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OSCAR CULLMANN DAS ORIGENS DO EVANGELHO À FORMAÇÃO DA TEOLOGIA CRISTÃ

Das Origens Do Evangelho - Oscar Cullman

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OSCAR CULLMANN

DAS ORIGENS DOEVANGELHOÀ FORMAÇÃO DA TEOLOGIA CRISTÃ

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4 O s c a r   C u l l m a n n

© Copyright 2000 by Editora Cristã Novo Século

Tradução: Daniel Costa 

 Editores:

Eduardo de Proença

 Revisão:

Cely Rodrigues

Composição e arte final:

Comp System - Tel.: (11) 3106-3866

 Diagramação:

Pr. Regino da Silva Nogueira

Capa:Eduardo de Proença

ISBN 85-86671-10-X

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa

 da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).

Todos os direitos reservados à

FONTE EDITORIAL Rua Barâo de Itapetininga, 140 - Loja 4 

Cep 01042-000 - Sâo Paulo, SP Tel.: (0xxll)3151-4252  E-mail: [email protected]  www.fonteeditorial.com.br

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ÍNDICE GERALPág.

INTRODUÇÃO ................................................................................ 7

1. A SIGNIFICAÇÃO DOS TEXTOS DE QUMRAN PARA

O ESTUDO DAS ORIGENS CRISTÃS ................................. 9 A vida  ........................................................................................ 12O pensamento  .......................................................................... 13

2. A OPOSIÇÃO AO TEMPLO DE JERUSALÉM,MOTIVO COMUM DA TEOLOGIA JOANINA E

DO MEIO AMBIENTE .......................................................... 29

3. SAMARIA E AS ORIGENS DA MISSÃO CRISTÃ............51

4. O CARÁTER ESCATOLÓGICO DO DEVERMISSIONÁRIO E DA CONSCIÊNCIA APOSTÓLICA

DE PAULO ..............................................................................   611. Crítica das duas principais hipóteses sobre o obstáculo

de 2 Ts 2.6-7 ...................................................................... 632. Ponto de partida e enunciado da solução proposta ...........673. O “obstáculo” e a escatologia judaica.............................. 714. A pregação aos pagãos considerada como prelúdio da

era messiânica nos escritos do cristianismo primitivo,fora das epístolas paulinas ................................................ 78

5. O obstáculo e o caráter escatológico do apostolado dePaulo ..................................................................................... 83

5.  Eiõev Kwevnu7zevaev.  A VIDA DE JESUS, OBJETO

DE “VISÃO” E DE “FÉ” SEGUNDO O QUARTOEVANGELHO .......................................................................... 93

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6 O s c a r   C u l l m a n n

6. O RESGATE ANTECIPADO DO CORPO HUMANOSEGUNDO O NOVO TESTAMENTO.................................   105

7. O BATISMO DE CRIANÇAS E A DOUTRINA BÍBLICADO BATISMO ......................................................................... 1171. O fundamento do batismo: a morte e ressurreição de

Jesus Cristo ......................................................................... 1182. O batismo, agregação ao corpo de Cristo.......................129

3. O batismo e a f é ............................................................... 1504. O batismo e a circuncisão................................................1585. Conclusão ......................................................................... 1716. Apêndice: Os indícios de uma antiga fórmula batismal

no Novo Testamento........................................................... 172

8. IMORTALIDADE DA ALMA OU RESSURREIÇÃODOS MORTOS? ..................................................................... 1831. O último inimigo: a morte. Sócrates e Jesus........................1852. O salário do pecado: a morte. Corpo e alma. Carne

e espírito ............................................................................. 1913. O primogênito dentre os mortos. Entre a ressurreição de

Cristo e o aniquilamento da m orte........................................1974. Os que dormem. Espírito Santo e estado intermediário

dos mortos ......................................................................... 2025. Conclusão ........................................................................... 208

9. DUAS MEDITAÇÕES BÍBLICAS........................................... 211

1. Meditação sobre 1 Co 1.10-13............................................. 2112. Meditação sobre 1 Ts 5.19-21.........................................   215

ÍNDICE DE NOMES ..................................................................221

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INTRODUÇÃO

 Nossa primeira grande obra fo i aquela na qual consa

 gramos, há uns quarenta anos, as relações entre o gnosticismo e  o judaismo-cristianismo (Le problème littéraire et historique du roman pseudo-clémentin. Paris, 1930,);  a mais recente  (Le salut dans1’histoire. Neuchâtel, 1966) contém uma espécie de síntese da teo

logia do Novo Testamento. Entre estes dois trabalhos, à primeira vista tão diferentes dado os seus respectivos objetos, publica

 mos, a par de outros livros, uma série de estudos especiais cuja  aparição se dispõe ao longo de muitos anos e que tratam igual

 mente destes dois objetos; por um lado, as correntes particula

 res de certos meios cristãos dos primeiros tempos, se relacionam  com um judaísmo mais ou menos esotérico que parece ser o ber

 ço do cristianismo; por outro, a elaboração de uma teologia  cristã na qual encontramos os grandes temas dos escritos neo-  testamentários.

 Esta dupla classe de problemas concernentes à origem his

 tórica do cristianismo, e ao pensamento do Novo Testamento,  continua preocupando-nos simultaneamente até hoje, e o pre

 sente volume é um testemunho claro desta simultaneidade. Porém,  não terá esta dupla classe de problemas relação uma com a  outra? Nós pensamos que sim. Os trabalhos reunidos nesta nova  obra de “estudos bíblicos” põe em manifesto precisamente o laço de união entre as duas: a evolução que vai das fontes do evangelho, desde as suas raízes mais distantes e anteriores à vinda de Jesus Cristo, até a fixação de uma teologia cristã.

Temos acoplado, ao final do livro, duas meditações pronun

 ciadas na ocasião da abertura das reuniões anuais da Socieda de de Estudos do Novo Testamento em Lovaina  (1964J e em  Heidelberg  (1965/  dada a importância que tem para nós a cola

 boração tão necessária entre os exegetas da Bíblia.

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1

A SIGNIFICAÇÃO DOS TEXTOS DE QUMRAN PARA O ESTUDO 

DAS ORIGENS CRISTÃS

Segundo o historiador Ernest Renan, o cristianismo, no princípio, não foi mais que uma forma de essenismo, “um essenismo quehavia sobrevivido por longo tempo”. Na mesma linha de pensamentoe a título de curiosidade, pode-se também mencionar o fato de que E.Schuré, autor dos Grands Irtitíes, sustentou, sem dar por outro lado

 prova alguma, a tese de que Jesus havia sido iniciado nas doutrinassecretas dos essênios. Com efeito, nem Renan nem Schuré tiveramconhecimento dos textos do Mar Morto. Certamente, já se sabia,

 pelas descrições de Josefo e de Filo, que os essênios possuíamdoutrinas secretas e os manuscritos de Qumran o confirmam. Porémé cair em especulação desprovida de todo fundamento querer

 pretender que Jesus tenha sido, como membro da comunidade essênia,iniciado nestas doutrinas secretas. Nem no Novo Testamento nemnos escritos judaicos encontramos alusão alguma a tal coisa. E quanto

à questão de saber se é possível - baseando-se nas afinidades queexistem entre o pensamento essênio, agora melhor conhecido, e oensino de Jesus - concluir indiretamente que Jesus tenha conhecidoa doutrina da seita, teremos ocasião de voltar sobre isto mais adiante.

De imediato, queremos insistir que é importante estabeleceruma distinção entre as duas seguintes questões: Jesus foi um essênio?

Existe um laço entre os essênios e os primeiros cristãos? Na realidade, sempre se pensou - prescindindo do problemados essênios - que o cristianismo primitivo fincava suas raízes, nãono judaísmo oficial, mas em um meio judaico mais ou menos esotérico.

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10 O s c a r   C u l l m a n n

Isto, por outro lado, não implica de nenhuma maneira que o cristianismo primitivo não tenha contribuído com algo essencialmente novo no

que diz respeito as suas origens judaicas.Em nosso livro sobre as cartas Pseudo-Clementinas, escritos

 judaico-cristãos nos quais a parte arcaica (os  Kerigmata Petrou) conservou antigos elementos do judaismo-cristianismo primitivo,sustentamos a tese de que elas continham, à margem do judaísmo,uma espécie de gnosticismo judaico que, à primeira vista, deveria ser

considerado como o berço do cristianismo dos primeiros tempos1.Com efeito, sendo o fato de que este gnosticismo judaico já acusauma influência helenistica, devemos considerar toda a questão dasrelações entre judaísmo e helenismo sob uma perspectiva completamente diferente da costumeira. Antigamente, tão logo se descobriaminfluências helenísticas nos escritos do Novo Testamento, se concluia

imediatamente que esses escritos deviam ser de redação recente.Este é o caso, em particular, do evangelho de João. Sob o pretexto dadescoberta de elementos helenísticos neste Evangelho, deduziu-seque isto era a prova mais contundente de sua origem tardia. Na basedesta conclusão inexata se encontra uma concepção, ao menos,demasiadamente esquemática das origens do cristianismo, a saber, a

idéia de que em seus cgmeços, o cristianismo era simplesmente judaico e que só mais tarde se tomou helenístico. Este erro fundamental implicou toda uma série de outros erros, como por exemplo asuposição de que a heresia chamada gnóstica não havia aparecidosenão mais tarde n®s meios helenísticos situados fora da Palestina.O fato de que o gnosticismo, ali onde nós o encontramos pela primei

ra vez no Novo Testamento, se encontre em estreita relação com o judaísmo, prova que esta concepção é errônea. Houve um gnosticismo judaico  antes do gnosticismo cristão, da mesma forma que houveum helenismo judaico antes de um helenismo cristão.

A evolução geralmente admitida e que vai de um cristianismo judaico a um cristianismo helenístico universal ulterior, é um esquema

artificial que não corresponde de modo algum à realidade histórica. Nós veremos, com efeito, que estas duas tendências existiram

1 O. CULLMANN,  L e problè m e et histo riq ue du roman pseudoclé m entin.  Étude sur lerapport entre le gnosticisme et le judéo-christianisme. Paris, 1930.

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I ) \ s ( ) r ic ,e n s  d o  E v a n g e l h o à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r j s t ã 11

simultaneamente na Igreja primitiva e que a história do cristianismo primitivo é a interferência destas duas tendências, ambas presentesdesde a origem na Igreja palestina.

O fato de que o cristianismo palestino pôde adotar certoselementos helenísticos que ultrapassam os limites das fronteirasnacionais do judaísmo era conhecido antes do descobrimento dosnovos textos, e estes últimos não fazem senão confirmá-los. Comeleito, graças ao descobrimento dos textos chamados “mandeos” ea sua publicação por M. Lidzbarski por volta de 1920, ficamos sabendoda existência de um movimento batista judeu pré-cristão, espalhadona Palestina e na Síria2, que deve ter, de uma maneira ou de outra,exercido alguma influência sobre os discípulos de João Batista comotambém sobre os de Jesus. Ademais, houve sem dúvida um laçoentre o cristianismo primitivo e a literatura judaica tardia e um poucoesotérica de Enoque. Pois esta forma de esperança messiânica naqual a espera do filho do homem vindo sobre as nuvens situando-seem lugar da espera de um messias nacional judeu, se encontra somentena periferia do judaísmo e mais particularmente nos livros de Enoque.Pois bem, esta forma de esperança messiânica é a que encontramosnos evangelhos.

Todavia, nos faltava até agora o ponto exterior de referênciaque nos permitisse estabelecer o laço de união entre o cristianismo

 primitivo e esta forma desviada de judaísmo. A seita dos essênios,agora melhor conhecida, nos oferece este ponto?

A primeira vista, parece haver um analogia entre esta seita e o Novo Testamento, pois o “mestre de justiça” dos novos textos é objetode uma veneração especial que parece conferir-lhe um carátermessiânico. Através do livro de Atos (cap. 5) e Josefo, sabemos queantes de Jesus, haviam homens como Judas e Teudas que arrogavama si próprios um poder especial. E todavia, veremos que é

 precisamente neste ponto onde o cristianismo se diferencia das seitas judaicas. Ao nosso ver, não é na analogia entre o mestre de justiça eJesus, nem na maneira como seus discípulos conceberam sua pessoae sua obra, onde residem os pontos de contato entre os doismovimentos, mas, antes, nas outras doutrinas, e em primeiro lugar,

2 Cf. J. THO M AS,  L e m ouvem ent bapüste en P ale stine et Syrie ,  1935.

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12 O s c a r   C u l l m a n n

na vida e organização das comunidades, ainda quando também aíencontramos diferenças.

I

Falaremos antes de tudo, das afinidades e das diferenças quese manifestam na vida e na organização das comunidades.

 A vida

Em primeiro lugar, convém assinalar o nome que se dava à seita judaica. Ela levava, entre outros, o título de “nova aliança” . Em gregoestas palavras eqüivalem a kainê diathêkê que por sua vez podem sertraduzidas por “Novo Testamento”. Encontra-se, também a expressão

“os pobres” que, nestes textos, se converteram quase em um nome próprio para designar a este grupo3. Encontra-se, também este nomeno Novo Testamento, na Epístola aos Romanos è aos Gálatas, paracaracterizar os primeiros cristãos. Mais tarde, deve ter sido atribuídoao resto da comunidade de Jerusalém que toma o nome de ebionitas.Esta palavra “ebionita” significa precisamente “os pobres” .

O banquete comunitário da seita de Qumran apresenta muitasanalogias com a festa eucarística dos primeiros cristãos4. Tem caráteressencialmente sagrado e só depois de um noviciado, os novosmembros tinham o direito de participar. Pronunciava-se uma bençãosobre o pão e o vinho. É possível igualmente que os essênios tenhamtido banquetes sem vinho5dos quais se encontram vestígios no “partir

do pão” da Igreja primitiva. Um fragmento de Qumran, designado pelo nome de “fragmento das colunas”, faz alusão à presença domessias durante o banquete.

Os banhos ou batismos, que se encontram no centro da vidacultural da seita judaica, diferem tanto do batismo cristão como doadministrado por João, pois são repetidos. Todavia são, em certo

3 K. ELLIGER, Studien zum Habakuk-Kommentar vom Toten Meer ,   1953, 222.4 K. G. KUHN, Über der ursprünglichen Sinn des Abendmabls und sein Verháltnis zu  

den Gemeinschctftsmablen der Sektenschrift:  EvTh (1951) 508 s.5 Ver as frases alternativas no  Manual de disciplina,  Vi, 4-6, “pão ou  vinho”; “pão e  vinho”.

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Da s O r ig e n s d o E v a n g e l h o à F o rm a ç A o d a T e o l o g i a C r i s t à 13

sentido, paralelos pois servem de rito de iniciação: a primeira admissãoa estes banhos era o sinal da entrada na comunidade.

Segundo Josefo e os novos textos, a  comunhão dos bens, regulamentada até em seus mínimos detalhes, é uma das características da ordem. O paralelismo com o cristianismo primitivo é aqui particularmente surpreendente. A pobreza como ideal religioso, seencontra tanto num como noutro grupo6. E todavia, sobre este pontotambém é necessário sublinhar uma diferença importante: na seita

essênia a comunhão dos bens é obrigatória e organizada. Os textosnos falam do ofício especial do administrador do bem comum. Pelocontrário, na Igreja primitiva, a comunhão dos bens era livre, tal comose deduz do livro de Atos. E considerada como uma obra do Espírito.Impulsionado pelo Espírito, o cristão deposita seus bens aos pés dosapóstolos. Esta é a razão porque Pedro qualifica de “mentira contra

o Espírito” a astúcia de Ananias e Safira. O apóstolo lhes declaraexpressamente que poderiam guardar seus bens, porém que nãodeveriam pretender tê-los dado todos, enquanto que, secretamente,tivessem retido uma parte.

Outro caso paralelo todavia é: o grupo dos doze apóstolos edos sete helenistas que na organização da seita7é uma questão de

 doze  mais três. Os três sacerdotes podem ter sua correspondêncianas três “colunas” de G1 2.9 s.: Tiago, Cefas e João8.

O pensamento

Se se quer comparar o pensamento dos dois grupos, é necessário

levar em conta o Evangelho de João. Desde o princípio, se temcomprovado que, mais que os outros textos do Novo Testamento,este evangelho pertence a um ambiente ideológico estreitamente

S. E. JOHNSON, The D ead Sea M anual o f Discipl ine and the jerusalem Church o f    Acts:  ZAW (1954) 110, reconhece todavia que, no manual de disciplina, a enfase é

 posta sobre a vid a com unitária e não so bre a pobreza enquanto tal.7 Sobre a orga nizaç ão, ve r BO R EIC KE ,  D ie Verfassung d er U rgenein de im L ich te  

 jiidscher D okumente : ThZ (1954) 95 s., e J. DAN1ELOU,  La communauté de Qunrâm et Vorganization de VEglise ancienne:  RHPR (1955) 104 s. Daniélou mostra que há

uma semelhança entre as duas organizações na coexistência de instituição e de carismas.

KS. E. JOHNSON, o. c., 111.

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aparentado com aquele dos novos textos9.0 dualismo joanino da luz edas trevas, da vida e da morte, encontra seu paralelismo nos textos deQumran. O prólogo do Evangelho tem sua correspondência em uma

 passagem da Regra (XI, 11) onde o pensamento divino aparece comomediador da criação. K. G. Kuhn, com razão, concluiu que as formasde pensamento da seita de Qumran são, por assim dizer, o terreno noqual o quarto evangelho finca suas raízes10. Evidentemente aí, também,há diferenças capitais em relação ao ensino essencial de Cristo.Devemos sublinhar sem descanso, por sua vez, as afinidades e asdiferenças essenciais.

Isto se aplica igualmente ao ensino de Jesus tal como nos éoferecido pelos sinópticos e que apresenta também muitos pontos decontato. A concepção de pecado e graça, nos novos textos, não é a

dos fariseus, pois se aproxima mais do Novo Testamento. Há naregra semelhanças evidentes com o sermão do monte.O juízo de Jesus sobre o templo nos sinópticos - e referido por

João sob uma forma todavia mais dura - corresponde à atitude dosessênios com relação ao ao templo e ao culto sacrificial".

As diferenças são mais notáveis sobretudo em relação à atitude

face à lei. A independência de Jesus face à lei não tem equivalentenos textos de Qumran. Enquanto que Jesus expressa claramente seudireito com autoridade, nas fortes antíteses do sermão da montanha(“eu porém vos digo...”), olhando acima da lei até em suas intenções,o mestre de justiça não oferece nada similar. Ao contrário, os novostextos são, de fato, a expressão mais característica da piedade

legalista do judaísmo. O legalísmo é levado aos seus extremos. Bastacomparar as palavras e atitudes de Jesus frente ao sábado com asregras sabáticas do manuscrito de Damasco (XI, 130). Não se poderiaimaginar um contraste maior.

’ K. G. KUHN,  D ie Palã stin a gefu ndenen hebrãischen Texte und das N eu Testament :ZThlrch (1950) 193 s.

10 Ib id .

11 Segundo FILO , Quod omnis probus l iber ,  parágrafo 75, os essênios recusavam os

sacrifícios de animais. Segundo um texto muito pouco claro de Josefo, Ant. XVIII, I,

5, os essênios enviavam presentes ao templo, porém não participavam do culto no

templo. Os novos textos publicados até agora não contém passagens que recusem

explicitamente o culto do templo Todavia cf M anual de disc ip lina IX 3 s

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I >is O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 15

Jesus recusa igualmente o ascetismo que era tão importante para os essênios. Ele foi chamado “de comilão e de beberrão”.

Ao mesmo tempo não quer saber nada de doutrinas secretas, poisordena a seus discípulos proclamarem sobre os telhados o que ele osensina. Isto é exatamente o contrário do que estava imposto aosmembros da seita de Qumran.

Também se encontram evidentes pontos de contato com o pensamento paulino. E é uma vez mais o lado anti-fariseu da teologia da

seita que, até um certo ponto, concorda com a doutrina da justificação. No Comentário de Habacuque se encontra uma passagem querefere a justificação ao mestre de justiça sob uma forma quase idêntica a um texto decisivo de Paulo. As palavras bem conhecidas de1labacuque, “o justo viverá pela fé”, são explicadas assim: “Isto significa que ele viverá pela fé no mestre de justiça”. Todavia, esta fé no

mestre de justiça não é, como para Paulo, a fé em um ato de expia-ção pela morte de Cristo para o perdão dos pecados. Na realidade, oconceito de fé em si mesmo é diferente, pois não se encontra neleindício de uma oposição às obras da lei. E quanto às passagens éticas ou parenéticas das cartas de Paulo e de outros escritos cristãos primitivos, estes oferecem os paralelos mais desconcertantes comos desenvolvimentos análogos em relação aos novos textos.

n

E agora, como explicar a estreita afinidade e também as diferenças fundamentais que existem simultaneamente entre estes movi

mentos?Antes de tudo, convém assinalar que um movimento pode muito bem relacionar-se com outro ao encontrarem-se ambos, ao mesmotempo, em oposição evidente com um terceiro. Perguntamo-nos, em primeiro lugar, se é possível descobrir as provas de uma relação exterior entre estes movimentos. Temos que notar que os essênios não

são mencionados em nenhuma parte do Novo Testamento, enquantoque os fariseus e os saduceus figuram freqüentemente como adversários. Porém, seria falso concluir que não pode existir nenhum contato entre os essênios e os primeiros discípulos de Jesus. De fato, setem sustentado totalmente o contrário, a saber, que se os essênios

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16 O s c a r   C u l l m a n n

não são mencionados é precisamente porque os primeiros cristãosse encontravam em estreito contato com eles. Jesus e os apóstolos

não tiveram necessidade de combatê-los pela simples razão de queeram muito próximos uns dos outros.É possível imaginar que, por meio de João Batista, o pensa

mento e as práticas essênias tenham penetrado no cristianismo nascente. Sabemos, com efeito, pelo Evangelho de João, que os primeiros discípulos de Jesus, tinham sido antes discípulos de João Batista.

O mesmo Jesus parece ter sido no começo também seu discípulo.Porém, nem todos os discípulos de João seguiram a Jesus. Os Sinópticos nos referem que, durante o ministério de Jesus, existiu todaviaum grupo de discípulos de João. E a literatura cristã primitiva nosrevela ademais que, depois da morte de Cristo, esta seita do batistafoi uma espécie de rival da Igreja primitiva12. Os escritos mandeos,

sem dúvida posteriores, contém certamente muitos elementos antigos13que se remontam a esta seita, a qual, depois da morte de Jesus,continuou considerando João Batista como o verdadeiro messias, e,

 por conseguinte, recusava-se a reconhecer a autoridade de Jesus(de fato, ela o acusou de ser um falso messias). Estas idéias devemter alcançado uma ampla difusão nos meios onde o Evangelho de

João foi redigido, pois este sublinha intencionalmente o fato de queJoão não era a luz, mas que tinha vindo para dar testemunho da luzque apareceu em Cristo. O prólogo do quarto evangelho combateimplicitamente os discípulos do batista14, e se pode seguir esta tendência polêmica por todo o evangelho. Aos discípulos de João que afirmam a supremacia de seu mestre sobre Jesus baseando-se no fato de

que este último tinha aparecido depois de João, o Evangelista responde declarando que na realidade Jesus existia antes do Batista, postoque, desde o princípio, Ele existiu como Logos, junto a Deus15.

12 Especialmew nte Ps. Ciem. Rec.  I, 54, 60.13 H. LIETZM AN N, Sitzungsber, d. Berl. Ak. d. Wissensch,  1930, se nega a reconhecer

a antiguidade das fontes a partir dos escritos m andeos (sobre tudo contra BU LTMA NN,

 D ie Bedutuhg der N eurschlo ssenen M andãischen Q uellen fü r das Versatãndnis des  J o h a n n e s -E v .:   ZNW [1925] 100 s . ? ) Po rém, os es tudos mai s r ecen tes t êmconfirmado o fato de que a literatura mandea contém materiais muito antigos.

H W. BADENSPERGER,  D er P rolog des vie rten Evangelium s,  1898.15 Cf. O. CULLM AN N,  H o opiso mou erchomenos,  em Festschrift für A. Fridrichsen. 

Coniectanea Neotestamentica, 1947, 26 s. As Pseudo-clementinas vâo mais longe

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I ) a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 17

Apesar desta argumentação, é exato concluir que houve umacomunidade de discípulos de João antes da comunidade de discípulos

de Jesus, e que, segundo o Quarto Evangelho, Jesus e seus primeirosdiscípulos procedem do movimento batista. O discípulo anônimo deJoão (1.40) é um antigo discípulo do batista, o mesmo que André. E a julgar por Mt 11.11, o próprio Jesus seria considerado como umdiscípulo de João. Com efeito, nesta passagem que se traduznormalmente de uma maneira inexata, Jesus declara: “Aquele que é

o menor (isto é, Jesus enquanto discípulo) é maior que ele (JoãoBatista) no reino dos Céus”.16

Do que foi dito resulta que, se pudéssemos realmente estabelecer um vínculo entre os essênios e os discípulos de João Batista,haveríamos de encontrar ao mesmo tempo um meio de união entreos essênios e os discípulos de Jesus. Porém, um vínculo tão direto

não pode ser provado de maneira peremptória. O batismo de Joãodifere daquele realizado pelos essênios, pois o dele não se administrava mais que uma só vez. Não obstante, tal como já mencionamos,a admissão ao batismo eqüivalia para os essênios à admissão em suacomunidade, isto é, assinalava a entrada do batizado na vida dacomunidade. Existe então um paralelismo entre João Batista e os

essênios; e o batismo de João pode muito bem ter sua origem nomovimento batista já existente. Pode-se ver a confirmação disso nofato de que os escritos mandeos apresentam concepções análogasàquelas dos textos de Qumran17. Ademais, o Evangelho de Lucasnos refere que antes de começar a batizar, João vivia no deserto deJudá (3.2). Pois bem, neste deserto se encontra o convento dos

essênios com suas cavernas. É praticamente impossível supor queJoão tenha podido viver ali sem entrar em contato com a seita.Se bem que se possa presumir que sem chegar a ser membro, eletenha sido influenciado pela seita, ainda quando ele próprio tenha

era sua polêm ica contra a seita de João Batista. Enquanto que o Q uartoEva

tem um a atitude de recusa mais voltada aos mem bros da seita, estes escritos juda icristãos atacam o próp rio João B atista, con siderand o-o com o um falso profeta damesma estirpe de Caim, Esaú e o Anticristo.

16 Ibid.17 Falta todav ia uma com paração c om pleta dos escri tos de Qum ran com a l iteratura

mandea que nos seria muito útil.

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18 O s c a r   C u l l m a n n

fundado um movimento messiânico independente. Outra afinidadecom a seita aparece igualmente em seu ascetismo. Até mesmo aorigem sacerdotal de João deve ser mencionada, se se pensa naimportância dos sacerdotes na vida da seita18.

Dizer algo mais sobre este fato particular, é muito difícil. Detodas as maneiras, seria possível explicar a classe de influência indiretado essenismo sobre as origens do cristianismo. No momento deconcluirmos esta exposição, sublinharemos um ponto particular que

 poderá ter sua importância até falarmos de outros contatos talvezmais diretos entre os essênios e os cristãos: por um lado, o interesseespecial que o quarto evangelho mostra por João Batista e sua seita;

 por outro, o paralelismo entre as concepções deste Evangelho e asdos mandeos19. Este evangelho aparece pois como um elo possívelna filiação: Qumran - João Batista - os primeiros cristãos.

Sendo muito cautelosos, poderíamos talvez encontrar outro ponto de contato entre a seita e o cristianismo nascente. Sabemosque os essênios tinham uma colônia em Damasço. Sabemosigualmente, pelo próprio Paulo, que este, depois de sua conversão,

 permaneceu em Damasco. Não seria possível então supor quedurante sua estadia nesta cidade, o apóstolo tenha tido contatos comos membros da seita? Não se podfe todavia responder com certeza aesta questão, e isto tanto menos pelo fato de que ignoramos o momentono qual os essênios tenham vindo à Damasco20.

Parece-nos mais provável ter que buscar o ponto de encontroentre os essênios e os primeiros cristãos nos  helenistas  sobre osquais o livro de Atos faz menção. Esta hipótese é a que queremossustentar neste artigo.

Estes helenistas não seriam precisamente o elo que nos falta entre os dois movimentos? Estes pertencem, desde o início, à primeiraigreja palestina, não têm, pois, origem na diáspora. E quanto ao papelque desempenharam no começo do cristianismo, deve ter sido muitomais importante do que faz supor o livro de Atos. De fato, são os verda

18 Pod e-se tamb ém, quiça, ci tar o texto profético, “p reparai o caminho do senh or” ,que se encontra em muitas passagens do  M anual de discip lina.

19 R. BULT MA NN : ZNW (1 925) 100 s.20 Cf. F. A. SCHILLING, Why did Paul go to D am ascusl : AnglThRev (1934) 199, e S.

E. JOHNSON, o. c., 177.

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I ) a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r is t ã 19

deiros fundadores da missão cristã, pois no momento da perseguiçãona qual Estevão perde a vida - perseguição dirigida contra estes enão contra os doze - começam a pregar o Evangelho em Samaria.

E não foi Paulo o primeiro que introduziu o universalismo nocristianismo, mas foram antes dele os helenistas, de cujo grupo sóconhecemos bem Estevão, que deve ter sido uma personalidadeexcepcional.

Estes helenistas, o mesmo que os essênios, recusavam o cultodo templo, e esta foi a razão pela qual foram muito depressa expulsosde Jerusalém. Os doze não estavam, sem dúvida, de acordo comestes sobre este ponto particular, senão não se compreenderia como

 puderam permanecer em Jerusalém depois de estalar a perseguiçãomencionada em At 8.1.

Os helenistas foram rapidamente deixados de lado e desapareceram do livro de Atos. São encontrados somente em At 9.29,onde vemos Paulo discutir com estes, e em At 11.2, onde lemos queos helenistas de Chipre e de Cirene se dirigem aos helenistas deAntioquia21. Os outros escritos cristãos não fazem acerca deles menção alguma, ao menos diretamente, e a razão é provavelmente que, àexceção do grupo joanino, os mais antigos escritos cristãos não se

apoiam sobre o testemunho deles, mas sobre o testemunho dos doze.De maneira geral, considera-se os  hellenistai de At 6.1 sim plesmente como os judeus que falam o grego; os hebraioi, em troca, judeus que falam aramaico. Porém, não temos nenhum documentoque nos proporcione a prova de que esse é o sentido verdadeirodesta palavra.  Hellenistai deriva do verbo  hellenizein que não signi

fica “falar grego”, mas antes “viver à maneira grega”. Por outrolado, estes não são originários da diáspora. Bamabé, que é chipriota,não é chamado helenista, como tão pouco Paulo e outros. Basta ler olivro de Foakes Jackson e Kirsopp Lake, The Beginnings of Chris-  tianity22  que trata esta questão em um apêndice, para dar-se contada confusão dos estudiosos que intentaram definir o caráter preciso

destes helenistas de At 6.1. Seja o que for, não se pode provar que a palavra  hebraioi se refira à língua falada pelas pessoas designadas

21 Nas duas passagens, outros lêem  Hellenes.

22 “Additional notes”, VII: The Hellenists, 59 s.

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20 O s c a r   C u l l m a n n

com este nome. A questão está, então, em saber se estes helenistasnão seriam os judeus diferentes do judaísmo oficial, com tendências

mais ou menos esotéricas de origem sincrética. Por que os judeusteriam outro termo para designar esta tendência?Em um artigo anterior23mostramos que o Quarto Evangelho

se interessa particularmente pelos helenistas e por sua obra missionária de pioneiros em Samaria. De fato, este Evangelho se propõereabilitar os helenistas. Não podemos reproduzir aqui toda a argu

mentação e remetemos o leitor a este artigo. Não aduziremos senãoàs conclusões que nos parecem mais apropriadas à nossa discussão.Em Jo 4.38, Jesus declara que não são os apóstolos, mas os

 outros •  AAoi os que inauguraram a missão em Samaria e que,então, os apóstolos “entraram” em seu trabalho. Esta situação corresponde exatamente ao relato de At 8 onde se refere que a missão

em Samaria foi inaugurada pelos helenistas, especialmente por Filipeque pertencia ao grupo dos sete (estes exercem provavelmente omesmo papel entre os helenistas que os doze na outra parte da comunidade). Segundo At 8.14, depois da conversão dos samaritanos, osdoze enviaram à Samaria Pedro e João que ratificaram, por assimdizer, esta conversão com a imposição das mãos. Estes “entraram”

assim efetivamente no trabalho dos  outros.  Os  outros  de Jo 4.38,devem ser, por conseguinte, estes helenistas dos quais a maior partesão anônimos. Estes são os verdadeiros missionários de Samaria.

Comprova-se com bastante freqüência que Lucas e o QuartoEvangelho utilizam as mesmas tradições. Assim não é de estranharque, sobre este ponto, o Evangelho joanino siga a tradição lucana

concernente ao laço que une os helenistas à Samaria, se bem que olivro de Atos minimize sua importância24.

Porém, não sem razão, o Evangelho de João mostra um interesseespecial pelos helenistas. Já temos feito constar que este evangelho

 parece ter estado em contato com a seita de João Batista à qual intentacombater. Agora podemos acrescentar que ele viu a luz nos círculos

que, como minoria, se encontravam muito próximos aos helenistas.

23 An nuaire de l ’école des hautes études (1953-54).24 Por outro lado, S. E. JOHNSON, o. c.,  107, estudou a relação entre o livro de Atos

e a seita de Qumran.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 21

Talvez devêssemos ir um pouco mais longe e nos perguntar se o pró prio autor não pertenceu ao grupo dos helenistas da Igreja primitiva25.

Pois tal como já temos visto, de todos os escritos cristãos primitivos, é justamente o quarto evangelho que apresenta uma afinidademais estreita com os textos de Qumran. Tal é a conclusão à que temchegado K. G. Kuhn pouco tempo depois do descobrimento dos rolosdo Mar Morto26. Por outro lado, nós já sabíamos há algum tempo queeste evangelho parece estar aparentado com outros escritos esotéricos judaicos tais como as Odes de Salomão  e os textos rabínicos decaráter místico27.

Portanto, é licito concluir que há um laço de afinidade primeiramente entre o quarto evangelho e os helenistas e, em segundo lugar,entre o quarto evangelho e a seita de Qumran. Todavia, nos faltaencontrar o ponto capital e típico que seja comum, por sua vez, àseita de Qumran, aos helenistas e ao quarto evangelho. Já fizemosalusão a esse ponto: a oposição ao culto do templo. Esta oposição éo traço característico dos helenistas ao mesmo tempo que a causado martírio de Estevão. Em seu discurso de Atos 7, Estevão faz um breve resumo da desobediência de Israel através de sua história.Esta desobediência obtém seu ponto culminante na construção dotemplo que é considerada como um ato da maior infidelidade28. Poresta mesma razão, os helenistas abandonam Jerusalém e se voltam

" Na mesma ordem de idéias, pode-se perguntar se os “gregos” que querem ver a Jesus(Jo 12.20) não são outros senão os helenistas pré-cristãos. Em todo caso é significativo que só o Quarto Evangelho mencione este incidente. Sem dúvida que se trataaqui de  H ellenes   como em At 11.20 onde a maior parte dos manuscri tos lêem amesma palavra e onde muito bem parece se tratar de helenistas. O que nos faz pensar

que Jo 12.20 diz respeito aos helenistas, é o fato de que estes “gregos” se dirigem aFelipe, que por sua vez se dirige a André antes de aproximarem-se com ele de Jesus.Pois bem, Felipe e André são, no grupo dos doze, os únicos que levam nomes gregos,e nós sabemos, por outro lado, que segundo o Quarto Evangelho, André ao menostinha sido discípulo de João batista antes de seguir a Jesus. E curioso comprovar queao contrário dos Sinópticos, o Quarto Evangelho faz, em intervalos, descriçõesdetalhadas do papel exercido por estes dois discípulos. Não é pois impossível pensarque esses dois discípulos tenham estado em contato com os helenistas judeus, ou se

até eles mesmos tenham formado parte pessoalmente desse movimento.K. G, KUHN,  D ie in P a lã s tin n a g e fu n d en en h eb rã ischen Texíe u n d das N eue  Testament,  193 s.

•' Cf. H. ODEBERG, The Fourth Gospel,  1929.•KS. E. JOHNSON, o. c., 113, menciona os paralelos interessantes entre o discurso de

Estêvão e o  M anual de discip lina.

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22 O s c a r   C u l l m a n n

em direção aos samari-tanos que eram, também estes, opostos aotemplo. E quanto aos essênios, sabemos que, sem irem tão longecomo os helenistas, mani-festam com respeito ao templo uma atitudemenos favorável que o conjunto do judaísmo29.

Podemos comprovar que o evangelho de João se preocupamais que os Sinópticos sobre a questão do templo. Por esta razão, jáno prólogo, o Logos encarnado se contrapõe indiretamente à Shekina (doxaj de Deus no templo. Em vez do tabemáculo (skêné) ao qual a

 presença de Deus estava ligada e da qual faz alusão o versículo 14,se vê aparecer a pessoa de Jesus Cristo. Dai o verbo eskênosen: “ele tem plantado sua tenda entre nós e temos visto sua glória”.O final de Jo 1.51 nos revela que o ponto de encontro entre o céu ea terra não esta limitado a um lugar santo tal como Betei, sobre oqual se faz alusão nesta ocasião (sonho de Jacó), mas que se encontraa partir de agora na pessoa do filho do homem sobre o qual ascendeme descendem os anjos do céu. Este interesse particular pelo temploexplica também porque o quarto evangelho, ao'contrário dos sinópticos,situa a cena da purificação bem no inicio do ministério de Jesus.E quanto às palavras relativas à destruição e a reconstrução do templo,elas não são postas na.boca de falsas testemunhas, senão na do

 próprio Jesus. Se se tem de crer na explicação que dá o evangelista,é o próprio Jesus quem, em seu corpo ressuscitado, substitui o templo.

Este mesmo interesse que o evangelista mostra pelo problemado culto se encontra por todo seu livro. Em nossa obraZas sacrements  dans Vevangile johannique  tentamos demonstrar que o batismo ea eucaristia devem ser considerados como a linha mestra da descrição

 joanina da vida de Jesus. O Evangelho ilustra esta idéia: o culto emespírito e em verdade deve substituir o culto do templo. E não é umasimples coincidência que as palavras sobre o culto verdadeiro seencontrem precisamente no relato do diálogo com a samaritana.E este mesmo relato, por demais, o que contém a alusão aos helenistas,adversários do culto do templo que inauguraram a obra missionáriaem Samaria, região hostil ao templo de Jerusalém, desde há muitotempo.

29  No que diz respeito à atitude dos essênios com relação ao culto do templo, ver ostextos mencionados na nota 11.

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I )- \s O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 23

Os paralelos entre o Quarto Evangelho e os textos de Qumrannão se referem unicamente ao aspecto negativo do problema do culto(oposição ao templo), mas também à maneira como este culto se

encontra substituído pelos batismos e os banquetes sagrados.Finalmente, é necessário mencionar o interesse joanino pelas festasdo calendário judaico às quais Cristo dá uma significação nova. Uminteresse análogo pelo calendário aparece igualmente nos textos deQumran30.

A existência de um laço entre os helenistas e o quarto

evangelho, por um lado, e entre estes dois e o judaísmo esotérico, poroutro, está confirmada pelo fato de que o título de “Filho do Homem”(sua aplicação a Jesus remonta ao próprio Jesus, porém este títulofoi rapidamente substituído pelo de “Cristo”) se encontra nos lugaresseguintes: 1) no livro de Enoque, que poderia ter relação com oessenismo; 2) nas últimas palavras do helenista Estêvão (enquanto

que nos 28 capítulos de seu livro, o autor de Atos não designa jamaisa Jesus como o “Filho do Homem”); e 3) no Quarto Evangelho ondeo título de “Filho do Homem”, todavia, é até mais importante que ode “Logos”31.

O parentesco que comprovamos entre o pensamento dosessênios, os helenistas cristãos e o do quarto evangelho, nos permite

supor que o grupo dos helenistas da Igreja primitiva de Jerusalém seencontrava em contato com a forma de judaísmo que encontramos 

 nos textos de Qumran,  da mesma forma que em livros de carátersimilar tais como o de Enoque, o Testamento dos Doze Patriarcas eas Odes de Salomão que são do mesmo tipo que os manuscritos deQumran. Nós não afirmamos de nenhum modo que os helenistas

foram velhos essênios (o que não é impossível), mas que estes provêmde uma forma de judaísmo próxima a este grupo. Parece-nosimportante fazer constar que o autor de Atos faz menção, justamenteno capítulo 6 que fala dos helenistas, a numerosos “sacerdotes” quese têm unido à Igreja (v. 7). Sabemos, com efeito, que os membrosda seita de Qumran eram sacerdotes.

Cf. LUCETA MOWRY, The D ead Sea Scrolls and the Backgrou nd o f the Gospel o f   Johtr.  The Biblical Archacologist (1954) 78 s.

11 Este ponto foi desen vo lvido em nossa Cristologia do Novo Testamento,  EditoraCustom, p. 181.

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24 O s c a r   C u l l m a n n

Por que se deu o nome de helenistas a este grupo da primeiracomunidade cristã? Já fizemos alusão à dificuldade suscitada poresta questão. Todavia, ela parece menos grave se se leva em conta

que não havia outro meio para designar àqueles que não pertenciamao judaísmo oficial. Deram-lhes o nome de helenistas, porque nãoexistia outro nome para caracterizar os representantes do que nóschamamos hoje de sincretismo helenista.

Se existe um laço que une os essênios, os helenistas e o QuartoEvangelho, podemos compreender melhor porque se encontram, já

no Novo Testamento, estas duas formas de cristianismo que sãorepresentadas pelos Sinópticos e o Quarto Evangelho. Pois não é

 possível, no que se segue, considerar a forma joanina como posteriore contestar sua origem palestina pela simples razão de que ela sedistancia mais do judaísmo oficial que os sinópticos. Estes dois tiposde cristianismo existiram depois das origens porque ambos fundam

suas raízes nas formas de judaísmo existentes na Palestina. Seconhecemos melhor a forma judaica tradicionaí é porque a outratinha mais conteúdo de tendência esotérica. Os helenistas eram,aparentemente, a parte mais viva e mais interessante da Igreja

 primitiva de Jerusalém. .Outra questão se apresenta agora: é possível remontar esta

mesma linha, para mais além da Igreja primitiva até a época do próprio Jesus? É muito difícil supor que só depois da morte de Cristohouve na Palestina helenistas para confessar seu nome. Visto queestes pertenceram à igreja desde os primeiros dias, é normal pensarque, ao menos, um certo número seguiu a Jesus durante sua vida.

É possível dar um passo a mais e pretender que o próprio Jesus

teve relação, de alguma maneira, com os Essênios? E a antiga hipótese- certamente falsa - segundo a qual ele teria sido um essênio, não poderia, ao menos conter, considerada à luz dos novos descobrimentos, uma parte de verdade?

Devemos recordar aqui o princípio de interpretação que temosmencionado: um movimento pode muito bem nascer de outro e não

obstante estar em oposição ao primeiro. É possível pois que, porJoão Batista, Jesus tenha tido conhecimento da seita dos Essêniose tenha tomado certos elementos de sua doutrina. Ele compartilhou sua atitude com relação ao templo. Porém, as divergências

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I ) a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç à o  d a  T e o l o g ia  C r i s t ã 25

 predominam sobre as semelhanças, tal como já temos demonstradono tratar outros pontos. No ensino de Jesus não se encontra olegalismo dos membros de Qumran; o sacerdócio não tem o papel

nem ocupa o lugar que ocupava na seita (o mestre de justiça erasacerdote). O evangelho de Jesus não contém nenhum ascetismonem nenhuma tendência esotérica. Porém, isto não é, todavia, o pontomais importante. O que é decisivo é a consciência que Jesus tinha desua missão. Atendo-se aos textos atualmente disponíveis, parecehaver, neste aspecto, uma diferença fundamental. Durante sua vida,

o mestre de justiça exerceu uma grande autoridade espiritual. Elemorreu e foi venerado depois de sua morte. Porém, foi morto como

 profeta. Ele pertence a estirpe dos profetas que sofreram por causa de sua mensagem. E a estes que Jesus faz alusão quando diz:“Jerusalém, Jerusalém que mata os profetas”. Porém, em nenhuma parte se diz claramente que o mestre de justiça tenha assumido o

 papel misterioso de servo de Iahvé que sofre substitutivamente pelos pecados do mundo. Os textos conhecidos até hoje não falamclaramente de uma morte expiatória do mestre de justiça, ainda queos hinos que foram publicados contenham alusões verbais a Is. 53, eisto é, todavia, o aspecto mais importante da consciência que o próprioJesus tem da obra a realizar. O fato de que o mestre de justiça tenha

sofrido, padecido a morte por causa de sua atividade sacerdotal e profética, não poderia ser posto sobre o mesmo plano com a figura do Servo, que é uma relação consciente e fundamental em Jesus.O fato de que Jesus esperava  por sua vez  voltar como Filho doHomem sobre as nuvens do céu (espera esta que o aproxima dolivro de Enoque) e a sofrer como servo de Iahvé, é o que é novo e

inédito.Temos visto que o Quarto Evangelho está aparentado por

muitos lados com a seita de Qumran, e isto com toda a probabilidade por meio dos helenistas da Igreja primitiva. Também se compreendesem dificuldade que este Evangelho insista, por outro lado, nasdiferenças profundas que separam os dois grupos e que se manifestam

sobre o terreno da cristologia. Não é improvável que homens como omestre de justiça sejam os que o Evangelho tem presente no capítulo10, quando refere estas palavras de Jesus: “Todos os que vieramantes de mim são salteadores...” O versículo 18 é especialmente

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26 O s c a r   C u l l m a n n

importante, no sentido de que estabelece uma clara distinção entre aobra de Jesus e aquela do profeta mártir: “Ninguém me tira a vida;

eu a dou voluntariamente”. A insistência desta declaração parece ter por objeto opor claramente o sentido da morte de Jesus à outraconcepção.

Inevitavelmente, o mestre de justiça chamou a atenção sobeste aspecto e os paralelos entre a seita essênia e o cristianismo

 parecem impor-se. Todavia, apesar de todos os pontos de contato

históricos e teológicos, fica sempre uma diferença essencial; quantoà pessoa, o ensino e a obra de Jesus e, também, quanto ao papelatribuído a sua morte pelo pensamento teológico da Igreja primitiva.

 Não é por acaso significativo que Josefo e Filo tenham dado umadescrição detalhada dos essênios sem mencionar uma só vez o mestrede justiça? Sem o manuscrito de Damasco e os textos de Qumran,

nós ignoraríamos absolutamente tudo o que diz respeito a este mestreessênio. Imaginemos em troca, que se poderia dizer do cristianismo primitivo sem se nomear a Cristo? Formular esta questão é járespondê-la! E isto prova que a pessoa do mestre de justiça não tevea mesma importância capital para a seita, que a que teve Jesus parao cristianismo primitivo; importância que em Jesus tem sua origem

na consciência que Ele tem de sua missão.O mesmo sucede com a teologia paulina que, apesar de certos paralelos, é  fundamentalmente diferente da dos  textos de Qumran. Pode-se expor toda a doutrina dos essênios sem dizer uma só palavrasobre a morte do mestre de justiça. Porém, quanto à doutrina dePaulo, pelo contrário, é impossível fazê-lo sem atribuir o lugar central

ao ato salvífico da morte expiatória de Cristo. Para Paulo, a fé éantes de tudo a fé neste ato expiatório realizado por outro.Esta diferença capital no terreno da cristologia nos leva a pôr

em evidência outra originalidade importante da Igreja primitiva. A féna obra expiatória de Cristo tem como conseqüência, a vinda doEspírito Santo na Igreja. E só em sua relação com o Espírito Santo,

nós podemos compreender a comunhão, o culto, a comunhão de bens,enfim, todas as coisas que são manifestações características doEspírito. Em lugar do Espírito, a comunidade de Qumran tinha umaorganização. A maneira como se administrava entre eles a comunhãode bens é somente um exemplo entre outros. A ação do Espírito na

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I >\ s O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 27

Igreja primitiva se fez possível em virtude de uma fé ardente naclicácia realmente salvifíca do que Jesus havia realizado pelo mundo.

( )s milagres de cura, o falar línguas, elementos que dão ao cristianismo primitivo seu caráter específico e sem os quais chegaria a serdesfigurado, não podem ser compreendidos de outra maneira.

 Não basta que a seita de Qumran tenha tido um mestre de justiça e escrito sobre o Espírito; o mestre e o Espírito não exerceramsobre o pensamento e a vida da comunidade essênia a mesma

influência suprema que, no cristianismo, exerceu Jesus e o Espíritodado àqueles que crêem nEle. Esta impulsão soberana falta à seitade Qumran, e isto é o que explica porque os essênios deixaram deexistir depois da guerra judaica no ano 7032, enquanto que ocristianismo, não somente pôde sobreviver a esta catástrofe, masque, depois deste acontecimento, se expandiu de uma maneira,

todavia, mais eficaz no mundo.

Sobre o desaparecimento da seita de Qumran, ou antes sobre sua retenção por partedo mo vimen to judaico -cris tão, cf. nosso ar t igo  D ie n euen td eck len Q um rantexte  und das judenchr i s ten tum der Pseudoklem ent inen , em  N eu testam en tliche Stu die n  

 fü r R u d o lf B ull tm ann,  1954, 35 s.

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2

A OPOSIÇÃO AO TEMPLO DE JERUSALÉM, MOTIVO 

COMUM DA TEOLOGIA JOANINA E DO MEIO AMBIENTE

A historiografia das origens do cristianismo está dominada,desde há muito tempo, por um dogma científico do qual seria necessário

libertá-la. A responsável é a chamada escola de Tubinga, inspiradana filosofia de Hegel. Segundo este dogma (esquema: tese - antítesesíntese), existiria no princípio do cristianismo a comunidade de

Jerusalém, inteiramente dominada pela teologia judaica e toda aesperança judaica; mais tarde, com o contato do mundo helenístico,teria surgido outro cristianismo: o pagão-cristão. O catolicismo

representaria a síntese. É certo que todos os historiadores modernosque se ocupam do Novo Testamento têm o hábito de distanciarem-se, em princípio, desta escola. Hoje em dia, é quase de bom tomrecusar tudo o que há de esquemático e de exagerado nesta posição,li, todavia, quase todos os sábios modernos que se ocupam das origensdo cristianismo conservam, ao menos, a tese geral desta escolasegundo a qual não haveria, no cristianismo primitivo, mais que estasduas tendências: a judaico-cristã do primeiro momento, localizada naPalestina, e a pagã-cristã, nascida mais tarde e localizada fora daPalestina, no âmbito do helenismo1.

Todas as grandes obras consagradas à história e ao pensamentodos primeiros cristãos estão dominadas por este esquema. E verdade

1 A única diferença no fundo é esta: enquanto que no passado se havia insistido, sobre tudo,110  fato de que as duas tendências, sucedendo-se todavia, existiram simultaneamente echocaram-se efetivamente em seu encontro histórico, hoje, sem negar esta simultanei-dade, tem-se mostrado, porém, como uma foi modificada deixando lugar à outra.

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30 O s c a r   C u l l m a n n

que W. Bousset e R. Bultmann têm o mérito de terem demonstradoem suas obras a existência de um movimento de pensamento oriental

helenista, ao que chamam de gnosticismo pré-cristão no qual admitemuma influência sobre o judaísmo anterior ao cristianismo, porém suamaneira geral de apresentar o desenvolvimento, sobretudo das idéiasteológicas do cristianismo primitivo está, apesar de tudo, dominadainteiramente por esta perspectiva: primeiro cristianismo judaico naPalestina, logo em seguida cristianismo helenizado fora da Palestina.

Ali concepção acerca da origem do evangelho de João é a que maissofre desta concepção esquemática. É verdade que o comentário deBultmann2e também o de Barret3levam em grande consideração osincretismo espalhado na Síria e na Palestina. Porém, enquanto semantenha a seguinte alternativa: judaismo-cristianismo da comunidade

 primitiva - cristianismo-helenístico das igrejas missionárias é

necessário enquadrar o evangelho de João no segundo, fazendo comque persista o chamado enigma joanino.O enigma consiste em que o cristianismo que nos dá a conhe

cer o quarto evangelho, difere do cristianismo dos sinópticos e dasEpístolas de Paulo. O esquema: judaismo-cristianismo palestinense-paganismo-cristianismo do mundo helenístico não permite resolver

o enigma. Precisamente o evangelho»joanino contém incontestavel-mente elementos helenísticos, e, ao mesmo tempo, está muito aparentado precisamente com as correntes judaica e judaica-cristã daPalestina que nós conhecemos bem, graças aos recentes descobrimentos. Este tipo de cristianismo, por conseguinte, não surgiu somente numa época tardia, porém deve ter  coexistido  com o tipo mais

conhecido, representado pelos Evangelhos Sinópticos. Estes doistipos de cristianismo devem remontar ambos às próprias origens docristianismo palestino. Veremos que correspondem a dois tipos de

 judaismo  existentes na palestina da época de Jesus. O judaismo palestino da época do Novo Testamento não teria a homogeneidadeque nós pudessemos crer. Havia, no final do primeiro século, na Pales

tina de um lado o judaismo oficial e de outro um judaismo mais oumenos esotérico que já continha os elementos helenísticos. Portanto,

2R. BULTMANN,  D as E vangelium des Johannes,  1941.3 C. K. BARRET, The Gospel According to St John,  1955.

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D a s O r ig e n s d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o d a T e o l o g ia C r i s t ã 31

também para o judaismo é falso distinguir somente o judaismo palestino e o judaismo helenístico da diáspora. O judaismo palestino não  tem esse dom homogêneo que se havia pensado.  Os dois tipos decristianismo primitivo da Palestina correspondem a dois tipos de judaismo pales-tino.

Desde há muito tempo, e já independentemente dos desco brimentos de Qumran, se tem admitido que o cristianismo poderia serelacionar não com o judaismo oficial, mas antes com uma ramificaçãomais ou menos esotérica do judaismo palestino do final do primeiroséculo a.C., porém nunca se deduziu as conseqüências que implicaesta comprovação na representação das origens do cristianismo.

Já no meu livro sobre as Pseudo-Clementinas, sustento, háuns trinta anos, a tese segundo a qual à margem do judaismo teriaexistido na Palestina (insisto ali neste fato) uma espécie de gnosticismo judaico4 que se pode considerar como o berço do cristianismo5. No

 passado se pensou que o gnosticismo havia entrado em contato como cristianismo mais tarde, no quadro do helenismo pagão, fora daPalestina. Porém, existiu um gnosticismo judaico muito tempo antesde um gnosticismo cristão. Nós hoje podemos comprová-lo pelo fatoda existência dos textos descobertos em Qumran. Sob este aspecto,a conclusão que deduzi da existência de um /«da/smo-cristianismo

com tendência gnóstica muito antigo se encontra confirmada: ocristianismo primitivo parece enraizar-se no judaísmo que, por faltade uma expressão melhor, chamarei “esotérico”. Não penso que atese de Del Medico6, Cecil Roth7e Driver8tenham alterado a tese

1O empregar o termo “gnosticismo” ou não, parece-me um jogo de palavras. Em todo

caso, é arbitrário restringir o termo só aos sistemas nos quais aparece o mito dosalvador divino que, descendo sobre a terra salvando-se a si mesmo, salva aos outros

 por sua ascensão. O gnostic ism o não é um m ovim ento de conto rnos bem delim itados. É um fenômeno sincretista, e quando se intenta eleger mais ou menos arbitrariamente um dos múltiplos aspectos para descrevê-lo como o único elemento distintivolegít imo, se faz violência à complexidade da realidade histórica. Por fal ta de umtermo melhor, é necessário continuar empregando o termo “gnosticismo”.

' O. CULLMANN,  Le prob lèm e li ttèra ire et h is toriq ue du rom an pseudo-clé m entin . 

Étude sur le rapport entre le gnosticisme et le judéo-christianisme. Paris, 1930." H. E. DEL MEDICO,  L 'é n igm e des m anuscrits de Ia m er Morí .  Paris, 1957.C. ROTH,  L e p o in t de vue de l'h is to rie n sur les manuscri ts de la mer Morte:   Evidences

65 (1957) 37 s.“ G. R. DRIVER, The H ebrew Scrolls from the Neighbourhood o f Jericho an d the De ad  

Sea.  1951;  H ebrew Scrolls:  JournThSt, 17 s.

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32 O s c a r   C u l l m a n n

original adotada pela grande maioria dos sábios competentes, taiscomo o P. de Vaux, Kuhn, Dupont-Sommer, Brownlee e Burrows,

segundo a qual a seita de Qumran representa um grupo judeuaparentado (se não idêntico) com os essênios descrito por Josefo eFilo. Esta tese da existência de um judaísmo esotérico, confirmadahoje em dia, é de um grande valor para a compreensão do cristianismo

 primitivo. Desde o momento em que este gnosticismo judeu já denotauma influência helenística ou sincretista, todo o problema da relação

entre judaísmo e helenismo, entre judaismo-cristianismo e paganismo-cristianismo, deve ser colocada de maneira diferente da habitual.Até agora, ao se encontrar em um escrito do Novo Testamen

to influências helenísticas, se concluía quase automaticamente que oescrito em questão deveria ser de origem tardia. Isto concernesobretudo ao evangelho de João. Não se pode negar que contenha

elementos helenísticos (ao lado de elementos judaicos que se com provam até na língua do evangelho que contém numerosos arameis-mos)9. Converteu-se em um dogma científico -que, por causa doselementos helenísticos, a origem do evangelho de João deveria ser

 buscada distante da esfera palestinense situando-o num movimentorelativamente recente; a influência do helenismo sobre o cristianis

mo não é concebível, segundo esta opinião, senão em um época bastante distante das origens. Esforcei-me, ademais, por demonstrar queo evangelho joanino finca suas raízes neste judaísmo esotérico. Não

 poderei repetir aqui todos os pontos desta demonstração. J. A. T.Robinson mostrou a relação entre o quarto evangelho e João Batista10. Odeberg o relaciona com um certo misticismo judeu11. Kuhn

 pôs em relevo a relação entre o evangelho joanino e Qumran,12e F.M. Braun à completou13. Esforçar-me-ei sobretudo por mostrar que

9 Cf. A. SCHL AT TE R,  D ie Sprache und H eim at des vie rten Evangeiiste n ,  1902. Cf.também C. F. BURNEY, The Aram aic Origin o f the Fourth Gospel,  1922, e C. C.

TORREY, The aramaic Origin o f the Gospel o f Jo hn : HarvardThRev 16 (1923) 305 s.10  J.  A. T. ROBINSON, The Baptism o f Joh n the Qum rân Com munity.  HarvardThRev

(1957) 181 s.11 H. OD EBE RG, The Fourth gospel ,  1929.

12 K. G. KU HN ,  D ie in Palã stin a gefu nden hebráischen Text und das N eue Testament: ZThlrche (1950) 194 s.

13 F. M. BR A UN ,  L ’arr ière-fond ju d a iq u e du quatrièm e évangile e t la C om m unauté  de 1’alliance : RevBibl 62 (1955) 5 s.

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I M s ( ) r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 33

0 cristianismo joanino não é, no interior do cristianismo primitivo, essefenômeno isolado que se tem pensado, mas que, pelo contrário, exis

te, por exemplo, um forte parentesco entre o grupo joanino e o grupode Estevão denominado os helenistas palestinenses dos quais fala olivro de Atos, tanto quanto entre o grupo joanino e o meio de ondesaiu a Epístola aos Hebreus.

Para provar que há aí todo um movimento de pensamentocomum, me esforçarei por pôr em evidência que não somente essas

correntes do cristianismo primitivo (joanino, grupo de Estevão,Hebreus) formam uma certa unidade entre si, mas que cada umadelas está em estreita relação com esse judaísmo ambiental que euchamo de judaísmo-esotérico.

A demonstração deverá então ser feita em três movimentos, por assim dizer:

1. demonstração de uma relação do joanismo com o grupo deEstevão (os helenistas);

2. demonstração de uma relação do joanismo com o judaísmoesotérico;

3. demonstração de uma relação do grupo de Estevão (os

helenistas de Atos) com o judaísmo esotérico.

Existe então uma espécie de relação triangular, cujo esquemaseria este:

 judaísmo esotérico

 joanismo ____________ grupo de Estevão

 Na realidade, as relações são todavia mais complexas; poisseria necessário distinguir diferentes correntes no interior do judaísmo

esotérico em que cada qual se encontre precisamente com o joanismoe com o helenismo de Atos.Aqui limitar-me-ei a uma só questão: a atitude em relação ao

templo, para provar a relação triangular que me interessa estabelecer. A relação que eu creio comprovar aqui me parece confirmar a

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34 O s c a r   C u l l m a n n

tese segundo a qual a corrente joanina representa, no interior docristianismo primitivo, uma corrente palestina judaica diferente daquela que se aproxima da corrente sinóptica.

Começarei por uma distinção que o próprio livro de Atos fazentre as duas correntes existentes no cristianismo primitivo deJerusalém, distinção entre hebreus e helenistas que deve haverexistido já no judaísmo palestino. Não vou entrar aqui nos detalhesde todas as questões relacionadas a este grupo de Estevão. Enfocareisobretudo o ângulo de sua atitude com relação ao templo.

Comprovamos, com efeito, que no interior do cristianismo primitivo da Palestina, este grupo particular apresenta uma matiz nitidamente diferente do tipo de cristianismo que nós conhecemos pelosEvangelhos Sinópticos. E todavia não é o paulinismo o que temosaqui. Que Estevão e os seus representam um tipo à parte, sedepreende já do modo de proceder dos judeus que não lhes reservaram a mesma sorte reservada aos outros cristãos de Jerusalém. Esteshelenistas são perseguidos. Atos 8.1 nos diz expressamente queestes devem abandonar Jerusalém enquanto que os outros podem

 permanecer. Este tipo de cristianismo representado por Estevão eseus partidários é encontradô então na própria Palestina. E verdadeque o livro de Atos os denomina “helenistas”, e este termo desafortunadamente se presta à confusão. Geralmente, se tem pensado queestes • fsAÂrçvtara^de Atos 6, eram simplesmente judeus que falavam grego, como os • Efipai• oi teriam sido os judeus que falavamaramaico. Todavia não temos nenhum documento que ateste esta significação do termo. A palavra se deriva do verbo •ÀArçv^feiv que nãosignifica precisamente falar grego, mas viver à maneira dos gregos.

O elemento constitutivo deste grupo não é o fato de que muitossejam originários da diáspora ou que sejam prosélitos, como se temdito freqüentemente. O fato de que um só dos sete, Nicolau, sejachamado prosélito prova precisamente que os outros não o são e queisto não é, em todo caso aí, o sinal distintivo desse grupo. Em Atos11.20, se diz que muitos deles são da diáspora; porém, isto não é oelemento constitutivo. Bamabé que vem de Chipre e que pertencetambém à comunidade de Jerusalém não é chamado “helenista”; aoapóstolo Paulo a quem se deveria aplicar portanto este recurso, se sequisesse indicar sua proveniência da diáspora, não se lhe chama jamais

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D a s  O k i c í e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 35

"helenista”. Para dar-se conta da confusão das críticas ávidas emexplicar o que eram exatamente os helenistas da comunidade primitiva

de Jerusalém, basta ler o excursus  em Foakes Jackson - K. Lake,Tha Beginning of Christianity14consagrado a esta questão.

