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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE DÉBORA LUISE SOUZA XAVIER OS MECANISMOS COMPARATIVOS NO DISCURSO RELIGIOSO DE VIEIRA E SOR JUANA. DE COMO A COMPARAÇÃO CONFIGURA A FORÇA DISCURSIVA São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

DÉBORA LUISE SOUZA XAVIER

OS MECANISMOS COMPARATIVOS NO DISCURSO RELIGIOSO DE VIEIRA E SOR JUANA. DE COMO A COMPARAÇÃO CONFIGURA A

FORÇA DISCURSIVA

São Paulo 2012

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DÉBORA LUISE SOUZA XAVIER

OS MECANISMOS COMPARATIVOS NO DISCURSO RELIGIOSO DE VIEIRA E SOR JUANA. DE COMO A COMPARAÇÃO CONFIGURA A

FORÇA DISCURSIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª Dr ª Maria Helena de Moura Neves

São Paulo 2012

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X3m Xavier, Débora Luise Souza. Os mecanismos comparativos no discurso religioso de Vieira e Sor Juana: de como a comparação configura a força discursiva / Débora Luise Souza Xavier - 2012. 190 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012. Referências bibliográficas: f. 150-155.

1. Comparação. 2. Gramática funcional. 3. Fluidez de categorias. 4. Discurso religioso. 5. Espanhol. 6. Português. I. Título

CDD 415

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DÉBORA LUISE SOUZA XAVIER

OS MECANISMOS COMPARATIVOS NO DISCURSO RELIGIOSO DE VIEIRA E SOR JUANA. DE COMO A COMPARAÇÃO CONFIGURA A

FORÇA DISCURSIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Letras.

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________ Profª Drª Maria Helena de Moura Neves - Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________ Profª Drª Ana Lucia Trevisan

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________ Profª Drª Neide Therezinha Maia González

Universidade de São Paulo

___________________________________________________________________ Profª Drª Diana Luz Pessoa de Barros (suplente)

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________ Profª Drª Vanda Maria da Silva Elias (suplente)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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AGRADECIMENTOS

A Deus, Criador e Mestre, pelo seu amor incondicional, por sua providência, e por sempre guiar o meu caminho.

Aos meus pais, Carlos e Márcia, pelo amor, incentivo e apoio, por tantas

vezes terem se desdobrado para me ajudar nesta caminhada, e pelo exemplo de dignidade.

Aos meus irmãos, Daniel e Danilo, pessoas que me acompanharam, me

divertiram e que, muitas vezes, com amor me suportaram. À minha orientadora, Profª Drª Maria Helena de Moura Neves, pelos valiosos

ensinamentos, pela dedicação e sabedoria com que me conduziu na realização desta dissertação.

À Profª Drª Ana Lucia Trevisan e à Profª Drª Neide Therezinha Maia

González, pela disponibilidade com que acolheram este trabalho e pelas enriquecedoras contribuições na fase da qualificação.

Aos meus familiares, em especial aos meus tios Ana Lucia, Claudio, Kátia e

Simone, pelo interesse e pelo apoio. Aos meus amigos, em especial a Andressa, Carla, Paula Farina, Paola,

Paula Dellarosa, Renata e Renato, pelo carinho e pela compreensão nos momentos de ausência decorrentes da pesquisa, e a Mariana, Thalita e Vanessa, que mesmo na distância se fizeram presentes, sempre me incentivando.

Ao meu querido namorado Matheus, presente de Deus, pelo interesse e

incentivo constantes, pelo carinho tão confortante. Às minhas eternas professoras, Cláudia Ferreira, Marta Oliveira Reis,

Silvana Salino Ramos Lopes e Valdirene Zorzo-Veloso, pelo incentivo à busca pelo conhecimento desde a graduação, pelo interesse e disposição em me auxiliar, pelos saberes compartilhados no tempo em que tive o prazer de tê-las como colegas de trabalho, pelos sábios conselhos em um momento tão importante e decisivo da pesquisa.

A todos os meus alunos, minha inspiração para pesquisar.

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[…] el entendimiento humano, potencia libre y que asiente o disiente necesario a lo que juzga ser o no ser verdad (Sor Juana Inés de la Cruz)

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RESUMO

O mecanismo comparativo pode ser expresso por meio de uma ampla gama de

expedientes linguísticos, a qual extrapola o simples conjunto de relações adverbiais

entre orações. Essa diversidade de estruturas é extremamente funcional na

comunicação, dada a frequência e a intensidade com que o espírito humano

discrimina as coisas a seu redor. Assim entendido o papel de comparação na

linguagem, adota-se, neste trabalho uma proposta teórica de orientação

funcionalista, que é a que permite a avaliação dos elementos da língua vista pelas

funções da linguagem. Como propõem os pioneiros Halliday e Hasan (1976), a

comparação se faz na montagem referencial do texto, funcionando com papel

coesivo. Desse modo, seu estudo só se resolve na organização textual-discursiva,

ou seja, dentro de um aparato que integre sintaxe, semântica e pragmática. É com

esse aparato teórico-metodológico que se objetiva averiguar de que maneira os

mecanismos comparativos são ativados no discurso do padre Antônio Vieira e de

Sor Juana Inés de la Cruz, em dois textos correlatos e de alto grau argumentativo:

os Sermões do Mandato de 1643 e de 1650 e a Carta Atenagórica de 1690. Uma

vez que esta pesquisa tem como objeto de análise textos de língua portuguesa e da

língua espanhola, o estudo se dirige a uma caracterização das estruturas

comparativas específicas dessas duas línguas, funcionalmente avaliadas. Também

são estudadas questões relativas à contextualização dos textos selecionados. Desse

modo, apresentam-se considerações sobre a retórica, o discurso religioso, o gênero

sermão, o tipo textual dissertação, o movimento barroco, a vida e a obra dos autores

e as oposições implicadas nos textos correlatos. O objetivo do trabalho é verificar

como se estruturam as comparações nos discursos em questão e em que termos

elas manifestam os contrastes entre a finalidade, as ideias, e os artifícios retóricos

de cada texto e de cada autor.

Palavras-chave: comparação, gramática funcional, fluidez de categorias, discurso

religioso, espanhol, português.

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RESUMEN

El mecanismo comparativo puede expresarse por medio de una amplia gama de

expedientes lingüísticos, la cual sobrepasa el simple conjunto de las relaciones

adverbiales entre oraciones. Esa diversidad de estructuras es extremamente

funcional en la comunicación, dada la frecuencia y la intensidad con que el espíritu

humano discrimina las cosas a su alrededor. Así entendido el papel de comparación

en el lenguaje, este trabajo adopta una propuesta teórica de orientación

funcionalista, que es la que permite la evaluación de los elementos de la lengua vista

por las funciones del lenguaje. Como proponen los pioneros Halliday e Hasan

(1976), la comparación se hace en el montaje referencial del texto, funcionando con

papel cohesivo. De ese modo, su estudio solo se resuelve en la organización textual-

discursiva, es decir, dentro de un aparato que integre sintaxis, semántica y

pragmática. Con ese aparato teórico-metodológico se objetiva averiguar de qué

manera los mecanismos comparativos se activan en el discurso del padre Antônio

Vieira y de Sor Juana Inés de la Cruz, en dos textos correlatos y de alto grado

argumentativo: los Sermones del Mandato de 1643 y de 1650 y la Carta Atenagórica

de 1690. Puesto que el objeto de análisis de esta investigación son textos de lengua

portuguesa y de la lengua española, el estudio se dirige a una caracterización de las

estructuras comparativas específicas de esas dos lenguas, funcionalmente

evaluadas. También se estudian cuestiones relativas a la contextualización de los

textos seleccionados. Así, se presentan consideraciones sobre la retórica, el

discurso religioso, el género sermón, el tipo textual disertación, el movimiento

barroco, la vida y la obra de los autores y las oposiciones implicadas en los textos

correlativos. El objetivo del trabajo es verificar cómo se estructuran las

comparaciones en los discursos en cuestión y en qué términos manifiestan los

contrastes entre la finalidad, las ideas, y los artificios retóricos de cada texto y de

cada autor.

Palabras-clave: comparación, gramática funcional, fluidez de categorías, discurso

religioso, español, portugués.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Expressões correlativas ......................................................................... 29

Quadro 2 - Construções comparativas de igualdade ............................................... 51

Quadro 3 - Construções comparativas de desigualdade .......................................... 52

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9

2 BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ................................................................ 18

2.1 Bases teóricas do funcionalismo ......................................................................... 18

2.2 A ativação dos mecanismos comparativos sob base funcionalista ..................... 19

2.2.1 A fluidez de categorias gramaticais .................................................................. 20

2.2.2 A articulação de orações .................................................................................. 21

2.2.2.1 Relações lógico-semânticas .......................................................................... 22

2.2.2.2 Relações Sintáticas ....................................................................................... 23

2.2.2.3 Modos de expressão ..................................................................................... 26

2.2.3 A comparação no estabelecimento do relevo ................................................... 31

2.3 A determinação da natureza do exame proposto ................................................ 33

2.3.1 O componente retórico nos textos em análise ................................................. 33

2.3.2 A natureza tipológica dos textos em análise: gênero discursivo e tipo textual . 36

2.3.3 O componente religioso dos textos em análise ................................................ 39

3 CARACTERIZAÇÃO DAS ESTRUTURAS COMPARATIVAS .............................. 43

3.1 Comparação como referenciação ....................................................................... 44

3.2 A comparação em língua portuguesa .................................................................. 46

3.2.1 Estruturas comparativas do português ............................................................. 47

3.2.2 As construções superlativas do português ....................................................... 54

3.3 A comparação em língua espanhola ................................................................... 57

3.3.1 Estruturas comparativas do espanhol .............................................................. 58

3.3.2 As construções superlativas do espanhol ........................................................ 68

4 APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CÓRPUS ................................ 70

4.1 O contexto histórico e cultural das obras em exame ........................................... 70

4.1.1 O barroco ......................................................................................................... 71

4.1.2 Antônio Vieira ................................................................................................... 72

4.1.3 Sor Juana Inés de la Cruz ................................................................................ 74

4.4 Sínteses das obras selecionadas ........................................................................ 76

4.4.1 O Sermão Do Mandato de 1643 ....................................................................... 76

4.4.2 O Sermão do Mandato de 1650 ....................................................................... 81

4.4.3 A Carta Atenagórica ......................................................................................... 84

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4.5 Contrastes entre o Sermão do Mandato de 1650 e a Carta Atenagórica ............ 88

5 ANÁLISE DOS MECANISMOS COMPARATIVOS NOS TEXTOS DE ANTÔNIO

VIEIRA E SOR JUANA ............................................................................................. 91

5.1 A comparação no Sermão Do Mandato de 1643 ................................................ 92

5.2 A comparação no Sermão do Mandato de 1650 ............................................... 107

5.3 A comparação na Carta Atenagórica ................................................................ 124

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 150

ANEXOS ................................................................................................................. 156

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1 INTRODUÇÃO

A comparação reflete uma propriedade fundamental da mente humana: a

capacidade de discriminar. Para Neves (no prelo) e Gutiérrez Ordóñez (1997a), o ser

humano compara todo o tempo, e a linguagem é responsável por transmitir esse

mecanismo inerente ao espírito humano. Halliday & Hasan (1976) afirmam que a

comparação é uma forma de referenciação e que a referência comparativa opera

com os mesmos princípios das outras referências (pessoal e demonstrativa). Assim,

o mecanismo comparativo é revelador de um modo de construção não apenas de

orações, mas de todo o texto, especialmente de sua cadeia referencial.

Halliday & Hasan (1976) classificam a comparação em geral e particular.

Essa distinção entre estruturas mais específicas da comparação e construções mais

gerais, mas que possuem um valor semântico comparativo, também é reconhecida

por Neves (no prelo) e por Gutiérrez Ordóñez (1997a). Os mesmos autores, e

também López García (1994), julgam que é possível que nas construções

comparativas se envolvam outros valores semânticos, como a modalidade, a

conformidade e a adição. Nesse sentido, os mecanismos linguísticos de comparação

devem ser analisados tendo-se em conta a existência de contínuos entre as

categorias gramaticais, com deslizamentos entre os núcleos centrais de valores.

1.1 Interesse e justificativa

O que guiou o interesse geral da pesquisa, primeiramente, foi o contexto de

professores atuantes na área do ensino de espanhol como língua estrangeira no

Brasil. Nesse contexto, grande parte dos estudantes é falante natural de língua

portuguesa, e a própria condição dos professores brasileiros é a de falantes naturais

também de língua portuguesa. A intenção inicial é preparar um trabalho que

examine mecanismos de construção gramatical nas duas línguas (espanhol e

português), em um plano discursivo-textual. Embora esta pesquisa não contemple

diretamente questões relativas ao ensino de língua, espera-se poder sinalizar ao

professor que uma análise de texto pode ser realizada por muitos caminhos, por

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meio de considerações sobre o contexto histórico, social e artístico do texto, bem

como de considerações profundas dos aspectos linguísticos desse texto, pois uma

análise linguística eficaz é imprescindível para a apreesão do sentido.

Um exame de estudos sobre a comparação já efetuado gerou grande

interesse pelo tema, visto que se trata de um mecanismo absolutamente presente na

mente e na linguagem humana. O caráter constante e ativo dos mecanismos

comparativos, a variedade de estruturas existentes que são capazes de expressar

comparação, bem como a existência de outros possíveis valores atrelados às

estruturas comparativas, instigaram a realização desta pesquisa. Essas questões

concernentes à comparação demonstram que algumas considerações são

indispensáveis para que, posteriormente, se dê inicio a uma análise dos

mecanismos comparativos em um córpus específico.

O mecanismo comparativo não será visto, aqui, como estrutura gramatical

dentro da oração. Esse mecanismo de referenciação comparativa, na base

funcionalista, é visto também em seu estatuto textual-discursivo. Opta-se, então, por

um exame contrastivo da gramática do português e do espanhol, não simplesmente

da construção sintática intra-oracional, mas da expressão textual discursiva, ou seja,

da maneira como os elementos gramaticais e o modo de construí-los dão conta de

certos mecanismos. O mecanismo escolhido foi, de modo geral a referenciação

textual-discursiva, e dentro desse tipo de referenciação, a referenciação

comparativa.

O interesse de pesquisa fixou-se no discurso religioso escolhendo-se para

análise peças que se correlacionam e ao mesmo tempo se contrapõem de vários

pontos de vista. De um lado, o gênero sermão, estabelecido nos Sermões do

Mandato do padre Antonio Vieira, representa o discurso religioso, escrito em língua

portuguesa. De outro lado, há uma peça diretamente ligada a esses sermões, pois

foi produzida exatamente como exercício reflexivo de um deles. Essa peça pertence

ao gênero carta, e, também representante do discurso religioso, está escrita em

língua espanhola. Assim, em meio às diferenças de gênero (sermão e carta) e de

língua (português e espanhol), existe um discurso correlacionado entre as peças

(religioso).

Dentro desse interesse amplo de examinar os mecanismos das duas

gramáticas para expressão de um mesmo fato gramatical, que é a referenciação

comparativa vista no seu nível textual-discursivo, tomou-se como hipótese a ideia de

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que os sermões de Vieira poderiam ser um instrumento muito rico de análise, visto

que os mecanismos comparativos são altamente ativados, para efeito retórico, na

construção do gênero sermão dentro do discurso oratório religioso. Particularmente,

Vieira joga com discriminações comprobatórias em seu discurso.

Ao interesse por esses sermões em si, somou-se o fato de existir um

contraponto do discurso em língua espanhola, que é a Carta Atenagórica escrita por

Sor Juana Inés de la Cruz. A carta apresenta um exercício reflexivo sobre o Sermão

do Mandato de 1650, o qual compõe um conjunto de outros seis sermões

homônimos que recorrem ao tema do amor místico. Para a análise da oratória de

Vieira escolheu-se mais de um sermão, para que se possa configurar melhor a

natureza desse conjunto de Sermões do Mandato, pois, embora a peça de Sor

Juana seja especificamente relacionada ao sermão de 1650, julgou-se necessário

obter como base uma configuração mais geral de como Vieira trabalha os

mecanismos comparativos, no conjunto de sermões em suas pregações.

Outras questões que justificam a realização dessa pesquisa são o

conhecimento e a prática de análise que ela pode proporcionar, sobretudo à prática

da análise de texto, das estruturas linguísticas e, especificamente, das estruturas

comparativas. Na área dos estudos lingüísticos e do ensino de línguas, espera-se

que a pesquisa possa atentar para a necessidade de uma abordagem das

construções comparativas que vá além das questões formais e estruturais, que

considere a língua em uso, que não conceba a gramática como autônoma e

imutável.

1.2 Questões de análise

Nesse sentido, busca-se averiguar em que termos os mecanismos

comparativos atuam na efetivação da finalidade comunicativa, situada em um

contexto e em um discurso específicos. A partir da leitura inicial, tanto de estudos

relacionados ao tema como das peças escolhidas, esse questionamento desdobra-

se se em outros de ordem secundária:

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Quais são os principais aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos

das estruturas comparativas?

Como se caracterizam as estruturas utilizadas no córpus para

expressar comparação?

Em que termos o uso das estruturas comparativas é determinado pela

situação comunicativa?

Em que termos o uso das estruturas comparativas é determinado pelo

gênero discursivo?

Como a noção da fluidez de categorias gramaticais pode contribuir

para o estudo das estruturas comparativas?

Em que termos as estruturas comparativas podem expressar outras

relações semânticas além da comparação?

Considerando a unidade do conjunto dos sermões, em que medida o

discurso de Sor Juana, em sua carta, refuta todo o conjunto?

Em que medida o uso dos mecanismos comparativos presentes na

carta têm contrapontos com os mecanismos utilizados por Vieira?

Em que medida as peças de ambos autores se valem dos mesmos

expedientes construcionais?

Em que medida as comparações refletem a oposição das concepções,

de estratégia argumentativa e de posicionamento de Vieira e Sor

Juana?

1.3 Objetivos

O objetivo geral desta pesquisa é verificar e descrever, segundo um modelo

de análise funcionalista, as estruturas comparativas presentes no córpus

selecionado para análise, o qual se constitui inserido em um contexto e em um

gênero discursivo específicos. Definem-se como objetivos específicos:

Identificar e caracterizar os mecanismos comparativos presentes nas

peças analisadas.

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Descrever a relação entre o uso dos mecanismos comparativos e a

situação comunicativa de produção discursiva.

Descrever a relação entre o uso dos mecanismos comparativos e o

gênero discursivo analisado.

Identificar de que forma o caráter fluido das categorias gramaticais

intervém na análise de construções comparativas.

Verificar em que termos as estruturas comparativas presentes nas

peças analisadas podem expressar outras relações semânticas além

da comparação.

Tendo em vista que um determinado sermão dentro do grupo dos

Sermões do Mandato não estará desvinculado do conjunto, verificar

em que medida o discurso de Sor Juana, em sua carta, refuta a

totalidade do conjunto de sermões.

A partir do traço obtido em peças de ativação tão forte do mecanismo

comparativo que tratam, nas duas línguas, questões do mesmo tipo

(religiosas), buscar, em base funcionalista, uma visão contrastiva dos

mecanismos comparativos para as duas línguas.

Vinculando as duas propostas de visão dos mecanismos comparativos,

verificar como as duas línguas se tocam e se diferenciam em termos

de ativação desses mecanismos.

Verificar a relação entre os mecanismos comparativos apreendidos e

as oposições entre os textos e os autores (construção argumentativa,

proposições defendidas, papéis sociais, concepções).

1.4 Metodologia

A gramática funcional analisa a estrutura gramatical, porém considerando

toda a situação comunicativa na qual a estrutura se concretiza, a qual inclui o

propósito do evento da fala, os participantes envolvidos e o contexto discursivo

(NICHOLS, 1984). Como diz Neves (2010), a análise de orações deve considerar o

texto na qual as orações se constroem. Dessa forma, para que se possa

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compreender a função comunicativa e o comportamento das construções lingüísticas

que refletem mecanismos comparativos, é necessária uma análise que extrapole o

nível da oração e que atinja o nível do texto e do discurso.

O que justifica a escolha de um modelo de análise guiado pela teoria

funcionalista é o fato de essa teoria propor o estudo da língua em uso, em que se

considere a sintaxe, a semântica e a pragmática. Por meio de contribuições teóricas

funcionalistas pode-se dar conta, pois, de estabelecer relações entre as estruturas

comparativas, os valores semânticos expressos e suas implicações na competência

comunicativa em um contexto específico.

Os procedimentos de análise têm base em uma caracterização inicial,

voltada para os processos de combinação de orações complexas com foco nas

relações de hipotaxe de realce (HALLIDAY, 1994; NEVES, 2010; BRAGA, 2001;

DECAT; 2001), e tendo em conta o caráter fluido das categorias gramaticais

(NEVES, 2010). Um exame inicial das peças escolhidas revelou a necessidade de

estudar-se o conceito de relevo, tido como um procedimento de construção textual

pelo qual elementos são colocados em proeminência ou rebaixamento (TRAVAGLIA,

2006). O trabalho considera que o mecanismo comparativo é naturalmente e

altamente criador de relevo, pois confere certo grau de saliências aos elementos

envolvidos.

Considerando a natureza do exame proposto, necessariamente intervém a

importância de uma avaliação dos recursos retóricos de que os textos em análise se

valem e que se mostraram mais pertinentes ao trabalho, tomando-se como base

especialmente Tringali (1984). Dadas as características dos textos, entende-se que

também se incursionou por trabalhos que trazem considerações sobre discurso

religioso (ORLANDI, 1987; SATZER, 1987), e sobre gênero discursivo e tipo textual

(MARCUSCHI, 1995; BAKHTIN, 1992; SILVA, 1999).

Busca-se uma caracterização das estruturas comparativas em geral

(HALLIDAY & HASAN, 1976), e uma caracterização específica, de orientação

funcionalista, em córpus de língua oral (NEVES et al., 2008) e escrita (Neves, no

prelo) do português, em confronto com propostas de orientação semelhante, em

língua espanhola (ALARCOS LLORACH, 1994; GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a;

SÁEZ DEL ÁLAMO, 1999).

A explicitação das informações sobre as peças do córpus consiste na

apresentação do contexto histórico e cultural que envolve a produção das peças.

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São expostas informações sobre o movimento barroco (JOZEF, 1989; LITRENTO,

1974) e sobre a vida e a obra dos autores (SARAIVA, 1980; PAZ, 1982), e também

uma síntese das principais ideias e argumentos que se encontram nos textos.

Busca-se, afinal, um aprofundamento do contraponto entre o sermão de 1960 e a

carta, com fundamentação em Ruiz e Theodoro (2000).

Para a análise do córpus, procedeu-se a uma identificação dos mecanismos

comparativos apreendidos e selecionaram-se os mais relevantes ao objetivo da

pesquisa. No decorrer das análises, recorreu-se constantemente a outras partes da

pesquisa com a finalidade de demonstrar certos aspectos no funcionamento das

comparações. Recorreu-se também à transcrição de trechos dos textos para

demonstrar as informações apresentadas na análise.

1.5 Hipótese

O gênero sermão constitui-se como altamente retórico, considerando-se a

definição de Tringali (1984, p. 15), pela qual retórica é ―a teoria do discurso

persuasivo‖. Por outro lado, tendo em vista que, na carta escolhida, há um autor que

realiza uma leitura crítica da estrutura e da retórica de um orador, essa peça também

apresenta as características daquilo que se diz ser retórico, embora pertença ao

gênero carta. Vem a propósito lembrar que, segundo Fávero e Koch (1987), todo

discurso apresenta um teor argumentativo, em maior ou menor grau, dependendo do

projeto discursivo do locutor. Para exemplificar, o autor situa exatamente os textos

que pertencem ao gênero religioso, como o sermão, entre os casos em que o

discurso pode atingir um grau máximo de orientação argumentativa.

A partir das características retóricas presentes nas duas peças, levantou-se

uma primeira hipótese, a de que os mecanismos comparativos presentes nas peças

(tanto de Vieira quanto de Sor Juana) possuem uma estreita relação com os

recursos argumentativos dos quais os autores se valem. Levantou-se, também, a

hipótese de que uma parte significativa das comparações reflete posições contrárias

dos dois autores, o que se observa no caminho argumentativo que eles percorrem,

nas correntes filosóficas que seguem, nos próprios papéis sociais que sabemos que

eles exercem.

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1.6 Córpus de análise

Como córpus de análise foram selecionadas três peças. A duas peças de

língua portuguesa são o Sermão do Mandato de 1643 e o Sermão do Mandato de

1650, pregados pelo padre português Antonio Vieira. Os dois sermões fazem parte

de um conjunto de seis sermões, de mesmo título, pregados por Vieira entre 1643 e

1670 (GOMES, 1995, p. 62). A peça selecionada de língua espanhola foi a Carta

Atenagórica, escrita pela freira mexicana Sor Juana Inés de la Cruz, em 1690. A

carta de Sor Juana é de forte caráter argumentativo, posicionando-se frente ao

Sermão do Mandato pregado em 1650. Nela, Sor Juana argumenta que ―aquilo que

fora enunciado por Vieira não correspondia, com exatidão, à doutrina tradicional da

Igreja Católica‖ (RUIZ e THEODORO, 2000). A carta foi enviada ao bispo de Puebla

e não se sabe por que razão ela foi publicada. Essa carta gerou certa polêmica no

vice-reino mexicano devido ao posicionamento da autora.

