequeno a que implica uma impossibilidade do campo do real. No h saber do objeto a que possa suturar a ciso do sujeito, da porque o saber inconsciente no permite uma ontologia, pelo contrrio, apresenta a hincia, a fenda por onde se pode, em psicanlise, definir o sujeito em sua evanescncia. Trata-se, portanto, de um saber do real (Lacan, 2002) como o saber de uma impossibilidade.

    essa verdade, a verdade de um limite real do saber, ou melhor, de um limite real do simblico que Descartes recusa, demarcando todo um campo onde essa falha passa a ser perseguida com o objetivo de sutur-la. O saber passa ser o operador moderno da relao do sujeito com o real: nada de diviso! Nada de angstia! Continua a saber! Eis o imperativo do mestre moderno que anima a relao da cincia com o saber e a verdade (Lacan, 1992).

    Para a psicanlise, a relao constitutiva do sujeito com o Outro marcada por uma dialtica do desejo onde se encena uma perda originria Urverdrngnung (Freud, 1915/1974) de maneira que o desejo do Outro se apresenta como um enigma, como uma falta de saber que induz o sujeito a produzir uma demanda de saber (Lacan, 1998b), ou seja, ela funda um sujeito marcado pela relao constitutiva com o Outro, mas ancorado no em uma garantia de um saber absoluto, mas, pelo contrrio, na falta, na diviso spaltung que implica a relao do sujeito com o desejo do Outro. Nesse sentido, ao contrrio de como se apresenta em Descartes, o saber do Outro no garante uma sutura da clivagem do sujeito, j que no sabe toda a verdade. O sujeito a no se apresenta como uma substncia, mas em sua evanescncia, em sua pulsao inconsciente: falta ao Outro o significante que representa o sujeito de forma absoluta, um fato de estrutura, e que define o desejo do Outro (Baas & Zaloszyc, 1996, p. 2).

    Essa perda originria define o saber para a psicanlise como a causa e o efeito de uma perda entrpica. Ele se constitui a partir de uma impotncia diante da verdade, mesmo que desencadeie uma busca em recuperar esse resto a que no conseguiu dar significado.Lacan j havia sugerido que o saber produz uma entropia (Lacan, 1992, p. 46), no sentido que ele no alcana todo o sentido da verdade (p. 48). A verdade, definida por ele

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    como no-toda (Lacan, 1985), mantm um trao do real, o que determina que no pode ser toda dita, no pode ser toda transcrita para o campo do simblico; sempre deixa um resto: o objeto pequeno a. A verdade delata uma impotncia (Lacan, 1992, p. 49) prpria do saber. Assim, a onipotncia reativa e reacionria dos saberes modernos ilustrados pelos projetos polticos modernos, pelos discursos cientficos e pelos discursos universitrios (no sentido que Lacan d ao discurso universitrio) busca recobrir imaginariamente uma impotncia estrutural.

    Universidade, cincia e a no relao sexual

    Essa foracluso do sujeito e essa relao de totalizao entre o saber e a verdade sustentam tambm outra tica, de forma que, sustentados pela topologia do discurso universitrio (Lacan, 1992), observamos a produo de saberes-teorias que nada querem saber do sexual, ou melhor, da no-relao sexual (Lacan, 1985, 2003).

    Amparados por uma concepo do sujeito cognitivo, lanam-se em uma empreitada inglria para desconhecer ou governar o real do corpo, do sexo e da morte. O cognitivismo a mais recente ideologia que anima a ideia capitalista e esttica de um sujeito sem desejo e sem gozo, e que, por isso mesmo, poderia ser reprogramado para melhor desempenho; trata-se de uma nova Weltanschauug (Freud, 1933/1976a) de uma viso de homem contempornea que o situa analogamente a um computador.