Os “helenistas” devem ter existido como grupo ou haverformado parte de um grupo no interior do  judaísmo.  Então, énecessário perguntar-se se não se trata de um grupo de antigos judeusdiferentes do judaísmo oficial e representante das tendências mais

ou menos esotéricas de proveniência sincrética. Muitos destes, semdúvida, podiam ser originários da diáspora, porém isto não parece sero elemento distintivo do grupo. O autor de Atos não teria à disposiçãoum termo mais apropriado para designá-los coletivamente. Sendo ofuto de que este judaísmo apresentava elementos sincretistas econtinha elementos de origem estrangeira, os denomina, por falta de

um termo melhor, helenistas. Não esqueçamos que ••  kXr\veç erafreqüentemente o termo com o qual os judeus designavam todo aqueleque não era judeu. Nós mesmos não encontramos um termo queenglobe todas estas tendências judaicas que tenho denominado -igualmente por falta de um termo melhor - “esotéricas”.

 Não demos demasiada importância ao  termo:  o que importa

são as idéias e a história do grupo. Infelizmente, Estevão não deixounenhum escrito. É pois difícil fazermos uma idéia precisa das idéiasteológicas deste grupo tão importante da comunidade primitiva. Nãotemos mais que o discurso de Estevão, Atos 7, e nos discursos dolivro de Atos comprovamos de maneira simples e necessariamente,a influência das idéias de Lucas que os refere e que não pertence a

este meio. Todavia, o discurso de Estevão contém idéias tão características e que diferem totalmente das outras idéias do livro de Atosque é necessário admitir que o autor utiliza aqui uma fonte direta proveniente deste grupo15.

11 Tom o V, 1933, 59 s.

" M. DIBELIUS,  A ufs átze zur A poste lg esch ic hte ,  1951, 143 s. e E. HAECHEN,  D ie   Aposte lg eschic hte ,  1956, 243 s., negam todo o valor documental a este discurso. E.TROCME,  Le “livre des A ctes" et l'H is to ir e ,  1957, 213, sem ir tão longe se mostramais céptico; sobretudo no que diz respeito ao pensamento diretriz. BO REICKE,Glauben und Lehen d er Urgemeinde ,  1957, 131, manifesta com razâo o a pr io i  inadmissível segundo o qual o autor do livro de Atos não haveria se sentido mal ematé adaptar o discurso à situação do relato

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36 O s c a r   C u l l m a n n

Um autor holandês16mostrou os paralelos entre este discursoe a regra de Qumran. Os detalhes e sobretudo a intenção geral daexposição de Estevão, que é a de mostrar que os judeus sempreresistiram à lei divina, se encontram na seita de Qumran, que emuma perspectiva análoga vê os dois espíritos atuando em Israel17.

 Nós falaremos em seguida do que Estevão considera como o ápiceda resistência judaica ao Espírito: a construção do templo. Por estarecusa do templo, Estevão preconiza implicitamente - logo o veremos- um culto em espírito onde o templo é a comunidade. Veremostambém que esta atitude radical com respeito ao templo e ossacrifícios, sem ser aquela da seita de Qumran, é todavia nitidamente

 preparada por ela.Podemos mencionar aqui, ademais, o fato de que Estevão

chame Jesus de Filho do Homem, noção corrente no judaísmoesotérico18. Parece, pois, haver uma relação entre Estevão e seu

grupo por um lado e certas correntes do judaísmo e.sotérico por outro.Existirá (independentemente da questão do templo que

falaremos em seguida) também uma relação entre o cristianismo joanino e Estevão com os seus?

À primeira vista, se pôderia sentir a tentação de respondernegativamente. E, todavia, a relação me parece aqui particularmente

estreita. No capítulo seguinte19intentarei demonstrar que o evangelho joanino se interessa de maneira particular por estes helenistas,ainda mais, se esforça, por assim dizer, por reabilitar estes helenistase fazer-lhes a justiça que lhes é devida. Pois foram esquecidos relativamente depressa, e nós comprovamos as conseqüências até nahistoriografia moderna. O evangelho joanino os reabilita. Eu penso

que tal é o sentido de Jo 4.38, passagem do relato joanino sobre odiálogo da samaritana tão difícil de explicar: Jesus insiste no fato de

16 A. F. J. K.LIJN, Stephen ’s Speech - Acts VII, 2.53:  NTS 4 (1957) 25 s.

17 Os filhos da luz estão sustentados pelos anjos (I QS III, 24), da mesm a maneira que

segundo o discurso de Estevão os anjos intervém no momento decisivo no qual Deus

se revelou a seu povo (At 7.30,35,38,53), porém de uma parte e da outra um povo

de dura cerviz que desobedece.18 O. CU LLM AN N, Cristologia do Novo Testamento,  Editora Custom, pp. 2l8ss.

19 La S am arie et les org ines de Ia m ission c hrét ienne.   Qui sont les “alloi” de Jean

3.38?: Annuaire 1953-54 de 1’Ecole Pratique des Hautes Études, Paris, 3 s. Cf. mais

a frente o capítulo 3, pp. 51-59.

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D a s  ( ) r ic .e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 37

que, não os doze, senão os outros (*AAoi) fundaram a missão emSamaria e que os apóstolos entraram somente  depois  no trabalhodos • kXoi. O contexto relata o encontro de Jesus com a samaritana.Sua conversão lhe apresenta, por um lado, a ocasião de falar doverdadeiro culto “em espírito e em verdade” oposto, por sua vez, aoculto judaico oficial do templo de Jerusalém e ao culto samaritano de(icrazim; por outro lado, lhe apresenta a ocasião de falar do fundamento da missão em Samaria. Esta obra missionária era considerada por muitos cristãos como problemática neste país semi-judeu, tantomais que os adversários desta missão criam, sem dúvida, poder basearem-se sobre uma frase de Jesus que encontramos em Mt 10.5, “nãoentreis em nenhuma cidade de Samaria”. O Quarto Evangelho quermostrar que Jesus queria a missão em Samaria da qual Ele tinha lançado as bases junto ao poço de Jacó, inaugurada pelos helenistas.

Mas os versículos que nos interessa de momento se encontram no epílogo do relato, os v. 31 s.; Jesus emprega as imagens docampo, da semeadura, da ceifa. Estas imagens se aplicam à missão.Está dito (v. 36b) que aquele que semeia e aquele que ceifa se alegrem juntamente. Porém, o v. 37 acrescenta que o provérbio temrazão ao dizer que “um é o que semeia e outro é o que ceifa”. Diz averdade, na condição de que não se esqueça o que declara os versículos precedentes, a saber, que é ninguém menos que Cristo  quemse encontra atrás daqueles que recolhem em Samaria. Segue o v.3Kb que concerne diretamente a nossa questão:  os outros realiza

 ram o trabalho árduo e vós (os doze) viestes a usufruir do tra

 balho deles.  Logo, entre o Cristo que semeia e os apóstolos queceifam em Samaria, uma terceira categoria se introduz: os outrosque trabalharam em Samaria antes dos apóstolos. Quem são estes• kXoil  Pode se tratar, segundo o contexto que fala da missão emSamaria, unicamente dos missionários que em Samaria abriram ocaminho aos apóstolos.

Estou convencido de que o livro de Atos nos dá a resposta.O capítulo 8 refere que a obra missionária em Samaria foi inaugurada

 pelos helenistas, em particular por Felipe, um dos sete, e que somentedepois os apóstolos Pedro e João “entraram” em seu campo detrabalho. Temos aqui o que lemos em (8.14): “Os apóstolos que

t J lé b S i h i bid

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38 O s c a r   C u l l u a n n

Palavra de Deus, lhes enviaram Pedro e João”. Estes dois apóstolosnão fizeram mais que “ceifar” em Samaria onde o verdadeiro trabalho

foi realizado pelos • kXoi, os helenistas partidários de Estevão, cujamaior parte era anônima.O autor do evangelho joanino se interessa particularmente por

esses primeiros valentes missionários de Samaria. Ele lhes rende ahonra que lhes é devida sublinhando seu papel de iniciadores da pregação do evangelho entre os samaritanos que recusam o culto do

templo como eles. Interessa-se por seu trabalho, e se interessa pelo país onde trabalharam. Temos aqui porque é o único que faz referênciaà tradição relativa ao encontro de Jesus com a samaritana, encontroque prefigura a futura missão.

Este interesse não pode ser explicado a não ser se considerarmos o fato de haver entre nosso autor e estes helenistas uma relação

muito estreita, ou em outras palavras: entre os helenistas e o grupo joanino. Este grupo joanino deve ter mantido, por um lado, algumarelação com Qumran e com João Batista, e, por outro, com o grupode Estevão. Isto é o mínimo que se pode dizer. Porém, talvez possamos ser mais atrevidos e propor a questão (eu reconheço que é umahipótese!): o autor do evangelho jbanino, provavelmente antigo discí

 pulo de João Batista, não pertenceria, ele próprio, a este grupo dacomunidade de Jerusalém ao qual pertencia Estevão?Eu não me atreveria a ir tão longe se a idéia essencial do

discurso de Estevão não fosse, como vou mostrar, uma idéia essencial também para o evangelho joanino: a oposição ao culto do tem

 plo, ou, melhor dizendo, a espiritualizarão do culto do templo.

Mas, perguntemos antes de tudo se esta oposição ao templo pode ser seguida igualmente até esse judaísmo esotérico no qual esteramo tão importante do cristianismo primitivo finca suas raízes. Nós podemos encontrar naturalmente traços de uma atitude crítica comrelação a uma superestimação do templo e dos sacrifícios nos profetasdo Antigo Testamento. Os profetas já tendem a espiritualizar o culto

do templo. Estevão mesmo cita a Is 66.1: “O céu é meu trono, e aterra é estrado de meus pés: que templo podereis construir-me?”A passagem de Am 5.25-27 citada tanto no escrito de Damasco

como nos textos de Qumran e no discurso de Estevão, certamente comuma intenção diferente em cada lugar, ataca também aos sacrifícios.

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t > \ s O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r is t ã 39

Porém, é evidente que Estevão vai muito mais longe em suarecusa ao templo que os profetas. Situa a construção do templo sobreo mesmo plano das infidelidades de Israel resistindo ao Espírito Santo,

que a fabricação do bezerro de ouro! Idéia singularmente atrevida!Hsta polêmica se encontra na seita de Qumran? Se colocarmos aquestão desta forma, é necessário responder provavelmente comum não. Por outro lado, se perguntarmos: foi preparada pela atitude da seita de Qumran? Seria necessário responder com um sim.É possível também que esta seita, que estava na impossibilidade de

seguir o culto do templo de Jerusalém, posto que recusava em todocaso seu sacerdócio, não tenha professado sempre as mesmas idéiasa este respeito. O escrito de Damasco (11.19 s.) condena somenteos sacrifícios oferecidos em estado de impureza. Porém, outra passagem (6.11-14) vai mais longe. E de maneira contrária, a passagem da Regra (9.3 s.), que se cita freqüentemente para apoiar a

idéia de que “a expiação está assegurada por uma conduta irreprovávelmais que pela carne dos holocaustos e a gordura do sacrifício” (idéiaque por demais não superaria facilmente a polêmica dos profetas doAntigo Testamento), deve ser traduzida provavelmente de outra maneira,a saber: “A expiação está assegurada a partir (= pela) da carne dosholocaustos e da gordura dos sacrifícios”20. Então esta passagem

estaria dizendo, ao contrário, que os sacrifícios são em princípionecessários, e esta interpretação parece confirmada pelo escritointitulado Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas 2.56 e 7.11, que dá instruções precisas sobre o culto ideal,  a maneiracomo os sacrifícios devem ser oferecidos e sobre a vestimentasacerdotal.

A mesma coisa nos dão os fragmentos aramaicos encontradosna gruta 221segundo a interpretação mais imposta; uma descrição da Nova Jerusalém análoga à de Ezequiel, de onde o profeta nos refereas revelações recebidas em uma visão sobre o futuro do templo.A não ser que se interprete alegoricamente esta descrição, o que não

" J. T. MILIK, Verbum Domini,  1951, 151; J. CARMIGNAC,  L ’util ité ou 1'inuti li té  dês sacr i f iques sanglants dans la Règle de la communauté de Qumrân : RevBibl(1956) 524 s.M. BAILLET, Fragments araméens de Qumrân 2 . Descr ipt ion de la Jérusalem  nouvel le: RevBibl (1955) 222 s.

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40 O s c a r   C u l l m a n n

é muito verossímil, é jprovável que os homens de Qumran tivessemconsciência de representarem o verdadeiro sacerdócio, esperandono futuro o restabeleciimento do verdadeiro culto que seria assegurado

 por eles mesmos, saccerdócio genuíno, no templo de Jerusalém.Provavelmente considleravam, em todo caso e em certos momentos,sua separação de Jerusalém e de seu culto como passageiro. Assimse explicaria a que se2 refere Josefo em uma passagem, por certonão muito clara (Ant 118. 1-5), segundo a qual os essênios enviavamas oferendas ao tempho de Jerusalém sem participarem, todavia, doseu culto. Estes não' podiam tomar parte porque condenavamradicalmente os sacendotes que haviam usurpado o sacerdócio emJerusalém. No lugar do culto de sacrifícios que não podiam observar,tinham seus ritos, principalmente os batismos e os banquetes sagrados.

Porém, é mais pirovável que o que era considerado em primeiro

lugar como uma necessidade ditada pelas circunstâncias deve ter, pouco a pouco, aparec;ido como uma instituição definitiva conformevontade divina. Enquafflto que, em princípio, os ritos específicos deQumran não eram c»onsiderados como opostos aos sacrifíciossangrentos, a larga prática exclusiva de seus ritos particulares e alarga abstenção dos sacrifícios fez surgir a idéia de que estes não

eram de modo algum qiueridos por Deus. Assim Filo22 pode dizer queos essênios recusavami os sacrifícios de animais.A teoria dos sec tários dos judeus pode ter variado, porém, em

todo caso, o que advertimos perfeitamente é que o terreno era favo

 rável  à oposição ao templo e aos sacrifícios, apesar da esperança deum futuro templo empírico, ideal. As duas coisas poderiam caminhar

 juntas. A oposição ao templo presente era o que predominava. Temosaqui pois o elo entre Qumran e Estevão.Por outro lado, comprovamos que as Pseudo-Clementinas que

apontam em parte, até em seus mínimos detalhes, as idéias e os usosde Qumran vão sobre esta questão do templo e dos sacrifícios muitomais longe que a seita de Qumran e se aproximam, nesse ponto, à

atitude de Estevão23. A js Pseudo-Clementinas devem ser citadas neste

22 Quod omnis probus l iber  , 75.23 O. CULL M AN N,  D ie neii entdeckete n Q um rantexte u nd das Judenchristen tum der 

Peseudo klementinen,  em Fe stschri ft f Bultmann 70. Cjehurtstagt    38 s.

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! i v , <I k i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a T i o l o g ia  C r i s t ã 41

contexto do judaísmo esotérico do qual nos ocupamos. Estes escritosRflo, com efeito, muito mais judeus que cristãos, e estão relacionados

com esta corrente particular do jadaísmo gnóstico. Segundo estes, oobjetivo da vinda de Jesus, verdadeiro profeta, era pôr fim ao cultoi.ios sacrifícios em Jerusalém pelo batismo. Ele veio ao mundo afimde extinguir pela água do batismo o fogo acendido pelo sumo sacerdote24./^ destruição de Jerusalém no ano 70 é um castigo aos judeus porque continuaram os sacrifícics do templo abolidos pelo verdadei

ro profeta25. Ademais, no marco deste radicalismo, não há lugar parao sacerdócio. Temos aqui porque Aarão é considerado como representante do princípio do mal, oposto a Moisés26, enquanto que, nosmanuscritos de Qumran, Aarão desfruta todavia da maior venera-yão. Este é o único ponto em que as Pseudo-Clementinas diferemdos textos de Qumran, e seu radicalismo não é mais que um desen

volvimento natural, por assim dizer, da atitude qumrânica em relaçãoao templo e seu culto.Por outro lado, há um acordo completo sobre esta recusa radical

entre a Pseudo-Clementinas e os “helenistas” do livro de Atos. AquiAarão está também na origem da idolatria. Dá-se o mesmo juízonegativo sobre Aarão à quem se remonta o sacerdócio. A fabricação

do bezerro de ouro é obra das “mão humanas” (7.14) e o própriolemplo de Salomão é obra de mãos humanas (7.48)27. E difícil levareste radicalismo mais longe. Bo Reick mostrou muito bem, em suaanálise do discurso de Estevão28, que a idéia principal do resumo dahistória de Israel dado por Estevão é que as revelações divinasessenciais foram verificadas fora de Canaã.  Estas revelações não 

estão ligadas a um lugar. O tabemáculo móvel não cai sob o golpeda acusação formulada por Estevão. Pois ele foi feito segundo omodelo que Deus mostrou a Moisés. Não está ligado a um lugar.Davi pediu um tabemáculo para a casa de Jacó29. Ele pensou em

24 Rec. 1.48.25 Rec. 1.68.

36 H om . 2 .16 -1 7.27 Cf. M. SIM ON , Saint S tephen and the Jerusalem Templo : JournEcclHist (1951)

132 s.28 Glaube und Leben der Urgemeinde,  1957, 136 s.29 É nec essá rio ler assim com B, D e H, antes que: “para o Deus de Jacó” (A, C, Vulg.

e as trad. siríacas); contra E. HAECHEN,  D ie Aposte lg eschic hte , 1956, ad loc.,  242.

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42 O s c a r   C u l l m a n n

Jerusalém. Porém, Salomão que não o compreendeu construiu umacasa para Deus. Entretanto, Deus não habita naquilo que é feito por

mãos humanas. Sem dúvida que está latente, na base desta oposição,a idéia de um tabernáculo espiritual que, como na Epístola aosHebreus, é a comunidade de discípulos. Provavelmente esta é a idéiado próprio Jesus quando fala de um templo que não é feito pelas“mãos do homem” (Mc. 14.58)30.

A relação entre esta atitude e aquela das Pseudo-Clementinas,

que devemos considerar como representantes de um judaísmoesotérico, aparece particularmente em uma passagem das Pseudo-Clementinas inteiramente paralela ao discurso de Estevão, paralelaaté nos detalhes: Rec. 1.35. Nesta passagem, o mesmo que em Atos7.41, o culto dos sacrifícios é considerado como a causa da idolatria,e o tabernáculo é oposto, exatamente como em Atos 7, ao templo de

Salomão (Rec. 1.38).Schoeps31tem razão ao insistir sobre esse paralelismo. Porém,a explicação que ele dá, como se o autor de Atos 7 tivesse posto semrazão na boca de Estevão o que nas Pseudo-Clementinas é pronunciado por Tiago, não me parece absolutamente fundada. Na realidade, o paralelismo provém de que os dois documentos, Atos e Rec.

1.35 s., pertencem à mesma corrente de idéias de um judaísmo quese opõem ao templo de Jerusalém.Existe todaviai outro elo que une a oposição helenista ao tem

 plo com as correntes! anti-hierosolimitanas da Palestina: não esqueçamos que os helenisítas expulsos de Jerusalém depois do martírio deEstêvão (enquanto que os doze podem permanecer) se voltaram em

direção à Samaria sendo assim os primeiros missionários dali, como já observamos anteriormente.Por que se dirigem à Samaria? Porque os habitantes deste

 país que sofreram fortemente a influência do paganismo, do helenismosincretista, são semi-jíudeus que reconhecem os cinco livros de Moisés,mas que recusam, sobretudo, o templo de Jerusalém em benefício de

30 Ce rtam ente, Jesu s prom unciou um a frase deste tipo. Ao falar do temp lo, Ele disse:“não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada” (Mc 13.2), e, por outro lado,

 pensando na com unid ade: “Eu construirei um te m plo não feito por m ãos hum anas”(Mc 14.58).

31 Theologie und Geschichte des Judenchri tentums,   1949.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 43

seu próprio lugar de culto, que é o monte sagrado de Gerazim. Segundoos Pais da Igreja, houve em Samaria uma religião “simoníaca” que

remontava a Simão o Mágico. O papel de Simão deve ter sido maisimportante que o que permite entrever o livro de Atos. Segundo asPseudo-Clementinas, ele foi o verdadeiro fundador de uma seitagnóstica, na qual os elementos helenísticos e judeus se encontramcombinados de tal maneira que recorda certos aspectos do judaísmosincretista que nós estudamos32. A pregação do Evangelho neste país

semi-judeu, onde reina o sincretismo, por um grupo partidário deEstevão, é altamente importante para a missão cristã. É a transiçãonatural da missão cristã na Palestina à missão cristã em terra pagã.Mas o que nos interessa aqui é que os cristãos que foram expulsosde Jerusalém por causa de sua oposição ao templo se voltaram, para pregar o Evangelho de Jesus, precisamente em direção a esses judeus

heréticos de Samaria, que também recusavam desde há muito tempo0 culto do templo de Jerusalém.

Isto nos leva novamente a tratar do Quarto Evangelho. Vimosque o Quarto Evangelho se interessa especialmente por estes helenistas, posto que no capítulo 4 os reabilita. Agora daremos um passo amais. Da mesma forma que os dois valentes helenistas, o quarto evan

gelho se interessa especialmente por Samaria, esse país semi-judeuque viu as origens da missão. O Quarto Evangelho se interessa pelossamaritanos precisamente sob o ângulo do culto, sob o ângulo de suaoposição ao templo. Tal é o sentido da história da samaritana no capítulo quarto. Todo o diálogo entre Jesus e a samaritana concerne a estaquestão. Porém, nós podemos ir mais longe.

Este radicalismo dos helenistas e seu interesse pela questãodo templo, de maneira geral, não predomina em nenhum outro escritodo Novo Testamento como no Evangelho joanino e na Epístola aos1Icbrcus à qual, sob todos os aspectos, está estreitamente aparentadacom a literatura joanina33, e deve ser atribuída provavelmente aomesmo grupo. É certo que a idéia de que a comunidade é o verdadeiro

lemplo se encontra, também, no paulinismo (os cristãos são o templo

L. CERFAUX,  L a Gnose sim onie nne,  em  R ecueil L. C erfa vx I,  1954, 19 s." E sobretudo o comentário de C. SPICQ,  L "ep ítre aux hébreux I e II,  1952-1953, o

que sublinha este parentesco.

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44 O s c a r   C u l l m a n n

de Deus: 1 Co 3.16; 2 Co 6,16; Ef. 2.21s.) e em 1 Pe. 2.5 (a casaespiritual). Porém, no evangelho joanino, a idéia de que o templo éabolido, ou melhor substituído, se encontra verdadeiramente em

 primeiro plano e pode ser seguida por todo o livro. E, sobretudo, sereveste da forma sob a qual a encontramos no discurso de Estevão:a presença divina não está ligada ao templo. Se, como é provável, oQuarto Evangelho, em sua forma atual, foi escrito depois da destruiçãodo templo no ano 70, seu interesse por essa questão se explica de ummodo particular. Sua atitude não pode ser menos do que uma atitude

relacionada diretamente com aquela dos helenistas.O fato de que a declaração joanina de Jesus acerca do templo

de Jerusalém se encontre precisamente neste diálogo com a samari-tana, que serve ao evangelista de quadro para as frases proféticasde Jesus relativas à missão dos helenistas, adversários, como ossamaritanos, do> culto do templo de Jerusalém, é muitò significativo.

Confirma e explica, de certa maneira, que o interesse do evangelista pela questão do templo se una precisamente à oposição do grupo deEstevão e dos missionários de Samaria contra o templo. É verdadeque para o quarto evangelista, o aspecto positivo é muito mais importante que a polêmica. Convém advertir, por outro lado, que no discurso de Estevão, que é uma auto defesa, seja natural que predomine o

aspecto da polêmica. Ignoramos completamente como se apresentava a pregação de Estevão fora da polêmica. É provável, não obstante, que Estevão fosse mais longe que o Quarto Evangelho: paraEstevão a construção do templo representava uma infidelidade já nointerior da história de Israel; para o Quarto Evangelho, em troca, ésomente depois da vinda de Cristo que o culto do templo se encontra

abolido.'* Seja como for, no evangelho joanino é sempre o aspecto

cristológico o que predomina:  a presença divina, ligada até o  momento presente ao templo de Jerusalém, é visível no que se  sucede na pessoa de Jesus Cristo, no Logos feito carne34.

34 Tudo que pertence ao m eio do qual o evangelista faz parte e tem um caráter polêmicoestá despojado em seu Evangelho da polêmica. Já comparamos sob este aspecto agrosseira polêmica das Pseudo-Clementinas contra a seita do Batista, com a doQuarto Evangelho. Este não se contenta em dizer que João batista não é o Cristo,

 porém diz que é a testemunha.

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! i v . i >KKíf -n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 45

É verdade que também Jesus, no diálogo com a samaritana,acentua o aspecto negativo, na resposta à questão que a mulher lhe

 propôs de saber quem tinha razão, os samaritanos que adoram a

Deus sobre o monte Gerazim ou os judeus que O adoram no templotk- Jerusalém. Nem uns nem outros, responde Jesus. A presençadivina, não esta ligada a um lugar. O templo de Jerusalém sob esteaspecto não é melhor que o monte Gerazim. Esta declaração esta

 ahsoluta-mente na linha do discurso de Estevão  (Atos 7). Poderia, muito bem fazer parte dele. Pois bem, isto é exatamente o que

deveriam pregar esses missionários helenistas que foram à Samaria.Vós recusais o templo de Jerusalém. Porém, Deus tão pouco habitasobre o monte Gerazim. Todo o discurso de Estevão tem por objetoque Deus não esta ligado a um lugar e tão pouco a um país, uma vezque Israel já tem recebido suas revelações fora do país sagrado35.

Depois, a parte positiva da resposta de Jesus à samaritana no

Quarto Evangelho: “vós adorareis a Deus em espírito e em verdade”. Na primeira parte do diálogo se tratou da água viva que Cristo dará.A água no quarto evangelho (como em Qumran) é freqüentementesímbolo do espírito e certamente tem também uma relação com o

 batismo. E no espírito que se manifesta a presença divina. Porém,nós sabemos que esse espírito esta ligado a Cristo. O espírito, Cristo,

substitui desde já o lugar de culto. Recordemos que o discurso deEstevão, depois de ter mencionado a construção do templo, conclui

 precisamente: Vós sempre haveis resistido ao Espírito Santo!A construção do templo é uma oposição ao Espírito Santo.

O evangelista vê realizada,  nos acontecimentos da vida de  Jesus, a idéia de que Cristo assume o lugar do templo. Esta questão

do culto é uma de suas principais preocupações. Ele se esforça emmostrar pela vida de Jesus encarnado que desde agora a questão doculto deve ser proposta de maneira distinta de como se propunhaantes da vinda de Jesus. O próprio Jesus se situa em lugar do templo.Deus revelou sua presença na vinda de Jesus encarnado, e depoisde sua ressurreição, ele continuará manifestando sua presença ali

onde Cristo elevado à destra de Deus está presente. Deus presentena vida de um homem •v crapK”  temos aqui o que disse o prólogo.

35 Cf. mais atrás na p. 39.

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46 O s c a r   C u l l m a n n

Aglória divina, em hebraico shekina, é visível em Jesus Cristo. Temosaqui para os ouvidos judeus uma frase blasfema como a que disse

Estevão (Atos 6.14). Pois para todo judeu a shekina, a glória divina,está ligada ao templo. A partir da encarnação esta se desliga dotemplo e se une ao Logos feito carne. Nós temos contemplado  sua 

 glória  (a glória de Deus). Esta é a idéia que predomina em todo oevangelho e nas Epístolas joaninas. Deus a quem não se pode ver setomou visível. Sua  shekina  pode ser contemplada em Jesus. Ele

estabeleceu seu tabernáculo entre nós, diz o prólogo joanino:•cjtc* vcoaev.  Certamente o autor que escreveu em grego escolheuintencionalmente este verbo por causa da idéia do tabernáculo,OK* vTj, que como» já temos visto cumpriu um grande papel na polêmica dos helenistas. Porém, ademais, é possível, como sugereSchaeder36, que o evangelista tenha escolhido este termo porque as

consoantes do verbo são as da palavra hebraica  shekina. No final do primeiro capítulo do Evangelho de João, lemos no

v. 51 que a partir de agora os céus estão abertos, que a ponte entre océu e a terra é o filho do homem sobre o qual os anjos ascendem edescendem. Esta é uma alusão clara ao sonho de Jacó (Gn. 28), quese encontra na ori gem do lugar de culto em Betei. De novo, encon

tramos aqui esta idéia preferida do evangelista do grupo de Estevão,que a presença divina não está ligada a uma localidade, não estámais ligada a esta pedra de Betei onde Jacó viu a escada do Céus.Trata-se da questão do lugar de culto. A partir de agora os céusestão sempre abertos, onde quer que Cristo esteja. Ele é a ponte,sobre quem os anj os ascendem e descendem. Em Cristo há um vaivém

contínuo crítre o céu e a terra37. Ele substitui o lugar de culto.O capítulo que segue, capítulo 2, fala todavia do templo: de sua purificação. Este aicontecimento teve lugar certamente no final da vidade Jesus onde se emcontra efetivamente nos Sinópticos, pois ele explica em parte as medidas tomadas pelos judeus, o ódio sobretudo por

 parte do sumo sacerdote. Por que, pois, o Quarto Evangelho o coliocou

36 R. RE ITZ EN ST EIN - H. H. SCHAE DE R, Studien zun antiken sinkretismus aus Iran  und Griechenland , 11926, 318. Cf. também, C. F. BURNEY, The Aramaic Origin of   the Fourth Gospel , 1922, 35 s.

37 O fato de q ue J e su s seja cha m ado de o Filho do H om em m e recorda, tod a’via, asult imas frases de Estêvão.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 47

no princípio do ministério de Jesus? A resposta se impõe: para sublinhar a importância que se dá neste evangelho à idéia de culto.

 Neste caso de purificação se põe de manifesto de maneira particularmente visível o que toda vida de Jesus deve ilustrar, isto é,que no que se sucede o culto não esta mais ligado ao templo, mas à pessoa de Cristo. Ao expulsar os vendedores de pombas e oscambistas que trocavam a moeda oficial pela moeda utilizada no(emplo, Jesus atacou, no fundo, todo o sistema de culto do templo.

Pois os vendedores e os cambistas eram necessários para o bomfuncionamento deste culto.

 No final do relato, o evangelista interpreta, à sua maneira, aIrase pronunciada por Cristo: destruam este templo, e eu o levantareiem três dias. Ele falava de seu próprio corpo, disse o evangelista, esublinha que só depois da ressurreição de Cristo os discípulos com

 preenderam o pensamento de Jesus. Nós encontramos aí, todavia, aidéia de que Cristo crucificado e ressuscitado assume o lugar dotemplo. Ao mesmo tempo, o autor sabe sem dúvida que o próprioJesus ao falar do templo, que Ele construiria e que não seria feito pormãos humanas (Mc 14.58)38, apontava para a comunidade de discí

 pulos. Cristo está ali onde esta a comunidade. Templo - Cristo -

comunidade: as três coisas seguem-se unidas.O interesse pelo culto pode ser seguido por todo o evangelho

 joanino. Em meu estudo sobre os sacramentos no Quarto Evangelho,me esforcei por mostrar que muitas passagens joaninas estão destinadas a ilustrar a idéia de que, depois de sua ressurreição, Cristo está presente na Igreja, no batismo e na eucaristia39. Encontramos aqui a

idéia espalhada nos grupos esotéricos (Qumran!) de que os sacrifíciossão substituídos pelo batismo e o banquete sagrado, porém no evangelho joanino, e isto é o que tem de novo, batismo e eucaristia estãounidos à pessoa de Cristo.  Em última análise, pois, é Cristo quemsubstitui o templo: antes de sua morte e ressurreição, a presença divinase manifesta em sua encarnação, depois nos sacramentos.

 Não pretendo defender que o autor do Apocalipse pertença aomesmo grupo joanino. Porém, a idéia do templo o preocupa também,

’!i Cf. mais atrás, pp. 39 s.O. CULLMANN,  Les sacram ents dans l ”evangile joh an n iq ue ,  1951.

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48 O s c a r   C u l l m a n n

como se depreende da visão da Jerusalém celeste (Ap. 21.22): nãovê templo nela, pois seu templo é o Deus todo poderoso e o cordeiro40.Temos aqui exatamente a idéia do Evangelho.

Temos chegado ao fim de nossa exposição, vemos, pois, comosem perder nada de sua originalidade, o pensamento joanino serelaciona com a esfera espiritual que temos estudado. A filiaçãoque explica esta comunhão de pensamento me parece ser esta:

 judaísmo esotérico - helenistas de Atos - grupo joanino. O grupo joanino foi recrutado, sobretudo, do círculo de João Batista, e estáestreitamente aparentado (se não idêntico) com o grupo de Estevão,denominado “helenistas”.

Se esta filiação é exata, compreendemos melhor por que já no Novo Testamento encontramos dois tipos de cristianismo tãodiferentes: o tipo sinóptico e o tipo joanino. Neste caso, não será

 possível, no que se sucede, considerar o tipo joanino, com o que se pode relacionar, ademais, à Epístola aos Hebreus, como um produtotardio (e não palestino) pela simples razão de que ele é mais estranhoàs tendências do judaísmo oficial que o tipo sinóptico. Se nósconhecemos melhor o tipo cristão que está mais próximo ao judaísmooficial, é porque o segundo tipo parece haver sido relegado a umsegundo plano por conseqüência da perseguição de Estevão; e ademais

 porque o tipo paulino, distinto por sua vez do tipo sinóptico e do tipohelenista, é o que tende a tomar a proeminência.

 Não propomos a questão de saber em qual dos grupos pertenceo próprio Jesus, pois isto exigiria um estudo à parte. Ele próprio

 participou do grupo de João Batista antes de começar seu ministério.Por outro lado, é necessário admitir que o grupo que o livro de Atoschama helenistas existiu antes de Jesus, pois se trata de um grupo

 judeu que existe desde o primeiro momento da constituição da

* Pode-se encontrar certamente no Apocalipse outra corrente segundo a qual há umtemplo celeste (11.19) conforme a tradição da escatologia judaica . Cf. M. SIMON,

 Retour du Chris í et reconstr uctio n du te m ple dans la pensée chrétie nne p r im itiv e ,

em  A u x sources de la trad ition chrétienne.  Melanges Goguel, 1950, 247 s. Estadualidade corresponde àquela que já temos comprovado a propósito de Qumran porum lado: espera do culto em um templo concreto ideal e, por outro, espiritualizaçâodo culto, portanto, espera da abolição de todo culto em um templo concreto. Cf. aimportante obra de Y. M. J. CONGAR, El mistério dei templo.  Barcelona, 1964, quea p a r e c e u d e m a s i a d a m e n t e t a r d e p a r a p o d e r s e r u t i l i z a d a n e s t e t r a b a l h o .

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I Ia s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 49

comunidade de Jerusalém. Não podemos tratar aqui das relaçõesentre Jesus e este grupo. Diremos somente que Jesus não só purificouo templo, como também pronunciou frases sobre o templo que julgou

ter um papel importante em seu processo. A expressão: eu destruirei este templo e o reconstruirei é, segundo os sinópticos, um falsotestemunho que as falsas testemunhas proferiram contra Ele, comodiz Marcos (14.57-58). Porém, Ele certamente disse outra coisa.Por um lado (Mc 13.2): “não ficará deste templo pedra sobre pedraque não seja derribada”; e por outro: “Eu construirei um templo não

leito por mãos humanas” (Mc 14.58 = comunidade de discípulos).Km João 2, as duas afirmações estão combinadas na declaração quelemos no v. 19:  destruam  este templo e  Eu  o reconstruirei. Querdizer: se este templo é destruído, eu o reconstruirei.

 Não podemos resolver aqui a questão de saber se Jesus estámais próximo do tipo sinóptico ou do tipo joanino. Pois Ele está para

mais além dos grupos, e o encontramos, por conseguinte, nos dois.E certo, nós não tomamos como ponto de partida para conhecer avida de Jesus o evangelho joanino, ainda quando não se possa eliminá-lo como fonte41, pois a partir do ponto de vista literário ele é maisrecente que os sinópticos. Trata-se do joanismo que está na base doevangelho, e sob este aspecto é conveniente não eliminá-lo comple

tamente de uma maneira unilateral, como estamos habituados afazer quando se trata de conhecer o pensamento de Jesus.

Se a solução do enigma joanino é a que eu vos tenho propostoà luz dos novos descobrimentos, isto tem inevitavelmente conseqüências concernentes a nossa maneira de compreender as origensdo cristianismo.

41 É sobretudo M. GO GU EL quem, em sua Vie de Jésus,  mostrou que, especialmente para o rela to da paix ão, as referência s histó ric as contidas no Quarto Evangelh o sãofreqüentemente mais exatas. Cf. também O. CULLMANN,  Dieu et César.  Neuchâtel,1956.

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SAMARIA E AS ORIGENS 

DA MISSÃO CRISTÃQuem são os AAOI  ”  de Jo 4.381

3

 No evangelho segundo Mateus (10.5), Jesus disse a seus dis

cípulos: “Não entreis em nenhuma cidade de Samaria”. Isto querdizer que Ele compartilha o ódio do povo judeu para com Samaria,esse país síncretísta religioso onde somente um judaísmo truncadohavia encontrado lugar?1Sabemos que os samaritanos não reconheciam mais que o Pentateuco, o qual haviam ademais modificado otexto2; que estes recusavam o culto do templo de Jerusalém e queofereciam seu próprio culto sobre o monte Gerazim3, até depois dadestruição do santuário (que ali haviam erigido) no ano 128 a.C. porJoão Hircano4.

A recomendação de Mt 10.15 está precedida desta outra: “Nãovos ponhais a caminho com os pagãos”. E certo que não é com basenum preconceito nacional que Jesus tinha preceituado, com a ordemque dá aos discípulos de não estender Sua missão aos pagãos, mas

em respeito ao plano de Deus que quer que “a salvação tenha seu ponto de partida nos judeus” (Jo 4.22). Assim, apesar da interdição de

Sobre Samaria, cf. E. SCHÜRER, Geschichte des jüd isch en Volks im Z eütalter Jesu  Christi,  4 (1907), 19 s.; J. A. MONTGOMERY, The samaritans,  1907; A. E. COWLEY,The samar i tan Li turgy ,   1909; J . E . H. THOMSON, T h e S a m a r i t a n s , 1919; E.HAEFELI, Geschich te der Landschaf t Samar ien von 722  v. Chr. bis 67 n. Chr., 

1922; M. GASTER, The Samari tans ,  1925; J. JEREMIAS,  D ie P assah fw eier der  samar i taner ,   1932.

' O primeiro sacrifício em Canaã (Dt 27.4) não aconteceu sobre o monte Ebal, massobre o monte Gerazim, montanha da benção (Dt 11.29; 27.12).

' Jos. Ant., XIII, 2,3; XIII, 3, 4; XVIII, 4, 1; João 4.20.1Jos. Ant., XIII, 9,1.

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52 O s c a r   C u l l m a n n

Mt 10.5, Ele pode predizer, por outro lado, que “muitos virão do oriente edo ocidente, e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino

dos céus, e em troca os filhos do reino serão lançados para fora, nastrevas” (Mt 8.11; Lc 13.29); e que “os homens de Nínive se levantarãono juízo com esta geração e a condenarão” (Mt 12.41; Lc 11.32).

O mesmo sucede com a atitude de Jesus em relação à Samaria.O Evangelho segundo Lucas, que não refere a expressão de Mt10.5, atribui não obstante a Jesus a intenção de fazer um descanso

em Samaria em sua viagem à Jerusalém. Enquanto os discípulos,ante a atitude dos samaritanos que não querem recebê-lo, pedemque desça fogo do céu, Jesus os repreende (Lc 9.51 s.). No evangelho segundo Lucas (10.30 s.) lemos a parábola do bom samaritanoque implicitamente condena os preconceitos raciais. E também noEvangelho segundo Lucas, no qual lemos que, entre os dez leprosos

curados por Jesus, só o samaritano se prostra diante dele para dar-lhe graças (Lc 17.11 s.). Portanto, o terceiro evangelho se interessa

 particularmente pelas relações entre Jesus e Samaria.Sabemos que depois da morte do mestre, os apóstolos inaugu

raram a missão entre os pagãos. Porém, o livro de Atos nos refereque esta foi precedida precisamente pela missão em Samaria. Esta

abriu o caminho, por assim dizer, à pregação do evangelho entre os pagãos. Podemos dizer então que Samaria viu  os começos da mis

 são cristã. Aqui pela primeira vez, o Evangelho entrou num país quefazia parte da comunidade judaica. Por conseguinte, temos que daruma importância primordial a esta missão em Samaria.

Os cristãos indo à Samaria, como aqueles que mais tarde inau

guraram a missão entre os pagãos, estão convencidos de não estarem em contradição por isto com a vontade de Jesus. O Evangelhosegundo Mateus (28.19) nos refere às frases pelas quais o ressuscitado ordena à seus discípulos “ensinarem todos os povos”; e emAtos 1.8, Jesus aparecendo aos seus lhes prediz que seriam suas“testemunhas em Jerusalém, e em toda a Judéia e Samaria e até aos

confins da terra”. A idéia de que o Evangelho deva ser pregado aos pagãos dos confins da terra, faz parte do fundo comum das crençasdo cristianismo primitivo5. Samaria representa a primeira etapa da

5 Cf. O. CU LL M A NN , Cristo y el Tiempo.  Esteia, Barcelona, 1967, 137.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 53

execução desse plano divino. Era, pois, sumamente importante paraos primeiros cristãos terem a certeza de trabalharem segundo a von

tade de Cristo ao dirigirem-se a esse país.Esta questão nos parece ser uma das muitas preocupações doautor do  Evangelho joanino.  Em geral, este evangelista pretendeapresentar em uma mesma perspectiva o Cristo da Igreja e o Jesushistórico, traçar a linha que vai da vida de Jesus às diversas manifestações da vida da Igreja. Nós tentamos mostrá-lo anteriormente pelo

culto da Igreja6. Porém o culto não é a única manifestação destavida. Ao lado dela está precisamente a missão. Também comprovamos no Quarto Evangelho, em sua maneira de narrar a vida deJesus, um interesse particular pela obra missionária. Em Jo 12.20 s.,o autor introduz os gregos que expressam o desejo de ver a Cristo.Este não acede a sua demanda falando da necessidade prévia de sua

morte e de sua glorificação. O evangelista quer insistir com istosobre o fato de que, segundo a vontade do mesmo Jesus, a missãoentre os pagãos não deveria ser inaugurada senão após a sua morte.

Porém, ele se interessa de maneira especial pela origem da pregação do Evangelho fora do povo judeu: a missão em Samaria.Ele quer pôr em evidência que também ela tem como autor o mesmo

Jesus, se bem que durante sua vida, tenha recomendado aos seusevitar “as cidades de Samaria”. O Capítulo 4 refere o encontro entreJesus e a samaritana. Este diálogo lhe apresenta por um lado aoportunidade de falar do verdadeiro culto “em espírito e em verdade’”oposto, por sua vez, ao culto judeu do templo de Jerusalém e ao cultosamaritano de Gerazim (v. 20 s.); porém o que interessa, antes de

tudo, nesse relato é o próprio fundamento da missão em Samariafeita por Jesus. Ele responde à acusação que certamente foi suscitadaentre os primeiros cristãos: a missão nesse país semi-judeu, tão infielao plano divino, é querida por Cristo?

 Nós não pensamos que a mulher samaritana seja para o autoruma personagem fictícia, uma representação figurativa de Samaria.

É provável que, como em todo o Evangelho, o evangelista reúna aquias duas coisas: uma tradição da vida de Jesus e sua significação para

6 O. CU LL M AN N,  Les Sacram ents dans Vévengile johannique; La vie de Jésus et le culte de 1'Église primitive , 1951.

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54 O s c a r   C u l l m a n n

a Igreja7. Assim o evangelista atribui - em seu relato - ao mesmotempo um papel tipológico à samaritana. Os cinco maridos que ela

teve e o marido atual que “não era seu marido” correspondem perfeitamente à situação de Samaria descrita em 2 Reis 17.24-34 e Jos.Ant., IX, 14.3, para que esta aproximação que se impõe possa passar desapercebida ao espírito do evangelista8. Com efeito, segundoestas passagens, depois da destruição do reino do norte, cinco tribos

 babilônicas se estabeleceram em Samaria. Elas levaram suas divin

dades9, porém depois adoraram igualmente a Yavé. As relaçõesmatrimoniais da samaritana têm, sem dúvida, no conjunto do relato, afinalidade de ilustrar, seguindo o exemplo do profeta Oséias, o cultoilegítimo de Samaria cujos habitantes, segundo Sir. 1.25-26, “não sãoum povo”. A conversão cristã de Samaria está prefigurada no episódio junto ao poço de Jacó, narrado em João 4. Os samaritanos têm

uma certa crença messiânica: esperam a vinda de Taeb10que semanifestará em um quadro puramente terrestre. A samaritana fezalusão a isso e Jesus lhe disse: “Eu sou o Messias! Eu que estoufalando com você”. (4.25 s.).

Mas é o epílogo do relato, os versículos 31 s., a conversaçãocom os discípulos que voltam da cidade, o que nos interessa aqui

antes de tudo. No momento em que os samaritanos de Sicar chegam(v. 31), Jesus contempla a esplanada dos trigais em tomo do poço de

1 Cf. O. CULLMANN,  L es sacram ents dans Vévangile jo hann ique ,  9 s.8 Percebido já por um copis ta do sec. XIII (cf . E. NESTLE,  D ie f ü n f M ãnner des 

samaritanischen Weibs:  ZNTW [1904] 166 s.), é atribuído ao evangelista por W.BAUER,  D as jo h a n n e s se vangelium ,  3(1933), 75; E. C. HOSKYNS, The fou r th  Gospel,  1947, 242; H. STRATHMANN,  D as E vangeliu m nach Johannes,  1951, 84e outros; M. LAGRANGE, Évangile selon saint Jean,  1948, 110; J. H. BERNARD,The Gospel according to st. John   (I.C.C.), 1928, vol. I, 143 s.; W. F. HOWARD, TheFourth Gospel in recent Criticism and Interpretation,   1931, 184 s., e R. BULTMANN,

 D as Evangelium des Johannes,  1941, 138, n. 4, insistem sobre as dificuldades dessarelação intencionada (cf . a nota seguinte) . Em nossa obra  L es sa c ra m en ts dansVévangile joh ann ique,   54, nos expressamos de uma maneira reservada em relação aesta interpretação, que achamos difícil de comprovar hoje, sem negar por isto a outrasignificação que o evangelista parece atribuir a esse traço.

9 O fato manifestado, entre outros, por W. F. HOWARD e R. BULTMANN, de que duasdas cinco tribos levaram duas divindades, de sorte que se chegaria a um total de sete enão de cinco divindades, não tem a importância que estes críticos lhe atribuíram. Aout i l izarem o Ant igo Testamento, os autores cr is tãos não se envolvem jamais emdetalhes deste tipo.

"'A.  M liR X , D er M essia s oder T a ’eb der sam arita ner,  1910.

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D a s O r i g e n s d o E v a n g e l h o à Fo r m a ç ã o d a T e o l o g i a C r i s t ã 55

Jacó. Estes lhe sugeriram a comparação com os campos de  missão. A imagem era corrente para Jesus. Encontramo-la no logion sinóptico

de Mt 9.37 s. sobre a colheita e os trabalhadores. Ao contemplar amissão em Samaria, o Cristo joanino pensa no tempo da semeadurae da ceifa: “Não dizeis vós: faltam todavia quatro meses para acolheita?” (v. 35).

 Nós sabemos que na Palestina as semeaduras acontecem emoutubro ou novembro e a ceifa em abril11, de sorte que seis meses

separam a semeadura da ceifa. Os campos que Jesus e seus discí pulos vêem diante de si quatro meses antes da ceifa estão todaviaverdes. Temos aqui pois o sentido da frase de Jesus: quando se tratados campos no sentido próprio, um certo lapso de tempo deve mediara semeadura e a ceifa; para os campos no sentido figurado, os cam

 pos nissonários, não é assim. Ao dizer: “levantai vossos olhos”, Jesus

intenta assinalar com o dedo os samaritanos vindos de Sicar que,informados pela mulher, vêm ver aquele que revelou o passado dela.Ele faz ver aos discípulos um campo onde o tempo da semeadura e oda ceifa coincidem: nesse campo, o tempo da colheita já tem chegado; já chegou aos samaritanos. O v. 36b o sublinha: “O que semeouse alegra igual ao que colhe”.

Todavia a colheita feita por Jesus no momento em que o povode Sicar aflue em direção a Ele não é mais que uma antecipação daverdadeira colheita que está reservada em Samaria aos Apóstolos,depois da morte de Jesus. Ainda que em Jesus o que semeia se identifique com o que ceifa, o velho provérbio12citado no v. 37 segue tendorazão: “Um é o que semeia e outro o que ceifa”13. E verdadeiro sob

condição de que se una com a afirmação precedente à simultaneidadeda alegria daquele que semeia e do que ceifa. Porque detrás dos apóstolos que colherão se encontrará, todavia, Jesus. Assim o que acontece junto ao poço de Jacó, onde Jesus semeia e colhe ao mesmo tempo,se repetirá brevemente na missão que os discípulos organizarão emSamaria depois de sua morte. E verdade que serão os discípulos que

recolherão, porém Cristo atuará: • y   • • KmfíXEika  *piaç (v. 38).

11  G. DALMAN,  A rbeit und S it te in P alã stin a   I, 1928, 164 s., 413 s.

12  Toyoç   = provérbio; cf. as referências em W. BAU ER, o. c., IA.

13  A idéia só é declarada. Veja os textos em R. BULTMANN, o. c.,  146, n. 6 .

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56 O s c a r   C u l l m a n n

Como sempre, o evangelista traça a linha que vai da vidahistórica de Jesus à Igreja de Cristo. A semeadura (João 4) e a ceifa

(a futura missão em Samaria) remontam a Cristo. O evangelista querdissipar os preconceitos existentes relacionados a esta obra missionáriaque se embasavam, provavelmente sem razão, sobre a frase de Jesusreferida por Mateus: “Não entreis em nenhuma cidade de Samaria”.

Até aqui o texto é relativamente fácil de interpretar. A situação se complica no v. 38b: “Outros realizaram o trabalho árduo, e

vocês vieram a usufruir do trabalho deles”. Entre aquele que semeiae os que colhem, uma terceira categoria é introduzida: “outros” quetrabalharam - em Samaria - antes dos apóstolos. Quem são esses• AAoi? Não podem ser identificados nem com Jesus, “aquele quesemeia”, por ser um termo plural, nem com os apóstolos que ceifam.

 Não esqueçamos que o Cristo joanino se acomoda aqui ao ponto de

vista da Igreja do tempo do evangelista, posto que fala, empregandoo perfeito (e^OE/LrjA* 6axe),  da obra missionária que será realizada somente pelos apóstolos. Por conseguinte, nãó é necessário pensar aqui, como certos pais da antigüidade14, aos quais segue M.-J.Lagrange15que entendiam os “outros”como os profetas ou os justosdo Antigo Testamento, explicação que em nada é sugerida no texto,

e muito menos em João Batista, como o propõe E. Lohmeyer16.R. Bultamann se inclina pela solução que parece impor-se, ao dizerque os “* AAoi” são todos os que - com Jesus - são precursores notrabalho missionário. Ademais, Harnack mostrou, com razão, quenos escritos cristãos do primeiro século “  k o k i * eo”  tem um sentidotécnico que designa sobretudo a atividade missionária17. Será que o

autor não pensa em um fato preciso? Trata-se de uma comissãoconcreta, da missão em Samaria. Quem são, pois, esses misteriososmissionários que, em Samaria, abriram, o caminho aos apóstolos?

Acreditamos que o livro de Atos nos dá a resposta. Temosvisto que o evangelho segundo Lucas se interessa de uma maneira

14  ORIGENES, XIII, 50, 325 s.; Cris., 198 a ; TEOD. MOPS., 104 e outros (cf. W.BAUER, o. c.,  74).

15  Évangile selon saint Jean,  19488, 120.16  D as Urchrisíentum   /, 1932, 26, n. 3, seguindo uma sugestão de W. BACON,  N ew and  

Old in Jesus’ Relation to John:  JoumBiblLit (1929) 53 s.17  A. VON HARNACK, koo^xov, im jrühchrístilichen Sprachgebrauch:  ZNTW (1928) ls.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  ã  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 57

especial pelas relações entre Jesus e os samaritanos. Que nos diz olivro de Atos sobre as origens da missão em Samaria? Atos 8. l-4s.

refere que a obra missionária em Samaria foi inaugurada pelos helenistas, em particular por Filipe, um dos “sete”, e que só depoisos apóstolos Pedro e João “se fizeram responsáveis por seu campode trabalho”. “Os apóstolos em Jerusalém, ouvindo que Samaria haviaaceitado a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João”. (Atos8.14).

 Na história do cristianismo primitivo deveríamos atribuir umaimportância maior a esses helenistas da primeira comunidade. A fundosó conhecemos um: Estevão. De Felipe sabemos precisamente que

 pregou com êxito o Evangelho junto com os outros membros do mesmogrupo em Samaria; conhecemos somente os nomes de seus cincocolaboradores; os outros, nos são desconhecidos. Há um bom tempo,

se disse com razão que a competência dos sete devia ultrapassar asquestões relativas à capacitação exigida e que na realidade deviamrepresentar para o grupo helenista uma autoridade paralela àautoridade dos doze18.

O livro de Atos nos leva a reconhecer no discurso de Estevão(Atos 7.2 s.) as idéias teológicas particulares dos helenistas; estes

condenavam  o culto do templo. Estevão apresenta como o ápice dainfidelidade do povo judeu a construção do templo de Salomão,enquanto que “o todo poderoso não habita no que é feito por mãoshumanas”19. Estas são as idéias revolucionárias que valeram a Estevão o apedrejamento por parte dos judeus, e estas idéias estão na

 base da primeira perseguição dos cristãos.  Isto não diz respeito a

toda igreja em Jerusalém, mas unicamente^a este grupo dos helenistas, partidários de Estevão. Seria/interessante'saber se existe um laçoentre esses helenistas e os membros da seita essênia que os textosde Qumran nos dão a conhecer. Os doze não compartilhavam dasidéias dos helenistas sobre o culto do templo, e manifestamente nãoforam solidários com estes no momento da perseguição. Por isso não

foram incomodados, podendo permanecer em Jerusalém (Atos 8.1).

IH Cf. S. G. BRAN DO N, The Fa li o f Jerusalem and the Christian Church,  1951, 89, 127 s.Sobre os antecedentes da polêmica contra o templo, cf. H. J. SCHOPS. Theologie und  Geschichel des Judenchrisíeníims,  1949, 133 e M. SIMON, Verus Israel,  1948, 56.

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58 O s c a r   C u l l m a n n

Esta primeira perseguição dá lugar à primeira missão cristã,que é precisamente a missão em Samaria. Com efeito, os helenistasexpulsos de Jerusalém pregaram o evangelho nas regiões onde serefugiaram, e o livro de Atos nos fala de sua atividade em Samaria.Por que se voltaram precisamente em direção à Samaria? Compreendemos este fato perfeitamente quando nos recordamos que ossamaritanos recusavam também o culto do templo e que, sob esteaspecto, estavam próximos aos helenistas. Não seria a coisa maisnatural para aqueles que haviam sido perseguidos por causa de suaoposição ao templo de Jerusalém, que se refugiassem junto àquelescuja mesma questão lhes separava há muito tempo dos judeus?

Este fato teve uma importância capital para a expansão docristianismo. Ainda que, com o tempo, segundo as indicações de Justinomártir20 e certos indícios contidos no livro de Atos (8.18 s.), a religiãosimoníaca parece ter sido um rival perigoso para a fé cristã21, esta

 primeira missão entre os pagãos que, sem serem judeus, estavamtodavia aparentados com os primeiros missionários por certas crençascomuns, formava a condição de uma transição natural à missão entreos pagãos.

Pedro e João não fizeram senão colher em Samaria, onde o

verdadeiro “trabalho” missionário fôra realizado por estes “outros”,os helenistas, cuja maior parte era anônima. Portanto, isto deve tersido decisivo também para Pedro. Pois, pouco tempo depois destesacontecimentos, o vemos, no livro de Atos, inaugurar a missão entreos pagãos. Pedro que sempre parece ter ocupado um lugar intermediário entre as partes, não esteve, desde esse momento, mais pró

ximo dos helenistas do que outros colegas seus, em particular Tiago?22E não compartilhará por sua vez, um pouco mais tarde, a mesmasorte dos helenistas? A história não se repetirá, quando ele for encarcerado em Jerusalém, enquanto que a Tiago não sobrevirá nada; omesmo que em outro tempo quando os helenistas foram perseguidos

20  Apol., I, 26, 2 s.; I,  D iá l. con Trifón  120.21  Cf. L. CERFAUX,  La gnose simonienne.  Nas principais fontes: RechScRel (1926) 5 s.,

e (1929) 489 s.22  Cf. O. CULLMANN, Saint Pierre. Disciple, apôtre, martyr. Histoire et théologie,  

1952, 57, e W. GRUNDMANN,  D as P rob lem des h e llen is tsch en C hristen tum s  innerrhalb der Jerusalemer Urgemeinde : ZNTW (1939) 45.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r is t ã 5 9

enquanto que aos doze não sobreveio nenhum inquietamento? E istonão será a razão pela qual Pedro abandonará Jerusalém e Tiago

dirigirá definitivamente a comunidade na cidade santa? Nós sabemos que existe uma relação particular entre o Evangelho segundo Lucas e o Evangelho joanino. Tão pouco deve nossurpreender que, sobre este ponto, também o Quarto Evangelho remonte à tradição relativa ao laço que une os helenistas à Samaria,enquanto que o livro de Atos nos tem conservado os traços que mini

mizam sua importância. O autor do Quarto Evangelho se interessa particularmente por estes primeiros missionários. Ele lhes dá a honraque lhes é devida sublinhando seu papel de iniciadores da pregaçãodo Evangelho entre os samaritanos, que recusavam também o cultodo templo de Jerusalém. É necessário recordar aqui que, desde ocomeço do livro, o evangelho joanino se ocupa da questão do templo

(Jo 2.13 s.).A censura que os judeus fazem a Jesus: “Você é samaritano”(Jo 8.48), não será mais que um vago insulto? Não será uma alusãoao fato de que o próprio Jesus, como os samaritanos, e como maistarde os helenistas, foram criticados por sua atitude em relação aoculto do templo?

Seja o que for, o essencial para o autor em Jo 4.33 s., é mostrarque esta missão era querida por Cristo. Ele havia lançado as bases junto ao poço de Jacó. É Ele quem/éstíTpdr-detrás dos  o f  esses valentes missionários helenistas. É Ele, enfim, quem dirige amissão por todas as partes onde o Evangelho é pregado, como tambémnesse país problemático que é SamariaX

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O CARÁTER ESCATOLÓGICO DO DEVER MISSIONÁRIO E DA 

CONSCIÊNCIA APOSTÓLICA DE SÃO PAULO

 Estudo sobre o KdVXOV (- covj de 2 Ts 2.6-7.

A passagem da segunda Epístola aos Tessalonicenses consagrada ao Anticristo (2.1-12), e em particular os dois versículos(6-7) relativos ao obstáculo “que detém” no momento a vinda doAnticristo, são daqueles que suscitaram maior número de estudos e

de hipóteses, até tal ponto que, já em 1894, um exegeta alemão pôdeconsagrar 60 páginas de seu comentário à “história da interpretaçãode 2 Ts 2.1-12”1. Desde então, a literatura a este respeito tem aumentado. Quando se estuda esta história, se tem às vezes a impressão deque todo exegeta que se tem ocupado do Novo Testamento tem quasecomo um dever propor sua solução pessoal ao problema que o autorda segunda Epístola aos Tessalonicenses delineou aos teólogos dosséculos posteriores ao referir-se com uma simples alusão a “o que odetém” (kü.t*%ov, v. 6) e “aquele que o detém” (kgt*%0)V, v . 7).

Para os primeiros leitores da carta, essa simples referência erasuficiente, posto que estes sabiam bem de que se tratava; o remetente

4

1 W. BORNEMANN,  D ie Tessaloncherbriefe,  5a e 6a na coleção Meyer, 400-459; E. VONDOBSCHÜTZ, que comentou a Epístola aos Tessalonicenses na 7a edição da mesmacoleção (1909), não indica, em seu excelente comentário, mais que o essencial destahistória. Nesta parte recorremos a Bomemann, para ter uma informação mais completa.

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62 O s c a r   C u l l m a n n

da carta2 os recorda expressamente: o*<5are (v. 6), vós sabeis!Poderíamos perguntar, diante do número desconcertante de solu

ções diferentes e freqüentemente contraditórias que se tem pro posto, se a atitude mais sábia para a crítica do século XX não seriaopor ao “saber” dos destinatários da carta um resignado ignora

 mos.  Sem deduzir esta conclusão de desesperança, nós estimamosque efetivamente uma certa reserva se impõe, posto que se tratade um problema no qual os dados seguros são pouco numerosos.

 Ninguém pense que procedemos levianamente se decidimos somarmais uma solução àquelas que já foram propostas. Sentimo-nosestimulados a isto por três considerações. Antes de tudo, o quadrogeral - escatologia e dever missionário - no qual nossa interpretação permite considerar o texto em questão, se desprende suficientemente do conjunto de outros textos menos controvertidos; de sorte

que, a exposição que nós lhe consagraremos poderia, com todorigor, bastar-se a si mesma, independentemente da passagem de 2Ts 2.6-7 que, segundo nós, não faz senão pôr em evidência os contornos concretos desse quadro.

Por outro lado, sendo reconhecida a necessidade de recorrer auma hipótese, para a interpretação de 2 Tes. 2.6-7, como inevitável e

 por conseguinte como legítima, esta questão não se tratará mais doque medir o grau de verossimilhança. Com efeito, nos parece certoque a hipótese com mais êxito, que identificou o “obstáculo” retardadorda vinda do Anticristo com o Império Romano, não é a mais verossímil3.

Enfim, ao propor uma solução nova da passagem tão discutida,nós temos o consolo de ampliar, nada mais que parcialmente, a lista

 já demasiadamente ampla das hipóteses propostas, já que ao menosum dos elementos de nossa explicação se encontra, sob uma formadiferente é verdade, tanto no comentário de Calvino sobre a segundaEpístola aos Tessalonicenses, como em até certa medida muito tempoantes, no século V de Teodoreto de Ciro4, representante da escola

2  Admitimos com a maior parte dos críticos modernos a autenticidade da segunda cartaaos Tessalonicenses. Se nossa explicação de K 0n:*xov é exata, constitui um argumentoa mais em favor de sua autenticidade. Toda a primeira parte de nossa hipótese é, poroutro lado, independente desta questão.