1.7 Estrutura do trabalho

Com a finalidade de alcançar os objetivos propostos, o presente trabalho se

compõe da seguinte maneira, neste ponto de seu desenvolvimento:

Capítulo 1: Introdução

Capítulo 2: Bases teórico-metodológicas

Capítulo 3: Caracterização das estruturas comparativas

Capítulo 4: Apresentação e contextualização do córpus

Capítulo 5: Análise dos mecanismos comparativos nos textos de

Antônio Vieira e Sor Juana

Capítulo 6: Considerações finais

O primeiro capítulo está dedicado à introdução.

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No segundo capítulo apresentam-se as características principais da

gramática funcional segundo Neves (1997), principalmente no que se refere às

contribuições de Halliday. Estudam-se com mais precisão quatro questões de

estreita relação com a pesquisa: a fluidez de categorias gramaticais segundo Neves

(2010; 2011), as características semânticas e sintáticas das orações complexas

segundo Halliday (1994), Neves (2010), Braga (2001) e Decat (2001) e o relevo na

constituição do texto e no processamento de informação de acordo com Travaglia

(2006). Apresentam-se também informações sobre componentes retóricos

(TRINGALI, 1984) e tipológicos dos textos em análise (BAKHTIN, 1992; SILVA,

1999, ORLANDI, 1987, SATZER, 1987)

No terceiro capítulo descrevem-se as construções comparativas particulares

e gerais das línguas portuguesa e espanhola, bem como suas implicações sintáticas,

semânticas e pragmáticas à luz das considerações de Halliday & Hasan (1976),

Neves et al. (2008), Neves (no prelo), Alarcos Llorach (1994), Gutiérrez Ordóñez

(1997a) e Sáez del Álamo (1999).

No quarto capítulo apresentam-se, descrevem-se e avaliam-se os textos que

compõem o córpus da pesquisa: os Sermões do Mandato de 1543 e de 1650, e a

Carta Atenagórica. São expostos, de forma sintetizada, o tema e as ideias principais

de cada texto. Também se faz uma descrição do contexto histórico e cultural em que

cada texto está inserido, (PAZ, 1982; RUIZ e THEODORO, 2000), bem como do

estilo literário que cada autor representa em seu texto (JOZEF, 1989; LITRENTO,

1974, SARAIVA, 1980).

No quinto capítulo realiza-se uma depreensão dos mecanismos

comparativos presentes no córpus e também das estruturas linguísticas usadas na

construção desses mecanismos. Essa análise está composta de três partes, que se

referem aos três textos que compõem o córpus. Tanto no terceiro quanto no quarto

capítulo, os textos são tratados seguindo a ordem cronológica em que foram

pregados ou escritos.

A última parte do trabalho consiste na apresentação das considerações

finais da pesquisa.

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2 BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

2.1 Bases teóricas do funcionalismo

Uma vez que esta pesquisa se guia por princípios funcionalistas, a

exposição dos pressupostos centrais da teoria funcionalista é de grande valia para

esclarecer a visão adotada no tratamento das questões linguísticas que aqui se

propõem. As informações que seguem, bem como as da subseção a seguir, sobre a

gramática funcional, têm sua fonte em Neves (1997).

A definição do que caracteriza o Funcionalismo configura-se como uma

tarefa bastante complexa, posto que a denominação se refere a um conjunto de

visões e estudos heterogêneo no qual se assentam tanto propostas teóricas

inovadoras como posicionamentos de simples rejeição ao formalismo. Contudo,

existem diversos traços comuns presentes nos diferentes modelos, que permitem

uma caracterização básica da visão funcionalista.

A questão fundamental da abordagem funcionalista é evidenciar de que

maneira os usuários de uma língua se comunicam com eficiência por meio dela. As

estruturas lingüísticas são tidas como configurações de funções para se alcançar a

competência comunicativa. Ademais, é unânime a defesa de que a língua deve ser

considerada um sistema não autônomo.

Entre as vertentes funcionalistas, encontra-se a que Van Valin (1990)

qualifica como ―moderada‖, que é aquele em que este trabalho se insere. Para o

autor, estão incluídos nesse grupo o funcionalismo de Dik, de Halliday e o dele

mesmo. O funcionalismo moderado admite que a noção de estrutura é fundamental

para a compreensão das línguas naturais. No entanto, considera inoportuno o

tratamento dado à língua e suas estruturas pelo formalismo e pelo estruturalismo

estritos. Dessa maneira, os estudiosos do funcionalismo tido como moderado

apresentam propostas alternativas de exame da estrutura linguística, em que se

exemplificam a semântica e a pragmática como áreas importantes para análise.

Como aponta Nichols (1984), a gramática funcional considera, na análise da

estrutura gramatical, a situação comunicativa em que se instaurou a estrutura.

Também é um preceito da gramática funcional a caracterização da linguagem não só

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como funcional mas também como dinâmica, pois o sistema lingüístico está sempre

atrelado às funções que ele deve preencher, e o desenvolvimento da linguagem

ocorre de maneira constante e dinâmica. Isso implica que, ao analisar as estruturas

comunicativas, não se pode ignorar que elas são requeridas com a finalidade de

exercer uma função, e que a relação entre a estrutura comparativa e sua função é

estabelecida de maneira dinâmica. Também não se devem desvincular os

mecanismos comparativos do propósito do evento de fala, dos participantes

envolvidos e do contexto discursivo em que tais mecanismos são ativados.

Neste trabalho, a direção teórica tem base mais particularmente na proposta

sistêmico-funcional de Halliday. O autor elaborou uma teoria de gramática funcional

definida como sistêmica. Essa teoria de gramática sistêmica está baseada na teoria

de John Rupert Firth e inspirada em Malinowski e Whorf. A descrição sistêmica da

linguagem, atrelada à visão funcionalista, implica ver a gramática formada por um

conjunto de estruturas sistêmicas. Para Halliday (1963 apud NEVES, 1997, p. 59),

duas possibilidades alternativas estão envolvidas no aparelhamento da teoria

lingüística: a ―cadeia‖ e a ―escolha‖, relacionadas respectivamente ao sintagma e ao

paradigma. Ao usar a língua, o falante faz escolhas simultâneas entre as opções

dispostas pela gramática em certos conjuntos (HALLIDAY, 1973, p. 365).

A perspectiva da gramática funcional de Halliday tem como eixos

fundamentais os usos da língua, que moldam o seu sistema através do tempo, e a

maneira pela qual os usuários dessa língua se valem de suas estruturas como meios

para a expressão de significados. A gramática é responsável pela construção de

elementos da língua que desempenham funções em relação ao todo. O texto figura

como uma unidade semântica, e a gramática é a sistematização indispensável para

estabelecer e evidenciar a apreensão do sentido de um texto.

2.2 A ativação dos mecanismos comparativos sob base funcionalista

O estudo dos mecanismos comparativos que será realizado neste trabalho

não ignora que existam estruturas gramaticais, pelo contrario, propõe-se estudá-las

enquanto expedientes de funções comunicativas. Para isso, é fundamental que os

procedimentos de análise estejam sustentados por princípios da gramática funcional.

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Por esse caminho, um estudo de mecanismos comparativos pode ter em

conta a estrutura frasal em que ele é manifesto, porém, não deve limitar-se à frase,

pois cada estrutura comparativa se relaciona invariavelmente com a totalidade na

qual está inserida, que, pode ser a totalidade da peça, do gênero e do discurso

selecionados. Sendo assim, e retomando o que foi apresentado na introdução, o

trabalho se propõe caracterizar o uso das estruturas comparativas nas línguas

portuguesa e espanhola, e explicitar em que medida essas estruturas servem como

meios para uma finalidade comunicativa específica.

A continuação, serão tratados alguns temas mais específicos, de estreita

relação com o objeto desta pesquisa, que são os mecanismos comparativos e a

forma pela qual eles são ativados. Esses temas são apresentados segundo uma

perspectiva funcionalista.

2.2.1 A fluidez de categorias gramaticais

A linguagem é uma projeção cognitiva, realizada pela mente humana, de um

processo global. Para realizar tal processo, utilizam-se componentes da língua

distribuídos linearmente. Essa linha é mais espacial na linguagem verbal escrita e

mais temporal na linguagem verbal oral. Um fenômeno cognitivo constitutivo e

fundamental da mente humana, e de estreita relação com a linguagem, é a

competência para organizar categorias e atribuir propriedades a elas. Sendo assim,

o estudo de uma língua em uso não pode negar nem combater esses preceitos.

Sistematizar não é uma ação condenável, não obstante, categorizar não implica

engessar as categorias. Além disso, o simples ato de ―etiquetar‖ elementos e tipos

de combinações não é suficiente para entender de maneira eficaz como uma língua

funciona.

Um dos aspectos linguísticos que serão levados em conta no decorrer deste

trabalho é a fluidez dos limites de categorias gramaticais. Recorrendo à linguística

cognitiva, podemos afirmar que a imprecisão de limites é uma qualidade inerente às

noções manifestadas pela língua 1. Este aspecto tem destaque no âmbito do

1 Nocão de Jackendoff (1983) obtida em aula ministrada por Maria Helena de Moura Neves no

programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 26 de outubro de 2011.

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Funcionalismo e da lingüística sistêmico-funcional de Halliday. Trata-se da existência

de contínuos entre as categorias, uma determinação difusa que leva ao

reconhecimento de núcleos centrais de valores. É possível estabelecer gradações

ao julgar que determinado elemento seja representante de determinada categoria.

A questão da fluidez de categorias gramaticais será retomada na subseção

subsequente, especificamente no que concerne às relações semânticas expressas

pelas orações complexas.

2.2.2 A articulação de orações

Quando se trata de articulação de orações, dois processos que aparecem

com evidência nas gramáticas tradicionais são a coordenação e a subordinação.

Genericamente, essas gramáticas consideram, como critério de classificação, a

dependência sintática e semântica entre os termos envolvidos nos processos.

Conforme tais critérios, a coordenação consiste na relação entre termos

independentes e que, sozinhos, expressam sentido completo. Também se concebe

que o termo coordenado não se compõe como adjunto do outro ao qual está

atrelado. A subordinação implica a relação entre termos, na qual um deles (o

subordinado) exerce no outro (o principal) uma função, e depende dele para

constituir sentido (ROSARIO, 2007, p. 11 e 12).

No entanto, essa classificação não se apresenta de maneira homogênea

entre diferentes gramáticos. Rosario (2007) analisou o tratamento dos processos de

combinação de orações em alguns compêndios gramaticais disponíveis e verificou

que as definições de cada tipo de processo apresentam significativa variação. De

acordo com Garcia (1967, p.22-23, apud ROSARIO, 2007), Azeredo (2003:50-51,

apud ROSARIO, 2007) e Mateus et al. (2003), os limites entre subordinação e

coordenação são sutis e a distinção entre os dois tipos de articulação às vezes pode

ser difícil de delimitar, pois há construções que se situam nas margens das duas

categorias. A oração a seguir, presente em Mateus et al. (2003), ilustra essa

dificuldade implicada na delimitação dos dois tipos de articulação: ―(21) Não comes a

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sopa e não te levo ao cinema!‖ 2. Para as autoras, embora a oração apresente valor

semântico de subordinação, semelhante a ―(21‟) Se não comeres a sopa, não te levo

ao cinema!‖, a oração é considerada como um caso de coordenação.

Antes de apresentar considerações teóricas sobre as construções

comparativas específicas, é necessário esclarecer quais são as noções sobre o

processo de articulação de orações que guiarão o exame que se propõe esta

pesquisa. De acordo com a Gramática Tradicional, as construções comparativas

específicas são classificadas como orações subordinadas adverbiais comparativas.

Com base na teoria funcionalista, entretanto, com foco na proposta

hallidayana para descrição da organização das orações e tendo em conta o caráter

fluido das categorias gramaticais, é possível fazer um estudo das orações

complexas. De acordo com Neves (2001, p. 14), estudos realizados por

pesquisadores de orientação funcionalista sobre os processos envolvidos na

formação do enunciado têm demonstrado que o bloco intitulado ‗subordinação‘ não

pode ser organizado considerando-se um único preceito. Como mostra Decat (2001,

p. 109), alguns estudos têm adotado outros parâmetros para descrever as relações

entre cláusulas 3 no processo de subordinação. Dentro desse grande bloco,

estudiosos têm diferenciado as estruturas de ‗encaixamento‘ e de ‗hipotaxe‘

(definidas mais adiante), movidos pelo objetivo de descrever as relações entre

cláusulas no nível do discurso.

Para conduzir esse exame, passaremos pelos focos de análise indicados por

Neves (2010), em suas considerações sobre as relações adverbiais na combinação

de orações. Os focos propostos são: o das relações lógico-semânticas, o das

relações sintáticas e o dos modos de expressão.

2.2.2.1 Relações lógico-semânticas

As relações linguísticas não representam precisamente as relações lógicas.

Contudo, a lógica pode ser muito útil para esclarecer as relações linguísticas.

2 Todos os exemplos apresentados neste capítulo são de autoria das fontes consultadas e se

conserva a numeração e as formas de destaque (negrito, itálico, etc.) originais. 3 Decat (2001, p. 103), que, seguindo DIK (1997), adota o termo cláusula para designar ―qualquer

estrutura provida de verbo, ainda que só esse elemento aparecesse‖.

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Conforme já foi mencionado, a linguagem não reflete exatamente a mente humana,

mas sim suas construções cognitivas.

Halliday (1994) especifica os processos de relações das orações complexas

segundo dois sistemas: o sistema lógico-semântico (ou sistema das relações

semântico-funcionais) e o sistema tático (ou das relações de dependência). No

sistema lógico-semântico, as relações são inter-oracionais e podem ser de projeção

ou de expansão. A relação de projeção se estabelece quando uma oração se projeta

em outra como um fato, uma locução ou uma idéia. A relação de expansão se

subdivide em elaboração, extensão e realce.

Uma oração primária é expandida por elaboração quando é parafraseada,

especificada, comentada ou exemplificada por uma oração secundária. A expansão

de uma oração primária por extensão ocorre quando uma oração secundária fornece

a ela um novo elemento, uma exceção ou uma alternativa. A terceira subvariedade

de expansão, exatamente aquela que o presente trabalho contemplará mais

especificamente em seu desenvolvimento, é a expansão por realce, em que uma

oração secundária proporciona alguma característica circunstancial (de tempo, lugar,

modo, causa ou condição) à oração primária, realçando seu significado. Cada uma

dessas variedades de relação cumpre diferente função semântico-funcional

(BRAGA, 2001, p. 24).

2.2.2.2 Relações Sintáticas

Chega-se, então, ao modo como a língua se estrutura para expressar

significados. É por meio do sistema sintático que o enunciado se organiza e se

expressa. Com base em Halliday (1994), pode-se afirmar que:

O modo de produção de significados (um processo semântico) nas interações lingüísticas (um processo pragmático de negociação no contexto sociocultural) implica o modo como as pessoas usam a linguagem (um processo semiótico de significar por meio de escolhas) e o modo como a linguagem se estrutura para o uso (um processo ligado aos componentes metafuncionais: o textual o interacional e o ideacional).

Feitas as considerações sobre as relações semânticas (em 2.2.2.1), também

se adotará a perspectiva funcionalista no tratamento das relações sintáticas, de

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acordo com os sistemas propostos por Halliday (1994). Nessa perspectiva, os

critérios semânticos estabelecem as relações do sistema lógico-semântico, enquanto

as questões sintáticas definem as relações do sistema (sin)tático. A afirmação,

praticamente redundante, é importante para estabelecer contraste com as definições

gramaticais propostas historicamente, nas quais critérios semânticos e sintáticos às

vezes se misturam. Além disso, por meio dessa desvinculação relativa de critérios

semânticos e sintáticos, há a possibilidade de se considerar que uma relação lógico-

semântica pode ser expressa por diferentes estratégias sintáticas, o que representa

uma significativa adequação no tratamento das orações complexas (BRAGA, 2001,

p. 25-30).

O sistema tático, ou de interdependência, abrange as relações entre todos

os complexos (palavras, grupos, sintagmas ou orações). Para Halliday (1994), as

relações dentro do sistema tático podem ser de parataxe ou de hipotaxe. A parataxe

envolve as relações entre elementos de um mesmo estatuto, nas quais um inicia e o

outro continua a sequência, uma relação de listagem. As relações de hipotaxe

ocorrem entre elementos de estatuto diferente, em que um elemento é dependente,

e o outro é dominante.

As combinações adverbiais, entre as quais se encaixam as comparativas,

constituem um processo de subordinação adverbial segundo a Gramática

Tradicional. De acordo com Halliday (1994), as combinações adverbiais constituem

uma relação hipotática (de acordo com o sistema tático) de realce (de acordo com o

sistema lógico semântico). Em Matthiessen e Thompson (1988), os processos de

subordinação são caracterizados por apresentarem total inclusão de uma oração-

margem em uma oração-núcleo. Uma oração subordinada se constitui como

argumento oracional de outra oração. Devido ao fato de que esse encaixamento

característico da subordinação não está presente nas orações adverbiais,

Matthiessen e Thompson (1988) defendem que essas orações não se articulam por

subordinação.

Thompson (1984 apud DECAT, 2001, p. 110) situa entre as relações de

encaixamento (ou de ‗subordinação‘) as cláusulas-complemento e as adjetivas

restritivas, e atribui às relações de hipotaxe as cláusulas adverbiais, as participiais e

as adjetivas não restritivas (ou apositivas). Para Hopper e Traugott (1993), tanto

subordinação quanto hipotaxe apresentam a dependência entre os termos como

propriedade. O encaixamento aparece como a propriedade diferencial, atribuída

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apenas à subordinação. Para Halliday (1994), as relações por encaixamento

envolvem constituência, não interdependência, e se situam fora do eixo tático.

A rigidez dos limites entre subordinação e coordenação também é

contestada por Givón (1990), que identifica um continuum na hierarquia das

articulações oracionais. A existência dessa fluidez também é sustentada por Lehman

(1988) e Hopper e Traugott (1993), que afirmam que a extensão do continuum vai de

um grau máximo de estatuto sentencial e autonomia das orações (coordenação: -

dependência e -encaixamento) até um grau máximo de dessentencialização e de

integração das orações (subordinação: +dependência e +encaixamento). Em uma

zona intermediária do percurso está a hipotaxe (+dependência –encaixamento) e,

consequentemente, a hipotaxe de realce de Halliday, em que se situam as orações

comparativas.

Além do sistema de relações sintáticas, é possível observar, na organização

das orações, também os modos de marcação: correlação e não-correlação.

Conforme a definição de Módolo (2009), ―as orações correlatas exemplificam uma

relação de interdependência, isto é, a estrutura das duas orações que se

correlacionam está estreitamente vinculada por expressões conectivas‖. Grande

parte das orações comparativas se constitui por correlação, como exemplificam as

comparativas presentes em Neves et al. (2008): ―(5-20) mas ele fala mais do que

eu‖; ―(5-24) a verdade é que tanto no sexo feminino quanto no masculino há

sempre uma produção significante embora pequena mas de hormônio do sexo‖.

Neves (2010, p. 135) afirma que a correlação não se define como uma

categoria de relação sintática. Como se observará na análise das estruturas

comparativas, as relações de interdependência (parataxe e hipotaxe) e os modos de

marcação (correlação e não-correlação) constituem-se como dimensões

independentes. Aqui será analisado mais detidamente o campo da hipotaxe e do

realce de Halliday, tanto com ou sem ocorrência de correlação, segundo Neves, que

indica:

Resolvido que determinada relação (sin)tática adverbial constitui uma hipotaxe, há de resolver-se o modo de marcação em correlação ou não-correlação (também e sempre com zonas de fluidez, e com inclusão mais, ou menos, efetiva dos elementos em cada classe) (NEVES, 2010, p. 132).

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2.2.2.3 Modos de expressão

Matthiessen e Thompson (1988) propõem que as construções hipotáticas de

realce refletem as relações retóricas presentes em um texto. As orações adverbiais

representam a gramaticalização das unidades retóricas responsáveis por construir o

discurso. Para Decat (2001, p. 150), por meio de um exame que chegue ao estágio

suprassentencial é possível identificar se uma cláusula adverbial tem funções de

conexão discursiva. Nesse sentido, a autora aponta a necessidade de uma

abordagem funcional-discursiva para a descrição do comportamento das cláusulas

adverbiais, que considere o contexto discursivo no qual as cláusulas ocorrem.

Sobre a classificação da oração adverbial, é frequente que a inferência

sobre a relação expressa seja realizada de acordo com o conectivo que introduz a

oração. Segundo Decat (2001, p. 123), a definição do tipo de cláusula adverbial

deve ser feita no nível do discurso, e não somente na conjunção utilizada para iniciar

a oração. A autora acrescenta que outras marcas textuais, como o modo verbal,

também podem guiar essa definição. Há que verificar, essencialmente, qual o tipo de

proposição relacional que surge da combinação das cláusulas.

O que também confirma a insuficiência do uso de uma conjunção como

recurso exclusivo na classificação da oração adverbial é o fato de que as

proposições adverbiais podem ocorrer por justaposição, ou seja, sem nenhuma

marca formal que articule as orações. Decat (2001) examinou as relações adverbiais

que emergem da articulação de cláusulas e demonstrou que a construção hipotática

adverbial pode ser constituída por justaposição, e que a ausência da marca formal

não impossibilita que se perceba a relação expressa na construção.

Dessa forma, orações justapostas, historicamente tidas como orações

coordenadas assindéticas, podem ser consideradas como casos de hipotaxe de

realce, contanto que, em função da proposição relacional que constituem, uma

oração mantenha alguma relação circunstancial com a oração com a qual se

combina. Decat (2001, p. 131) apresenta inúmeras ocorrências que demonstram

essa possibilidade, como em: ―(40) Enfim, não tenho dúvidas, quero este filho custe

o que custar‖.

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A autora (2001) afirma que também no caso da hipotaxe de realce por

justaposição, o contexto discursivo, aliado a possíveis marcas textuais, aparece

como imprescindível para identificar o tipo de proposição expresso.

Decat (2001) trata ainda da ordem dos elementos em uma relação núcleo-

satélite (anteposição ou posposição da oração adverbial com relação ao núcleo).

Para ela, essa ordem está ligada, entre outros fatores: ao tipo de proposição

relacional que emerge da combinação; ao discurso do qual a combinação faz parte;

e à função que ela exerce no discurso. Segundo a autora (2001, p. 159), uma

importante questão ligada à organização da informação a partir das cláusulas

adverbiais é a ideia de tópico, que reflete o modo pelo qual o falante deseja anunciar

as proposições explícitas e relacionar as proposições implícitas. De acordo com

Givón (1979), o mecanismo de contraste FIGURA-FUNDO é um dos recursos

disponíveis da linguagem para o destaque de elementos. Caracterizada como

satélite, a oração adverbial geralmente é usada como fundo, informação adicional

necessária ao entendimento do que é expresso no núcleo. Uma cláusula adverbial

que costuma exercer função de fundo pode passar a funcionar como tópico se

posicionada à esquerda do núcleo ao qual está vinculada.

Para Decat (2001, p. 159), esse mecanismo, de tornar alvo de destaque a

oração adverbial, evidencia sua função na coesão e na organização do discurso. Ela

apresenta algumas cláusulas que evidenciam a função contrastiva do tópico, como a

cláusula condicional que aparece anteposta no exemplo da autora: ―(85) Se este

movimento de reafirmação for considerado como uma reação em defesa do já

conseguido, é possível contextualizar esses dois eventos. (DE4F, 25)‖.

As relações adverbiais produzem diferentes efeitos de sentido e apresentam

valores que flutuam sobre os limites categoriais. Para a análise dos modos de

expressão dessas relações, Neves (2010, p. 136) propõe quatro ângulos oriundos

dos quatro expedientes de interrogação adverbial disponíveis para a construção do

enunciado: onde? quando? por quê? e como?, bem como suas variantes de que

modo?, para quê?, etc. O primeiro expediente (onde?) não gera combinação de

orações e por isso não existe hipotaxe de realce de lugar.

A correlação modo-temporal do enunciado pode ocasionar interpretação

abstrata em uma situação em que um conectivo mais suscetível de exercer

diferentes funções é usado. Percebem-se deslizamentos entre as relações de

conformidade, de modalidade e de comparação de igualdade. Estabelecer que uma

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coisa atua conforme outra, ou que atua do mesmo modo que outra, por exemplo,

implica comparar essas duas coisas. Se no resultado de uma comparação, o que se

expressa não é a desigualdade, então teremos um valor de conformidade e/ou de

modalidade. Como mostra Neves (2010, p. 142), a conjunção como serve de

ilustração, pois tem caráter polissêmico, e em muitos casos tem valor comparativo,

conformativo, e modal. Em alguns casos corresponde ao conectivo do mesmo modo

que, como no enunciado: ―(4) Quero falar como o Coronel Moreira‖.

É claro que o uso de como implica um menor grau de valor modal que o

conectivo do mesmo modo que. A proporção inversa também pode acontecer, e

então uma relação de conformidade pode ter certo grau comparativo.

É comum que haja dificuldade em decidir como classificar de maneira mais

adequada ou identificar qual é o valor semântico que prevalece. Para Neves (2010,

p. 143) talvez essa seja a causa pela qual a Nomenclatura Gramatical Brasileira

(NGB) excluiu a subclasse modal das orações subordinadas adverbiais, e as

subclasses comparativa e conformativa passaram a abarcar esse tipo de construção,

pois elas sempre envolvem o ―modo‖. Porém, mesmo sendo complexa a

identificação do valor semântico expresso, existem algumas chaves para

interpretação. Segundo Neves (2010, p. 143), a análise das orações deve considerar

também o texto que as integra, e não somente as orações isoladas. A recorrência ao

gênero do discurso é pertinente para a definição do sentido. Além disso,

considerando o caráter polissêmico que as relações adverbiais podem apresentar,

não há necessidade de definir apenas um valor semântico, já que os valores podem

coexistir nas construções, em diferentes graus de proeminência.