    Para a psicanlise, a relao do sujeito com o saber implica o desejo e o gozo, pois atravessa seu corpo na encarnao da letra no real do corpo fazendo bordas em seus orifcios pulsionais. No se trata de uma capacidade cognitiva, seno de uma linguisteria, ou uma alngua (Lacan, 1985, 2003), como sugere Lacan, que no pode ser

    considerada sem sua funo de grafia do real do gozo e do corpo, portanto, no possvel falar ou pensar sem considerar o desejo e o gozo. por isso mesmo que o pensamento gozo (Lacan, 1985). Obviamente, isso subverte toda a nossa tradio cartesiana e tambm universitria relativa ao saber e ao pensamento.

    Essa a grande intruso da psicanlise na cena filosfica e poltica contempornea: Lacan invade o problema filosfico secular da verdade com a dimenso do gozo. A psicanlise recoloca em questo variveis que no foram consideradas pelo pensamento poltico e filosfico tradicional: uma lgica inconsciente e o gozo da originado. Introduz, assim, a problemtica do gozo na relao do sujeito com a estrutura de linguagem, com o pensamento e com a verdade, uma intruso, portanto, do gozo na relao entre o saber e a verdade. Diz Lacan: O inconsciente no que o ser pense... o inconsciente que o ser falando, goze e... no queira saber de mais nada disso (Lacan 1985, p. 143)3.

    A verdade, assim considerada, ultrapassa a lgica filosfica do pensamento; sempre se encontra em uma relao discursiva com o saber e com o gozo, ou seja, ela implica sempre uma impossibilidade, no s de tudo saber mas tambm de tudo gozar.

    A relao discursiva que Lacan estabelece entre o saber, o gozo e a verdade diz respeito, portanto, aos limites e s bordas possveis na relao impossvel com o real: O real no antes de mais nada para ser sabido, diz Lacan (2003, p. 442), insinuando que no se trata de sab-lo, mas de bordej-lo. A verdade no passa de um lugar no discurso que delata a impotncia em tudo-saber, ou de diz-la toda; a verdade no-toda (Lacan, 1985). Dependendo de como se trata essa incompletude, podemos caracterizar os discursos, pois existem aqueles que supem t-la encontrado, ou que propem

    3 Encontramos essas relaes entre o

    sujeito, o saber, a verdade e o gozo na

    disposio topolgica sugerida por Lacan

    para os discursos radicais (Lacan,

    1992): um lugar do agente do discurso,

    que dependendo de qual significante

    ocupe esse lugar determina sua

    dominncia ; um lugar da verdade (sob a barra) que sustenta

    o lugar do agente; um lugar do outro, como o campo do

    saber e da linguagem e uma produo,

    como resto de toda operao significante.

    agente outro (saber) verdade

    produo (mais-de-gozar)

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    um projeto de encontro possvel, mas h tambm os que sabem e trabalham com essa impossibilidade. Essa incompatibilidade, contudo, produtiva, pois, como diz Lacan, muita coisa se fabrica a partir do fato de saber e verdade serem incompatveis (2003, p. 441).

    Politizar o saber, a verdade e o gozo

    H, como vimos, um movimento discursivo prprio do projeto poltico moderno que busca reinserir toda a verdade no campo do saber, almejando uma gesto e um controle plenos do real e do gozo. Isso fica claro nos projetos disciplinares e bio-polticos criados na modernidade, tais como os j citados acima: o alienismo, o higienismo, a medicalizao das condutas e dos corpos, o comunismo, o nazismo, e, mais contemporaneamente, o controle (Deleuze, 1992), prprio das sociedades ps-modernas. Esses exemplos comprovam a ironia de Lacan ao afirmar que a verdade suporta tudo: a gente mija, tosse e cospe nela (2003, p. 440).

    De acordo com a forma como cada discurso trata essa relao entre o saber, a verdade e o gozo, so constitudas uma tica e uma poltica peculiar. Os saberes, entretanto, podem movimentar-se dentro das mais variadas posies discursivas em um movimento pendular que no excludente das outras posies; os giros discursivos no so excludentes.