3  Veja mais adiante, pp. 63 s.4  PG, 82, col. 664 s.; cf. mais adiante, 69.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 6 3

exegética de Antioquia e discípulo de Teodoro de Mopsuestia que jáhavia dado uma intóípretaçãÔNanáloga.

1. Crítica das duqs principais hipóteses sobre os obstáculo de  2 Ts 2.6-7 ^

Limitaremos o exame exegético de 2 Ts 2 à questão de saberqual é o enigmático poder que detém o Anticristo atualmente. Sem

 perder de vista o contexto sobre a interpretação na qual os críticos

coincidem quase unanimemente, estudaremos antes de tudo os v. 67 que nós traduzimos assim: “v. 6: e o que detém agora o homem dainiqüidade5, a fim de que não se manifeste até seu tempo, vós o sabeis.V. 7: Porque o mistério da iniqüidade já está em ação; somente (énecessário esperar) até que, o que o detém agora, seja afastado”.

O verbo grego KaT%£iv que nós traduzimos por “deter”

significa “ter cativo”, “impedir que um poder hostil se manifeste”.Porém, também se emprega com sentido temporal de “retardar”,sobretudo em um contexto cronológico. Toda explicação deverá levarem consideração este duplo sentido6.

Com von Dobschütz7e a maior parte dos críticos modernos,somos da opinião que é necessário descartar todos os intentos de

considerar o neutro do v. 6 x* • toax* %ov como apontando para um poder totalmente diferente daquele que está indicado pelo masculinodo v. 7 • %(/.!• %o)v. Seria necessário, por assim dizer, atribuir ao autoruma intenção consciente de formular aos leitores um verdadeiro enigma para admitir que, em dois versículos que se seguem, ele tenhaempregado o mesmo particípio em dois sentidos absolutamente dife

rentes. Pensamos que Freese8não conseguiu provar o contrário, eapesar de seu artigo relativamente recente, nós consideramos esse

 ponto como seguro. O neutro do v. 6, “o que  o detém”, designa afunção impessoal do obstáculo, o masculino do v. 7, “aquele que o

5  N ós unim os v *v com KCtt^XOV (com M. D IBE LIU S,  An die Thesalo nic her   I, II,

(1925), 39, e contra E. VON DOBSCHÜTZ, o. c.,  278).6 Sobre o sentido de koct^xw cf. PASSOW, Wòrterbuch der griechischen Sprache\  ZORELL, N o v i T estam en ti g ra ccu m ,  1911 ; PREUSCIIEN-BAUER, Griech i sch-Deutsches  Wòrterbuch zu den Schriften des N. T.,  1936, e HANSE em ThWNT de Kittel, 1935.

7  O. c.,  282.8 Theologische Studien und K rit iken,  1920-21, 73 s.

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64 O s c a r   C u l l m a n n

detém”, o agente pessoal desta mesma função. Todavia apesar desse vínculo estreito entre as duas palavras, o exegeta deve explicar

como o autor pode servir-se, para designar no fundo a mesma coisa,tanto do neutro como do masculino. Isto é o que a maior parte dashipóteses propostas se esforçam por fazer9.

 Nós não vamos refazer a história dessas hipóteses. Todavia, énecessário examinar aquela, já mencionada, que identifica o “obstáculo” com o Império Romano. Esta tem o privilégio de ser a mais

antiga: os pais da Igreja e, depois deles, a maior parte dos reformadores, tomaram-na quase canônica, e os sábios modernos como Bous-set10 e Dobschütz11 lhe têm conferido uma espécie de dignidadecientífica. Ademais, esta solução teve a vantagem, durante muitos séculos, de dar um valor atual à profecia de 2 Ts 2. Com efeito, depois daqueda do Império Romano, o Sacro Império germânico, considerado

como sua continuação legítima, herda o papel glorioso de Kax*%ovque retarda a vinda do Anticristo. Porém, se a grande autoridade exterior conferida a esta hipótese não pode impedir que em todo tempo setenha proposto outros intentos de explicação, isto prova que sua evidência não se impõe.

Todavia, é necessário reconhecer que ela teve o mérito de

levar em conta a mudança do neutro para o masculino. O neutrodesignará, nesse caso, o Império, e o masculino um dos imperadores, personificação do Império. E quanto a identificar esse imperador, hámais de uma possibilidade: os nomes de Cláudio12, de Néro13, deVespasiano14como também de Trajano15têm sido propostos16.

W. HADORN,  D ie Abfa ssim g der Thessalonicherbriefe ,  1919 (Beitrãge z. Fõrderung  christlicher Theologie,  vol. 24) crê que se pode irrelevar este fato. Bastaria, segundo

ele, explicar o masculino.10 W. BOUSSET,  D er A ntichris t,   1895, 77 s.11  O. c.

12  WHITBY, Pa raphras i s an d Com m entary o f íhe N. T .,  1718, e entre os críticosmodernos W. HADORN,  D ie A b fa s su n g d e r T h e ssa lo n ich e rb rie fe ,  1919, 113.

Q uis-se ver no part icípio K ax ^c ov um a alusão prec isa ao nome do imperador

C láud io c l a u d e n s   ( r e l a ç ã o r e c u s a d a p o r H A D O R N , o. c., ibid.,   t a m b é m p o rDOBSCHÜTZ, o. c.,  421.

13  WETSTEIN, ver W. BORNEMANN, o. c.,  433.

14 KERN, em ZWissTh (1839); veja BORNEMANN, o. c.,  433.15  HILGENFELD, em ZWissTh (1862).16  HUGO GROTIOS propõe o nome do governador Vitélio (A d N. T. animadversiones,  1641).

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 65

Portanto, esta hipótese se encontra com dificuldades que nósconsideramos quase como insuperáveis. Até se se chega a provar a

Existência de uma tradição apocalíptica pré-cristã, segundo a qual oImpérioNRomano assumiria a função de adversário do Anticristo17,será sempre difícil, se não impossível, admitir que um cristão do

 primeiro século pudesse atribuir este brilhante papel ao ImpérioRomano. Na apocalíptica cristã, o Império Romano aparece, antes

 pelo contrário, como uma encarnação do Anticristo. Mesmo antes

das perseguições de Néro, os cristãos não tinham, todavia, razão para irem tão longe, uma apreciação tão exclusivamente positiva do poder desse mundo se enquadraria mal com a concepção cristã, dessetempo. É verdade que no Capítulo 13 da Epístola aos Romanos, oapóstolo reclama de seus leitores uma lealdade absoluta para com oEstado. Porém, esta recomendação, quando é considerada em relação

ao arcabouço geral do ensino paulino, em particular de textos taiscomo 1Co 6.1 -8, não nos autoriza a atribuir ao apóstolo a idéia segundoa qual ao império pagão se atribuísse um papel tão eminentemente

 positivo no grande drama escatológico18.Finalmente - e este me parece o argumento decisivo - não é

 possível discernir uma relação interna  entre as funções do estado

romano e a data da vinda do Anticristo. A maneira como estásublinhado o fato de que o ícax* %ov retarda todo o drama por esse  momento, quero dizer, segundo o contexto, concernente à última hora,antes da cortina ser levantada, nos faz supor que a ação desteobstáculo, por seu caráter intrínseco, deve estar relacionada a essemomento decisivo; dito de outra maneira: ela mesma deve ser de

ordem essencialmente escatológica.  Ora, as funções do estadoromano tal como são concebidas em Rm 13, não têm nada deescatológico, e a relação estabelecida entre elas e a vinda do Anticristoseria, nesse caso, puramente exterior.

Parece-nos, pois, que é necessário abandonar esta explicaçãoque se poderia chamar de hipótese “histórica”. Por um outro lado,

uma hipótese mais recente (nós a denominaremos “mitológica”), sem17  Este intento foi proposto por W. BOUSSET,  D er A ntichris t,  77 s.18  O ponto frágil da hipótese salta à vista sobretudo quando se considera que, em um

grande número de explicações, é o próprio Anticristo, o mistério da iniqüidade, o queé identificado com os imperadores romanos.

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6 6 O s c a r   C u l l m a n n

explicar, a nosso ver, a passagem de 2 Ts 2, contém provavelmenteelementos de verdade. Desde há muito tempo, esta hipótese desfruta

de certo prestígio, sobretudo graças à autoridade que lhe confere oexcelente comentário de M. D. Dibelius, um dos mais recentessobre as Epístolas aos Tessalonicenses19. Segundo os antigos mitoscosmo-gônicos, existentes em muitos povos, na origem do mundohouve uma luta entre a divindade e seu grande adversário, ummonstro que, para os babilônios, tem a forma de dragão20; para os

 persas, a forma de uma serpente21; para os germanos, a de umlobo22. A divindade se apossou do monstro e o encarcerou. Todavia,no final dos tempos, será posto em liberdade para o combatedefinitivo. Na época atual, está “retido” como prisioneiro. Os traçosdesta concepção podem ser encontrados na literatura judaica. Is27.1; Ap. Bar. sir. 29.4; Enoque 60.24 s.; Esd. 6.52, ela fala de

monstros marinhos que aparecerão no final dos tempos, para seremdestruídos, e outras passagens fazem alusão à existência atual domonstro: Am 9.3; Jó 3.8; 7.12 segundo a LXX, Jo 40.10 s.; Sal.104.2623. A mesma tradição se encontra também no Apocalipse

 joanino (20.2-10) onde o dragão está preso por mil anos, depoissolto e vencido definitivamente.

Parece-nos provável que estas idéias mitológicas subjazem naconcepção do “obstáculo”, tal como o encontramos em 2 Ts 2. Estasnos indicam a origem  distante desta concepção, porém nada mais.Elas não saberiam explicar, de maneira satisfatória, a mudança doneutro para o masculino. O “anjo” que detém cativo o Anticristo não

 poderia ser designado de uma maneira tão vaga por • • • kc c t e xc o v . 

Ademais, as palavras “até que ele tenha desaparecido” (• taç ‘ fc  ju^fjov  y vr\ m.i)  dificilmente se aplicariam a um anjo. Por outrolado, parece certo que o apóstolo pensa que o obstáculo se revestede uma forma concreta  justamente nesse momento, quero dizer,durante o último período do eón atual no qual o mesmo e seus leitores

19  M. DIBELIUS,  An die Thessalonicher   I, II;  An die Philipper ,  2(1925) (H. LIEZTMANN[ed.], Handbuch zum N. T.), 40 s.

20  H. GRESSMANN,  A ltorientali sche Text und B ilder zum A lten Teslament,  1909, 15.21  SÕDERBLOM,  L a vie fu tu re d ’après le m azdéism e,  1901, 258.22  M. DIBELIUS, o.  c., 40, onde se encontra uma bibliografia detalhada.23  Cf. GUNKEL, Schõpfung und Chaos in Urzeit und Endzeit, 1895, 22 s.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 67

têm consciência de viver. Nesse instante decisivo, o  Kax*%(OV  deveser um dos elementos que precede os tempos messiânicos. Por

conseguinte, o apóstolo não se contentou certamente em fazer alusãoà crença muito generalizada do encarceramento do Anticristo24.Mesmo porque, fora do Ap. 20.2-10, onde se trata do milênio, esseencarceramento não é considerado jamais como um sinal do fim dostempos, mas, pelo contrário, caracteriza todo o período compreendidoentre a criação e a inauguração dos tempos messiânicos. Como já o

temos indicado ao criticar a hipótese “histórica”, nós consideramoscomo insuficiente toda explicação que não leva em contaj o caráteressencialmente escatológico do “obstáculo”.

 2. Ponto de partida e enunciado da solução proposta'

O apóstolo insiste sobre o tempo em que ele escreve e que,segundo o contexto, se encontra situado no fim da época pré-messiâ-nica. Toda a segunda Epístola aos Tessalonicenses se refere a essemomento preciso, e seu intento é mostrar que, apesar da iminênciado fim, esse tempo durará até que os tessalonicenses creiam. Nóstemos visto que, nesse quadro cronológico pressuposto por toda a

carta, o obstáculo que “detém” é necessariamente um obstáculo que“retarda”, ou seja, que não deve somente combater o Anticristo, comotambém realizar sua  tarefa própria, tarefa escatológica,  e atrasarassim a manifestação do adversário “a fim de que não apareça até oseu tempo”.

Com efeito, desde há muito tempo, os judeus haviam calcula

do a data da vinda dos tempos messiânicos, havia se formado umatradição, da qual o apóstolo parece ser tributário em grande medida,com relação aos sinais precursores desses tempos. Desde já, se oapóstolo fala de um obstáculo que detém “agora” a vinda do Anticristo e que retarda assim a inauguração da era messiânica, o mais

 provável é que ele faça alusão a um ato pré-messiânico  novo,  do

qual certamente já havia falado aos tessalonicenses, tendo como claro o conhecimento prévio deste assunto por parte dos tessaloni-

24 É o que M. DIBELIUS tentou admitir , o.  c . , 43, porém sem pronunciar-se comcerteza.

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6 8 O s c a r   C  u l l m a n n

censes, porém que não era previsto diretamente no esquema ha

 bitual da apocalíptica judaica.

Se fora de todo recurso a um texto preciso, nos perguntássemos qual pode ser o ato precursor dos tempos messiânicos quenecessariamente deve ter sido intercalado pelo cristianismo no quadro cronológico da apocalíptica judaica, nos veríamos quase inevitavelmente obrigados a responder que é a pregação do Evangelho: aera messiânica, que implica também o juízo, não começará, enquanto

a boa nova anunciada por Cristo não tiver se estendido; e se devêssemos precisar de que forma particular deve ser entendido este ato precursor na época do apóstolo Paulo, e sobretudo sob sua pena, nósconsideramos que aí se impõe uma só resposta: a pregação do Evan

 gelho aos pagãos.

Com efeito, possuímos um texto explícito atestando efetiva

mente a crença cristã segundo a qual o Evangelho deve ser pregado aos pagãos antes que o fim possa chegar: “e é necessárioque antes o Evangelho seja pregado a todos os pagãos (todas asnações)” (Mc 13.10). Esse versículo é seguido, um pouco maisdistante, pelo anúncio da manifestação do Anticristo e das pragasapocalípticas que aparecerão. Na passagem paralela de Mt 24.14,

lemos a mesma afirmação com a forma seguinte: “e este Evangelho do reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho paratodos os pagãos (todas as nações); então virá o fim”. O versículose encontra no grande discurso escatológico que se chama “apocalipse sinóptico”. A questão de saber se este foi interpolado ou nãonesse discurso não tem nenhuma importância para nossa argumen

tação. Porque de todas as maneiras, testemunha a existência dacrença cristã relativa a esse ato que deve preceder o fim. ’Se oversículo foi interpolado, isto confirmaria mais claramente, todavia,que se trata, como nós o admitimos, de um elemento novo introduzido pelo cristianismo no esquema tradicional judaico.

 Nos Evangelhos, a indicação cronológica está sublinhada; em

Marcos: Ttpco»t o v

  “antes”; em Mateus: • *cÓT£ • t* • v A,oç“e então virá o fim”; e este fim é inaugurado pela aparição do Anticristo nos Sinópticos e na Epístola aos Tessalonicenses. A pregaçãodo Evangelho aos pagãos é, pois, o último acontecimento que precede o fim, e a relação deste ato com a escatologia não é puramente

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exterior, como seria o caso para as funções do estado romanosegundo a hipótese “histórica”, e para o poder que detém cativo o

monstro segundo a hipótese “mitológica”. A pregação do Evangelho é, ao contrário, de ordem escatológica por sua vez no que serefere a seu conteúdo (o reino dos céus esta próximo!) e na necessidade da pregação: antes de ser julgado, o mundo inteiro deve tertido a oportunidade de escutar a mensagem. Esta necessidade estáindicada claramente no versículo citado de Marcos: Seim*é neces

 sário  que antes o Evangelho seja pregado! /Se a pregação do Evangelho aos pagãc/s foi efetivamente

inserida pelo cristianismo primitivo no esquema cronológico daapocalíptica judaica, no que diz respeito ao último elemento que deveretardar a aparição dos tempos messiânicos, nos pàreee que a relaçãocom o •  gct  ̂x o v  de 2 Ts 2.6 se impõe. E o que Teodoreto de Ciro25

 parece ter compreendido quando declara, por um lado, seguindo aTeodoro de Mopsuestia26, que “o que o detém” é • “ po% %o v 'Osov • isto é, o plano divino segundo o qual o Anticristo não deve semanifestar até seu tempo, e quando, por outro lado, acrescenta que,conforme a pregação do Senhor, o Evangelho deve ser pregado atodos os pagãos antes do fim. Da mesma maneira disse Calvino, a

 propósito de nossa passagem27, que “o retardo será até que o cursodo Evangelho se tenha cumprido”.28

Se a explicação do exegeta de Antioquia e do reformador teve pouco êxito foi, em primeiro lugar, porque estes não a apoiaramsuficientemente sobre os textos, e, em segundo lugar, porque não

deduziram a conclusão que se impõe para a interpretação do masculinodo versículo 7. Com efeito, a pregação do Evangelho pode relacionar-se com o neutro do versículo 6. Quem é então “aquele que o detém”?

25  PG, 82, col. 664 s.

26  PG, 66 , col. 933.27  Cf. Commentaire de Calvin sur la 2a Epitre aux Thessaloniciens, em referência a 2.6.

28  Ibid. Outros dois exegetas reformados do século da reforma, ZANCHI em seucomentário às Epístolas aos Fil ípenses, Colossenses e Tessalonicenses (Neustad,

1595) e BENEDICTUS ARETIUS (Novum Testamentum explanatum,  1580) tratamde comb inar essa explicação com a identificação do • K f jj o v com o Império Romano.Do lado luterano, N. HEMMING (Commentarius in omnes apostolorum Epístolas, 

Leipzig, 1565) é o único que pensou na pregação do Evangelho.

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70 O s c a r   C u l l m a n n

Segundo a interpretação de Teodoro de Mopsuestia e de Teodoretode Ciro, se pode pensar em Deus. Porém, o apóstolo, depois de terfeito no v. 6 uma alusão tão concreta, cairia em uma generalidadetão vaga? Pois é certo que em última análise é Deus quem detém oAnticristo; porém, a maneira como fala do • eci^xcov não pode serexplicada senão por uma alusão a alguém que, nesse caso, é oinstrumento concreto de Deus. Ademais, dificilmente se poderia dizerde Deus que Ele deve “desaparecer”, ausentar-se, retirar-se do meio.............. tw y* vr|Toa. Quanto a separar completamente “o queo detém” de “aquele que o detém”, demonstramos a absolutaimpossibilidade mais atrás29. Também é necessário lamentar queCalvino, depois de ter dado uma explicação tão feliz do neutro do v. 6,destruía completamente o resultado, ao identificar na continuação desua exposição o masculino do v. 7 com o próprio Anticristo.

Se “o que o detém” é a pregação do Evangelho aos pagãos,“aquele que o detém” não pode ser mais que o órgão chamado aexecutar esta tarefa, isto é, uma pessoa identificada, por assim dizer,de maneira precisa com esta obra. Neste caso, nos parece que aexplicação que propomos para o neutro implica a do masculino: o•fXT*%cov é aquele cuja obra e pensamento estão inteiramentefundados sobre a consciência que tem do chamado a ser “o apóstolo 

 dos pagãos”, me refiro ao próprio apóstolo Paulo. O apóstolo podese considerar, com razão, como • ca*%cov em vista desta tarefarealmente concreta que entra no plano escatológico de Deus.

A identificação do • t u , %cov com o apóstolo pressupõe aidentificação do neutro, • k i *%ov, com a pregação do Evangelhoaos pagãos, como uma relação implicada, por outro lado, quase quelogicamente30. Diante de tudo isto, estabeleceremos mais solidamente

25 Veja mais atrás pp. 63 s.

30 Por esta razão, podemos apenas utilizar para nossa explicação os ensaios que, emout ro tempo, t en taram ident i f icar o • u t  '%o>v   com o após to lo Paulo , por  J. B . 

KOPPE, Quis sit   • • «repcoTioç x* ç • j t a p ^ a ç e quis  •• • kt*%cov 2Thess. 2.2-13, Gõt t ingen, 1776, e por C. Th. BEYER, KATEXONTI THN ANOMIAN Lipsiac,1824; (cf . também HEYDENREICH, Neus Kri t .  Jo u rn a l der th eol. L itte ra tu r v. 

Winer u. Engelhardt,  1828, vol. 8). O que dá um caráter mais ou menos fantástico àtese destes autores é o fato de que não procedem da ident i f icação estabelecida

 prev iam ente entre o neutro e a pregação do E vangelho aos pagãos. E la parte do

masculino, em lugar de partir do neutro. A dissertação latina de Beyer, que temos em

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 71

a primeira parte de nossa tese. Mostraremos em primeiro lugar comoa concepção da pregação aos pagãos, prelúdio da era messiânica,

sendo um elemento específico e novo da escatologia cristã, se relacionatodavia com as idéias essenciais da escatologia judaica; na continuação do nosso estudo, intentaremos encontrar no cristianismo

 primitivo, fora dos textos explícitos de Mc 13.10 e Mt 24.14 dosquais partimos, outros traços desta crença. Então poderemos examinarmais acerca da aplicação do papel de • k t * % o v   à pessoa do próprio

apóstolo e provar que, até em sua pena, não somente nada de chocantese encontre, mas que parece até natural que ele a considere sob oângulo escatológico de sua consciência apóstólica.

 3. O “obstáculo” e a escatologia judaica

A apocalíptica judaica não prevê a pregação aos pagãos como prelúdio da era messiânica. Existe certamente uma missão judaica,e, na época de Jesus, parece ter sido particularmente ativa. Os fariseus“percorrem terra e mar para fazer um só prosélito” (Mt 23.15).É verdade também que o livro de Jonas e a 3a Sibila estabelecemuma relação entre a tendência missionária e a idéia de juízo. Porém,

os textos não nos permitem dizer que a missão, no que diz respeito aocomeço da era cristã, tenha tido um caráter escatológico. Ainda quea esperança messiânica tenha sido muito ardente nos judeus dessetempo, a missão não parece ter sido  motivada pela proximidade dofim dos tempos, nem ter sido, sobretudo, considerada como parteintegrante dos diferentes atos preliminares do drama apocalíptico.A sorte dos pagãos não está certamente esquecida na esperança

 judaica; todavia seu papel escatológico não tem, em geral, relaçãodireta com a pregação missionária, e ainda quando não se tratesimplesmente de seu extermínio, consiste antes em submeterem-seou em filiarem-se aos eleitos de Israel nos tempos messiânicos31.

vista, fica, por esta razão, totalmente vaga. Com efeito, Beyer considera o apóstolocomo • KT7 BV unicam ente sob a condição de que se ja • «T*xcov x* ç • fi ap x-exv, ou seja,adversário do pecado em geral. Não é, em absoluto, disso que se trata.

31 Cf., por exemplo, o Sal 17.30-31. Cf. outros textos em P. VOLZ,  D ie Eschato logie  der j i idischen Gem einde im neutestame ntl ichen Zeitalter,  1934, 358.

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72 O s c a r   C  í u l l m a n n

Por conseguiinte, a noção escatológica e cristã de uma prqgaçãodo Evangelho, fixaida cronologicamente aos pagãos, não procedee nemdas idéias missionárias do judaísmo, nem de suas conceppçõesapocalípticas refeirentes ao destino dos pagãos. Pelo contráriio, serelaciona estreitamente com outro elemento da escatologia judaica,a saber, com certajs especulações relativas à data da era messiâânica.

Depois do século II a.C, os judeus se esforçaram consttante-mente por calculai" esta data. Com o tempo, toda uma técnica lhaviasido elaborada paria indicar, com antecipação, o Vp, o “fim”. Porém,os pontos de partida e os processos de cálculo se multiplicavam evariavam cada vez mais. Embasavam-se principalmente solbre olivro de Daniel: p>or um lado sobre 9.24 s., que inspirando-sse emJr 25.11 e 29.10, conta 70 “semanas” depois da destruição de Jerusalém até o momento em que “a justiça eterna seja restabelecida”;

 por outro lado, sobre a indicação de Dn 9.27, concernente à “msctadeda semana”; sobre* Dn 12.7, concernente a “um tempo, dois tempose a metade de um tempo” e sobre a indicação de 1290 dias (=3 V 2 

anos) de Dn 12.11 que fornecem outros pontos de orientação eoutras possibilidades de cálculo. Um sistema inteiramente difeirente

 parte da divisão dia duração do mundo em três períodos de 2000anos: o primeiro compreende os anos que vão desde a criaçãio atéMoisés, o segundo» a “lei” e o terceiro 0 reino messiânico32.

Todavia, de novo a exatidão de todos esses cálculos se encontra desmentida pelo fato brutal de que o fim não chegava. Isto delineava um grande problema. Distantes de concluir que nesse campo todo  cálculo é impossível, muitos judeus não se desanimam mestatarefa e concluem que o método que utilizavam para contar os anosé que era falso, e assim sendo, exercitam sua sagacidade em desco

 brir uma nova maneira de calcular. Ao percorrer, na obra de Strack-Billerbeck33, as numerosas passagens relativas a esses cálculos tão

32  Cf. Hen. sl. 33: 1; Vida de Adão,  42; Sanedrin,  97 a; Aboda Sara,  9 a.  Para maisdetalhes concernentes aos métodos de cálculo, veja BOUSSET-GRESSMANN,  D ie  

 R elig ion des Juden tum s im spã the llen istischen Z eita lter,  1926, 246 s.; P. VOLTZ, D ie E schato log ie der' jü d isch e n G em ein de im neu íestam enílic hen Z e ita lter,  1934,141 s., e sobretudo a excelente exposição de STRACK-BILLERBECK, Kommentar   

 zum N euen Testament aus Talm ud und M idrasch.  Exkurse zu einzelnen Stellen des N euen Testa m ents , 2, Teil, 1928, 977 s.

33  Cf. a importante obra ci tada na nota precedente.

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variados, se compreende que em certos meios judeus, o bom sensoreagiu em todo tempo, certamente sem êxito, contra essas intermi

náveis discussões das quais alguns homens de “elite” parecem tersentido o caráter blasfemo que as acompanhava34.Outros, pelo contrário, recorreram a uma explicação comple

tamente diferente que nos interessa de maneira especial no âmbitodo presente estudo. Com efeito, e a julgar por muitos textos, muitos

 judeus, sem chegar expressamente à exatidão dos cálculos, dedu-

zem que o fim (que, segundo a aritmética apocalíptica, já deveria terchegado) não acontecera, pelo fato de que devia haver um elementoque  retardava a manifestação dafera messiânica. Muitas passagens

 provam que a sinagoga se preocupava muito com o que  detém a realização da esperança. A questão: “Quem detém?”,expressa por sua vez a esperança frustrada e a convicção inque-

 brantável de que o fim era somentèTadiado. A resposta faz intervir anecessidade do  arrependimento dos próprios israelitas.  Os dadosindicados pelos apocalípticos não eram declarados falsos, antes, se

 pensava que uma das condições tacitamente subentendidas para avinda do reino messiânico não tinha sido cumprida pelo povo eleito: o 

 arrependimento de Israel.  Esta resposta, relegando os cálculos a

um segundo plano, dá um novo impulso à escatologia judaica.Que encontremos na literatura judaica um termo inteiramenteequivalente ao • nos parece muito importante para a inter

 pretação de 2 Ts 2.6-7. No Talmude, esse termo parece quase tertomado um sentido técnico, absolutamente conforme aquele que pressupõe a palavra grega empregada na segunda Epístola aos Tessalo

nicenses. O verbo •tu*%eiv pode ser considerado como umatradução exata de,D^35. “Quem detém,DbTlD?”, nós lemos no tratado Sanedrin36. Resposta: é “a justiça divina o que detém (TlDDülD)”.Trata-se da justiça em virtude da qual os israelitas, por causa de seus

 pecados, não podem, todavia, ser admitidos na felicidade messiânica.

34  Cf. os textos de STRACK-BILLERBECK, o. c.,  1013.35  O verbo aramaico DDÜ corresponde ao hebraico DpV (cf. Jó 37.4) e se encontra de novo

nos Targums quase sempre com o sentido de “deter, impedir”, e outras vezes com o de“retardar”. Tem, pois, os dois sentidos que tem igualmente o verbo grego • KT*%et.v.

36  Sanedrin,  97 b. Cf. STRACK-BILLERBECK, o. c.,  vol. II, 1922. Com relação a Atos1.7, p. 589.

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74 O s c a r   C u l l m a n n

A mesma questão e a mesma resposta, sob uma forma mais explícita, se encontra no tratado Taanith37: “Quem detém,DülQ? Ele res

 ponde: (a necessidade de) arrependimento. Arrependei-vos!” Assima espera escatológica toma um caráter moral que a aproxima muitoda escatologia cristã: “Todas as datas (calculadas para a vinda domessias) passaram. De agora em diante não depende senão do arre

 pendimento e das boas obras”38. Ademais, lemos: “Se os israelitas searrependessem, ainda que não fosse mais do que por um só dia,

seriam salvos em seguida, e o filho de Davi viria imediatamente”39.“Grande é o arrependimento, pois ele conduz à salvação”, diz otratado  Joma40.  O livro apócrifo de Baruc dirige esta exortaçãoaos leitores: “Convertei-vos, e ponhais dez vezes mais de zelo no

 buscar. Então o que vos tem infringido a desgraça vos concederá,com a libertação, uma felicidade eterna”.41A idéia segundo a qual o

arrependimento de Israel era a condição prévia para a vinda dostempos messiânicos era tão corrente que o autor da Assunção deMoisés não duvida em designá-lo com o termo dia do “arrependimento”.42

Esta concepção que torna os israelitas responsáveis pelo“atraso”, atribui ao homem um papel escatológico eminentemente

ativo, porém, por uma acentuação excessiva do elemento moral, correo risco, por outro lado, de despojar a esperança escatológica de seuconteúdo essencialmente religioso, fazendo a intervenção divinadepender unicamente do homem. Não é estranho que esta concepçãotenha suscitado contradições e controvérsias. Nós encontramos oeco no Talmude. Uma parábola compara a espera dos israelitas que

tarda em realizar-se, à espera de um príncipe prometido, impaciente, por ver chegar o dia de suas bodas, e ela conclui assim: “e quem o(esse dia) detém, A data fixada”43. Esta concepção sobre “o

37  P. Taan.  1, 64 a, 20. Cf. STRACK-BILLBERCK, o. c., vol. I, 1922. Com relação aMt. 11.12, p. 599.

38 Sanedrin  97 b.  Cf. STRACK-BILLERBECK, o. c.;  vol. I. Com relação à Mat 4.17, p. 164.

39  MIDRASCH, Cant. dos Cantares  5, 2 (118 a)   e Pesiqía,  163 b.40  B. Jom a , 86  b.41   B aruc   (Apócrifos), 4.28 s.42  A ssunção de M oisés , 1.18. Poderíamos citar ainda outros, por exemplo, Tob  13.6;

 J ub   1, 15.22.43  MIDR. Sal.  14, 6(57 6), citado por STRACK-BILLERBECK, o. c.,  vol. III, 1926, 641.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 75

que o detém” se opõe, pois, à opinião segundo a qual se trata doarrependimento. O elemento moral está completamente ausente.

Em uma interessante discussão, referida no Talmude44, entre

o rabino Eliezer e o rabino Josué, as duas concepções se enfrentam.Eliezer, que aceita os cálculos baseados sobre as setenta semanasde Daniel, admite que esta data, agora passada, era certamente aque estava fixada para o fim dos dias. Porém, afirma que, por causados pecados de Israel, teve de ser adiada, de tal sorte que faz comque seu cumprimento não possa ser calculado, pois que depende do

arrependimento de Israel. O adversário de Eliezer, Josué, tomandocomo ponto de partida de seu cálculo a divisão da duração do mundoem três períodos de 2000 anos45, situa a/d:ata da vinda do messias nofuturo, no ano 4000 depois dàN^naçãó, isto é, 240 d.C. Desta feita,

 pode manter, contra Eliezer, a tese tradicional segundo a qual o “fim”chegara independentemente da atitude de Israel, não tendo o homem

 parte alguma na determinação da data decisiva. Esta controvérsiarepresenta, em última análise, uma interessante aplicação do problemado livre arbítrio e do determinismo à escatologia, e dá um relevo

 particular à concepção do “obstáculo” de 2 Ts 2.6-7.Com efeito, se a interpretação que nós propomos para a célebre

 passagem é exata, a noção cristã de • «T*%ov pode estar derivada,

em linha direta, da idéia judaica, defendida pelo rabino Eliezer ecompartilhada, a julgar pelo grande numero de testemunhos, pelamaioria dos judeus. Por outro lado, ao insistir antes de tudo sobre aocasião de arrepender-se que Deus, imediatamente antes do fim, oferece  aos homens pela pregação, sinal precursor deste fim, aconcepção cristã tem, ao mesmo tempo, a vantagem de não fazer

depender unicamente do homem a vinda do reino de Deus, posto quede maneira definitiva a iniciativa se encontra referida a Deus.

O *«T»^ov  de 2 Ts 2.6, considerado sob a forma da pre

 gação do Evangelho aos pagãos, não é, portanto, mais que a  transposição, sobre o plano cristão, do,  DülD judeu que indica

44 P. Taan.,  1,6 (63 d)  y b. Sanedr.,  97 b. Cf. P. VOLZ,  D ie eschato lo gie der jüdis chen  Gemeinde im neutestamentlichen zeitalter,   1934, 103, y STRACK-BILLERBECK,Exkurse   II, 1928. 992 s. Exemplo citado também por BUSSET-GRESSMANN, o.  c.,248.

45  Veja mais atrás nas pp. 71 s.

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76 O s c a r   C u l l m a n n

 a necessidade do arrependimento como condição prévia para a  realização do reino messiânico.

Veremos em seguida que não falta no judaísmo o motivo deuma pregação escatológica dirigida aos judeus. Porém, é normal quena escatologia judaica se trate com mais freqüência do motivo doarrependimento que da pregação. Pois nada mais é necessário queensinar ao povo de Israel em que consiste o arrependimento: a leimosaica e sua interpretação são conhecidas; no judaísmo a esperança

messiânica não modifica essencialmente o conteúdo da exigênciamoral. Não há interpenetração íntima entre as duas expressões da piedade judaica: a lei e a esperança.

Da mesma forma, é normal que não se trate do arrependimentodos pagãos.  Pois a escatologia judaica situa o povo de Israel nocentro do drama apocalíptico. E se a realização desse dràma depende

da atitude do homem, é sem dúvida da atitude de Israel que se trata.É natural, por outro lado, que no cristianismo, que tem consciência de proporcionar uma interpretação nova acerca da vontadedivina fixada na lei, o motivo escatológico judaico do arrependimentofoi necessariamente completado com a pregação.  Com efeito, oarrependimento cristão pressupõe, por sua vez, outra condição pré

via: a pregação do Evangelho. A grande novidade do cristianismocom relação ao judaísmo consiste precisamente no fato de que aesperança, a  convicção da proximidade do reino de Deus, modi

 ficou a interpretação da lei divina no sentido de uma aplicação. Temos aqui a essência do Evangelho. Não basta dizer: “Arrependei-vos!, porque o reino de Deus está próximo!” É necessário, todavia,

acrescentar um ensino sobre a maneira de arrepender-se; é necessário mostrar como, servindo de base, “o que foi dito aos antigos”aparece à luz do reino que está próximo e de Cristo que já veio. Deoutra maneira, é natural que o cristianismo, ultrapassando os limitesdo quadro judeu, tinha sido levado a expressar o motivo escatológicoarrependimento-pregação do Evangelho, sob a forma precisa de

“pregação do Evangelho  aos pagãosA necessidade da pregação aos pagãos “que detém”, no últimomomento (agora), a vinda do Anticristo, portanto, a inauguração daera apocalíptica, constitui então, na escatologia cristã, um elemento

 por sua vez especificamente cristão e inteiramente judaico.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 77

A relação com a escatologia judaica aparece com mais evidência, todavia, quando consideramos que até a pregação, sob a

forma de um  chamamento escatológico  ao arrependimento, está prevista, como sinal precursor, erra uma das tradições apocalípticasdo judaísmo: aquela que fala da volta do profeta Elias no fim dos  tempos.  Esta tradição, que parece ter sido bastante difundida,rem ontajáaM l 3.1, onde o profeta tem a missão de purificar Israelantes da realização da salvação messiânica. Encontramo-la nova

mente em Jesus  ben Sira (48.10-11): “Está escrito que te reservam para o momento de apla<5ar a ira antes que estale, para reconciliaros pais com os filhos/para restabelecer as tribos de Israel”. Ademais, há muitos precursores encarregados de pregar o arrependimento antes do fim45, ümtojalias e Enoque, como Elias e Moisés.A concepção judaica da volta de Elias é encontrada no Novo Tes

tamento, em Mt 11.14; 17.10; Lc 1.17; Jo 1.21; a da volta de Eliase Moisés em Ap 11.3, onde as duas testemunhas devem profetizardurante 1260 dias47. Esta tradição é importante para a solução do

 problema do “obstáculo” de 2 Ts 2, não somente porque ela com prova a espera judaica de uma pregação, considerada como sinal precursor da era messiânica, mas porque, o mesmo que na passagem de 2 Ts 2, ela implica a personificação  desta pregação pré-messiânica em um profeta precursor48.

A noção judaica do arrependimento de Israel cuja ausência“detém” a vinda do “fim”, e a concepção da volta e da pregaçãoescatológica de Elias nos parecem ser os antecedentes judaicos da

crença cristã segundo a qual a pregação do Evangelho aos pagãos“detém”, todavia, por um momento, a vinda do anticristo e osacontecimentos subsequentes; e estas idéias nos parecem conferirum alto grau de probabilidade para a solução que temos propostocomo explicação de 2 Ts 2.6-7.

46 C.f. 4 Esdras 6.26.47  Veja sobre a vinda de Elias BOSSUET-QRESSMANN, o. c., 232   s.48 Temos de advertir que EWALD, Sendschreiben des Ap. Paiãus , 1857, identificou o

• w v ^ c o v d e 2 T e s s a lo n i c e n s e s d ir e ta m e n t e c o m E l ia s . É e v id e n t e m e n t e irdemasíadamante longe. Porém, comprovamos com prazer que a aproximação que seimpõe já foi notada anteriormente.

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78 O s c a r   C u l l m a n n

 4. A pregação caos pagãos considerada como préludio da era  messiânica mos escritos do cristianismo primitivo fora das 

epístolas paw.linas

A crença eiscatológica pela qual nós explicamos 2 Ts 2.6-7não é estranha ao cristianismo primitivo. Encontramo-la nos versículossinópticos de M<c 13.10 e Mt 24.14. Essas passagens afirmamclaramente que a “abominação da desolação” (t * *pô* ?a)y|a« TT|* ç

•pr||i* oecoçMc II 3.14; Mt 24.15) não terá lugar até que o Evangelhotenha sido pregado a todos os pagãos. Não propomos a questão desaber se o texto siinóptico depende de 2 Ts 2.6-7 ou vice-versa, poisé provável que se: trate de uma convicção que forma parte do panode fundo comum (da escatologia cristã do século I.

Seja o que for, nós a encontramos em outra parte, ademais,

em Marcos e Matteus; citaremos em primeiro lugar a célebre visãodos “quatro cavaleíiros” do Apocalipse (6.1 -8). Depois de muito tempo,os exegetas consi deraram o primeiro desses caValeiros como uma

 personificação da. marcha triunfal que o Evangelho faz através domundo antes da chegada das pragas apocalípticas. J. Weiss49, Th.Zahn50, W. Heitm.üller51, na Alemanha, e A. Loisy52, na França, já

 propuseram esta iínterpretação. Não é, pois, impossível que o primeiro cavaleiro, com os

outros três, enconltre uma origem distante na astrologia. O artigo deBaldensperger na Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses53,e que, seguindo as investigações de F. Boll54, vê o primeiro cavaleirocomo uma personificação do símbolo zodiacal do leão, dá a esta

hipótese certa probabilidade. Porém, o mesmo Baldensperger reconhece55que “a astrologia não está mais que subjacente no Apocalipse

49 D ie O ffenbarung d e s Joa nnes,   1904, 60.50 O ffebarung Joh ann i s ,  1924-25.51  Schrif ten des Neuen Testaments  IV, 1918, 263.52  R év e la tio n de sa in t Jea n ,  1921, 144. Entre os autores mais ant igos, KÜBEL,

Offembarung Johannis ,  1893 (em Kurzgefass ter Kommentar zu den h . Schri f ten , ed. por STRACK E ZÕCKLER), 403 e HILGENFELD ZWissTh (1890) 425, emitiuuma opinião análoga..

53  RHPR (1924) 1-31.54  F. BOLL,  A u s der O ffenbarung Jo h an n is , 1914.55  A . c.,  26 e 27.

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 joanino” e que o autor “não teve consciência da origem astrológica...de seus materiais”. Em conseqüência, a explicação astrológica nãoresolveria a questão de se saber que idéia o autor atribuiu a esta imagem. E quase certo que o terceiro cavaleiro é originariamente a figurado símbolo zodiacal de libra, porém não é menos certo que no apocalipse

 joanino este tenha tomado uma significação escatológica propriamente dita, simbolizando a praga da fome. Desde então a interpretaçãoastrológica do primeiro cavaleiro não nos impede de indagar sobrequal sentido imediato nosso autor lhe atribuiu no quadro de seuApocalipse56. Há outros elementos de origem astrológica nesse livro,

 porém sempre se encontra a astrologia subordinada à escatologia57.Quando se lê a descrição dos quatro cavaleiros, nos sentimos

surpreendidos pela diferença radical que separa o primeiro cavaleirodos outros três. Enquantp que a função destes é patente: disseminarsobre o mundo uma/das pragas que anunciam o fim (guerra, fome,morte), e que seu aspecto respectivo corresponde perfeitamente aessas lúgubres missões, os atributos exteriores do primeiro cavaleironão indicam nada semelhante. Em primeiro lugar, vai montado sobreum cavalo branco. Se se considera o papel que tem a cor branca noApocalipse, sente-se já uma certa dificuldade em ver nessa personagem um mensageiro de desgraças. Da mesma maneira, a coroa com

que está adornado tão pouco lhe confere certamente este carátersinistro. Enfim, o autor nos diz que “ele saiu vencedor e para vencer”. Pois bem, o termo grego vi* • eemão tem jamais, no Apocalipse,o sentido pejorativo de “vencer pela violência”; serve, ao contrário,

 para designar uma vitória divina.Essas considerações bastam para que duvidemos da explicação

tradicional acerca do primeiro cavaleiro, explicação segundo a qualele simbolizaria um poder guerreiro conquistador do mundo antes davinda da era messiânica. Ademais, esta explicação choca com o fatode que o segundo cavaleiro, que monta um cavalo vermelho e leva

56  Estamos convencidos de não sermos infiéis ao método de nosso venerado mestre, à

memória de quem dedicamos este estudo, ao opormo-nos, neste ponto particular, àalternativa que ele estabelece (a. c., 10   s.) entre a explicação astrológica e a dascríticas citadas mais a frente às quais nós mesmos nos unimos.

57  Cf. E. LOHMEYER,  D ie O ffem barung des Johannes (H andbuch   z. N. T., ed. porLIETZMANN), 1926, que mostra muito bem como é necessário ut i l izar , para ainterpretação do apocalipse, certas aproximações feitas por F. BOLL, o. c.

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uma grande espada, e cuja tarefa está indicada em termos precisos eclaros, tem por missão “impedir a paz na terra”, isto é, estender a

guerra entre os homens “a fim de que se degolem” (v. 4). É impossívelsupor que o primeiro cavaleiro tenha relação com o segundo. Emconseqüência, ele não poderia personificar a guerra ou um poderguerreiro empírico como o império dos romanos ou dos partos, comose tem pensado58. Sendo seu aspecto relativo mais a uma potência aserviço de Deus, é necessário então buscar outra explicação.

Pois bem, no livro de Apocalipse (19.11 s.), encontramosoutro cavaleiro montado sobre um  cavalo branco.  Nessa passagem, esta imagem está claramente explicada: “Se chama fiel e verdadeiro..., seu nome era a  Palavra de Deus".  E difícil identificar

 pura e simplesmente esse cavaleiro com o de 6.259. Todavia, parececerto que a semelhança que apresentam esses cavalheiros nos indi

ca o sentido que o autor do Apocalipse atribuiu ao primeiro cavalheiro do capitulo 6. Este seria, pois, símbolo da pajavra divina, porconseguinte, da pregação do Evangelho: “Ele saiu vencedor e paravencer”, e precede os outros três cavalheiros. Nós compreendemosentão, por sua vez, porque está representado sob uma forma análogaàquela que serve para ilustrar as três pragas, e que seu aspecto dife

re absolutamente dos outros. A pregação do Evangelho forma, comefeito, parte dos símbolos precursores da era messiânica; todavia,

 pertence a outra ordem de valor, que os três sinais que seguem, nosentido de que ela não é uma praga. Se esta interpretação é exata,então, estamos aqui na presença da mesma concepção que se encontra em Mc 13.10 e Mt 24.15.

Os outros textos do cristianismo primitivo que atestam a mesma crença não se contentam, de maneira geral, em assinalar pura esimplismente o fato  escatológico da pregação pré-messiânica, masexpressam ao mesmo tempo uma advertência. Por um lado, advertência aos discípulos para que cumpram sua tarefa escatológica de

 pregadores do Evangelho na qualidade de instrumentos divinos na

58 E. LOHMEYER, o. c.,  57, se pronuncia em favor dos Partos.59  As dificuldades que provocaria uma tal identificação têm sido sublinhadas, sobretudo,

 p o r F. SPITTA , Of f enbarung des Johannes ,  1889, 288 s., e W. BOUSSET,  D ie  O ffenbarung Johannes ,   265, também por W. BALDENSPERGER, a. c.,  12.

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execução de um ato apocalíptico preliminar. Por outro lado, advertência aos que escutam esta pregação, para que obedeçam o cha

mamento divino pelo arrependimento da fé.O dever que a necessidade escatológica da pregação missionária implica para os discípulos se encontra sublinhada em At 1.6 s.Essa passagem põe em evidência a relação desta pregação com ofato da vinda do reino de Deus: o retardo. Depois da morte de Cristo,os discípulos reunidos propõem ao ressuscitado a questão que está

no centro de suas preocupações e que lhes obceca durante este período, sobretudo porque vêem multiplicarem-se as aparições passageiras do Senhor, garantia de sua volta definitiva:60 “Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?” Em sua resposta Cristocomeça por condenar toda tentativa de calcular o fim: “Não voscompete saber os tempos ou datas que o Pai estabeleceu pela Sua

 própria autoridade” (v. 7). Esse começo da resposta toma um caráter especial, quando recordamos os intermináveis cálculos dos judeus e a controvérsia no seio da escola rabínica que continua apegada a esses cálculos tanto quanto àquela que lhe resta, como contrapartida, na qual toda importância deveria ser concentrada sobreaquela condição prévia já exposta, isto é, sobre o arrependimento61.

Porém, é sobretudo a continuação, o versículo 8, o que nos interessaaqui. Convém não esquecer que esse versículo forma parte da res posta de Cristo à questão determinante de seus discípulos. Enquantoque o versículo 7 encerra o lado negativo desta resposta, este nos dáo lado positivo: “mas (• Kk* ) recebereis poder quando o Espírito Santodescer sobre vós, e  sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em 

 toda Judéia e Samaria, e até os confins da terra  Isto quer dizerque não é todavia no “tempo presente” que será estabelecido o reino, posto que os discípulos deverão espalhar o evangelho no mundo.

A situação é análoga àquela de 2 Ts 2. De uma parte e deoutra, se trata de acalmar a impaciência concernente à vinda doreino de Deus, e a argumentação é parecida nos dois casos. Em At

1.6-8, Cristo atrai a atenção dos discípulos, inquietos por causa do

6(1  Cf. nosso estudo  La sig in ifica tion de Ia sa in t cène dans le chris tian ism e p r im itif:

RHPR (1936) 10 s.61 Cf. mais atrás nas pp. 72 s.

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82 O s c a r   C u l l m a n n

 problema “cronológico” da apocalíptica, sobre a ação prévia enecessária do Espírito Santo que, considerado aqui unicamente como agente missionário,  os impulsionará durante o tempo que separaSua ressurreição de Sua volta, “a darem testemunho dele até os confinsda terra”. Em 2 Ts 2.6-7, o apóstolo concentra sobre “o que o detém”,todavia, a atenção dos tessalonicenses que “se têm deixadoimpressionar demasiado facilmente, a ponto de perderem o bomsenso, e se alarmarem por uma pretendida inspiração... como se odia do Senhor fosse iminente” (2 Ts 2.2).

O célebre chamamento missionário de Mt 28.19, “ide e ensinaia todos os pagãos (a todas as nações) ... ensinando-lhes a guardartudo o que eu vos ordenei” se relaciona também com um  tempo limitado',  com o intervalo que separa a ressurreição e a volta deCristo. A promessa que serve de conclusão a este chamamento mostraclaramente esse aspecto cronológico: “ Eu estarei convosco todos 

 os dias até o fim deste eori'. Esta promessa não tem, na origem, asignificação vaga que nós intentamos atribuir-lhe, mas faz alusão aocaráter essencialmente escatológico  do imperativo missionário; serefere ao lapso de tempo que precede o fim   e durante o qual énecessário pregar o Evangelho aos pagãos62.

A relação entre a necessidade da pregação e o juízo final estáindicada no discurso pronunciado por Pedro (At 10.42) no momentoda conversão de Comélio: “(Cristo) nos ordenou pregar ao povo etestificar que ele é aquele a quem Deus  constituiu  como juiz devivos e de mortos”. Pedro indica aqui a razão pela qual o fim não viráaté que o Evangelho seja pregado. Há, pois, um fato escatológico

novo que foi revelado e que deve ser anunciado ao mundo: Jesus de Nazaré constituído por Deus como juiz.Em seu discurso em Jerusalém (At 3.19 s.), Pedro insiste sobre

a obrigação entranhada na pregação pré-messiânica em relaçãoàqueles a quem se dirige; de tal maneira que o arrependimento

62 O fim inautêntico do Evangelho segundo Marcos, sobretudo segundo o texto do ms.W., sublinha todavia mais, de uma maneira análoga a At 1.6 s., a relação da ordemmissionária com o fato da vitória definitiva sobre Satanás. Os discípulos responderam(v. 14 b segundo W): “ ...man ifesta tua jus tiça. Cristo lhes disse: o término dos anosda dominação de Satanás chegou; já se aproximam outras coisas terríveis.. . Ide portodo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”.

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aparece como condição da vinda dos tempos messiânicos, como naescatologia judaica:

 Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para que sejam apa gados vossos pecados, a fim de que venha da parte do Senhor os tempos de refrigério e que Ele envie aquele que vos tem sido destinado, Cristo Jesus, a quem é necessário que o céu receba, até que cheguem os tempos da restaura

 ção de todas as coisas.

 A  medida que o Evangelho se espalha efetivamente e se distanciada idade apostólica, a necessidade escatológica da pregação será cadavez mais examinada, não sob o ângulo dos pregadores, mas dos ouvintes.Deste modo se tenderia a esquecer que o fato  desta pregação entracomo um sinal precursor, no drama escatológico fixado por Deus.

Todavia, se tratará sempre da crença relativa à condição prévia quantoao fim. “Aguardai e  apressai o advento do dia do Senhor, no qual sedissolverão os céus incendiados e se derreterão os elementosabrasados... reconhecei que a paciência do Senhor é nossa salvação!”disse o autor da segunda carta de Pedro (3.12,15). A noção de“paciência” divina, |íoc* po0\)(i*«, está estreitamente ligada à crença

com a qual nos ocupamos. O autor das homilias pseudoclementinasespecificará que as pragas apocalípticas todavia não chegaram: “aocontrário, Deus usa de paciência, Ele chama ao arrependimento”63.

 Nós poderíamos multiplicar os textos do mesmo gênero; porémcremos ser isto inútil, tanto mais que estes nos distanciariam da épocaque nos interessa aqui. Os textos que temos estudado são suficientes

 para concluirmos que no Século I, a escatologia cristã introduziu no quadrocronológico da apocalíptica a pregação do Evangelho: ela está no número 

 das condições indispensáveis para vinda da era messiânica.

 5. O “obstáculo ” e o caráter escatológico do apostolado de Paulo

A diversidade de fontes cristãs nas quais temos encontrado omotivo escatológico da pregação considerada como sinal precursor 

63  Hom.  XVI, 20.

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84 O s c a r   C u l l m a n n

da era messiânica, parece indicar que não se trata de uma crençaespecificamente paulina. Não é menos certo que, na teologia dePaulo, esse motivo ocupa um lugar particularmente central, e que

está fortemente ancorado nos próprios fundamentos do pensamentodo apóstolo. Toma a forma de uma convicção escatológicainfinitamente mais profunda e mais concreta que em todos os outrosescritos cristãos.

Isto se depreende sobretudo dos capítulo 9-11 da Epístola aosRomanos que trata da salvação de Israel e dos pagãos. Nessa expo

sição, encontramos uma explicação da necessidade (8et* ?Mc 13.10)da pregação: “Como crerão naquele de quem não ouviram falar?E como ouvirão se não há quem pregue? E como pregarão se nãoforem enviados? Segundo está escrito: Quão formosos são os pés dosque anunciam boas novas!” (Rm 10.14-15). Por conseguinte, para oapóstolo, a noção de salvação é inseparável da noção de “pregação”.

Quando o apóstolo Paulo escreve estas linhas, a pregação doEvangelho não está senão em seus começos, e já se podia comprovar a reação do mundo a este respeito: “Nem todos têm aceitado oEvangelho!” (v. 16). O povo de Israel se mostrou rebelde, e isto,apesar das promessas messiânicas das quais ele é depositário. Desde então, a salvação cessa de ser um privilégio exclusivo de “Israel

segundo a carne”. Israel não será, pois, mais intermediário na conversão dos pagãos, tal como o havia sido na apocalíptica judaica.Pelo contrário, os pagãos é que levarão a salvação aos judeus. Tal éde fato a conclusão dos Capítulos 9-11. A vinda de Cristo, ou melhor,a atitude dos homens com relação à pregação do Evangelho, inverteu a ordem primitiva. No que se refere ao que se sucede ao advento

da era messiânica esta depende da pregação aos  pagãos  que assumem o papel de “Israel segundo o espírito”, e participam assim detodas as promessas feitas ao povo eleito. Para o apóstolo, a velhaquestão: “O que é que retarda a era messiânica?” Toma esta formamais concreta: “Que é feito da promessa divina à Israel?” Definitivamente, o problema é o mesmo. O que importa é mostrar que o

 plano divino concernente à salvação vindoura subsiste, apesar dasaparências contrárias. Sublinhando a prioridade  da salvação dos

 pagãos, Paulo reúne, de certa maneira, sobre um plano mais teológico, as preocupações cronológicas da apocalíptica judaica, e, sobre

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tudo, a afirmação do apocalipse sinóptico: “É necessário que antes oEvangelho seja pregado a todos os pagãos” (Mc 12.10). Porém, eleinsiste sobre a palavra “pagãos”. Enquanto é necessário realizar atarefa escatológica antes do fim, isto não significa para Paulo a pregação do Evangelho em geral, mas de uma maneira precisa, a pre

 gação aos pagãos64.A imagem da oliveira enxertada (Rm 11.16-24) serve ao

apóstolo para ilustrar o desejo de Deus: tendo sido cortadas as ramas podres do judaísmo, o paganismo é enxertado no lugar, sobre o tronco.E somente no fim, quando a árvore for completamente renovada, o

 judaísmo poderá enxertar-se de novo.A salvação messiânica de Israel depende, pois, do que se sucede

aos pagãos, e de maneira definitiva, da  ocasião que Deus oferece a estes de converterem-se. A pregação aos pagãos toma assim para oapóstolo um lugar  cronológico  claramente determinado no planodivino; ela constitui para ele um elemento integrante desse plano. Nocapítulo 11, Paulo exorta seus leitores a admirarem “a profundidadeda riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus” (v. 33) e fazisto para que possam pressentir o plano divino; ele lhes revela esse“mistério... que se endureceu uma parte de Israel  até que haja entrado a plenitude dos pagãos” (Rm 11.25).

Ainda que o termo • fxx* %ov não apareça nesse importanterelato da Epístola aos Romanos, a idéia do “obstáculo”, no sentidoreferido do neutro (do • a i^ o v ) , se encontra de maneira manifesta.A alusão de 2 Ts 2.6-7, examinada à luz dos ensinos essenciais do pensamento paulino, se torna então inteiramente clara; tudo leva a

H As idéias desenvolvidas em Rm 9-11 pressupõem a dist inção teológica entre o“Israel segundo a carne” e o “Israel segundo o espírito”. Com efeito, de acordo como capítulo 10 , onde o apóstolo enfoca a questão sob o ângulo da responsabilidadehumana, “o Israel segundo a carne” é plenamente responsável por não desempenhar

 já o papel de “Israel segundo o e sp írito ” . Tem recusado a pregação com ple noconhecim ento de causa. “Não tem ouvido (os pregad ores do evang elho)? ...” (10.18).Porém, ainda quando o livre arbítrio humano seja salvaguardado, as promessas feitas

 por Deus no A ntigo Testam ento subsis te m . No capítulo 9, com efeito, Paulo abordando a questão da recusa provisória de Israel e da eleição dos pagãos sob o ângulo dasoberania absoluta de Deus, afirma que esta é tão íntegra e completa como a responsabi l idade humana. No plano escatológico permanece tal como foi f ixada pelas

 prom essas m essiânicas, pois Deus, por estas prom essas, não se ligou, se gundo ele, aum grupo étnico, mas ao Israel “segundo o espírito”.

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crer que Paulo, nessa passagem, remete os tessalonicenses a estaidéia que lhes é particularmente querida e segundo a qual a multidão

dos pagãos deve entrar na salvação antes dos judeus.A importância que ele atribui a esta convicção se explica pelocaráter especifico de sua vocação,  e isto nos leva a examinar, nomarco da teologia paulina, a identificação do masculino • fxx*xcovcom o próprio apóstolo. Se Paulo dispende tanto ardor em provarque, seguindo o plano divino, os pagãos devem “entrar” antes na

salvação, isso não é somente por causa da polêmica dos adversários judaizantes. Uma necessidade mais pessoal  lhe impulsiona a sondarsobre este ponto os últimos segredos da sabedoria divina. Não é

 provavelmente uma mera causalidade, que se introduz de maneirasolene em Rm 11.25, a conclusão relativa à sorte final dos judeus edos pagãos com essas palavras: “Não quero que ignoreis, irmãos,

este  mistério”.  Se trata aí de uma revelação especial da qual elemesmo tem sido objeto, e que lhe faz pronunciar, precisamente nesselugar, a ação de graças que já temos mencionado: “Oh! profundidadeda riqueza, da sabedora e do conhecimento de Deus” (v. 33). Estarevelação, concernente ao papel escatológico dos pagãos, afetaintimamente a Paulo, já que se refere a sua vocação apostólica que

coincide, ademais, com sua conversão. Ela permite, por assim dizer,compreender o sentido teológico de sua vocação. Não seria demais insistir sobre o fato de que, em Paulo, não se

trata de uma vocação ao apostolado em geral, mas a um apostolado bem definido, entre os pagãos. Desde sua conversão ele recebeu ochamamento divino sob esta forma concreta: “... que me separou

desde o ventre materno e me chamou por Sua graça, agradou revelaro seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os pagãos” (G11.15 s.; cf. At 26.17). Reiteradamente ele afirma ter recebido seuapostolado “para conduzir à sabedoria da fé a  todos os pagãos  (cf.Rm 1.15; 15.18).

Esse caráter concreto de sua vocação explica o zelo com

que, até fora de toda polêmica, ele trata o problema proposto pela pregação aos pagãos. É verdade que esta pregação é para ele umdever imperioso que não se discute; porém, tem a segurança deque esse dever coincide com uma necessidade escatológica objetiva:o plano divino segundo o qual o Evangelho deve ser anunciado aos

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 pagãos antes do fim. Também é muito importante que, precisamentenesse mesmo capítulo onde revela aos romanos o “mistério” desse plano divino, lhes recorde seu próprio “ministério que lhe honra como apóstolo dos pagãos” (Rm 11.13).

 Na Epístola aos Colossenses (1.22-29) insiste, da mesmamaneira, sobre o vínculo estreito entre seu “ministério” pessoal (*y* •• ccu* A.oç 8i* • ©voç) e a “economia divina” (o** o rop ,e/. xou* Oeoi)*)que concerne ao “mistério entre os pagãos” ( f *p.t)O T*  piov t o d * t o

•v TOl* ç • 0VECJIV). Autêntica ou não, a passagem da carta aos Efésios(3.6 s.) põe em evidência esta mesma relação profunda, atestada pelo conjunto de outras cartas, entre a consciência apostólica de Pauloe seu ensino relativo ao papel escatológico dos pagãos:

 Esse mistério é que os pagãos também são herdeiros... 

 por meio do evangelho, do qual fui constituído ministro  segundo o dom da graça de Deus... A mim,  o mais pequeno  de todos os santos, me foi outorgada esta graça, a de  anunciar aos pagãos as riquezas insondáveis de Cristo.

Paulo se reconhece como instrumento, não somente de Deus,

mas também de um plano escatológico inteiramente concreto fixado por Deus: antes de tudo, o Evangelho deve ser pregado aos pagãos,Por esta razão, apela às “revelações” todas as vezes que se trata deconhecer os mínimos detalhes desse plano. “Por uma revelação”, oapóstolo sobe à Jerusalém para expor aos irmãos “o Evangelho que

 pregava aos pagãos” (G1 2.2). O livro de Atos conservou certa

mente uma lembrança exata, quando diz que o Espírito, em certomomento, impede a Paulo e seus companheiros de “pregar na província da Ásia” (At 16.6), ou que o “Espírito de Jesus não lhes permite ir a Bitínia” (At 16.7; cf. 20.22). Em tudo o que concerne a suamissão entre os pagãos, Paulo não é mais que o órgão de um planoescatológico decretado em todos os seus detalhes65; é “ ministro de 

Cristo Jesus perante os pagãos” (Rm 15.16), de quem é “devedor” (• Tt|ç: Rm 1.14).

65  Veja, a este respeito, o excelente artigo ’Atiocttoào<; de RENGSTORFF, era ThWbNT, 1932, 406 s., 440, 16.

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88 O s c a r   C u l l m a n n

O apóstolo compreende, cada vez melhor, que o Evangelho deveser pregado com urgência aos pagãos no momento em que ele vive, “a

noite esta avançada e o dia se aproxima” (Rm 13.12), e também seafirma nele, mais e mais, a consciência da “necessidade” terrível(• v» 7* f): 1 Co 9.16) que pesa sobre ele; ele é “prisioneiro de Cristo 

 Jesus por amor aos pagãos” (Ef 3.1). Porém, ao mesmo tempo,nesse mandato consiste o que ele chama a “graça ” que o tem tocado 

 por eleição. “Nós recebemos a graça e o apostolado para conduzir à

obediência da fé a todos os pagãos”. A consciência de ser um elementoindispensável no grande drama que se concluirá no estabelecimentofinal do reino messiânico confere a todas essas passagens paulinas umsentido preciso que geralmente se perde de vista; é necessário lê-lassob esse ângulo para compreender todo seu alcance:

 A graça divina me fez ministro de Cristo Jesus  perante os pagãos, cumprindo o sagrado serviço   do evangelho de Deus, a fim de que a oferta 'dos  pagãos Lhe seja agradável   (Rm 15.15-16).