É possível analisar a complexidade dos modos de estruturação sintática,

com foco nas construções correlativas. Como afirma Neves (2010, p. 144), ―se

montar correlações é distribuir marcas correlativas, resta verificar que marcas são

essas, a que categoria pertencem, e que função e efeito têm no enunciado‖. E é isso

que a autora apresenta em sua análise das relações adverbiais. A seguir, expomos

uma síntese dessas categorias, bem como da função e sentido que exprimem no

enunciado, de exemplos de marcadores correlativos, e de algumas considerações

sobre esse tipo de estrutura de acordo com Neves (2010). Ainda como indica a

autora, para tratar das categorias das correlações, há que ter em conta a pertinência

da polarização. De fato, em todos os casos expostos a seguir existe uma marca

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formal no primeiro termo que reclama contraparte no seguimento, com diferentes

matizes de sentido.

Polarização negativa

Pede uma marca positiva, para acréscimo, restabelecimento ou compensação de uma noção cuja presença foi minimizada, mal valorizada, ou, mesmo, negada. É responsável pela quebra de linearidade da sentença, pondo de lado sua sucessão temporal. Marcas correlativas: não só... mas/como; senão... ao menos/pelo menos. 4

Quantificação

Contraparte que entra em cotejo com a primeira parte. No mesmo plano, implica em relação comparativa de igualdade. Exemplo de marca correlativa: ―O senhor deve imaginar que é nosso dever – dever da polícia – tomar tantos depoimentos quantos sejam necessários para esclarecer a situação. (BB)”.

Com dependência, implica uma relação causativa-consecutiva. Exemplo de marca correlativa: ―Marieta, porém, encarou-o com tanto ódio, que ele insensivelmente voltou atrás, encostando-se à parede úmida. (FR)‖.

Intensificação

Como a intensificação é uma relação adverbial de ―modificação‖, a contraparte pode ser elaborada no mesmo nível ou constituir níveis hierarquizados. Na relação de parataxe, a função da contraparte é compor um cotejo com o primeiro membro. Nesse cotejo não há dependência sintática entre os membros. Exemplo de marca correlativa: ―Penitência que decerto não será tão difícil quanto a outra. (OMU)‖.

Na relação de hipotaxe de realce, a função da contraparte para encerrar a relação adverbial anunciada é instaurar uma comparação em desnível ou uma relação causal-consecutiva. Exemplo de marca correlativa (comparação de desnível): “Que dura orquestra! Que furor insano! Que pode haver maior do que o oceano,

Ou que seja mais forte do que o vento?!” 5

Exemplo de marca correlativa (relação causal-consecutiva): ―Pus-me a cantar minha pena com uma palavra tão doce, de maneira tão serena, que até Deus pensou que fosse

felicidade – e não pena.‖ 6

Quadro 1 - Expressões correlativas 7

4 Não há exemplos de na fonte consultada.

5 Esse tipo de construção é ilustrado em Neves (2010) com o poema Deus, de Casimiro de Abreu.

6 Esse tipo de construção é ilustrado em Neves (2010) com o poema A doce canção, de Cecília

Meireles. 7 Quadro adaptado de Neves (2010, p. 145-146).

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Ainda sobre a função e o efeito de sentido que as correlações exercem no

enunciado, Neves (2010) faz algumas considerações sobre a operação comparativa

ligada à construção proporcional e à operação aditiva, o que vem apresentado nos

dois parágrafos subsequentes.

As correlações de quantificação e de intensificação são de muita importância

para a construção proporcional, que tem relação estreita com a relação comparativa.

Ainda que nessas construções não haja a presença de conjunção (marca da

subordinação de orações), tradicionalmente elas começam com quanto e são

classificadas como subordinadas adverbiais proporcionais. Mesmo havendo uma

hierarquização nessas combinações, já que a oração iniciada por quanto é

sintaticamente dependente, há que se catalogar essas construções com muito

cuidado, tendo em conta a possibilidade de relativização.

Quando a segunda oração começa com quanto, o efeito é, sobretudo,

comparativo. Tendo-se em vista mais especificamente a correlação tão/tanto...

quanto, percebe-se que o valor quantificativo ou intensificativo dos elementos se vê

reduzido, e o que fica marcado com mais ênfase é a equidade dessa quantificação

ou intensificação na relação entre dois elementos. A construção adquire, então, um

valor de adição. O deslizamento também ocorre no sentido inverso. As construções

correlativas aditivas do tipo não só... como/mas também têm certo valor

comparativo. Como afirma Neves (2010, p. 148), em determinados casos ―pela

adição se compara‖, em outros ―pela comparação se soma‖.

Desse modo, ainda com base na autora, pode-se afirmar que as relações

adverbiais (por parataxe e hipotaxe) têm uma grande variedade de efeitos de sentido

possíveis, e uma natureza dialógica/polifônica. As correlações são um meio pelo

qual é possível explorar e usufruir dessa capacidade que as relações adverbiais

apresentam. Os valores semânticos dessas relações se mesclam e têm seu grau de

efeito alterado de acordo com diferentes parâmetros (NEVES, 2010, p. 148).

Por fim, releva-se a importância da visão funcionalista para o exame dessas

relações, pois fica evidente o deslizamento dos seus núcleos centrais de valores.

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2.2.3 A comparação no estabelecimento do relevo

Ao comparar, o interlocutor coloca em evidência certos elementos do texto.

Essa função que a comparação exerce está estreitamente relacionada ao conceito

de relevo. No desenvolvimento dos tópicos discursivos, como explica Travaglia

(2006, p. 167 e 168), alguns elementos no texto, como partes do conteúdo,

determinadas informações, mudanças de tópico, etc., podem apresentar um grau de

saliência ao qual se dá o nome de relevo. Esses elementos podem estar em um

plano mais elevado do que os demais elementos, o que se configura como um

relevo positivo ou proeminência. Também pode ocorrer de os elementos estarem em

um plano inferior, situação que configura um relevo negativo ou rebaixamento,

segundo o autor.

Um exemplo disso é o uso que Vieira faz da comparação para dar

proeminência às finezas de Cristo. No trecho do Sermão do Mandato de 1650, por

exemplo, Vieira cria um plano elevado no qual figuram as finezas do amor de Cristo

no fim de sua vida. Mais ainda, quando afirma a superioridade da superioridade das

finezas que ele apresentará no sermão, ele cria um segundo plano mais elevado

ainda:

Suposto que do amor de Cristo as finezas do fim foram maiores que as de todo o tempo da vida; entre as finezas do fim, qual a maior fineza? Esta comparação é muito diferente da que faz o Evangelho. O Evangelista compara as finezas do fim com as finezas de toda a vida, e resolve que as do fim foram maiores: eu comparo as finezas do fim entre si mesmas; e pergunto: destas finezas maiores qual foi a maior? O Evangelista diz quais foram as maiores de todas; e eu pergunto: qual foi a maior das maiores? Esta é a minha dúvida, esta será a matéria do Sermão (p. 190).

A criação de relevo é um procedimento de função significativa no que diz

respeito à constituição textual. Como mostra Travaglia (2006, p. 215), esse

procedimento intervém na construção do texto, na evolução dos tópicos discursivos

e na interação da qual o texto faz parte. De acordo com o autor, o relevo atua tanto

sobre elementos, quanto sobre grupos de elementos, por meio de diversos planos e

níveis da língua, entre os quais estão envolvidos recursos fonológicos, lexicais,

semânticos, etc.

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Para Travaglia (2006, p.168), as razões que levam o falante a colocar

elementos em relevo podem ser razões ideacionais oucognitivas, razões

argumentativas e razões emocionais. O relevo pode instanciar-se nesses três planos

(ideacional ou cognitivo, argumentativo e emocional), e esses tipos de relevo podem

aparecer de maneira concomitante, pois não são excludentes (TRAVAGLIA, 2006, p.

170). O relevo se relaciona, então, às funções ideacionais e interacionais da

linguagem (HALLIDAY, 1994).

Visto que o objetivo central deste trabalho é a análise das comparações,

serão expostos alguns recursos de criação de relevo que estão mais relacionados às

estruturas comparativas, no caso, os recursos sintáticos e os de construção textual.

Um exemplo de recursos sintáticos de formação de relevo fornecido por

Traváglia (2006, p. 197) é o uso de predicados com valor semântico capaz de dar

proeminência a elementos no texto, como por exemplo, as sequências é importante,

é urgente, é notório, e os verbos cumpre, urge e importa. Neste trabalho, considera-

se que a comparação constitui também um recurso sintático de formação de relevo,

pois por meio da combinação de estruturas linguísticas ela coloca certos elementos

em planos diferentes.

O uso de parênteses, a repetição e a tematização são estratégias de

construção textual geralmente apontadas como intervenientes na colocação de

elementos do texto em relevo. Dessas estratégias, a tematização é a que aparece

mais atrelada às estruturas comparativas no córpus de exame deste trabalho. De

acordo com Travaglia (2006, p. 202), ao deslocar o tema à esquerda, o falante

destaca o elemento tema que tem intenção de ativar ou reativar em seu enunciado.

Para Travaglia (2006, p. 208), da função básica do relevo positivo, que é dar

proeminência a elementos em um texto, derivam outras funções, que são: enfatizar;

intensificar; marcar um valor especial diferente do mais usual; instaurar valor de

contraste; consolidar um argumento; marcar relevância do elemento para a

estrutura; marcar o foco informacional. As funções do relevo podem entrecruzar-se,

dado que um mesmo procedimento de relevo pode desempenhar diferentes funções

em diferentes planos (TRAVAGLIA, 2006, p. 213). A comparação é tida aqui como

um recurso capaz de desempenhar todas essas funções. No trecho do sermão que

acaba de ser citado, o conjunto das comparações estabelecidas por Vieira enfatiza,

intensifica e marca um valor especial às finezas que ele se propõe revelar, instaura

valor de contraste entre as finezas do inicio e as do fim da vida de Cristo, também

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entre as finezas maiores e a maior de todas da qual Vieira tratará, assim como

marca a relevância das finezas de Cristo e o foco informacional do sermão.

Na análise que aqui se propõe, se examinará como os autores fazem uso

das comparações no estabelecimento de relevo, tanto negativo quanto positivo. Por

meio de alguns trechos dos textos, se demonstrará como os autores constroem

mecanismos contínuos de relevo, e como a comparação cumpre função primordial

nesse procedimento no caso das peças analisadas.

2.3 A determinação da natureza do exame proposto

Os textos examinados neste trabalho apresentam alto grau de natureza

retórica. Por isso, importa expor considerações sobre a Retórica, enquanto teoria do

discurso persuasivo, da composição e do estilo. Dado que todos os textos tratam de

temas teológicos, e que são escritos por religiosos da igreja católica, eles são

exemplares característicos do discurso religioso, e dessa natureza também se ocupa

este estudo. Contemplam-se também aspectos do gênero discursivo e do tipo textual

a partir dos quais os textos de análise se configuram.

O método central de análise não é de análise retórica nem discursiva. Trata-

se de uma análise textual que tem em conta elementos gramaticais a serviço da

comparação, em sua relação com a totalidade da peça e em um nível

textual/discursivo. Sendo assim, uma apresentação de considerações sobre o

estudo da retórica e sobre a configuração discursivo-textual das peças do córpus

pode servir como aparato de incursão e compreensão crítica, complementando o

aporte que se busca para apreender os mecanismos comparativos e sua função no

texto e no discurso em que se constituem.

2.3.1 O componente retórico nos textos em análise

Pode-se afirmar, com base em Tringali (1984, p. 15), que o termo ―retórica‖

se refere à teoria do discurso persuasivo. O ―rétor‖ é o orador ou o mestre da

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retórica. Embora o termo de origem grega ―retórica‖ e o de origem latina ―oratória‖

se liguem, etimologicamente, ao significado de ―falar‖, e inclusive possam se

substituir em alguns contextos, Tringali (1984, p. 15) os diferencia. O autor explica

que, além do sentido teórico, ―oratória‖ também se refere à prática do discurso, ao

conjunto de discursos de um determinado contexto, por exemplo, a oratória

brasileira.

De acordo com Tringali (1984, p. 8), há várias retóricas, que, de certa forma,

representam diferentes momentos históricos. A retórica antiga é a retórica por

excelência, é a retórica integral pois envolve a totalidade de estágios do discurso. O

nome deve-se ao fato de essa retórica ter surgido na Antiguidade Clássica. De

origem grega, a retórica antiga se define como a ―teoria do belo discurso

persuasivo‖, e se encontra registrada em Aristóteles, Cícero, Quintiliano (TRINGALI,

1984, p. 13). Segundo o autor, a retórica antiga sofreu um processo de cerceamento

pelo qual foram emergindo as demais retóricas: a retórica clássica, a retórica das

figuras, a retórica nova e a retórica semiótica.

A retórica clássica é definida por Tringali (1984, p. 13) como ―teoria da

composição e do estilo‖ ou ―arte de escrever e falar bem‖. Ela se reforçou na época

do classicismo da Renascença e se extinguiu no século XIX, com o nascimento da

Estilística. A retórica das figuras está reduzida apenas às figuras de estilo ou figuras

retóricas (exemplo: metáfora, metonímia, etc.). Ela teve vigência entre 1730 e 1830 e

reaparece atualmente sob o nome de Retórica Geral. A retórica nova constitui-se

como parte da lógica e a retórica semiótica lança mão do método semiótico para

colocá-lo em prática em qualquer discurso e linguagem (TRINGALI, 1984, p. 13 e

14).

O período histórico em que se manifestou a retórica clássica

(aproximadamente entre o classicismo da Renascença e o século XIX) é o mais

próximo ao período em que foram escritos e publicados os textos do córpus. Todos

os recursos da gramática, da poética e os que a literatura possa proporcionar são

objeto de exploração e de domínio da retórica clássica. Essa retórica se completa

com a poética em uma relação de influência recíproca, mesmo que de maneira não

simultânea.

Gradativamente, a teoria das figuras começa a ganhar notoriedade na

retórica clássica, até que passa a imperar sobre ela. O fato é que as figuras

estiveram presentes tanto na retórica antiga quanto na clássica, naquela com caráter

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persuasivo e nesta com um valor mais artístico. Na retórica das figuras elas

aparecem como matéria absoluta (TRINGALI, 1984, p. 88-99). Dada essa presença

constante das figuras nas primeiras retóricas, ainda que com valores e níveis de

prestígio diferentes, é importante também apresentar considerações sobre a retórica

das figuras. Além disso, há uma estreita relação entre o uso de figuras e o

movimento barroco, do qual Vieira e Sor Juana são representantes. Tringali (1984, p.

99) comenta que ―as figuras [...] causam o efeito de ‗estranhamento‘ ou ‗maravilha‘

como diziam os barrocos‖.

Tringali (1984, p. 97-99) identifica duas fases que compõem a retórica das

figuras: a primeira (1730-1830) foi atacada pelo Romantismo, que discordava do

ensino impositivo (mas não do uso) das figuras; a segunda, também chamada de

Retórica Geral, contribuiu para o estudo e a classificação das figuras. As figuras, por

sua vez, são definidas, com base no autor (1984, p. 99), como alterações da

linguagem, no âmbito da palavra, da frase, da expressão e do conteúdo, por meio de

acréscimos, subtrações, repetições ou permutas, visando a uma finalidade poética,

retórica ou estilística.

Da classificação apresentada por Tringali (1984, p. 102-113) que, segundo o

próprio autor, fornece uma ―exemplificação abundante das figuras‖, segue um

esquema adaptado, em que se apresentam apenas as figuras mais presentes nos

textos do córpus, desempenhando função retórica, principalmente as que estão mais

relacionadas ou combinadas com mecanismos comparativos:

hibérbato ou anástrofe: inversão da ordem natural das palavras;

elipse: omissão de palavras que se subentendem pelo contexto;

comparação: estabelecimento de semelhanças ou diferenças entre duas

coisas;

metáfora: estabelecimento de identificação e abreviação, comparação em que

não aparecem expressões gramaticais comparativas;

metonímia: atribuição de uma palavra, de uma coisa a outra coisa, com

alteração de significado não por semelhança, mas sim por haver uma relação

de contiguidade entre elas (causa e efeito, matéria e objeto, continente e

conteúdo, etc.);

alegoria: ficção com duplo sentido: um literal e outro moral/espiritual.

metáforas que desenvolvem uma metáfora;

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hipérbole: exagero expressivo por aumento ou diminuição;

interrogação retórica: interrogação apenas formal que equivale a uma

afirmação;

paradoxo: afirmação contrária à crença geral estabelecida. 8

Sobre a comparação vista como figura, acrescente-se que ―há comparações

comuns que se repetem, mas há comparações originais e até difíceis de se

perceber, porque a comparação, em literatura, [...] pode ser subjetiva‖ (TRINGALI,

1984, p. 108).

2.3.2 A natureza tipológica dos textos em análise: gênero discursivo e tipo

textual

Os aspectos gramaticais trazidos à discussão, neste estudo, não estão

isolados dos aspectos discursivo-textuais das peças escolhidas para análise. Assim,

com a finalidade de especificar as características dos gêneros discursivos e tipos

textuais que configuram as peças em questão, cabe esclarecer quais são os

conceitos aqui adotados para ―gênero discursivo‖ e ―tipo textual‖.

Aqui, assim como em Silva (1999, p. 87), o termo discurso é considerado

como uma atividade sócio-comunicativa, desenvolvida por sujeitos sociais em

relações de interação, a partir da qual se produz sentido. O discurso é materializado

por meio do texto, um ―todo significativo‖ que independe de sua extensão, e de sua

modalidade de expressão, oral ou escrita.

Segundo Bakhtin (1992), os gêneros do discurso são ―formas relativamente

estáveis de manifestação do discurso‖ cujas características temáticas, estilísticas e

composicionais são configuradas segundo as esferas de uso da língua. Essas

características dos gêneros manifestam as formas de normatização dos processos

interacionais, instauradas pelos sujeitos ao longo da história. Segundo o autor, os

sujeitos aprendem a adequar seu modo de comunicar às formas do gênero que

8 Lista adaptada de Tringali (1984, p. 102-113).

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utilizam, bem como desenvolvem sensibilidade para reconhecê-lo na fala de outros

sujeitos.

Conforme Bakhtin (1992), além da esfera de uso da linguagem (pública ou

privada), outras condições envolvem o funcionamento dos gêneros discursivos, no

que diz respeito ao seu processo de produção, recepção e difusão. Entre o conjunto

de fatores, o autor aponta, entre outros, os interlocutores, o lugar e o papel em que

esses sujeitos atuam no processo interlocutivo, o intuito discursivo do locutor e a

projeção da compreensão responsiva que este faz do seu interlocutor. No caso das

peças de Vieira e de Sor Juana, as condições de produção, recepção e difusão dos

discursos também definem a maneira como eles serão materializados nos textos,

nos gêneros discursivos escolhidos.

Tratando da heterogeneidade de gêneros que há em uma sociedade

complexa, Bakhtin (1992) classifica os gêneros em primários e secundários. Os

gêneros primários são aqueles que se instauram em instâncias privadas, de

atividades cotidianas ou íntimas. Os gêneros secundários, por sua vez, aparecem

em instâncias públicas, de atividades caracterizadas como mais formais. Entre os

exemplos de gêneros secundários, Silva (1999, p. 95) menciona os sermões e as

cartas comerciais. Assim, a análise que se fará adiante tem como objeto de análise

textos pertencentes a gêneros discursivos secundários. A Carta Atenagórica de Sor

Juana, ainda que seja destinada a uma pessoa específica, está relacionada a uma

situação e a um modo de organização bastante formais.

Marcuschi (1995) usa o termo ―gênero textual‖, mas sua conceituação

coincide com a de ―gênero discursivo‖ de Bakhtin (1992): ―A meu ver, essa diferença

é somente de ordem terminológica, e não conceitual‖, diz Silva (1999, p. 98). Para

Marcuschi (1995), a construção conjunta do trabalho linguístico nas atividades

interlocutivas, da qual participam os sujeitos, não anula a possibilidade de uma

atuação individual de cada um desses sujeitos, por meio da eleição que cada um faz

de determinados recursos linguísticos.

Outro conceito importante para a compreensão da estrutura e da intenção

comunicativa das peças do córpus é o de tipo textual. Silva (1999, p. 101),

remetendo a alguns estudos de linguística textual, define ―tipo textual‖ como um

conceito relativo ao modo pelo qual funciona e é constituída a estrutura interna do

texto. Dessa maneira, um texto de dado gênero discursivo pode configurar-se por

meio de vários tipos textuais: ―o locutor atualiza uma série de operações textual-

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discursivas, que incidem nos níveis micro e macroestruturais da configuração formal

e conceitual do texto‖ (SILVA, 1999, p.101).

Para a autora, as formas de modalização das operações textual-discursivas,

ou seja, dos tipos textuais, são a narração, a descrição, a

dissertação/argumentação, e a injunção. No entanto, neste trabalho adota-se uma

concepção diferente sobre a argumentação. Para a análise de Vieira e de Sor

Juana, não se considera que a dissertação e a argumentação são a mesma coisa.

Considera-se a dissertação como um tipo textual. De fato, na dissertação costuma

haver argumentação, no entanto a argumentação é uma estratégia de construção

textual, não um tipo textual.

Silva (1999, p. 101) aponta que cada modo enunciativo desempenha uma

função específica de acordo com a configuração textual e com a finalidade

comunicativa. Entre outros gêneros discursivos, a autora apresenta o sermão como

exemplo de gênero em que a operação argumentativa pode valer-se de diferentes

operações textual-discursivas. De fato, nos sermões que figuram neste trabalho,

Vieira narra acontecimentos, descreve, comenta e avalia fenômenos, tudo com a

finalidade de orientar seu percurso retórico e convencer seu interlocutor. Contudo,

em sua organização estrutural, o modo de operação textual-discursiva predominante

é a dissertação. Em muitos outros textos essa predominância de um dado tipo

textual que se sobrepõe aos outros também é frequente.

Conforme Fávero e Koch (1987), ―num continuum argumentativo, podem-se

localizar textos dotados de maior ou menor argumentatividade, a qual, porém, não é

jamais inexistente‖, e alguns discursos estão carregados de um teor argumentativo

elevadíssimo. Mais uma vez, o sermão, entre outros gêneros não só do discurso

religioso mas também do publicitário, do jornalístico e do jurídico, é exemplo de

gênero que apresenta um modo enunciativo argumentativo stricto sensu, em que a

argumentação alcança seu grau mais elevado.

É justamente o tipo dissertativo, e com elevada carga argumentativa, o que

mais interessa a este trabalho. Considerando que tanto os sermões quanto a carta

de Sor Juana buscam convencer o interlocutor com argumentos e refutações, todos

os textos aqui analisados apresentam um grau argumentativo alto. Aliás, esses

textos apresentam exatamente as mesmas categorias indicadas por Silva (1999, p.

104), como categorias integrantes da superestrutura comum à dissertação: tese

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(problematização), conjunto dos argumentos (argumentação ou justificativa) e

conclusão (solução do problema).

Sintetizando as idéias que acabam de ser desenvolvidas, as categorias de

análise ―gênero discursivo‖ e ―tipo textual‖ abrigam realidades diferentes do discurso.

Contudo, pode haver uma relação de entrecruzamento entre elas, quando da

caracterização de um discurso, pertencente a determinado gênero, e atualizado em

determinada(s) operação(operações) textual-discursiva(s). Segundo Silva (1999, p.

100), para se depreender a natureza do gênero discursivo é necessário explorar, no

texto, as dimensões pragmático-social, lingüístico-textual e temática/macroestrutural.

Até aqui, estabeleceu-se que as duas primeiras peças de análise são pertencentes

ao gênero discursivo sermão e que a terceira peça pertence ao gênero discursivo

carta. Além disso, elas trazem em sua configuração vários tipos textuais em

diferentes pontos de sua extensão, com predominância do tipo dissertativo e

utilização intensa de estratégias argumentativas.

2.3.3 O componente religioso dos textos em análise

Orlandi (1987), apresenta a religião como um espaço institucional que

envolve uma diversidade de práticas, por meio das quais uma certa discursividade é

expressa. Os diversos discursos religiosos e as diferentes maneiras pelas quais eles

se configuram refletem essa multiplicidade das manifestações da religião. Para a

autora, o discurso religioso, enquanto objeto de conhecimento, é a territorialização

da espiritualidade do homem, um ―lugar‖ em que ele a constrói e expressa.

Para Orlandi (1987, p. 8), no discurso religioso ―o homem fala no dizer que

ele coloca na voz de Deus‖. À luz da Análise do Discurso, Deus é o lugar da

―onipotência do silêncio‖, em que o homem institui uma fala sua, e na religião está o

espaço encontrado pelo homem para ser completado com palavras que demarcam

sua ―vida espiritual‖ (ORLANDI, 1987, p. 8).

De acordo com Satzer (1987, p. 94), o caráter religioso extrapola o espaço

da igreja e alcança práticas cotidianas. Com base em Orlandi (1987, p. 9 e 10),

pode-se dizer que a religião (sobretudo a cristã) e o discurso religioso são (e foram)

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extremamente presentes e atuantes na cultura ocidental, cruzados com outros

discursos e com outras atividades culturais que não as religiosas.

Considerando que dois textos do córpus pertencem ao gênero sermão, e

que o terceiro texto constitui uma reflexão sobre um sermão, é de grande relevância

uma descrição da estrutura estilística e do contexto em que se instaura esse gênero,

na condição de representante do discurso religioso. Segundo Setzer (1987, p. 93), o

sermão combina uma estilística marcada e formal a um contexto restrito, como o

culto religioso e a Igreja. Há uma formalidade situacional, com desnível da relação

locutor-ouvintes, devido à assimetria social entre o padre, figura pública, e seus

ouvintes (SETZER, 1987, p. 95).