    O carter poltico intrusivo da psicanlise e por isso mesmo rechaado acusar a sutura simblica ou imaginria na qual os discursos podem incorrer no af de grafar uma verdade, diante dessa impossibilidade marcada pelo real. Esse descompasso, esse desencontro fundamental entre o saber e a verdade no evita o agenciamento e a capitalizao da angstia que da resulta; pelo contrrio, isso funciona como causa

    desses movimentos discursivos. A verdade, em sua face de real, em sua impossibilidade estrutural, pode ser manipulada poltica e discursivamente, dependendo de onde esteja situada, de onde se localize o saber e o gozo que lhe concernem. Como indica Lacan, nessa articulao com o real que se encontra a incidncia poltica em que o psicanalista teria lugar, se fosse capaz de faz-la (2003, p. 443).

    Como vimos, as iluses e as ideologias religiosas e polticas, assim como a prpria estrutura discursiva da cultura, retiram da sua fonte. Mais do que isso, pode-se pensar que o lao social seja uma tentativa de, apesar da impossibilidade de encontro com o outro, ainda assim, fazer lao; por isso, possvel introduzir a dimenso do gozo em sua correlao com uma lgica e com uma topologia do lao social.

    A psicanlise, em sua intruso poltica, acusa o fracasso das totalizaes, mesmo que isso signifique dar um tiro no prprio p, j que acusa tambm o fracasso de sua prpria suposio de cura. nesse sentido que afirmamos que a psicanlise desvela a verdade da poltica. ela prpria o retorno de uma verdade poltica, um sintoma da modernidade (Lacan, 2004).

    A intruso qual Lacan se refere uma intruso do gozo nos discursos, que sinaliza uma disjuno inevitvel entre o saber e a verdade. Como j afirmamos, o gozo se apresenta como um intruso tanto no corpo como na poltica, porque, paradoxalmente, o que faz girar os discursos, mas, ao mesmo tempo, o que parece ser escamoteado por eles. Se no h discurso que no seja do gozo, na condio de rechao desse real, desse elemento intruso, que os discursos com ele lidam, na tentativa v de grafar o todo do gozo ou de dissolver no simblico, ou no imaginrio o real de sua impossibilidade.

    Esses exemplos comprovam a

    ironia de Lacan ao afirmar que

    a verdade suporta tudo: a

    gente mija, tosse e cospe nela (2003, p. 440).

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    a partir dessas relaes entre o saber, a verdade e o gozo que devemos entender a complexidades polticas e discursivas entre psicanlise e Universidade, pois, por um lado, parece-nos importantssimo que se escute e se considere mesmo com as incompatibilidades discursivas os efeitos politizantes da introduo desses limites e dessa impossibilidade entre o saber e a verdade nas instituies universitrias. preciso estar no meio universitrio para anunciar politicamente que todo discurso gira em torno de uma impossibilidade, que paradoxalmente o anima, e que todo discurso que implique uma pretenso de totalidade, ou de universalizao como em uma Weltanschaung est fadado ao fracasso, mesmo que seja esse fracasso o

    que anima e causa uma busca incessante dos discursos em reinserir esse pedao do real em sua linguagem.

    Por outro lado, a psicanlise no pode prescindir de ocupar seu lugar nessa composio moderna dos discursos, sob pena de ser posta em uma condio de prtica esotrica e artesanal. Por mais que seja crucial manter uma posio singular na clnica, seria uma ingenuidade discursiva perder seu lugar poltico na ordem dos discursos. Se os discursos no so excludentes, eles animam uma lgica poltico-discursiva inevitvel na modernidade. Recus-la seria fechar-se em um anacronismo romntico e politicamente inocente, o que no nada analtico...

    O Saber e a Verdade na Psicanlise e na Universidade

    Leonardo J. B. Danziato PSICOLOGIA:

    CINCIA E PROFISSO, 2012, 32 (4), 872-881

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    Leonardo J. B. Danziato Psicanalista com formao em Psicologia pela Universidade Federal do Cear; Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Cear; Professor Titular da Graduao e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade de Fortaleza, Fortaleza CE Brasil.E-mail: [email protected]

    Endereo para envio de correspondncia:Rua lvaro Correia, 455, AP 801 bloco Malta Varjota, Fortaleza/CE. CEP: 60165-230

    Recebido 12/02/2010, Aprovado 31/07/2012.

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