A vocação dos outros apóstolos de Cristo tem também um

caráter escatológico. Todos os discípulos que receberam o mandatomissionário, seja da parte do Jesus histórico, seja da parte doressuscitado, devem preparar os homens para a parousia “daqueleque deve vir”66. Todavia, em algum destes, esta vocação não pareceter tido um caráter tão concreto como é o caso do apóstolo dos pagãos.A consciência apostólica de Paulo alcança um grau de intensidade

excepcional que não foi jamais realizada por nenhum outro apóstolo,nem, inclusive, por nenhum profeta do Antigo Testamento67. Estaconsciência tão intensa que remonta a sua conversão, e se encontratodavia estimulada pela polêmica dos judaizantes contra seuapostolado, lhe autoriza a “gloriar-se até em excesso” de sua missãoescatológica especial, “sem envergonhar-se” (2 Co 10.8).

Veja o artigo citado de RENGSTURFF, em ThWbNT,  1932, 423, 31.67 LOHMEYR sublinhou a relação entre a consciência profética de Jeremias e a de

Paulo. Cf. Grundlagen paul in i scher Theo log ie ,  1929, 201. Cf. também o artigocitado de RENGSTORFF, 440 s.

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Sua obra pessoal não é mais que a obra de Deus, e sua pessoase identifica com esta obra. Se é exato que, em 2 Ts 2.6-7, “o que

detém” no momento a manifestação definitiva do Anticristo é a pregação aos pagãos, “ aquele que o detém” não pode ser outro senãoo instrumento eleito para esta pregação, a saber, o apóstolo querecebeu este encargo e a graça. Ele foi chamado a exercer de certamaneira o papel escatológico reservado ao “profeta precursor” naapocalíptica judaica que reconhece, como temos visto68, uma

 personificação da pregação pré-messiânica.Que Paulo tenha podido atribuir a si mesmo o papel de• erc*%cov, e que ele tenha podido assim fazer depender a vindados tempos messiânicos de sua própria pessoa, pode parecer difícilà primeira vista. Todavia, está absolutamente conforme o elo estreito que ele estabelece nas epístolas entre sua pessoa e o plano

divino relativo à sorte dos pagãos. Constantemente, sua consciência apostólica, fundada sobre este vínculo, lhe inspira uma duplaatitude: lhe impulsiona, por um lado, a “gloriar-se”; por outro, aexpressar sua debilidade na execução de uma tarefa na qual não émais que um instrumento passivo. E esta aparente contradição quelhe força a explicar tão freqüentemente sua maneira de “gloriar-

se” (• BO)%a* ü9ai). Quando considera o papel verdadeiramentesobre-humano da tarefa escatológica que lhe é de incumbência,não pode fazer menos do que “gloriar-se”:

 Eu me glorio em Cristo Jesus, em meu serviço a Deus.

 Não me atrevo a fa lar de nada, exceto daquilo que Cristorealizou por meu intermédio em palavra e ação, a 

 fim de levar os gentios a obedecerem a Deus  (Rm 15.17 s.)

Assim, ele se gloria e não se gloria, pode dizer por um lado que“poderia, sem ter que se envergonhar, gloriar-se inclusive em excesso”(2 Co 10.8) e, por outro, que a responsabilidade de pregar o Evangelhonão é para ele “causa de vangloria” (1 Co 9.16).

A partir de então, a idéia de considerar-se a si mesmo como o• fXT*%(ü v ,  de ser de certa maneira uma personificação do “obstá

68 Cf. mais atrás, p. 76.

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culo”, cessa de nos parecer demasiadamente atrevida. Esta maneirade se auto-designar denota, pelo contrário, exatamente a mesmadualidade que temos comprovado nas outras passagens: por um lado, aconsciência apostólica de Paulo encontra sua mais alta expressão, poroutro, transparece uma grande reserva ao falar de si mesmo de ummodo impessoal, na terceira pessoa. Convém relacionar o texto emestudo com 2 Co 12.2 s., onde o apóstolo fala igualmente de revelações

 pessoais das quais ele tinha sido objeto e onde emprega também  a  terceira pessoa para designar-se a si mesmo: “Eu conheço um  homem em Cristo que, há 14 anos, foi arrebatado até o terceiro céu...”Se o autor vê sua própria pessoa em 2 Ts 2.7, empregandodiscretamente a terceira pessoa, se compreende tanto melhor que elese contente com uma simples chamada à tarefa de um ensino oralrecebido anteriormente.

Cremos, ademais, que a identificação do • &T* %cov com o após

tolo permite também solucionar o problema quanto a dar uma explicação mais satisfatória ao final do versículo 7: “Somente é necessárioque, o que o detém agora, seja afastado”. A expressão •• • •^"©ouY»yv£G0oa não tem necessariamente o sentido de “ser suprimido pelaviolência”; com efeito, õs exemplos deduzidos dos autores profanos69

 provam que significa simplesmente “desaparecer” e que pode se apli

car à morte. Seria então a morte do apóstolo Paulo a que, coincidindocom o fim da pregação aos pagãos, marcaria o termo decisivo para amanifestação do Anticristo e a inauguração dos tempos messiânicos.

 Neste caso, seria necessário relacionar essa passagem da segundaEpístola aos Tessalonicenses com aquela da Epístola aos Filipenses(1.23) onde Paulo menciona de uma maneira análoga sua morte, pon

do-a em relação com a obra missionária que ele deve realizar:

Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário,

 por causa de vós,  que eu permaneça no corpo.

A tese defendida por Albert Schweitzer70 segundo a qual oapóstolo esperava ser, depois de sua morte, levado ao céu à maneira

69  Veja as referência no comentário de E. VON DOBSCHUÜTZ, o.  c., 282.70  A. SCHUWEITZER, O misticismo de Paulo,  Novo Século, 2003.

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de Enoque, Elias e Baruc, poderia encontrar, em certo sentido, umaconfirmação em nossa passagem tal como nós a interpretamos. Com

efeito, esta esperança se explicaria muito bem por uma consciênciaapostólica tão intensa que impulsiona Paulo a ver sua própria mortecomo uma data decisiva a partir de um ponto de vista escatológico.

O apóstolo em nenhuma parte fala mais de sua grande tarefado que nos três capítulos da sua segunda Epístola aos Tessalonicenses.E nós consideramos este fato como uma última confirmação da solu

ção que temos proposto. Já na primeira Epístola aos Tessalonicenses,ele havia falado do endurecimento dos judeus “que nos impede defalar aos pagãos para salvá-los” (2.16). Na segunda Epístola, são

 precisamente os versículos que seguem imediatamente a passa

 gem sobre o “obstáculo ”  os que mostram porque o Evangelho deveser pregado antes da manifestação do Anticristo; é que ”os que nãoaceitaram o amor à verdade que lhes teria salvo” se deixaram seduzir pelo Anticristo, o “homem da iniqüidade” (2 Ts 2.9-12). Essa passagem exige, por assim dizer, uma menção quanto a pregação anterior,e se necessitaria quase exigi-la se não houvesse já a alusão ao “obstáculo”. Aos que não creram na pregação e caíram sob a condenação, o apóstolo opõe em seguida aos mesmos leitores: “(o Senhor)vos elegeu... para dar-vos a salvação...  Para isto vos chamou por 

 meio de nossa pregação...”   (v. 13). No capítulo seguinte, ele lhes pede que se associem a sua obra missionária por meio da oração:“Enfim, irmãos, orem por nós, afim de que a palavra do Senhor se 

 propague rapidamente  e seja glorificada em  todas as partes, assimcomo aconteceu entre vós” (3.1), e lhes recorda como ele trabalhava “dia e noite” a fim de ganhar seu pão no cumprimento de suatarefa escatológica. Ele se põe como exemplo para aqueles deTessalônica que, preocupados pela proximidade do fim, deixaram detrabalhar. Ele próprio, realizando seu papel de • etT* %cov, mostra quea espera escatológica, longe de paralisar a ação neste mundo, é omais poderoso estimulante.

Os versículos 6-7 de 2 Ts 2, tal como nós os entendemos,concordam então perfeitamente com o resto da carta. Por outro lado,temos visto que, segundo nossa interpretação, estes não contém umelemento inteiramente novo em relação ao conjunto das epístolas

 paulinas, e confirmam, sob esta relação, a autenticidade da segunda

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Epístola aos Tessalonicenses que também, por outras razões, é, cadavez menos, negada pelos críticos.

Portanto, estes versículos nos convidam a examinar o

 paulinismo sob um ângulo geralmente esquecido. Com efeito, assimples alusões ao • txx^ov e ao •   c c x , % í o v   relacionadas com oensino de outras Epístolas, projetam uma luz mais viva sobre a figurade Paulo, e nos obrigam a situar a consciência apostólica, sob suaforma escatológica, muito mais no centro de sua personalidade e desua teologia do que o que se faz habitualmente. A convicção de

cumprir o papel principal até o fim, para que o véu possa se levantarde sobre o drama messiânico, eleva sua personalidade acima das leisordinárias da psicologia humana e nos permite adivinhar os ladosmisteriosos da vida que escapam à investigação histórica. Nóscompreendemos melhor a urgência quase febril com a qual o apóstolo,sem trégua, busca constantemente novos xóran (Rm 15.23) onde

exercer seu ministério: “desde Jerusalém até Ilírico”; e quando nesta parte do mundo “a obra do evangelho estiver terminada” (Rm 15.19),sua preocupação se dirige à Espanha. “O tempo é curto” (1 Co.7.29), porém o apóstolo tem a obrigação terrível de deter, todavia, avinda do Anti-Crísto finalizando antes a pregação aos pagãos: “Ai demim, se não pregar o evangelho!” (1 Co. 9.16).

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5

• EIAEN KAI • ÍIIIT* EEN

A VIDA DE JESUS 

OBJETO DE “VISÃO” E DE “FÉ”, SEGUNDO O QUARTO EVANGELHO

Um dos méritos de M. Goguel é ter mostrado em sua Vida de 

 Jesus, contrariamente à tendência que caracteriza quase todas as obrassimilares de seus predecessores, que não somente a tradição sinóptica,mas também o Quarto Evangelho, contém elementos que podem edevem ser utilizados pelo historiador desejoso de reconstruir o que

 podemos saber sobre a vida histórica de Jesus de Nazaré, apesar dasalterações que este Evangelho tenha feito para adaptá-lo a seu intento.

 Nós queremos, neste capítulo, nos ocupar de outro aspecto daquestão e buscar a significação religiosa e teológica que o próprioevangelista atribui a esses acontecimentos históricos. O pensamento

 joanino que se pode derivar deste Evangelho foi freqüentementeestudado. Porém, em ditos estudos, a questão da relação precisadesse pensamento com os acontecimentos históricos da vida de Jesus,

que se lhe serve de quadro, quase nunca é exposta. E, todavia, oautor deve ter tido uma idéia sobre este assunto, dado o fato de terescolhido intencionalmente a forma literária do Evangelho.

Antes de tudo, é exato falar aqui de “quadro”? Isto não implica já numa interpretação dos fatos narrados que talvez não seja a doevangelista? Com efeito, se pressupõe quase sempre, e, por assim

dizer, a priori que os relatos não tiveram, para o próprio evangelista,senão uma importância puramente literária. Nós veremos que istoimpede a verdadeira compreensão do intento do evangelista. Narealidade, é necessário propor a questão de outra maneira e nos

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 perguntarmos que relação o autor vê entre a história da vida de Jesuse a fé que, seguindo sua própria afirmação (Jo 20.30), ele quer

comunicar aos seus leitores.Esta relação não teria sido puramente exterior. Deve haver,no pensamento do evangelista, uma relação interna entre as duas.Quando no capítulo 20.30, ele declara que fez uma seleção entre osrelatos que tomou de uma tradição muito mais rica, e que os “sinais”que ele escolheu para incorporá-los em seu livro foram fixados por

escrito, a fim de que os leitores “creiam que Jesus é o Cristo, o Filhode Deus”, implica evidentemente que sua “seleção” foi determinadanão por um princípio histórico, mas por um princípio teológico. Todavia,seria falso concluir que os acontecimentos históricos como tais,relativos a Jesus feito carne, não tiveram mais que um interessesecundário para o evangelista. Pois a afirmação: “Jesus é o Cristo, o

Filho de Deus”, de tal natureza que exige a história. Isto é válido emum duplo sentido: antes de tudo, o próprio sujeito desta afirmaçãocentral da fé, “Jesus”, concerne diretamente à história. E quem diz“Cristo” diz, evidentemente, fé e teologia. Porém, para o autor doQuarto Evangelho, não se trata de uma teologia gnóstica, atemporal,metafísica, mas de uma história da salvação: trata-se de Cristo

 presente na execução do plano divino por completo; no passado, desdea • px* *“Ele estava junto a Deus”, no presente e no porvir: “foradele, nada se fez”. Isto não é uma afirmação filosófica. Cristo é oFilho de Deus, é o agente do drama redentor que se desenrola doinício ao fim.

A relação entre Jesus e Cristo não é então a relação entreuma personagem histórica e uma entidade metafísica, mas, antes,entre uma história visível, limitada a um período muito breve, o davida de Jesus, e uma história especial que se desenvolve através dostempos: a “história da salvação”. Os acontecimentos da primeiraforam objeto da visão, os da segunda são objeto da fé. Por isso, avida de Jesus, no pensamento do evangelista, não tem por objetivo

 proporcionar simplesmente um quadro exterior, cômodo, mas antes pôr em evidência a identidade entre o Jesus encarnado e o Cristoeterno, em especial Cristo presente na Igreja.

Isto resulta em uma dualidade que podemos seguir facilmente por todo o Evangelho: assim como nenhum Evangelho insiste tanto

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sobre a humanidade perfeita de Cristo - se pode provar, com efeito,que não somente as epístolas joaninas, mas também o próprio Evan

gelho toma posição contrária ao docetismo - tão pouco, talvez,nenhum outro escrito do Novo Testamento1sublinhe tão freqüentemente a divindade de Cristo. De um lado se insiste na importânciada a* e de outro nos damos conta de que a o* pt,  não é denenhum proveito.

Esta dualidade encontra sua explicação no próprio intento do

Evangelho tal como nós o definimos. Ela nos dá a chave paracompreender esse Evangelho e ao mesmo tempo o seu princípio deinterpretação. Nas páginas que se seguem vamos mostrar, estudandoo emprego dos termos “ver” e “crer” e sua relação recíproca noQuarto Evangelho, o problema que o próprio evangelista propõe. Elesuscita, se se pode falar assim, o problema da teoria do conhecimento

que implica essa maneira de compreender os acontecimentos da vidade Jesus. Ele se interessa pela questão de saber como pode chegar aescrever uma vida de Jesus considerada sob este ângulo particular ecomo o leitor poderá compreendê-la: de que maneira a relação

 profunda dos acontecimentos históricos desta vida, que não se produziram mais que uma só vez, puderam unir-se com o plano divino

do passado e sobretudo do presente? Dito de outra maneira: como oque foi  objeto da visão  pode chegar a ser  objeto da f é l   Depoiscomprovaremos como a fé deve ser seguida de uma compreensãosó se tornará possível depois da glorificação de Cristo.

O emprego extremadamente freqüente dos verbos que significam “ver” e “crer” tem preocupado muito os intérpretes do Quarto

Evangelho. Assim, desde o prólogo, lemos: “Nós vimos a sua glória”(1.14), e todo este Evangelho culmina no relato do apóstolo Tomé.Importa assinalar que não é mera casualidade que este relato seja oúltimo deste Evangelho propriamente dito, tendo sido o capítulo 21acrescentado mais tarde. Não se fez notar suficientemente que aúltima frase pronunciada por Jesus neste Evangelho é a que dirige a

Tomé: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não virame creram” (20.29).

1 Com exceção da Epístola aos Hebreus, que também se interessa pela humanidade deCristo de maneira especial.

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96 O s c a r   C u l l m a n n

O evangelista colocou esta frase como o coroamento de suaobra no final do Evangelho, pois se aplica aos leitores de todo o livro.

Com efeito, estes se encontram em uma situação em que não viram por si mesmos, por isso devem crer. Esta situação, um tanto problemática, forma o elemento norteador deste Evangelho.

Todavia, o autor não quer dizer com isto, de modo algum, queo testemunho ocular careça de importância. Pelo contrário, énecessário que durante a vida de Jesus tenha havido quem o tenha

visto; é necessário também que os cristãos, que não o viram por simesmos, possam fundamentar-se sobre o testemunho daqueles querealmente o viram com seus próprios olhos (1 Jo 1.1 s.). Porém não

 basta, todavia, tê-lo visto nem fundamentar-se sobre o testemunhoocular de outros, por muito necessário que isto seja. E necessário,ademais, um ato de fé que pressupõe um condicionamento superior,

uma compreensão superior da vida de Jesus. Sob este aspecto, asituação dos leitores é a mesma que a do evangelista.

Assim, nos encontramos no Quarto Evangelho, por um lado,com textos que sublinham a necessidade de ver,  e, por outro, comtextos que sublinham a necessidade de crer, ou antes, de chegar pelafé a uma compreensão mais perfeita. Como na primeira Epístola

 joanina, os três verbos *pcc*v (com os sinônimos) rnoxe^eiv eyiyv* g» eiv se encontram também neste Evangelho, em uma relaçãorecíproca muito estreita2. À primeira vista, parece haver contradiçãoao dizermos, por um lado, que é a visão e, por outro, que não é avisão, mas a fé o que importa. Intentou-se resolver está dificuldadeatribuindo, no primeiro caso, ao fato de ver o sentido de umacontemplação espiritual. Porém, esta explicação esta nitidamenteexcluída pelo emprego que o autor faz das palavras que significam“ver”: • pa» v, 0e* ©|iai, Gecopet» r. É verdade que o sentido de umacontemplação puramente espiritual está atestada para as duas últimas.Porém, há o fato de que o uso joanino dos três verbos prova que ostrês podem ser empregados indiferentemente com o mesmo sentido(assim *0eaa* pte0a t* v ôó^av, 1.14, comparar com •*)/• *xri* vôóÇocv, 11.40, e evêev x*v ôó^av, 12.41, há passagens onde

2 Cf. RUDOLF BULTMANN, em ThWbNT , t. I, 711 s.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 97

0£»O|j,ai (1.38; 6.5; 11.45) e 0£copet*v (6.19; 10.12) significandoindiscutivelmente ver com os olhos do corpo3. Em outras passagens,

encontramos os dois sentidos, e esta é uma das características datendência joanina em empregar estes verbos em duplo sentido4.Por conseguinte, não há contradição alguma quando este Evan

gelho insiste, por um lado, sobre a necessidade de ver fisicamente, e, por outro, sobre a de crer. Na realidade, esta justaposição correspondea todo o pensamento do Quarto Evangelho assim como também ao

intento que ele persegue.Com relação à necessidade de “ver”, já citamos a frase do

 prólogo que corresponde ao exórdio da primeira epístola joanina ondetodos os sentidos humanos são invocados, por assim dizer, como testemunhas: “Nós vimos sua glória” (•0eaa* pteGa, 1.14). Com efeito, não somente o uso já mencionado do verbo 0e* ©|iai como também

o contexto (•••foóyoç o* pç •yrexo) provam que nesta passagemestá implicado, ao mesmo tempo, o fato de se ver com os olhos docorpo. E essa comprovação deve ser feita independentemente daquestão referente às conseqüências que podem derivar-se para o

 problema do autor; além da solução da primeira pessoa do pluralempregada néste lugar5.

 No relato da ressurreição de Lázaro, este Evangelho refereintencionalmente a frase pela qual Jesus manifesta Sua alegria pelofato de que os discípulos têm a ocasião de ver; têm a possibilidade deassistir como testemunhas oculares a este milagre. Em 11.15 se declara: “Alegro-me por vós de não terem estado ali (junto à Lázaro nomomento de sua enfermidade) para que  creiais”.  Segundo oversículo 21 (se tu tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido), isto pode significar somente que é necessário que os discípulostenham a possibilidade de ver, antes de tudo, o milagre da ressurrei

3  Cf. WALTER BAUER, Griechsch-deutsches Worterbuch zu den Schriften des Neun  Testaments,  a propósito de 0e* onca e Gecopeiv.

4  Cf . O. CULLMANN,  D er jo h a n n e isc h e G ebrauch do pp eldeu tiger A usdriicke ais  Schliissel zum Verstándnis des vierten Evageliums:   TheolZ (1948) 360 s. Cf. maisadiante, 133, n. 11.

5  Cf. RUDOLF BULTMANN,  D as Evangelium des j o h an nes , 1941, 45 s. e F. TORM, D ie Psychologie des vierten Evange/iums: Augenzeue oder n ich t ?: Zeitsehrift für dieneutestamentliche Wissenschaft (1931) 125 s.

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98 O s c a r   C u l l m a n n

ção para chegarem logo à fé. Com efeito, observamos no versículo45 que muitos judeus que se chegaram junto à Maria viram o que ele

havia feito e creram nele.Parece se dar o mesmo propósito no Capítulo 12.30, onde Jesussublinha que a voz celeste ressoa por causa da multidão  que está

 presente.Por conseguinte, nestas passagens, o importante é que as

testemunhas viram verdadeiramente com seus olhos, e ouviram com

seus ouvidos. É necessário mencionar igualmente o relato da ida dosdois discípulos ao sepulcro de Cristo: o discípulo amado que chega primeiro, ao entrar no sepulcro, “vê” e “crê”. O versículo seguintedá, por assim dizer, a explicação desta necessidade de ver e crer

 para os discípulos, quando afirma que estes não haviam compreendido,todavia, a Escritura, onde poderiam encontrar a prova da ressurreição.

A mesma necessidade existe para Tomé, que deve tocar noressuscitado antes de crer (20.27). Se é verdade que Cristo lhe disse:“por que me viste, creste? Bem-aventurados os -que não viram ecreram”, não é menos importante que o apóstolo Tomé deva antesde tudo ver e tocar. A frase que o ressuscitado lhe dirige não encerraunicamente uma censura a sua atitude. Pois também os outrosapóstolos dos quais os versículos 19 s. tratam, tiveram que ver asmãos e o lado de Cristo6; e, por outro lado, Tomé, depois de ter vistoe tocado, chega efetivamente à verdadeira fé pronunciando aconfissão mais sublime que pode haver para o evangelista, aquelaque resume o prólogo (1.1): “Senhor meu e Deus meu!”

De todas as formas, para se chegar a esta fé não basta só avisão. É certo que as testemunhas oculares devem ter visto, porém, para elas, é necessário algo mais. Esta é a razão pela qual encontramos já um grande número de passagens que insistem sobre a insuficiênciada visão e a opõem, sem contradizerem-se, à fé.

Por isso, o evangelista quer mostrar aos leitores que estes sótêm o ato de fé, e que já nos tempos de Jesus o fato daqueles teremvisto não havia bastado. Tomé (20.28), e mesmo o discípulo amado(20.8), haveria de crer depois de ter visto. Porém, a insuficiência davisão é todavia mais patente no caso em que ela não é seguida da fé.

6 Isto foi sublinhado com razão po r M A RK US BARTFí.  D er A ugenzeuge,  1964, 196.

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D a s  O w q e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 99

Diferentes passagens deste Evangelho falam daqueles que,durante a vida de Jesus, puderam ver com seus olhos as obras deJesus, ouvido com seus ouvidos suas palavras, e, todavia, sem chegarà verdadeira fé que era exigida a partir do que viram e ouviram. Porconseguinte, a fé não segue automaticamente à visão. Já, no capítulo2.23, o evangelista nota que, depois das bodas de Caná, muitos deJerusalém, depois de terem visto os sinais realizados por Jesus,“creram”, dito de outra maneira, chegaram a uma certa fé. Porém,“Jesus não se confiava a eles”. Uma fé baseada unicamente sobre avisão, que se confunde, por assim dizer, com o próprio ato de ver, não

 basta. Uma fé que é simplesmente uma dedução extraída dos fatosque se tem visto, e nada mais, não é a verdadeira fé.

Com essas observações, o evangelista intenta mostrar que averdadeira fé é um ato que se realiza no coração daqueles que crêem.Os fatos quanto a ver e entender devem ser seguidos desse ato interior.Assim, no capítulo 4.48, Jesus censura o oficial real, e, ao mesmotempo, a toda sua geração: “Se porventura não virdes sinais e prodígios,de modo nenhum crereis”. E se pode dizer que o sentido profundo detodo este relato reside no fato de que o oficial real crê imediatamentesem ver (v. 50) quando Jesus lhe disse: “Teu filho vive!”; aqui, a féestá fundamentada não sobre a visão do milagre, mas, antes, sobre aatitude interior que o oficial toma frente à “palavra” de Jesus.

O mesmo motivo sinóptico da busca do milagre por parte damultidão serve, no capítulo 6, para pôr em evidência a insuficiênciada visão. Quando no versículo 30 os judeus perguntam a Jesus:“Pois tu, que sinais farás para que vejamos e creiamos?”, o evangelista entende a palavra Ttioxe* ctv no sentido de uma fé imperfeita, pois se deriva simplesmente do ato de ver, independentementedo ato de fé interior propriamente dito. Com efeito, os judeus

 já tinham tido antes a ocasião de ver o milagre da multiplicação.Alguns versículos mais adiante (v. 36), Jesus lhes diz: “Vós mevistes e não haveis crido!”

 No capítulo 7.5, o evangelista escreve que os próprios irmãosde Jesus não crêem, e todavia, segundo o versículo 3, tiveram aoportunidade de ver suas obras.

 No capítulo 14.7 s., fala também da insuficiência da visão.Quando Jesus disse: “Desde agora o conheceis e o tendes visto”,

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100 O s c a r   C  u l l m a n n

Felipe, que não compreende nada disto, pergunta: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta”. Jesus então se vê obrigado a repreendê-lo: “Há tanto tempo estou convosco, e tu não me tens conhecido?”

 Nessa mesma ordem de idéias, é necessário voltar, todavia,sobre o relato de Tomé (20.34 s.). Temos comprovado certamenteque o fato de ver se apresenta como uma necessidade para o apóstolo,testemunha ocular da vida de Jesus. Porém, também encontramosigualmente que o ato de fé deve juntar-se ao ato da visão; todavia, oato de fé é mais importante que a visão.

A frase que Jesus pronuncia no capítulo 9.39, expressa, porsua maneira, a insuficiência da visão física: “Eu vim a este mundo

 para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem setomem cegos”. Aqui (3À*rceiv está empregado em um duplo sentido.

Também, ali onde a visão com os olhos carnais é pressupostacomo uma necessidade, a segunda significação, a de uma “contemplação espiritual”, se encontra freqüentemente como pano de fundo; eesta simultaneidade de “ver com os olhos” e “contemplar pela fé” éuma das características do Quarto Evangelho. Isto se sucede noversículo já citado do prólogo, o mesmo que nos capítulos 6.40 e 14.19.

Por esta razão, se pode chegar a inverter a ordem, como nocapítulo 11.40: “Se creres verás a glória (Só^a) de Deus”7. ,

O mesmo se sucede com as frases relativas ao fato de entender; freqüentemente implicam a necessidade de entender de mododistinto e anterior aos dos ouvidos. Em todo caso, o episódio da vozceleste (12.28 s.) pressupõe que a multidão que a escutava (v. 30)deveria entender nela a glorificação de Cristo por Deus, enquantoque na realidade não perceberam mais que um ruído, crendo que se

tratava de um trovão.À simultaneidade da visão física e da contemplação pela fé

corresponde também a dupla significação do termo pelo qual oevangelista tem o costume de designar o objeto da visão e da fé: elenão emprega nossa expressão moderna “acontecimento”, mas disseoripeiov e indica por isto que se trata de fatos que são visíveis e

que, portanto, exigem uma compreensão superior que não é possívelsenão por meio da fé.

7 Seria necess ário relac ion a-lo com 1.51.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 101

Sendo assim, todas as testemunhas oculares até a última, Tomé,deveriam necessariamente realizar este ato interior de fé, estanecessidade se imporá tanto mais à  geração que viverá depois da 

 morte e ressurreição de Cristo. Porém, o autor vai mais longe. Nãosomente é necessário este ato de fé depois da ressurreição de Cristo, mas também é  mais fácil   a compreensão superior dos “sinais”nesse momento do que durante a encarnação de Jesus. Com efeito,essa compreensão espiritual que resulta da fé, mas que não se confunde com ela, não é possível senão pelo Espírito Santo, depois daglorificação de Cristo (7.39). Temos aqui uma idéia que tem grandeimportância para o autor. Os leitores não podem dizer, por conseguinte, que estão em uma situação menos vantajosa que aqueles queviram a Cristo segundo a carne. Pelo contrário, estes se encontram,até certo ponto, em uma situação privilegiada em relação àquelesque viveram somente no tempo de Jesus. Pois estes têm o EspíritoSanto que abre a mente dos crentes e lhes explica o sentido profundodos acontecimentos da vida de Jesus. O relato desses acontecimentos lhes é transmitido pelo testemunho ocular dos apóstolos, sobre oqual se pode fundamentar (17.20). Este testemunho ocular é tam

 bém indispensável ao crente. Porém, a verdadeira compreensão davida de Jesus não é possível senão depois da glorificação de Cristo,isto é, depois que Ele tenha enviado o Espírito de verdade.

Temos aqui porque as frases de Jesus, que o evangelista referenos discursos de despedida (14.16), têm para ele mesmo um valor

 pessoal. Estas justificam todo seu intento literário: O Espírito Santo prometido por Jesus aos Seus neste momento, à véspera de Suamorte, deu também ao autor a compreensão acerca da vida de Jesusque ele quer comunicar a seus leitores neste Evangelho.

Duas passagens do discurso de despedida nos dão a chave para a compreensão de nosso Evangelho:

O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo  o que Eu  vos  disse (14.26); tenho porém muitas coisas que vos dizer, porém não as podeis compreender agora. 

 Porém, quando o Espírito da verdade vier, Ele vos guiará  a toda à verdade  (16.12 s.).

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102 O s c a r   C  u l l m a n n

Em geral, se esquece que a ação do Parácleto concerne, em primeiro lugar, à  compreensão da vida de Jesus. Fala-se muito daconsciência messiânica de Jesus. Aqui, se poderia quase falar daconsciência literária do evangelista, de sua consciência de estarinspirado pelo Parácleto. Movido por esta consciência, ele situou osacontecimentos da vida de Jesus na perspectiva particular quedistingue seu Evangelho dos outros e que nos faz abraçar a um mesmotempo o Jesus da história e o Cristo da fé.

Por isto, o autor, ao longo de seu relato, recorda constantemente aos leitores que os que viram os acontecimentos não compreenderam seu verdadeiro significado até a glorificação de Cristo. Porexemplo, no final da perícope sobre a purificação do templo (2.19),ele declara expressamente que os discípulos se deram conta de queEle lhes havia falado de seu próprio corpo que devia ser destruídosomente depois da morte do Senhor. Todas as passagens do QuartoEvangelho que mencionam essa “recordação”8devem ser relacionadas com as afirmações retaliavas ao Parácleto p têm, para a com preensão do caráter especial deste Evangelho, muito mais importância do que se crê geralmente. A “recordação” de que se trata aquinão é simplesmente a recordação do fato material propriamente dito,mas, antes, que implica, ao mesmo tempo, a compreensão desse fatoque é conferido pelo Espírito Santo. Assim, em virtude dessa recordação particular, o evangelista compreende a relação que une os acontecimentos da vida de Jesus com o Antigo Testamento. Quando, ao longo de seu relato, recorda ao leitor esta relação, faz notar expressamenteque as testemunhas oculares não se deram conta desta relação atéum período posterior. Por exemplo, no capítulo 12.16, refere o fatode que Jesus havia montado em um jumentinho, como cumprimentode Is 40.9 e de Zc 9.9; e ali, também, acrescenta intencionalmente:

Seus discípulos a princípio não compreenderam isto; quando, porém, Jesus fo i glorificado, então eles se lembraram de que estas coisas estavam escritas a respeito 

 dele e também de que lhas fizeram.

8 Cf. N. A. DA HL,  A n am n esis .  Mémoire et commémorat ion dans le chris t ianisme prim iti f, em Studia theologica.  Lund, 1947, 94.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 103

É necessário mencionar aqui a frase de Jesus dirigida a Pedrono momento do lava-pés: “Isto que eu faço tu não compreendesagora, porém o compreenderás mais tarde” (13.7). Trata-se da com

 preensão da relação deste ato com os sacramentos da comunidade.Por outro lado, a informação já citada pelo evangelista, no capítulo20.9, recorda o conhecimento que, também a comunidade, terá maistarde (o* 8* rcco) do testemunho que o Antigo Testamento dá da ressurreição de Cristo. As indicações acrescidas pelo autor, em 12.32 e18.32, se apoiam igualmente sobre a compreensão profunda de umafrase de Jesus, tal como é revelada a ele somente “depois de um

 pouco de tempo”.Em um trabalho anteriormente publicado9, estudamos o voca

 bulário do Quarto Evangelho e mostramos que o evangelista emprega preferentemente palavras e expressões que têm um duplo sentido:o material e o espiritual. E o mais característico é que as empregaem uma mesma passagem nos dois sentidos. Isto confirma exatamente o resultado a que temos chegado aqui estudando a relaçãoentre “ver” e “crer”. O intento que persegue este Evangelho é o dereferir os acontecimentos da vida do Jesus histórico, ao mesmo tem

 po que o de mostrar sua relação com a continuação da história da

salvação, com a Igreja. Ele quer mostrar, em cada relato, a identidade que existe entre o Jesus da história e o Cristo presente na Igreja. Não há nenhuma alternativa. Os acontecimentos históricos são comouma prefiguração do que acontece na vida da Igreja, particularmente no culto e nos sacramentos da Igreja10.

Este resultado é importante para a exegese do Quarto Evan

gelho. Pois se tal é o intento desse Evangelho, isto é, se intencionalmente quer falar por sua vez de fatos únicos e de sua prolongação nahistória da salvação, o exegeta do Quarto Evangelho deve considerar como seu dever levar em conta esta intenção de abarcar, ao

9 Cf. a p. 97, n. 4.

10 M. GO GU EL semp re insistiu sobre o interesse particular do quarto evangelho pelossacramentos. Cf. sobre tudo  L ’eucharis tie des orig ines à Justin M arty r,  1910, 195 s.

 Nós se guim os esta preocupação do evangelista através de todo se u livro, em Urchris- 

tentum und Gottesdienst,  1944. Nossa tese foi discutida e parcialmente contestada

 por W. M ICH A ELIS,  D ie Sakram ente im Johannesevangelium ,  1946. Na segundaedição corrigida de nossa obra, respondemos a W. MICHAELIS.

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104 O s c a r   C u l l m a n n

mesmo tempo, esses dois aspectos em todas as partes do livro. Nãodeve se contentar em examinar um fato unicamente sob o ângulomaterial, mas é necessário propor, de uma maneira sistemática, aquestão de saber que fato atual o autor vê prefigurado em tal acontecimento da vida de Jesus. Esta questão deverá ser delineada nãosomente nos relatos onde o próprio evangelista a suscita explicitamente, pois, levando em consideração sua maneira preferida de seexpressar, é necessário delineá-la em todo o Evangelho. No caso doQuarto Evangelho, isto não é cair de nenhuma maneira na alegoria11.O evangelista tem confiança nesta faculdade de compreensão que oParácleto comunica também ao leitor. Este deve participar no conhecimento superior do evangelista que abarca, por sua vez, de umasó vez, o acontecimento histórico único ou a palavra de Jesus pronunciada uma só vez, e seu desdobramento na ulterior história dasalvação.

11 E sta censura foi fei ta ao l ivro Urchris tentum und Got tesdienst ,  1944, 33 s., aotentar mostrar em um grande número de perícopes joaninas as alusões ao batismo eà eucarist ia, por H. VAN DER LOOS,  A lle g o r isch e E x e g e se ’.  Nederlands ThTij

(1948) 130 s. e W. MICHAELIS,  D ie Sakram ente im Johannesevangelium .  B.E.G.,Berne 1946. Se não t ivéssemos por exemplo mais que Jo 3.14, se considerariacertamente como uma explicação “alegórica” a relação estabelecida entre o termo

«empregado neste lugar e a cruz de Jesus. Casualmente, o autor nos indicamais adiante (12.32) o que ele entende por “elevar” ao falar de Cristo, não somenteno sentido corrente de “elevar à direita de Deus”, mas também de “elevar na cruz”.

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O RESGATE ANTECIPADO DO CORPO HUMANO 

SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO

 Nossos corpos não ressuscitarão imediatamente depois damorte individual de cada um, mas somente no final dos tempos. Tal é

a esperança geral do Novo Testamento que, neste aspecto, se opõenão somente à crença grega na imortalidade da alma, como tambémà opinião segundo a qual os mortos viverão, antes da parousia, forado tempo e se beneficiarão também do cumprimento final. Nem afrase de Jesus (Lc 23.43) “em verdade te digo, hoje estarás comigono paraíso”, nem a parábola do rico refestelado e do pobre Lázaro

que, depois de sua morte, foi levado pelos anjos “ao seio de Abraão”(Lc 16.22), nem a expressão do apóstolo Paulo (Fp 1.23): “eu desejomorrer e estar com Cristo” e nem sua exposição em 2 Co 5.1 s.,sobre o estado de “nudez” atestam a idéia de que aqueles que morremem Cristo antes da parousia sejam imediatamente revestidos de um corpo de ressurreição. Estes textos afirmam unicamente que o fato

de pertencer a Cristo tem também conseqüências para aqueles “quedormem”, e a passagem de 2 Co 5.1 s. mostra em particular que os“dons do Espírito” (v. 5) outorgados aos crentes impede o estado denudez dos mortos falecidos antes da parousia, tudo o que poderia terde terrífico. Graças ao nveu* pia, estes estarão “junto ao Senhor” jádurante este estado intermediário, que é descrito com a ajuda da

imagem do “sonho” (lT s4.13)ou daquela visão do lugar privilegiadoque estes ocupam “sob o altar” (Ap 6.9). Toda a exposição paulinaconsagrada em Ts 4.13 s. à questão da sorte dos que morrem emCristo antes da parousia estaria desprovida de sentido, se atribuirmos

6

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1 0 6 O s c a r   C ü l l m a n n

ao apóstolo a idéia de uma ressurreição do corpo que sobrevive depoisda morte individual de cada crente.

 Na realidade, não há mais que um só corpo que já ressuscitou e

que existe desde agora como a©* j*ta TUveujiaTi* óv: o de Cristo, que pelo mesmo fato é o primogênito entre os mortos (Cl 1.18; Ap 1.5).Por esta ressurreição, a vitória decisiva sobre a morte já foi obtida (At2.24). É verdade que a morte exerce todavia seu poder sobre oshomens, porém já perdeu sua onipotência definitivamente (2 Tm 1.10).

Com a ressurreição de Cristo o poder da vida, o Espírito San

 to, entrou no mundo. O Espírito Santo é a grande antecipação atualdo fim: • ppa(3* r (2 Co 1.22; 5.5), • rcap%* *(Rm 8.23). Em Rm 8.6s., o apóstolo Paulo mostra que o Espírito Santo é o grande adversário da carne, poder da morte. Dizer carne, a* p^, é dizer morte,0* vaxoç. Dizer Espírito Santo é dizer vida, Çco* r Quando o EspíritoSanto aparece, a morte desaparece. Tudo o que o Espírito toca per

de, como por encantamento, seu caráter perecível, mortal. O Espírito Santo, é o poder criador do próprio Deus. Toda ação do EspíritoSanto é milagre, milagre de vivificação. Ao grito de desespero deRm 7.24, “quem me libertará do corpo dessa morte?” (•• •tou**

 o • piaxoç tod* •Oav to u to* fou), responde o testemunho de todoo Novo Testamento: o “Espírito Santo”.

Todavia, ainda que o Espírito Santo já atue, os homens continuam morrendo como antes, depois da páscoa e depois do pentecos-tes. Seus corpos permanecem mortais e expostos à enfermidade.Ainda que já se encontre vencida, privada de sua onipotência (2 Tm1.10), a morte não será aniquilada senão no fím dos tempos como o“último inimigo” (1 Co 15.26; Ap 20.13). Então, somente o Espírito

Santo transformará os corpos carnais em corpos espirituais o*  tia ia  7tvet)|J,om* • *(*1 Co 15.44). Esta será a nova criação, onde umamatéria de vida substituirá a matéria da morte. No presente, o juveu* warenova a cada dia somente nosso homem interior (2 Co 4.16; Ef3.16). O fato de que o Espírito Santo habite em nós, desde agora, é agarantia de que, no porvir escatológico, Ele vivificará nossos corpos

mortais:

Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesusdentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus

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dentre os mortos vivifícará também os vossos corpos mortais, por meio de seu Espírito que em vós habita. (Rm 8.11).

Porém, no presente momento, a a* pç, domínio da morte, sedefinha unida indissoluvelmente ao nosso oco* pia.

Quer dizer que há um poder, o de nossos corpos, que escapacompletamente à ação atual  do Espírito Santo? Seu poder vivificadorfica assim condenado à impotência diante do nosso corpo de morte?O fato de que exista, neste momento, um corpo de ressurreição, o deCristo, não significa nada para nossos corpos mortais?

Vamos mostrar que, segundo o Novo Testamento, o EspíritoSanto, ainda que sem poder transformar nossos corpos carnais emcorpos espirituais antes da parousia, estende antecipadamente suaação presente até o domínio do < j c o * pia, fazendo retroceder assim a

 própria morte, onde havia se estabelecido com mais solidez. Mostra

remos: 1) que esta ação antecipada sobre o corpo humano se manifesta já na presença de Jesus durante seu ministério terrestre, nosmilagres de cura e de ressurreição; 2) que na Igreja, sendo o corpode Cristo, o oco* pia íive/uncm* óv sobre a terra, os corpos carnaisdos membros que compõem este corpo espiritual experimentam asrepercussões do poder vivificado do corpo glorificado de Cristo, em

 particular nos sacramentos do batismo e da santa ceia. Nós veremos, por outro lado, que as relações conjugais se integram nessa relação existente entre o corpo de Cristo-Igreja e nosso corpo,enquanto que as relações sexuais fora do matrimônio a destroem.

I

Enquanto Cristo viveu sobre a terra em carne e osso, a redençãoantecipada do corpo humano se dava em Sua própria pessoa.O Evangelho segundo João afirma que o Espírito Santo não existiuaté depois da glorificação de Cristo: “não havia todavia Espírito Santo,

 pois Jesus não tinha sido glorificado” (Jo 7.39). Estando Jesus sobrea terra, o poder da vida que atuará mais tarde pelo Espírito Santoestá encarnado em sua pessoa. “Cristo é o 7iveuu* ex”, dirá maistarde o apóstolo Paulo (2 Co 3.17).

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108 O s c a r   C u l l m a n n

Uma transformação antecipada do corpo humano foi realizada,durante um curto instante, no corpo carnal do próprio Jesus nomomento da transfiguração (Mc 9.2 par.) da que foram testemunhastrês discípulos. O sentido cristológico deste acontecimento é o de umsinal precursor, que põe em evidência que Jesus, poder da vida, veioao mundo revestido de um corpo de morte para vencer o poder damorte sobre o corpo.

Assim, a morte retrocede, quase podemos dizer, automaticamente na presença de Jesus: os cegos vêem, os coxos andam, osleprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados(Mt 11.5). Toda enfermidade não é mais que uma forma particularde morte. Por esta razão, os milagres de  cura e os milagres de  res

 surreição  são mencionados uns ao lado dos outros. Não há entreestes milagres mais que uma diferença de grau. Em ambos os casos,é a morte a que é contida, a que retrocede diante do poder da vida.Segundo Mt 12.28, o próprio Jesus disse que expulsa os demônios

 pelo Espírito de Deus. Inclusive, se a variante de Lc 14.20, “pelodedo de Deus”, for mais primitiva, a interpretação de Mateus é exata. Os milagres de cura assinalam o triunfo da vida sobre a morte, doTtveu* pia, poder da vida, sobre a o* p£, poder da morte. Por estarazão, aos milagres de cura segue o perdão dos pecados, pois amorte unida à o* p^ é conseqüência do pecado de Adão (Rm 8.10:“o corpo da morte por causa do pecado”). Assim, cada enfermidade, sem ser certamente um castigo individual por tal ou qual pecado individual (Jo 9.2 s.), é, o mesmo que a morte, um sintoma doestado de pecado geral em que se encontra toda a humanidade.Consequentemente, com cada cura se abre uma brecha no domínioda morte, e, portanto, no domínio do pecado. Esta é a razão pelaqual Jesus faz acompanhar às curas a promessa do perdão dos

 pecados.E verdade que a morte retrocede nesses milagres de cura.

Todavia, não se trata de seu aniquilamento. Sob este aspecto, ascuras se distinguem facilmente dos milagres de ressurreição feitos

 por Jesus; nestes, a morte não encontrou todavia seu fim definitivo: afilha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro deverão morrer e ressuscitarde novo, pois estes ressuscitaram, todavia, com um corpo mortal, enão com um oco* pia 7iV£'U|j,aTf év.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r is t ã 1 0 9

O Evangelho segundo Mateus (27.52 s.) nos refere que nomomento do próprio Cristo morrer, precisamente no instante em quea morte sofre sua derrota decisiva, os corpos de muitos mortos saem

das tumbas. O evangelista considerou também este acontecimentocomo um antecipação que acontece por conseqüência da vitória obtida

 por Cristo, e não como uma ressurreição definitiva dos corpos dossantos. Do contrário não se compreenderia porque ressuscitaramnesse momento somente muitos (t o AA* ) e não todos os corpos dossantos. Da mesma forma que na presença de Jesus vivendo sobre a

terra a morte devia retroceder, assim, é natural que ela retroceda nomomento em que se produz o acontecimento mais importante nahistória da morte: o veredicto irrevogável de sua condenação aoaniquilamento é pronunciado, ainda que, todavia, não seja executado.

nDepois da morte e ressurreição de Cristo, sua Igreja é o lugar

onde o Espírito Santo atua, onde trata de conferir antecipadamente aincorruptibilidade aos nossos corpos mortais nos milagres realizados

 pelos apóstolos.O apóstolo Paulo dá, por assim dizer, uma base teológica a

este fato. Afirma que a Igreja é o corpo de Cristo sobre a terra, oúnico oco* jsia TCveDiiaxi* óv que existe desde já. Porém, esse corpode ressurreição de Cristo, que é a E* • ^T]o*fX, está composto decrentes revestidos de corpos carnais. Esta situação é paradoxal:sobre a terra, os fiéis constituem conjuntamente um corpo de ressurreição, o de Cristo, e todavia nenhum dentre estes individual

mente possui um corpo de ressurreição, pois todos estão revestidosde um corpo carnal.

 Nós vamos tentar deduzir do pensamento paulino esta idéiaque nos parece fundamental:  o fato da igreja compor o corpo espiritual de Cristo tem, por antecipação, conseqüências atuais 

 para os corpos dos fiéis.

A primeira vista, esta idéia nos parece atrevida e choca com onosso idealismo moderno, mas, todavia, podemos seguí-la através detodo o paulinismo. O mesmo se dá quando no fim “nós seremosa* |U.(iop(poi à imagem de seu Filho” (Rm 8.29) e que “o Senhor 

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110 O s c a r   C u l l m a n n

transformará então”, como disse em Fp 3.21, “o nosso corpo dehumilhação, tomando-o semelhante, o* pijiopcpoç, ao corpo de Suaglória”; o mesmo onde agora a |iop(p* *do corpo de nossa miséria

experimenta já a influência de Cristo que deve tomar forma(uopcpcoG* • *614.19) em Sua Igreja.

O paradoxo da Igreja, sob este aspecto, consiste na dupla referência ao corpo e aos corpos; o corpo espiritual de Cristo e os corposcarnais dos homens. Os textos relativos à Igreja, corpo de Cristo, nãose encontram somente na Epístola aos Colossenses (1.18,22,24) e na

Epístola aos Efésios (4.12; 5.30), mas em toda Ia Epístola aos Corín-tios, os quais são como o seu tema central: “vós sois o corpo de Cristo,e cada um de vós, individualmente, é membro desse corpo” (12.27), ena Epístola aos Romanos (12.5): “nós que somos muitos formamos umsó corpo em Cristo”. Posto que a pessoa de Cristo, e, por outro lado, ologion  de Jesus referente ao templo que não seria feito por mãos

humanas, aponta certamente já para a comunidade de discípulos, oQuarto Evangelho pode fazer, a propósito da história da purificação dotemplo (Jo 2.19), a relação entre o templo e o corpo de Cristo.

Encontramos no apóstolo Paulo esta relação templo-Igreja-corpo espiritual de Cristo em 1 Co 3.16: “Não sabeis que sois templode Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” Esta expressão se

refere claramente ao corpo espiritual de Cristo que é a Igreja.É muito importante para o problema que nos ocupa que a mesmafrase, alguns capítulos depois (6.19), se aplique ao corpo individual,camal dos fiéis de que está composta a Igreja: “Não sabeis que vossocorpo é templo do Espírito Santo que está em vós, que haveis recebidode Deus e que não vos pertence?” Esta curiosa aplicação de uma

mesma frase, em uma mesma Epístola, em duas realidades tãodiferentes como são a Igreja e o nosso corpo carnal e individual, seexplica unicamente pela relação que nós tentamos pôr aqui emevidência entre  o corpo e  os corpos.

Toda a exposição do capítulo 6 da primeira Epístola aos Coríntiosestá embasada sobre a idéia fundamental de que não é um fato

indiferente para nosso corpo camal que nesse momento seja integradoem outro corpo que é o corpo de ressurreição de Cristo, o únicooco» pia 7iV8U|iaxi* óv que já existe. Temos aqui porque os corposcarnais dos membros da Igreja são desde já revestidos de uma

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 111

dignidade especial: estes não nos pertencem mais, e o apóstolo, com base nisto, pode exortar os coríntios a “glorificarem a Deus em seuscorpos” (6.20). Nisto radica-se o fundamento cristológico de toda amoral sexual do paulinismo. Nesse mesmo capítulo (v. 15), o apóstolochega até a dizer: “Não sabeis que vossos corpos são membros deCristo?” (t* *o* jtiaxa • tico* v u* *r| XpiGTOU* ••frav; cf. tambémEf. 5.30: n*A,r| x o d *  pimoç a* t o d * ).

E verdade que este corpo glorioso de Cristo, com tanto queseja idêntico com a Igreja terrestre, é, ao mesmo tempo, o corpocrucificado, posto que se encontra em um mundo que lhe é hostil.A integração do nosso corpo carnal no corpo de Cristo-Igreja semanifesta, em conseqüência, sob dois aspectos opostos, correspondentes ao duplo caráter do corpo de Cristo: corpo crucificado e cor

 po glorificado. Tanto que, membro do corpo crucificado, o corpo carnal participa em seu sofrimento:

Trazemos sempre em nosso corpo o morrer  de Jesus, para que a vida de Jesus também seja  revelada em nosso corpo.  (2 Co 4.10)

Todavia, é necessário advertir que sob este aspecto, o apóstolo não menciona mais que seu próprio sofrimento: parece, pois, queeste efeito do corpo de Cristo é reservado ao corpo carnal do  após

 tolo, em acordo com o posto especial que ele ocupa na E* •Assim, ele escreve na Epístola aos Filipenses (1.20), falando de sua

 própria pessoa: “Cristo será glorificado em meu corpo, seja porminha vida, seja por minha morte”. Na Epístola aos Gálatas (6.17),fala das “marcas” de Jesus que leva em seu corpo. Porém, a passagem mais explícita nesta ordem de idéias se encontra na Epístola aosColossenses: “Agora me alegro de meus padecimentos por vós, esofro em minha carne o que falta às tribulações de Cristo em favor 

 do seu corpo, que é a Igreja” (1.24). Aqui, a relação entre o corpode Cristo-Igreja e o corpo carnal do apóstolo se afirma claramente.

Com efeito, a relação do corpo glorioso de Cristo sobre o cor po humano, do qual se compõe a Igreja, interessa ao apóstolo porquese estende a todos os crentes. Antes de tudo, esta ação acontece nos

 sacramentos: batismo e santa ceia. Os sacramentos são na Igreja o

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112 O s c a r   C u l l m a n n

que os milagres foram no ministério de Jesus. Com efeito, os sacramentos são também milagres do Espírito Santo. Sem dúvida, os milagres propriamente ditos continuam também depois da ressurreiçãode Cristo, porém no seio do corpo de Cristo feito Igreja, a partir dodia de pentecostes, no momento da efusão do Espírito Santo, os milagres do Espírito se confundem cada vez mais com a ação do batismo e da santa ceia.

O batismo tem por efeito participar a cada um individualmenteo Espírito Santo que havia sido derramado sobre toda a Igreja no diade pentecostes. Ao entrar na Igreja, o homem se coloca sob o efeitoimediato do oco* pia Tcvetiiiom* óv: “Em um só espírito fomos

 batizados para formar um só corpo”, disse o apóstolo (1 Co 12.13).Este corpo é o corpo glorificado de Cristo e assim o batismo faz comque, segundo o livro de Atos, onde os relatos do batismo não deixamde pôr em relevo esta participação, isto aconteça em certa medidaimediatamente sobre nosso corpo. É verdade que essa ação semanifesta somente sob a forma de glossolalia. Esta não é outra coisaque uma tentativa do Espírito Santo de romper os limites, que o corpo

 possui, na linguagem humana, e de encontrar uma linguagem maisdireta, a “linguagem dos anjos” (1 Co 13.1). Tentativa por demais vã,

 pois a glossolalia permanece encerrada nos meios de expressãocorporal e não chega a ser mais que “suspiros” que o apóstolomanifesta em Rm 8.23 s., como sinais da redenção de  nosso corpo (• itoà,* •cpcooiç TOv**a* fiaxoç) que, apesar de ser visada eardentemente esperada, não é, porém, realizada.

 Na santa ceia, a relação entre o corpo ressuscitado de Cristoe o corpo carnal do homem aparece da maneira mais manifesta. Nós

 podemos chamar à eucaristia de: o sacramento da Igreja corpo deCristo. O texto do capítulo 10.16 s. da primeira Epístola aos Coríntiosé com freqüência citado, porém, talvez, não suficientemente meditado.Aqui, o apóstolo diz claramente que o pão que nós partimos naeucaristia é o corpo de Cristo constituído por “nós que somos muitos”.Ao partir o pão, nós entramos em contato direto, imediato, com oaco* pia TtvEU.uaxi* óv do ressuscitado, e este cco* pia, é ao mesmotempo, a comunidade dos fiéis. A identidade misteriosa entre a Igrejae ó corpo de Cristo de que falamos se faz particularmente eficaz nosacramento da eucaristia, e se se quer intentar determinar na vida do

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 113

apóstolo o lugar e o momento em que lhe foi revelada esta identidade,seria necessário provavelmente pensar nas comidas eucarísticas queele compartilhou com os demais irmãos.

Em todo caso, podemos afirmar com certeza que Paulo admiteuma influência, presente na assembléia que se reune para o banquete,do corpo espiritual de Cristo sobre nosso corpo carnal. E uma idéiaque à primeira vista pode nos chocar. Porém, os versículos 29-30 docapítulo 11 são absolutamente claros a este respeito, e ainda quando secite tão freqüentemente a passagem, que no mesmo capítulo lhe precede,

sobre a instituição da eucaristia, não permiti silenciá-los a este respeito:“O que come e bebe sem discernir de que corpo se trata, come e bebe

 para sua própria condenação. Por isso há entre vós muitos fracos edoentes e muitos mortos”. Paulo chega a dizer que o manjar comidodignamente impediria a enfermidade e a própria morte. Esta idéiaextremamente atrevida pressupõe evidentemente que a eucaristia

 jamais será comida dignamente enquanto durar o presente eon. Jamaiso corpo ressuscitado de Cristo é realizado plenamente, como deveria,

 pela comunidade dos fiéis reunidos para celebrar o banquete.Com razão se tem feito observar que Paulo não quer dizer

simplesmente nestes versículos que aqueles que comem a santa ceiaindignamente são castigados de qualquer maneira, mas que são

castigados em seu corpo carnal. A participação do corpo de ressurreição de Cristo no banquete poderia arrancar-lhes, desde já, do poderda morte. Isto é, se se privam do efeito vivificador da ceia e, por suaindignidade, impedem que a vida faça a morte retroceder, desde já,impedem que se produzam os milagres de cura e de ressurreição que poderiam se produzir.

 No corpo ressuscitado de Cristo, constituído pela Igreja erealizado nos banquetes eucarísticos, não deveria haver lugar para o

 poder da morte. Assim entendida, a eucaristia é verdadeiramente aantecipação do fim por excelência. O apóstolo nos recorda isso nomesmo capítulo da primeira Epístola aos Coríntios (v. 26), quando dizque nós anunciamos na eucaristia a morte do Senhor “até que Ele

venha”. É verdadeiramente o milagre da vida que deve penetrar emnós, inclusive em nosso corpo, para que sejam expulsas a enfermidadee a morte, como Jesus as expulsou durante o seu ministério terrestre,antecipando desta maneira os acontecimentos do fim.

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114 O s c a r   C  u l l m a n n

T u c i o o que viemos comprovando se encontra confirmado pelaconcepçãí» paulina das relações de  matrimônio. Paulo fala, na ocasião, do cíaso de incesto produzido na Igreja de Corinto. Mostra quetoda relaç ão sexual fora do matrimônio é um atentado ao corpo ressuscitado de Cristo. Assim, a união corporal com a 7iópvr| é incom

 patível com 0 fato de se pertencer a esse outro corpo que é o corpode Cristo. Toda a exposição de 1 Co 6, sobre as relações entre ocorpo de Cristo e nosso corpo partem dessa consideração. “O quese une a uma prostituta se toma um só corpo com ela”, diz no v. 16.

 Não se pc>de ser ao mesmo tempo um só corpo com a prostituta ecom Cristo. Estas duas uniões se excluem radicalmente.

Assiim se explica o fato do apóstolo conceber o pertencer àIgreja corno uma relação corporal. Sem esta idéia fundamental,todo o desenvolvimento do capítulo seria incompreensível. Da mesma forma que somos membros da Igreja, somos membros de Cristo. “Entã<?, tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a uma

 prostituta?”, pergunta Paulo, depois de ter afirmado que “nossoscorpos sãP membros de Cristo” (v. 15). Ele pressupõe que a uniãoentre o nc>sso corpo e o corpo de Cristo é tão íntima que ela não

 poderia s£r melhor comparada do que a união sexual entre doiscorpos, n£ qual os dois se tornam uma só carne (v. 16). Daí aincompatibilidade entre essas duas uniões. Nosso corpo não se podeunir, por sua vez, à 7rópvr| e o Senhor, pois “nosso corpo - diz o v.13 - é para o Senhor, e o Senhor (é) para o corpo”. Agora compreendemos porque o impudico deve ser excluído da comunidade (1Co 5.5). E ^ não pode formar parte do corpo de Cristo, pois por suaunião impudica exclui-se a si mesmo.

Toda a moral sexual ensinada pelo apóstolo está ancorada naidéia do cc>ip° de Cristo. Porém, esta idéia nos permite também descobrir o mí>tivo positivo que, segundo o apóstolo, santifica o matrimônio. A união conjugal é  a única união sexual entre dois corpos que poder? integrar-se na união com o corpo de Cristo.  E necessário não fsquecer que o apóstolo prefere, em 1 Co 7, para aquelesque tem o sarisma, o celibato ao matrimônio por razões de oportunidade, todavia considera ao longo de todo o capítulo,  a união conju

 gal perfeitamente compatível com a união entre nosso corpo e o  corpo de Cristo. Depois do que disse no capítulo 6, o apóstolo toma

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 115

esta idéia como ponto de partida do capítulo 7, que é consagrado aomatrimônio. É verdade que ela não está expressa de maneira explíci

ta, porém é claro que soa como pano de fundo. Se a união conjugal éa única para a qual há lugar no interior da união com o corpo deCristo, resulta que o matrimônio se reveste, aos olhos do apóstoloPaulo, ainda quando ele tenha escolhido para sua pessoa o celibato,de uma dignidade teológica especial. Somente por esta razão ele

 pode dizer que “o marido não crente é santificado pela mulher crente

e a mulher não crente é santificada pelo marido crente” (1 Co 7.14).Partindo disto, não se pode opor 1 Co 7 à Ef 5.28 s., como seo matrimônio fosse depreciado em 1 Co 7 e, pelo contrário, apreciadode uma maneira positiva somente em Ef 5. Por outro lado, Ef 5.28 s.,desenvolve as idéias sem as quais 1 Co 7, e sobretudo seu nexo como capítulo 6 que o precede, não seria compreendido. Em Ef 5.30,

encontramos de novo a afirmação de 1 Co 6.15 que “nós somosmembros do corpo de Cristo”. Esta é a base da apreciação positivado matrimônio. Porém, em Ef 5, percebemos, ademais, a razão pelaqual se dá a união com o corpo de Cristo: as relações corporais entreo homem e a mulher correspondem (• ecG* ç, Ef 5.29) à realidadeentre Cristo e sua •• •

Por caminhos diversos chegamos à conclusão de que, segundoo Novo Testamento, a ressurreição de Cristo implica conseqüênciasem relação ao nosso corpo: desde agora, ele pode ser tomado pelaação vivificadora do Espírito Santo, ainda que sua transformação emcorpo espiritual não seja possível até a chegada do momento em quetodas as coisas sejam criadas de novo pelo Espírito Santo.

Desta maneira, o corpo humano, longe de ser depreciado pelo pensamento do Novo Testamento que é alheio a todo dualismo, seencontra singularmente enobrecido à luz da ressurreição de Cristo.Daí uma moral, relativa ao corpo humano, inteiramente embasada nofato cristológico da ressurreição de Cristo e sobre a fé no EspíritoSanto. Pois nosso corpo na • • • À,T]0*fx já está em relação com o corpode ressurreição de Cristo, daí a necessidade de vigiar de maneira especial no que se refere a ele, para que guarde sua dignidade de “templo doEspírito Santo”. Baseado nesta razão, o apóstolo Paulo introduz a partemoral da Epístola aos Romanos (12.1) com a exortação de se “apresentar a Deus nossos corpos como sacrifício vivo santo e agradável”.

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O BATISMO DE CRIANÇAS E A DOUTRINA BÍBLICA DO 

BATISMO

7

Em que medida Jesus instituiu o batismo cristão? Não basta, para responder a esta pergunta, remeter a Mt 28.19,

 pois esta frase do ressuscitado não faz mais que dar a ordem de batizar,

sem explicar qual é o vínculo interior entre o batismo, a pessoa e a obrade Cristo. Por outro lado, o judaísmo não ignorava a prática do batismo, já que submetia os prosélitos pagãos a ele. João Batista, pondo os judeus no mesmo nível dos prosélitos, chamava-os ao batismo dearrependimento, por causa da vinda iminente do messias. O próprioato de batizar não foi, pois, instituído por Jesus. Sob este aspecto, o

 batismo se distingue do outro sacramento cristão, a eucaristia, cujaforma particular remonta a Cristo. Porém, o vínculo entre Cristo e o batismo parece mais tênue, todavia, se se leva em conta que Jesus não batizou, pelo menos durante seu ministério público1.