Uma configuração típica do discurso religioso apresenta-se em Orlandi

(1983, apud SETZER, 1987, p. 94 e 95). De acordo com essa configuração, o

discurso religioso costuma apresentar os seguintes traços: identificação dos sujeitos

entre si por meio do vocativo ―Irmãos‖ e tratamento por ―nós‖; parábolas e versículos

bíblicos usados como demonstração e validação das situações; uso de sintagmas

cristalizados para terminar sermões (exemplo: ―Oremos‖); explicação de metáforas

por paráfrases; uso de imperativo; uso de antítese; uso de performativos (exemplo: o

padre ordena e condena, os fiéis justificam e aceitam).

Nos dois sermões de Vieira, é possível identificar a maior parte dos traços

mencionados. Não há no início do sermão de 1643 nenhum vocativo direcionado ao

público, mas no último capítulo Vieira se dirige ao público nas seguintes passagens:

―Eis aqui, fiéis, como nenhum dos remédios...‖ (capítulo VII); ―Que amamos, cristãos,

se não amamos a Jesus?‖ (capítulo VII). Ao longo dos sermões é possível notar a

referência ao público na primeira pessoa do plural, por exemplo em ―Ponhamo-nos

agora com o pensamento no cenáculo‖ (capítulo V) e ―Amemos a quem tanto nos

amou‖ (capítulo VII). Os versículos bíblicos e paráfrases da bíblia são constantes

durante o sermão, como o versículo do livro de João que constitui a epígrafe, e as

histórias de Caim Abel, do rei Davi, de Cristo e seus Discípulos, de Madalena, etc.,

para validar as ideias expostas.

Também é recorrente o uso de imperativo: ―Notai agora, e notai muito...‖

(capítulo V); ―Ouvi e pasmai‖ (capítulo VI). Em alguns momentos percebe-se uma

relação de antítese, como no trecho ―O que neles é tristeza, para ser amor havia de

ser alegria, e o que em mim parece que havia de ser alegria, porque é amor, é

tristeza‖ (capítulo VI). Sobre os performativos, é possível identifica-los apenas no

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que se refere ao padre: ―Quem não pasma tendo ouvido tais palavras, ou não tem

juízo ou não tem fé‖ (capítulo VI).

No sermão de 1650, o vocativo ―Cristãos‖ aparece poucas vezes, como em

―Este é, Cristãos, o mandato do amor [...]‖(capítulo XIII). O locutor se dirige aos

ouvintes diversas vezes usando ―nós‖: ―É verdade que Cristo Senhor nosso no

Sacramento vê-nos com os olhos da divindade‖ (capítulo V). Vieira menciona

passagens bíblicas, muitas delas, presentes também no sermão anterior (Madalena,

Davi, Cristo e os Discípulos, etc.).

O imperativo aparece em alguns momentos, por exemplo em ―ponhamo-nos

com Cristo no cenáculo [...] e façamos esta proposta‖ (capítulo VII), assim como

jogos de antítese, como nessas passagens: ―O que vos matou a morte, foi Cristo

vivo; e o que vos roubou a ausência, foi Cristo morto...‖ (capítulo II);

―Verdadeiramente não pode haver maior igualdade com todos, mas igualdade que

parece injustiça‖ (capítulo IX). Aqui também se encontram performativos (de

ordenação e condenação): ―porque nós somos os que havemos e devemos amar‖

(capítulo XI); ―o homem que se não faz amigo do maior inimigo, quase pode

desesperar de sua salvação, e resolver-se que não é predestinado‖ (capítulo XIII).

A Carta Atenagórica, por não estar dirigida a um grupo de fiéis, mas sim a

um destinatário específico, não apresenta vocativos como ―fieis‖, ―irmão‖, nem

―cristãos‖, mas sim ―Mui Senhor Meu‖ 9 para iniciar o texto, e volta a invoca-lo em

outros momentos, como em ―Veja-o vossa mercê‖ 10. Contudo, algumas vezes há

referência aos homens ou, mais especificamente aos cristãos, usando-se a primeira

pessoa do plural, ainda que esse grupo não apareça como interlocutor: ―e quer

Cristo lembrar-nos seu custo e nossa utilidade‖ 11; ―porque como filhos do pecado e

concebidos nele, temos a semente da culpa‖ 12.

Assim como nos sermões, na carta há inúmeras paráfrases e capítulos

bíblicos, como narrações sobre Jacó, Davi, Madalena, José e Rubens, Moisés, e

também uma grande quantidade de falas atribuídas a Cristo/Deus. Também estão

presentes estruturas que, de certo modo, podem ser consideradas como expressões

9 ―Muy Señor Mío‖ (DE LA CRUZ, 1690).

10 ―Véalo V. md.‖ (DE LA CRUZ, 1690).

11 ―y quiere Cristo acornarnos su costo y nuestra utilidad‖ (DE LA CRUZ, 1690).

12 ―porque como hijos del pecado y concebidos en él, tenemos la semilla de la culpa‖ (DE LA CRUZ,

1690).

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cristalizadas, por exemplo: ―Ouçamos‖ 13, ―Jesus!‖ 14 e ―Valha-me Deus‖ 15. O uso do

imperativo, voltado aos homens ou aos cristãos, aparece diversas vezes, com maior

frequência no final da carta: ―Não gastemos tempo‖ 16; ―Estimemos o benefício que

Deus nos faz […]‖ 17; ―Agradeçamos e ponderemos este primor do Divino Amor […]‖

18.

Há algumas sequências em que Sor Juana cria uma relação de antítese

entre elementos: ―Aqui a maior dor embargou ao pranto, e ali a menor lhe permitia‖

19; ―não são indício de muito grave dor as lágrimas, [...] que indiferentemente servem

ao pesar e ao gosto‖ 20; ―dista a dor de um deleite que não se goza, a uma ofensa

que se tolera‖ 21. Assim como o uso de imperativo, também o de performativos é

mais frequente no final da carta: ―por sua obediência temos de amar ao próximo‖ 22;

―não invejemos as mercês que Deus lhe fez‖ 23; ―¡Oh, que errado vai o objeto da

inveja [...]!‖ 24.

13

―Oigamos‖ (DE LA CRUZ, 1690). 14

―¡Jesús!‖ (DE LA CRUZ, 1690). 15

―Válgame Dios‖ (DE LA CRUZ, 1690). 16

―No gastemos tiempo‖ (DE LA CRUZ, 1690). 17

―Estimemos el beneficio que Dios nos hace […]‖ (DE LA CRUZ, 1690). 18

―Agradezcamos y ponderemos este primor del Divino Amor […]‖ (DE LA CRUZ, 1690). 19

―Aquí el mayor dolor embargó al llanto, y allí el menor le permitía‖ (DE LA CRUZ, 1690). 20

―no son indicio de muy grave dolor las lágrimas, […] que indiferentemente sirven al pesar y al gusto‖ (DE LA CRUZ, 1690). 21

―dista el dolor de un deleite que no se goza, a una ofensa que se tolera‖ (DE LA CRUZ, 1690). 22

―por su obediencia hemos de amar al prójimo‖ (DE LA CRUZ, 1690). 23

―no envidiemos las mercedes que Dios le hizo‖ (DE LA CRUZ, 1690). 24

―¡Oh, qué errado va el objeto de la envidia [...]!‖(DE LA CRUZ, 1690).

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3 CARACTERIZAÇÃO DAS ESTRUTURAS COMPARATIVAS

A comparação é um mecanismo básico da mente humana, a qual tem por

característica essencial a capacidade de discriminar. ―Em geral, vemos e avaliamos

as coisas comparativamente, e a nossa linguagem reflete essa base de

discriminação que orienta o espírito humano‖ (NEVES, no prelo). Ao tratar das

estruturas comparativas, Gutiérrez Ordóñez (1997a, p. 05) afirma que o homem está

sujeito a uma ânsia comparativa incessante. O autor menciona o provérbio que diz

que ―as comparações são odiosas‖ 25 26, referindo-se à subjetividade do juízo de

valor feito pelo homem, resultado do cotejo da comparação. Para ele, a comparação,

além de refletir um impulso cognitivo constante, está sujeita, como qualquer juízo de

valor, a equívocos e discordâncias de opinião, o que se resume no referido dito

popular.

O que se quer mostrar nesta pesquisa são os proveitos que se pode obter

por meio do mecanismo comparativo, quando da sua ativação no uso da língua com

uma finalidade comunicativa e discursiva. Posto que a análise está fixada nas

línguas portuguesa e espanhola, cabe apresentar considerações teóricas com vista

à caracterização das estruturas que refletem mecanismos comparativos,

direcionadas às duas línguas.

Para Gutiérrez Ordóñez (1997a), historicamente, os estudos gramaticais

concederam escassa atenção aos temas que se referem às estruturas comparativas:

[...] em geral, se limitam a realizar uma classificação (igualdade, superioridade, inferioridade), a situá-las entre as circunstanciais e a apontar os elementos formais que intervém (más, menos, ... que, como). […] É certo que há alguns anos foram publicadas numerosas reflexões sobre o tema que contribuíram, ao menos, a desvelar os sérios e abundantes problemas que apresentam. Ángel López realizou uma bela classificação tipológica das soluções oferecidas até o momento. Planam sobre o horizonte ainda muitas nuvens carregadas‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ 1997a, p. 05)

27.

25

Provérbio em língua original: ―Las comparaciones son odiosas‖ (apud GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a, p. 05). 26

Todas as traduções oferecidas neste trabalho são de minha autoria. 27

―[…] en general, se limitan a realizar una clasificación (igualdad, superioridad, inferioridad), a ubicarlas entre las circunstanciales y a señalar los elementos formales que intervienen (más, menos, ... que, como). […] Es cierto que hace unos pocos años se han publicado numerosas reflexiones sobre el tema que han contribuido, al menos, a desvelar los serios y abundantes problemas que presentan. Planean sobre el horizonte aún muchos nubarrones‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ 1997a, p. 05).

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Mesmo em meio a essa carência de tratamentos mais aprofundados de

questões ligadas à comparação, atualmente é possível encontrar estudos que

apresentam grandes avanços no tratamento das expressões comparativas.

Considerando que esta pesquisa busca mostrar o mecanismo comparativo em sua

função comunicativa e discursiva, oferece-se, neste capítulo, noções sobre as

estruturas que expressam comparação, à luz de propostas de orientação

funcionalista.

Há uma grande distância temporal entre as peças do córpus e as obras

gramaticais consultadas para este capítulo. As considerações aqui aportadas se

referem ao uso atual das construções comparativas, enquanto as construções

comparativas presentes nos textos do córpus provavelmente possuam

particularidades do uso da época em que foram escritos (século XVII). No entanto,

essa caracterização das estruturas comparativas, ainda que referente ao uso atual,

pode auxiliar na análise das estruturas comparativas identificadas no córpus, desde

que essa análise tenha em conta aspectos relacionados ao contexto histórico, social

e artístico dos textos. É o caso, por exemplo, das questões sobre gênero discursivo,

retórica e barroco, e das considerações sobre os contrastes percebidos entre os

textos e seus autores, apresentadas nos demais capítulos do trabalho.

3.1 Comparação como referenciação

De acordo com Halliday & Hasan (1976), a referenciação é um dos

processos coesivos da língua. Eles classificam a referenciação em demonstrativa,

pessoal, e comparativa. Para esta parte da pesquisa, serão expostas considerações

sobre a comparação no que diz respeito ao seu caráter referencial 28.

No tratamento da comparação, a primeira questão apontada em Halliday &

Hasan (ibidem., p. 77) é a distinção que os autores fazem entre a comparação geral

e a comparação particular. A comparação geral não diz respeito a nenhuma

28

No exame que se fez de Halliday & Hasan (1976), verificou-se que os autores não contemplam o superlativo como referencial. É importante esclarecer que neste trabalho se considera a afirmação de Neves (no prelo), de que o superlativo relativo (diferentemente do absoluto) pode estabelecer uma relação de superioridade ou de inferioridade. Assim, considera-se, aqui, que o superlativo relativo

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propriedade particular com relação à qual se comparam duas coisas. Por essa

categoria de comparação duas coisas podem ser idênticas, similares ou diferentes,

considerando que a diferença implica não identidade e não similaridade. A

comparação particular expressa quantidade ou qualidade com relação a uma

propriedade também particular.

Adjetivos (bem como pronomes adjetivos) e advérbios podem ser usados na

expressão comparativa, caso, por exemplo, em português, dos adjetivos idêntico,

diferente e dos advérbios identicamente, diferentemente. Esses elementos, usados

na comparação geral, se distinguem, em inglês, por exemplo, dos adjetivos e

advérbios comparativos, usados em inglês na comparação particular, como é o caso

dos adjetivos de grau comparativo terminados em –or e dos advérbios mais e

menos, em português.

Segundo Halliday & Hasan (ibidem, p. 78 e 81), assim como a comparação

particular, a comparação geral é referencial. Ora, é impossível que uma coisa seja

semelhante sem que haja ―alguma coisa‖ com relação à qual essa semelhança se

instaure. O mesmo conjunto de possibilidades que operam nas demais referências

são compreendidos pela referência comparativa. Dessa maneira, o referente da

comparação pode situar-se no texto (referência endofórica), ou na situação

(referência exofórica). Quando o referente está no texto, ele pode localizar-se em

uma parte anterior ao elemento comparativo (referência anafórica) ou em uma parte

posterior ao elemento comparativo (referência catafórica).

Para demonstrar como a comparação implica referência, Halliday & Hasan

(ibidem, p. 81), examinando a obra de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas,

mencionam o trecho da história em que a Lebre de Março diz a Alice: ―Tome mais

um pouco de chá‖ 29 30. Ao que ela responde: ―Eu ainda não tomei nada‖ 31. A

personagem não encontrou o ponto de referência, por isso, em sua fala, observa

essa falta.

Na ilustração anterior não havia ponto de referência. Em muitos casos, no

entanto, a referência está implícita, e sua recuperação é presumível. Como exemplo,

os autores apresentam a seguinte frase: ―Nós estamos buscando padrões de vida

constitui referência comparativa entre um elemento e um conjunto de elementos que apresentam uma mesma propriedade. 29

―Take some more tea‖ (CARROLL apud HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 81). 30

Todos os exemplos apresentados neste capítulo são de autoria das fontes consultadas e se conserva a numeração e as formas de destaque (negrito, itálico, etc.) originais.

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mais altos‖ 32. Segundo os autores, presumivelmente se entende ―padrões mais altos

do que qualquer outro‖ 33 (HALLIDAY & HASAN, ibidem., p. 81). A ocorrência de

elipse está ligada à referência, ao conhecimento de mundo, às informações que

muitas vezes não aparecem porque se espera que seja uma referência recuperável.

A comparação, como já foi declarado, é uma estrutura que cobra a existência de

uma referência. E frequentemente ocorre elipse, porque muitas vezes essa

referência vem do conhecimento mútuo das pessoas, do conhecimento de mundo.

O que se apresenta nos subseções subsequentes é uma caracterização

mais específica das estruturas comparativas nas línguas portuguesa e espanhola.

Nas propostas de caracterização de ambas as línguas, os autores admitem que a

comparação pode ser expressa por estruturas mais específicas e por estruturas mais

gerais, embora nem sempre exatamente com o mesmo critério de classificação visto

em Halliday & Hasan (1976). A questão do ponto de referência implícito (elipse)

também é tratada nas duas propostas.

A definição de estruturas comparativas para este trabalho tem em conta

tanto critérios semânticos quanto formais. Sempre que esses tipos de critérios

apareçam separados, será por uma questão de organização de tópicos

textual/discursivos, com fim de esclarecer os diferentes aspectos relacionados a

essas estruturas.

3.2 A comparação em língua portuguesa

O estabelecimento dos mecanismos comparativos se dá por meio de

expedientes mais específicos, como é o caso das orações comparativas, mas

também de expedientes mais gerais, como os lexicais, sob forma de verbos (diferir,

igualar), substantivos (diferença, igualdade), advérbios (diferentemente, igualmente),

etc.

31

―I‘ve had nothing yet‖ (CARROLL apud HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 81). 32

―We are demanding higher living standards‖ (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 81). 33

―higher than any other‖ (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 81).

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3.2.1 Estruturas comparativas do português

Neves et al. (2008) apresenta uma análise profunda das construções

hipotáticas comparativas. As considerações expostas nas subseções que se referem

às estruturas comparativas do português (3.2.1 e 3.2.2) são todas fundamentadas

em Neves et al. (2008) e Neves (no prelo) 34. Nessa proposta, as bases que

direcionam a análise das construções hipotáticas comparativas estão orientadas por

três componentes, a (in)existência de correlação, a quantificação e a (des)igualdade.

O que caracteriza esse tipo de construção é, fundamentalmente, uma

interdependência entre dois elementos, sob uma visão sintática, e um cotejo entre

esses dois elementos, sob uma visão semântica. A ideia de contraste, – percebida a

partir dos dois elementos cotejados – está sempre presente na comparação. Há

sempre um elemento comum entre os dois componentes, em relação ao qual eles

são comparados. Além disso, a comparação pode constituir-se como sendo de

igualdade ou de desigualdade. A desigualdade, desmembrada em dois tipos:

superioridade e inferioridade.

Nas estruturas comparativas, além dos elementos em contraste e do

elemento comum, é possível identificar o marcador do contraste e o expediente

sintático do contraste (que geralmente aparece como uma conjunção comparativa).

Embora seja mais freqüente a ocorrência de comparações com somente um

elemento comum, é possível também que exista mais de um elemento comum

colocado em exame.

A caracterização semântica e sintática das comparativas, assim como a

identificação dos elementos que a compõem, pode ser percebida nos dois

esquemas a seguir:

(5-2) há uma diferença apenas de grau, um é mais profundo do que o outro [EF POA 278]

Esquema:

Elemento comum (padrão): ser profundo (em determinado grau)

Elementos em contraste: um/ o outro

Marcador do contraste: mais (desigualdade, com superioridade)

Expediente sintático do contraste: do que

34

Feita essa indicação, dispenso-me de citar, a cada momento, a autora no desenvolvimento dessas subseções.

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Juntura: um mais profundo do que o outro profundo

Hoje em dia se vê mais televisão do que antigamente se ouvia rádio

Esquema:

Elemento comum (padrão): ser usuário de um meio de comunicação (em um certo grau)

Elementos em contraste: a) hoje em dia/antigamente

b) ver televisão/ ouvir rádio

Marcador do contraste: mais (desigualdade com superioridade)

Expediente sintático do contraste: do que

Juntura: ver televisão mais hoje em dia do que ouvir rádio antigamente 35

Devido à presença do elemento comum, posto na base da construção, é

possível omitir esse elemento na segunda parte da comparação, como, por exemplo,

em ―(5-12) a aula prática é mais interessante do que a aula teórica [DID SSA 231]

(= a aula prática é muito mais interessante do que a aula teórica é interessante)‖.

À omissão dá-se o nome de elipse; e à parte do texto favorável a elipse chama-se

resíduo. Muitas vezes os membros colocados em cotejo em uma comparação não

são orações completas, e sim sintagmas ou orações elípticas, até mesmo sem o

verbo. Desse modo, pode ocorrer desde elipse parcial até a elipse total da oração

comparativa.

A recuperação dos termos elípticos pode ocorrer por meios distintos. Assim,

se há elipse somente do elemento comum, a possibilidade de restaurá-lo está

condicionada à reativação da estrutura da comparação. Há casos em que outros (ou

todos os) elementos do segundo membro sofrem elipse, como ocorre em ―(5-17) E o

pavimento em si, que é um pavimento mais espesso, pra aguentar um tráfego mais

pesado [D2 SSA 98]‖. Nesses casos, a restauração requer mecanismos mais

complexos, e pode remeter ao primeiro membro da comparação, ao texto, à situação

e inclusive ao conhecimento compartilhado entre os envolvidos na comunicação.

Com isso, esse processo de restituição ocorre de maneira subjetiva e, em alguns

casos, há mais de uma possibilidade de resgate dos prováveis elementos elípticos.

A relação hipotática adverbial comparativa é constituída por duas orações:

uma oração nuclear, à qual pertence o primeiro termo da comparação (constituinte

comparado); e uma comparativa, na qual se encontra o segundo termo de

35

Esquemas adaptados de Neves et al. (2008).

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comparação (constituinte através do qual se realiza a comparação) em relação à

oração nuclear.

Considerados os modos de marcação, as comparativas se classificam em

correlativas e não-correlativas. O que as diferencia é o fato de que as correlativas

possuem uma marca formal tanto no primeiro membro da comparação como no

segundo, conforme se vê em ―(5-21) ...foi mais fácil ainda João do que a sua

resposta... não é? [EF REC 337]‖. A marca do primeiro membro pode ou não

expressar quantidade (de um termo de massa) ou intensidade (de um evento, uma

qualidade ou uma circunstância), enquanto a marca do segundo membro é,

geralmente, uma conjunção comparativa, marca comum nas relações de hipotaxe 36.

Por outro lado, nas estruturas comparativas não-correlativas não há uma marca

formal de quantidade ou intensidade na oração nuclear, como em ―(5-25) eu penso

como um filósofo inglês [D2 REC 05]‖ e em ―(5-27) as estantes ficam junto das

mesas a gente está sentada tal como aqueles livros BEM agarradinho junto da

mesa sabe? [DID SSA 231]‖. Além disso, a oração comparativa não correlativa é

introduzida por uma conjunção ou locução conjuntiva que expressa igualdade.

A respeito das relações expressas nas comparações, a classificação se

organiza partindo da divisão entre construções correlativas e não correlativas. As

comparações estabelecidas por orações correlativas podem expressar igualdade,

que se refere a quantidade ou a intensidade, e indicam semelhança entre os

elementos postos em cotejo com relação a determinada propriedade. As correlativas

também podem expressar desigualdade, que se refere sempre a quantidade,

podendo ser de inferioridade ou de superioridade. Por sua vez, as não correlativas

expressam sempre igualdade, que pode ser qualitativa ou quantitativa.

O contraste sempre está presente nesse tipo de construção, e ele pode

apresentar desde um grau máximo, no caso da polarização (sim/não) (5-42), até um

grau bem pouco acentuado (5-43). Nesse intervalo é possível identificar outras

classificações de contrastes, por exemplo, o contraste entre o real e o potencial (5-

45), entre um tempo e outro (5-47) e entre um lugar e outro (5-49). Além disso, os

marcadores de contraste podem ser intensificados por meio de advérbios (por

exemplo: muito e bem) (5-52):

36

Cf. a subseção 2.2.2.3 do segundo capítulo, em que Decat (2001) defende que as relações hipotáticas adverbiais podem emergir de uma combinação de cláusulas (termo usado pela autora), sem que uma conjunção introduza a cláusula satélite.

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(5-42) os vizinhos se comunicam de forma até mais até como cidade do interior [do que como cidade que não é do interior [do que como cidade que não é do interior] [D2 REC 05] (5-43) tem meses que a gente anda mais... uns menos [D2 RJ 355] (5-45) se houvesse mais educação... como há por exemplo na Suécia... [D2 RJ 355] (5-47) hoje em dia não aparece tanto [filme] como antigamente [DID SP 234] (5-49) prefiro ir a teatro do que a cinema [DID SP 234] (5-52) vai dar bem mais detalhes [EF RJ 379]

Em sua análise, Neves et al. (2008) expõe uma classificação detalhada dos

subtipos de construções comparativas, associando as relações expressas (igualdade

e desigualdade), os elementos em contraste em relação ao elemento comum, e

também o marcador de contraste e o expediente sintático, conforme o subtipo

apresentado. Para exposição dessa classificação, seguem dois quadros com a

esquematização desses subtipos, todos eles adaptados de Neves et al. (2008):

CONSTRUÇÕES COMPARATIVAS DE DESIGUALDADE

Existência de intensificação ou de quantificação.

Uso de marcador de contraste e expediente sintático.

Indivíduos em relação a uma propriedade

Com intensificação do adjetivo ou advérbio. Sem intensificação do adjetivo ou advérbio. A intensificação pode ocorrer, nesse caso, através de um sufixo, da entoação, ou da ordem.

Intensificação marcada por tão. Uso de como ou quanto para iniciar o segundo termo: ‗(5-54) parte a carne em pedaços maiores... não tão grandes como para fazer o bife [DID RJ 328]‘

Como ou tal qual para iniciar o segundo termo: ‗Uma vez, Pernambuco deixará de ser civilizado e progressista tal qual a Europa, mas salvará um homem‘

Propriedades em relação a um ou mais indivíduos

Com intensificação relativa das propriedades. Sem intensificação relativa das propriedades. Apresenta sentido de soma das duas qualidades.

O primeiro sintagma adjetivo vem precedido de tão e o segundo de quanto ou como: „A integração latino-americana é uma realidade tão

concreta quanto fecunda‟

Tanto... como/quanto = não só... como também: ‗(5-55) eles apenas assistem aulas... tanto teórica como prática [DID SSA 231]‘

Indivíduos implicados em um estado de coisas 37

Com quantificação implicada no cotejo.

O primeiro sintagma nominal é quantificado com tanto (concordando com o nome núcleo do sintagma); e o segundo é precedido por como, ou por quanto (que concorda com o nome núcleo do

37

Não há exemplos na fonte consultada.

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Sem quantificação implicada no cotejo. Apresenta sentido de soma dos dois sintagmas nominais

sintagma) Tanto... como/quanto = não só... como também), e os elementos tanto e quanto ficam invariáveis.

Circunstantes em relação a um estado de coisas 38

Com quantificação relativa das circunstâncias. Sem quantificação relativa das circunstâncias. Apresenta sentido de soma dos dois sintagmas adverbiais.

O primeiro sintagma adverbial é intensificado com tão; o segundo é precedido por quanto ou como. Tanto... como/quanto = não só... mas também.

Predicados em relação a um indivíduo

Com comparação quantitativa dos sintagmas verbais. Com comparação qualitativa dos sintagmas verbais.

A sentença comparativa vem iniciada por tanto quanto: ‗E elas a atraem tanto quanto a horrorizam‘

A sentença comparativa vem iniciada por do mesmo modo que: ‗Levamos a nossa arte, a nossa civilização do mesmo modo que buscamos o que os povos têm de melhor‘.

Predicações (duas sentenças: principal e subordinada)

Com intensificação ou quantificação de algum elemento da sentença principal: normalmente ocorre elipse de termos na segunda sentença. Sem intensificação ou quantificação de algum elemento da sentença principal. Apresenta sentido de adição, indicando igualdade de proporção. A sentença comparativa é anteposta ou posposta, e pode ou não apresentar elipse de algum termo.

Na sentença principal ocorre tão ou tanto; a sentença comparativa se inicia por quanto ou como: ‗(5-57) a natação... tanto é bom pra saúde quanto pra defesa [DID SSA 231]‘

Há duas possibilidades de comparação deste tipo: - Qualitativa, iniciada por como, assim como, tal qual, tal como (= do mesmo modo que): ‗(5-58) essa possibilidade de:sentir como o outro... de ver como o outro... de falar como o outro... [EF REC 337]‘

-Quantitativa, iniciada por tanto quanto (na mesma proporção que): ‗Tanto quanto o comércio da cidade livre, o hospital centralizava as atenções.‘

Quadro 2 - Construções comparativas de igualdade 39

38

Idem. 39

A fonte é Neves et al. (2008, p. 63-72).

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CONSTRUÇÕES COMPARATIVAS DE DESIGUALDADE

Tipo de desigualdade, marcador de contraste e expediente sintático

Comparação de desigualdade com superioridade quantitativa do 1o termo: a qualidade é quantificada por mais e o segundo termo da comparação inicia-se por que ou do que. Comparação de desigualdade com inferioridade quantitativa do 1o termo: a qualidade é quantificada por menos e o segundo termo da comparação inicia-se por que ou do que.

Elementos em contraste em relação ao elemento comum

Modos de instituição

Indivíduos em relação a uma propriedade.

O esquema se constitui assim: 1º sintagma nominal + mais/menos + adjetivo + que/do que + 2º sintagma nominal. A sentença comparativa apresenta, com frequência, elipse de termos: ‗(5-64) há uma diferença apenas de grau, um é mais profundo do que o outro [EF POA 278]‘

Propriedades em relação a um indivíduo.

O esquema se constitui assim: mais/menos + 1o adjetivo + que/do que + 2o adjetivo: ‗Era um menino pacífico, bem comportado, mais silencioso do que falador‘.

Indivíduos em relação a um estado de coisas.

O quantificador (mais/menos) vem antes do primeiro sintagma ou diretamente antes da conjunção comparativa (que/do que): ‗(5-67) depende mais do cliente do que do candidato [EF RJ 379]‘ ‗Mais que um dispêndio, estudar é um investimento‘.

Circunstantes em relação a um estado de coisas.

O quantificador (mais/menos) vem antes do primeiro sintagma ou diretamente antes da conjunção comparativa (que/do que): ‗Mas essa decadência só é, é, é muito mais no Rio de Janeiro do que em outras cidades do Brasil, né? [RJ AC 233]‘ ‗(5-68) mais do que nunca, é preciso fazer uma análise da situação [EF POA 278]‘

Predicados em relação a um indivíduo.

O quantificador (mais/menos) vem antes do predicado ou diretamente antes da conjunção comparativa (que/do que): ‗Saquei o 38 e atirei no para-brisa mais para estrunchar o vidro do que pegar o sujeito‘. ‗(5-69) com a preocupação de (...) fazer parecer que conhecem efetivamente mais do que conhecem [D2 REC 05]‘

Comparação entre sentenças.

Normalmente há elipse do verbo, podendo ocorrer elipse também de outros termos na sentença comparativa, inclusive de toda a sentença: ‗(5-72) mas ele fala mais do que eu [D2 SSA 98]‘

Quadro 3 - Construções comparativas de desigualdade 40

40

Quadro adaptado de Neves et al. (2008, p. 63-72).

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De acordo com informações já apresentadas nas subseções 2.2.2.2 e

2.2.2.3 do segundo capítulo, que ilustra a fluidez de categorias nas relações

expressas pelas construções adverbiais, algumas construções comparativas podem

expressar outros valores semânticos além do valor comparativo. As orações

comparativas correlativas de igualdade, por exemplo, apresentam nuanças

semânticas de adição, o que as aproxima das orações coordenadas aditivas

correlativas, como no exemplo já oferecido ‗(5-24) a verdade é que tanto no sexo

feminino quanto no masculino há sempre uma produção significante embora

pequena mas de hormônio do sexo [EF SSA 49]‘. A diferença consiste em que, nas

orações comparativas de igualdade, não há foco na adição, mas sim uma indicação

comparativa de igualdade entre os elementos em contraste.

As comparações de igualdade construídas com a conjunção como

apresentam, com frequência, indicação de modo: ‗Durmo como um escravo e como

qual um frade (QP)‘. Uma conjunção semelhante a como, mas de uso mais restrito

aos textos literários, é a conjunção qual. Também ocorrem locuções conjuntivas que

carregam valor próximo ao de como, por exemplo: assim como, tal como, tal (e)

qual, do mesmo modo que, da mesma maneira que, como que. As locuções tanto

quanto e tanto como se diferenciam das anteriores por apresentarem um

componente quantitativo. Geralmente as construções comparativas que são

introduzidas por essas locuções não apresentam nenhuma marca correlativa no

termo comparado. No entanto, pode haver marca correlativa no termo comparado

dessas construções. Também se percebe a ausência de conjunção dando vez ao

emprego de palavras como feito (de comparação de igualdade semelhante à de tal

qual e como), igual (que está em processo de gramaticalização como conjunção

comparativa) e tipo. Além disso, a entoação figura como importante recurso para

valorizar a relação comparativa, o que é fator determinante no exame de produções

orais.

A oração comparativa de igualdade pode receber a marca de um elemento

hipotético. Essa marca de elemento hipotético alia uma construção condicional à

construção comparativa (como se...) e uma eventualidade se revela associada à

comparação de dois elementos. Esse tipo de construção é ilustrado em Neves (no

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prelo) com a música ―Construção‖ 41 de Chico Buarque, da qual a seguir se extrai,

como amostra, a frase: ―Andou daquela vez como se fosse a última‖.

Outras comparações se aproximam, também desde uma perspectiva

semântica, às orações coordenadas adversativas. No uso da correlação antes... (do)

que, existe a possibilidade da comparação de superioridade sinalizar também uma

preferência.

Na língua portuguesa, há algumas construções que apresentam os

elementos formais próprios das estruturas comparativas, mas não apresentam o

valor semântico da comparação. Na língua espanhola essas estruturas são

denominadas (pelos gramáticos consultados neste trabalho) ―estruturas

pseudocomparativas‖, e serão expostas na subseção 3.3.1, que se refere às

estruturas comparativas do espanhol.

A comparação na qual estão em cotejo indivíduos ou elementos em relação

a uma propriedade é a de ocorrência mais frequente. O adjetivo aparece como

componente importante no mecanismo comparativo. A superlativização de uma

qualidade, por exemplo, pode constituir-se por meio da relativização com um

conjunto de elementos que apresentam uma propriedade comum.

Segue-se uma exposição de considerações sobre adjetivos que é de

extrema relevância para o entendimento dos mecanismos comparativos.

3.2.2 As construções superlativas do português

Todo adjetivo se liga a um substantivo. Essencialmente, os adjetivos são

utilizados na atribuição de uma propriedade a um elemento (definido pelo

substantivo). Os adjetivos são importantíssimos no processo de apreciação e de

atribuição de valor. Temos dois tipos de adjetivos: os qualificadores, que atribuem

uma propriedade ao elemento, fora daquele conjunto de propriedades que ele já

apresenta, constituem a verdadeira predicação e possuem aspecto mais subjetivo; e

os classificadores, que não atribuem nenhuma propriedade nova ao elemento, são

responsáveis somente por incluí-lo em um subconjunto dentro do conjunto maior ao

41

Disponível no site http://chicobuearque.uol.com.br/construcao/mestre.aso?pg=construc_71.htm. Acesso em 31/01/2008, às 9 horas e 23 minutos.

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qual ele representa, e são, portanto, de caráter mais objetivo. Devido às

características especificas dos adjetivos qualificadores – intensificação e graduação

– os adjetivos desse tipo serão o foco das considerações a seguir.

Por serem os adjetivos qualificadores de caráter mais subjetivo, seu uso está

estreitamente relacionado ao uso da linguagem conotativa. Além disso, há

estratégias para potencializar o efeito conotativo dos adjetivos, e uma delas é a

anteposição do adjetivo ao substantivo. Outras estratégias servem para intensificar o

adjetivo, o que também possibilita construir efeitos de sentido e atingir de maneira

mais eficaz os objetivos comunicativos. Dentro desse conjunto de estratégias

possíveis, destaca-se aqui a intensificação relativizada do adjetivo, pela carga

comparativa que é capaz de imprimir ao texto.

A essa classe de intensificação do adjetivo que se constrói por meio de sua

relativização com outros elementos que apresentam dá-se o nome de superlativo

relativo de superioridade ou de inferioridade. A intensificação no superlativo relativo

acontece por meio dos advérbios mais (de superioridade) e menos (de inferioridade)

que intensificam os adjetivos. Pode ocorrer de um numeral ordinal ou de um adjetivo

que expressa posição extrema seja utilizado na formação do superlativo relativo (por

exemplo: primeiro, último). O elemento cuja qualidade é intensificada aparece

sempre determinado, na maioria dos casos pelo uso de um artigo definido. Os outros

elementos com os quais a intensificação é relativizada, quando explicitados,

costumam aparecer na forma de um sintagma iniciado pelas preposições de, dentre

ou entre. Muitas vezes, esses outros elementos envolvidos não estão presentes na

construção. Nesse caso, o contexto pode levar à sugestão da totalidade de um

grupo que não está explícito ou a uma totalidade absoluta, o que acontece, por

exemplo, nos superlativos que recorrem a uma relativização com o ―possível‖,

mesmo que o registro desse ―possível‖ não seja explicitado.

Sobre as estruturas de adjetivo comparativo, bem como de superlativo

relativo, há alguns adjetivos que podem apresentar forma sintética latina de

superioridade. Assim, as construções mais bom, mais mau, mais grande, mais

pequeno, mais alto e mais baixo, apresentam-se, respectivamente, sob as formas

sintéticas melhor, pior, maior, menor, superior e inferior. No caso destas duas

últimas formas (superior e inferior) o segundo termo da comparação não constitui

uma oração, pois não se inicia com a conjunção (do) que, mas sim pela preposição

a. As formas melhor e pior também podem ocorrer como formas comparativas

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sintéticas dos advérbios bem e mal. O comparativo de superioridade também pode

ocorrer sob a forma analítica –, com emprego do advérbio mais – com distintos

efeitos de sentido. Contudo, o uso de algumas dessas formas analíticas está sujeito

a restrições prescritivas de lições normativas, como é o caso de mais bom e mais

mau. Em geral, essas formas são licenciadas quando se comparam duas

qualidades.

Existem formações sintéticas que perderam seu valor de grau intensificado.

Assim, as formas de comparativo interior, exterior, anterior, posterior, podem vir

acompanhadas por advérbios de intensidade, como em nos exemplos que seguem:

É interessante notar que a aplicação da estricnina à face dorsal de medula, na sua parte mais anterior ou cefálica, aquela que está em relação com os filetes nervosos sensoriais, correspondentes aos membros anteriores, e a aplicação simultânea da mesma na face ventral (motora) da medula, na região correspondente aos membros posteriores, permitia produção do tétano típico pela excitação das extremidades periféricas dos nervos sensoriais dos membros anteriores (FF). É a partir daí que o mais interior – a família – abre uma formidável perspectiva para o mais exterior – o Estado (FSP).

Essas formas sintéticas, bem como as formas de superlativo absoluto latino

máximo, mínimo, supremo/sumo, ínfimo, podem ser usadas também na construção

de superlativo relativo de superioridade:

A máxima precipitação provável pode ser considerada como uma chuva fictícia capaz de produzir os máximos valores prováveis (ou possíveis) de precipitação, para qualquer duração, sobre uma dada área (HID). A música pela música – esse era o grande, o supremo ideal (TV).

Até este ponto, realizou-se uma caracterização dos expedientes linguísticos

da língua portuguesa que podem expressar comparação, com especial atenção às

relações hipotáticas adverbiais comparativas e ao superlativo relativo. Considera-se,

porém, que os mecanismos comparativos podem ativar-se por meios diversos, como

verbos, substantivos, e até mesmo a justaposição de sentenças, desde que haja

uma relação, na qual se estabeleça um cotejo entre dois elementos, ou entre um

elemento e um conjunto.

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3.3 A comparação em língua espanhola

Também na língua espanhola, existem expedientes mais específicos e mais

gerais pelos quais os mecanismos comparativos operam o texto. De acordo com

Gutiérrez Ordóñez (1997a), a gramática tradicional da língua espanhola situa as

comparativas entre as orações subordinadas adverbiais. Entretanto, essa inscrição

foi contestada por Alarcos Llorach (1963 apud GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a),

que, fixado no processo que as origina, sustentou que as comparativas são

estruturas coordenadas e afirmou que elas seriam um efeito da fusão de outras

sequências coordenadas. A opinião de Gutiérrez Ordóñez (1997a) é de que, ―ainda

que o processo onomasiológico e o comportamento de algumas construções pareça

sugerir que as comparativas são estruturas coordenadas, [...] o segundo segmento

está em relação de subordinação‖ 42.

Para alguns autores, entre as estruturas comparativas específicas, algumas

não estão dotadas de um estatuto oracional. De acordo com Gutiérrez Ordóñez

(1997a), em casos em que o núcleo da estrutura comparativa é um sintagma verbal,

o termo subordinado é de caráter oracional, como em ―Lee más novela que poesía‖;

quando o núcleo é um nome ou um adjetivo, a estrutura comparativa não tem caráter

oracional, como em ―Un presidente más preocupado por el dinero que por el

bienestar‖.

Sáez del Álamo (1999), que opta pelo termo coda comparativa para referir-

se ao segundo segmento da comparação, afirma que há codas frasais ou

sintagmáticas e codas clausais. Nas primeiras, a partícula comparativa precede um

sintagma não oracional (6); nas segundas, a partícula comparativa é seguida de

uma oração (7a e 7b), esteja o seu verbo expresso ou elíptico (SÁEZ DEL ÁLAMO,

1999, p. 1132): ―(6) Juan regalo más novelas a María que Luis‖; ―(7) a. Juan regaló

más novelas a María que Ana a Luz‖; ―(7) b. Juan regaló más novelas a María de las

que Ana regaló a Luz‖.

Sem se ater à questão do caráter oracional ou não oracional das estruturas

comparativas, as próximas subseções deste capítulo têm a finalidade de apresentar

42

―aunque el proceso onomasiológico y el comportamiento de algunas construcciones parezca sugerir que las comparativas son estructuras coordinadas, […] el segundo segmento está en relación de subordinación‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a).

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uma descrição dessas estruturas no espanhol, contemplando considerações,

contribuições e visões de diferentes autores com relação aos principais aspectos

gramaticais, semânticos e pragmáticos dessas estruturas.

3.3.1 Estruturas comparativas do espanhol

Gutiérrez Ordóñez (1997a) utiliza dois tipos de critérios para a definição da

comparação: os semânticos e os formais. Existem definições que utilizam somente

critérios semânticos, como a definição para orações comparativas de 1973 da Real

Academia Espanhola: ―São aquelas em que expressamos o resultado de uma

comparação de dois conceitos que, vistos desde o ponto de vista do modo,

qualidade ou quantidade dos mesmos, nos são oferecidos como semelhantes, iguais

ou desiguais‖ 43 (RAE, 1973, p. 543). Definições com uma caracterização

exclusivamente formal condicionam o estatuto da comparativa à presença de certos

elementos que introduzam os segmentos (más, menos, tanto, que, como), e a

combinação dos dois critérios (semântico e formal) resulta nas ―definições mistas‖

(GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a).

A partir da identificação desses dois tipos de critérios, pode-se estabelecer

uma diferenciação entre comparação, pseudocomparativas e estruturas

comparativas. Em Gutiérrez Ordóñez (1997a), essa diferenciação é bastante clara:

se uma sequência expressa o significado da comparação mas não apresenta a

estrutura formal correspondente, há uma comparação mas não uma estrutura

comparativa; se a sequência atende somente as condições formais sem o

significado, trata-se de uma pseudocomparativa. O verbo preferir serve para ilustrar

uma comparação não formal, e uma sequência como ―En el mundo hay más mujeres

que Helena‖ é um exemplo de pseudocomparativa (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ,

1997a). Na opinião do autor, a postura mais adequada para definir uma estrutura

comparativa é a que tem em conta a natureza de ‗signo‘ das comparativas:

43

―Son aquellas en que expresamos el resultado de una comparación de dos conceptos que, mirados desde el punto de vista del modo, cualidad o cantidad de los mismos, se nos ofrecen como semejantes, iguales o desiguales‖ (RAE, 1973, p. 543).

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―apresentam um significado (<<comparação>>) unido solidariamente a um

significante (estruturas do tipo más... que, más... de, etc.)‖ 44.

Em Alarcos Llorach (1994, p. 341), As orações complexas 45 comparativas

são definidas, semanticamente, por expressarem basicamente a comparação de

duas realidades ou de dois conceitos, entre os quais se estabelece uma

equivalência ou uma desigualdade, com relação à quantidade, à qualidade ou à

intensidade de ambos. Do ponto de vista Sáez del Álamo (1999, p. 1131), as codas

comparativas não fazem referência a indivíduos nem a propriedades, mas sim a

graus.

O caráter referencial da comparação, manifesto em Halliday & Hasan (1976),

também aparece em Gutiérrez Ordóñez (1997a). Para esse autor, as comparações

têm caráter referencial por meio de um processo relativo, não absoluto: ―o emissor

pretende transmitir a situação ou posição de uma magnitude, qualidade ou processo

dentro de uma escala a partir de um ponto de referência, padrão ou norma que se

supõe conhecido‖ 46.

Encontra-se em Gutiérrez Ordóñez (1997a) a demonstração da estrutura

paralela e simétrica de funções geminadas, que, segundo o autor, é possibilitada a

partir da introdução do intensivo (más, menos, tanto). Essa estrutura paralela tem

caráter abstrato, o paralelismo estabelecido entre ela e a primeira estrutura é um

requisito de valência semântica, e nem todos os seus elementos afloram, como

ilustra o esquema seguinte (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a):

A) ―Jorge fue ayer más rápido en la final B) 1 2 3 4 5 Algumas possibilidades para a estrutura-B:

...que Pepe (1)

...que anteayer (3)

...que Pepe (1) anteayer (3) en las eliminatórias (5)‖.

Em termos gerais, os tipos de comparação sugeridos, relativamente ao valor

que expressam, são os mesmos em toda a bibliografia vista neste trabalho

(GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a; ALARCOS LLORACH, 1994, p. 341; SÁEZ DEL

44

―presentan un significado (<<comparación>>) unido solidariamente a un significante (estructuras del tipo más... que, más... de, etc.)‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a). 45

Termo utilizado por alguns autores para se referir ao período composto por subordinação (A. MARTÍNEZ, 1999, p. 10; ALARCOS LLORACH 1994, p. 314 e 315). 46

―El emisor pretende transmitir la situación o posición de una magnitud, cualidad o proceso dentro de una escala a partir de un punto de referencia, patrón o norma que se supone conocido‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a).

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ÁLAMO, 1999, p. 1131; A. MARTÍNEZ, 1999), e coincidem com o que foi visto na

língua portuguesa por Neves et al. (2008) e Neves (no prelo): a partir de uma

repartição binária (igualdade e desigualdade), o termo intensificado pode apresentar

grau de superioridade, inferioridade ou igualdade.

Alarcos Llorach (1994, p. 340-342) apresenta as estruturas comparativas

como orações degradadas47, dependentes de um quantificador, que pode ser um

advérbio ou um adjetivo. Em contraparte, em Sáez del Álamo (1999) as chamadas

construções comparativas são descritas junto às construções superlativas, ambas

classificadas como elementos quantificadores.

A. Martínez (1999, p. 57) observa a existência de comparativas

correlativas e interdependentes em que comparativos de igualdade e desigualdade

entram em correlação com cuanto(a,os,as), como em ―cuanto más te esfuerces,

(tanto) mayor será tu éxito‖ e ―con cuantos menos hables, con menos te

enfadarás‖.

É comum entre os autores aqui consultados a identificação dos elementos

formais da estrutura comparativa. A partir de Gutiérrez Ordóñez (1997), Alarcos

Llorach (1994) e Sáez del Álamo (1999), afirma-se que: a comparação está dividida

em dois segmentos ou termos, sendo o primeiro o da quantificação e o segundo o

ponto de referência; os quantificadores ou elementos de grau da estrutura

comparativa podem ser as formas invariáveis más para expressar superioridade e

menos para inferioridade, ou a forma tanto(a/os/as) para igualdade (eventualmente,

igual ou mismo) que em determinados casos varia a forma; os transpositores 48 ou

partículas comparativas que, de ou como introduzem o segundo termo (ou

segmento-B).

Para Gutiérrez Ordóñez (1997a) e Alarcos Llorach (1994), a base de

valorização, termo que é intensificado ou quantificado, pode ser um nome, um

adjetivo, um advérbio ou um verbo. Sáez del Álamo (1999, p. 1132) explica que o

quantificador comparativo pode comportar-se de maneira diferente conforme a

palavra que ele modifica. Se o quantificador modifica um adjetivo (1), um verbo (4a)

ou um advérbio (4b), ele se comporta como um sintagma adverbial, situação em que

47

Orações degradadas ou transpostas são orações de categoria diferente da do segmento que acompanham, e que desempenham, por transposição, a função dos substantivos, adjetivos e advérbios (ALARCOS LLORACH, 1994, p. 314 e 324; A. MARTÍNEZ, 1999, p. 10 e 46). 48

Transpositor é o termo designado por Alarcos Llorach (1994) ao elemento que introduz a oração transposta (ALARCOS LLORACH, 1994, p. 234).

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se tem uma comparativa qualitativa; quando modifica um nome (5a), se comporta

como sintagma adjetival, resultando numa comparativa quantitativa (SÁEZ DEL

ÁLAMO, 1999, p. 1132): ―(1) Juan es más alto que Luís‖; ―(4) a. Juan corre más que

Luis‖; ―(4) b. Juan corre más rápidamente que Luis‖; ―(5) a. Juan compró más libros

que Luis‖.

A possibilidade de elipse de alguns elementos nas estruturas comparativas

de língua espanhola, assim como nas de língua portuguesa, é reconhecida entre os

autores e gramáticos aqui consultados. Entre eles, Neves et. al. (2008) e Gutiérrez

Ordóñez (1997a) apontam a base comum, de elementos compartilhados pelos dois

segmentos da comparação, motivo pelo qual muitos elementos do segmento-B

permanecem submersos, elípticos. Para Gutiérrez Ordóñez (1997a), as

comparações mais frequentes são as que apresentam apenas um elemento

funcional no segmento-B. Segundo Alarcos Llorach (1994, p. 342), em alguns casos

em que ocorre elipse do verbo na oração degradada, ela reiteraria o verbo do núcleo

da oração total. Ele diz que é mais frequente a ocorrência de comparativas elípticas,

porém a elipse nem sempre é necessária.

Encontra-se em Gutiérrez Ordóñez (1997a) a afirmação de que a ―lei de

economia‖ inspira a montagem do discurso, e que, por essa lei, se mantêm elípticos

todos os elementos que se repetem no segmento-B, ―sob pena de

agramaticalidade‖49. Contudo, o autor admite que a aplicação da lei está sujeita a

algumas condições, como a coincidência exata dos elementos funcionais nos dois

segmentos. Assim, quando se trata de um signo léxico verbal que adota no

segmento-B um morfema verbal diferente, por exemplo, é possível repeti-lo:

―Estudia libros más gordos que los libros que estudiábamos en la escuela (onde

se repetem os lexemas estudiar e libros)‖. Sáez del Álamo (1999, p. 1147) defende

que algumas codas frasais não são resultado de elipse, assim como defende que a

sentença ―(99) Juan compró más libros que tebeos‖ não é o resultado de se ter

eliminado o verbo ―compró‖.

Gutiérrez Ordóñez (1997a) inclui as comparações com de entre as

estruturas comparativas, visto que elas atendem aos critérios semânticos e formais

que ele apresenta para a definição dessa categoria. Com a finalidade de diferenciá-

las das comparativas com que e como, o autor se refere a essas como

―comparativas próprias‖ e aquelas como ―comparativas relativas‖. A classificação

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feita por A. Martínez (1999, p. 56) é diferente. Segundo essa classificação, a

comparativa com de apresenta forma de complemento determinativo, enquanto a

comparativa com que possui forma relativa.

Diferenças de classificação à parte, é interessante a relação que A. Martínez

(1999, p. 56) estabelece entre os dois tipos de comparativas e a ocorrência ou não

de elipse. De acordo com ele, nas comparativas com que é permitido, e até mesmo

é preferível, que ocorra a elipse do verbo, como no exemplo ―Pedro estudia más que

[estudia] Juan‖. Em contraparte, as comparativas com de são produzidas quando

um verbo pessoal é expresso, como nos exemplos ―Pedro estudia más de lo que

estudia Juan‖ e ―Tiene menos dinero del [dinero] que ganas tú‖. Alarcos Llorach

(1994, p. 347) declara que o uso de grupos adjetivos com de é preferível quando um

verbo que dificilmente possa sofrer elipse estiver contido no segundo segmento.