A situação é a seguinte: João Batista batizou, relacionando seu batismo com o dos prosélitos; Jesus não batizou, porém, depois deSua morte, a Igreja primitiva reconheceu a prática do batismo. Foisimplesmente uma volta ao batismo de João? Ou antes, não se devedistinguir o batismo conferido pelos apóstolos em nome de Jesus, do

 batismo de João, que, todavia, foi celebrado já com vistas ao perdão

1 É verdade que o Evangelho de João (3.22) diz que Jesus batizava, porém, mais adiante(4.2), o autor se retrata dizendo que não é Jesus, mas seus discípulos que batizavam.

Este último versículo não é, talvez, senão uma glosa ratificada. Neste caso a afirmação de Jo 3.22 poderia referir-se a um período durante o qual Jesus tivesse sido,todavia, discípulo do Batista. Em todo caso, é certo que durante seu próprio ministério Jesus não batizava.

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118 O s c a r   C u l l m a n n

dos pecados? Se isto é certo, que há então de novo no batismo daIgreja nascente, e em que medida remonta este a Jesus, que todavianão o praticou nem o “instituiu” sob sua forma exterior?

1. O fundamento do batismo:

 a morte e ressurreição de Jesus Cristo

João Batista, em sua pregação, teve o cuidado em definir a. diferença entre seu próprio batismo e o de Cristo: “Eu vos batizo comágua para a conversão... porém Ele vos batizará com o Espírito Santoe com fogo” (Mt 3.11; Lc 3.16‘). O fogo faz sem dúvida alusão ao juízofinal, o batismo que vem com Cristo não é somente um batismo de

 preparação, provisório, mas antes definitivo, e fará o batizado entrardiretamente no Reino de Deus. Porém, no intervalo no qual o cristianismo

 primitivo tem consciência de encontrar-se, entre a ressurreição de Cristoe seu retomo, o que há de essencial no batismo conferido pelo Messiasé o dom do Espírito Santo, dádiva escatológica que se realiza a partirde agora (• rcap%* • • ppaP* r). Isso explica porque Marcos podelimitar-se a mencionar o batismo do Espírito (1.8).

Segundo a pregação de João Batista, o dom do Espírito Santoconstitui então o elemento novo no batismo cristão; com efeito, nemo batismo judeu dos prosélitos, nem seu próprio batismo conferiam oEspírito. Este dom está ligado à pessoa e a obra de Cristo. Pois bem,como a efusão do Espírito Santo sobre “toda carne” (At 2.17)

 pressupõe, no desenrolar da história da salvação, a morte e aressurreição de Cristo, e como esta efusão teve lugar no pentecostes,o batismo cristão não é possível senão depois deste acontecimento,

que fez da Igreja o lugar do Espírito Santo. Por esta razão, o livro deAtos menciona os primeiros batismos cristãos somente depois dahistória de pentecostes. Igualmente Pedro, depois de ter explicado omilagre da efusão do Espírito, termina seu discurso com estaexortação: “Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nomede Jesus” (2.38). Isto é, que o que foi passado de maneira coletiva

no dia de pentecostes vai repetir-se no que se sucede individualmenteno sacramento do dom do Espírito.

Porém, por que este dom do Espírito se apresenta então naIgreja sob a forma de um batismo? Por que fica ligado ao banho de

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 119

imersão “para o arrependimento”, que os judeus praticavam com os prosélitos e que João Batista havia reconhecido? Qüe relação háentre o Espírito Santo e a água, a ablução pela água ou a imersão naágua? Compreende-se, com efeito, que o batismo dos prosélitos ou ode João se apresentam como um ato de ablução, posto que o efeitodeste sacramento é o perdão dos pecados. Como a água comumente

 purifica fisicamente o corpo, assim a água do batismo deve tirar os pecados da alma. Surpreende-nos que a realização plena do batismode João, no batismo do Espírito do Messias, deva, todavia, tomar aforma de um banho por imersão. Seria de esperar antes que osacramento cristão revestisse uma forma exterior diferente.

Porém, é necessário perguntar-se se o batismo de João, comsua significação precisa (Lc 3.3: (3* rcTic^a |i£xavo*6CÇ £*ç • ípeoiv• piapxicov), foi considerado como verdadeiramente prescrito depoisda aparição do novo sacramento cristão que confere o Espírito Santo. É necessário perguntarmos se o Espírito Santo não teria nada aver com o perdão dos pecados. Pois bem, no livro de Atos se diz:“Que cada um de vós seja batizado em nome de Jesus, para obter aremissão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (2.38).Os cristãos têm todavia necessidade, também na Igreja, do perdãodos pecados; não é suficiente que o dom do Espírito lhes seja concedido. O batismo para a remissão dos pecados não é portanto abolido.Seria inconcebível, por demais para os cristãos, só o dom do EspíritoSanto sem a remissão dos pecados. Por isso, o sacramento cristão,

 preparado e anunciado pelo batismo de João, se estabeleceu em um batismo, um banho por imersão, ainda que o dom sacramental doEspírito Santo não tenha, à primeira vista, nenhuma relação com aforma deste ato.

Todavia, o vínculo que, no batismo cristão, une o perdão dos pecados e o dom do Espírito é real. Não se pode dizer que à imersão para o perdão vem ajuntar-se simplesmente um elemento novo: odom do Espírito. O elemento novo, em relação ao batismo judaico,não diz respeito somente ao dom do Espírito, mas também, em relaçãoestreita com este dom, ao perdão dos pecados. Segundo o livro deAtos, a Igreja sentiu, num determinado momento, a necessidade de

 juntar, ao ato exterior da imersão, um ato especial correspondente àtransmissão do Espírito Santo: a imposição das mãos. Pois parecia

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120 O s c a r   C ü l l m a n n

normal que às duas significações do batismo correspondessemigualmente dois atos exteriores: o banho por imersão para o perdão

dos pecados e a imposição das mãos paro o dom do Espírito.Sem dúvida, isto faria o batismo correr o perigo de perdersua unidade e de cindir-se em dois sacramentos distintos. Se a Igreja

 pôde finalmente evitar esta cisão, é porque a ligação entre os efeitos do batismo cristão era fortemente sentida. A narração que Atosfaz de certos batismos prova, não obstante, que tal cisão foi quase

estabelecida no uso da Igreja. Releia-se a narração de Felipe emSamaria! Quando os samaritanos “creram na pregação de Felipeque lhes anunciava o reino de Deus e o nome de Jesus Cristo,foram batizados homens e mulheres” (8.12). Nos versículos 14 s.,se refere que os apóstolos de Jerusalém, tendo recebido esta notícia, enviaram à Samaria Pedro e João para que orassem, a fim de

que os que tivessem sido batizados com água recebessem tambémo Espírito, “pois este não havia, ainda, descido sobre nenhum deles.Haviam sido batizados somente em nome do Senhor Jesus. Então,Pedro e João lhes impuseram as mãos e eles receberam o EspíritoSanto”. O batismo com água para a remissão dos pecados e aimposição das mãos para a comunicação do Espírito estão aqui

separados no tempo e administrado por pessoas diferentes.Em Atos 10.44, encontra-se um fato análogo, com a diferençade que a ordem cronológica é inversa. A Comélio e aos seus, tendorecebido o Espírito Santo (sem imposição das mãos), Pedro os batizoucom água. É necessário mencionar finalmente At 19 1-7: Paulo

 pergunta aos discípulos de Efeso se tinham recebido o Espírito Santo

quando creram. “Estes responderam: nem sequer ouvimos que existao Espírito Santo. Ele perguntou de novo: que batismo tendes recebido?Responderam: o batismo de João”. São, então, batizados com águaem nome do Senhor Jesus, e “depois que Paulo lhes impôs as mãos,o Espírito Santo desceu sobre eles e se puseram a falar em línguas ea profetizar”.

Deste modo se acentuava o perigo de ver, na primeira conseqüência do batismo, somente uma sobrevivência de tempos passados, sem ligação interna com o dom do Espírito prometido por Cristo.E, pois, muito possível que quando João recorda que não se nasce só

 pela água, mas pela água e pelo Espírito (3.3-5), quis reagir contra

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 121

esta cisão do batismo cristão em dois atos diferentes.2 Ademais, ostextos judaico-cristãos citados nas Pseudo-Clementinas provam que,no começo do século II, existia efetivamente uma seita judaica cristã

 para a qual o batismo havia descido ao nível de um rito judaico.O problema das relações entre a água do batismo e o sacra

mento do Espírito preocupou, durante muito tempo, à Igreja antiga.3Tertuliano, por exemplo, em seu tratado sobre o batismo4, trata deresolver o problema estabelecendo uma relação essencial entre o Es

 pírito e a água. Remete-nos para isto a Gn 1.1 s., onde se diz que no

 princípio “o  Espírito  de Deus se movia sobre a face das  águas". Estima que desde sempre o Espírito esteve ligado com a água e, porconseguinte, o próprio batismo do Espírito não pode prescindir da água.

Esta solução não pôde, todavia, sustentar-se para definiradequadamente a relação entre o perdão dos pecados, o dom do Espíritoe o batismo pela água. A explicação deve ser buscada, como veremos

mais abaixo, no próprio batismo de Jesus, interpretado teologicamente por Paulo no capítulo 6 de sua Epístola aos Romanos. Veremos, também,que não se pode considerar o batismo cristão, entendido também como

 batismo para a remissão dos pecados, como uma simples repetição deJoão. E, pelo contrário, seu cumprimento, tomado possível somente

 pela obra expiatória de Cristo. Por demais, esta obra une estreitamente

os efeitos do batismo. Isso é o que evidencia este célebre capítulo, noqual Paulo mostra que, por nosso batismo, participamos na morte e naressurreição de Cristo.5Cada um participa aí desse perdão dos pecados,conquistado por Jesus de uma vez por todas morrendo na cruz.

2  As palavras 'êaTO Ç 'K - s e encontram em todos os bons manu scritos . R. BULT-

MANN, Krit ischexegetischer Kommentar i iber das Neue Testament, Johannesevan-  gelium,  1938, 98, nota 2, propõe suprimí-las, de acordo com sua tendência geral emconsiderar como inserções tardias ou a interpretar de modo diferente, no QuartoEvangelho, todas as alusões aos sacramentos. Porém, esta tendência me parece falsa,

 pois se opõe a um dos motivos essencia is do Evangelho de João. Cf. O. CULLMANN,Urchristentum und Gottesdienst,  21948, c. 2 pássim.

3  Se poderia recordar aqui também At 6.2, onde se menciona, entre os ”primeiros ensinosdo evangelho de Cristo”, a doutrina dos batismos (plural) e a imposição de mãos.

4  D o bati sm o,  c. 3.

5  E interessante ind icar aqui que em 1 Co 11.26, é Pau lo, também , quem record a àIgreja que a eucaristia esta igualmente ligada à morte de Cristo. Sabemos, com efeito,

que certos ambientes da Igreja de então tinham tendência a esqucê-lo. O gozo e aalegria legít imas que caracterizavam as eucarist ias dos primeiros cristãos (cf. At

2.46), motivadas provavelmente pela lembrança das alimentações com o ressuscitado,

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122 O s c a r   C ü l l m a n n

O batismo de João, portanto, não é aceito sem nenhuma ressalva pela Igreja cristã, posto que, segundo Rm 6.5, nós chegamos a ter, pelo ato batismal, “uma mesma semelhança” com Cristo, morrendoe ressuscitando com Ele. O ato externo do batismo pela água tomaassim seu sentido pelos dois efeitos do batismo cristão. Uma ligaçãonova é estabelecida entre o ato externo do pcx7ix*^£iv e o perdãodos pecados. Aquele não é, já somente o banho, a ablução que limpa,mas a imersão enquanto tal, porque, nesse momento, o batizado é“sepultado com Cristo” (v. 4). Ressuscita quando sai da água6. Graçassomente a este ato, os dois efeitos do batismo se tomam inseparáveis,

 posto que ser sepultado com Cristo significa o perdão dos pecados,enquanto que ressuscitar com Ele quer dizer “viver uma nova vida”(v.4), isto é, viver segundo o Espírito (G1 5.16). Os dois efeitos do

 batismo estão, assim, ligados tão indissoluvelmente como a morte e aressurreição de Cristo.

O recurso da obra expiatória de Cristo, para resolver o problema do batismo cristão, engendra três conseqüências: a) o perdão dos pecados, anunciado já antes da vinda de Cristo, está agora fundadosobre a morte expiatória, b) o perdão dos pecados e o dom do Espíritose encontram unidos por um estreito vínculo teológico, c) as significações do batismo se encontram ligadas ao único ato exterior do banhode água, a imersão e emersão tomam sua plena significação teológica.

A equação “ser batizado = morrer com Cristo” que, como veremos, tem sua origem no próprio batismo de Jesus, se encontra emtodo o Novo Testamento e não somente em Rm 6.1 s. Esta equaçãose encontra em primeiro plano em outra passagem paulina, em 1 Co1.33, onde o batismo é considerado sem equívoco possível como uma

 participação na cruz de Cristo: “Foi Paulo quem foi crucificado porvós, ou fostes batizados em nome de Paulo?” As expressões “estais

 podiam às vezes d egenerar (cf. 1 Co 11.2 1) e neg ar com ple tam en te , em ú ltim ainstância, a idéia da morte de Cristo (cf. O. CÜLLMANN,  L e cult e dans 1'É glise  

 prim itive ,  2(1945, 13 s.).

6 Não se pode negar a sem elh ança do batism o com os rito s análo gos das religiõ es demistério. Cf. em particular, A. DIETRICH, Eine Mithrasliturgie, 1903, 157 s.; R.REITZENSTEIN,  H e llen isti sche M ysterienrelig ionen ,  3(1927), 259; F. CUMONT,

 L es reiig ions orienta les dans le paganism e romain ,  1907; O. CLEMEN,  Relig io nse- geschichtl iche Erkãrung des Neuen Testaments,   2(1924), 168 s. Porém estas semelhanças não têm importância para a questão que estamos tratando aqui.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 123

 batizados” e “um outro foi crucificado por vós” são aqui utilizadascomo sinônimas. Esta curiosa maneira de expressar-se mostra tam

 bém que, segundo o Novo Testamento, é Cristo quem atua no batismo, enquanto que o batizado é objeto passivo desta ação.

 Na Epístola aos Hebreus ocorre o mesmo. A impossibilidadede um segundo batismo está motivada, no capítulo 6.4 s., pelo fato deque o batismo é uma participação na cruz de Cristo:

 E impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram  participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra  de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível reconduzí-los ao arrependimento; pois para si 

 mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, 

 sujeitado-0 à desonra pública.  (Hb 6.4 s.)

Esta passagem mostra também quão estreito é o vínculo entreo dom do Espírito Santo e a morte expiatória de Cristo.

Os escritos joaninos, finalmente, fazem também alusão à relaçãoentre a água do batismo e o sangue de Cristo7-

Porém, para compreender todo o alcance do vínculo entre o batismo e a morte de Cristo, e, por conseguinte, para compreender oaspecto essencial da doutrina batismal do Novo Testamento, énecessário perguntar qual é o sentido do batismo pelo qual o próprioJesus se submeteu no Jordão. Que significa para Jesus Seu próprio

 batismo? Essa é uma pergunta freqüentemente delineada na Igreja

 primitiva, como testemunha o evangelho apócrifo dos ebionitas e odos hebreus. Não é de se estranhar. Pois, por que Jesus, que estavasem pecado,  se batizou no batismo de João destinado aos pecadores?Mateus sentiu também a dificuldade, pois colocou no começo do seu

7 Cf. em particular Jo 5.6; porém também Jo 3.14 s. e 13.1 s. (cf. O. CULLMANN,

Urchr i s ten tum und Got tessd ien t ,  73 o. c., ad loc. e apesar das objeções de W.M I C H A E L I S ,  D ie S a cra m en te im Jo ha nn ese ven g e liu m ,  1946) a relação que Jo19.34 (e também 13.1 s.) estabelece entre o batismo e a ceia. Porém, nestas duas

 passagens como em outra parte 1 Jo ão 5.6 deve haver tam bém um a alusão à relaçãoentre o batismo e a morte de Cristo, de sorte que nestes textos encontraríamosrelações “triangulares”, que nos parecem estranhas ao pensamento joanino.

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124 O s c a r   C  u l l m a n n

relato a pergunta do Batista: “Sou eu quem tem necessidade de ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (3.14). Ao que Jesus responde:“Deixa por enquanto, porque assim convém cumprir toda a justiça”.

É o próprio relato do batismo de Jesus, tal como é referido nostrês Evangelhos Sinópticos, que dá a verdadeira resposta a esta

 pergunta. Ela está contida na voz que ressoa no céu: “Este é o meufilho amado em quem me comprazo” (Mc 1.10 s.; Mt 3.16 s.; Lc3.22). Se quisermos deduzir a significação que teve para Jesus seu

 próprio batismo, como queremos compreender sua “consciência

messiânica”, é de uma importância capital advertir que esta voz celestecita Is 42.1, o começo dos cantos do servo de Iahvé. Por estas

 palavras, com efeito, é interpretado no Antigo Testamento o servo deDeus que deve sofrer em lugar de seu povo8.

8 É verdade que o manuscrito D, com outros testemunhos do texto “ocidental”, apre

senta, no texto de Lucas, uma variante segundo a qual a voz celeste teria dito: “Tu ésmeu filho mui amado; hoje te gerei”. A citação estaria tomada então não do livro deIs 42.1, mas do célebre SI real 2.7. Esta passagem está citada em At 13.33 (igualmenteem Hb 1.5; 5.5) onde se aplica não precisamente ao batismo, mas antes à ressurreiçãode Cristo. Os cristãos viram neste salmo, no qual o rei é designado como o Filho deDeus, a prova escri turíst ica da fi l iação divina de Cristo, posto que depois de suaressurreição, esta filiação se manifesta pela realeza do Messias. Em At 13.33, onde setrata da ressurreição, esta citação do Salmo 2, está, pois, verdadeiramente em seu

lugar. Daí depende, talvez, a introdução, por causa de sua analogia formal com Is42.1, e nos testemunhos ocidentais da narração que Lucas faz do batismo de Jesus.Por outro lado, até se não estiver excluída pela variante D e a citação ser original emLucas, é preciso dar pre ferên cia à de Mateus e Marcos: • v GO"£'  Só* T|0 a. Segundo esta,Cristo não foi todavia proclamado rei no momento de seu batismo, foi designadocomo o ebed Iahvé   destinado ao sofrimento. Se é certo que exerce a realeza depois daressurreição, deve começar por realizar a obra e a vida de sofrimento do servo deIahvé, e entrar assim no batismo de João para realizá-la. Se a voz do céu, referida por

Marcos e Mateus, modifica o texto de Is 42.1 é somente no sentido de que em lugarde 7iaiç (tradução correta do hebraico abdi,  “meu servo”, recolhida por outro ladocorretamente na citação da mesma passagem de Mt 12.18) se lê D*óç. O parentescodos termos gregos 7tcaç e w ó ç ,  a relação também entre as palavras hebraicas bachir   e

 ja c h id   por um lado, e as palavras gregas • YfX7tT|ióç, • • Kítóç, (10V07EV ç por outro,fazem supor que é somente na tradução grega de Is 42.1, onde Jesus foi designadocomo D*óç, enquanto que 0  original semítíco devia, segundo Is 42.1, designá-lo comoebed,  servo. Esta hipótese se toma tão mais verossímil conquanto que em Jo 1.34 -

 passagem que, como verem os, se refe re à voz cele ste - se ja um a lição bem atesta danão de u^éç mas de • • Ke* tóç, que é a forma corrente que os LXX traduzem a palavrahebraica bachir,  pela qual Deus designa a seu ebed    em Is 42.1. Porém, até mesmo seno original semita se encontrava o termo “fi lho”, contrariamente ao texto de Is42.1, não é menos certo que todo o resto da passagem remete indubitavelmente aocomeço dos cantos do servo, e Jesus é filho, então, na medida em que, como servo,

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 125

Aqui encontramos, em última análise, a resposta à questãodelineada por Mateus e mais tarde pelos evangelhos apócrifos: Qual

é a significação, para o próprio Jesus, do batismo para a remissãodos pecados? Podemos formular a resposta da maneira seguinte: noinstante de Seu batismo, Jesus foi investido da missão de realizar o

 papel de servo sofredor, que deve carregar os pecados de seu povo.Os outros judeus vão ao Jordão para serem batizados por João porcausa de seus próprios pecados. Jesus, no mesmo momento em que

todo o povo se fez batizar, ouve uma voz que diz: “Tu não és batizado por teu próprio pecado, mas pelo pecado de todo o povo, pois de ti profetizou Isaías: será destroçado por causa dos pecados do povo”.Isto é, Jesus é batizado visando um sofrimento substitutivo, implicandoSua morte, pela qual será outorgado o perdão dos pecados a todos oshomens. Temos aqui porque Jesus deve solidarizar-se no batismo

com todo o seu povo, ir Ele também à beira do Jordão, a fim de que“toda justiça seja cumprida”.Deste modo as palavras de Jesus ao Batista adquirem um sen

tido muito preciso. Fala-se de cumprir “toda justiça” ('7i/a'|p0)* oca7ia* oav ôi* moa* vr|v, Mt 3.15) é porque seu batismo está em relação com a ôt* moa*tT|, não com a Sua própria, mas com a de todo

o povo. É preciso sublinhar o termo  na' oc/.v. A resposta de Jesus,que confunde tanto os exegetas, tem deste modo um sentido muitoconcreto: Jesus provocará um perdão geral. Se Lucas (assim comoMarcos) não refere esta palavra, não deixa de sublinhar menos omesmo fato a sua maneira no versículo 21: “Como  todo  o povo(• t c o c v t o c   t*v ?iaóv) se fez batizar, Jesus se batizou também”.

A voz celeste nos revela a razão pela qual Jesus deve atuar como osoutros judeus. Diferentemente de todos aqueles que se fazem batizar por seus próprios pecados, Ele é posto à parte e chamado acumprir em favor daqueles o ministério do servo de Iahvé9.

tomará sobre ele, por Seu sofrimento e Sua morte, o pecado de Seu povo. Aquele dequem fala Is 42.1 tem a missão de realizar o que está anunciado em Is 53. F.-J.

LEENHARDT,  Le baptême chrétien, son origine, sa sig nification,  2(1946), 27, nota2, estima que o termo • ya7IX|TóÇ não procede nem de Is 42.1, nem do Salmo 2. Porémem Mt 12.7, onde se cita igualmente a Is 42.1-4, se volta a encontrar • • • yajniióç |iou.

9 O ebed Iahvé,  como o messias, era uma figura conhecida do judaísmo. Porétn, o queera absolutamente inconcebível era a “fusão” dos títulos em uma só pessoa: o messiasnão podia sofrer. O t í tulo de servo de Yavé foi certamente as vezes atribuído ao

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126 O s c a r   C u l l m a n n

O batismo de Jesus já anuncia assim o fim, o ponto culminante de Sua vida, a cruz, sobre a qual se cumprirá o que o batismode João deveria conferir: o perdão dos pecados para todo o povo.

 No momento de sua crucificação, Jesus celebrará um batismogeral, conforme a missão que lhe havia sido designada, quando foi

 batizado no Jordão.A interpretação do batísmo de Jesus que propomos está con

firmada pela significação que toma a palavra pajrc^eiv em sua boca. Temos visto que o próprio Jesus não batizou, e compreende

mos agora o porque. Para ele, “ser batizado” significa, no que sucederia, “sofrer, morrer por seu povo”. Não se trata somente de umasuposição. Com efeito, as duas únicas passagens em que Jesus utiliza o verbo PcOTT^eaOca são apresentadas por Mc 10.38 e Lc 12.50.Em Marcos 10.38 (“podeis ser batizados com o batismo com o qualeu vou ser batizado?”), “ser batizado” significa “morrer”. Sucede o

mesmo em Lucas 12.50: “Tenho que receber um batismo e como meangustio até que seja levado a cabo!” Nas duas vezes é Jesus quemfala. A identificação entre o batismo e a morte concerne pois a sua

 própria morte, e, por analogia, esta maneira de falar poderá identificar-se também com o batismo cristão. Jesus não batizará a particulares, como João Batista, mas realizará um batismo geral, de uma vez

 por todas, no momento de Sua morte expiatória. Este batismo geral,  realizado por Jesus, tem como essencial o ser totalmente inde

 pendente da fé e da compreensão dos que se beneficiam com ele.  A graça batismal que encontra aqui sua origem é, em sentidoestrito, uma “graça pre-veniente”.

 Nos próximos parágrafos, veremos como é preciso compre

ender que os discípulos, depois da morte e ressurreição de Jesus,voltaram a batizar os indivíduos com água. Veremos claramente porque a prática eclesiástica dos batismos individuais não é um retomoao batismo de João, mas se encontra indissoluvelmente ligada à morte de Cristo. Compreenderemos também porque o batismo é uma participação na morte e na ressurreição de Cristo, porque temos ido

messias , porém jamais sua missão de sofr imento subst i tut ivo. A este respei to éinstrutivo estudar o Targum   de Is 53. Jesus é quem, por sua vida, estabeleceu estaidentificação entre messias e servo. Cf. P. SEIDELIN, Ebed Yahvé und Messiasgestalt   im Jesajatargunv.  ZNTW (1936) 197 s.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 127

até às raízes da doutrina batismal do Novo Testamento, tal como foiformulada explicitamente em Rm 6.1 s.

 No Evangelho de João (1.29-34), encontramos, de algumamaneira, um primeiro comentário do relato sinóptico do batismo deJesus, que confirma o que já temos visto, descobrindo no batismo deCristo a origem do batismo cristão. O batismo de Jesus é aqui referido sob a forma de uma iiaprup^f/., de um testemunho de JoãoBatista em favor de Cristo,  depois de Seu batismo. O batismo mesmo não é narrado, porém, sem dúvida, é pressuposto. Este testemunho está resumido no versículo 29 com estas palavras: “Eu sou ocordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. No versículo 33,João Batista recorda que viu descer o Espírito Santo sobre Jesus erepousar nele, conclui com o versículo 34: “Eu o tenho visto e doutestemunho de que este é o eleito de Deus”. Isso é uma alusão claraà voz celeste que se fez ouvir para designar Jesus, em seu batismo,

como o ebed Yahvé de Is 42.110.Enquanto que, segundo os Sinópticos, só a voz celeste estabe

lece uma relação entre o batismo de Jesus e os sofrimentos substitutivos do servo de Iahvé, o Evangelho de João é aqui mais explícito.O Batista tira a conclusão da designação da voz celeste especificando que Jesus “é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.

Entende pois, com razão, esta designação como uma chamada dirigida a Jesus de encarregar-se da missão do servo de Iahvé.11

A narração que os Evangelhos fazem do batismo de Jesus,segundo a interpretação que temos dado, considerando a sua importância para a história da salvação, aclara também a relação que o

10  A variante •• A,e* í ó ç , da qual já temos falado (cf. na p. 124 s., nota 8), e queadotamos aqui, está atestada pelo sinóptico, pelas antigas versões latinas e as duasantigas versões siriacas. Sem dúvida para harmonizar o texto com o relato sinópticose tem substituído •• k t '   tóç por t>*óç. Temos visto também que é geralmente pelotermo •• Kg* tóç pelo qual os LXX traduzem o hebraico bachir   que se lê em Is 42.1.

11  A relação entre o • ptv* ç tou* •Geod- •e o ebed Iahvé   é mais patente, todavia, se levarmosem conta, por um lado, o fato de que Is 53.7 compara o e b e d I a h vé    com umcordeiro, e por outro o dado filológico, assinalado por C. F. BURNEY, The aramaic 

origin o f the fou rth Gospel,  Oxford, 1922, de que o equivalente aramaico de • p tv çTOD- •Geoi)1 • thalja delaha  significa por sua vez “cordeiro de D eus” e servo de Deus.Igualmente o equivalente aramaico de a*pco, nathal,  pode ser traduzido da mesmamaneira por tp- pe iv , o que tomaria mais estreita todavia a relação entre o • ptv» ç t o v  Ôeou de Jo 1.29 e a voz celeste. Porém, até prescindindo destas considerações, estarelação esta suficientemente estabelecida.

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128 O s c a r   C u l l u a n n

 Novo Testamento estabelece entre os efeitos do batismo cristão: o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santo. Os Sinópticos mos

tram, com efeito, tão bem como o Evangelho de João, que o batismocristão tem sua origem no batismo de Jesus na medida em que é um batismo do Espírito. Pois, também Jesus, no momento de seu batismo com água, recebe o  Espírito  de maneira plena. Este dom estátambém relacionado com o sofrimento substitutivo do servo de Iahvé.Com efeito, na segunda metade do versículo de Is 42.1, citado pela

voz celeste, se diz: “Pus o meu Espírito sobre ele (o servo), ele faráreinar a justiça no meio das nações”. Assim, comprovamos que a possessão do Espírito é prometida no mesmo versículo do ebed Iahvé. E, pois, em virtude deste Espírito, que Cristo poderá realizar seusmilagres, seus ô w pieiç, e Mt 8.14 e 12.17-22, tem razão em relacioná-los com Is 42.1-4; 53.4.

O batismo de Jesus na água do Jordão anuncia assim o coroa-mento de Sua obra: Sua morte e Sua ressurreição. E se compreendeagora porque o batismo cristão está ligado temporalmente com amorte e ressurreição de Cristo: isto não é possível mais que uma vezquando a obra de salvação já esteja cumprida. E preciso recordaraqui os textos de Jo 7.39, onde se diz que “o Espírito não tinha sido

dado todavia porque Jesus não tinha sido glorificado” e de Jo16.7, onde Jesus disse a Seus discípulos: “Se eu não for, o consoladornão virá a vós”. Para que fosse possível o batismo cristão, a partici

 pação na morte e na ressurreição de Cristo, era necessário que Jesus realizasse, em primeiro lugar sobre a cruz, este batismo geral,com vistas ao qual Ele mesmo havia sido batizado no Jordão. Temos

manifestado, com efeito, que somente a partir de pentecostes ini-ciou-se o acolhimento dos cristãos na Igreja por meio do batismo.O fato de que a prática do batismo eclesiástico tenha começa

do somente a partir de pentecostes, depende do desenvolvimento dahistória da salvação. Assim, a morte expiatória e a ressurreição deCristo, ponto central da história que concerne ao • éaja,oç de maneira

completa, se encontra também no centro da história do batismo. Comefeito, a partir do momento em que, em pentecostes, a Igreja passa aser o lugar onde atua o Espírito Santo, o corpo do crucificado e ressuscitado, o batismo único, realizado na cruz, vai estender seus efeitos sobre os batismos que a Igreja celebrará. Pentecostes é portanto,

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no que concerne à história do batismo, a dobradiça que encadeia arealização da salvação sobre a cruz com o desdobramento ulterior

dessa salvação.É necessário que vejamos agora em que relação se encontram o batismo único de Cristo e o dos membros de seu corpo.

 2. O batismo, agregação ao corpo de Cristo

 Nos parágrafos anteriores, vimos que, segundo o Novo Testamento, todos os homens receberam fundamentalmente o batismodesde há muito tempo: no Gólgota, no dia da sexta feira santa e da

 páscoa. Deste modo, o verdadeiro ato batismal já foi realizado, semnossa colaboração, como também sem nossa fé. O mundo inteiro jáfoi batizado em virtude do ato absolutamente soberano de Deus, queem Cristo “nos amou primeiro” (1 Jo 4.19), antes que nós O amássemos, antes que nós crêssemos.

Então, por que a Igreja batiza? O batismo não se converteuem algo supérfluo, posto que Cristo já morreu e ressuscitou por cadahomem, naquela data única da história que, para o crente, dá sentidoe transcendência ao desenvolvimento do tempo?

A maior parte dos teólogos contemporâneos coincidem em dizer que o ato batismal da Igreja primitiva se caracteriza pela relaçãoque estabelece entre a cruz e a ressurreição por um lado, e um indivíduo por outro, que no momento deste ato, morre e ressuscita comCristo (Rm 6.3 s.).12 Suas interpretações divergem quando se tratade precisar o sentido desta relação, isto é, de estabelecer como serealiza, para o batizado, sua participação na morte e na ressurreição

de Cristo. Segundo Karl Barth13, que recorre aqui a uma expressãode Calvino, o batismo neo-testamentário confere somente um  cog-  nitio da salvação, de sorte que ele excluiria perfeitamente atribuir-lhe uma virtude realmente causativa: não é mais que um “participar”na salvação, dada àquele que é batizado.14Vendo no acontecimento

12 Trata-se de uma comprovação somente provisória. Mais adiante veremos (cf. 136 s.)que o ato batismal concerne à edificação da Igreja e por isso mesmo ao indivíduo

 batizado.'3  K. BARTH,  D ie K irchliche Lehre von der Taufe.  Zürich-Zollikon, 1943, IX,14 K. BARTH, o.  c., 20. Na p. 19, o autor fala do batismo como um acontecimento cuja

virtude não seria causativa, nem gerativa, mas cognosciliva.

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130 O s c a r   C u l l m a n n

 batismal somente um  cognitio, a questão do batismo de crianças seencontra delineada e resolvida de antemão negativamente, porqueseria absurdo querer “fazer participar” um recém-nascido da mortee ressurreição com Cristo. Por outro lado, a fé, isto é, a única possi

 bilidade que teria de aceitar esse “participar” e de responder a ele,estaria neste caso excluída. Por isso tem razão Barth, se parte da

 cognitio, em por em dúvida o caráter bíblico do batismo de crianças.Quem aprova a noção barthiana da graça batismal terá grande dificuldade em defender o batismo de crianças15.

Todavia, esta redução da virtude do batismo à  cognitio salu-  tis  não nos parece estar conforme a concepção neo-testamentária.Os textos da Escritura, como vamos ver, nos convidam a dar umadefinição diferente do acontecimento batismal. Advertimos em primeiro lugar que é preciso estudar o batismo de crianças, semprecomo o fez Barth, a partir de uma  definição teológica do batismo

do Novo Testamento. Considerando as fontes de que dispomos, éinútil, definitivamente, perguntar se a Igreja nascente já batizava aosrecém-nascidos. Os escritos do Novo Testamento não nos permitemdar resposta alguma, negativa ou positiva, a esta pergunta, e seria dedesejar que todos se persuadissem disto. Os textos que falam do

 batismo de “toda uma casa” nos deixam na incerteza, pois não sabe

mos se nessas “casas” havia crianças pequenas. Estas passagensnão podem ser levadas em conta senão para definir a  doutrina do

 batismo, porém não para atestar a prática do batismo de crianças naidade apostólica. Seria desejável que os defensores do caráter bíblico do batismo de crianças não tentassem facilitar a tarefa aduzindoestes textos, como se fossem uma prova peremptória da prática do

 batismo de crianças desde as origens.Porém, os que crêem poder negar a prática do batismo de

crianças na Igreja nascente deveriam, por sua vez, absterem-se deaduzir o argumento da ausência, no Novo Testamento, de uma

15 “Nur von cinem kausativen oder generativen Verstãndnis der Taufgnade her, kõnnte

es unterlassen werden, auch diese zwei te Ordnungsfrage aufzuwerfen und genaugenommen auch dann nur wenn man mit der rümischen Dogmatik entschliesst, derTaufhandlung eine ex opere operato   eigentümliche Wirkkraft zuzuschreiben”, comodisse K. BARTH, o. c.,  28. Estamos de acordo com a primeira parte da frase, porémnão pensamos que uma definição causativa da graça batismal implique inevitavelmente a doutrina do ex opere operato.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 131

menção precisa desta prática. Pois é evidente que em uma Igrejamissionária, como era a do tempo apostólico, em uma Igreja queestava se constituindo, a ocasião desta prática - ainda se está em

 perfeito acordo com sua doutrina - era mais rara que em uma Igrejaconstituída. Esta não se apresentava senão: 1. Quando uma casainteira, na qual havia crianças pequenas, passava a fazer parte daIgreja; 2. Quando as crianças nasciam  depois da conversão e batismo de seus pais (eventualmente só do pai ou só da mãe, se somenteum dos cônjuges estava convertido). Este segundo caso, se não erafreqüente no próprio começo da vida da Igreja, se produziu certamente antes de que fosse redigido o último livro do Novo Testamento.

Quase todos os que não crêem que a Igreja nascente batizasse às crianças caem no erro de não distinguir estes dois casos tãodiferentes. Todavia, esta consideração deveria ser levada em contamuito atentamente, por conta do fato de que o judaísmo contemporâneo a fazia para os batismos dos prosélitos. A obra de Joachim Jeremias16, que é de capital importância para a discussão desta questão,recorda com efeito que no judaísmo se batizava não somente os pagãos adultos, como também às suas crianças, enquanto que ascrianças que nasciam  depois  da conversão dos pais já não eram

 batizadas, sendo consideradas como santas por causa de seus pais.

16 J. JEREMIAS,  H at die ã ltesíe Chris te nheií die K in derta ufe geüb?, 1938. Temos demencionar também outras duas obras muito importantes sobre a relação entre o

 bati sm o do cristian ism o prim itivo e o dos prosélitos: A. ÕPK E,  Z ur Frage nach  dem Ursprung der Kindertaufe,  1928, e J. LEIPOLDT,  D ie urchistliche Taufe im 

 L ich te der R elig ionsgesch ich te ,  1928. Se embasam nestes escri tos, em particular/ sobre o de Jerem ias, G. MIE GG E,  II battesim o dei fanciu lli nella storia , nella teoria, 

nella prassi,  s. a. (estudo claro, nascido das discussões de 1942 na Igreja valdense dePiamonte e lamentavelmente levado muito pouco em consideração) e H. GROSS-MANN, Ein Ja zur Kinder tau fe: Kirch l i che Ze i t f ragen   13 (1944 ), que já tom a

 posiç ão contra a opin iã o de K. BARTH, o. c.,  e de F.- J. LEENHARDT, o. c.;  A.SCHAEDELIN,  D ie T auf im Leben der K ir ch ,  em Grundriss,  1943, havia tomadouma posição análoga à de H. GROSSMANN. Cf. também o artigo de T. PREISS,  Le baptême des enfants et le Nouveau Testament'.  Verbum caro (1947) 113 s., no qualo autor conclui igualmente que a prática do batismo de crianças não é oposta à

doutrina neo-testamentária do batismo. Cf. também M. GOGUEL,  L 'E g lise p r im itive,  1947, 324 s. Infelizmente não pudemos ter em consideração duas obras holandesas importantes que apareceram depois que elaborei este capítulo e que se opõemigualmente à doutrina barthiana do batismo: G. C. BERKOUWER, Karl Barth en de  kinderdoop,  1947, e G. C. VAN NIFTRIK,  De kinderdoop en K arl Barth:  Mederlands-ThTij (1947) 18 s.

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132 O s c a r   C ü l l m a n n

Esta comprovação é importante também por sua analogia com o quePaulo escreve em 1 Co 7.1417.

O estudo muito esmerado de J. Jeremias nos parece provarque é, pelo menos possível, sustentar que os textos bíblicos atestam,de maneira indireta, a prática do batismo de crianças no período apostólico. Cremos também que se pode invocar a este respeito a maneira como os Sinópticos (Mc 10.13 s.; Mt 19.13 s. e Lc 18.15 s.)referem a benção das crianças por Jesus18. Não queremos dizermais no momento. Porém, se intencionalmente nos mantemos tão

 prudentes a respeito da questão histórica da constatação pedo-batis-ta do Novo Testamento, queremos, antes de tudo, e sem dúvida alguma, recordar com insistência que o  Novo Testamento não contém  nenhum vestígio da prática de um batismo de adultos cujos pais  foram cristãos que educadaram estes adultos.  Este fato pode terse produzido a partir do ano 50 ou até antes, portanto, antes da'redação da maior parte dos livros do Novo Testamento. A.única coisaque sabemos a respeito das crianças filhas de pais cristãos é o quePaulo disse em 1 Co 7.14 e que corresponde à prática do batismodos prosélitos, o qual não era administrado senão às crianças nascidas  antes da conversão de seus pais. Esta passagem paulina excluiigualmente a idéia de um batismo desses filhos de cristãos uma veztomados adultos.

Os impugnadores do caráter bíblico do batismo de criançasdeveriam portanto render-se diante da evidência. O que estes preco

 nizam, a saber, o batismo na idade adulta das crianças nascidas  de pais cristãos e educadas por estes, está todavia pior atestada  no Novo Testamento que o batismo de crianças  (em favor do qual

se pode pelo menos descobrir certos vestígios), e até mais, seu ponto  de vista não está atestado de maneira absoluta.

17 Cf. STRACK-BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und   M idrasch ,  vol. I, 1922, 110 s.

■18  Cf. mais adiante,  Apêndice,  177 s., onde mostramos a influência do verbo • 6)X, £IV,termo técnico das liturgias batismais primitivas, nesses relatos. J. JEREMIAS, o. c., 25, chega a conclusões análogas, não partindo como nós de Mc 10.14, mas de Mc10.15, e mostrando que Marcos, como Jo 3.3 e 5 referem o batismo à chamada aoarrependimento de Mt 18.3, e interpreta • ç miS*ov no sentido de “enquanto criança”.J. JEREMIAS reconheceu esta idéia, conjuntamente com a nossa, em  M ark 10.13-

16, und die Übung der Kindertaufe in der TJrkirche:  ZNTW (1940).

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Porém, não é do ângulo testemunhai da Escritura de onde sedeve delinear a questão do batismo de crianças. Se levarmos emconta nossas fontes nesta matéria, não podemos encontrar mais queuma resposta a partir da doutrina geral do Novo Testamento. O pro

 blema é o seguinte: o batismo de crianças é compatível com a concepção neo-testamentária do batismo? O valor inquestionável do pros-

 pecto de Karl Barth é o de ter levado a discussão a este terreno.Porém, ainda que descubra aspectos capitais e amiúde desconhecidos do batismo, a interpretação do nosso colega não pode, a nossover, ser seguida em suas principais conclusões, segundo o Novo Testamento. Ele não tem menos mérito em haver convidado a igreja arefletir de novo sobre a significação bíblica do batismo.

O problema do batismo de crianças deve, antes de tudo, serconsiderado no terreno da exegese e da teologia  neo-testamentári- 

 as.  Não seria útil, por conseguinte, estudá-lo de um só golpe em

outras perspectivas, por exemplo, sob o ângulo “Igreja da multidão -Igreja confessante”. Por isso, K. Barth, com seu  hinc, hinc, Mae lacrimae19, acusa os defensores do batismo de crianças de se deixarem guiar, de maneira definitiva, pela preocupação de salvar a “multidão”. Esse pode ser o caso de numerosos pedo-batistas. Porém, daleitura do opúsculo barthiano não se pode impedir a pergunta se seu

 hinc, hinc, illae lacrimae não poderia ser-lhe devolvido e aplicadoao vivo interesse, certamente legítimo, que K. Barth põe na constituição de uma Igreja confessante. Sua negação do caráter bíblico do batismo de crianças, que ele chega até a chamar de “uma ferida nocorpo da Igreja”20, não está posta à serviço desta causa?

Portanto, se se faz intervir a questão “Igreja da multidão -

Igreja confessante” no debate, a propósito do sentido do batismo, sedá de antemão, a todo o problema, uma perspectiva que não é a do Novo Testamento*.Isto não quer dizer, por demais, que o estudo daessência e da significação do batismo não permita que se tire conclusões eclesiológicas precisas, porém estas não serão mais que a conseqüência lógica da doutrina estabelecida previamente. Pedimos, pois,

que para buscar o que constitui o fundamento do ato batismal, não se

19  K. BARTH, o. c.,  39. N.R. expressão em latim “de um lado ou de outro, não se podec h o r a r ” .20  K. BARTH, o. c.,  28.

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134 O s c a r   C ü l l m a n n

estude os textos da Escritura a partir de um  a priori quase semprenão conforme o Novo Testamento.

A Igreja, na qual o batizado é acolhido, é certamente, segundo

o Novo Testamento, uma Igreja “confessante”. É exato igualmenteque os batismos de adultos, vindos do judaísmo ou do paganismo, istoé, os únicos que nos são explicitamente referidos pelos textos, permitem regularmente comprovar a fé dos batizados. Porém, é errôneotirar de um só golpe as duas conclusões seguintes: em primeiro lugar,o caráter “confessional” da Igreja primitiva estaria ligado ao batis

mo; em segundo lugar, a fé e sua confissão seriam a condição de um batismo regular. Isto é: se é verdade que o batismo - o batismo deadultos - foi no cristianismo primitivo uma ocasião importante para ocrente de confessar sua fé, esta não era a única. Com efeito, é im

 possível pretender que só o batismo garantia à Igreja seu caráter decomunidade de confessantes. Pois a fé era, ademais, confessada em

cada culto nos exorcismos, no ensino da Igreja21 e pode ser quetambém quando um ministério era conferido. Era-o igualmente quandoos cristãos, diante dos tribunais, deviam “dar conta da esperança quehavia neles” (1 Pe 3.15).

E quanto ao segundo ponto, que concerne ao elo inegável eindissolúvel que une o batismo e a fé, será necessário mostrar com

detalhes como deve ser definido de uma maneira mais precisa. Fare-mo-lo no próximo capítulo. No momento, basta notarmos que não podemos nos apoiar no fato de que a fé geralmente está presente nomomento do batismo de um adulto, para então afirmar que estasimultaneidade constitui o primeiro elemento das relações entre batismo e fé.

Finalmente, voltamos a advertir que é necessário separar o problema do batismo das crianças desse outro da “Igreja da multidão- Igreja cofessante”, pois muito tempo antes do triunfo do imperadorConstantino e suas conseqüências eclesiológicas, Irineu já aprovavao batismo de crianças22. Ninguém negará, todavia, que Irineu eramembro de uma “Igreja confessante”.

21  Cf. O. CÜLLMANN,  Le culte dans VÉglise prim it iv e, 20,  e  Les prem iè res confesions de foi chrét iennes,  1943.

22  Como o indica muito justamente H. GROSSMANN, o. c., 27. A este respeito, cf.também o artigo claro e conveniente de Ph.-H. MENOUD,  L e baptême des enfants  dans VÉglise ancienne:  Verbum caro (1948) 15 s.

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Em seu estudo sobre a origem e significação do batismo, F. J.Leenhrdt23 pretende defender que o batismo de crianças seria, no

fundo, um sacramento distinto daquele dos adultos. Recorda a esterespeito que, para fundamentar biblicamente o batismo de crianças,se tem o costume de basear-se em textos neo-testamentários quenão dizem uma palavra sobre o batismo, quando não podem ser invocados os verdadeiros textos batismais em favor do batismo de crianças. Esta opinião, de nosso colega de Genebra, se explica por sua

interpretação da doutrina do batismo, que está aparentada com a deK. Barth e que não nos parece corresponder plenamente com a concepção bíblica. Nós comprovaremos, pelo contrário, que esta podemuito bem aplicar-se ao batismo de crianças, tenha sido este praticado ou não. Em troca, os outros textos neo-testamentários, invocadosgeralmente para justificar o batismo de crianças, podem ser legitima

mente aplicados também ao batismo de adultos24.Por isso, importa agora compreender bem o que significa teologicamente morrer e ressuscitar individualmente  com Cristo peloato batismal, depois que o batismo coletivo decisivo já tenha sidorealizado por todos os homens no Calvário.

Para esclarecer este ponto, é necessário partir do que distin

gue o batismo da santa ceia. Em um livro anterior25, mostramos quea Igreja primitiva não conhecia provavelmente mais que duas classes de assembléias cultuais: a do alimento compartilhado da eucaristia (compreendendo certamente a pregação do Evangelho) e o batismo. Pois bem, no momento da ceia, a assembléia participa tambémda morte e ressurreição de Cristo. Qual é, pois, a diferença entre os

dois sacramentos?Advertimos em primeiro lugar que é essencial para a ceia oser repetida26, em troca o batismo deve ser um ato realizado paracada indivíduo, uma só e única vez. Na ceia, é a comunidade constituída enquanto tal quem participa na morte e na ressurreição de Cristo,enquanto que pelo batismo esta relação se aplica, no seio da Igreja, a

23  F.-J. LEENHARDT, o.  c., 69 s.24 A. SCH AED ELIN, o. c.,  187, sublinha igualmente que a introdução do batismo de

crianças na Igreja não alterou o sentido do batismo.25  O. CULLMANN,  Le culte dans V Églis e prim itive , 26-31.25  Cf. O. CULLMANN, Urchristentum und Gottesdienst, 12  e 77.

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136 O s c a r   C  ü l l m a n n

um indivíduo. Assim se encontra refutada a objeção de Karl Barth,segundo a qual se se batiza aos recém-nascidos seria igualmente

necessário admití-los na ceia27. Com efeito, a participação reiteradada comunidade na morte e ressurreição de Jesus Cristo, no momento da eucaristia, encontra precisamente seu sentido no fato de quesão aqueles que já crêem os que asseguram de novo sua salvação,com a exclusão dos incrédulos e daqueles que não são todavia capazes de crer. No batismo, ao contrário, é o indivíduo quem, pela pri

meira e única vez, é situado na Igreja, isto é, ali onde, segundo avontade de Deus, o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santoatuam em seu favor no tempo que separa a ascensão da Parousia.O que distingue, pois, o batismo da ceia é seu caráter único, enquanto que o que lhes é comum é a relação com a morte e a ressurreiçãodo Senhor.

Em Rm 6.3 s., Paulo descreve  o que  se passa no batismo: o batizado se toma uma “mesma planta” com o crucificado e ressuscitado. Em 1 Co 12.13, ele define claramente  como eâsa participaçãona morte e ressurreição de Cristo se efetua precisamente no batismo:  por um só espírito, todos nós fomos batizados para sermos introduzidos em  (e*ç) um mesmo corpo.  O versículo precedente

mostra que se trata do corpo de Cristo, isto é, da Igreja, como indicatodo o contexto. Para definir a essência da significação do batismo,nos parece, pois, importante recorrer, por sua vez, a Rm 6.3 s. e a 1Co 12.13. Este último texto responde sem equívoco à pergunta quedelineamos no começo deste capítulo, concernente à diferença entreo ato batismal da Igreja primitiva e aquele batismo geral já realizado

no Calvário.Ajusta posição dos textos citados, Rm 6.3 s. e 1 Co 12.13, nãoé arbitrária. Com efeito, estão intimamente ligados, posto que o cor

 po de Cristo no qual somos batizados, é, por sua vez, o corpo crucificado (2 Co 1.5; Cl 1.24; 1 Pe 4.13) e o corpo ressuscitado (1 Co15.20-22) de Cristo. E Paulo, unindo de maneira análoga a morte e a

ressurreição com Cristo por um lado e a incorporação à única Igrejade Cristo por outro, escreve aos Gálatas esta outra passagem capital: “Todos vós que haveis sido batizados em Cristo (e*ç Xpicxóv),

27 K. BARTH, o. c.,  39.

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vos haveis  revestido de Cristo...,  pois vós sois todos um  em JesusCristo” (3.27 s.).

Entre os textos neo-testamentários que falam do batismo, vistos sob o ângulo doutrinai, não se encontra nenhum pelo qual o acontecimento essencial do ato batismal seria a comunicação cognosciti-va da obra salvadora de Cristo, a  cognitio,  como quer K. Barth ecomo pensa também, no fundo, F.-J. Leenhardt28. Não encontramosuma só passagem que diga ou dê a entender que essa  cognitio, esse“participar”, justifique, ao lado do batismo geral realizado no Gólgota,a celebração do ato batismal na vida da Igreja e que defina sua essência. É verdade que na maior parte das vezes, o Novo Testamentorefere que o batizado - adulto - chegou à fé antes de seu batismoe que ele a confessava sem dúvida no momento de ser batizado29.Porém, esta  cognitio não é jamais o elemento essencial. Em troca,os textos decisivos de 1 Co 12.13 e G1 3.27-28, que acabamos derecordar, determinam claramente que o acontecimento essencial  

 do ato batismal é a agregação ao corpo de Cristo.  Deus incorpora, não dá apenas um informe sobre esta incorporação.  No instante  do acontecimento, o batizado se limita a ser objeto passivo deste atode Deus, ele é incorporado por Deus. “E agregado”, como diz Atoscom um estilo eminentemente passivo (2.41)30. Todos os outros elementos que entram todavia em consideração devem ser subordinadosa essa definição e explicados a partir dela. Certamente também KarlBarth fala da edificação da Igreja por meio do batismo, porém, e isto éo essencial, não reconhece a este ato de Deus, enquanto tal, uma força causativa para aquele que se beneficia dele. Considera a graça

 batismal como uma declaração divina que se dirige à fé.A ceia igualmente é um acontecimento que concerne ao  cor

 po de Cristo,  distinguindo-se do batismo, como temos notado. Namesma Carta aos Coríntios (1 Co 10.16 s.), se diz que a comunhãono partir do pão é uma comunhão no corpo de Cristo e que os quetomam parte do mesmo pão formam um só  corpo, ainda que sendo

28 F.-J. LEENHARDT, o. c.,  69.25 Cf. At 8.37 e o Apênd ice deste estudo. A mais an tiga liturgia do batismo que conhecem os

menciona também esta confissão (cf. mais adiante pp. 171 s.).30  N este sentido é necessário diz er tam bém , apesar do que pensa F.-J. LEENHARDT,

o.  c., 57, que “o batismo é o sacramento pelo qual a Igreja recruta”.

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muitos. Pois na ceia, o corpo de Cristo não é aumentado com novosmembros que lhe seriam agregados, mas que a comunidade existen

te é cada vez mais fortalecida tanto quanto o corpo de Cristo, naacepção mais alta deste termo. O ato batismal, pelo contrário, concerne ao corpo de Cristo de uma maneira diferente. “Pela associação” (7tpoo£T0r|Gav, At 2.41) ao corpo de Cristo (e*ç *v cwiaa)daqueles que são batizados, este corpo aumenta quantitativamente.Este aumento é para ele um ato sumamente real. O batismo, por

conseguinte, não afeta só ao batizado, como se diz habitualmente,mas antes à Igreja em sua totalidade. Cada batismo significa assimuma vitória sobre a potência do maligno, posto que coloca o batizadonum lugar onde pode escapar desta potência.31

Como no Calvário, também no batismo é Deus quem atua emCristo. Esta “associação” é um ato soberanamente livre de Deus, que

não depende nem do nosso comportamento humano nem tão pouco denossa fé. O batismo eclesiástico teria, com efeito, um caráter fundamentalmente diferente do batismo geral realizado por Cristo na cruz,se a obra de Deus estivesse aqui ligada ao ato de fé e a confissão dohomem. Pois, precisamente, o sentido mais profundo desta obraexpiatória consiste no fato de que foi realizada sem o concurso e ainda

contra a vontade, o conhecimento e a fé daqueles que deviam beneficiar-se dela32. Pois se no batismo da Igreja a fé não é, antes de tudo,uma resposta que segue ao ato de Deus, mas uma condição deste ato,então o Calvário e o batismo não se situam no mesmo plano.

 No parágrafo seguinte vamos definir o papel da fé no acontecimento do batismo e explicar porque o Novo Testamento menciona

tão freqüentemente a fé do batizado adulto, seja antes, ou no momento de seu batismo. Porém, aqui se trata de mostrar que o batismodo Calvário e o batismo na Igreja estão íntima e essencialmente ligados, pois são um e outro uma obra divina totalmente independente doação humana. Do fato da soberania deste ato de Deus, a fé, enquanto

31  Neste sentido podemos referendar o que K. BARTH, o. c.,  21, disse acerca da “glorificação de Deus pela edificação da Igreja de Jesus Cristo”. Porém, por que esta glorificação de Deus não tem de ter, enquanto tal, um efeito causativo independentementede seu sentido cognoscitivo, para aquele que participa nela pelo batismo?

32  Isto é também o que sublinha G. BORNKAMM, Taufe und neues Leben bei Paulus: ThBlãtter (1939) col . 237, nota 14.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 1 3 9

resposta humana, não pode senão  seguir-se.  Deve acompanhar o batismo eclesiástico ainda quando a fé, no batismo geral do Calvário, preceda o sacramento, ou seja, nos casos que o Novo Testamentomenciona correntemente. O batismo na água dado pela Igrejarequer, neste caso também, uma fé que não pode vir senão depois doato batismal, fé no evento especial que acontece na presença daIgreja: associação de um novo membro ao corpo crucificado e ressuscitado de Cristo. Se esta fé não segue o batismo, o dom divino émenosprezado, blasfemado, e os frutos que deveria produzir são aniquilados. Porém, o dom em si mesmo conserva toda sua realidade,

 pois não depende do fato de que um homem tenha confessado aCristo por sua fé, mas antes é Cristo quem, agregando-o a seu corpo,o tem confessado e, por conseguinte, o fez participar em Sua mortee em Sua ressurreição.

Tudo o que o Novo Testamento ensina implicitamente acercada graça preveniente (Rm 5.8-10; Jo 15.16; 1 Jo 4.10 e 19) vale commaior razão para o batismo enquanto incorporação ao corpo de Cristo. A graça batismal não é somente a “imagem” daquela graça preveniente pela qual Deus no Calvário veio ao nosso encontro. É ademais - em dependência absoluta do acontecimento do Gólgota -

uma manifestação nova e especial dessa mesma graça preveniente,que é a obra divina da salvação perpetuando-se no tempo da Igreja. Na sexta-feira santa, a graça preveniente de Deus foi dada

em Cristo a  todos os homens e o acesso a Seu Reino aberto a cadaum. Pelo batismo, se pode entrar no que em outro lugar chamamos“o centro”33 desse Reino, isto é, o corpo terrestre de Cristo, a Igre

 ja.34 A cruz do Calvário se refere, pois, ao batismo como o evento noqual o Reino de Cristo, em toda sua extensão, concerne à Igreja. Neste sentido, a graça batismal não é mais que uma manifestação particular da graça preveniente do Gólgota. A existência desta manifestação especial depende do fato de que o Novo Testamentoconhece, por um lado, uma humanidade salva por Cristo e, por outro,

uma Igreja: um  regnum Christi e um  corpus Christi.

33  Cf. O. CÜLLMANN, Cristo e el tiempo,  131.34  O que significa que os batismos in extremis perdem seu sentido posto que uma criança

moribunda não fará precisamente parte deste corpo terrestre.

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140 O s c a r   C u l l m a n n

Os teólogos protestantes têm amiúde um temor verdadeiramente exagerado em fazer a pergunta da qual nós temos partido

desde o começo deste capítulo: Cristo, no momento de cada batismoindividual celebrado na Igreja no curso da história, realiza uma obra  nova, distinta do simples anúncio de sua única obra expiatória? Certamente, Jesus Cristo não morre de novo em cada batismo, e suaobra única do Calvário não se repete. Porém, aquele que agora estáassentado à direita de Deus, autoriza o batizado a participar, em sua

Igreja, do que foi realizado *<p* rcaç, de uma vez por todas, no dia desexta-feira santa e da Páscoa. Não se trata de um “informe” dirigidoá fé e ao conhecimento do homem, mas antes que Jesus o introduznesse lugar especial que é seu corpo terrestre.35

Uma postura negativa a delinear-se, em relação ao problemada ação especial de Cristo e dos efeitos que se desdobra na vida

 presente de sua Igreja, ou seja, se trata-se do batismo ou de outraação, constitui uma falta de submissão à sagrada Escritura. E isto ésimplesmente pelo temor de se chegar a interpretações “católico-romanas”, ou somente “anglicanas” ou “luteranas”. Responder demodo negativo quando se propõe esta pergunta é, igualmente, sinalde uma idêntica falta de submissão aos ensinos neo-testamentá

rios. Porque em nosso caso, tal atitude significaria que se confundem as situações respectivas do  regnum Christi,  e sua amplitude,com a Igreja em seus contornos mais restritos.36 O acontecimentoúnico do batismo geral do Calvário concerne, com efeito, ao grande círculo do Reino de Cristo, enquanto que o ato do batismo sedirige, enquanto acontecimento novo, à Igreja. Se é pois verdade

que Cristo morreu por todos os homens, batizados ou não, se éverdade que todos têm parte em Sua morte e ressurreição, esta

 participação está, no que diz respeito aos membros da Igreja, ligada

35  K. BARTH ressaltou o lado específico do acontecimento do batismo, e se esforçou po r m o stra r o que isto s ig n ifica com re lação à obra ex p ia tó ria ún ica de C risto .Porém, pode perguntar-se se ele não está também obcecado pelo temor de reconhecerno ato batismal, realizado na Igreja, uma obra nova   de Cristo, que engendraria, de ummodo especia l , uma par t ic ipação dos membros de Seu corpo em Sua morte eressurreição. Pois então, por que, se não estivesse impulsionado por este temor, seobstinaria em fazer da cognitio salutis   o acontecimento primordial do batismo?

36  Cf. O. CULLMANN,  L a royauté du christ e t VÉglise dans le N ouveau Testament: Foi et vie (1941).

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a seu batismo e*ç • v oo* pia, em sua agregação ao corpo crucificadoe ressuscitado do Senhor.

Deste ponto de vista da história da salvação, a relação cronológica entre o acontecimento do Calvário e o batismo é idêntica àrelação entre a cruz e a ceia. Isto é, o batismo não é uma  repetição daquele acontecimento histórico único, mas é sempre um evento novo.Cada vez que um membro é “agregado” à Igreja, nos recorda que ahistória da salvação continua também no presente. Ademais, este

acontecimento presente está totalmente determinado por aquele que,de uma vez por todas, foi realizado no Calvário pelo • «p*  naq  quedividiu o tempo.37

Segundo os ensinos do Novo Testamento sobre a Igreja, cor po de Cristo, nos atrevemos a afirmar que, segundo o plano deDeus para a salvação do mundo, a participação na morte e na res

surreição de Cristo está ligada à Igreja, certamente não de maneiraexclusiva, porém, sim, de maneira muito especial. Em virtude daeconomia divina, a Igreja é o lugar do Espírito Santo, ainda que esteEspírito possa soprar “onde quiser”. No que diz respeito à salvação, isso significa que, se os membros da Igreja não são necessariamente mais favorecidos que os não batizados, pelos quais Cristo

também morreu e ressuscitou, a graça batismal especial, outorgadaaos cristãos, consiste no fato de que Cristo os toma especialmenteao Seu cuidado. K. Barth tem o mérito de ter trazido a público esteaspecto do problema.38Porém, é necessário perguntarmos de novo,

 por que este “responsabilizar-se” (Inpflichtnabme), no ato batismal, deve depender da cognitio  simultânea? Porque este “respon-

sabilizar-se” constitui, na realidade, uma graça causativa que tem por efeito o “revestir-se de Cristo” do apóstolo (G13.27) tão exatamente como a incorporação de um jovem no exército implica levarum uniforme.39

37  Cf. a este respeito nossa obra sobre Cristo e o Tempo,  onde tratamos de mostrar que

cada época da história da salvação tem seu próprio valor, porém que não está menosindissoluvelmente ligada ao acontecimento único e central da encarnação e da paixãode Cristo.

38 K. BARTH, o. c.,  22.39  J. LEIPOLDT, o. c.,  60, trata de interpretar a locução paulina “revestir-se de Cristo”

a partir das religiões de mistério.