Gutiérrez Ordóñez (1997a) afirma que há casos em que é possível introduzir

o segmento-B com de ou com que, indistintamente; em outros casos somente uma

das opções é possível, e a quantidade de restrições de uso das comparativas com

preposição de é maior. O autor também relaciona o uso de comparativas com de à

presença de verbos parentéticos (decir, creer, pensar, parecer, merecer, etc.). Ele

defende que a incorporação desses verbos no segmento-B admite somente a

comparação com de, e que isso favorece a elipse de elementos repetidos: “Tiene

más genio del que parece (tener)”; “* Tiene más genio que parece (tener)”.

Encontra-se em Gutiérrez Ordóñez (1997a) uma explanação relevante sobre

as comparativas de igualdade. Além das ―comparativas próprias‖ de igualdade e das

relativas de igualdade, o autor trata das comparativas com igual que e com art. +

mismo + que.

Sobre as ―comparativas próprias‖ de igualdade, o autor estabelece uma

relação entre a classe morfológica do primeiro segmento e a forma adotada pelo

quantificador tanto. ―Quando o primeiro segmento é um adjetivo ou um advérbio o

quantificador adota a forma suprimida tan. Determina ao verbo a forma adverbial

tanto e concorda com o substantivo a forma tanto(a/os/as)‖ 50 (GUTIÉRREZ

ORDÓÑEZ, 1997a):

49

―so pena de agramaticalidad‖ (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a). 50

Cuando el primer segmento es un adjetivo o un adverbio el cuantificador adopta la forma apocopada tan. Determina al verbo bajo la forma adverbial tanto y concuerda con el sustantivo (tanto-a-os-as)” (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a).

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Tiene tanto dinero como tú. Come tanta sopa como tú. Son tan buenos como tú. Llegan tan tarde como tú.

Os posicionamentos que Gutiérrez Ordóñez (1997a) adota sobre as

comparativas próprias de desigualdade, relacionados à questão da elipse e do

estatuto de termo subordinado, são os mesmos no que diz respeito às comparativas

próprias de igualdade.

Gutiérrez Ordóñez (1997a) aponta que nas comparativas relativas de

igualdade o segmento-B é introduzido por como + art + que no lugar de de + art +

que, conforme a sequência ―Tiene tanto dinero como la que te presente ayer‖. O

autor acrescenta que, assim como as relativas de desigualdade, as de igualdade

apresentam certa limitação de ocorrências devido a suas restrições.

As comparativas de igualdade com art + mismo, de acordo com Gutiérrez

Ordóñez (1997a), são oracionais quando art + mismo pode desempenhar função de

aditamento do verbo do qual depende, e aparece sem marcas morfológicas de

gênero e número: ―Tigre Juan lo mismo redactaba cartas a las novias de los militares

que Felisa escribía testamentos a los moribundos‖.

Gutiérrez Ordóñez (1997a) tomando como base o sentido produzido nas

comparativas não oracionais com art. + mismo, nas quais este termo atua como

complemento nominal, classifica-as em três tipos: comparativas de identidade

quantitativa, de identidade qualitativa e de identidade referencial.

Sobre as quantitativas, o autor apresenta condições para sua configuração:

nem o substantivo quantificado nem o termo geminado no segmento-B podem levar

artigo; a sequência artigo + mismo forma uma unidade inseparável (esse artigo não

se refere ao termo intensificado): ―Metieron los mismos goles que penalties les

pitaron a favor‖.

As comparativas com art + mismo de valor qualitativo e referencial só são

possíveis em forma relativa (GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a): ―Vende los mismos

huevos que los que venden en Continente‖; “Cuenta los mismos chistes que los que

cuenta Eugenio‖. Gutiérrez Ordóñez (1997a) acrescenta que, acompanhada da

preposição de, a construção art. + mismo pode adotar forma adverbial com adjetivos

e advérbios: “Es lo mismo de caro que caviar”; “Lo mismo de impertinente que de

maleducado”.

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As características semânticas e sintagmáticas das construções formadas

pela sequência artigo + mismo... + que... são bastante semelhantes às das

construções com igual... que..., segundo se observou em Gutiérrez Ordóñez

(1997a). Neste trabalho, não se apresentam considerações específicas sobre esse

tipo de construção comparativa, visto que não há ocorrência significativa dessa

construção nas comparações presentes no córpus de análise. A título de ilustração,

seguem alguns dos exemplos apresentados pelo gramático:

Unas cerezas iguales que ciruelas. Cerezas igual que ciruelas. Jugó igual cantidad de partidos internacionales que Camacho. Jugó igual de partidos internacionales que Camacho. Este niño es igual de alegre que su abuelo.

Em Alarcos Llorach, (1994, p. 345), mismo e igual aparecem junto a outras

unidades indefinidas (otro/a), unidades multiplicativas (el doble, la mitad), adjetivos

(diferente) e advérbios (antes, después) usados em comparativas de desigualdade

no lugar dos quantificadores básicos (más, menos, tanto). Algumas dessas unidades

aparecem também como ―comparativas próprias‖ em Sáez del Álamo (1999, p. 1164

- 1166):

¿Será entonces doblemente infinita que la serie par y que la serie impar? (68.I.93). Antes perdona él […] la blasfemia proferida, que aquella otra hipócritamente guardada en el fondo del alma (68.I.77-8). Sonrió sin ofrecer otra cosa que los largos dientes amarillos (79.35). Lo mismo crece en ella [la Naturaleza] la simiente buena que la mala, lo mismo encuentra albergue en su seno el sapo que el cisne, la cizaña que el trigo (17.154-5). Una imagen en un espejo plantea para su percepción igual problema que el objetivo mismo (68.I.83). (187) Compré {el doble/la mitad} de ropa em Roma que em Oslo. (188) Gasté em Roma {igual de/el mismo} dinero que en Oslo. (192) Teo visitó {diferentes/los mismos} museos que Ana.

Os advérbios antes e después encerram uma ―relação entre graus situados

em uma escala temporal‖, com sentido equivalente a ―más pronto que‖ e ―más tarde

que‖, respectivamente (SÁEZ DEL ÁLAMO, 1999, p. 1164): ―(185) a. Teo vino antes

que Luis‖; ―(186) a. Vino antes de lo que tú decías‖.

Gutiérrez Ordóñez (1997a) e Alarcos Llorach (1994, p. 345) afirmam que os

quantificadores comparativos podem ser substituídos pelas formas sintéticas

comparativas mayor, menor, mejor e peor, que sobrevivem entre as herdadas do

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latim e nas quais está implicado o sentido de más. Gutiérrez Ordóñez (1997a)

defende que as formas sintéticas sempre conviveram na língua espanhola com as

fórmulas do tipo ―más grande que‖ e ―más bueno que‖. Ele esclarece que essas

formas sintéticas podem ser usadas tanto em ―comparativas próprias‖ quanto em

relativas.

Na comparação de igualdade entre adjetivos (e em certos casos também

entre substantivos), é possível substituir como por cuanto/a, em contextos literários

(SÁEZ DEL ÁLAMO, 1999, p. 1149). Nesses casos, para o autor, cuanto/a é mais

uma variante da partícula como, e não é um relativo, conforme ilustram os exemplos:

―(114) Teo es tan nervioso cuanto inteligente‖; ―(115) b. Tiene tanta inteligencia

cuanta capacidad para manifestarlo‖.

Sáez del Álamo (1999, p. 1167) chama de ―disfarce morfológico‖ o motivo

pelo qual algumas construções são vinculadas às comparativas. Para ele, não existe

propriamente comparação nessas construções. Essas estruturas, chamadas

pseudocomparativas, também são identificadas e definidas por Gutiérrez Ordóñez

(1997a), com uma maior exploração em Gutiérrez Ordóñez (1997b).

Sáez del Álamo (1999) as classifica em pseudocomparativas aditivas,

restritivas e corretivas, com atenção para um bloco de outras pseudocomparativas

próprias. Nas aditivas, há uma relação de inclusão, um resultado de uma soma,

como em ―(198) a. Juan compró más libros que ‗La Busca‘‖. As restritivas resultam

da disposição de elementos que formam a construção aditiva, porém em um

contexto negativo. A ideia expressa é de limitação estrita de um conjunto, como em

―(213) b. Juan no compro más libros que ‗La Busca‘‖.

O terceiro tipo de pseudocomparativas examinado por Sáez del Álamo

(1999, p. 1173) são as corretivas, que podem ser usadas como resposta de um

interlocutor que corrige a afirmação anterior de outro interlocutor, como na sequencia

a seguir:

(230) A: Allí compró Teo un montón de cosas, y también libros. B: Te corrijo: sé que Juan compró allí más discos que libros. (Paráfrase: ―Te corrijo: sé que Juan compró allí más bien discos, y no libros, como tú dices‖)

Entre as ―pseudocomparativas próprias‖, Sáez del Álamo (1999, p. 1176)

apresenta as estruturas com o verbo preferir, que aparenta estabelecer uma relação

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de superioridade entre graus, como em ―(248) Prefiero conversar con Luis que jugar

con Teo‖. Para o autor (1999, p. 1177), ―estas estruturas pertencem ao âmbito das

corretivas‖ 51.

Outro caso é o de estruturas nas quais não há comparação de grau nem de

quantidade, mas sim uma simples coordenação, que poderia ser parafraseada por

meio da utilização da conjunção y (Sáez del Álamo, 1999, p. 1178): ―(257) a. Compró

tanto uvas como peras (―Compró uvas y peras‖)‖.

Sáez del Álamo (1999, p. 1179) também inclui entre as pseudocomparativas

coordenativas com sentido de adição as estruturas com os elementos igual... que e

lo mismo ...que, como ilustra a sentença ―(260) a. Teo {igual/ló mismo} canta que

baila, pero mucho más canta‖, em que a sequência iniciada por pero elimina a

possibilidade de interpretar a estrutura como uma comparativa de igualdade.

Como apontam Gutiérrez Ordóñez (1997a) e Sáez del Álamo (1999, 1167),

as estruturas pseudocomparativas apresentam elementos formais semelhantes aos

das estruturas comparativas, porém estabelecem relações semânticas diferentes

(como adição e restrição). Considerando a fluidez das categorias gramaticas (seção

2.3), é possível afirmar que algumas dessas pseudocomparativas também podem

expressar certo valor comparativo, porém em menor grau.

Ao tratar de aspectos pragmáticos das comparativas, Gutiérrez Ordóñez

(1997a) situa o valor denotativo do ponto de referência no ―mundo dos supostos‖,

que são conhecimentos apresentados como comuns pelo emissor, e que não fazem

parte da competência linguística, mas do ―saber enciclopédico‖ ou ―conhecimento de

mundo‖. Nessa perspectiva, os chamados ―supostos‖ são imprescindíveis para a

apreensão da informação referencial das comparativas.

Para Gutiérrez Ordóñez (1997a), algumas vezes, o falante recorre a

―expressões prototípicas consagradas pela comunidade para expressar o grau sumo

ou ínfimo de uma ação ou de uma qualidade‖. Sobretudo nesse tipo de comparação,

o conhecimento enciclopédico, junto ao contextual e cultural, é indispensável. O

autor esclarece que nesses casos os referentes selecionados são seres ou

magnitudes que, dentro de um conhecimento geral, constituem os representantes

superlativos de uma ação ou qualidade, e podem chegar a constituir-se como clichês

(GUTIÉRREZ ORDÓÑEZ, 1997a): ―Hace más frío que en Siberia‖; ―Escribe tanto

como El Tostado‖; ―Es peor que el veneno‖.

51

―estas estructuras pertenecen al ámbito de las correctivas‖ (SÁEZ DEL ÁLAMO, 1999, p. 1177).

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Alarcos Llorach (1994, p. 346) afirma que, ao introduzir a negação em uma

comparação de desigualdade, o valor de superioridade ou de inferioridade pode ser

suprimido e até invertido. Assim, a sequência ―Los necios no aplauden más que los

discretos‖ tem valor equivalente à igualdade ―Los necios aplauden tanto como lós

discretos‖.

Do ponto de vista pragmático, a comparação de igualdade expressa pelos

elementos tanto... como está incluída no campo de más... que, segundo Gutiérrez

Ordóñez (1997a). O autor esclarece que são frequentes as interpretações

pragmáticas em que tanto... como equivale a al menos tanto como ou igual o más

que, conforme representado na equivalência entre as sequências: ―Pepe es tan listo

como su hermano‖; ―Pepe es al menos tan listo como su hermano‖; ―Pepe es tan

listo o más que su hermano‖.

Para Gutiérrez Ordóñez (1997a), devido a essa inclusão pragmática, a

negação de tanto... como implica uma interpretação equivalente a menos que.

Assim, para a sequência Pepe no es tan listo como su Hermano, seguem duas

interpretações esperáveis, porém, a primeira delas é a opção preferível: ―Pepe es

menos listo que su Hermano‖; ―Pepe es más listo que su hermano‖. Alarcos Llorach

(1994, p. 347) também reconhece que a negação da comparação de igualdade

implica valor de inferioridade. Na ilustração desse autor, ―No indicaba tanto oficio

como experiência‖ é semanticamente equivalente a ―Indicaba menos oficio que

experiência‖.

Em algumas comparativas de superioridade com negação, o quantificador

más e o termo da comparação atuam como objeto direto ou como atributo da oração

negativa. A combinação que resulta nesses casos (no más que) é equivalente à

unidade adverbial solo (ALARCOS LLORACH, 1994, p. 347): ―Yo no sé decir más

que lo que pienso, aunque lo que piense sea malo (17.60) (= Solo sé decir lo que

pienso)‖; ―No consigo más que ponerme nervioso (28.211)‖.

Em alguns casos, a negação no é requerida para evitar a repetição de

elementos. Se uma sequência, previamente degradada pela conjunção que, constitui

o termo da comparação, é introduzida a negação no entre essa conjunção e o que

comparativo, para evitar a repetição contigua das duas unidades homófonas (que

que) (ALARCOS LLORACH, 1994, p. 346): ―Por eso es más fácil que un Marco

Antonio, dueño del mundo, o un príncipe como Sakiamuni, sean sencillos y

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humildes, que no que lo sea un indiano enriquecido o un dependiente de comercio

(17.157)‖.

Em casos em que há comparação entre dois verbos no infinitivo, também

pode ocorrer uso de negação depois do que comparativo, porém com um valor mais

enfático (ALARCOS LLORACH, 1994, p. 346): ―Mejor te valdría haber aprendido un

oficio que no vivir colgado a los faldones de los ministros (85.992)‖.

3.3.2 As construções superlativas do espanhol

Em Sáez del Álamo (1999), as construções superlativas estão na mesma

posição categorial que as construções comparativas, na condição de construções

quantificadoras. Neste trabalho, considera-se, com Neves (no prelo), para o

português, que nas construções superlativas relativas há um valor comparativo, visto

que se qualifica/quantifica um elemento relativizando-o com um conjunto de

elementos que possuem uma propriedade comum. Assim, cabe apresentar algumas

considerações sobre essa estrutura na língua espanhola.

Pelo que se pôde apreender em Sáez del Álamo (1999, p. 1179-1184), no

que se refere à formação da estrutura superlativa, os elementos que a compõem em

língua espanhola são bastante similares aos da língua portuguesa 52. Em geral, o

elemento que tem uma propriedade relativizada é determinado por um artigo

definido (el, la, los, las) e a sua intensificação é realizada por meio de advérbios

(más, menos) ou de palavras que permitam prescindir desses advérbios (mejor,

peor, mayor, menor, máximo, mínimo, favorito/a, primero, único, etc.).

Sáez del Álamo (1999, p. 1179) chama de sintagma restritor o sintagma que

expressa o ―conjunto relativamente ao qual se verifica a firmação da cláusula‖ 53. O

autor o classifica em três tipos: sintagma restritor preposicional (263b), oração

relativa (266a) ou sintagma adjetivo (266b): ―(263) b. Juan es el más alto de todos

esos chicos‖; ―(266) a. Juan es el chico más alto que conozco‖; ―(266) b. Juan es el

pintor más importante vivo‖.

52

Ver subseção 3.2.2 deste capítulo. 53

―el conjunto relativamente al cual se verifica la afirmación de la cláusula‖ (SÁEZ DEL ÁLAMO, 1999, p. 1179).

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Semelhantemente ao exposto em Neves (no prelo) 54, para o portugués,

Sáez del Álamo (1999, p. 1181) propõe que, quando o restritor do superlativo não

está manifesto, há uma variedade de paráfrases possíveis: ―(276) a. Juan compró la

navaja más funcional‖; ―(276) b. De todos nosotros, Juan compró la navaja más

funcional‖; ―(276) c. Juan compró la navaja más funcional de todas‖.

54

Ver: subseção 3.2.2 deste capítulo.

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4 APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CÓRPUS

O córpus de análise deste trabalho está composto por três textos. Os dois

primeiros textos são dois Sermões do Mandato, escritos pelo padre português

Antônio Vieira. O primeiro data de 1643 e o segundo 1690, e ambos compõem um

conjunto de seis sermões do mesmo autor e de mesmo titulo e temática: o amor

místico. O segundo texto é uma carta, escrita pela freira mexicana Sor Juana Inés de

La Cruz, intitulada Carta Atenagórica, em que há um posicionamento com relação ao

sermão de Vieira de 1650.

4.1 O contexto histórico e cultural das obras em exame

A vida de Antônio Vieira (1608-1697) e a de Sor Juana Inés de la Cruz

(1648-1695) apresentam muitos aspectos comuns, em parte devidos ao mesmo

período histórico em que viveram (século XVII). Do ponto de vista artístico-cultural,

ambos refletem em suas obras marcas do movimento barroco, ainda que com suas

características individuais. Os nomes Antônio Vieira e Sor Juana aparecem,

respectivamente, na América lusa e na espanhola, como expoentes da cultura

barroca.

Também a religião é algo em comum. Os temas de suas obras são

basicamente teológicos e filosóficos, e os textos bíblicos constroem a base de seus

discursos. Considerando o momento histórico em que viveram, não se pode deixar

de mencionar que os dois estavam submetidos ao domínio da Igreja Católica e à

censura da Inquisição.

Assim como as semelhanças, Vieira e Sor Juana apresentam também suas

diferenças. Uma primeira diferença que se faz determinante, tendo em vista o

período em que viveram, é o fato de serem de sexo diferente. Os papéis sóciais do

homem e da mulher no século XVII eram bastante limitadores das ações dos

indivíduos. Também eram diferentes as correntes filosóficas (essencialista e

existencialista) que cada um expressava em seus textos. Outra diferença notável é a

geográfica. Apesar de Vieira ter vivido durante muito tempo no Brasil, Portugal era

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sua pátria e, por algumas vezes, também o lugar de moradia. De certa forma, é

possível afirmar que Vieira e Sor Juana, representam, respectivamente, o velho e o

novo mundo.

Nas subseções que seguem, apresenta-se uma síntese de aspectos

relacionados à vida e à obra de cada autor. Na análise proposta se buscará

identificar, nas comparações, semelhanças e contrastes que constroem o discurso

de cada um deles. Antes de fornecer as informações específicas da obra de cada

autor, apresenta-se, a seguir, uma síntese das principais características do

movimento barroco.

4.1.1 O barroco

Entende-se o barroco, com base em Jozef (1989, p. 37-39), como uma

forma de cultura manifesta nos séculos XVII e XVIII no mundo Ocidental. De acordo

com a autora, trata-se de um momento histórico conturbado pelo Absolutismo e

reforçado pelo domínio da Igreja. Neste sentido, a Contra-Reforma teve uma

atuação determinante no movimento barroco, ao ―combater o humanismo pagão e

antropocêntrico‖, embora, por outro lado, influenciem também o pragmatismo

reformista burguês e o racionalismo de Descartes, Pascal e Newton.

Para Jozef (1989, p. 37-39), o barroco representa um progresso da linha

renascentista, cujo otimismo vital, na América, choca-se com o pessimismo

indígena. No plano conceitual e estético, é caracterizado por uma tendência

paradoxal. Essa característica se revela na ―fusão de elementos‖, na ―unificação dos

detalhes‖, na ―tentativa de conciliar a razão e a fé‖. Segundo a autora, o racionalismo

escolástico se contrapõe ao irracionalismo barroco. Sem dúvida, o contraste e o jogo

de contrários estão na essência desse movimento: de um lado os gozos

momentâneos, os bens terrenos; de outro a espera pela eternidade e a

transcendência do ser.

Para Litrento (1974, p. 76-78), o barroco é tido como um movimento estético

que não se limita à literatura, que busca exprimir a angústia espiritual humana por

meio de uma ―arte de antíteses, paradoxos, contorções e preciosismos‖ e que é

resultado de alta tensão interior. Segundo o autor, o movimento engloba ao mesmo

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tempo o gongorismo, o maneirismo, o eufuísmo, etc. No que tange ao contexto

brasileiro, Litrento (1974, p. 77) declara que, a partir do barroco e por intermédio dos

jesuítas, a literatura despontou no Brasil, onde os nomes de Gregório de Matos e de

Antônio Vieira podem ser mencionados como ―os maiores vultos barrocos de nosso

seiscentismo literário‖.

Destacam-se no barroco as figuras de linguagem. Especificamente nos

textos analisados, a inversão de palavras constitui uma figura que aparece com

frequência e, atrelada à comparação, desempenha papel primordial no

estabelecimento de relevos.

4.1.2 Antônio Vieira

Padre Antônio Vieira nasceu em Portugal em 1608, e faleceu no Brasil em

1697. Quando criança foi para a Bahia, e em 1634 ordenou-se na Companhia de

Jesus. Dotado de uma habilidade oratória e de uma inteligência ilustres, ministrou

aulas de teologia e atuou na militância de diversas causas, como a resistência contra

a Invasão Holandesa, a luta contra a escravização de índios e a defesa dos negros e

judeus (LITRENTO, 1974, p. 78 e 79). Foi do Brasil a Portugal (e vice-versa) por

algumas vezes durante sua vida. Em sua terra natal, foi reconhecido e estimado

como orador da Corte. Segundo Litrento (1974, p. 78) Vieira teve seu renome

abalado depois de ter sido condenado pelo tribunal do Santo Ofício, em 1667.

Recuperou seu prestígio depois de ter sido perdoado pelo tribunal.

A Companhia de Jesus, fundada por Santo Inácio de Loyola, desempenhou

extrema influencia na vida e na obra de Vieira. Os jesuítas da companhia

alcançavam eficiência persuasiva usando uma estratégia bastante comunicativa:

falavam a língua do povo. ―A técnica da catequese dos jesuítas, no Brasil [...]

consistia, pelos autos representados, na visualização tangível do pecado e seu

correspondente castigo perpétuo nas chamas do inferno [...]‖ (LITRENTO, 1974, p.

74).

Compõem a obra de Vieira centenas de cartas e sermões. Sua linguagem

era de forte recorrência a ―abstrações da lógica e da metafísica‖, a alegorias, ao

pitoresco e ao imprevisto que despertavam curiosidade. Pelo uso de antíteses,

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paradoxos, preciosismos, metáforas hiperbólicas e negativas que sugeriam

afirmações, a imagística de Vieira atingia seu nível mais alto (LITRENTO, 1974,

p.79). A maioria desses traços estilísticos está presente nos sermões analisados

neste trabalho, alguns atrelados a mecanismos comparativos.

Em um trecho do Sermão do Mandato de 1643, pode-se comprovar a força

visual e os valores plásticos apontados por Ribeiro (1969, p. 329) como traço

destacado do ―barroquismo verbal‖ de Vieira:

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira, embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhes os defeitos, enfastia-lhes o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? (VIEIRA, 1643).

Segundo Ribeiro (1969, p. 329), na obra de Vieira ―a palavra é como tinta e a

frase como desenho. Tudo adquire forma. Tudo assume colorido. Tudo se amplia em

volume‖.

A proporção aparece como um artifício extremamente presente nos sermões

de Vieira. Para Saraiva (1980, p. 56), as proporções podem destacar uma igualdade

e uma analogia, ou uma oposição e uma desigualdade, neste caso uma relação

proporcional de diferença ou desproporção. Tendo como base essas possibilidades

de realce, as relações de proporção usadas por Vieira apresentam uma estreita

relação com a comparação, já que as proporções implicam o cotejo de elementos. O

autor (1980, p. 58) explica que a proporção pode constituir-se por diferentes

relações gramaticais, como a disjunção (um/outro), a consequência (se, tanto), a

comparação (assim como, tanto) e até mesmo a simples justaposição.

Estabelecendo uma ponte com as considerações sobre a fluidez de categorias

gramaticais (capítulo 1), pode-se afirmar que nessas relações de proporção há um

valor comparativo que pode apresentar diferentes graus.

O grau de complexidade das proporções em Vieira também pode variar:

Não se trata de simples antíteses ou de simples analogias simétricas, mas de estruturas mais complexas e mais dinâmicas, às vezes em vários planos,

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cujas partes, interligadas por relações múltiplas, constituem uma unidade que, como tal, desempenha um papel no encadeamento do discurso. Há proporções mais ou menos complexas. (SARAIVA, 1980, p. 56)

Alguns recursos aparecem relacionados às proporções de Vieira. Saraiva

(1980, p. 57 – 61) menciona e ilustra alguns desses recursos, como a repetição de

termos no primeiro e no segundo membro, sem e com inversão da ordem dos

termos (1 e 2), a utilização de palavras com semelhança fônica (3), e o uso de

palavras com duplo sentido (4):

(1) ―O trigo que caiu na boa terra nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra não frutificou, mas nasceu‖. (2) ―Em vez de o Batista vir do deserto à corte a pretender a dignidade, a dignidade foi da corte ao deserto a pretender o Batista‖. (3) ―Vinde, enfim, e vereis o que antes de vir se não pode ver‖. (4) ―O dote da subtileza do céu faz que o lugar que ocupa cada um não impeça a passagem ao outro; e cá o emprego de todas as subtilezas é impedir aos outros para lhes ocupar o lugar‖.