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142 O s c á r   C  u l l m a n n

Sem dúvida, é infinitamente mais grave para os batizados que para os não batizados trair a participação na cruz e na ressurreição

de Cristo, quer dizer, não responder a ela pela fé. Com efeito, àincorporação na Igreja, que se produz no batismo, deve corresponder obrigatoriamente a fé do novo membro. É nesta perspectiva queé necessário compreender os textos neo-testamentários que falamde um pecado que não será perdoado, para o qual o arrependimentoestá excluído. Diga-se o mesmo dos textos concernentes a umaexclusão definitiva da comunidade cristã. Porém, não é menos verdade que quem perde a graça batismal, porque não tem fé, permanece, apesar de tudo, sob o sinal do batismo. O próprio Karl Barthsublinha, e não se pode fazê-lo com mais força, seu caráter indelével:40 “Toda humanidade ocidental, indiscutivelmente má, se encontra sob este sinal”.41 Portanto, se a incredulidade não pode destruirsenão o efeito que segue o batismo e não o acontecimento sacramental propriamente dito, é preciso admitir que o Novo Testamentonão requer a fé  no momento  do batismo, mas  depois.

Os adversários do batismo de crianças intentam, amiúde, apresentar o problema como se toda noção que não faça da fé uma condição sine qua non do batismo pressuponha já, inevitavelmente, umaconcepção  mágica, simbólica, como se o batismo de  adultos  fossea única possibilidade de escapar a esta alternativa. Somente então,

 pensam estes, o batismo pode ser um acontecimento real, que nãoestá nem liqüefeito pelo simbolismo nem paganizado pela magia.42Se nós definimos aqui a graça batismal como a incorporação do batizado à Igreja e se supormos que esta graça não depende do homem,não permitimos, portanto, uma interpretação mágica desta afirmação, posto que é somente em virtude de sua resposta que o homem

 poderá permanecer nessa graça, como veremos no parágrafoseguinte. Veremos também que a participação ativa da comunidade no momento do ato do batismo exclui o  opus operatum.43Porém, oque queremos mostrar no momento é que no próprio ato do batismonão se está tratando de um acontecimento simbólico, mas de um fato

40 K. BARTH, o.  c., 47.41   Ib id ., 45.42  É também a opinião de F.-J. LEENHARDT, o. c., 69.43  Cf. mais adiante, pp. 150 s.

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muito real, ainda que seus efeitos ulteriores estejam intimamenteligados à fé subsequente do batizado e que até dependam profundamente dela. É necessário distinguir aqui cuidadosamente entre aincorporação à Igreja, que acontece no momento do ato batismal erepresenta uma graça real independente da acolhida que o batizadolhe faça, e as conseqüências de dita incorporação que são uma graça real, ainda que dependente da constância da fé.

Para ilustrar a primeira das duas realidades, a graça da recepçãona Igreja, não vemos analogia mais feliz do que a que Karl Barth44

 propõe: o ato de nacionalização concedido pelo governo de umestado.

Este exemplo nos parece, por outro lado, amenizar a maneiracomo K. Barth interpreta o acontecimento do batismo. Com efeito, oessencial para uma nacionalização não é, na realidade, o fato de queo nacionalizado tenha conhecimento do alcance deste ato, senão atédo próprio ato, para sua admissão entre os cidadãos do estado emquestão. O ato tem, pois, em si mesmo uma virtude “causativa”. Nãose trata unicamente de um “participar” da nacionalização, mas tam

 bém de um acontecimento real e novo. Todas as vantagens que oestado em questão pode oferecer, em virtude de sua história e desuas tradições, não são somente prometidas ao recém-chegado paraquando ele soubesse se mostrar digno delas. São-lhe perfeitamenteoutorgadas no momento de sua nacionalização, independentementede que as use ou as entenda. Para a vida do novo cidadão, este ato éuma mudança decisiva, é algo real, independente tanto de seu com portamento no futuro como de sua intenção de prestar honra a suanova pátria. Se é pré-requisito que o candidato testemunhe previa

mente seus desejos de ser nacionalizado, este testemunho não é cons

 titutivo do próprio ato de nacionalização, que depende do governo do país. Se o que foi nacionalizado tem filhos menores de idade, estes podem, sem que o queiram, ser nacionalizados ao mesmo tempo queo pai, o que vai determinar de maneira muito real toda sua vida civil,

 posto que vão ser submetidos, ao longo do tempo, ao mesmo regime

que seu pai. Isso é o que K. Barth esquece. Pode-se recordar tam bém que, depois de uma guerra, os estados vitoriosos chegam a

44 K. BARTH, o. c.,  20.

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decretar a nacionalização coletiva dos habitantes de toda uma regiãosem que estes testemunhem previamente sua aceitação e sua vonta

de de respeitar no futuro esta mudança de nacionalidade. Este ato tem um efeito absolutamente idêntico  ao de uma nacionalização privada conferida por petição de um candidato. É um acontecimentoeminen-temente real que, no dia de sua entrada em vigor, confereàqueles aos quais concerne, os direitos e os deveres dos outros cidadãos da nação vitoriosa.45 Não discutimos aqui a questão quanto ase este ato é legítimo ou não; se trata unicamente de pôr em evidência seu poder causativo.

Este exemplo nos parece particularmente feliz pela seguinte razão: nos permite compreender que no mesmo instante  emque é promulgado o ato de nacionalização, o governo em questãoé o único que atua concedendo ao novo cidadão o privilégio desua nova nacionalidade. O recém-chegado permanece passivo.O fato de que tanto crianças quanto adultos, tenham pedido ounão, poderem ser beneficiados por este ato, cujo os efeitos sãosemelhantes para as duas categorias, demonstra que não se

 poderia fazer do comportamento prévio do beneficiário, e de suaaquiescência ao ato, uma condição para o próprio ato. Para oestado, como por outro lado para o novo cidadão, seu comportamento ulterior é  evidentemente da maior importância. Porém,até se não permanece digno de sua nacionalização, esta não perde todo seu valor de acontecimento real e não simbólico. Se, maistarde, o que foi nacionalizado - como menor, portanto sem seuconsentimento, ou como adulto - renegue, por sua conduta, anacionalidade que realmente lhe foi  conferida  (e não somentecomunicada por meio de um papel oficial que é o certificado denacionalização), acabará por não desfrutar mais dos privilégiosde sua nova nacionalidade. Ao tornar-se um traidor, será julgadoe condenado à prisão perpétua ou à pena de morte. Assim, perderá as vantagens conseguidas por sua nova nacionalidade. O fatode que possa tornar-se um traidor prova, então,  a posteriori,  queo ato de nacionalização, a partir de sua promulgação, lhe permitiaefetivamente desfrutar de tudo, ao longo do tempo, que perde por 

45 Estes e seus fi lho s   se beneficiara, por exemplo, de uma melhor situação alimentícia.

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sua traição. Poderia desfrutá-lo inclusive quando se opunha talvez a este ato, ou quando todavia não o compreendia.

Sem dúvida, a comparação não é totalmente adequada, porémapresenta bem o batismo como um ato divino que confere ao batizado, independentemente de seu comportamento, a graça de “revestir-se de Cristo” (G1 3.27; Rm 6.3 s.), de chegar a ser membro de seucorpo. Com efeito, neste corpo atua o poder de ressurreição do Espírito Santo. Este poder forma esse corpo. O batismo significa, pois,

que se é admitido no único corpo onde depois de pentecostes seirrompeu este poder.46 Temos visto, com efeito, que o essencialmente novo no batismo cristão é que Cristo, em virtude de Sua obraexpiatória, “batiza no Espírito Santo”.

A este respeito, é também necessário distinguir entre o que se passa no momento do ato batismal e os efeitos ulteriores deste. Parao cristianismo primitivo, o novo batizado pertencerá para sempre aoreino do Espírito na condição de que permaneça na fé. No seio dasassembléias da comunidade, será sobretudo preservado das tentações, próprias dos “últimos dias” em que vive (Hb 10.25; cf. Did16.2). O culto eucarístico da Igreja lhe permitirá realizar de novo aexperiência da presença de Cristo. Porém, se as conseqüências do

 batismo modificam até tal ponto a existência do batizado, é precisoque este ato solene, pelo qual Deus coloca de uma vez por todas ohomem diante de tantas graças, possua também uma virtude própria.Esta consiste no dom batismal que é a incorporação do batizado à igreja pelo Espírito Santo. Este dom, cuja apropriação subsequente em sua vida dependerá de sua fé, lhe é gratuitamente concedida

 por Deus no ato de seu batismo, sem sua intervenção.

Quando Paulo disse que por um só Espírito fomos batizadosem um só corpo, não quer com isto dizer que o dom do Espírito Santoseja a condição da admissão na Igreja, mas antes que o Espírito atuano próprio ato da incorporação. Em virtude de sua própria essência,o Espírito não pode ser transmitido como uma coisa estática, massomente in actu,  e esta ação do Espírito, nesse instante, consiste

 precisamente no fato de que “agrega” o batizado à Igreja. Dito de

46 Precisamente porque o poder de ressurreição do Espírito atua na Igreja, Paulo pensaque uma participação digna da eucaristia deveria conter os poderes da enfermidade eda morte que assaltam aos membros da comunidade (1 Co 11.30).

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outra maneira: no que concerne ao ato batismal, não há incorporaçãoà Igreja sem ação do Espírito, e não há ação do Espírito sem incorporação à igreja.

Poderia se objetar que um ser humano que não pode nem com preender nem crer não é capaz de receber, ainda que passivamente,este dom do batismo; não pode, portanto, ser objeto de uma tal açãodo Espírito. O problema, por conseguinte, não está em saber se umrecém-nascido tem necessidade de beneficiar-se da morte eressurreição de Jesus Cristo47, mas se lhe é possível  receber o Espí

rito Santo, ainda que passivamente. Poderíamos responder com a pergunta seguinte: Como o acontecimento do Calvário pode exercerseu efeitos em favor de todos os homens antes de crerem e a despeito de sua incredulidade manifesta e de sua postura negativa em deixarem-se redimir desta maneira? Todavia, tratando-se aqui do Espírito Santo, surge uma dificuldade que é preciso não fazer desaparecer:

 pode o Espírito Santo atuar em um recém-nascido apesar da suaincapacidade de crer? Esta pergunta deve ser delineada deste modo

 porque o batismo cristão é inconcebível fora da ação simultânea doEspírito Santo. Não há batismo cristão sem dom do Espírito Santo.48E necessário levar a sério o que aqui temos dito49, a saber, que tudoo que se disser sobre o batismo deve poder aplicar-se também ao

 batismo de crianças.

47  O Novo Testamento não permite responder diretamente à pergunta, delineada comfreqüência depois de Santo Agostinho, que é a de saber se os recém-nascidos sãoinocentes ou não, isto é, se é necessário para eles morrer com Cristo. H. WINDISCH,

 Zum Problem der K indertau fe im Urchris tentu m:  ZNTW (1929) 119, e A. ÕPKE,em ThWbNT,  vol. I, 541, a tem delineado em seus últimos anos. J. JEREMIAS, o. c.,

17, responde a H. W IND ISCH em primeiro lugar que o judaísm o não estendeu jam aisaos filhos dos pagãos a idéia de um a inocênc ia inata, e em continuação - de acordocom Õ PKE - que no judaísmo se encontram juntas a idéia desta inocência e a que

 prete nde que as crianças “n ascem na in iqüidade” (SI 51.7). A questão, por outro lado,não é capital , se o batismo, part icipação na morte e ressurreição de Cristo, forconsiderado como a admissão em Seu corpo crucificado e ressuscitado, pois cadamembro deste corpo deve receber o “selo” desta admissão.

48 Os relatos de Atos dos Apóstolos que falam de batismos vêem às vezes no “falar emlínguas” o testemunho imediato do dom do Espírito (At 19.6; cf. 2.4; 10.46). Pois

 bem, a glo ssola lia está exclu íd a nos recém -nascid os. Poré m , is to não sig nif ica quenão possam receber o Espí r i to , po is o Novo Tes tamento e Atos em par t icu lar

 proíb em pedir a glo ssola lia com o confirm ação in iludív el e obrig ató ria de todo batismo cristão (Cf. At 2.41; 8.38; 9.18; 16.15-33, etc.)

45 Cf. as pp. 133 s.

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 Não trairemos nosso objetivo se mencionarmos aqui o gesto da benção que Cristo fez sobre as crianças que Lhe eram apresentadas(Mt 19.13 s., juntamente). E isto não somente porque a maneira comoos evangelistas nos referem o fato50 deixa supor que queriam dar comisto diretivas a respeito do batismo de crianças, sendo este, talvez já,objeto de discussão eclesiástica51, mas sobretudo porque a imposição  das rrtãos era precisamente o gesto que acompanha a doação do  Espírito. A mão que Jesus coloca sobre as crianças em sinal de benção é o instrumento do Espírito assim como a que impõe sobre os

enfermos. As crianças ((3p*fpri, Lc 18.15) de que fala o Evangelhoentram, em virtude desse ato, em comunhão com Jesus. Certamentenão se trata do batismo52, porém com direito, todavia, desde os tem pos mais antigos, este episódio é invocado para legitimar o batismode crianças, pois trata de introduzir as crianças na comunhão comCristo. “Não as impeçais de entrar nessa comunhão!” |i* •• eoÂ* fi£.

 Não seria, por isto mesmo, um sinal de pouca fé declarar im possível o milagre invisível que constitui a introdução pelo Espírito deuma criança na comunhão com Cristo?

Porém, se objetará então - e a isto já temos feito alusão53 -que quem pretende relacionar este milagre com o ato exterior está

 próximo da magia. Por isto é indispensável falar aqui da fé da comu

 nidade, reunida durante o batismo, fé que tornou possível a obra doEspírito. Com efeito, no Novo Testamento só excepcionalmente -caso do batismo do eunuco (At 8.26 s.) - a comunidade, ainda quereduzida a “dois ou três”, está ausente na celebração do sacramento54. A fé da comunidade não é uma fé substitutiva, como dizem os

50 Apêndice, 177 s.51  Cf. as pp. 133 s.52  Não podia tratar-se do batismo posto que Jesus, todavia, não havia ainda morrido e

ressuscitado. É pois errôneo querer legitimar por este texto uma liturgia de bençãoou de “apresentação” de crianças que precederia seu batismo na idade adulta (cf. L.

SECRÉTAN,  B aptê m e des croyants ou baptêm e des en fa n ts? La Chaux-de-Fonds

1946, 26, 55 s., 62 s.). Ao contrário, se este episódio que precede no tempo a mortee a ressurreição de Cristo legitima um uso litúrgico que seguirá a Sua obra expiatória,

é melhor o uso do batismo de crianças.

53  Cf. as pp. 142 s.54  Por outro lado, a glossolalia, que atesta as vezes o dom do Espírito, pressupõe, sem

dúvida, a presença da comunidade, ainda que Paulo (1 Co 14) põnha em dúvida o valordeste dom espiritual para a edificação da comunidade,  se não houver interpretação.

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Reformadores55. Com efeito, o batizado desprovido de fé não se beneficia da fé da comunidade reunida ao redor dele. Erroneamen

te se invoca esta concepção nas apologias clássicas do batismo decrianças. Não se trata disso. A comunidade crê que se realiza diantede seus olhos um acontecimento decisivo que concerne ao batizado,e que este acontecimento é real, seja criança ou adulto, tenha consciência ou não. Se a comunidade reunida para o batismo não cressenisto, não seria Igreja e o Espírito Santo estaria ausente. Porém, ali

onde há uma comunidade crente, o Espírito Santo, que atua soberanamente nela, tem o poder de comunicar-se a um recém-nascido damesma forma que a todos aqueles que, segundo Paulo, “por um sóEspírito são batizados em (e*ç) um só corpo”.

E necessário, a este propósito, falar do matrimônio, que existetambém em função da vida da comunidade. Este está enobrecido,

segundo Ef 5.22 s.56, porque é um reflexo das relações que unemCristo à Sua Igreja57. Por isso, uma criança nascida de um matrimônio de pais batizados participa por seu mesmo nascimento do corpode Cristo (1 Co 7.14).58 Este texto paulino não atesta nem o batismode crianças nem o de adultos. Pois um e outro são supérfluos para ascrianças nascidas de pais cristãos; ao nosso entender, Paulo pensa

aqui que a santidade conferida pelo nascimento em si basta nestecaso para que se seja membro da Igreja59. Porém, esta passagem,

55  Esta reserva diz respeito a tudo o que H. GROSSMANN, o.  c., 33 s., disse a esterespeito. Poderia se falar no máximo de “fé substi tutiva” para esse problemático

 batism o pelo s mortos de que fala Paulo (IC o 15.29). O sentido desta passagem nos p a rece im p rec iso no m om en to e é p re fe rív e l não in v o c a-lo no d eb ate sob re o batism o de crianças. Cf. todavia K. L. SC HMID T,  D ie Taufe f ü r die Toten: Kirchenblattfür die Reformierte Schweiz (1942) 70 s.

56 H. GROSSMANN, o. c., tem razão ao manifestar que esta passagem fala igualmentedo batismo (no v. 26).

57  Cf. o capítulo 6 , pp. 105-116.58 Advertimos anteriormente que esta opinião de Paulo procedia, sem dúvida, do judaísmo

onde não se batizava aos filhos dos prosélitos nascidos depois  da conversão de seus pais.59  Esta exegese não é indiscut ível , o sabemos, porém é a que melhor nos parece

expl icar o texto. H. GROSSMANN, o. c.,  18, sustenta o contrário. Pensa, com

efeito, que a “santidade” destas crianças é uma alusão ao seu batismo. Este ponto devista nos parece dificilmente sustentável. Se o concedemos aos adversários do batismode crianças. Cf. a este propósito M. GOGUEL, o. c.,  328 s. F.-J. LEENHARDT, o. c., 67, pensa que não se pode deduzir deste texto que os filhos dos cristãos são “aptos parao batismo”. Estima que “é o contrário que seria preciso deduzir: se são “santos”, nãotêm necessidade de batismo. Têm por nascimento o que o batismo deveria dar-lhes.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 149

como as que se referem ao batismo de toda uma casa, não permitetirar conclusões precisas concernentes à prática batismal nem num

sentido nem noutro. É necessário, pois, invocá-la em relação com a  doutrina  geral do batismo. Pois bem, se nos situarmos sobre esseterreno, é necessário reconhecermos que ela atesta de todos os modos uma noção  coletiva  de santidade.  A admissão no corpo de Cristo não depende, pois, de uma decisão pessoal,  mas do fatode que se nasceu de pais cristãos, portanto, batizados. Isto quer dizerque esta admissão consiste em um ato da graça de Deus, independentemente do homem. Que Paulo julgue o batismo de tais criançasou não, uma coisa é certa:  a noção de santidade implicada pelo que foi dito, conduz diretamente à prática do batismo de crian

 ças. Opõe-se à idéia de que os filhos de cristãos não poderiam  receber o batismo senão depois de decidirem por si mesmos.  E ahipótese de J. Jeremias60, a saber, a de que já nos tempos do NovoTestamento se praticava o batismo das crianças, adquire assim, a

 partir dessa observação, um alto grau de probabilidade. No caso quese refere a 1 Co 7.14 não se trata de uma evolução que vai do batismo de adultos ao de crianças, mas que a primitiva comunidade cristã,como a comunidade Israelita, renunciava o batismo dos filhos nascidos de pais cristãos, mas que depois passou ao batismo das crianças, sempre segundo a mesma noção coletiva de santidade.61

É preciso, com efeito, observar que em 1 Co 7.14, Paulo falaexclusivamente de crianças de pais já membros da Igreja. Não se

 pode, pois, aduzir esta passagem para legitimar o batismo dos filhosde pagãos ou de judeus que se convertiam à fé cristã. Para aqueles,é preciso recorrer aos textos que referem o batismo de casas inteiras. Vimos que, baseando-se somente nestes, não se pode afirmarcom certeza que tais batismos de filhos de pagãos foram celebradosao mesmo tempo que os de seus pais, ainda que a prática judaica do

 batismo dos prosélitos faça com que seja uma hipótese provável.

60 O.  c., 24 s.

61  Provavelmente esse passo foi desobstruído no momento em que se começou a pensar que a parousia não se daria enquanto viv essem as duas prim eiras geraçõescristãs. Tanto razões práticas como teológicas (o paralelismo batismo e circuncisãoque se impunha então ainda mais que o de batismo cristão e batismo dos prosélitos

 judeus) im puls io naram a Igre ja a batizar as crianças, poré m sua doutr in a do batism o

não foi em absoluto alterada.

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150 O s c a r   C u l l m a n n

Porém, no que concerne à  doutrina  do batismo, essas passagens permitem concluir que nesse caso também a  solidariedade  batismal da familia62 devia superar a decisão individual de cada membro.Uma graça batismal que beneficia a  toda uma comunidade, a sabero povo de Israel no momento da passagem pelo mar Vermelho, ésuposta também em 1 Co 10.1 s., texto que seria necessário sublinhar nas discussões sobre o batismo de crianças. Ela mostra, comefeito, claramente que o ato da graça, considerado como tipo de

 batismo, concerne à aliança que Deus concluiu com  todo o povo.

A este respeito, é preciso mencionar a continuidade da linhaque vai desde a aliança pactuada por Deus com Abraão, em favor desua posteridade, com a da Igreja. Esta, da mesma forma que corpode Cristo, única posteridade verdadeira de Abraão (G13.16), cumpree realiza a primeira aliança. Em Rm 4.11 seu sinal, a circuncisão, édesignado como uma c(ppay*ç, um selo: da justiça que Abraão havia

obtido pela fé, a fim de ser pai de todos os crentes (v. 1 lb e 12). Pois bem, esse termo mppay*ç designa no Novo Testamento o batismo, pois a este sacramento faz alusão acppay*^ea9ai‘ de 2 Co 1.22; Ef1.13 e 4.30. Como a circuncisão, a o<ppay»ç do batismo é mais queuma “imagem” ou um “símbolo”. É o selo pelo qual Deus sela aaliança que conclui com a comunidade livremente eleita.

Será necessário voltar sobre esta questão no parágrafo consagrado às relações entre a circuncisão e o batismo. Até agora nos ésuficiente comprovar que sobre este ponto também se encontra confirmada nossa tese, segundo a qual o fim essencial do ato batismal éintegrar um novo membro no corpo de Cristo, em virtude da aliançaque Deus selou com a Igreja, realização da de Abraão.

 3. O batismo e a fé

Vimos que é necessário distinguir no sacramento do batismodois elementos sucessivos, a saber: o ato soberano de Deus, queincorpora um indivíduo à Igreja, corpo de Cristo, e as conseqüências

62 K. BARTH, o. c.,  37, subestima a importância do vínculo familiar no Novo Testamento. Certamente, o matrimônio e a vida familiar entre a ascensão e a parousia deCristo perderam seu valor próprio. Porém com sua integração na Igreja adquiriu umanob reza da qual es tava de sprov ido por si m esmo. 1 Co 7 não tes tem unh a uma

 posição essencia lm ente d iferen te da de E f 5.22 s.

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deste ato para a vida inteira do indivíduo. Faremos uma distinçãoentre o papel da fé antes e durante o ato do batismo e o que desem

 penha depois.Os textos do Novo Testamento permitem fazer esta distinção? Já o texto citado mais atrás, 1 Co 10.1 s., não autoriza a responder afirmativamente. Com efeito, Paulo distingue escrupulosamenteo que aconteceu quando da libertação do povo eleito no momento da

 passagem pelo Mar Vermelho, tipo de batismo, do acontecimento

subsequente: a maneira negativa como a maior parte do povo reagediante deste batismo e suas conseqüências funestas. A mesma distinção se encontra também nas outras passagens neo-testamentá-rias que falam de uma perda da graça batismal (Hb 6.6 e 10.26).Pois se se pode perder esta graça, isso significa que a vida ulterior do batizado decide também sobre o acontecimento sacramental.

Porém, apesar disso, não se pode pôr em dúvida a realidade do quese passou no próprio momento do batismo.63 No momento, trata-se somente de demonstrar o quão bem fun

dada está esta distinção. Para isto teremos que recorrer a Rm 6, passagem capital que justamente, nos recentes debates sobre o batismo,se destacou sem cessar. Nela também se faz esta distinção, posto que

o indicativo do batismo (estamos mortos) está ligado de maneira muitocaracterística ao imperativo (que o pecado não reine mais).Para todo batizado, o batismo está na origem de outros aconte

cimentos. É verdade que somos eleitos em Cristo desde antes de nosso nascimento. Porém, no curso da vida terrestre de um batizado, o

 batismo é um ponto de partida. Da mesma maneira que a história dasalvação se desdobra no tempo, assim, independentemente de seu nascimento natural, há, na vida de um indivíduo, um primeiro ato redentor,um novo nascimento, seguido de um desdobramento no tempo. Essa éa razão pela qual o Novo Testamento chama o batismo de um “novonascimento” (Tt 5.5; Jo 3.3 s.). Tal é o batismo; um começo muito realem si mesmo, porém, que leva consigo uma continuação, assim comoo nascimento natural é um começo ao que não se saberia negar suarealidade. Pois bem, apesar disto, privado de uma continuação, isto é,se a morte sobrevem em seguida, perderia todo o efeito.

63 Cf. mais atrás, pp. 142-146.

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152 O s c a r   C u l l m a n n

A distinção que o Novo Testamento nos convida a fazer é, pois,de grande importância para a questão do batismo de crianças. Comefeito, os adversários do batismo de crianças crêem que devem negarseu caráter bíblico precisamente porque falta-lhes a fé no instante doato batismal. Por outro lado, quiçá, K. Barth não tenha tentado fazeresta distinção temporal, à propósito das relações entre o batismo e afé, pelo fato de não ter uma concepção linear do tempo.64

Será necessário que a fé coincida com o ato batismal? É legítimo que nos façamos esta pergunta, pois o batismo é chamado um“novo nascimento”. Este fato nos permite sem dúvida alguma responder negativamente. Advertimos que este segundo nascimento perdeseu efeito se for seguido da morte, isto é, no caso de ausência da fé.Mas por isso não perde sua realidade. No momento em que ocorreu,era perfeitamente uma participação na morte de Cristo. Segue-se portanto que este ato batismal único, este “nascimento”, não está ligado àfé prévia e não depende dela. O qual é distinto da .vida que se seguirá.E verdadeiramente necessário levar a sério o fato de que o batismo éum voltar a um começo radical: as coisas antigas já não contam mais,nem sequer a fé que existia, talvez, antes deste nascimento. Para ohomem que o recebe, o batismo é um sepultamento total.

Toda a doutrina de Rm 6.1 s. se dirige a homens que já estão batizados, a quem o batismo selou sua salvação. Não é, pois, umcatecismo preparatório, mas explica  a posteriori,  àqueles que jásão membros do corpo de Cristo, o que então havia se passado:“Considerai-vos, pois, como mortos para o pecado e como vivos

 para Deus em Jesus Cristo” (Rm 6.11). Segundo esta passagem,ainda se trata de pessoas batizadas na idade adulta, o “participar”

da salvação, a compreensão e a fé que isto supõe não são constitutivos do primeiro ato do acontecimento batismal, mas do segundo.Dá-se um duplo ensinamento aos batizados: primeiramente queforam objeto de um ato redentor e em segundo lugar, agora que osabem, devem permanecer dignos, isto é, segundo Paulo, crer narealidade deste ato. E ainda se o apóstolo não faz aqui mais que

recordar a seus leitores o que já lhes havia sido talvez comunicadoantes de seu batismo, não é menos certo que se dirija a cristãos

64 Cf. a este respeito, Th. PREISS, a. c.,  116.

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 batizados e que lhes fale do batismo como de um ato passado doqual foram objetos passivos.

Por outro lado, Paulo não menciona esta prefiguração do batismo que é a passagem pelo Mar Vermelho (1 Co 10.1 s.) senão paramostrar que no primeiro ato é só Deus quem atua, o homem não res ponde senão no momento do segundo ato. A seqüência: ação de Deus-resposta do homem é determinante a este respeito. O que aconteceu atodos os membros do povo (tc* rieç, cinco vezes nos quatro primeirosversículos), este milagre de Deus, é oposto à iniqüidade e ao castigo de alguns  (xtveç, v. 7) que não puderam ser salvos, pois não puderamresponder pela fé. Está, pois, claro que o batismo aponta para o futuroe espera no futuro uma resposta daqueles que se beneficiam dele, oque é um elemento essencial para um sacramento de admissão. Isto éválido para todo membro da comunidade, batizado quando criança ouadulto, havendo ou não tido a fé antes de ser incorporado à Igreja.

Porém, se é essencial para o acontecimento batismal que o batizado, em todos os casos, creia  depois  da celebração destesacramento, por que o Novo Testamento refere tantos casos nosquais a fé precede e parece autorizar o batismo? Porque os únicosrelatos precisos que temos apresentam pagãos e judeus convertidosem idade adulta. Para estes é com rigor que não sejam admitidos naIgreja de Cristo senão pela condição de afirmarem, sobre a base dafé, sua intenção sincera de responder no futuro à graça do batismo

 por uma fé e uma vida dignas dela. A fé do candidato neste caso éuma condição humana que tornará possível a obra divina. Não é tão

 pouco uma garantia da perseverança futura do batizado. Constituium sinal, um critério que permite, à Igreja, fazer uma eleição entre oshomens que vai agregar pelo batismo. Assim, para um pagão ou um

 judeu convertidos quando adultos, como não nasceram em umafamília cristã, é sua fé pessoal que mostra à Igreja que Deus queraumentar o corpo de seu Filho acrescentando-lhe um novo membro.

 Por isso se requer a fé de um adulto no momento de seu batismo. Seria, com efeito, contrário à vontade de Deus, no que diz res

 peito ao batismo, que a Igreja batizasse indistintamente a todo o  mundo, isto é, sem haver um sinal divino que lhe faça esperar que o batizado viverá fielmente em seu seio.  O batismo de umadulto, sem esse sinal da fé, seria tão inaceitável como o de uma

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criança moribunda. Com efeito, é preciso admitir neste caso, porém por outras razões, que a criança não participará do corpo terrestrede Cristo, posto que o segundo ato necessário para o acontecimento

 batismal não se produzirá.Pode-se objetar aqui que, do mesmo modo que se batiza a um

recém-nascido do qual se ignora a reação futura, os adultos indiferentes ou hostis poderiam ser batizados, pois adiante lhes seria oferecida a possibilidade de chegar um dia à fé. Seria então possível,nos batismos de adultos, prescindir dessa pergunta sobre a fé docandidato de que fala o Novo Testamento, se esta não tem maissignificação que a que nós lhe atribuímos. Para responder a estaobjeção, é necessário dizer que o batismo de um recém-nascido, talcomo se apresenta sobre a base dos textos estudados no parágrafo

 precedente, era bastante diferente do batismo de um adulto incrédulo. O pertencer do recém-nascido, por seu nascimento natural, à umafamília cristã,  ou ao menos a um pai ou uma mãe cristãos, constituium  sinal   para a Igreja, em virtude da solidariedade batismal e dasantidade notada previamente. Este sinal indica que o acontecimento

 batismal divino da incorporação à Igreja deve produzir-se. A fé doadulto que sai do judaísmo, ou do paganismo, e que por este fato nãonasceu em uma família cristã, deve desempenhar o papel deste nascimento e constituir um sinal válido para a Igreja e, por conseguinte,indispensável. Mostra que Deus quer atuar e somar, pela água e peloEspírito, um novo membro a sua Igreja. Esta tem necessidade de talsinal para não cair na arbitrariedade quanto à eleição dos que se

 batizam. Deste modo o sinal será em um caso o nascimento da criança em uma família cristã e noutro a fé do adulto.

O testemunho da fé antes do batismo é para os adultos umelemento que faz parte das “ordenanças batismais”. A fé que seguirá ao batismo dá sentido a esta fé prévia. O pertencer de uma criança a uma família cristã não é uma garantia de fé subsequente, masuma indicação divina de sua probabilidade. Ocorre o mesmo com afé de um adulto pagão, ou judeu, testemunhada no momento de seu

 batismo. Esta não é mais que uma indicação divina assinalando como provável a fé subsequente, única, decisiva.

A fé que precede o batismo não é então um elemento constitutivo do próprio acontecimento batismal, da incorporação de um ser 

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humano à Igreja de Cristo. É somente necessária no caso - maisfreqüentemente nos primeiros tempos da Igreja - em que o candida

to ao batismo é um adulto procedente do judaísmo ou do paganismo.Se a fé que segue ao batismo é requerida a todos os batizados, a féque o precede não é condição para o batismo senão no caso dosadultos que não têm vínculos naturais com a Igreja cristã. A situação

 particular da Igreja nascente, que batizava sobretudo adultos, explicao porque a mais antiga liturgia batismal conhecida65 contenha uma

declaração da fé do candidato. Porém, não teremos direito em tirardisto conclusões para a significação do batismo. Por outro lado,J. Jeremias recordou com razão que as declarações litúrgicas ou teológicas que acompanham o batismo de prosélitos judeus não mencionasenão a adultos. Portanto está provado que as crianças dos prosélitos eram batizadas ao mesmo tempo que seus pais66. Pode-se dizer

então que o batismo dos adultos não se distingue do batismo das crianças senão na medida em que se trata de neófitos que vêm do judaísmo ou paganismo. A confissão de sua fé é de praxe antes do batismo. Porém, nos dois casos, a doutrina do batismo é a mesma, sendoos atos e os os gestos do batizado  depois  do batismo o elementodecisivo para a confissão da fé cristã. A fé está essencialmente liga

da ao segundo ato do acontecimento batismal e não ao primeiro.Isto está confirmado pelo fato de que encontramos no NovoTestamento batismos - de adultos ou de crianças - que não pressu

 põem a fé antes ou durante a administração do sacramento. É certoque a seqüência “pregação-fé-batismo” se encontra na maior partedos casos referidos pelo Novo Testamento e se explica pela situação

concreta da Igreja naquele momento; porém, esta seqüência não é tãoregular como pretendem os adversários do batismo de crianças67.Em todos os casos em que o Novo Testamento se embasa na

solidariedade batismal da família com o corpo de Cristo, não se tratada questão de um ensino precedente ao batismo e de uma fé confes

65  Cf.  A p ên d ice , 172. s.66 J. JEREMIAS, o. c.,  17. No momento do batismo de Cornélio e de “toda sua Casa”,

de “seus pais e de seus amigos íntimos” (Atos 10), de Lídia e de “sua família”, docarcereiro de Filipos e de “todos os seus” (Atos 16), só Cornélio, Lídia e o carcereirotomam a palavra junto aos apóstolos Pedro e Paulo.

67  Cf. H. GROSSMANN, o. c.,  16.

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sada no momento do sacramento. Isto é patente e totalmente independente da questão insolúvel de saber se as “casas” compreendiam ou

não também crianças pequenas68. O relato da conversão do carcereiro de Filipos é instrutivo a este respeito. O convite à fé (At 16.31)não é dirigido senão a ele somente, enquanto que a salvação é prometida a ele e a sua casa: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvotu e tua casa”. Pelo qual, naquela hora noturna, 7ic/pa%pr|* fia, ele é

 batizado com todos os seus, e “se alegrou com toda sua família por

ele haver crido em Deus” (v. 34). Em 1 Co 7.14, como vimos, Pauloensina que por causa dos laços que unem o matrimônio com o corpode Cristo, a família é implicada solidariamente na santidade69. É, pois,lícito e ainda necessário evocar aqui essa passagem. Ela mostra quea santidade, isto é, o pertencer aos “santos”70, e, portanto, segundo aterminologia neo-testamentária,  o pertencer à Igreja não estão li

 gados a uma fé que fo i confessada previamente'.E preciso que recordemos aqui todavia, a prefiguração do batis

mo de 1 Co 10.1 s. Para este texto já não é umà questão de vínculoentre a família e o corpo de Cristo, mas da aliança divina concluídacom um povo de maneira completa. Pois bem, o apóstolo não pensava certamente ao escrever isto que o povo inteiro, salvo através do

Mar Vermelho e “batizado em Moisés”, que os  n* rteç, mencionados com tal insistência tenham tido todos a fé.Resulta de todas estas considerações que, segundo o Novo

Testamento, não se pode dizer, sem mais, que somente a fé conduzao batismo. Esta afirmação é certamente verdadeira, posto que o

 Novo Testamento a refere sobre todos os relatos de batismos de

 judeus ou de pagãos adultos. Porém, não é a única verdadeira, pois para os outros batismos, igualmente mencionados, a seqüência “confissão de fé - batismo” não é observada. Ao contrário, está invertida: é o batismo que conduz à fé. Assim a fórmula “batismo-fé”concerne a  todos  os casos de batismos, posto que esta deve ser o

 ponto de partida da fé. E esta fórmula então a que é normativa.

68 Cf. mais atrás na p. 130.69 Cf. mais atrás nas pp. 148 s.70  É preciso fazer notar que em 1 Co 7.14 fala-se da parte não crente que é “santificada”

 pela parte cren te (*7*e(atai), enquanto que das crianças se diz que são “santas” (*yioc).

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Para a categoria de batismos de adultos pagãos ou judeus, encontramos o esquema seguinte: o homem é conduzido ao batismo pela

fé, é agregado à Igreja de Cristo pelo sacramento, depois levadoà fé71. A Igreja à qual o ato batismal incorpora, não é somenteo lugar onde o Espírito Santo opera Seus milagres, mas tambémaquele onde se suscita a fé. Esta observação nos leva à últimacomprovação.

 No parágrafo precedente, vimos que a fé da comunidade, 

que é melhor não chamar substitutiva, já faz parte no momento do próprio ato batismal, do próprio ato do batismo. E preciso recordaraqui que a comunidade ora pelo batizado (At 8.15). Pede a Deusque introduza o candidato, adulto ou recém-nascido, no milagre do

 batismo. Esta fé, que tem por objeto aquele que vai morrer e ressuscitar com Cristo, é efetivamente um elemento indispensável do

 próprio ato do batismo.Encontra-se a afirmação deste fato vendo o papel desempe

nhado pela fé nos  milagres  realizados por Jesus. Não sem razão,falamos de milagres em um estudo sobre o batismo. Pois para oQuarto Evangelho particularmente, os sacramentos da Igreja cristãtêm a mesma significação que os milagres realizados por Jesus

durante o seu ministério terrestre72. O paralelismo milagre-sacra-mento está também na base de 1 Co 10.1 s. E, portanto, legítimoaduzir não como uma prova, mas como confirmação de nossa inter

 pretação, que na época dos milagres de Jesus - efetuados em favorde adultos e de crianças - não era sempre a fé dos beneficiados oque era decisivo. Amiúde, a fé daqueles que levam o enfermo oufalam do morto é que é tida em conta: “Jesus vendo a fé daqueleshomens, disse ao paralítico: filho, teus pecados te são perdoados”(Mc 2.5). Em numerosos relatos evangélicos de milagres, se vê comoa fé daqueles que imploram a Jesus em favor de um membro de suafamília precede o milagre. “Em nenhum homem de Israel encontreitanta fé” (Mt 8.10) disse Jesus do centurião de Cafamaum antes de

71  Cf. G. MIEGGE, o.  c., 30 s.72  Cf. O. CÜLLMANN, Urchristentum und Gottesdienst , 33 s. No artigo citado de T.

PREISS se fez referência a Jo 7.23, onde Jesus reconhece na circuncisão um podervivifícante e a compara com seus milagres de cura.

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curar seu criado. Os evangelistas narraram a cura do menino lunático (Mc 9.14 s.) para mostrar que Cristo pode curar ali onde encontrafé. Nesta passagem, é o pai do menino quem crê: “Tudo é possívelao que crê, disse Jesus. Em seguida  o pai do menino  exclamou:Creio” (Mc 9.23 s.). Precisamente porque faltava fé aos discípulos,estes não puderam curar este menino: “Então os discípulos se aproximam de Jesus e tomando-o à parte perguntam: Por que não pudemos expulsar este demônio? Ele lhes respondeu: porque vos falta fé;

• pois vos tenho dito, em verdade, que se tiverdes fé do tamanho de umgrão de mostarda...” (Mt 17.19 s.)73. Nesta mesma ordem de idéias, afé da comunidade reunida é decisiva no momento do ato batismal.

As conclusões deste parágrafo sobre as relações entre a fé eo batismo são, pois, as seguintes:

1. Depois do batismo, a fé é requerida de  todos os batizados.2. Antes do batismo, a confissão de fé é exigida dos  adultos 

que vêm individualmente do judaísmo ou do paganismo. É um sinalda vontade divina e indica à Igreja que pode procèder o batismo.

3. Durante o batismo, a fé é requerida da assembléia em oração.

 4. O batismo e a circuncisão

Intencionalmente e por razões de método, temos descrito noque precedeu a doutrina neo-testamentária do batismo prescindindo

 provisoriamente dos textos bíblicos que falam da circuncisão. Nãose pense, todavia, que estes textos sejam de uma importância secundária. Vamos ver que todo o problema do batismo, suas conseqüências litúrgicas e práticas, pressupõem a doutrina e a prática da circuncisão, como também o batismo dos prosélitos.

Estes atos sacramentais judaicos são aplicados tanto aos adultos como às crianças. Há uma circuncisão de adultos e uma circuncisão de crianças, um batismo de prosélitos adultos e um batismo

 para seus filhos. É importante advertir que ao judaísmo esta práticanão se tomou um problema. Porém, se fez uma distinção entre ascrianças nascidas de pais judeus e as dos prosélitos admitidas na

73 Remetemos aqui o lei tor ao ar t igo de J . -J . VON ALLMEN,  Luc 9 .37 -43a e t le baptême des enfants : Foi et vie.

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comunidade ao mesmo tempo que seus pais, o que mutatis mutandis  pode exercer seu papel na maneira como se aplicará a  doutrina 

neo-testamentária do batismo às crianças.É preciso começar por sublinhar bem que a noção de um batismo cristão, considerado como o cumprimento e, por conseguinte, aabolição da circuncisão judaica, não é uma invenção teológica tardiadevida ao apologista Justino. Não foi pré-fabricada a posteriori para

 justificar o batismo das crianças cristãs. Esta interpretação está expli

citamente contida em Cl 2.11 s.74 Isto prova a existência de um parentesco essencial e fundamental entre circuncisão e batismo cristão.A maneira como K. Barth trata esta questão é sem dúvida o

 ponto mais fraco de sua doutrina acerca do batismo. Pois se é preciso reconhecer que os argumentos dos Reformadores em favor do

 batismo das crianças não são incontrovertíveis, foi necessário pelo

menos levar mais a sério o paralelismo que estabelecem entre a circuncisão e o batismo. Sobretudo porque nosso conhecimento do judaísmo contemporâneo, na época do Novo Testamento, nos obrigaa esclarecer o batismo cristão em sua forma e fundo com o que nóssabemos acerca da circuncisão e do batismo dos prosélitos. Não

 podemos compreender bem como K. Barth pode admitir que o batis

mo é o cumprimento da circuncisão negando, no momento decisivo,seu vínculo interno e afirmando que a circuncisão seria em suaessência totalmente diferente do batismo. De sorte que, segundo ele,não seria possível deduzir da circuncisão das crianças a legitimidadedo batismo das crianças. Nós, todavia, encontramos uma correspondência entre o ato de admissão na antiga aliança e o ato de admissão

na nova, que não pode explicar-se senão por sua unidade essencial.Razões terminológicas já nos fizeram compreender assim, pois

o Novo Testamento faz alusão ao batismo pelo verbo o<ppay* Çeo9oue chama a circuncisão apcpay*ç75. E necessário recordar também

74  Sobre este último texto, HARALD-SAHLIN escreveu um importante artigo, Omskãrel- 

sen i Kristus-,  Svensk Teologisk Kvartalskrift (1947) 11 s. Apoiando-se no artigo que N. A. DAF1L havia publicado na m esm a rev ista (1 945, 85 s.) sobre o batism o naE pístola aos Efésios, mostra de m aneira convincente que a perícope de E f 2.11-22está dominada pelo paralelismo circuncisão-batismo, e chega quase a interpretar estetexto particularmente difícil integrando-o sem choques na teologia paulina.

75  Cf. mais atrás na p. 150.

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1 6 0 O s c a r   C u l l m a n n

que, no judaísmo, a circuncisão é considerada como um “novo nascimento”76 e que os circuncisos são chamados “os santos”, como os

 batizados na Igreja. Tudo isto prova claramente que a circuncisão éo sacramento de admissão na antiga aliança e que ela confere santidade aos circuncisos.

Karl Barth crê poder debilitar o paralelismo neo-testamentárioindubitável entre a circuncisão e o batismo cristão afirmando que acircuncisão não significaria mais que a admissão a uma sucessãonatural de gerações e, por esta razão, praticada somente nos meninos (varões). De acordo com esses dados, não se poderia, pois, tirarconclusões concernentes ao batismo cristão. Para este último, o elemento importante seria a fé individual e não a ligação a uma sucessão de gerações, a um povo ou a uma família. Segundo nosso colega,não seria necessário atribuir importância ao fato de que em Cl 2, porexemplo, se fale sem restrição alguma da circuncisão em um texto

 batismal. Segundo ele, o Novo Testamento mostra, por outro lado,que na Antiga Aliança o sinal da vontade salvadora de Deus era asolidariedade familiar, enquanto que na Nova este sinal estariarepresentado pela fé e o compromisso pessoais.

Porém, esta interpretação da circuncisão judaica não é sustentável, pois não corresponde em absoluto à maneira segundo aqual Paulo compreendia este sacramento da Antiga Aliança. Comefeito, segundo Rm 4.11, “o sinal da circuncisão” é dado a Abraão“como o selo da justiça que ele havia obtido  pela fé”.  Esta fé deAbraão, que Deus sela para ele e seus descendentes com o sinal dacircuncisão, é precisamente a fé na promessa que foi feita a Abraão,

 promessa de chegar a ser o pai de muitos povos (̂ l<5'k'k• **0vr|, Rm4.17 e 18). Não se trata somente de gerações do povo judeu. NaEpístola aos Gálatas (4.21 s.) o apóstolo se esforça por demonstrarque o princípio camal da sucessão natural das gerações não é decisivo para Isaque e seus sucessores. Ao contrário, é o filho da serva,Ismael, quem deve seu nascimento a este princípio • ecT* *a* p* ex,enquanto que o filho da livre, Isaque, o deve milagrosamente à pro

messa divina. Paulo pode assim designar os cristãos como sendo osseus descendentes • cct* *Taa* • • •7cayyEÀ*ecç (G1 4.28).

16 Cf. STRACK-BILLEBERCK, o. c.,  vol. II, 423.

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 161

Se o Novo Testamento faz da circuncisão o selo desta fé deAbraão, isto é, se a circuncisão tem de antemão a finalidade da

incorporação dos pagãos à aliança divina, é incompatível   com oensino neo-testamentário não ver nesse selo mais que uma admissãoà sucessão natural das gerações. Na realidade, a circuncisão é aincorporação à aliança realizada por Deus sobre a base da promessafeita a Abraão e a seus descendentes, compreendidos os pagãos, talcomo o batismo os toma membros do corpo de Cristo.

Bem compreendida, a circuncisão, que não é somente exteriore feita pelas mãos dos homens (Ef 2.11; Cl 2.11), mas “uma circuncisão do coração” (Rm 2.29), se prolonga diretamente até o batismocristão, a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11). Tal é o sentido da argumentação apostólica em Rm 4.1 s. e G1 3.6 s. Com efeito, nestaúltima passagem, fala-se também da descendência que a promessa

feita a Abraão tinha em vista, e Paulo disse explicitamente que todosaqueles que são “batizados em Cristo” participam dela. Abraão étambém o pai dos membros da Igreja de Cristo, não em virtude dadescendência carnal, mas em virtude da história divina da salvação.Pois bem, o que é válido para Abraão o é também para a circuncisãoque selou a justiça que ele havia obtido por sua fé na promessa pre

cisamente acerca desta descendência. Na história da salvação, a circuncisão encontra significaçãoreferindo-se não somente à descendência natural, como também, e

 por sua vez, ao mundo das nações. Por causa da eleição divina, aaliança da graça se aplica em primeiro lugar a Israel • cct» *G* p* fx,

 porém não é este o elemento mais importante para compreendera significação neo-testamentária acerca da circuncisão. Não consiste tão pouco na constatação, perfeitamente exata em si, de que“a sucessão das gerações chegou ao seu fim no momento do nascimento do messias”77.

O elemento primordial da circuncisão é, desde sua instituição,o ser selo de uma aliança aberta a todos os povos. Se mais tarde,esse selo não foi o sinal distintivo dos membros reais da aliança abraâ-mica, se, por outro lado, a linha de demarcação entre os descendentes de Abraão e os que não são desapareceu, não foi porque esse

77 K. BARTH, o.  c., 31.

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1 6 2 O s c a r   C u l l m á n n

selo estivesse destinado somente à descendência natural do patriarca, senão antes por causa da infidelidade de Israel. Esta infidelidade

não se consistiu, em princípio, no não reconhecimento da amplitudeuniversal da promessa afirmada na circuncisão. Com efeito, segundo o Antigo Testamento, a aliança da graça esteve fechada aos gentios, entretanto a genealogia santa dos descendentes de Abraão nãochegou a seu fim, quero dizer que, entretanto, o messias não havianascido. Se a “entrada” das nações não se produziu sob a antiga

aliança é porque os fariseus - para recorrermos às palavras bemconhecidas de Jesus - fizeram dos pagãos convertidos que eles cir-cuncidavam “filhos do inferno duas vezes piores do que eles mesmos” (Mt 23.15). Por isto não tem nada que ver com a essência dacircuncisão. Temos aqui porque a maneira como K. Barth considera as relações circuncisão-batismo não é correta.

O que caracteriza a doutrina neo-testamentária da circuncisão, o que é para ela o fator capital, não é a eleição de Israel • fxx* •o* p* ex, mas antes uma interpretação universalista da circuncisão,correspondente à concepção do judaísmo do tempo de Jesus, apesarde toda a infidelidade deste judaísmo. Pois na prática, a circuncisãonão estava ligada ao princípio carnal, pois antes do nascimento do

messias, os pagãos já estavam convidados a participarem da aliança da promessa. “Nem a doutrina nem a prática judaica do tempodo Novo Testamento permitem afirmar que a circuncisão concerneao nascimento natural”78. Que sentido então teria em ver nela um“novo nascimento”?79

A missão no meio dos pagãos era uma das expressões mais

importantes da vida do judaísmo sob o império romano. Se nãotemos textos judaicos e profanos para afirmá-lo, o próprio evangelhonos ensina que os fariseus “percorriam mar e terra para fazer um só

 prosélito” (Mt 23.15). Pois bem, nem estes prosélitos nem seusfilhos estavam ligados por nascimento a uma sucessão de geraçõesisraelitas. Em regra geral estes prosélitos eram adultos, e por conse

guinte não eram circuncidados como as crianças. K. Barth não falanunca dos prosélitos. Todavia, os textos neo-testamentários que

78 K. BARTH, o. c., 31.79 Veja mais atrás nas pp. 159. s.

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D a s  O r j g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 163

mencionam a circuncisão concernem tão freqüentemente à circuncisão de pagãos adultos como a que era praticada nos filhos dosisraelitas. A polêmica de Paulo se dirige sem dúvida, em grande

 parte, contra a pretensão de circuncidar os pagãos  adultos  que setornavam cristãos (Atos 16.3). Isto prova igualmente que a circuncisão judaica não estava essencialmente ligada ao nascimentonatural, senão que seu significado era a admissão na aliança deDeus aberta a todos.

A situação é portanto mutatis mutandis análoga a do batismo.Eram admitidos à circuncisão e por conseguinte introduzidos na aliança: os que vinham de fora (7tpoo* fonoi) e as crianças judiasque, pelo fato de seu nascimento, estavam destinadas a fazer parteda comunidade, porém, deviam receber todavia o selo efetivo. A circuncisão tem nos dois casos um sentido absolutamente idêntico. Sehá uma diferença no que concerne às crianças, consiste no fato deque são eleitos por Deus e destinados à circuncisão, não sobre a

 base de uma catequese e de uma decisão pessoal, mas antes emvirtude de seu nascimento. É exatamente a mesma diferença quenós chegamos a reconhecer para o batismo cristão nos parágrafos precedentes.

Todavia, na comunidade judaica, constituída desde há váriosséculos, a necessidade de circuncidar às crianças se apresentavacom mais freqüência, que a de batizá-las na comunidade cristã queacabava de tomar corpo. Não obstante, em seguida se delineia,como o demonstra a passagem de 1 Co. 7.14, a questão da “santidade” das crianças na Igreja. Como já vimos, Paulo afirma que osfilhos dos cristãos são “santos” por seu nascimento. Isto significa

 provavelmente que seu batismo não era necessário80, porém tam bém que seu batismo na idade adulta estava excluído, posto que por seu nascimento já entrou na aliança dos santos. A circuncisãona idade adulta dos filhos nascidos de pais cincuncisos tinha sidoigualmente excluída no judaísmo, o qual conhecia todavia a circuncisão dos adultos.

A analogia não está debilitada pelo fato de que a santidade é jáconferida sem batismo aos filhos cristãos de 1 Co. 7.14, enquanto

80 Cf. mais atrás nas pp. 148 s., 155 s.

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164 O s c a r   C u l l m a n n

que a lei estipula que só a circuncisão tomou a santidade das çrian-ças judias efetiva. O elemento tanto no caso de 1 Co 7.14 como no

que concerne à circuncisão de crianças judaicas é o nascimentonatural, que oferece a “santidade” e a incorporação à aliança divina.O papel desempenhado pelo nascimento natural é semelhante naIgreja cristã e na comunidade judaica, qualquer que seja a interpretação que se dê a 1 Co 7.14.

Para as crianças cujos os pais estavam já admitidos na alian

ça, o nascimento natural tem a mesma função que a decisão de fé pessoal para um adulto que vem de fora. É um sinal que mostra queDeus quer realizar o milagre da incorporação.

A analogia se toma mais patente todavia se recordarmos que, nostempos neo-testamentários, a circuncisão dos prosélitos era seguida deum banho de purificação,  o batismo dos prosélitos. Podemos conside

rar como certo que João Batista se sujeita a esta prática. Introduz, nãoobstante, a novidade revolucionária e escandalosa para os judeus deexigir este batismo não somente dos pagãos, como também dos circun-cisos, antes de admiti-los na comunidade messiânica. Esta é a primeira

 parte da transição da circuncisão ao batismo. Para João, todos aquelesque querem ser introduzidos nesta comunidade se encontram, sem

exceção, na situação de prosélitos e devem ser batizados.A circuncisão era, até aqui, o único ato de admissão para osfilhos de circuncisos. Por outro lado, os prosélitos - crianças ou adultos - deviam passar pelo batismo de purificação depois de teremsido circuncidados. Somente neste sentido é que há uma diferençaentre a admissão pessoal. Esta dependia das leis rituais judaicas de

 purificação. Já advertimos que os filhos nascidos de pais prosélitos,antes de sua conversão, eram juntamente com seus pais batizados aomesmo tempo81. Por razão desta prática e dadas as relações estreitasexistentes entre o batismo de João, por conseguinte o batismo cristão,e o dos prosélitos, se deve dar razão a H. Grossmann quando disse queo Novo Testamento deveria conter uma proibição explícita ao batis

mo de crianças, se a Igreja cristã não o houvesse praticado, pois queesta maneira de atuar era corrente na comunidade judaica82.

81 Cf. STRAC K-BILLERBE CK, o. c.,  vol. I, 110 s.82 H. GROSSMA NN, o. c.,  14.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 165

 Não se poderia ver então uma causa de incompatibilidade entre o batismo de crianças e a doutrina bíblica do batismo nofato de que João Batista exigia o arrependimento antes de batizar.Havendo sempre candidatos ao batismo que se encontravam emsituação de prosélitos, como já temos visto83, ele exigia um arre

 pendimento  prévio.  Atuava deste modo como os missionários judeus em relação aos prosélitos adultos que tratavam de ganhar para sua fé. Por outro lado, não há motivo algum para supor queJoão se colocou em contradição à pratica do batismo dos prosélitos, excluindo as crianças que os pais arrependidos traziam consigo

 para serem também introduzidas na comunidade messiânica. Nãoé necessário atribuir um alcance negativo ao fato de que os Evangelhos não falam disto; o ministério do Batista se sujeita diretamente à prática judaica do batismo dos prosélitos.

O ministério de João não foi tão longo para que o caso donascimento de novas crianças na comunidade dos que ele havia batizado se apresentasse com regularidade. Pelo contrário, este casodeve ter se apresentado com mais freqüência na Igreja. Vimos quePaulo, em 1 Co 7.14, está verossimilmente de acordo com a doutrinae a prática judaica, que dispensavam as crianças nascidas dos prosé

litos, depois de sua conversão, de receber o batismo84.Para compreender o vínculo profundo que une a circuncisão,o batismo dos prosélitos, o batismo de João e o batismo cristão, é

 preciso advertir que João não reconheceu mais que um dos atos deadmissão dos prosélitos: o banho de purificação. Quiçá porque sedirigia sobretudo aos circuncisos, que pelo fato de serem presunço

sos por causa da santidade de filhos de Abraão de tal modo a perdiam. Era necessário então purificá-los de novo pelo batismo, pois acircuncisão, pelo fato de ser o sinal da descendência de Abraão, não

 bastava para pô-los ao abrigo “da ira vindoura” (Mt 3.7). Por isso,seu batismo tomava um alcance parecido ao da circuncisão. Converteria-se em um ato divino de admissão, de agregação ao “rema

nescente” do povo de Deus que esperava, pelo arrependimento, ocumprimento das promessas. Nesse sentido, o batismo de João pre

83 Cf. m ais atrás na p. 163.84 Po rém não da circuncisão. Cf. m ais adiante, pp. 169 s.

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166 O s c a r   C u l l m a n n

 parava também o da Igreja. O que caracteriza, com efeito, o batismocristão é que a purificação e a admissão não acontecem, como para

os prosélitos judeus, por meio de dois atos distintos - circuncisão e batismo - mas antes de um só: o batismo. Este o toma “santo”, nosentido neo-testamentário deste termo, ao permitir, por sua vez, porum só e mesmo ato, ter parte na morte expiatória de Cristo, ser

 purificado e ser introduzido pelo Espírito Santo na comunhão dos“santos”, chegar a ser membro da Igreja. Tal como o batismo de

João, porém completando-o, o batismo cristão reconhece em si mesmo o que os dois atos judaico, da circuncisão e do banho de purificação, conferiam.

O que foi exposto até aqui dá uma grande probabilidade àhipótese formulada por J. Jeremias.85Este pensa que a afirmação dePaulo em 1 Co 7.14 - isto é, que as crianças que nascem na Igreja

estão dispensadas do batismo porque seu nascimento já as toma “santas” - não podia ser a última palavra do cristianismo primitivo a esterespeito. Os cristãos não podiam permanecer nesta dispensa do batismo conforme a prática judaica em relação às crianças dos antigos

 prosélitos. Com efeito, o batismo não era a realização só do banho de purificação judaico, mas também o da circuncisão enquanto sinal de

admissão no povo de Deus. Assim como o judaísmo não batizava aosfilhos já “santos” dos prosélitos, porém os circuncidava, igualmente aIgreja devia selar as crianças “santas” de nascimento pelo batismo, aCKppayç neo-testamentária que realiza a da antiga aliança.

O batismo cristão preparado pelo de João recolheu, assim, da prática de admissão do judaísmo, o ato exterior do banho de purifica

ção dos prosélitos. Porém, para a igreja este não é como para o judaísmo, um ato complementar para purificar antigos pagãos quejáhaviam recebido a circuncisão. É único porque assume a significação do batismo dos prosélitos e a da circuncisão, pois santifica eincorpora ao povo de Deus os que o recebem.

Ademais, o batismo, sendo um complemento da circuncisão, a

supera pelo fato de que não se aplica somente aos homens, mastambém às mulheres. Tem-se pretendido que por esta razão era im possível estabelecer uma analogia entre a circuncisão e o batismo.

85 J. JEREM IAS, o.  c., 24 s.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 167

Porém, este argumento não leva em conta, tão pouco, as relaçõesexistentes entre o batismo judeu dos prosélitos e a circuncisão. Pois

 já no batismo dos prosélitos, o antigo princípio de que só os homens podem ser plenamente membros do povo de Deus está, se não suprimido, em decadência. Com efeito, se as mulheres pagãs eram admitidas no batismo dos prosélitos com igual título que os homens, este

 batismo se convertia então em algo mais que um rito de purificação.Convertia-se no sinal de sua incorporação à comunidade judaica.Pois bem, ao substituir e realizar por sua vez o batismo dos prosélitose a circuncisão enquanto ato de admissão, o batismo da Igreja primitiva suprime assim toda diferença entre o homem e a mulher. Istoestá intimamente ligado ao fato de que o Espírito Santo, pelo qual osque são batizados no nome de Cristo se convertem em membros deseu corpo, já não concede um lugar preeminente ao homem (cf. At2.17 s.). Por isso Paulo, tendo em vista o batismo, pode afirmar que

 já não há “nem homem nem mulher” (G13.28). Não se pode portantodeduzir do batismo das mulheres que não existe nenhum vínculo entre a circuncisão dos meninos e o batismo de crianças, aplicando acircuncisão somente às crianças masculinas.

Comprovamos ademais que no Novo Testamento a fé  desem penha na circuncisão o mesmo papel que no batismo86. A este res peito as explicações paulinas de Rm 4, são muito instrutivas, poistratam precisamente da relação entre a circuncisão e a fé. Desde ocomeço desse capítulo, o que se disse da circuncisão é inseparáveldo que se disse da fé. Paulo sublinha que Abraão recebeu o selo dacircuncisão depois de ter crido, porém, isso não quer dizer que osdescendentes do patriarca teriam assim de crer antes de serem cir-cuncidados. O apóstolo sabe perfeitamente que se circuncidava osrecém-nascidos e que, por conseguinte, estes não podiam crer senão depois da circuncisão. Porém, não tem intenção de criticar o costume. Abraão, o pai dos crentes, creu na promessa divina antes dainstituição desta CKppayç, a fim de que se saiba que ela é dirigidaaos crentes. Como Abraão creu na promessa de Deus, igualmenteseus descendentes devem crer no selo que lhe tinha sido dado eque sela a estes também. Todavia, não se requer que sua fé prece

86 Cf. o parág rafo anterior.

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168 O s c a r   C  u l l m a n n

da o momento de sua circuncisão. O “selo” significa para estesexatamente o que a mesma promessa divina significava paraAbraão. Quando se pensa na clara relação estabelecida por Pauk)entre a fé e a circuncisão, parece-nos obrigatório considerar amaneira segundo a qual o Novo Testamento compreende a circuncisão como um argumento em favor do batismo cristão de crianças.

Para Paulo, a fé de Abraão é a fé no milagre da ressurreiçãoque fez nascer a vida da própria morte, pois o patriarca crê na promessa de um filho que lhe seria dado apesar de sua idade avançada e a desua mulher (Rm 4.17 s.). Segundo Rm 4, a circuncisão é o selo da féde Abraão na ressurreição. Apesar disso, se submete a ela os recém-nascidos que não poderão crer senão depois de havê-la recebido.