55

Entre os papéis que a proporção pode desempenhar no discurso, Saraiva

(1980, p. 62) destaca o ―papel de integração‖, visto que a proporção estrutura o

arcabouço de uma exposição, de uma narração, ou de uma descrição. Para o autor,

na materialização do discurso de Vieira são designadas cadeias de proporções

sucessivas. As proporções refletem em si a virtuosidade do padre, que ―inventa

dificuldades para mostrar-se inteiramente senhor do jogo, como um toureiro que

espicaça o touro‖ (SARAIVA, 1980, p. 70).

4.1.3 Sor Juana Inés de la Cruz

Juana Inés de Asbaje e Ramírez nasceu no México em 1648. Aprendeu a ler

e a escrever aos três anos e, desde cedo, indicou inclinação à busca pelo

conhecimento. Na adolescência, foi dama de honra da esposa do vice-rei Antonio

Sebastián de Toledo, período em que ―pasmou por sua erudição aos sábios do vice-

reinado‖ (JOZEF, 1982, p. 41). Entrou para o convento das Carmelitas com 19 anos

e, meses depois, transferiu-se para a Ordem de São Jerônimo. Faleceu devido a

uma epidemia, em 1695, cinco anos depois de escrever a Carta Atenagórica.

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75

Conhecida como Sor Juana Inés de la Cruz, escreveu poemas, cartas e

peças teatrais, o que a tornou uma personalidade importante para a Literatura

hispano-americana. Sua obra pode ser caracterizada como intelectualista, ligada à

poesia do século XVI, com mais marcas do conceitismo do que do culteranismo, e

predominância da temática do ―amor‖ (JOZEF, 1982, p. 41). No que diz respeito,

especificamente, à Carta Atenagórica, chama a atenção seu empenho

argumentativo e o profundo conhecimento das Escrituras Sagradas e de questões

teológicas. Não por acaso, a palavra ―atenagórica‖ significa ―digna da sabedoria de

Atena‖ 56, conforme observa Paz (1982). Sobre a dimensão do feito de Sor Juana ao

escrever a carta, o Paz (1982) considera: ―Con ideas y procedimientos que venían

de los jesuitas, Sor Juana atacó a uno de ellos y de los más ilustres. Su ataque no

fue, como el de Pascal, a una doctrina sino a una persona y a un grupo‖.

O contexto histórico em que viveu Sor Juana era o da Nova Espanha. Nessa

época, a igreja era detentora do conhecimento teológico e filosófico, bem como

atuava como instituição vigiadora e punitiva. A partir de Franco (1994), entende-se

que, em tempos de Inquisição, a mulher era considerada como um ser do mais

perigoso, ―vítimas de impressões lunáticas‖ e ―presa das paixões‖. Essa dominação

da igreja é percebida em diversos momentos da Carta Atenagórica, em que Sor

Juana declara estar submetida à censura da ―Santa Madre Iglesia Católica‖. Ela teria

declarado que não queria ruídos com a inquisição (PAZ, 1982).

Junto ao contexto religioso, as condições impostas ao gênero feminino

também influenciaram o caminho que Sor Juana seguiria. Para Franco (1994), fora

de uma vida dedicada ao matrimônio, restava à mulher dedicar-se à religião, onde

seria possível que ela tivesse acesso ao conhecimento. E foi a ―total negação que

sentia para a vida mundana e para o matrimônio‖ que a levou, de acordo com

declarações suas, a entrar para o convento (JOZEF, 1998, p. 41). Também seu

papel social de mulher está marcado na carta, quando receia que seu texto possa

soar soberbo: ―que a outros olhos parecesse desproporcionada soberba, e mais

caindo em sexo tão desacreditado em matéria de letras com a comum acepção de

todo o mundo‖ 57 (DE LA CRUZ, 1690). Em outro momento, em que chama a

55

Trechos de sermões de Antônio Vieira reproduzidos em Saraiva (1980, p. 57-61). 56

―Digna de la sabiduría de Atenea‖ (PAZ, 1982, p. 511) 57

―que a otros ojos pareciera desproporcionada soberbia, y más cayendo en sexo tan desacreditado en materia de letras con la común acepción de todo el mundo‖ (DE LA CRUZ, 1690).

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atenção para a pretensão de Vieira ao garantir que não haveria ninguém que lhe

apontasse uma fineza igual, Sor Juana refere-se novamente seu papel de mulher:

Que quando eu não houver conseguido mais que atrever-me a fazê-lo, fosse bastante mortificação para um varão tão de todas as maneiras insigne; que não é leve castigo a quem acreditou que não haveria homem que se atrevesse a responder-lhe, ver que se atreve uma mulher ignorante, em quem é tão alheio este gênero de estudo, e tão distante de seu sexo; mas também o era de Judite o manejo das armas e de Débora a judicatura 58

(DE LA CRUZ, 1690).

4.4 Sínteses das obras selecionadas

As três peças do córpus foram escritas entre 1643 e 1690 e têm como

temática o amor de Cristo. Pertencem à esfera religiosa e estão baseadas em textos

bíblicos. Com a finalidade de informar sobre as ideias expostas e os percursos

argumentativos dos textos, apresenta-se, a seguir, a síntese de cada um deles.

4.4.1 O Sermão Do Mandato de 1643

Antônio Vieira introduz seu sermão fazendo menção à passagem bíblica que

se refere às últimas horas de Cristo, no livro de João, capítulo 31, versículo 1:

―Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai,

como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim‖. Vieira

explica que, segundo o Evangelista (subentende-se que seja João), Cristo sofria de

uma enfermidade: amor incurável e sem remédio pelo mundo, amor que lhe tirou a

vida. Apresenta então o argumento ou a proposta de seu discurso: tratar dos quatro

remédios do amor e do amor sem remédios de que padecia Cristo.

Os quatro remédios ou contrários do amor, para Vieira, são o tempo, a

ausência, a ingratidão e o melhorar do objeto. Ao tratar de cada remédio

58

―Que cuando yo no haya conseguido más que el atreverme a hacerlo, fuera bastante mortificación para un varón tan de todas maneras insigne; que no es ligero castigo a quien creyó que no habría hombre que se atreviese a responderle, ver que se atreve una mujer ignorante, en quien es tan ajeno este género de estudio, y tan distante de su sexo; pero también lo era de Judit el manejo de las armas y de Débora la judicatura‖ (DE LA CRUZ, 1690).

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77

especificamente, ele busca demonstrar que nenhum deles foi suficiente para diminuir

nem modificar o ―amor do divino Amante‖. Desse modo, o sermão se divide em sete

capítulos: uma introdução, uma apresentação geral dos remédios contrários do

amor, quatro capítulos destinados a uma apresentação mais específica dos

remédios e um capítulo de conclusão.

Começando pelo tempo, o sermão apresenta comparações entre a maneira

como esse remédio desgasta diferentes coisas: as colunas de mármore, o ferro, o

amor. O argumento é que o tempo ―tira a novidade das coisas, descobre-lhes os

defeitos, enfastia-lhes o gosto‖. Para ilustrar o efeito que o tempo tem sobre o amor

humano, Vieira narra a história bíblica sobre o amor de Davi por Barsabé, que ao

final de um ano se transformou em arrependimento. Na sequência, Vieira faz

menção aos Provérbios de Salomão e a Santo Agostinho, defendendo que o amor

perfeito deve ser eterno.

Vieira afirma que somente o amor divino, o amor de Jesus, é o verdadeiro

amor que não se modifica com o tempo, pois tem sua origem na eternidade. O padre

opina que não só o tempo não pode diminuir o amor de Cristo, mas sim o seu amor

diminuiu o tempo. O argumento para essa afirmação é que, desde a última Ceia até

o momento da ascensão de Cristo, passaram-se quarenta e dois dias, mas esses

dias eram tantos pela medida do tempo e eram apenas uma hora pela medida do

seu amor.

Vieira comenta a história de Jacó 59 para ilustrar como o amor é capaz de

diminuir o tempo. Jacó trabalhou anos para Labão, em troca de poder casar-se com

Raquel. Porém, esses anos lhe pareceram poucos dias por conta do amor que tinha

por Raquel. Comparando o amor de Jacó e o de Cristo, Vieira afirma que o deste

excede infinitamente ao daquele. Se por um lado o amor de Jacó diminuiu o tempo,

o trabalho o multiplicava. Cristo padeceu as horas de sua Paixão, e ainda desfrutou

desse padecimento pelos homens assim como desfrutou das horas em que estava

com os homens. Assim, não só o seu amor como também seu padecimento

diminuíram o tempo e fizeram que todas aquelas horas de sua Paixão parecessem

uma hora somente.

O remédio subsequente de que trata padre Vieira é a ausência. Ele compara

a ausência com a morte, chamada por Davi de terra do esquecimento. Afirma que os

efeitos da morte e da ausência são os mesmos: apartar e esfriar. Por isso, esfria o

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corpo de um cadáver assim como esfriam os corações de duas pessoas que se

amavam e que estão distantes.

Como ilustração, Vieira usa a passagem em que Madalena visita o

sepulcro60 de Cristo e, não encontrando seu corpo, chora. Para Vieira, o maior

motivo do choro de Madalena é o temor que ela sentia pelos efeitos que a ausência

de Cristo podia causar: o primeiro efeito já estava consumado, apartou-se o corpo; o

segundo seria o esfriamento de seu coração. Vieira adverte que a ausência de

Cristo era a maior que se possa imaginar, pois vai de um mundo a outro, e que essa

ausência, apesar de ter apartado Jesus, não foi capaz de diminuir seu amor pelos

homens.

Vieira sustenta que também a ausência, ao invés de diminuir o amor de

Cristo, o aumentou. Para demonstrar essa proposição, compara a fala de Cristo para

Saulo 61, com sua fala no Horto 62, quando vieram prendê-lo. No Horto, ele se

distinguiu dos seus discípulos dizendo ―deixai ir a estes‖, enquanto não se distinguiu

deles quando perguntou a Saulo ―por que me persegues?‖. Vieira afirma que a

ausência de Cristo o uniu a seus discípulos tornando-os um só ser e que também

acendeu seu amor por eles.

O argumento seguinte relacionado à ausência consiste na vinda do Espírito

Santo. Vieira conta que, no dia da Ceia, Cristo consolou seus discípulos dizendo que

tinha de ir ao Céu para que viesse o Espírito Santo. Assevera que apenas na

ausência de Cristo se vai o amante para que venha o amor (o Espírito Santo), em

forma tão ardente e intensa como a forma do fogo, e por isso reafirma que a

ausência acendeu mais o amor de Cristo. Vieira também lembra as palavras de

Jesus aos discípulos, quando revelou que os prodígios deles seriam ainda maiores

depois que Cristo se ausentasse, pois os efeitos do seu amor por eles também

seriam maiores.

Para finalizar as considerações sobre a ausência, Antonio Vieira compara

Cristo ao Sol. Ele propõe que a lua, quanto mais distante do sol, aparece mais

iluminada. Usa o trecho bíblico de Jeremias 23:23 para demonstrar que também

Deus é senhor de longe ainda mais que de perto.

59

Ver: A Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 29. 60

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 20. 61

Ver: A Bíblia Sagrada, Atos, capítulo 9. 62

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 18.

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79

A ingratidão é o terceiro contrário do amor apresentado no sermão. Vieira

começa esse Capitulo afirmando que este é o remédio mais efetivo, devido ao fato

de que está aprovado pela razão. Nesse ponto do sermão, Vieira retoma algumas

características dos motivos dos remédios anteriores e vai estabelecendo

comparações com os motivos da ingratidão. Segundo ele, a razão acompanha a

ingratidão pois privar do amor a um ingrato é uma sentença merecida.

A primeira ilustração à qual recorre Vieira, na exposição desse remédio, é a

história de Caim e Abel 63. Conta que Deus disse a Caim que o sangue de Abel

clamava por vingança, e que a ingratidão foi capaz de transformar o amor de um

irmão, que era santo e que estava morto, em aborrecimento. Segundo Vieira, o amor

de Cristo só teve motivo de aumentar com a ingratidão, mesmo tendo sido Cristo

muito mais ofendido que Abel. Então ele conta que Cristo, em forma de pedra,

oferecia água aos filhos de Israel no deserto 64, em resposta às feridas recebidas

com a vara de Moisés, e que, no Cenáculo de Jerusalém, ofereceu água e lavou os

pés aos discípulos, em resposta aos golpes que recebera de Judas e de Pedro. Na

sequencia, especifica e detalha as ingratidões desses dois discípulos,

estabelecendo sempre uma contrapartida com os favores de Cristo para com eles,

demonstrando que a ingratidão foi motivo de engrandecer o seu amor.

Como última observação sobre esse remédio, Antônio Vieira comenta a

lançada 65 no peito que Jesus recebeu depois de morto, no dia de sua crucificação.

Ele assegura, baseado em São Cirilo, Tertuliano, S. Crisóstomo e Santo Agostinho,

que a água que estava no peito de Cristo era a água usada por Pilatos 66, e que o

sangue era ―o sangue que tomaram sobre si os que procuraram a morte do Senhor‖.

Afirma também que essa água, expelida depois da lançada, se tornou a água do

Sacramento do Batismo, e o sangue, o Sacramento da Eucaristia. Conclui esta parte

do sermão dizendo que somente o coração de Cristo troca os sacrilégios em

sacramentos, e que essa lançada havia sido a maior de todas as ingratidões

praticadas contra Cristo, pois, como já estava morto, lhe feria e penetrava a alma.

O quarto e último remédio do Sermão do Mandato é o melhorar do objeto,

superior a todos em relação à eficácia, segundo Vieira. Estabelecendo pequenas

comparações, o autor explica que não há no coração lugar para dois amores, por

63

Ver: A Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 4. 64

Ver: A Bíblia Sagrada, 1 Coríntios, capítulo 10. 65

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 19. 66

Ver: A Bíblia Sagrada, Mateus, capítulo 27.

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isso, sempre que aparece um maior e melhor objeto, logo se deixa de amar o menor

objeto. Segue então a narração de quando Micol foi tirada de seu esposo Fatiel para

ser restituída ao rei Davi 67. De acordo com Vieira, quando Micol ia até o lugar onde

havia de se entregar, somente Fatiel chorou. E a razão pela qual Micol não chorava

era a melhoria de seu objeto. Ele explica que Micol amava a Fatial, mas que, depois

de ter ouvido sobre as bodas do rei Davi, mudou de afeição e deixou de amar Fatiel,

pois o objeto de seu amor havia melhorado.

Em seguida, a argumentação do sermão se direciona a Cristo. A melhoria do

objeto teria sido, no caso de Cristo, um remédio infinitamente mais poderoso, já que

Ele partia dos homens para Deus. Assim como nos capítulos anteriores, Vieira

argumenta que esse remédio, além de não ter diminuído o amor de Cristo, o

acendeu. Afirma que Jesus se entristeceu por ter de partir, e que foi maior a sua

ausência para entristece-lo do que a melhoria do objeto para alegrá-lo. Isso mostra,

segundo Vieira, a força do amor de Cristo pelos homens.

Vieira aponta também para a união do Filho e do Pai, e de ambos com os

homens, resultante da partida e da melhoria do objeto do amor de Cristo.

Mencionando novamente a Sagrada Ceia 68, o padre narra que Jesus, quando se

despedia, pediu ao Pai que os homens, junto a eles, se tornassem uma coisa só.

Finaliza o capítulo sobre a melhoria do objeto retomando a afirmação de que esse

remédio melhorou o amor de Cristo, pois fez com que o amor de Cristo e o do Pai se

unissem para amar mais ainda aos homens.

No último capítulo, Vieira retoma a ideia central do sermão, revisando os

quatro remédios já expostos, e propõe o mandamento aos ouvintes: que amem a

quem os amou com tanta intensidade, e que nenhum remédio seja capaz de diminuir

esse amor. Por fim, roga ao Senhor que o seu amor, que resistiu a todos os

remédios, seja o remédio das loucuras e das deficiências do amor dos homens.

Pede também que o Senhor reparta do seu amor com os homens, como legado de

sua liberalidade e misericórdia.

67

Ver: A Bíblia Sagrada, 2 Reis, capítulo 3. 68

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 17.

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4.4.2 O Sermão do Mandato de 1650

O Sermão do Mandato de 1650 trata das maiores finezas do amor de Cristo.

Está composto por treze capítulos, um para introdução, um para conclusão, e os

capítulos intermediários para os argumentos, sendo que a quantidade de capítulos

intermediários não equivale à quantidade de argumentos do sermão.

Assim como o Sermão do Mandato de 1643, esse sermão inicia tratando da

passagem bíblica de João, capítulo 13, versículo 1: ―Sabendo Jesus que era

chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como tinha amado os seus

que estavam no mundo, amou-os até o fim‖. À luz dessa passagem, Vieira defende

que o amor de Cristo para com os homens foi sempre igual. A partir da afirmação

dos Santos, de que o amor de Cristo fez mais no fim de sua vida do que em seu

início e em seu percurso total, o padre propõe uma separação entre os afetos e os

efeitos do amor. Assim, defende que os afetos do amor de Cristo, colocados em uma

dimensão interna, tiveram sempre a mesma intensidade, e que os efeitos, em uma

dimensão externa, foram mais excessivos no fim da vida de Cristo.

Vieira apresenta, então, o tema de seu sermão: definir qual foi a maior fineza

do amor de Cristo, entre todas as maiores. Ao expor qual será o estilo do sermão,

afirma que procederá fazendo referência às opiniões dos Santos e que para cada

fineza apontada por eles, apontará uma maior, para a qual ninguém poderá indicar

outra que se iguale. Termina o primeiro capítulo dirigindo-se a Deus, justificando que

qualquer louvor por parte de corações humanos resulta em agravos com a rudeza de

suas palavras.

No segundo capítulo, revela-se o primeiro a ser contestado, Santo

Agostinho, para quem a maior fineza do amor de Cristo foi morrer pelos homens.

Vieira defende que ausentar-se dos homens foi uma fineza maior do que morrer por

eles. O argumento primeiro é que morrer significava deixar a vida, ausentar-se

significava deixar os homens, e Cristo amava mais os homens do que sua própria

vida. Na continuação dos argumentos, Vieira usa o testemunho de Madalena 69. Ele

afirma que Madalena chorou mais na madrugada da ressurreição do que no dia da

paixão de Cristo, pois chorava pela dor da ausência total de Cristo, de alma e de

corpo. Para finalizar o capítulo, estabelecendo uma comparação entre Madalena e

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Cristo, padre Vieira questiona como seria grande o sofrer de Cristo por ter de

ausentar-se.

O terceiro capítulo trata dos sentimentos de Cristo com relação à sua morte

e sua ausência. Vieira defende que no Horto Cristo sofreu de agonia ao despedir-se

de seus Discípulos, enquanto na cruz morreu ―plácida e quietamente‖. No último

parágrafo, reafirma que Cristo sofreu mais a ausência, que era deixar de estar com

quem amava, do que a morte, que representava o deixar de ser quem era.

Dos remédios de Cristo para a ausência e para a morte é que trata o quarto

capítulo. Cristo se sacramentou antes mesmo de morrer, o que para Vieira foi o

remédio da ausência. A ressurreição foi, nessa linha, o remédio para a morte, e que

só ocorreu três dias depois de Cristo morrer. O padre então defende que Cristo

apressou o remédio da ausência e dilatou o remédio da morte, porque sentia menos

por essa do que por aquela.

No capítulo seguinte é apresentada a opinião de S. Tomás: a maior fineza

de Cristo foi, quando se ausentava, deixar-se com os homens no Sacramento. Vieira

rebate, afirmando que a maior fineza de Cristo no Sacramento foi encobrir-se. Ele

explica que, mesmo estando Cristo entre nós corporalmente, está desprovido do uso

de seus sentidos. O encobrir-se, de acordo com Vieira, foi ―renunciar os alívios da

presença‖, e estar presente sem poder ver é uma pena maior do que estar ausente.

Em seguida, Vieira usa como ilustração a história de Absalão e Davi 70.

Quando Absalão estava ausentado nas terras de Gessur, por conta da morte do

Príncipe Amon, seu pai Davi lhe deu licença para voltar a viver na corte, desde que

Absalão não lhe visse o rosto a Davi. Vieira conta, baseado no texto sagrado, que

Absalão preferia ser morto do que não poder ver o rosto de seu pai. Ele estabelece

um paralelo entre Absalão e Cristo, para reforçar que a ausência é ainda melhor do

que a presença sem permissão de ver. Então, encerra o capítulo comparando

Absalão e Cristo. A maior diferença entre eles, para Vieira, é que Absalão

demonstrou grande fineza por amor a seu pai Davi, enquanto Cristo a demonstrou

por amor aos homens.

Na sequência do sermão, Vieira realiza uma comparação entre a Paixão de

Cristo e o Sacramento. Ele propõe que nos dois eventos Cristo esteve com os olhos

encobertos, e que no Sacramento se resumem todos os tormentos de sua Paixão.

69

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 20. 70

Ver: A Bíblia Sagrada, 2 Reis, capítulo 14.

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Revela que são duas as portas pelas quais não vemos a Cristo e nem ele nos vê. A

primeira é a da humanidade, que não deixa que o vejamos enquanto Deus; a

segunda é a dos acidentes do Sacramento, que escondem a Cristo como homem. A

conclusão do capítulo vem pela reafirmação de que Cristo fez mais em encobrir-se

do que em deixar-se conosco.

O oitavo capítulo apresenta a última opinião dos Santos: para S. João

Crisóstomo, a maior fineza do amor de Cristo foi lavar os pés aos Discípulos. Vieira

refuta essa opinião: para ele, a maior fineza foi lavar os pés também a Judas. O

padre ressalta que, de acordo com o Evangelista, antes do lavatório um dos

Discípulos já tinha consentido com o Demônio a entrega de Jesus, e que o próprio

Jesus Cristo anunciou que eles estavam limpos, porém nem todos. Vieira afirma

que, apesar de já saber que Judas seria seu traidor, Cristo amava a todos os seus

Discípulos, e que ―nesta circunstância consistia [...] o mais fino do amor de Cristo‖.

No início do capítulo nono, o padre propõe que a fineza do amor consiste em

tratar da mesma maneira bons e maus, merecedores e não merecedores. Ele

menciona rapidamente a passagem bíblica dos operários da vinha 71 e do castigo ao

Faraó egípcio 72, e explica que Deus, quando faz diferença, age como Juiz severo,

diferentemente de quando se comunica com o mundo como Pai amoroso. Também

ressalta que Cristo, na condição de homem, foi servo.

Inicia-se então uma descrição comparativa sobre o modo como reagiram

Pedro e Judas ao lavatório. Vieira declara que o ato de Cristo para com Pedro foi

correspondência, pagar amor com amor, enquanto lavar os pés a Judas foi a

materialização de sua fineza, pagar o ódio com amor. Na sequência, comenta a

história bíblica em que Davi chorava a morte de Saul e Jônatas 73, pessoas muito

amáveis na opinião do rei, apesar de Jônatas ter sido amigo de Davi e Saul seu

inimigo. Estabelece-se um paralelismo identificando Davi com Cristo, Jônatas com

Pedro e Saul com Judas.

O capítulo de número dez consiste em uma breve mostra do que foi o mais

fino de todas as finezas do lavatório. Para Vieira, Judas foi como uma planta que,

regada como foram todos os outros discípulos, não deu frutos. Assim, o mais fino foi

Cristo ter lavado os pés de Judas mesmo sabendo da ingratidão que receberia como

71

Ver: A Bíblia Sagrada, Mateus, capítulo 20. 72

Ver: A Bíblia Sagrada, Êxodo, capítulos 9 e 10. 73

Ver: A Bíblia Sagrada, 2 Samuel, capítulo 1.

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resultado. Refutadas as opiniões dos três doutores, Vieira expõe, no capítulo onze, a

sua própria opinião sobre qual foi a maior fineza de Cristo: querer a correspondência

do seu amor não para Ele, mas para nós mesmos, em amar-nos uns aos outros. Ele

lembra que para as finezas já tratadas no sermão havia sempre exemplos de

pessoas que pudessem ilustrá-las, e declara que para esta fineza não há, nem

dentro nem fora da bíblia, nenhum exemplo.

Vieira apresenta fundamentos para sua opinião sobre a maior fineza de

Cristo no décimo segundo capítulo. Ele se baseia nas palavras do próprio Cristo:

―dou-vos um novo mandamento: Que é que, assim como eu vos amei, vos ameis

também um aos outros‖ (Bíblia Sagrada, João 13:34). Para Vieira, amar uns aos

outros era um mandamento que já havia sido revelado aos homens. O que havia de

novidade no que Cristo chamou de ―novo mandamento‖, segundo o padre, era que

esse amor fosse o pagamento do amor com que Cristo amou os homens. Neste

sentido, ele enaltece o amor de Cristo, perfeito, comparando-o com o amor dos

homens, carregado de ciúmes. Finaliza o capítulo afirmando que essa era a primeira

vez que alcançava seu objetivo ao pregar o Mandato.

O último capítulo é um apelo aos cristãos. Vieira declara que os homens, por

deverem a correspondência do amor de Cristo, que é infinito, estarão sempre em

débito. Ele também afirma, baseado no evangelho de Lucas, que Pilatos e Herodes

de inimigos se tornaram amigos, e que, se dois homens malditos se reconciliaram, o

cristão que não o fizer não pode esperar ser predestinado à salvação. Por fim, roga

a Deus que partilhe de sua graça aos homens para que possam amar como devem.