Da mesma forma que para o batismo não se pode deduzir quea fé seja aqui compreendida, antes de tudo, como uma resposta, ainda que para os prosélitos adultos - e pela mesma razão para os

 batizados cristãos que vêm do paganismo - já deva preceder a circuncisão, é necessário ainda que a fé suporte, depois da circuncisão,a prova da vida. Deste modo, nos introduzimos nas críticas que o

 Novo Testamento dirige à circuncisão, ou antes ao abuso dela.É necessário distinguir entre o abuso da circuncisão no seio do

 judaísmo pré-cristão e a tentativa judaico-cristã de manter ou deimpor a circuncisão como um sacramento da Igreja cristã.O que Paulo censura ao judaísmo da circuncisão não concer

ne ao fato de que foi praticada nos recém-nascidos. Pois o que Paulodeclara é que a vida dos circuncidados desmentia a graça que lheshavia sido dada no momento de sua admissão na aliança de Deus.

O que se expressa em Rm 2.25 s., corresponde à sua exposiçãosobre o batismo de Rm 6.1 s. e de 1 Co 10.1 s., de onde podemosdeduzir que, ao escrever estas passagens, pensava também no batismo cristão, ainda que não fale dele explicitamente.

Paulo ensina que a circuncisão não deve ser considerada demaneira mágica e que não tem, por outro íado, direito “de descan

sar” sobre a lei (Rm 2.17). Deve-se viver de maneira digna do domrecebido, se se quer que a circuncisão seja útil (• «peÀei* *Rtn 2.25).87

87 João 7.23, também con sidera a c ircuncisão de m an eira positiva. Cf. mais atrás na p. 157, no ta 72.

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Como no batismo cristão, ele distingue aqui o ato do sacramento daresposta que deve segui-lo. Lendo este capítulo, recordar-se-á cons

tantemente a maneira como o apóstolo fala do batismo no indicativoe no imperativo em Rm 6.1 s.; assim como o texto de 1 Co 10.1 s.,onde se diz que o batismo, se é desmentido pela vida do batizado, não

 pode impedir que a cólera de Deus caia sobre ele. Quando K. Barthdisse que, segundo Rm 4, já desde antes da vinda do messias asucessão dos que haviam crido na promessa feita a Abraão não era

idêntica à dos circuncisos88, era preciso responder-lhe, além do quetemos visto até aqui, que uma comprovação análoga poderia ser feita a respeito do batismo: a sucessão dos crentes não é idêntica à dos batizados, posto que o que é decisivo é a maneira segundo a qual o batizado responde à graça que lhe tem sido dada. Não é por causada circuncisão, mas por causa dos circuncisos que “crentes” não

eqüivale a “circuncisos”. Abraão, segundo o conselho da predestinação de Deus, se tornou também pai dos incircuncisos. Por causa daconduta dos circuncisos, a circuncisão - segundo a ótima interpretação de Ef 2.11 feita por H. Sahlin89 - não é automaticamente o limiteque separa os que são dos que não são descendentes de Abraão.

Por outro lado, igualmente no seio do judaísmo, se criticava

com justiça uma noção de circuncisão que reduzia seus efeitossomente à operação feita pelas mãos do homem. Por isso Jeremiasfala de uma “circuncisão do coração” (Jr 9.25 s.). E Paulo se referea esta crítica quando, em Rm 2.29, opõe a TtepiTojJ* aap* **à7iepuo(J,* •rriç • «p5*ecç que tem a Deus por autor e à qual ohomem deve responder. A passagem de Cl 2.11 pressupõe também

esta crítica, pois fala indiretamente de uma circuncisão “feita pelasmãos do homem”. F.- J. Leenhardt90 trata de minimizar aqui a ligação clara entre a circuncisão e o batismo. Pretende que, segundoeste texto, Paulo não veria na circuncisão mais que um ato exterior,feito por homens, enquanto que o batismo seria o despojamento doser carnal no sentido de uma realidade espiritual. É preciso respon

der que Paulo - como é possível que também Pedro (1 Pe 3.21) -

88 K. BAR TH, o. c.,  31.89 Veja mais atrás na p. 159, nota 74.90 F.-J. LEENHARDT, o. c.,  67.

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170 O s c a r   C v l l m a n n

conhece também a existência de uma falsa noção de batismo, daqual pode dizer que só foi realizada por um homem para purificarcom água as manchas físicas. O que importa em uma e outra não é

o ato exterior. Por isso, não se poderia opor neste sentido o batismoespiritual   à circuncisão  carnal.

Em Cl 2.11, Paulo se refere a uma falsa interpretação da circuncisão. Dirige-se àqueles que, depois da instituição do batismo cristão, querem impor a circuncisão aos cristãos. Deste modo, nos situamos na crítica do apóstolo quanto a sobrevivência da circuncisão na

Igreja cristã. Uma vez que a aliança pactuada com Abraão comvistas à Cristo encontrou sua realização no Calvário, e que se entrenesta aliança pelo batismo, a circuncisão, enquanto ato de admissão,

 perdeu sua razão de ser. Está realizada na “circuncisão de Cristo”(Cl 2.11). Pelo batismo se dá, no que se sucede, a admissão na aliança da graça de Deus e, ao mesmo tempo, a purificação do batizado

de todo o peso de seu pecado, pela participação na morte e ressurreição de Cristo. Não seria só insensato, mas blasfemo, continuar

 praticando a circuncisão da antiga aliança. Seria lutar contra o planode Deus, negar o desenvolvimento da história da salvação, esquecerque Cristo morreu e ressuscitou. A circuncisão, então, deixaria detender em direção a Cristo. Destacaria-se do plano da salvação de

Deus, já não selaria a fé de Abraão em uma posteridade crente, pois,arrancada de tudo o que dava seu sentido, seria rebaixada ao nívelde um rito exterior, de um sinal racial. Por isso, Paulo disse tambémaos judeus “que já não deviam circuncidar seus filhos” (At 21.21).Porque agora que o batismo na morte de Cristo constitui para todos oshomens o sinal de sua incorporação à Igreja cristã, a prática da circunci

são deixa de ser um ato de Deus. Já não pode ser, com efeito, mais queum ato externo feito pelas mãos do homem (Cl 2.11; Ef 2.11). Paulo pode igualmente compará-la às mutilações que se fazem aos adeptos decertos cultos pagãos (G15.12).

Compreende-se deste modo a severidade extraordinária doapóstolo em relação à circuncisão apesar de ter dito, colocando-se

no terreno do judaísmo de antes de Jesus Cristo, que ela era útil(• epeÀ£l* ?Rm 2.25). Depois do batismo geral realizado por Cristo nacruz, e agora que depois do pentecostes o batismo é oferecido atodos, os que exigem e praticam, todavia, a circuncisão agem como

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 171

se Cristo tivesse morrido em vão (G1 2.21; 5.2 s.). Pois bem, se acircuncisão é abolida, para se entrar na nova aliança existe o batismona morte e ressurreição de Cristo, e, por conseguinte, o batismo nãoé o dom de uma graça radicalmente nova, mas o cumprimento dacircuncisão, estes dois selos não podem implicar elementos essencialmente diferentes um do outro. A continuidade de um e de outro,segundo Rm 4, é precisamente a fé. Os descendentes de Abraão,

 seus descendentes naturais tanto como os prosélitos,  são todoschamados, antes ou depois da vinda do messias, à uma mesma fé no

 poder divino da ressurreição. Devem sua existência de crentes àquelafé de Abraãp no milagre de Deus que pode suscitar-lhe, ainda sem aa* pç, uma posteridade (Rm 4.19; G14.21 s.). Posteridade que nascerá, se for preciso, “destas pedras” (Mt 3.9; Lc 3.8; recordandouma passagem que tem seu lugar nesse contexto). Temos aqui porque o lugar ocupado pela fé permanece o mesmo. Como Abraão

respondeu pela fé à promessa de Deus, igualmente todos os descendentes devem responder pela fé à graça divina que lhes foi dada semsua cooperação, soberanamente, no momento em que, seja pela circuncisão, seja pelo batismo, Deus lhes colocou no lugar escolhido

 por Ele para serem o povo de sua aliança.

 5. Conclusão

O Novo Testamento atesta indubitavelmente batismos de judeus e de pagãos adultos que se converteram a Cristo. A prática do batismo de crianças, pelo contrário, é atestada, no máximo, indiretamente por alguns indícios. O batismo de crianças é, todavia, perfeita

mente compatível com a doutrina do batismo ensinada pela Escritura.1. Por sua morte e ressurreição, e independentemente doshomens, Cristo realizou para todos um batismo geral.

2. Pelo ato totalmente soberano do batismo eclesiástico, Deuscoloca o batizado na comunidade cristã, o agrega ao corpo de Cristo, fazendo-o participar de maneira especial no acontecimento redentorúnico realizado na cruz.

3. A fé não é decisiva senão enquanto  resposta humana àquela graça de Deus.

4. Em sua essência, o batismo é cumprimento  da circuncisão  judaica  e do  batismo dos prosélitos.

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172 O s c a r   C u l l m a n n

Segundo estas conclusões, seria necessário reconhecer tantoo caráter do batismo de adultos como o de crianças. A este resultadoglobal é ao que pensamos chegar quando começamos nosso estudo.Porém, agora devemos propor uma restrição: os batismos de adultos,cujos pais já fossem cristãos  crentes91 no momento de seu nascimento, não são mencionados em nenhum lugar do Novo Testamento. Diferir o batismo até a idade adulta é, nesse caso, incompatívelcom a noção neo-testamentária. Para o Novo Testamento, é o nasci

mento natural o que conta, e não a decisão pessoal da fé, como nocaso dos judeus ou dos pagãos adultos convertidos: nascimento natural que constitui o sinal pelo qual Deus mostra à Igreja que quersantificar um novo membro e agregá-lo ao corpo de Cristo.

6. Apêndice: Os indícios de uma antiga fórmula batismal no Novo 

Testamento

Em At 8.36-37, encontramos o ritual mais antigo do batismo cristão. Como nas outras passagens neo-testamentárias que referem relatos do batismo, e por causa da situação em que se encontrava a Igrejano próprio começo de sua existência, trata-se do batismo de um adulto.

Advertimos a razão pela qual, nesse caso, a confissão de fé deve preceder o sacramento.92 Não há nenhuma razão para que o versículo 37

 passe por uma interpolação tardia, ainda que só o ateste o texto “ocidental” e que seja desde então que passou ao texto de Antioquia.

Para responder à pergunta do eunuco (“... há água. Que meimpede de ser batizado?” v. 36) Felipe lhe diz: “Se crês de todo o

coração, é lícito (que sejas batizado)”. E o eunuco responde: “Creioque Jesus Cristo é o Filho de Deus”. A brevidade desta última fórmula remete-nos aos tempos mais antigos da Igreja, pois foi precisamente com vista às confissões batismais que se iniciou o desenvolvimento da confissão de fé cristã até dar-lhe uma formulaçãotrinitária. Era necessário, com efeito, mencionar o Espírito conferido

91 Insistimo s a propó sito na palav ra “c rentes” . Se os pais, ainda que batizados, nãocrêem, o caso é diferente. O Novo Testamento, então, não justifica somente, masexige  o adiamento do batismo até à idade adulta.

92 Cf. m ais atrás nas pp. 153 s.

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 pelo batismo93. Se o versículo 37 for verdadeiramente uma interpretação introduzida no texto sob a influência da prática batismal ulterior,

não teríamos essa confissão breve que atesta uma procedência muitoantiga e que corresponde ao que sabemos dos primeiros batismos, quando só era invocado o nome de Cristo (At 2.38; 8.16; 10.48; 19.5).

At 8.37 nos parece que também contém o ritual mais antigo do batismo neo-testamentário, pois dá a resposta litúrgica • £,£<mv à pergunta do versículo precedente, pergunta que tem igualmente, como

veremos, um caráter litúrgico.Certos relatos do batismo, referidos pelo Novo Testamento,

nos permitem seguir os vestígios daquela “pergunta” litúrgica, queera sem dúvida feita regularmente no começo das cerimônias batismais do Século I.

Estes são os textos de que se trata: três são tirados do livro

de Atos, outro do Evangelho segundo Mateus, e se pode ajuntara este último um texto análogo tirado do evangelho apócrifo dosebionitas:94

I. Atos 8.36: • (pt|CTiv ••e* roxc %oq  «So* - 8cop' x»~ <ü*íi 

(0£ PaTtna0r|* rai;II. Atos 10.47: xóxe •?ce*íti0T|

II* tpoç n* ti x* •• êwp ô* varai•eAveainqxow  rr fkx7ma0r|* •- v a i to* •touç, oixiveç x**nvei)|Li* a x* •• yiov *tax|3ov • ç

•«••pei* ç;

...E o eunuco disse: aqui temoságua. Que impede que eu seja

 batizado?Então perguntou Pedro: Porventura pode alguém impedirK 

a água, para que não sejam batizados estes que, assim comonós, receberam o Espírito San

to?

93 Cf. O. CU LLM AN N,  Les prem iè rs confe ssio ns de fo i chrétiennes,  1943.

94 Veremos que outro texto evang élico vem igualme nte ao caso, porém o citaremos

mais adiante, 177 s.

K   Traduzimos aqui, nos cinco textos, ' toX*to por “impedir”, a fim de ter, como no

grego, o mesmo verbo. Nos textos II e IV se poderia traduzir também por “recusar”,

isto é “recusar a petição de admissão de alguém”. Por outro lado, não é   possível, aonosso ver, a tradução do texto II, como se fez freqüentemente, por “recusar a água

àqueles que receberam o Espírito Santo”. Com efeito, os exemplos, Gn 23.6 e Lc

6.29, que se ci tam para justificar esta tradução não se aplicam precisamente em

nosso caso, p ois seria nec essário um com plem ento de pessoa* com • jt* ? Veja na

LXX, Gn 23.6: o* 6e*ç  y   p • pio)1 v o* *ji* ~ toX’ frei t* *jxvr|(xeT.* ovx a* ou* •• ft* *aou- *e

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174 O s c a r   C u l l m a n n

III. At 11.17: £•!)• • m x* m *otiv ôcope* r•6co* ev a* toiç • •08* ç • ç •• f i f v , 7iiaxe*oaotv ' i f T v• • ptov Irioouv Xpicrr* v, • y» *x*ç• pr|v ôuvax*%•«Av cmx* r 0eóv;

IV. Mt 3.13 s.: xóxe napayvexai ••TriCTOu* ç • ji* *c* ç r ofokosaq  •x* v Top6* vr|v Ttp* ç x* r Tco* vvr|v

xou* <pa7txto0rivai • íc’ a* t o u * • • •8* *5te* •kvev a* t •v X*ttov '* y •

xpe^ecvxwít* oou* f3oaraa0r|vai;

V EVANGELHO DOS EBIONITAS(Epifânio 30.13): ’I«>*vvr|ç7tpoo7tea* v a ’ v - te T e ^ o ^ a * *  

oou, • • pte, a* *|j.e p* nxiaov -• *5........ kvaev  a* xóv • tà.

Pois se Deus lhes concedeu omesmo dom que a nós outorgou quando cremos no SenhorJesus, quem era eu para que pudesse impedir a Deus?

Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galiléia para o Jordão,a fim de que João o batizasse.

Ele, porém, o impedia, di-zen-do: eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?

João ajoelhou-se (diante deJesus) e disse: te peço Senhor,

 batiza-me tu mesmo. Porém

(Jesus) o impediu  dizendo,etc.

O que surpreende nos textos é a regularidade com que se re pete o verbo • toÀ* etv “impedir”, quando se trata do batismo. Estaobservação, entretanto, não carece de importância e nos leva a perguntar se a questão de saber se nada se opunha a que tal ou qualfosse batizado não era, desde o século I, delineada correntementeantes da administração do batismo; até o ponto de se converter pouco a pouco em uma pergunta ritual; e se até os relatos de batismo,nos quais o verbo • eo^.* eiv se repete com uma certa regularidade,não fazem uso aqui de um termo quase litúrgico.

Assim se explicaria, em primeiro lugar, a pergunta “que impedeque eu seja batizado?” no relato de Atos 8.36, onde ao ser dita peloeunuco parece, pois, surpreendente. Com efeito, seria de se esperar 

Lc 6.29: • íc* to u * « •p o v tó ç a o u t* -pi* tio v • r "/itco’ v a 11* - eoX*o* ç (cf. BLASS-

DEBRUNNER, Grammatik des neutes tament l ichen Griechisch,   51921, e 180, 1).Esta cons trução é, po r outro lado, rara. Quando • eo vem seguindo de um infinitivo,

é o complemento de pessoa que está no acusativo (cf. BLASS-DEBRUNNER, o. c.,404, 9). O texto II pressupõe, por conseguinte, uma personificação da água (cf. W.GRIMM,  L exicon g racco -la tinum , 255:  “aquam se of ferentem”).

* Palavra, sintagma ou proposição que, em uma oração, completa o significado de um

ou de vários componentes da mesma e, inclusive, da oração inteira: complemento

direto, indireto e circunstanciai. (N. do T.)

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uma pergunta mais simples e mais direta, como esta: “Eu não possoser batizado?”96 Já os antigos se surpreenderam pela forma singulardesta pergunta. Crisóstomo vê nela uma expressão de modéstia. Cal-vino, que não aceita esta interpretação, nota que “esta interrogaçãotem mais veemência do que se o (eunuco) tivesse dito simplesmente aFelipe: Quero que me batizes”, e explica a presença estranha do verbo• eoX* etv pelas “coisas que pudessem dissuadir o (eunuco) de recebero batismo a fim de não expor-se, em absoluto, à malevolência e ao ódiodo reino e aos opróbrios de toda sua nação”.97Esta interpretação excessivamente rebuscada não poderia tão pouco nos satisfazer, e nos

 parece mais verossímil que a pergunta do eunuco reproduza uma fórmula ritual que devia ser corrente na época do autor de Atos.

A maneira como o verbo • fOA* civ é introduzido em At 10.47é, todavia, mais surpreendente, pois aqui é a água quem exerce o

 papel daquele que seria “impedido” .98 “Pode alguém impedir aágua...?” Ainda que uma personificação da água do Jordão apareçamais tarde na arte cristã da antigüidade, em representações do batismo99, é preciso reconhecer que em nosso texto é inesperada e exigeuma explicação. Segundo a situação descrita no contexto, o batismona água se impunha a si mesmo, pois os candidatos haviam já rece

 bido o batismo do Espírito, e deste modo um efeito que sucedia

 normalmente ao batismo na água estava, neste caso particular, produzido já por antecipação100. A água é considerada aqui como representando ela mesma o batismo na água aos que já receberam o Espírito.Pedro declara que não se pode recusar esta petição feita pela pró pria água. Esta personificação extraordinária da água se explica possivelmente da melhor maneira pela influência de um antigo usosegundo o qual o candidato é representado por um terceiro ao bati-

% Porém, é impo ssível traduzir assim o texto grego !••• w ^ e i com o o fez o comentaristado livro de Atos, H. W. BEYER,  Das Neue Testament Deutsch,  t. 2, 1932, 57: “Kannich nicht getauft werden?”

97 CALVINO, Commentaire sur les Actes,  ad loc.98 Trata-se d e um a personificação da água; cf. nota 95.

99 CAB ROL-LECLERC Q,  D ictionnaire d 'a rchéolog ie chrétienne e t de litu rg ie ,  artigo b ap têm e.

100 Vemos aq ui um a tentativa intere ssan te em su blinhar a ne ces sidad e do batism o naságuas e sua l igação com o bat ismo do Espír i to , em um momento que os doisameaçam consti tuírem-se em dois atos independentes: imersão e imposição dasmãos. Cf. mais atrás, página 119 s.

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176 O s c a r   C  u l l m a n n

zante que, segundo as circunstâncias, aceita ou recusa o pedido feitoem favor do candidato. Declara que nada se opõe - o* 8*v • ci- ou, antes, que haja algum impedimento.101

 No texto III (At 11.17), a situação é idêntica. Somente que jánão é a água, mas o próprio Deus quem, pelo fato de já haver concedido o Espírito aos candidatos, é considerado aquele apresenta aestes para o batismo na água. A declaração de Pedro tem aqui maisforça que no parágrafo precedente: o apóstolo não pode recusar uma

 petição feita por Deus em favor dos pagãos. Ainda que se encontre

também em outra parte, o fato de que o verbo • eoÀ* etv esteja em pregado aqui sem complemento indireto, quase como um termo técnico, é algo que devemos levar em consideração neste caso particular. O texto D julgou necessário ajuntar depois das palavras “quemera eu para poder impedir a Deus” um infinitivo: “de dar o EspíritoSanto a quem tem crido nele (xou* v* 'Sou* v a i a* tot* ç rcveu* |tia

•yiov t u c t i e* c a a iv •rfaux* • ) ’*. O autor desta variante se equivocou evidentemente sobre o sentido da frase ao traduzi-la destamaneira. Pois segundo o contexto, e sobretudo segundo At 10.47,seria preciso subentender, depois de “impedir”, precisamente outracoisa, a saber: “de conceder-lhes, por isso mesmo, a água”. A construção que o texto D apresenta não é certamente primitiva, ainda

que o diga Preuschen.102Todavia é preciso reconhecer que o emprego do verbo • eoÀ-

• eiv, sem indicação de complemento indireto, apresenta aqui quiçá uma certa anomalia: com efeito, a ação que não poderia ser impedida (o batismo na água), não é idêntica à que é mencionada anteriormente (o batismo do Espírito).103 Pelo contrário, esta omissão, um

 pouco surpreendente da construção do infinitivo depois de • eoPi* eiv,

101 E. PR E U SC H E N ,  D ie A poste lgesch ich te ,  em H. LIETZMANN (ed . ) ,  H andbuch   zum N euen Testament,   1912, 69, propõe, sem nenhuma razão objetiva, considerarT# • • êo>p com o um a interp ola çã o, e co ntinua; “D er G end ank e ist a u f jed en Falischief, da nicht das Wasser, sondem der Apostei verhindert werden soll”. Preuschenesqueceu que se trata da mesma situação de Atos 11.17. O apóstolo não é considerado

como aquele que deve ser impedido, mas como o que, em princípio, poderia impedir o batismo na água opondo seu veto.102 E. PR EU SC HEN , o. c., ad loc.103 Em outros lugares tais com o Lc 9.49; Lc 11.52; tam bém Mc 10.14 do qual falaremos,

desta página e seguintes, a situação é diferente, o infinito subentendido poderia sertirado diretamente do que precede.

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encontra uma explicação satisfatória, se considerarmos este verbocomo uma espécie de termo técnico tomado da fórmula batismal:

“que impede que fulano de tal seja batizado?” ou de uma fórmulaanáloga pela qual Mt 3.14 e o texto do evangelho dos ebionitas esta-riam influenciados.

Da confrontação dos cinco textos citados, cremos poder chegar a esta conclusão: desde o século I, todas as vezes que um convertido foi apresentado ao batismo, deveria haver informações para

a certificação de que não havia algum impedimento, isto é, se o candidato apresentava as condições requeridas.A constância com que os primeiros relatos cristãos insistiam

no arrependimento e a fé dos que receberam o batismo não permite pensar que era uma das condições essenciais e geralmente exigidasquando judeus e pagãos se convertiam.

Pois o arrependimento e a fé não eram, sem dúvida, em todasas partes as únicas exigências importantes para a administração do batismo; houve outras que variavam segundo os ambientes. Assim, parece ser que, nas comunidades judaico-cristãs, existia o contentede informar-se previamente se o candidato era judeu, e de reclamara circuncisão como condição obrigatória; por isso precisamente Pedro

reage contra este contente, em At 10 e 11. Contrariamente à prática judaico-cristã, o apóstolo responde negativamente à pergunta desaber se a incircuncisão constituía um impedimento para o batismo.

De todas as maneiras, quaisquer que tenham sido as condições impostas, uma vez reconhecido que o candidato as reunia, se pronunciava sem dúvida, antes do ato do batismo, o  nihil obstat, 

odô* v • WÂ* ct104em resposta à pergunta: x*~ eo?o)* ei„ “que há queimpeça?” (At 8.36).Outra observação se desprende todavia de nossos textos: ape

sar da regularidade com que esta pergunta parece ter sido feita,não se assinalou todavia, de maneira precisa, por quem devia sê-lo.Se nos fixarmos nas passagens citadas anteriormente, comprovare

mos que seguindo os textos I (At 8.36) e IV (Mt 3.14) é o que querser batizado que a faz ou se supõe que deve fazê-la. Segundo os

104 Em g rego profano , a expressã o O- 6* v • e A , ei tem efetivam ente esse sentido. VejaPLATÃO, Gorgias  456 D e outros.

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178 OsCAX CuLLMANN 

textos II (At 10.47) e III (At 11.17), pelo contrário, seria feita por umterceiro que desempenharia de alguma maneira as funções do padrinho (a água em II e Deus em III).

E quanto a quem deve dar a resposta, positiva ou negativa, oscinco textos parecem designar ao que preside a cerimônia do batismo, ainda que os textos II e III parecem pressupor uma consulta

 prévia dos assistentes no caso particular dos judeus-cristãos.Podemos juntar aos cinco textos tomados como ponto de parti

da, outra passagem tirada dos Evangelhos Sinópticos: Mc 10.13-16com os paralelos. Ainda que o relato, que contém também o verbo• eoÀ* ffiv “impedir”, não fale do batismo mas da benção das crianças

 pela imposição das mãos, cremos que deva ser mencionado no presente trabalho.

Com efeito, Tertuliano já colocou a discussão do batismo das

crianças em relação com esta perícope na qual Jesus pede que nãose impeça às crianças de chegarem até ele, posto que o reino deDeus lhes pertence. A maneira como Tertuliano fala mostra, por outro lado, que este relato deve ter sido invocado, anteriormente a ele,

 pelos que praticavam o batismo de crianças. Tertuliano aceita estecostume com reservas. Também reconhece o relato de Mc 10.13-16

como uma norma que permite resolver esta questão, com a condição, todavia, de que seja bem interpretada. “É certo, disse105, quenosso Senhor disse: Deixai vir a mim! Que venham, pois, porém quando tiverem mais idade: que venham, porém quando estudarem e lhesfor ensinado porque vêm!” Esta interpretação pode, com rigor, estar

 justificada quanto a Mc 10.13 e Mt 19.13 s., pois o termo 7taiô’fx,

que diz respeito às crianças, não está reservado aos recém-nascidos; porém está excluída pelo texto paralelo de Lucas que diz (3p* «pr|“crianças de peito”.106 Seja o que for, Tertuliano não acreditava

 poder negar a relação entre nosso relato e o batismo, o qual simplificou por causa da tarefa a que se propôs de reagir contra o uso do

 batismo de crianças demasiadamente novas.  Isso prova que esta 

 relação era universalmente admitida desde os primeiros tempos

105 TERTU LIA N O ,  Do batism o   18.106 Cf. J. JERE M IA S,  H at d ie âlte ste C hris te nheit die K in derta ufe g eüb tl,  27, e  M ark  

10.13-16 Parr., und die Ünbung der kindertaufe in der Kirch:  ZNTW (1940) 245.

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 do cristianismo.  Mais tarde, Calvino chamará nosso relato, em seucomentário sobre a harmonia evangélica, de um “pequeno escudo contra

os anabatistas”, e falará dele como se fosse um relato de batismo.107Ainda que estes textos sinópticos não dizem nada acerca do batismo em si mesmo, nos parece todavia que nesta aproximação,estabelecida sob outra forma também por um crítico moderno comoH. Windisch108, existe uma parte de verdade. Não pretendemos certamente que a questão do batismo de crianças tenha sido já prevista

 por Jesus. Tão pouco pretendemos que a Igreja primitiva tenhainventado o episódio de Mc 10.13-16 para justificar o batismo decrianças. Porém, cremos que a questão desta prática está delineadana época em que a tradição evangélica foi fixada, e admitimos comG. Wohlenberg109e J. Jeremias que os que transmitiram este relatoda benção das crianças quiseram recordar com isto, aos cristãos deseu tempo, um episódio da vida de Jesus em que puderam inspirar-se

 para resolver o problema do batismo de crianças. Se é assim, com preendemos perfeitamente que, sem referir-se a um batismo, esterelato foi fixado de maneira que os costumes batismais do século I serefletissem nele.

Depois destas observações, podemos citar os versículos decisivos do texto em questão, assinalando-lhes no presente trabalho

unicamente o papel de confirmar a hipótese que pensamos haversuficientemente fundado independentemente destes:

Mc 10.13-14: • a , ,npoo, epepov Então lhe trouxeram algumasa* t   • 7tai6*€C *va a**cco*v crianças para que as tocasse, mas•tpr|Xoa. o** ô** ^aGriia** os discípulos os repreendiam (aos

•rceffiriaav a* xoi* ç ‘ v §• “ • que as levavam). Jesus, porém,Mriaou* ç • f a v • xr)OEV • a ,£*»7t£v vendo isto, indignou-se e disse-a* «cot* % • ipexe x* • 7tcu5*« lhes: Deixai vir a mim os peque-•pxeaGai Ttpóç |ie, |i* •• c o n s t e   ninos, não os impeçais,  pois oa* v *xco*v y p xoto* tcov *fTX*v reino de Deus pertence precisa-• {JacnA^axov* Oeouv mente a estes (postulantes).

107 CA LV INO , Commentaires , ad loc. Cf. outros textos no artigo de J.-D. BENOIT,Calvin et le baptême des enfants:  RHPR (1937) 463.

íos h WIND ISCH,  Z im Problem der Kindertaufe im Urchriostentuni: ZNTW (1929) 119 s.109 G. W OH LENB ER G,  D as Evangelium des M arkus,  em Th. ZAHN (ed.), Kommentar  

 zum N euen Testam ent , 1910, 272.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g k u  10 À F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g ia  C r i s t ã 181

extema cuja realização terá, por conseqüência, que ninguém “impedirá” que seja batizado. Em lugar da simples pergunta ritual, haverá

uma instituição com uma organização na que os menores detalhesestarão regulamentados112.

112 Cf. sob re tudo as Categuesis  de CIRILO: PG, t. 33, col. 348 s. Provavelmente há noProcatequesis   3.5 ura resíduo de nossa fórmula. Cirilo sublinha a importância dadisposição com a qual o novo convertido entra no catecuminato. Parafraseando a

 parábola de M t 22.11 faz diz er ao noiv o: “Amigo, como entraste aqui? O porte ironão te impediu , • •Oupwp- ç o* • ••• • kvcrev?”

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IMORTALIDADE DA ALMA OU RESSURREIÇÃO DOS MORTOS?

Coloquemos a um cristão, protestante ou católico, intelectualou não, a seguinte questão: o que ensina o Novo Testamento sobre ofuturo individual do homem depois da morte? Salvo raríssimas exceções, obteremos sempre a mesma resposta: a imortalidade da alma.Todavia, esta opinião, por muito generalizada que seja, significa umdos mais perigosos mal-entendidos do cristianismo. Seria inútil querer silenciar este fato e tentar tergiversar por meio de interpretaçõesarbitrárias que violentam até mesmo o próprio texto; deveríamos,antes, falar com clareza. A concepção de morte e ressurreição, tal

como vai ser exposta nestas páginas1, está enraizada na história dasalvação. Sendo completamente determinada por esta, é incompatível com a crença grega na imortalidade da alma. Dita concepçãotalvez seja chocante para o pensamento moderno e, todavia, se nosapresenta como um dos elementos constitutivos da pregação dos

 primeiros cristãos; portanto, isto não poderia nos fazer silenciar ou

mudar para uma interpretação modernizante sem fazer com que o Novo Testamento fosse privado de sua substância.Perguntemo-nos agora: a fé dos primeiros cristãos na ressur

reição seria compatível com a concepção da imortalidade da alma? Não ensina o Novo Testamento, sobretudo o Evangelho de João, que já possuímos a vida eterna? E, não é a morte, certamente, no Novo

1Ver também O. CULLMANN,  La fo i à la résurre iction et Vesperance de la réssurection dans le Noveau Testament : ÉtudThéoloRel (1943) 3 s.; Cristo e el Tempo.  Esteia,Barcelona 1967, 205 s.; Ph. MENOUD,  Le sort des trésp assés,  1945; R. MEHL,  Der  letzte Feind , 1954.

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Testamento, o “último inimigo”? Não está concebida de uma maneira diametralmente oposta ao pensamento grego que vê nela um ami

go? Não escreve o apóstolo Paulo: “Onde está, morte, o teu aguilhão?”Este mal-entendido, de que o Novo Testamento ensina a imor

talidade da alma, se vê favorecido pelo fato de que os primeirosdiscípulos possuem a convicção de que depois da páscoa, com aressurreição corporal de Cristo, a morte perdeu todo seu terror2;desde esse momento, o Espírito Santo já fez nascer a vida da ressurreição àquele que crê. Porém, com esta afirmação, conforme o NovoTestamento, é preciso sublinhar as palavras “depois da páscoa”, eisto demonstra todo o abismo que separa a concepção primeva docristianismo da concepção grega. Todo o pensamento da Igreja primitiva está orientado em direção à história da salvação. Tudo que seafirma sobre a morte e a vida eterna depende inteiramente da fénum fato real que se desenvolveu no tempo; aqui reside a diferençaradical em relação ao pensamento grego. Como temos queridodemonstrar em nosso livro Cristo e o tempo,  esta concepção pertence à própria substância da fé dos primeiros cristãos, a uma essência que não se pode silenciar nem trocar por uma interpretaçãomoder-nizante.3

 No Novo Testamento, a morte e a vida eterna estão ligadas àhistória de Cristo. Está claro que para os primeiros cristãos a almanão é imortal em si, mas que chegou a sê-lo unicamente pela ressurreição de Jesus Cristo, “primogênito dentre os mortos”, e pela fénele. Está claro também que a morte em si não é “o amigo”; somente pela vitória que Jesus obteve sobre ela, com Sua morte e ressur

reição corporal, seu “aguilhão” foi detido, seu poder vencido. E porfim, é óbvio que a ressurreição da alma que já aconteceu não experimentou o estado de cumprimento: é preciso esperar o tempo em quenosso corpo ressuscite, e isso acontecerá no final dos tempos.

2 Jamais a Igreja primitiva pôde dizer que era natura l morrer. Esta expressão que K AR L

BARTH empregou em uma exposição impressionante sobre a concepção negativa damorte como “últ imo inimigo” (Die Kirchl iche Dogmat ik    III, 2, 1948, 776 s.) nãonos parece ter fundam ento no N ovo Testamento; ver, por exem plo, 1 Co 11.30.

3 E sta dem onstração foi a m eta real que persegu imo s em nosso livro; nossa intençãonão foi a que freqüentemente se nos têm imputado sem razão, isto é, de ter queridotratar do problema “tempo e eternidade”.

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É falso observar já no Evangelho de João uma tendência emdireção à doutrina grega da imortalidade da alma, pois ele também

liga a vida eterna à história de Cristo.4 E certo que os acentos intrínsecos desta história de Cristo estão diversamente repartidos peloslivros neo-testamentários. De todas as formas, o fundamento doutrinai é comum: a história da salvação.5Não há dúvida que devemosreconhecer uma influência grega desde o começo do cristianismonascente6; porém, tão pouco há dúvida que, durante muito tempo, asnoções gregas estão submetidas a esta visão de conjunto da históriada salvação; não pode, portanto, ser uma questão de verdadeirahelenização7, que só começará mais tarde.

A concepção bíblica da morte está fundamentada sobre umahistória da salvação, e deve diferir, por conseguinte, de maneira totalda concepção grega; nada o demonstra melhor do que confrontar amorte de Sócrates com a de Jesus, confrontação que, desde a antigüidade - com distinta intenção - foi compreendida pelos adversários do cristianismo.8

1. O último inimigo: a morte. Sócrates e Jesus

 Na impressionante descrição da morte de Sócrates que Platãodá em seu Fedom, podemos ler o que de mais sublime foi escritosobre a imortalidade da alma. A reserva, a prudência científica, oreconhecimento deliberado em toda demonstração matemática dãoa sua argumentação um valor que jamais foi superado. Conhecemos

4 N este Evang elho não estamos toda via, falando nos termo s de R. BULTM ANN , no

caminho da “desmitologização”, pois está orientado no sentido da história da salvação.5 Ver BO REICKE, Einheit l ichekeit oder verschiedene Lehrbegrif fe in der neutesta-  

mentlichen Theologie:  TheolZ 9 (1953) 40-1 s.6 Sobretudo desde que os textos de Qumran já p rovaram que o ramo do judaísm o ao qual

o cristianismo se aproxima mais está afetado pelo helenismo. Cf. O. CULLMANN,The Significance o f the Q umrân Text fo r R esearch into the B eginnings o f Christianity: JournBibliLit 74 (1955) 213 s.; cf. igualmente R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments,  1953, 361, n. 1.

7 Seria preciso falarmos antes de uma “historizaç ão” cristã (no sentido de história dasalvação) de noções gregas. Somente neste sentido, e não no sentido de R. BULTMANN, os mitos do Novo Testamento já são “desmitologizados” pelos própriosautores cristãos.

8 Cf. os textos em E. BENZ,  D er gekreuzig te Gerechte bei Pla to , im Neuen Testament  und in der alten Kirch,  1950.

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as razões que o filósofo grego alega em favor da imortalidade daalma. Nosso corpo é um invólucro exterior que, enquanto vivemos,

impede a alma de mover-se livremente e viver conforme sua próprianatureza eterna. Impõe-lhe uma lei que não é válida para ela: a almaestá encerrada no corpo como numa camisa de força, em uma prisão. A morte é a grande libertadora. Ela rompe as cadeias fazendo aalma sair da prisão do corpo e a introduz na pátria eterna. Corpo ealma são radicalmente opostos entre si e pertencem a dois mundos

distintos; a destruição do corpo não poderá coincidir com a destruição da alma, da mesma maneira que uma obra de arte não serádestruída ainda que o seja o instrumento executor dela. Ainda que as

 provas alegadas em favor da imortalidade da alma não tenham, parao próprio Sócrates, valor de prova matemática, se obtém delas omais alto grau de probabilidade; tomam a imortalidade tão provável

que constitui para o homem, empregando o termo que advertimos noFedom, um “belo risco”.Esta doutrina não foi somente ensinada por Sócrates, quando

no dia de sua morte examinava com seus discípulos os argumentosfilosóficos em favor da imortalidade da alma. Em poucos instantesele colocaria em prática o ensino compartilhado. Demonstra com

seu exemplo como, ocupando-nos das verdades eternas da filosofia,trabalhamos nesta vida pela libertação da nossa alma. Pois a filosofia nos permite sempre penetrar neste mundo eterno das idéias àqual pertence a alma, e livrá-la assim da prisão do corpo. A mortenão fará mais que terminar esta libertação. Também Platão nos mostracomo Sócrates, com absoluta serenidade, vai ao encontro da morte,

de uma bela morte. O horror está completamente ausente. Sócratesnão sabia renunciar à morte posto que ela nos livra do corpo. Todoaquele que teme à morte prova, segundo ele, que ama seu corpo eque é escravo deste mundo. A morte é a grande amiga da alma. Estegênio grego, que personifica o que há de mais nobre, morre em uma

 perfeita harmonia entre sua doutrina e sua vida.

Vejamos agora de que forma morre Jesus. No Getsêmani, sabeque a morte o espera - também Sócrates o sabe no dia da discussãocom seus discípulos. Os Evangelhos Sinópticos concordam entre si,

 grosso modo,  no relato de Getsêmani. Jesus começa a “sentir tremor e angústia” escreve Marcos (14.34). “Minha alma está triste

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até à morte”, disse aos discípulos.9 Jesus é tão completamentehomem que participa do medo natural que a morte nos inspira: deve,

como Filho do Homem e servo de Deus, prová-la mais terrivelmenteque os demais homens.10Tem medo, não como um covarde pode terdos homens que o matam nem às dores que precedem a morte, masteme à morte por ser o grande poder do mal. A morte, para ele, nãoé algo divino; é algo horrível. Não quer estar só em tal momento.Sabe que seu Pai lhe tem sempre sustentado. Apela a Ele no mo

mento decisivo como o fez ao longo de Sua vida. Apela a Ele com aangústia humana que a morte lhe inspira, a grande inimiga. É inútilquerer eliminar do relato evangélico, por qualquer classe de explicações artificiais, este medo de Jesus. Os inimigos do cristianismo, que

 já antigamente colocavam de relevo o contraste entre a morte deSócrates e a de Jesus, atinaram aqui de maneira mais certeira do que

muitos comentadores cristãos. Jesus tremia realmente diante do grande inimigo de Deus. Não há nada da serenidade de Sócrates que saiao encontro da morte. Jesus implora a Deus que lhe evite ter que

 passar pela morte. Sabe de antemão que a tarefa que lhe foi conferida é sofrer a morte e já havia dito antes: “Tenho que receber um

 batismo, e como me sinto angustiado até que se cumpra!” (Lc 12.50).Porém, agora que está diante da morte, roga ao Pai conhecendo Suaonipotência: “tudo te é possível; afasta de mim este cálice” (Mc 14.36).E quando acrescenta: “Porém não se faça o que eu quero, mas o que

9 Apesar do texto paralelo de Jn 4.9, sobre o qual chamara a atenção E. KLOSTER-MANN,  D as M arkusevengelium , 3J936, ad loc. ,  e E. LOHMEYR,  D as Evangelium  des Markus,  1937, ad loc.,  a explicação: “estou tão triste que desejaria antes morrer”, nos parece de fato improvável, nesta situação, onde Jesus sabe   que morrerá(instituição da ceia); a interpretação de J. WEISS,  D as M arkus-evangelium , 31917,ad. loc.\   “minha tristeza é tão grande que me vejo sob seus pés”, nos parece que seimpõe, sobretudo à luz de Mc 15.34. A frase (Lc 12.50): “tenho que receber um

 batism o (= a morte) e como me sinto angustiado até que se cum pra!”, su gere a mesm aexplicação sobre a nossa passagem.

w Os  antigos comentadores e alguns mais recentes como J. WELLHAUSEN,  Das evangelium Marci,  21909, ad loc.,  J. SCHN1EWIND em  N. T. D eutsch,  1934, ad loc.,  E.LOHMEYR,  D as Evangelium des M ark us,  1937, ad loc.,  buscam, em vão, escapar a

esta conseqüência que está sugerida pelas fortes expressões gregas como “tremer” e“estar em angústia”; dão explicações que não estão de acordo com a situação ondeJesus já sabe que deve sofrer pelos pecados de Seu povo (santa ceia). Em Lc 12.50, éimpossível eliminar esta angústia diante da morte e tendo em conta a frase de Jesussobre a cruz (Mc 15.34), não se pode explicar Getsêmani de outra forma que pelaangústia diante da morte, a grande inimiga de Deus.

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tu queres”, parece significar que em última análise considera a morte, à semelhança de Sócrates, como amiga libertadora. Porém, quer

dizer simplesmente: se esta coisa horrível, a morte, deve chegar amim, segundo Tua vontade, me submeto a tal coisa horrível.Jesus sabe que a morte em si mesma, como inimiga de Deus,

significa extremo distanciamento, solidão radical. Por isto roga a Deus. Na presença da grande inimiga, não quer estar só. Pois de certomodo pertence à própria essência da morte o separar-se de Deus.

Enquanto está em poder da morte não está nas mãos de Deus. Jesusqueria estar unido com Deus tão estreitamente como o estevedurante sua vida terrenal. Todavia, neste momento, não busca sim

 plesmente a companhia de Deus, mas também a de seus discípulos.Por isso, interrompe Sua prece e reúne os discípulos mais íntimos aque tratem de lutar contra o sono com a finalidade de vigiar até

quando vierem prender o mestre. Não conseguem e Jesus deve des pertar-lhes de novo. Por que Jesus quer que eles vigiem? Ele nãodeseja estar só. Não quer estar abandonado, quando a morte se lançar sobre Ele, nem sequer pelos Seus discípulos ainda que conheçasua debilidade humana. Quer estar rodeado de vida, da vida quevibra nos discípulos: “Não podeis velar uma hora comigo?”

Pode-se imaginar contraste maior que o que existe entre asmortes de Sócrates e a de Jesus? Sócrates, rodeado por seus discí pulos no dia de sua morte, como Jesus, discute com estes sobre aimortalidade com uma serenidade sublime; Jesus, que tremia jáhá horas antes da morte, roga aos discípulos que não o deixem só.A Epístola aos Hebreus que, mais que qualquer outro livro do Novo

Testamento, assinala a plena divindade (1.10), ainda que também a plena humanidade de Jesus, descreve a angústia de Jesus diante damorte com elementos todavia mais fortes que os três relatos sinópti-cos. Diz-nos que  Jesus “apresenta com muito clamor e lágrimas suas orações e súplicas àquele que podia livrá-lo” (5.7).11 Logo,segundo esta Epístola, Jesus clamou e chorou diante da morte. Temos,

 por um lado, Sócrates que, com calma e serenidade, fala da imortalidade da alma; por outro, Jesus, que clama e chora.

11 A relação com Getsêmani parece -m e fora de toda dúvida; cf. também J. HÉRING, L ”E p it re aux H ébreux , 1954, ad loc.

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Vejamos a cena da própria morte. Com calma soberana,Sócrates bebe a cícuta; Jesus, pelo contrário, grita com as palavras

do salmo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonas-te?”, emorre proferindo outro grito inarticulado (Mc 15.37). Não se trata denenhuma morte amiga do homem, mas da morte em todo o seu horror. É verdadeiramente  o último inimigo  de Deus. Assim é comoPaulo designa a morte: o último inimigo (1 Co 15.26). Aqui aparece oabismo entre o pensamento grego e a fé judaica e cristã.12Usando

outras expressões, o autor do Apocalipse considera igualmente a mortecomo o último inimigo, quando descreve como, no fim, ela é lançadano lago de fogo (20.14).

Sendo o inimigo de Deus, ela nos separa daquele que é vida ecriador de toda vida. Jesus, que está completamente unido a Deus,mais unido que nenhum outro homem havia jamais estado, deve

sofrer a morte de uma maneira mais horrorosa que ninguém. Jesusdeve provar este isolamento, esta separação - a única digna de serrealmente temida - de uma maneira infinitamente mais intensa quequalquer um, por estar tão unido a Deus. Por isso grita a Deus como salmista: “Por que me abandonas-te?” Nesse momento Ele estárealmente nas mãos da grande inimiga de Deus: a morte. É preciso

estarmos agradecidos ao evangelista por não haver atenuado a descrição em nada.Temos confrontado a morte de Sócrates com a de Jesus. Pois

nada nos mostra melhor a diferença radical entre a doutrina grega daimortalidade da alma e a fé cristã na ressurreição. Já que Jesus pas

 sou pela morte em todo seu horror, não somente em Seu corpo como

também em Sua alma (Deus meu, Deus meu, por que me desampa-ras-te?), Ele pode e deve ser para o cristianismo que vê nele oredentor, aquele que triunfa sobre a morte com a Sua própria morte.Ali onde a morte é concebida como o inimigo de Deus, não podehaver “imortalidade” sem uma obra ôntica de Cristo, sem uma histó

 ria da salvação onde a vitória sobre a morte é o centro e o fim. Jesus

12 J. LEIPOLDT ,  D er Tod bei Griechen und Juden,  1942, delineou o problema a partirde uma perspectiva falsa. A concepção grega acerca da morte é, com razão, nitidamente distinta da concepção judaica. Porém, a preocupação de Leipoldt em identificar constantemente a concepção cristã com a grega, e de separá-la da judaica,explica-se quiçá somente quando se leva em conta o ano da aparição deste livro e asérie na qual foi publicado ( Germ anentum, C hristentum u nd Jude ntum ).

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não pode conseguir esta vitória se continuar vivo em Sua alma imortale, no fundo, sem morrer. Não pode vencer a morte senão morrendo

realmente, entregando-se ao seu domínio, o domínio do nada, da separação de Deus. Quando se quer vencer a alguém se está obrigado asubmeter-se ao seu domínio. Quem quer que deseje vencer a própriamorte deve morrer; matizando ainda mais, deve deixar de viver, deve

 perder o bem mais precioso que Deus lhe outorgou: a própria vida. Poristo Marcos, ainda que apresente Jesus como o Filho de Deus, não

atenua em nada o aspecto horrível e inteiramente humano de Sua morte.Se a vida deve emanar desta morte, é necessário um novo ato 

 criador  de Deus que atraia à vida não somente uma parte dohomem, mas o homem inteiro, tudo o que Deus criou, tudo o que amorte destruiu. Para Sócrates e Platão não há necessidade de umato criador, já que, o corpo é mal e não deve continuar vivendo.

A parte que realmente deve seguir vivendo, a alma, não morre jamais. Se quisermos compreender a fé cristã na ressurreição devemos prescindir completamente da idéia grega segundo a qual amatéria o corpo são maus e deveriam ser destruídos, de maneira quea morte do corpo não significaria a destruição da verdadeira vida.Para o pensamento cristão e judeu, a morte do corpo, significa tam

 bém a destruição da vida criada por Deus; não há diferença. A vidade nosso corpo é vida verdadeira. A morte é a destruição de todavida criada por Deus. Por esta razão, é a morte e não o corpo quedeve ser vencida pela ressurreição.

Somente tendo como os primeiros cristãos horror à morte,tomando-a em toda sua seriedade, é que poderemos compreender aalegria da comunidade primitiva no dia da páscoa. Então, é possívelcompreender que toda a vida e todo o pensamento do Novo Testamento estejam dominados pela fé na ressurreição. A fé na imortalidade da alma não é uma fé num acontecimento que revolucione tudo.A imortalidade, na realidade, não é mais que uma afirmação negati

va: a alma não morre (continua vivendo). A ressurreição é uma afirmação positiva: o homem inteiro, que está realmente morto, é chamado à vida por um novo ato criador de Deus. Acontece algo inaudito:um milagre criador. Antes também havia sucedido algo estranho: umavida criada por Deus havia sido destruída.

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A morte, para a Bíblia, não é algo belo, sobretudo a morte deJesus. A morte é tal como se a representa: um esqueleto; ela espalha

 por toda terra um cheiro de decomposição. A morte de Jesus é tãotenebrosa como a pintou Grünewald; porém, precisamente por estarazão, este pintor representou ao lado, de uma maneira incomparávele única, a grande vitória, a ressurreição de Cristo, revestido de umnovo corpo, do corpo de ressurreição. Quem pintasse uma mortedoce, não saberia pintar a ressurreição. Quem não provou o horror

da morte, não pode cantar com Paulo o hino da vitória: “A morte foidestruída, vitória! Onde está, morte, a tua vitória? Onde está, morte,o teu aguilhão?” (1 Co 15.54 s.).

 2. O salário do pecado: a morte.

Corpo e alma. Carne e espírito.

O contraste entre a imortalidade grega da alma e a fé cristã sevislumbra todavia de uma maneira mais profunda quando consideramos que a fé na ressurreição pressupõe o nexo que o judaísmo esta belece entre a morte e o pecado. Por isto, a necessidade de um drama salvador se mostra mais clara. A morte não é simplesmentealgo natural, querido por Deus, como concebia o pensamento grego,mas é algo anormal e contrário à natureza, oposto à intenção divina13. O relato de Gênesis nos ensina que o fim do mundo não temcomeçado a não ser pelo pecado humano. A morte é uma maldição ea criação inteira está constrangida por esta maldição. O pecado dohomem tornou necessário toda esta série de acontecimentos relatados pela Bíblia e que nós chamamos de história da salvação. A mortesó será vencida pela expiação do pecado, já que ela é o “salário do

 pecado”. Não é somente o relato de Gênesis que faz alusão a isto;tal é a concepção de Paulo (Rm 6.23) e de todo cristianismo primitivo. Pelo fato do pecado ser contrário a Deus, sua conseqüência, a

morte, é oposta à Deus. É certo que Deus pode se servir da morte

13 Veremos que, à luz da vitória ob tida por Cristo, a morte perde u todo seu horror.Porém, seguindo o Novo Testamento, não nos atreveríamos a dizer com K. BARTHque é “natural” morrer (Die Kirchi iche Dogmat ik    III, 2, 1948, 777 s., onde nosrem ete a Ap 21 .8, à distinção de um a “segu nda morte”); ver com efe ito 1 Co 11.30.

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(1 Co 15.36; Jo 12.24), como pode se servir de Satanás. Porém, nãoé por isso que a morte é menos inimiga de Deus, já que Deus é vida,

criador da vida. Não é da vontade de Deus que haja decrepitude ecorrupção, morte e enfermidade; a enfermidade não é mais que umcaso particular da morte que atua enquanto vivemos.

Tudo o que é contrário à vida, morte e enfermidade, segundo aconcepção judaica e cristã, não provém senão do pecado humano.Temos aqui porque toda ferida de enfermidade que Jesus cura não é

somente contenção da morte, mas irrupção da vida no domino do pecado; por isso Jesus disse aos curados: teus pecados estão perdoados. Não é que a cada pecado individual corresponda uma enfermidade individual, mas que a existência da morte e da enfermidadecomo tais são conseqüência do estado dê pecado no qual se encontra toda humanidade. Toda cura é uma ressurreição parcial, umavitória parcial da vida sobre a morte. Esta é a concepção cristã. Naconcepção grega pelo contrário, a enfermidade do corpo provém dofato de que o corpo como tal é mal e está exposto à destruição. Parao cristão, uma antecipação passageira da ressurreição pode tomar-se visível até no corpo carnal.

O corpo não é mal, mas um dom do criador, o mesmo que aalma. Por esta razão, segundo Paulo, temos obrigações com o cor

 po porque Deus é o criador de todas as coisas. A concepção judaica e cristã acerca da criação exclui todo dualismo grego entre cor

 po e alma. As coisas visíveis, corporais, são criações divinas nomesmo grau que as invisíveis. Deus é o criador do meu corpo. Estenão é uma prisão para a alma mas um templo; segundo as palavrasde Paulo (1 Co 6.19), é templo do Espírito Santo. Aqui reside adiferença fun-damental. Deus também acha “bom” o corporalantes de havê-lo criado. O relato de Gênesis nos ensina expressamente. Como golpe, o pecado feriu ao homem completamente, nãosomente ao corpo, mas também à alma, e sua conseqüência, a morte,afeta ao homem por completo, corpo e alma, e não somente àhumanidade mas a toda criação. A morte é algo espantoso, pois toda a criação visível, compreendendo nosso corpo, estando agoracorrompida pelo pecado, é em si algo maravilhoso.

Antes de uma concepção pessimista da morte há uma concepção otimista da criação. De maneira contrária, onde a morte é

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considerada como libertadora, como no platonismo, o mundo visívelnão é reconhecido como criação divina, e quando os platônicos consideram o corpo como belo, não é considerado assim por si mesmo,mas enquanto permite transparecer algo da alma imortal, única realidade divina verdadeira. Para o cristão, o corpo não é apenas a som

 bra de um corpo melhor, mas a realidade que aponta para um corpo melhor. A diferença aqui não é, como para Platão, entre o que écorporal e a idéia imaterial mas entre a criação presente, corrompida

 pelo pecado, e a nova criação livre do pecado; entre o corpo corruptível e o incorruptível.

Isto nos leva a falar sobre a concepção do homem, sobre a antropologia.  A antropologia neo-testamentária não é a grega; seaproxima mais da judaica. Para os conceitos “corpo”, “alma”, “carne” e “espírito”, para não mencionar outros, os autores do Novo

Testamento se servem dos mesmos termos que os filósofos gregos.Porém, estes conceitos recebem uma significação totalmente distinta para os autores cristãos, e compreendemos equivocadamente o

 Novo Testamento quando o interpretamos segundo o sentido grego.Muitos dos mal-entendidos provém daqui.

 Não podemos oferecer aqui uma exposição detalhada da

antropologia bíblica. Junto aos artigos correspondentes no dicionárioKittel14, existem boas monografias consagradas a esta questão.15Seria preciso analisar separadamente a antropologia dos diferentes autores do Novo Testamento. Aqui só podemos mencionar alguns pontosessenciais que interessam a nossa questão, e devemos fazê-lo deuma maneira mais ou menos esquemática sem levar em conta as

matizes, que, em uma verdadeira antropologia, devem ser consideradas. Apoiamo-nos primeiramente em Paulo, pois é o único autor ondeao menos encontramos os elementos de uma antropologia, ainda quenão empregue os mesmos termos, consequentemente e com a mesma significação.16

14 Tam bém rem etemo s, supostamen te, às teologias do Novo T estamen to.15 W. G. KÜ M M EL,  D as B ild des M enschen im N euen Testa m ent,   1948, e J. A. T.ROBINSON, El Cuerpo.  Estúdio de teologia paulina. Ariel, Barcelona 1968. Cf.também os artigos antropológicos do Vocabulário bíblico.  Marova, Madrid, 1968.

16 W. GUT BRO D,  D ie p a u lin isch e A n tropolog ie ,  1934; W. G. KÜMMEL,  R òm er   7und d i e Bekebrung des Pau l us ,   1929; E. SCHWEIZER,  R õm er 1.3 f . u n d d er 

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194 O s c a r   C ü l l m a n n

O Novo Testamento também conhecia evidentemente a distinção entre corpo e alma, ou melhor, entre homem interior e exte

rior. Porém, esta distinção não significa oposição, como se o homeminterior fosse naturalmente bom e o exterior mal.17 Os dois sãoessencialmente complementares um ao outro, ambos foram criados

 bons por Deus. O homem interior sem o exterior não possui existência independente verdadeira. Tem necessidade do corpo. Tudo o maisque pode fazer e levar, à semelhança dos mortos do Antigo Testa

mento, é uma existência sombria esfumada no sheol, porém isto nãoé uma vida verdadeira. A diferença com repeito à alma grega é evidente: esta sobrevive sem o corpo e  somente  sem o corpo podealcançar seu pleno desenvolvimento. Nada disto ocorre na Bíblia.O corpo, segundo a concepção cristã, tem necessidade, por sua vez,do homem interior.

Qual é o papel da carne (a* p^) e do espírito (jtvetiiia) naantropologia cristã? Nesta questão, sobretudo, é importante que ouso profano das palavras gregas não nos leve à confusão, ainda quese encontrem no Novo Testamento em diferentes lugares e aindaque em um único autor, como por exemplo Paulo, a terminologia nãoseja completamente uniforme. Com esta reserva podemos dizer que,

segundo uma das significações paulinas, a mais característica, carnee espírito são dois poderes transcendentes ativos que, a partir fora, podem entrar no homem, porém pertencem tanto um como outro aohomem em si. A antropologia cristã, diferente da grega, está fundamentada na história da salvação.18A “carne” é o poder do pecadoque como poder da morte entrou com o pecado de Adão no homem

inteiro. Soma-se ao corpo e à alma, porém, de tal maneira, e istoé particularmente importante, que a carne está ligada substancialmente ao corpo de uma maneira mais estreita que ao homem inte

Gegensatz von Fleisch und Geis t vor und bei Paulus:   EvTh 15 (1955) 563 s.; e particularm ente o capítulo correspondente em R. BULTMANN, Theologie des Neuen  Testaments,  1953.

17 As frases de Jesus em M c 8.36, M t 6.25 e 10.28 (• ■= vida) não falam   do “valor infinito da alma imortal”, nem supõem uma apreciação superior do homem interior.Para estes textos (como também para Mc 14.38), veja W. G. KÜMMEL, o. c.,  16 s.

18 Isto é o que qu er diz er W. G. K ÜM M EL , o. c., qu and o sublinh a que no Nov oTestamento, também na teologia joanina, o hom em é sempre con siderado com o umser histórico.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 195

rior1'1, pois, antes da queda, a carne tomou posse dele. O Espírito é oantagonista da carne, porém não como uma doação antropológica; é

um poder que é dado ao homem e que lhe vem de fora. E o podercriador de Deus, a grande força vital, o elemento de ressurreição,assim como a carne é, pelo contrário, o poder da morte. Na antigaaliança, o Espírito só se manifesta fugazmente nos profetas. Depoisde Cristo, e por Sua morte, a própria morte sofreu um terrível golpe,e por Sua ressurreição este poder de vida atua em  todos  os mem

 bros da Igreja de Cristo. Segundo At 2.16: “nos últimos dias” o Espírito será derramado em  todos os homens.  Esta profecia de Joel serealiza no pentecostes.

Está força criadora apodera-se completamente do homem, dointerior e do exterior, porém, como a carne esta substancialmenteunida ao corpo nesta vida, e como não domina completamente o

homem interior, o poder de vida do Espírito já toma posse do homeminterior a partir de agora de uma maneira tão decisiva que este, comodisse Paulo (2 Co 4.16), “se renova a cada dia”. Também no corpose derrama o Espírito; se dá nisto uma certa antecipação do fim, umretrocesso momentâneo do poder mortal, no qual atua o poder devida do Espírito Santo20; daí a cura dos enfermos entre os primeiros

cristãos. Todavia, trata-se não mais do que um retrocesso, não éuma transformação definitiva do corpo mortal em corpo de ressurreição. Por isso, os que foram ressuscitados por Jesus durante Suavida, voltaram a morrer; pois não haviam recebido ainda um corpode ressurreição. Esta transformação do corpo carnal, exposto à corrupção, em corpo espiritual, só acontecerá no fim dos tempos. Então

o poder da ressurreição, que é o Espírito Santo, se derramará nocorpo totalmente, transformando-o como agora o renova, “a cadadia” o homem interior.

E importante mostrar aqui até que ponto a antropologia do Novo Testamento difere da grega. Corpo e alma são bons pois são

19 O corpo é, por assim dizer, a sede de onde a alma exerce sua influência sobre o homemde maneira total; deste modo se explica que, contrariamente a sua própria concepçãofundamental, Paulo pode chegar em alguns lugares a dizer “corpo” em vez de “carne”,ou vice-versa. Estas exceções terminológicas não alteram sua concepção de conjunto,

 para a qual a dis tinção cla ra entre “corpo” e “carne” é característi ca.20 Cf. o ca pítu lo 6, pp. 105 -116 .

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196 O s c a r   C ü l l m a n n

criados por Deus. São ambos maus enquanto estão sob o poder damorte, da carne e do pecado. Todavia, ambos podem e devem serlibertados pelo poder da vida do Espírito Santo. A libertação não con

siste em que a alma se liberta do corpo, mas, antes, em que ambosserão libertados do poder mortal da carne.21

A transformação do corpo carnal em corpo de ressurreiçãonão acontecerá a não ser no momento em que  toda  a criação sejacriada de novo pelo Espírito Santo; então a morte não existirá.A substância22 do corpo já não será carne, mas Espírito. Haverá,

segundo Paulo, um “corpo espiritual”. Esta ressurreição do corponão será mais que uma parte de toda a nova criação. “Esperamosum novo céu e uma nova terra”, diz 2 Pe 3.31. A esperança cristãnão compreende só a minha sorte individual, mas a criação inteira.Toda a criação, até a criação visível, material, foi arrastada pelo

 pecado à morte. “Por tua causa”: é a maldição. Isto o podemos ver

não somente no Gênesis, mas também em Rm 8.19 s., onde Pauloescreve que toda a criação23, desde o momento presente, esperaimpaciente por sua libertação. Esta redenção virá quando o EspíritoSanto transformar toda a matéria, quando Deus, em um novo atocriador, distante de destruir a matéria, a livrará do poder da carne, doaspecto corruptível. Então não surgirão as idéias eternas, mas os

objetos concretos que renasceram na nova substância de vida incorruptível do Espírito Santo, e entre estes nosso corpo.

21 A frase de Jesus referida p or M t 10.28: “não tem ais aos que m atam o corpo porém

não podem matar a • t>x* *’ não supõe de nenhum m odo a conce pção g reg a de um aalma que não necessitará do corpo. O que segue mostra justamente o contrário. Jesusnão continua: “temei ao que mata a • v%' v,  mas “temei àquele que pode matar • v%‘  •e corpo no inferno” . Os e xeg etas notam com razão que • w%- *não designa aqui anoção grega de alma mas que deveria ser traduzida antes por “vida”, conforme oaramaico napshsa .  Cf . , por exemplo , J . SCHNIEWIND,  D a s E vangelium nach  

 M atthãus,  1937, ad loc.;  W. G. KÜMMEL, o.  c., 17, escreve igualmente com razão:Mt 10.28 “não alude ao valor da alma imortal , mas sublinha que só Deus podedestruir, além da vida terrestre, a vida celeste”. Cf. também R. MEHL,  D er letz te  Feind,  40, n. 12.

22 Em prega m os este term o, que não é m uito feliz, po r falta de outro melhor. Porém ,

depois do que foi exposto, cremos que está claro o que quero expressar com este termo.23 A alusão a estas palavras “po r tua causa” no v. 20, exclui, por sua referência a Gen

3.17, toda qualquer outra tradução de • vpiç, como a que propôs E. BRUNNER e A.SCHLATTER: criatura enquanto homem. Cf. O. CÜLLMANN, Cristo e o Tempo, Editora Custom, pp. 144 s.

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g k l i io  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 197

Pois a ressurreição do corpo, em um novo ato criador quetransforma o universo, não pode sobrevir no momento da morteindividual de cada um, mas no fim dos tempos. Não é um “passo”

daqui de baixo para o mais além, como ocorre com a alma na crençada imortalidade. A ressurreição do corpo é um passo do século presente ao século futuro. Está ligada ao drama da salvação.

Por causa do pecado, é necessário que este drama se desenvolva no tempo. Desde que o pecado é considerado como a origemdo domínio da morte sobre a criação divina, a morte juntamente com

o pecado devem ser vencidos. Não somos capazes de fazê-lo por nossas próprias forças, não

 podemos vencer o pecado, ensina o Novo Testamento, sendo nós pecadores. Outro o fez por nós e não pôde fazê-lo senão na condição de ter-se rendido ao domínio da morte, isto é, morrendo e expiando o pecado de sorte que a morte, que é o salário do pecado, é

vencida. A fé cristã anuncia que Jesus fez isto e que ressuscitou emcorpo e alma antes de haver estado real e completamente morto.Anuncia que a partir de então atua o poder da ressurreição, o Espírito Santo. O caminho está livre! O pecado está vencido, a ressurreição e a vida triunfam sobre a morte porque a morte não era mais doque a conseqüência do pecado. Deus realizou antecipadamente o

milagre da nova criação que esperamos para o fim. De novo, criou avida, como no princípio. O milagre aconteceu em Jesus Cristo. Ressurreição não somente no sentido de um novo nascimento do homeminterior cheio do Espírito Santo, mas ressurreição do corpo. Criaçãoda nova matéria, de uma matéria incorruptível. Em nenhuma partedeste mundo há uma matéria de ressurreição nem corpo espiritual:

somente em Jesus Cristo.

 3. O primogênito dentre os mortos.

 Entre a ressurreição de Cristo e o aniquilamento da morte

Deveríamos nos dar conta do que significa para os primeiros

cristãos proclamar a grande nova de páscoa! Para compreender todoo alcance deveríamos, antes de tudo, recordar o que a morte significava para eles. Caímos na tentação de mesclar a afirmação inaudita“Cristo ressuscitou”, com a idéia grega da imortalidade da alma, e de

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198 O s c a r   C u l l m a n n

 privá-la assim de sua verdadeira substância. Cristo ressuscitou! Istosignifica: nós já entramos na nova era onde a morte está vencida

 pelo Espírito Santo, onde já não há corruptibilidade. Pois se verdadeiramente já há um corpo espiritual que substituiu o corpo carnal quehavia sido morto, é que o poder mortal já foi vencido. No fundo, oscrentes já não deveriam mais morrer, segundo a convicção dos

 primeiros cristãos, e esta era certamente sua esperança nos primeiros tempos. Porém, até agora, o fato de que os homens continuem morrendo não tem muita importância. Desde agora sua morte já não será mais um sinal do domínio absoluto da morte, mas tãosomente um sinal do último combate neste domínio. Por isso a morte já não poderá mais anular este fato tão pleno de conseqüências:existe um corpo ressuscitado.

Deveríamos tentar simplesmente compreender o que a comunidade primitiva queria dizer proclamando a Jesus Cristo “primogênito dentre os mortos” . Deveríamos tentar, sobretudo, por muito difícilque nos pareça, eliminar a questão de saber se podêmos todaviaaceitar ou não esta fé. Deveríamos renunciar igualmente a delinearmos a questão de saber se Sócrates tem razão ou se a tem o NovoTestamento. Sem isto, mesclaremos constantemente idéias estranhascom as do Novo Testamento. Em vez disso, deveríamos começarsimplesmente a escutar o que ensina o Novo Testamento. “JesusCristo, primogênito dentre os mortos!” Seu corpo, o primeiro corpode ressurreição, o primeiro corpo espiritual! Toda a vida e todo o

 pensamento dos que tinham esta convicção deveriam ser transformados radicalmente sob Sua influência. Tudo o que se sucedeu na

comunidade primitiva explica-se somente a partir daqui. O NovoTestamento é para nós um livro selado com sete selos quando nãosubentendemos por trás de cada frase esta outra: Cristo ressuci-tou24; a morte já foi vencida; existe uma nova criação.  A era da  ressurreição fo i inaugurada.

24 Inc lusive se o verdade iro m estre de jus tiça da seita de Q um ran foi ex ecutado, o quenão fo i demons t rado a t é agora com c l a reza po r nenhum t ex to , não obs t an t e ,subsistiria uma diferença capital em relação à fé da Igreja primitiva (sem falar deoutras di ferenças; cf . nosso ar t igo The s ign i fi canc e o f the Qum rân tex ts ,  etc.:JourBiSILit [1955] 213 s.): a fé na ressurreição de Jesus, que já aconteceu, não tem

 paralelo na seita.

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 199

Certamente esta era só foi inaugurada, porém o foi de maneira decisiva. Só inaugurada: pois a morte, todavia, atua. Os cristãoscontinuam morrendo. Os discípulos se dão conta disto quando os

 primeiros membros da cristandade morrem. Isto delineou um grave problema.25 Em 1 Co 11.30, o apóstolo Paulo dizia que no fundo já não deveria haver nem morte nem enfermidade. Todavia há pecado, enfermidade e morte. Porém, o Espírito Santo como podercriador já é eficaz no mundo. Atua visivelmente na comunidade dos

 primeiros cristãos nos diferentes dons que se manifestam. Chamamos a atenção em nosso livro Cristo e o Tempo  sobre o “já” cum prido e o “todavia não” concluído que é um elemento integrante do Novo Testamento.

Por conseguinte, esta tensão não é uma solução secundáriainventada fora do tempo26, como os discípulos de Albert Schweitzer

e agora também R. Bultmann27 pretendem. Esta tensão caracteriza, pelo contrário, a doutrina que o próprio Jesus deu sobre o reino deDeus. Prega a vinda do Reino no futuro e, por outro lado, proclamaque já foi realizado, pois Ele próprio, com o Espírito Santo, freia amorte curando as enfermidades, ressuscitando os mortos (Mt 21.28;Mt 1.3 s.; Lc 10.18) e antecipando assim a vitória que por sua pró

 pria morte conseguirá sobre a mesma morte. Nem Albert Schweitzer, que considera a esperança de Jesus e dos primeiros cristãosunicamente como a esperança que se realiza no futuro, nem C. H.Dodd, que fala somente de realized eschatology, nem sobretudo R.Bultmann, que dissolve a esperança dos primeiros cristãos num exis-tencialismo heideggeriano tem razão. É essencial para o pensamento

do Novo Testamento o servir-se de categorias temporais, precisamente porque a fé de que em Cristo a ressurreição já aconteceu é o

 ponto de partida da vida e do pensamento cristãos. Se admitimos que

25 Cf. Ph. H. M EN OU D,  L a m o r t d 'A n a n ia s e t de Saphira, en A u x so urces de la tradition chrétienne.  Neuchâtel, Paris, 1950. especialmente 150 s.

26 Assim , so bretudo , F. BU RI.  D as Problem der augebliebenen Parusie:  Schw. Theol.Umschau (1946) 97 s. Cf. sobre esta questão O. CÜLLMANN,  D as wabre durch die  ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem:   TheolZ 3 (1947 177 s.,428 s.

27 R. BULTM ANN ,  H is tory and esca th olo gy in th e N ew Testament:   NewTest Stud 1(19534) 5 s.

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200 O s c a r   C u l l u a n n

essa é a afirmação central da fé no Novo Testamento, a tensão cor poral entre o “já” cumprido e o “todavia não” concluído é um elemento constitutivo da fé cristã. Então a imagem de que nos servimos

em nosso livro Cristo y el tiempo deve caracterizar a situação pro posta por todo o Novo Testamento: a batalha decisiva, a que decideo resultado da guerra, já aconteceu na morte e ressurreição de Cristo; só fica por chegar o dia da vitória.

 No fundo, toda discussão teológica moderna sintetiza-se naseguinte questão: é ou não o acontecimento da páscoa o ponto de

 partida da Igreja cristã primitiva, de seu nascimento, de sua vida e deseu pensamento? Se é assim, a fé na ressurreição corporal de Cristodeve ser considerada como o próprio coração da fé cristã no NovoTestamento. O fato de que exista um corpo de ressurreição, o deCristo, determina toda concepção de tempo que os primeiros cristãos possuem. Se Cristo é “o primogênito dentre os mortos”, isto

significa também que uma distância temporal, seja qual for sua duração, separa o primogênito dos demais homens, pois eStes ainda não“nasceram da morte”. Isto significa que vivemos, segundo o NovoTestamento, em um tempo intermediário entre a ressurreição de Jesuse nossa ressurreição que não acontecerá até a chegada do fim. Istotambém significa que o poder da ressurreição, o Espírito Santo,

 já atua entre os mortos. Por esta razão, o apóstolo Paulo se serve(Rm 8.23), para designar o Espírito Santo, do mesmo termo grego:• rcap%» • primícias, que emprega em 1 Co 15.20 para designar o

 próprio Jesus ressuscitado. Deste modo já se dá uma antecipação daressurreição a partir de agora. E isto de duas maneiras: nossohomem interior já é renovado a cada dia pelo Espírito Santo (2 Co

4.16; Ef3.16). Porém, também no corpo se derramou o Espírito Santo, ainda que a carne esteja solidamente estabelecida no corpo.Ao grito desesperado de Rm 7.24: “quem me livrará deste corpomortal?”, todo o Novo Testamento responde: o Espírito Santo!

A antecipação do fim pelo Espírito Santo se torna mais visívelno pedaço de pão eucarístico dos primeiros cristãos. Ali se cumprem

os milagres visíveis do Espírito Santo. No marco dessas reuniões, oEspírito Santo tenta romper os limites da linguagem imperfeita doshomens, fato que o Novo Testamento chama de “falar línguas”. Nestaocasião, a comunidade entra em relação direta com o ressuscitado,

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não somente com sua alma, mas também com seu corpo invisível deressurreição. Por esta razão, Paulo escreve: “O pão que partimos,não é a comunhão com o corpo de Cristo?” (1 Co 10.16). Na comu

nidade fraternal, os cristãos já estão mais diretamente em contatocom o corpo ressuscitado de Cristo e por isso o apóstolo escreve, nocapítulo seguinte (11.27 s.), essa passagem curiosa que não se levoumuito em conta: se a comida do Senhor fosse compartilhada portodos os membros da comunidade de uma maneira inteiramente digna,a união com o corpo de ressurreição de Cristo atuaria desde agora

sobre nossos próprios corpos humanos, de tal maneira que desde omomento presente não haveria mais enfermidade nem morte (1 Co11.28-30). Afirmação singularmente audaz.28

Estas antecipações nos remetem à transformação do corpocarnal em corpo espiritual, que não acontecerá até a chegada domomento em que toda a criação seja novamente criada. Nesse mo

mento não haverá mais que Espírito. A matéria carnal será substituída pela matéria espiritual. Isto significa que a matéria corruptívelserá substituída pela incorruptível. Nesta afirmação é preciso atri

 buir à palavra “espiritual” o sentido grego que exclui a idéia de cor po. Não se trata de um novo céu e de uma nova terra. Esta é aesperança cristã.

A expressão de que se serve o símbolo apostólico não está,certamente, conforme o pensamento paulino: creio na ressurreiçãoda carne.29 Isto não é o que o apóstolo queria dizer. Ele crê na ressurreição do corpo, não da carne. A carne é o poder da morte quedeve ser destruído. Esta confusão entre carne e corpo teve seusurgimento em uma época onde a terminologia bíblica era mal com

 preendida, isto é, no sentido da antropologia grega. Segundo Paulo,é nosso corpo que ressuscitará no final, quando o poder de vida, oEspírito Santo, criar de novo todas as coisas, todas sem exceção.

Um corpo incorruptível! Como representaremos isto? Ou melhor, como foi representado pelos primeiros cristãos? Paulo disse em

28 É nes ta persp ectiva que deve ser co m preen dida a nova tese de F.-J. LEE NH ARD T,Ceei est mon corps.  Explication de ces paroles de Jésus-Christ. Neuchâtel, Paris,1955.

25 W. BIEDER,  A ufe rste hung des Leib es oder des F le is ches?: TheoIZ 1 (1945) 105 s.,tenta explicar esta expressão a part ir do ponto de vista da teologia bíblica e dahistória dos dogmas.

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202 O s c a r   C u l l m a n n

Fp 3.21 que Jesus transformará no final nosso corpo corruptível emum corpo semelhante ao Seu próprio de glória (ôóça); o mesmo em2 Co. 3.18: “somos transformados em sua própria imagem, de glóriaem glória” (• rc* *ô ó ^t iç  e*ç ôó^av). Esta glória (ôó^a) os primeiros cristãos a representam como uma espécie de esplendor materializado, o qual é só uma imagem imperfeita. Nossa linguagem nãotem palavras para expressá-la. Uma vez mais remetemos ao retá

 bulo de Grünewald que representa a ressurreição. Parece-nos quese aproxima muito da realidade que o apóstolo viu, falando do cor

 po espiritual.

 4. Os que dormem.

 Espírito Santo e estado intermediário dos mortos

Chegamos à nossa última questão: Em que momento esta trans

formação do corpo acontece? A respeito disto não pode haver dúvida. Todo o Novo Testamento responde: no final dos' tempos, entendendo-o verdadeiramente no sentido temporal. Porém, isto delineia o

 problema do “estado intermediário dos mortos”. Certamente, a morte já foi vencida segundo 2 Tm 1.10: “Cristo aniquilou a morte echamou à luz a vida e a incorruptibilidade”. Porém, a tensão tempo

ral sob a qual nos permitimos insistir tanto concerne precisamente aeste ponto: a morte foi vencida, porém não será destruída senão nofim: “o último inimigo que será vencido é a morte” (1 Co 15.26).É característico que em grego se use o mesmo verbo, • fxiapy et30,quando se trata da vitória decisiva que aconteceu, e quando se fazreferência à vitória final: “a morte foi lançada no lago de fogo”; e

mais adiante o autor do Apocalipse continua: “a morte não existirámais”.Isto significa que a transformação do corpo não aconteceu

imediatamente depois de cada morte individual. Aqui, sobretudo, é preciso que nos desprendamos das concepções gregas, se quisermos compreender a doutrina neo-testamentária. Nesse ponto, tam

 bém nos separamos de K. Barth quando atribui ao apóstolo Paulo a

30 Assim é que LUTER O tradu z o mesm o verbo em 2 Tm H O : “er hat ihm die Machtgen om m en” (lhe arreb atou seu poder); em 1 Co 15.26: “er wird aufge hob en” (foianiquilada).

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idéia de que a transformação do corpo carnal aconteceria para cadaum no momento de sua morte, como se os mortos estivessem fora do

tempo.31 Segundo o Novo Testamento, eles estão todavia no tempo.Sem isto, todo o problema tratado por Paulo em 1 Ts 4.13 s. não teriasentido. Nesta carta o apóstolo trata de demonstrar que, no momento do retomo de Cristo, os vivos todavia não terão precedência sobreos mortos em Cristo. Em Ap 6.10, vemos igualmente que os mortosesperam: “até quando?”, gritam os mártires que dormem sob o altar.

A parábola do homem rico, onde Lázaro é levado diretamente, antesde sua morte, ao seio de Abraão (Lc 16.22) e a palavra de Paulo aosfilipenses: “desejo morrer e estar com Cristo” (1.23) não falam deuma ressurreição corporal que se sucede imediatamente à morteindividual como se tem admitido frequentemente.32

 Nem um nem outro dos textos falam da ressurreição dos cor

 pos. Pelo contrário, servindo-se de imagens, falam do estado dos quemorrem em Cristo antes do fim, deste estado intermediário no qualse encontram também os vivos. Todas estas imagens não estão destinadas senão a explicar uma proximidade especial com respeitoa Deus e a Cristo, na qual os que morrem na fé se encontram espe

31 K. BAR TH,  D ie K irchliche D ogm atik   II, 1, 1940, 698 s.; III, 2, 1948, 524 s., 714s. E verdade que seu ponto de vista se encontra aqui muito mais matizado e se

aproxima mais da escatologia do Novo Testamento que em suas primeiras publicações,sobretudo  D ie A ufe rstehung der Toten , 1926.

32 Temos que dizer o mesmo da frase freqüentem ente discu tida de Lc 23.43: “hojeestarás comigo no paraíso”. Ainda que não seja impossível relacionar 0 " ftepov com

ooi, parece-nos todavia pouco verossímil. É necessário interpretar esse logion  à luz de Lc 16.23 e das concepções do judaísmo tardio concernentes ao “paraíso”como lugar dos bem-aventurados (STRACK-BILLERBECK, ad loc.;  P. VOLZ,  D ie  

Esch atologie der jüdisc he n Gem einde im neutestam entlichen Zeitalter,  21934, 265).O texto não fala certam ente da ressurreiçã o do corpo nem anula a esperan ça da

 parousia . Tal in terpre ta ção é ig ualm ente refu ta da por W. G. KÜM M EL, Verheissung und E rfül lung ,21953, 67. E verdade que subsiste um certo desacordo com o paulinismono sentido de que o próprio Cristo não havia ressuscitado no momento de dizer“hoje” e não podia a inda fundamentar essa “comunhão dos mor tos com Ele” .Porém, e afinal de contas, o texto sublinha o fato de que o malfeitor estará comCristo. Ph. H. MENOUD.  Le sort des trépassés,  45, assinala com razão que é necessário

compreender a resposta de Jesus em relação à suplica do malfeitor. Este pede a Jesusque se lembre dele quando “estiver em Seu Reino”; segundo a concepção messiânica

 ju d a ica , estas pala vras não podem designar senão o m om ento em que o m essiasvenha para restaurar seu reino. Jesus não responde à petição, mas dá ao malfeitormais do que ele pede: já antes, estará reunido “com ele”. Compreendida assim, estafrase se situa então, segundo sua intenção, na ordem de idéias antes mencionadas.

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204 O s c a r   C u l l m a n n

rando o fim dos tempos. Estão no “seio de Abraão”, ou antes (segundo Ap 6.9) “sob o altar”, ou “com Cristo”. Não são mais que ima

gens diferentes para ilustrar a proximidade divina. Porém, a imagemmais corrente empregada por Paulo é “os que dormem”.33 Que no Novo Testamento se conta com tal tempo intermediário tanto paraos mortos como para os vivos, é um fato difícil de se refutar. Todavia, não encontramos aqui nenhuma especulação sobre o estado dosmortos nesse tempo intermediário.34

Por conseguinte, os que morreram em Cristo participam datensão do tempo intermediário. Isto não significa somente que estesesperam. Significa ademais que para estes também a morte e a ressurreição de Jesus foram acontecimentos decisivos. Para estes tam

 bém a páscoa é a grande transformação (Mt 27.52). A nova situaçãoque a páscoa criou permite entrever ao menos um nexo possível, não

com a doutrina de Sócrates, mas com sua atitude prática de encarara morte. A morte perdeu seu terror, seu “aguilhão”: ainda que permaneça, todavia, sendo o último inimigo, já não significa na realidademais nada. Se a ressurreição de Cristo marca o grande acontecimento só para os vivos e não para os mortos, os vivos teriam umavantagem imensa sobre os mortos. Com efeito, os vivos, na qualida

de de membros da comunidade de Cristo, estão, a partirde agora, em posse do poder de ressurreição do Espírito Santo.É inconcebível que, segundo a concepção dos primeiros cristãos,nada seja mudado por Cristo em relação aos mortos no que dizrespeito ao tempo que precede o fim. Precisamente, as imagens deque se serve o Novo Testamento para designar o estado dos que

morreram em Cristo provam que a ressurreição de Cristo, esta

33 A interpretação que K. BAR TH,  D ie K irch liche D og m atik   III, 2, 778, dá a esta

expressão “dormir”, como se o termo reproduzisse somente a “impressão” que os quedormem pacificamente causam aos vivos, não pode ser defendida do ponto de vista do

 Novo Testamento. Este term o disse mais e se refe re como a palavra “repousar” em Ap

14.13, realmente ao estado no qual se encontram os mortos antes da parousia.

34 Poré m esta discrição não deve ser para nós razão su ficiente p ara sim plesm entesuprimirmos o estado intermediário como tal. Não compreendemos bem porque os

teólogos protestantes (como também K. BARTH) sentem, a respeito desta concepção,

tão grandes dúvidas, quando o Novo Testamento nos ensina o seguinte: 1) que este

estado existe, 2) que já significa comunhão com Cristo (em virtude do Espíri toSanto). De nenhum modo trata-se do purgatório.

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antecipação do fim, produz seus efeitos neste estado intermediário para os mortos e sobretudo pelo fato de que: estão junto a Cristo, como disse Paulo.

Porém é principalmente a passagem de 2 Co 5.1 -10, a que nosrefere o porque que os mortos também, ainda que não estejamrevestidos de um corpo, ainda que só “durmam”, se encontram muito

 próximos de Cristo. O apóstolo fala neste lugar da angústia naturalque ele experimenta em vista da morte que está atuando. Teme muito o que chama estado de “nudez”, que é o estado da alma, privada

do corpo. Por conseguinte, esta angústia natural de encarar a mortenão desapareceu totalmente, inclusive depois de Cristo, pois a pró

 pria morte, o último inimigo, ainda que tendo sofrido uma derrotadecisiva, não desapareceu. O apóstolo desejaria, disse ele, ser revestido do corpo espiritual, “por cima” (*íc*), sem ter que passar pelamorte. Isto é, queria estar vivo no momento do retorno de Cristo.

Uma vez mais, vemos confirmado aqui o que temos dito da atitudede Jesus diante da morte. Porém, ao mesmo tempo, comprovamosnesta passagem (2 Co 5) o que há de radicalmente novo depois daressurreição de Cristo: esse mesmo texto, ao lado da angústia natural produzida pelo estado de nudez da alma, proclama a grande certeza de estar, no que se sucede, ao lado de Cristo, sobretudo duran

 te esse estado interme-diário. Por que poderia inquietar-nos, então,o fato de que haja um estado intermediário? A certeza de estar alimais próximo de Cristo está fundamentada sobre esta outra convicção cristã, a de que nosso homem interior foi tomado pelo  Espírito Santo. Nós, os vivos, estamos de posse do Espírito Santo antes davinda de Cristo. Se verdadeiramente o Espírito Santo habita em nós,

tem transformado nosso homem interior. Apossou-se de nós. Nós sabemos que o Espírito Santo é o poder de ressurreição, o

 poder criador de Deus; por conseguinte a morte é impotente diantedele. Por isso também transformou a situação dos mortos a partir deagora, contanto que verdadeiramente morram em Cristo, isto é, em

 posse do Espírito Santo. A espantosa solidão e a separação de Deus

criadas pela morte, da qual temos falado, já não existe, pois o EspíritoSanto está presente. Por isso, o Novo Testamento assinala que osmortos em Cristo estão ao lado de Cristo, não estão abandonados!Assim compreendemos que Paulo, precisamente em 2 Co 5.1 s.,

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206 O s c a r   C ü l l m a n n

onde fala da angústia diante da nudez no estado intermediário, designe o Espírito Santo como “primícias” (• ppa(3* v).

Segundo o versículo 8 do mesmo capítulo, os mortos parecemestar inclusive mais próximos de Cristo; o “sono” parece proporcionar-lhes vantagem: “preferimos habitar fora do corpo e próximo doSenhor”. Por esta razão, o apóstolo pode escrever em Fp 1.23 que“ele deseja morrer” para estar próximo do Senhor. Por conseguinte,o homem sem o corpo  carnal , se tem o Espírito Santo, está mais

 próximo de Cristo que antes. Pois a carne, ligada a nosso corpo ter

restre, é um obstáculo ao progresso completo do Espírito Santoenquanto vivemos. O morto está livre deste obstáculo, ainda que seuestado seja todavia imperfeito, pois não tem o corpo de ressurreição.Tão pouco esta passagem dá mais precisões que as outras sobreeste estado intermediário, onde o homem interior, despojado do cor

 po carnal, porém privado, todavia, do corpo espiritual, se encontra só

com o Espírito Santo. É suficiente que o apóstolo nos assegure quena via pela qual o fim se antecipa, que é a nossa depois de termosrecebido o Espírito Santo, este estado intermediário nos aproximamais da ressurreição final.

Dá-se, por um lado, uma angústia diante do estado de nudez e, por outro, a firme segurança de que este estado, que não é mais que

um estado intermediário, passageiro, não nos poderá separar de Cristo(entre as forças que não podem nos separar do amor de Deus emCristo, se designa também a morte, Rm 8.38). Esta angústia e estasegurança estão unidas no texto de 2 Co 5, o qual confirma que osmortos participam também da tensão que caracteriza o tempo presente. Porém, a segurança predomina, pois a batalha decisiva já acon

teceu. A morte foi vencida. O homem interior, despojado de corpo,não está só; esta existência de penumbra, que era o único objeto deesperança dos judeus e que não podia ser considerada como uma“vida”, não lhe guia mais. O cristão, privado do corpo pela morte, jáfoi transformado durante sua vida pelo Espírito Santo, e já foi tomado

 pela ressurreição (Rm 6.3 s.; Jo 3.3 s.) toda vez que tenha sido realmente regenerado, já em vida, pelo Espírito Santo. O Espírito Santo éum dom que não se pode perder ao morrer. O cristão que morreutem o Espírito Santo, ainda que durma e que todavia espere semprea ressurreição do corpo, o único fato que lhe conferirá uma vida

 plena e verdadeira.

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D a s  O r i g e n s  d o   E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r is t ã 207

 Neste estado intermediário, a morte, ainda quando todaviaexista, perdeu tudo o que tinha de terrível, pois sem a presença dacarne o Espírito Santo lhes aproxima mais de Cristo, os mortos “que

morrem no Senhor a partir de agora (• t c’* pxt)”35 podem ser realmente chamados bem-aventurados, como escreve o autor do Apocalipse (14.13). O grito triunfal do apóstolo Paulo (1 Co 15.54)encontra também sua aplicação aos mortos: “Onde está, morte, tuavitória? Onde está, morte, teu aguilhão?” Por isso o apóstolo escreveaos romanos: “vivamos ou morramos, somos do Senhor” (14.8). “Quer

estejamos acordados quer dormindo, vivamos para ele” (1 Ts 5.10).Cristo é “Senhor de mortos e vivos” (Rm 14.9).

Poderíamos propor a questão de saber se, desta maneira, nãonos vemos reduzidos, em última análise, à doutrina grega da imortalidade da alma, e se o Novo Testamento não supõe, para o tempodepois da páscoa, uma continuidade do “homem interior”, do cristão

convertido, antes e depois da morte, de forma que a morte nãorepresente praticamente mais que um “passo” natural.36 Até certo

 ponto nos aproximamos da doutrina grega no sentido de que ohomem interior, transformado, vivificado pelo Espírito Santo já comanterioridade (Rm 6.3 s.), continua vivendo assim transformado, aolado de Cristo em estado de sono. Esta continuidade da vida emespírito é assinalada especialmente pelo Evangelho de João (Jo 3.36;4.14; 6.54 e outros). Aqui vislumbramos ao menos certa analogia emrelação à imortalidade da alma. Todavia, a diferença é radical: oestado dos mortos é imperfeito, de nudez, como disse Paulo, de sono,na espera da ressurreição de toda a criação, da ressurreição do cor

 po; e, por outro lado, a morte fica como inimigo que, tendo sido ven

35 N a perspectiva dc outras passagens do Novo Testamento ond e certamente

não pode significar mais que “a partir de agora” (p. e. Jo 13.19), e por causa do

sent ido excelente que dá es ta interpretação temporal , inclusive aqui preferimos

manter tembém esta tradução habitual: “a partir de agora” em relação com a expressão

• rcoQv *>• «o v t e ç , ainda quando haja argumentos a favor da propos ição de A.

DEBRUNNER, Grcimmatik des neutestamentlichen Griechisch   II, Anhang, par. 12,

que, seguindo um a sugestão de A. FRIDR ICHSEN , considera • rtapT” como a palavraática vulgar para significar “exatamente, certamente” e a relaciona com  \ “ {£ t  X "  

Jtveu* pia, o que encontraria cer to apoio na lição P47 que omite.

36 Já falam os da tentativa de K. BA RT H, que na realidade vai m uito longe, de pôr de

maneira dialética uma apreciação positiva da morte ao lado da concepção negativa.

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208 O s c a r   C ü l l m a n n

cida, ainda não foi destruída. Se os mortos, incluindo os que seencontram neste estado, vivem já perto de Cristo, isso não corres

 ponde de nenhuma maneira a sua essência, à natureza da alma, senão à conseqüência da intervenção divina atuando de fora pela morte e ressurreição de Cristo, pelo Espírito Santo que já havia ressuscitado o homem interior por Seu poder milagroso durante sua vida terrestre, antes da morte.

Resta dizer que a ressurreição dos mortos é sempre objeto de

espera, inclusive no Quarto Evangelho. É certo que, no que se sucede,é uma espera com a certeza da vitória, pois o Espírito Santo já habitano homem interior. Já não poderia surgir nenhuma dúvida: posto que jáhabita em nós, transformará também um dia nosso corpo. Pois o Espírito Santo, força da vida, penetra tudo de maneira absoluta, não conhece nenhum limite, não se detém. As seguintes palavras de Paulo

 podem ser consideradas como um verdadeiro resumo da doutrina aquiexposta:

Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitoua Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitoua Cristo Jesus dentre os mòrtos, vivifícará tambémos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita  (Rm 8.11). Esperamos o Senhor JesusCristo que transformará nosso corpo de humilhaçãoigual ao seu corpo de glória (Fp 3.21).

 Nós esperamos e os mortos esperam. E certo que o ritmo do

tempo é distinto para os mortos em relação aos vivos, e que estetempo intermediário pode ser abreviado para os mortos. Poderiaalguém nos repreender o sobrecarregar esta última observação37, do

 ponto de vista da exegese, contra a limitação estrita aos dados do Novo Testamento que nós temos imposto até agora; estamos, nãoobstante, convencidos de não abandonar as bases exegéticas deste

trabalho, enquanto a expressão “dormir”, que é a mais corrente no Novo Testamento para designar o estado intermediário, nos convidara conceber para os mortos uma coincidência distinta acerca do tempo,

37 Seguimos aqui a indicação de R. MEH L,  D er le tz te Feind,  56.

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a “dos que dormem”. Porém, isto não quer dizer que eles não seencontrem ainda no tempo, o qual confirma de novo que a fé do

 Novo Testamento na ressurreição é diferente da crença grega naimortalidade alma.

5. Conclusão

Durante suas viagens missionárias, Paulo certamente se

encontrou com gentes que não podiam aceitar sua pregação da ressurreição pela simples razão de que criam na imortalidade da alma.Por isso os gregos do Areópago de Atenas riram das palavras doapóstolo sobre a ressurreição (At 17.37). As gentes, das que Paulodisse em 1 Ts 4.13 que “não tem esperança” e das que escreve em1 Co 15.12 que não crêem que há uma ressurreição dos mortos, não

são provavelmente os epicureus, como cremos ordinariamente. Poisos que crêem na imortalidade da alma não têm a esperança da qualfala Paulo, a esperança que pressupõe a fé num milagre divino, emuma nova criação. É preciso ir mais longe e dizer que os que crêemna imortalidade da alma deverão experimentar mais dificuldades queos demais para aprovar e aceitar a pregação cristã sobre a ressur

reição. Justino38, no ano 150 da nossa era, menciona aqueles que“dizem que não há ressurreição dentre os mortos, mas que suasalmas sobem ao céu no próprio momento da morte”. Aqui o contraste está claramente expresso.

O imperador Marco Aurélio, o filósofo que junto com Sócratesforma parte das mais nobres figuras do mundo antigo, também expe

rimentou o contraste. Sabemos que sentiu grande desprezo para como cristianismo e precisamente porque a morte dos mártires cristãos,em vez de merecer o respeito deste grande estóico que esperavatambém a morte com serenidade, lhe inspirava pelo contrário grandeantipatia. A paixão com que os cristãos iam à morte lhe repugnava39.O estóico se priva desta vida sem paixão; o mártir cristão, pelo con

trário, morre com uma santa paixão por causa de Cristo, pois sabe

38  D ia l. ,  80.35 M. AURÉ LIO , Med. XI, 3. Certamente ele foi abandona ndo , cad a vez mais, a fé na

imortalidade.

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210 O s c a r   C ü l l m a n n

que está integrado no grande drama da paixão. O primeiro mártircristão, Estevão, nos demonstra como ele, que morre por Cristo, su

 pera o horror da morte de uma maneira distinta do filósofo da antigüidade: vê, disse o autor de Atos, “o céu aberto e Cristo em pé àdireita do Pai” (7.55). Vê a Cristo como vencedor da morte. Com acerteza de que a morte pela qual deve passar foi vencida por Cristoque já passou por ela, sofre o apedrejamento.

A resposta à questão que temos proposto: imortalidade da almaou ressurreição dos mortos no Novo Testamento, está clara. A doutrina do grande Sócrates, do grande Platão, é incompatível com oensino do Novo Testamento. Que sua pessoa, sua vida e sua atitudediante da morte pode e deve ser respeitada não obstante pelos cristãos, o mostraram os apologetas cristãos do seculo II, e pensamosque se poderia mostrar também inspirando-se no Novo Testamento.Sobre esta e outra questão não vamos nos ocupar aqui.40

40 Não tratam os o problem a da sorte dos ímp ios segundo o cristianism o prim itivo.Esperamos fazê- lo mais t arde em uma obra consagrada à escato logia do NovoT e s t a m e n t o .

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DUAS MEDITAÇÕES BÍBLICAS

9

1.  Meditação sobre 1 Co 1.10-13[ 

 Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que  faleis todos a mesma coisa, e que não haja entre vós divisões; antes sejais inteiramente unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer. Pois a vosso respeito, meus irmãos, fui informado, 

 pelos da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. Refiro-me ao  fato de cada um de vós dizer: “Eu sou de Paulo ”, “e eu de Apoio ”,

“e eu de Cefas ”, “e eu de Cristo Acaso Cristo está dividido? fo i Paulo crucificado em favor de vós, ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo?

Devemos verdadeiramente “ter todos a mesma linguagem”?Devemos verdadeiramente ter “uma só e única opinião”? Se tal fosse a última palavra do apóstolo, dificilmente poderíamos compreender o que disse no capítulo 12 da mesma Epístola aos Coríntios sobrea diversidade de dons do Espírito Santo, e sobretudo no v. 8, onde

Paulo distingue diferentes Àóyot: o (Ãóyoç aocp*exç), o (Ãóyoç yv* • • •gecoç),  porém atribuindo a todos ao mesmo tempo o nVEUiia. Emnossa passagem se trata do JiveDjia do batismo que nos confere oEspírito Santo, e o que embasa o batismo: Cristo crucificado.

Damo-nos conta, nas reuniões deste mesmo congresso, dadiversidade de opiniões. Estamos aqui para confrontá-las. Esta é a

sorte inevitável dos exegetas: chegar freqüentemente a resultadoscontrários àqueles de seus colegas e ter até que combate-los, pois

Meditação pronunciada no dia 27 de agosto de 1964, durante o congresso celebrado emLovaina pela Studiorum Novi Testamenti Societas.

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212 O s c a r   C ü l l m a n n

nós devemos nos concentrar sobre o próprio Âóyoç xou morupou enão sobre as opiniões humanas; devemos, e está certo, ser críticos

antes de tudo em relação as nossas próprias hipóteses, porém, pelamesma razão, é nosso dever estudar as opiniões exegéticas deoutros com espírito crítico. Por isto, temos necessidade uns dosoutros, pois um só não pode encontrar a verdade. A discussão é umdos meios que Deus pôs a nossa disposição para que penetrássemosmais no sentido de Sua Palavra.

 Necessitamos de todos os que interpretaram o Novo Testamento antes de nós e dos que o interpretam ao mesmo tempo quenós. Apesar de todos os desvios de nossa exegese e de todos osnossos erros, cremos que a interpretação da palavra divina, que já na

 própria Bíblia se desenvolve progressivamente, deve continuar evoluindo até mesmo quando as linhas desta evolução não sejam sempre

direitas curvas.A discussão é necessária; inclusive a polêmica pode ser útil,enquanto se mantenha sobre o plano objetivo da exegese e respeitea lei do amor. As grandes épocas da teologia foram as da polêmica,e o mesmo se sucede com a exegese. Deus pode servir-se, tam

 bém, de nossos erros humanos para nos conduzir por Seu Espírito à

verdade.E inevitável também que certos intérpretes que seguem osmesmos métodos e chegam a resultados análogos formem “escola”.Desde que começou a exegese bíblica, começaram também as diferentes escolas. Certos aspectos da verdade serão melhor esclarecidos quando forem examinados em comum, por grupos. Devemos

estar agradecidos a Deus por ter-nos dado certos mestres quereceberam um carisma especial.Portanto, não é  toda  escola que é condenada como tal por

estas palavras do apóstolo. Não, ele conhece muito bem o valor dadiversidade dos dons, também quando se trata de nos deixar conduzir pelo Espírito de verdade. Ele, tampouco condena as pessoas às

quais os partidos de coríntios fazem menção. Ele não combate nem aCéfas nem a Apoio. Pelo contrário, Paulo considera o teólogo Apoio,ainda que foi teologicamente muito diferente dos outros, como um5 f • oroçque conduziu os coríntios à fé (3.5); ele o considera comoum o* repyoç 0£ou* *como ele mesmo é um a* vepyoç Geot)* <3. 8).

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 213

O que ele condena é a importância excessiva dada às pessoashumanas. Pois esta leva à divisão. Quando um grupo está embasadosobre o culto às pessoas, cessa de ser um elemento legítimo na Igre

 ja de Cristo. Quando a base de uma escola teológica é o culto à pessoa, esta escola deixa de ter um lugar na comunidade de Cristo, pois, nesse caso, o fundamento único, Cristo crucificado, está ameaçado, e quando o fundamento é inseguro, o edifício corre o risco devir abaixo. O Espírito Santo, que confere a fé em Cristo crucificado,unifica os homens na diversidade. O culto à pessoa, pelo contrário,conduz aos 0%*ü|J.axa, aos *piôeç, pois destrói nosso único fundamento. Quando o posto de Cristo ou uma parte somente deste postofoi ocupado pelos homens, por nós mesmos ou por outros, a base quemantém a unidade na diversidade já não existe e surgem as divisões.Já não existe a diversidade legítima num mesmo espírito.

Desgraçadamente, as Igrejas têm obedecido e obedecem muito pouco a esta advertência do apóstolo. Freqüentemente caem nesseculto à pessoa: culto tributado a tal pregador célebre ou a tal teólogofamoso. Isto se dá também nas comunidades profanas, fora da Igre

 ja. Porém eu temo que entre nós os teólogos, o costume de designarnosso ponto de vista teológico ajuntando ao nome de tal teólogo céle

 bre o sufixo bem conhecido:  ...ista;  em inglês  ...ians;  em alemão ...ianer, seja mais freqüente que em outras comunidades, e sobretudo este costume é muito mais doentio entre nós porque pretendemosum monopólio da verdade que tanto se opõe à diversidade de dons doEspírito Santo, como ao próprio fundamento único.

Se o “partido de Cristo” existiu verdadeiramente em Corinto(sabemos que isto não é seguro e que há outras explicações), nestecaso, esse partido não está caracterizado pelo culto da pessoa. Todavia, é a mesma falsa atitude que está na base desse partido. Aindaquando se designe a si mesmo “segundo Cristo”, seu fundamentonão é Cristo, posto que ele se isola dos outros que também “invocamo mesmo nome de Cristo”. O nome de Cristo deve unir os homens

 na diversidade. Um grupo que monopoliza para si mesmo esse nomecom o intuito de se isolar é algo particularmente odioso.

A diversidade de nossas opiniões teológicas e exegéticas nãoé um mal enquanto se mantenha ancorada sobre nosso fundamentoúnico e comum: nosso batismo em nome de Cristo crucificado que

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214 O s c a r   C u l l m a n n

nos confere o mesmo Espírito Santo. Nesta carta ao coríntios, o apóstolo nos recorda, no capítulo 12, que pelo mesmo Espírito nós fomos

 batizados em um mesmo corpo. Por outro lado, a própria passagemsobre a qual estamos meditando conclui na exposição sobre a GO<p*«de Deus que não pode ser adquirida senão pelo Espírito Santo.Se verdadeiramente é o testemunho interno do Espírito Santo o quenos guia também na interpretação da Bíblia, a diversidade de nossasopiniões não poderá nos separar. O apóstolo disse desta co(p*« exatamente o que disse sobre a oração. Na oração, não somos nós quefalamos, mas o Espírito Santo. Na aocp»ex Geou^que é a verdadeirateologia, é o Espírito Santo o que sonda totalmente. Se nós nos acordarmos constantemente acerca desse fundamento comum de nossaexegese, a investigação da verdade, assim entendida, não poderános separar, apesar de nossas divergências.

Respeitemos a diversidade nesta busca. Porém, por esta mesma razão, guardemo-nos de usar  slogans  teológicos, porque estessão sempre exclusivos. Guardemo-nos de todos os elementos nefastos da psicologia das massas que não devem ter direito de cidadaniana Igreja de Cristo. O que é valido para o ecumenismo autêntico,deve ser para a diversidade de nossas opiniões. As divisões não seevitam criando uma unidade artificial à expensas da verdade, masconcentrando-nos todos sobre o fundamento de nossa fé. Pois oEspírito Santo atuará nesta concentração, e por diversos caminhos,este Espírito nos conduzirá na mesma direção.

O que realizamos, ao menos parcialmente neste congr ao confrontar em um mesmo espírito nossas diferentes opiniões,deve atribuir seus frutos não somente ao nosso trabalho teológicoindividual, mas a partir da atitude que temos ao observar as opiniões de nossos colegas quando estamos em nossa mesa de trabalho. Por isso, a primeira questão que temos de delinear, ao ler talartigo ou tal livro de um colega que difere em suas idéias das nossas, não deveria ser a que estamos sempre tentados a propor em 

 primeiro lugar e rapidamente: o que lhe posso objetar partindo deminha própria opinião ou a partir daquela da escola à qual pertenço? Esta tentação é comum a todos, inclusive a mim. Deveríamos

 antes de tudo  delinear esta outra questão: O que posso aprenderdo colega que tanto se esforça para cumprir seu trabalho de exe-

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geta na “comunhão do Espírito Santo”?  E só em segundo lugar,  odeveríamos criticar.

Creio também que deveríamos fazer um esforço especial paraque nossos estudantes renunciassem a sua tendência natural a amar - não a discussão à qual os devemos estimular - mas às divisõesteológicas  como tais, a amar os  slogans  teológicos e a polêmica

 pela polêmica e não pela verdade. Preservemo-lhes desta tentaçãoque os desvia do fundamento. Preservemo-lhes por meio de nossoexemplo renunciando a nossa vaidade natural de sábios e respeitan

do a diversidade de dons do Espírito Santo.Que a comunhão do Espírito Santo não seja uma palavra vã

 para os que são chamados a interpretar a Bíblia.

 2. Meditação sobre 1 Tes 5.19-212

 Não apagueis o Espírito, não desprezeis as profecias, julgai

 todas as coisas e retende o que é bom.

Fala-se neste texto do Espírito Santo e do exame crítico, deduas coisas que parecem excluir-se. Com efeito, não é próprio do

Espírito Santo o fato de que, onde atue, faça calar a crítica? E inversamente, não se exige à crítica, para que seja fecunda, que excluatoda atitude profética?

Pois bem, nesses versículos, o apóstolo convida a Igreja deTessalônica a unir justamente, e de maneira harmoniosa, o EspíritoSanto e a crítica. Esta chamada está dirigida à comunidade inteira.Segundo a função que cada um exerce, a relação entre profecia ecrítica se apresentará diferentemente. Seria muito instrutivo ver, porexemplo, as conseqüências desta exortação para os chefes dacomunidade, os Tipoiax* pievot mencionados no v. 12. Oxalá as autoridades eclesiásticas de todos os tempos levassem a sério essesversículos! Com efeito, acontece com freqüência que os chefes daIgreja se limitam a recorrer à crítica e à diplomacia que estes inspiram, e crêem que é um dever o enriquecer-se com os métodos “mun

2 Esta m editação foi pronu nciada na abertura da seção de 1965 da Studiorum Novi Testamenti Societas,  em Fleidelberg em 30 de agosto do mesmo ano.

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danos” de governar, sem se preocuparem de se com isto apagam ouasfixiam o Espírito. Em sentido inverso, os chefes das seitas descui

dam freqüentemente do necessário exame crítico sobre o pretextode que o Espírito tem que atuar livremente. Nas paredes de todas assalas de deliberação das autoridades eclesiásticas deveriam estarescritas estas exortações: “Não apagueis o Espírito - Examinaitodas as coisas - Conservai o que é bom”, agregando talvez estafrase de Jesus que contém uma lição parecida: “Sede prudentes como

as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10.16). Nós não somos chefes de Igreja, porém, a palavra do apóstoloestá dirigida também a nós que somos exegetas. Como doutores naIgreja, e, mais especialmente, como intérpretes do Novo Testamento, esta exortação nos toca diretamente.

Sem dúvida, no campo em que se desenvolve nosso trabalho

há setores, como os da filologia ou da crítica textual e literária, quesão explorados fazendo-se abstração de toda fé cristã e de todaintervenção notável do Espírito Santo. E necessário estarmos agradecidos a estas ciências auxiliares puramente profanas; não poderemos jamais exortá-las suficientemente a fundo. Porém, sabemos que

 para compreender o sentido dos textos neo-testamentários em toda

sua profundidade - não esqueçamos que são testemunhos de fé -temos também, como aqueles, aos quais os devemos, necessidadeda assistência do Espírito Santo. Ele nos deve conduzir a toda a verdade. Pois as chamadas ciências auxiliares e a compreensão do sentido do texto se enriquecem e se fecundam mutuamente, posto queentre elas se estabelece, como um intercâmbio permanente, a invo

cação, a epiclesis do Espírito Santo que deve presidir completamente nosso esforço exegético, inclusive ali onde não se faz uso, aparentemente, senão das ciências auxiliares profanas.

Por esta razão, não devemos deixar-nos impressionar peloemprego dos dons do Espírito, que se encontra tanto no pietismocomo no iluminismo, também no crítico, ao ponto de cair no outro

extremo e excluir o Espírito Santo de nosso trabalho. Ao contrário,queremos levar a sério a exortação do apóstolo de não “desprezar” oEspírito e de não “impedí-lo”, como o Novo Testamento disse emoutro lugar: não as impeçais, |i* ~ eí/s CT£! Esta exortação se encontra na frase sinóptica de Jesus em relação às crianças (Mt 19.14

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D a s  O r i g e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 217

 par.), e na frase pronunciada na ocasião em que um homem expulsa os demônios em nome de Jesus sem seguir os discípulos (Mc

9.39 par.), e Paulo aplica a mesma exigência, •• íoà ,»£X£,  em1 Co 14.39, diretamente às intervenções do Espírito: “Não as impe-çais!” Em um sentido análogo, ele disse aqui aos tessalonicenses:“Não os desprezeis!”

Ao explicar os textos, não queremos perder de vista a vontadede pelo menos nos integrar no ato de fé que impulsionou seus autores

a dar o testemunho que temos diante de nós nestes textos. Comrelação a nossa comunhão de trabalho, é ademais indispensável nãoesquecer que também nossos colegas, os que fizeram de uma justainterpretação do Novo Testamento tarefa de sua vida, se encontramsob a mesma assistência do Espírito Santo. Nós deveríamos pensaro mesmo, inclusive se os outros não falam ou parecem se ocupar (de

maneira um tanto quanto neutra, não diretamente comprometida) denada mais que dos problemas críticos do Novo Testamento.Justamente quando pensamos não poder compreendê-los é o

momento em que deveríamos reconhecer mutuamente que contamos com esta assistência e que sob ela queremos viver. Só se partirmos de um fundamento semelhante é que nosso trabalho e nossa

colaboração serão fecundos.Também é necessária a segunda parte da exortação: aplicaràs declarações de nossos colegas, como as nossas, nosso sentidocrítico: “pondo-o à prova completamente!” Este segundo ensino daexortação apostólica está estreitamente ligado à primeira, e é necessário que o sublinhemos. Pois de fato ali, onde o Espírito atua, os

outros espíritos que o imitam intentam também infiltrar-se; o espíritodo erro se insinua ali onde o espírito da verdade está presente. Assimse explica que o autor da primeira Epístola de João disse também:“Provai os espíritos para saber se vêm de Deus” (1 Jo 4.1), e emprega o mesmo verbo grego que Paulo: 8o* t|i* Çeiv.

Este verbo vale a pena ser examinado mais de perto. Ao* t|Lf íeiv

significa: buscar o que tem um valor provado, o que é 8ó* tjiov.Como o autor da primeira Epístola de João, Paulo dá como objetodesse So* t(J.* Çeiv a comprovação do que é a “vontade de Deus”(Rm 12.2). Para a aplicação de nossa passagem, é necessário observar que Paulo utiliza precisamente esse verbo, 8o* t|i* Çstv em vez

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218 O s c a r   C  u l l m a n n

de • p*retv por exemplo. Com efeito, enquanto • p*vetv significasimplesmente, e de uma maneira neutra, “distinguir”, o uso da lípgua,

sobretudo no Novo Testamento, teve como certo que o juízo atestado por esse verbo pressuponha sempre uma acusação. Kp*veivtenta examinar, antes de tudo, o que é negativo, o que é necessáriorecusar, e se o resultado do exame leva a um resultado positivo, é aotérmino de um processo que começou sendo desconfiado. Quantoao verbo 8o* t|i* (eiv, ao exercício do qual Paulo exorta aqui, é o

 processo oposto o que o caracteriza: busca-se  antes de tudo e coincidentemente o que é positivo, o que é a toda prova, e só assim sechega eventualmente a recusar, a • ftoSo* t|i* (eiv, os outros elementos. A diferença entre • p*veiv e 8o* t|i* (eiv parece mínima.Todavia é fundamenta] no que se refere ao que Paulo quer inculcaraqui. A prioridade do positivo sobre o negativo não carece de valor.

O apóstolo não disse: “provai tudo e recusai o que é mal”, mas demaneira positiva: “provai tudo e conservai o que é bom”. Em outrostermos, no exame crítico, no sentido de 8o* tja* (eiv, devemos antesde tudo considerar o que é bom, o que é verdadeiro e evitar o que éfalho, através da evidência do que é bom.

 Nosso dever de exegetas é evidentemente o de ser críticos, de

examinar. Não podemos ser demasiadamente críticos. Porém, odevemos ser de maneira que busquemos, em tudo o que lemos eescutamos, antes de tudo, o que é de valor a toda prova, o que ésuscetível de oferecer suas provas, e de logo criticar o resto somentea partir do que foi retído como bom. Quando lemos um artigo ou umlivro, quando escutamos uma transmissão ou uma conferência, nos

sentimos tentados, queiramos ou não, por uma certa vaidade de eruditos que nos ameaça a todos, de propor, antes de tudo, a questãoinversa: como refutar, a partir da força de minha posição, o quetenho lido ou entendido de outro? Em vez de perguntarmos em primeiro lugar: que posso eu aprender positivamente de outro, já quetambém ele se esforça por estar na verdade? Qual é o •  rxXóv  que

eu posso e devo reter com gratidão, do que ouço ou do que leio;inclusive se isto deve ser ao apreço de uma retificação ou de umabandono de minhas opiniões? Quão mais fecundas seriam nossasdiscussões e mais construtiva nossa crítica, se buscássemos no outrosempre e, antes de tudo, o •  ttkóv que queremos reter, e se somente

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em continuação, ainda que com toda franqueza e firmeza, refutássemos o que nos parece que não pode suportar a prova desta busca do

• f/.Âóv! Não se trata somente de uma cortesia exterior que facilita oscontatos. Objetivamente, se só se tratasse de uma cortesia, isto perderia seu valor. Não se trata então de cumprimentar alguém, de certa  captatio benevolentiae  para demolir em seguida tanto maisduramente àquele que nos faz frente. E completamente outra a atitu

de que o ôo* tu* Çstv exige por princípio. Não queremos renunciar a sermos críticos. Pelo contrário.Porém, só podemos ser verdadeira, severa e rigorosamente críticosna medida em que nossa crítica flua menos do processo desconfiadode • p*T£tv (apesar da etimologia) que do processo confiado de5o* tfi* Çeiv. Esse 6o* tjLt* Çeiv, com efeito, é um dom do Espírito,

um carisma. Nele se encontra o vínculo de união entre o Espírito e acrítica. Somente nesta união de Espírito e de crítica se toma possíveluma verdadeira unidade de trabalho. Pois se a refutação sistemática

 prevalece sobre a busca do que é de valor provado, ou se se exercesem união com esta busca, corremos o perigo de dar ao nosso briode sábios preeminência sobre a verdade. Se buscamos antes de tudo

o que é negativo, como refutar ao outro, estamos propensos a cairnesta tentação, tão pouco científica, de triunfar por nós mesmos. Emtroca, se praticamos frente aos outros uma crítica positiva no sentidode ôo* ?}i* Çetv, aprendemos a ser críticos em relação as nossas

 próprias posições ou declarações. Não esqueceremos então que, emnossa pessoa e também em nossa investigação, o espírito do erro

tenta insinuar-se da mesma maneira que o Espírito da verdade.Todos sabemos que um texto bíblico desperta em nós mil pensamentos, mil associações de idéias. Porém, é necessário prová-lasantes de segui-las. E devemos estar agradecidos por dispor do método histórico-crítico para esse controle. A nobreza deste método estáem que nos facilita o 5o* t|i* Çstv, o exame crítico, o pôr à prova.

Paulo escreve aos Gálatas dizendo-lhes que devemos aplicar tam bém o 5o* tft» Çetv a nossos próprios atos (6.4). Temos também odireito e o dever de começar pelo que é positivo, de começar por

 buscar aquelas nossas afirmações que suportem esta prova, e buscar portanto o que é *ukóv. A partir daí, nos é necessário evidente

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220 O s c a r   C u l l m a n n

mente saber renunciar também ao que, em nossas próprias teses ehipóteses, não suporta um exame sério. Ali onde, frente a um tercei

ro, intervém a polêmica, deve situar-se em nós a disposição em, senecessário, renunciar a tais idéias, inclusive sedutoras, que nãosuportaram o afrontamento de um ôo* m* ( e iv  prolongado, inclusive se temos dado ao conhecimento público essas idéias em conferências ou escritos, isto é, até quando essas idéias parecem, ao nossoorgulho, mais sacro-santas que o que demonstra serem as objeções

que lhes são feitas com razão. O que é de valor seguro e o que permanece em nossos próprios trabalhos, até se é pouco a partirde um ponto de vista quantitativo, se tomará muito mais fecundo emanancial de enriquecimento exegético.

Se em nossa atividade de exegetas praticamos o exame crítico de uma maneira carismática, se buscamos o “provado” e o que

é suscetível de dar mostras de seu valor, a crítica não será entrenós um fator de divisão, mas, pelo contrário, um vínculo do Espírito que nos une a todos. Pois ali onde um exercício carismático deSo* t|i* (eiv é querido e buscado por todos, o Espírito de verdade,através da comunidade de trabalho que formamos, fará avançar nossas pesquisas.

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ÍNDICE DE NOMES

A

Agostinho -179Allmen, J.-J. von -157Aretius, B. - 69

B

Bacon, W. - 56Baillet, M. - 39Baldensperger, W. -16, 78, 80Barret, C. K. - 30Barth, K. - 129, 130, 131, 133,

135, 136, 138, 140, 141, 143,

149, 151, 159, 161, 162, 168,182,189,206,201,205

Barth, M. - 98Bauer, W. - 54, 55, 56, 63,96Benoit, J.-D. - 178Benz, E. - 183

Berkouwer, G. C. - 131Bemard, J. H. - 54Beyer, C. Th. - 70, 71Beyer, H. W. - 174Bieder, W. - 199Billerbeck - 72,73,74,75,78,81,

131,159,179,200 159,81Blass, F. - 173Boll, F. - 78

Bomemann, W. - 61, 64Bomkamm, G. - 138Bousset, W. - 30, 64, 65, 72, 73,

77 e 80Brandon, S. G. F. - 57Braun, F, M. - 32Brownlee - 32Brunner, E. - 194Bultmann, R. - 16, 18,27,30, 34,

55,56, 96, 97, 121, 123, 1S3#197

Buri, F. - 196Bumey, C. F. - 32, 46, 127

Burrows - 32

C

Cabrol-Leclercq - 174Calvino - 62,69,70,174,178

Carmignac, J. - 39Cerfaux, L. - 43, 58Cirilo-180Cláudio - 64Clemen, 0.-122Congar, Y.-M. J. - 48

Constantino - 134Cowley, A. E. - 51Cumont, F. - 122

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222 O s c a r   C ü l l m a n n

D

Dahl, N. A .-102, 158Dalman, G. - 55Daniélou, J. - 13Debrunner, A. - 173, 204Del Médico, H. E .-31Dibelius, M. - 35,63,66 ,67Dietrich,A. - 122

Dobschütz, E. von - 61, 63, 64 e90

Dodd, C. H. - 197Driver, G. R. - 31Dupont-Sommer - 32

E

Elliger, K. -12Ewald: - 77

F

Filo:-9Fridrischsen, A. - 204

G

Gressmann - 72, 75, 77Grimm, W. -173Grossmann, H. - 131, 134, 147,

148,155e 164Grotius, H. - 64Grundmann, W. - 58Grünewald, M. - 188 e 199Grunkel: - 66Gutbrod, W. - 191Gaster, M. - 51Goguel,M. -49,93,103,131,148

H

Hadom, W. - 64Haefeli, E. - 51Haenchen, E. - 35, 41Hanse - 63Hamack, A. von - 56Hegel, G. W. F. - 41Heitmüller, W. - 78Hemming, N. - 69Héring, J. - 186Heydenreich - 70Hingelfeld - 64Hoskyns, E. C. - 54Howard, W. F. - 54

I

Irineu: -134

J

Jackson, F. - 19 e 35Jeremias, J. - 51, 131, 132, 149,

155 165 e 178

Johnson, S. E. - 13, 18,20,21Josefo, F. - 9, 13, 14,26, 32João Crisóstomo - 174Justino - 58,158,206

Kem, W. - 64Kittel, G. - 191Klijn, A.F. J. - 36Klostermann, E. - 184

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D a s  O r ig e n s  d o  E v a n g e l h o  à  F o r m a ç ã o  d a  T e o l o g i a  C r i s t ã 2 2 3

Koppe, J. B. - 70Kübel - 78

Kuhn, K.G. - 12, 14,21,32Kümmel, W. G. - 191, 192, 193,201

L

Loisy, A. - 58Larange, M.-J. - 54, 56Lake, K. - 19, 35Leenhardt, F.-J. - 124, 131, 134,

136,137,142,148,169,198Leipoldt, J . - 131,141,187

Lidzbarski, M. -11Lietzmann, H. - 16, 66,79, 175Lohmeyr, E. - 56, 79, 88, 185Loisy, A. - 78Loos, H. van der - 104Lutero, M. - 200

M

Marco Aurélio: - 207Mehl, R. - 181,193,206Menoud, Ph. H. - 134,181,196 e

201Merx, A. - 54Michaelis, W. - 103, 104, 123Miegge, G. -131,156Milik, J .T .-39Montgomery, J. A. - 51Mowry, L. - 23

 N

 Nero - 64, 65

 Nestle, E. - 54 Niftrik, G. C. van - 131

O

Odeberg, H .-21 ,32Õpke, A. - 131, 146Origines - 56

P

Passow - 63Platão - 177,183,184, 188e207Preiss, T. - 131, 151, 157

Preuschen, E. - 175, 176

Reicke, B. - 13, 35, 41, 183Reitzenstein, R. - 46, 122

Renan, E. - 7Rengstorff - 87, 88Robinson, J. A. T. - 32, 191Roth, C. -31

S

Schuré, E. - 9Schürer, E. - 51Schweitzer, A. - 90, 196Schweizer, E. - 191Secrétan, L. - 147

Seidelin,P.-125Simon,M.-41 ,47 , 57Sócrates-183,184,185,186,187,

188,206,207Sõderblom - 66

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224 OsCÂR CuLLMANN 

Spicq, C. - 43Spitta, F. - 80

Strack: - 73,74,75,78,131,159,164,179,200Strathmann, H. - 54Sahlin, H. -158,168Schaedelin, A. -131, 135Schaeder, H. H. - 46

Schilling, F. A. -18Schlatter, A. - 32, 194Schmidt, K. L. - 147Schniewind, J. -185, 193Schoeps, H. J. - 42, 57

TTeodoreto de Ciro - 63, 69Teodoro de Mopsuestia - 56, 63,

69Tertuliano - 177,178,180

Thomas, J. - 11Thomson, J.E. H. - 51Torm, F. - 97Torrey, C. C. - 32

Trajano - 64Trocmé, E. - 35

V

Vaux, P. de - 32Vespasiano - 54Volz,P.-71,72, 75,200

W

Weiss, J. - 78, 185Wellhausen, J. - 185Wetstein - 64

Whitby - 64Windisch, H. -146,178Wohlenberg, G. -178

Z

Zahn, Th. - 78, 178Zanchi - 69Zõckler - 78Zorell - 63

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P oucos autores protestantes do século 20 igualam-se a Cüllmann

na seriedade com que aborda os temas que dispõe-se a

tratar. P rofessor de teologia que tinha o Novo Testamento como sua

especialidade, Cüllmann sentia-se à vontade discutindo questõesdogmáticas e históricas Em Das Origens do Evangelho à Formação