4.4.3 A Carta Atenagórica

Sor Juana inicia sua carta dirigindo-se ao seu destinatário, cujo nome não

vem exposto 74, recordando uma conversa que tiveram, e em que se originaram as

ideias defendidas em seu texto.

Ao mencionar Antônio Vieira, ela coloca em foco dois atributos da oratória do

padre: o fundamento e o engenho. Elogia muito o segundo, em detrimento do

74

Para Paz (1982), pode-se julgar que se trata de uma pessoa hierarquicamente superior a Sor Juana, pela forma como ela se dirige a ele.

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primeiro. Então, submete-se à correção de seu interlocutor para com o que ela

escreve. Ao pedir que somente seu destinatário seja testemunha do que ela

escreve, ―Sor Juana declina de antemão qualquer possibilidade na difusão pública

de seu escrito‖ (PAZ, 1982).

Sor Juana revela que, por algumas razões, tem amor e reverência por Vieira.

Contudo, afirma que isso não é o suficiente para que seu entendimento se renda.

Acrescenta que o que ela diz não consiste em replicar, mas sim em referir seu

sentimento. Ela adianta que se defenderá usando as razões dos três Santos Padres,

os mesmos que tiveram suas opiniões refutadas por Vieira.

A opinião de S. Agostinho, segundo a qual a maior fineza de Cristo foi

morrer, é defendida por Sor Juana. Ela afirma que Deus, na condição de homem,

não tem nada a oferecer que seja maior do que a própria vida, e se baseia nas

palavras do próprio Cristo 75, quando diz ser um bom pastor e qualifica sua fineza

com sua morte.

Sor Juana defende que uma fineza tem dois termos: a quo, que se refere ao

custo que a fineza demanda do amante; e ad quem, que é a utilidade que a fineza

tem para o amado. Ela esclarece que algumas finezas possuem apenas um dos

termos, mas que morrer pelos homens teve as duas, pois perder a vida foi custoso

para Cristo enquanto a Redenção que resultou de sua morte foi útil para os homens.

Também afirma que Cristo, no Sacramento, compra a morte com a presença, visto

que tem a presença por nos lembrar de sua morte.

Adiante, Sor Juana inicia a réplica aos argumentos de Vieira para a fineza da

ausência. Primeiramente, ela nega que Cristo se ausentou, pois, se Cristo remediou

a ausência antes mesmo de partir, não havia como sentir por ausentar-se: Cristo se

foi, mas não se ausentou. Sendo assim, a freira declara que não serve a prova de

Madalena no Sepulcro, dada por Vieira. Ainda assim, segue em sua proposta de

demonstrar que a morte foi uma dor maior que a ausência.

Madalena chorou no sepulcro e não na morte, de acordo com Sor Juana,

porque, quando o sofrimento é grande, assistem espíritos vitais que embargam o

pranto, e a dor mais amena faz com que se exalem esses mesmos espíritos. Então

Sor Juana explica, com base nesse raciocínio, por que Jesus chorou na morte de

Lázaro 76 e não na de Judas, e por que Madalena chorou na morte de seu irmão, e

75

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 10. 76

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 11.

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não na de Cristo. Conclui a defesa da morte como maior fineza com duas

declarações: a carência da ausência é limitada e a da morte, perpétua; a morte

abarca a ausência em sua essência.

Chega-se à segunda fineza defendida por Vieira. Ele, rebatendo a opinião de

S. Tomás, diz não ser a maior fineza de Cristo estar entre os homens

Sacramentado, mas sim estar sem uso de seus sentidos no Sacramento. Sor Juana

aponta a falta de lógica dessa contestação, pois afirma que o Santo propõe uma

fineza em gênero, e Vieira propõe outra em espécie: ―Como lhe responde opondo-

lhe uma das mesmas finezas que o Santo compreende?‖ 77. Negada a forma de

arguição, Sor Juana considera responder ao autor de espécie a espécie. Para ela,

entre as espécies de fineza de Cristo no Sacramento, a maior é estar presente na

humilhação das ofensas. Para ilustrá-lo, menciona a história de Jacó 78, que penaliza

seu filho Rubens por ter violado seu leito, mas não castiga os demais filhos por

terem lhe privado de ver José, pois não ver o que causa gosto é uma dor menor do

que ver o que causa desgosto.

A terceira opinião defendida por Sor Juana é a de S. Crisóstomo: a maior

fineza de Cristo foi lavar os pés aos discípulos. É exposto o posicionamento de

Vieira, que disse, segundo a freira, que a maior fineza de Cristo foi a causa que lhe

levou a lavá-los. Sor Juana aponta que esta arguição tampouco tem fundamento,

pois vai de efeito a causa, sendo que causa e efeito são relativos, não podem

separar-se. Ela explica, então, que muitas foram as causas do lavatório, e que S.

Crisóstomo optou por expressar as obras do lavatório e supor as causas, visto que

as finezas se referem às obras do amor (o efeito) e não ao amor em si (a causa).

Defendidas as opiniões dos três Santos, Sor Juana passa a responder à

última opinião de Vieira, sobre a maior entre as maiores finezas. Para ele, a maior

fineza do amor de Cristo foi amar sem querer correspondência, e esta fineza não

traz provas das Escrituras Sagradas. Sor Juana nega esta fineza e afirma que Cristo

quis sim a correspondência de seu amor, e esta é a sua fineza. Ela menciona várias

passagens bíblicas em que se orienta e se ordena que amemos a Deus. Argumenta

que, quando se atende a um pedido em favor de um terceiro, sempre se estima mais

a pessoa que realizou o pedido. Também declara que Cristo manda que nosso amor

77

―¿cómo le responde oponiéndole una de las mismas finezas que el Santo comprende? (DE LA CRUZ, 1690) 78

Ver: A Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 35 - 49.

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87

por ele venha sempre em primeiro lugar, antes do amor entre pais e filhos, marido e

mulher, antes mesmo do amor à nossa vida e à nossa essência. Então faz uma

rápida alusão ao pedido que Deus fez a Abraão, para que sacrificasse seu filho

querido, Isaque 79. Ela afirma que Deus é ciumento e quer provar a todos que o

amamos mais que tudo.

Na sequência, Sor Juana mostra finezas que os homens podem realizar, por

sua natureza, mas Cristo não as realiza: resistir às tentações e temer ser vencido

por elas. Ainda que Cristo tenha sido tentado pelo Demônio, explica Sor Juana,

tratava-se de uma tentação por sugestão, extrínseca e incapaz de incliná-lo. Torna à

fineza defendida por Vieira, e declara que não querer correspondência não seria

uma fineza do amor de Cristo, pois Ele não tem nenhum interesse nisso, nada lhe

falta se não o correspondemos. Afirma que a fineza de Cristo é solicitar nossa

correspondência sem necessitá-la. Terminando de defender seu ponto de vista

sobre esta fineza, explica que, apesar de Cristo ter solicitado a correspondência de

seu amor, ele quis a utilidade resultante dessa correspondência para os homens.

Exemplifica com a pergunta que Cristo fez a Pedro 80, seguida da consequente

ordem: ―Pedro, tu me amas? Pois guarda minhas ovelhas‖ 81.

Com relação à afirmação de Vieira, de que não havia exemplos na bíblia

para a fineza de Cristo dada por ele, Sor Juana considera que, na possibilidade de

que Cristo de fato não houvesse pedido correspondência de seu amor, haveria, sim,

exemplos nas escrituras sagradas para esse feito. Ela resgata a história de Absalão,

que foi sentenciado por Davi a morrer depois de ter matado Amon, mas que teve a

vida poupada após ter planejado matar o próprio Davi. Para Sor Juana, Davi pedia a

correspondência de seu amor a Absalão, não para si, mas para Amon.

Na continuação, Sor Juana admite que sua carta esteja cheia de defeitos e a

coloca sob o julgamento de seu interlocutor. Afirma que a carta não é obra do seu

entendimento, mas do desejo de Deus em castigar a intenção de Vieira de não ter

sua opinião superada por outra.

Sor Juana recorda a seu interlocutor que ele lhe havia pedido que revelasse

sua opinião sobre qual é a maior fineza do amor de Deus. Para ela, a maior fineza

são o que ela chama de benefícios negativos, ou seja, os benefícios que Deus deixa

79

Ver: A Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 22. 80

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 21. 81

―Pedro, ¿me amas a mí? Pues guarda mis ovejas‖ (DE LA CRUZ, 1690).

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88

de fazer, indo contra a corrente natural de sua imensa bondade, por saber do mal

que podem nos causar. Antes de prosseguir em sua argumentação, esclarece que

decidiu tratar deste tema separadamente, pois já não opina sobre as finezas do fim

da vida de Cristo, como fez o padre, mas sim da ―fineza que faz Deus enquanto

Deus, e fineza continuada sempre‖ 82.

Ao tratar da fineza do amor Divino, Sor Juana narra a passagem de Cristo

por sua pátria, em que deixou de operar milagres porque seus vizinhos e

compatriotas o censuravam. Também menciona muito brevemente outras

passagens e exemplifica como os homens podem empregar mal a saúde e a fortuna

dada por Deus. Como conclusão, roga o agradecimento, por parte dos homens, a

esta fineza. Também pede a Deus graça para conhecê-la e corresponder a ela, para

que a ponderação de seus benefícios se transforme em serviços práticos, não se

atenha a discursos especulativos.

4.5 Contrastes entre o Sermão do Mandato de 1650 e a Carta Atenagórica

Nesta seção, focaliza-se o contexto de produção dos textos e as relações de

proximidades e de contrastes que se podem apreender, sobretudo entre os dois

textos que, muito evidentemente, podem ser examinados em correlação (o sermão

de Vieira de 1650 e a carta de Sor Juana).

Tanto no texto de Vieira quanto no de Sor Juana, o domínio da arte retórica

é facilmente verificado. Ruiz e Theodoro (2000, p. 07) afirmam que há diferenças no

curso de argumentação percorrido pelo padre e pela freira, embora eles partam das

mesmas premissas: os textos bíblicos. Aprofundando a caracterização e o

entendimento dos textos e do contexto histórico e social de suas produções, é

possível perceber contrastes expressos, que auxiliam na compreensão da origem

das diferentes visões sobre as finezas de Cristo. As considerações expostas nesta

seção são todas fundamentadas em Ruiz e Theodoro (2000) 83.

82

―fineza que hace Dios en cuanto Dios, y fineza continuada siempre‖ (DE LA CRUZ, 1690). 83

Feita essa indicação, dispenso-me de citar, a cada momento, os autores no desenvolvimento dessa seção.

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89

Os primeiros pontos de contraste indicados são a finalidade e o público. A

finalidade geral de um sermão é pregar a devoção e incentivar os ouvintes a seguir

os princípios de vida cristã. A finalidade específica do Sermão do Mandato é

apresentar ao público o mandato novo, que é o de amarem uns aos outros assim

como Cristo os amou. Para atingir essa finalidade, Vieira faz uso de ―licenças

interpretativas e generalizações abstratas‖ e confronta suas concepções com as dos

tradicionais Padres da igreja. A carta, por sua vez, foi escrita a fim de discutir e

argumentar que o credo da igreja católica e as ideias pregadas por Vieira não

condizem. Exercendo sua habilidade retórica, Sor Juana refuta a estrutura

argumentativa de Vieira.

Contudo, nesse panorama de contrastes existem outras questões que vão

além dessas diferenças primárias, de finalidades estabelecidas e de ideias

defendidas. ―O que preocupava Sóror Joana – e o que constitui o ponto nevrálgico

da sua crítica a Vieira – não era nem a premissa de onde o jesuíta partia, nem

mesmo a sua conclusão, mas, sim, o caminho argumentativo por ele percorrido‖

(RUIZ e THEODORO, 2000, p. 04). A freira aponta para dois problemas em sua

reflexão. O primeiro é o fato de que os argumentos expostos por Vieira, em seu

percurso retórico, não levam exatamente às suas conclusões. O segundo é a

oposição de conceitos que o padre realiza, oposição que conduz a uma separação

entre moral e política. As distinções contidas no sermão, tais como entre ser e estar,

meios e fins, causa e efeito, são negadas por Sor Juana.

Ao estabelecer-se uma relação entre os textos e o contexto histórico em que

eles foram produzidos, chega-se à compreensão de um intenso debate filosófico no

qual seus autores estão inseridos. Ruiz e Theodoro (2000, p. 11-12) adotam os

termos ―existencialista‖ e ―essencialista‖ 84 para referir-se a uma polêmica tradicional

da Filosofia ocidental. Nessa polêmica, estão, de um lado, os essencialistas como

Sor Juana, para os quais importa a essência, e a existência aparece como seu

resultado imprescindível. De outro lado estão os existencialistas, como Antônio

Vieira, para os quais a existência não é resultado obrigatoriamente da essência.

Precisamente por isso, Vieira, ao separar morte e ausência, apresenta a morte como

a ―privação do ser‖ e a ausência como ―privação do estar‖. Sor Juana, por sua vez,

84

―Usamos aqui o termo ‗essencialista‘ –como também ‗existencialista‘ - à falta de outros termos melhores. Queremos significar com ―essencialista‖ o fato de que para Sóror Joana a existência já era um predicado da essência e que, portanto, ambas se dariam simultaneamente, sem separação possível‖ (RUIZ E THEODORO, 2000, p. 09).

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defende a morte como maior fineza de Cristo. Para ela, separar morte e ausência

―corresponde a quebrar a unidade do ser, significa não dar importância à essência

de Cristo‖ (RUIZ E THEODORO, 2000, p. 13).

Essa separação entre essencialistas e existencialistas se estendia à prática

política e ao exercício do poder tanto na América quanto na Europa, inclusive no que

dizia respeito à prática dos jesuítas:

Para Sóror Joana, [...] o agir correto ou incorreto era uma consequência necessária do ser bom ou mau, enquanto que para Vieira [...] não era propriamente uma necessidade e, sim, uma possibilidade. Podia-se pensar em ser de determinada forma e agir – aparecer – de uma outra forma completamente diferente (RUIZ e THEODORO 2000, p. 12).

Desse modo, no México de Sor Juana, o ato de politizar a partir da

separação entre ser e estar se configurava como uma atividade mais complexa. As

proposições de Sor Juana, em sua carta, conduzem ao pensamento de que pela

compreensão do religioso é que se alcança a compreensão do político. As ideias de

Vieira, por outro lado, orientam a primazia de um projeto político que visa à

convivência de pessoas em uma sociedade, por meio das separações conceituais

apresentadas.

É levando-se em conta essa realidade, na qual estão inseridos o Sermão do

Mandato e a Carta Atenagórica, que se realizará a análise no próximo capítulo.

Busca-se averiguar, sobretudo nos dois últimos textos, se os mecanismos

comparativos expressos refletem também esses contrastes e a polêmica que os

envolvem, além de averiguar se esses mecanismos comparativos revelam outros

pares de conceitos em contrastes, além dos que foram apontados nesta seção.

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5 ANÁLISE DOS MECANISMOS COMPARATIVOS NOS TEXTOS DE ANTÔNIO

VIEIRA E SOR JUANA

Com a finalidade de se obter uma estimativa dos tipos de estruturas

linguísticas mais utilizadas para expressar comparação nas peças, fez-se, neste

estudo, uma identificação e classificação de todos os trechos em que se pode

apreender um mecanismo comparativo. Para a análise, foram selecionadas as

comparações mais relevantes aos aspectos abordados. Na análise da carta, por

exemplo, priorizaram-se os trechos que apresentam comparações relacionadas a

elementos teológicos e filosóficos comuns a Sor Juana e Vieira.

A expressão da noção cognitiva de comparação é tratada de maneira

diferente pelos estudiosos, por causa da finalidade de cada obra. Assim, a ativação

dos tipos de estrutura linguística que podem expressar uma relação comparativa,

pode acontecer de maneiras distintas e com distintos critérios. Para a classificação,

foram estabelecidas três categorias de estruturas: aquelas especificamente

comparativas, denominadas historicamente como subordinação com orações

adverbiais comparativas; o superlativo relativo; e as comparações gerais,

constituídas por expedientes lingüísticos diversos. As construções especificamente

comparativas foram distribuídas em subcategorias: igualdade com correlação,

igualdade sem correlação, desigualdade com superioridade e desigualdade com

inferioridade. As comparações expressas por superlativo relativo foram subdivididas

em: de superioridade e de inferioridade. Por fim, as comparações gerais foram

subdivididas em: comparação de identidade, comparação de semelhança e

comparação de diferença. Os nomes das subcategorias da comparação geral

coincidem com os nomes usados por Halliday & Hasan (1976). Entretanto, os

critérios para a caracterização das comparações gerais aqui não coincidem com os

critérios usados pelo autor, pois, aqui, as comparações gerais podem ou não

envolver uma propriedade particular enquanto, para Halliday & Hasan, as

comparações gerais não compreendem nenhuma propriedade particular no cotejo

estabelecido.

A quantidade das ocorrências dos mecanismos comparativos é expressa,

aqui, com base em uma estimativa. No processo da análise não houve necessidade

de uma análise quantitativa dos mecanismos identificados.

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O exame de cada um dos textos tem por foco diferentes aspectos, dadas as

características que eles apresentam. Assim, a análise do sermão de 1643 prioriza a

identificação dos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos da comparação,

expostos no segundo capítulo, em uma relação com a constituição argumentativa do

sermão. A análise do sermão de 1650 tem como foco as figuras retóricas e o

estabelecimento de proporções que apresentam valor comparativo, ou que

aparecem atreladas às estruturas comparativas, bem como tem como foco as

proposições que são retomadas por Sor Juana e os mecanismos comparativos

implicados nessas proposições. A análise da carta, por sua vez, se atém às figuras

retóricas, às comparações que refletem os contrastes entre o sermão de 1650 e a

carta, e os contrastes entre os dois autores, Vieira e Sor Juana.

Neste capítulo, algumas citações do córpus foram sublinhadas e

destacadas em negrito pelo autor da pesquisa, com a finalidade de realçar

elementos relacionados aos mecanismos comparativos. Para restituir elementos e

referentes envolvidos que estão em outras partes do texto, foram utilizados

colchetes. Todas as demais formas de destaque, como parênteses e itálico, quando

aparecem, pertencem ao texto original e serão mantidas.

5.1 A comparação no Sermão Do Mandato de 1643

No exame de como são expressos mecanismos comparativos no Sermão do

Mandato de Vieira, pôde-se verificar que a comparação exerce papel de suma

importância no discurso do sermão. Seja por meio de estruturas específicas, seja por

outros recursos, os mecanismos comparativos evidentemente têm papel na coesão

e na argumentação do texto. A continuação, serão apresentadas algumas reflexões

provenientes do exame inicial do sermão, bem como alguns trechos do texto para

exposição das reflexões realizadas.

As estruturas comparativas específicas foram mais utilizadas do que as

estruturas que proveem comparação geral. Entre os casos de orações comparativas,

houve uma quantidade semelhante de comparações de igualdade e de

desigualdade. Tratando-se de desigualdade, por outro lado, há uma maior

disparidade de frequência entre ocorrências de superioridade e de inferioridade.

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93

Estas tiveram bem menos ocorrências do que aquelas, o que, aliás, é comum

acontecer nas interações linguísticas em geral. Do mesmo modo, quando a

comparação foi expressa por adjetivo superlativo relativo, a superioridade também

foi mais ocorrente. Embora em geral a tendência seja mesmo uma maior frequência

da comparação de superioridade do que de inferioridade, no caso do sermão é

provável que essa disparidade ocorra também em virtude da intenção comunicativa

do enunciador.

O tema central do sermão é o amor de Cristo, e por meio das comparações

Vieira busca intensificar esse amor atribuindo-lhe superioridade em relação ao amor

dos homens. Vieira também afirma a superioridade dos efeitos que os remédios, de

que trata o sermão, causaram ao amor de Cristo. Vejamos o seguinte trecho: ―Mais

ofendido foi Cristo que Abel, maiores ingratidões usaram com ele os homens que a

de Caim, [...]‖ 85. Neste ponto do sermão, o autor menciona o livro bíblico de

Gênesis, na parte que conta que a voz do sangue de Abel clamava vingança a Deus

por sua morte, e demonstra que a ingratidão é capaz de transformar um amor

fraternal em aborrecimento. Vieira busca demonstrar que a ingratidão não foi

remédio suficiente para curar o amor de Cristo. Para expressar o grau da ingratidão

que foi destinada a Cristo, o autor utiliza-se da comparação entre a ofensa que

sofreu Cristo e a que sofre Abel e, consecutivamente, a ingratidão demonstrada

pelos homens (a Cristo) e a ingratidão demonstrada por Caim (a seu irmão Abel).

Nesse sentido, Vieira tem por objetivo provar que, ainda que a ingratidão que Cristo

recebeu dos homens tenha sido maior do que a que Abel recebeu de Caim, Cristo

continuou amando aos homens e, portanto, o remédio da ingratidão, que foi capaz

de fazer um irmão pedir vingança, não foi suficiente para diminuir o amor de Cristo

pelos homens.

Visto que as comparações mais frequentes são entre Cristo e os homens

(em geral e também determinadas personagens bíblicas), há necessidade de

estabelecer graus elevados para os elementos relacionados a Cristo, muitas vezes,

em um contraste com um conjunto que totaliza toda a humanidade ou todos os

atributos que se encontram relacionados a essa humanidade. Essa é uma temática

que sugere fortemente cotejo e comparação, para avaliação. É o que demonstra,

85

Como a versão do Sermão do Mandato de 1643 usada nesta análise não apresenta paginação, as citações relativas a esse sermão não estão acompanhadas pelo número da página em que ocorrem.

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entre outros casos de superlativo relativo de superioridade, a seguinte frase: ―A

ausência mais distante que se pode imaginar é a que hoje fez Cristo‖.

Nesta parte do sermão, Vieira fala a respeito da ausência, o segundo entre

os remédios contra o amor por ele apresentados. Esse trecho, no qual se encontra o

superlativo relativo, aparece para demonstrar que a ausência de Cristo é a maior de

todas que se possam imaginar, pois vai de um mundo para outro. Além disso, esse

trecho possui uma característica apontada por Neves (no prelo) 86, que é o cotejo,

por meio de superlativo relativo, de um elemento com o ―possível‖. Nesse caso, o

conjunto ―possível‖ não se limita ao plano do real, compreende o que possa haver de

ausência em um plano imaginário.

A intenção principal do Sermão do Mandato é atestar de que modo remédios

tão poderosos não foram capazes de diminuir o amor de Cristo pelos homens, muito

mais poderoso do que qualquer remédio. Talvez por isso, tanto nos casos de oração

comparativa de superioridade como nos casos de superlativo relativo de

superioridade, o uso da forma sintética maior(es) seja tão frequente. O seguinte

trecho, altamente figurativo, demonstra como a intensificação de grandeza está

presente no texto:

Isto disse o evangelista, falando dos mistérios da última Ceia, em que Cristo, com o maior prodígio da sua humildade, e com o maior milagre da sua onipotência, manifestou aos homens qual era o extremo com que os amava.

Nesse trecho, Vieira trata do primeiro remédio contra o amor, o tempo. Ele

relata a revelação que Cristo fez durante a Ceia, de que partiria deste mundo para o

Pai. Quando Vieira menciona o momento da Ceia, atribui grandeza ao feito (prodígio

e milagre) de Cristo, em comparação com um conjunto de prodígios e milagres. Algo

que chama a atenção, nesse caso de superlativo relativo de superioridade, é que o

autor faz uso de um atributo de Cristo como representante do conjunto com o qual

se estabelece o cotejo do grande feito. Há um cotejo entre o maior prodígio e os

demais grandes prodígios de Cristo, e outro cotejo entre o maior milagre e os demais

grandes milagres de Cristo. Os conjuntos de grandes prodígios e de grandes

milagres estão representados, respectivamente, pelas duas qualidades, humildade e

onipotência.

86

Cf. subseção 3.2.2 do terceiro capítulo.

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Grande parte das orações comparativas no Sermão do Mandato apresenta

elipse parcial ou total do segundo termo. Segundo Neves (2008, p. 58) e Gutiérrez

Ordóñez (1997a), a elipse é propícia a ocorrer nas estruturas comparativas devido à

existência de uma base ou elemento comum entre os dois elementos em contraste.

É o que ocorre nas partes do texto que seguem:

‗Logo, assim como o amor de Jacó diminuía os anos por uma parte, assim o trabalho os acrescentava por outra‘. [Elipse parcial do 2º termo. Restituição possível: assim o trabalho de Jacó os acrescentava por outra parte]. ‗Todos os teólogos concordam, e é sem dúvida, que tanto podia vir o Espírito Santo ausentando-se Cristo da terra, como não se ausentando‘. [Elipse parcial do 2º termo. Restituição possível: como podia vir o Espírito Santo não se ausentando Cristo da terra]. ‗cada um de vós não só há de fazer as mesmas obras que dantes fazia, nem só tão grandes como as minhas, senão ainda maiores‘. [Elipse parcial dos dois termos. Restituição possível: nem só obras tão grandes como as minhas obras].

Nos casos em que o termo elíptico não aparece nem no primeiro elemento

da comparação, a restituição por elipse ocorre em outras partes do texto, no

contexto ou no conhecimento partilhado. Na sequência de trechos que segue, Vieira

estabelece cotejos entre dois apóstolos (Judas e Pedro) e um conjunto formado,

segundo o que se subentende de outras partes do texto, pelos demais discípulos:

‗Se bem repararmos antes e depois da morte de Cristo, acharemos que o mais favorecido na Ceia foi Judas, e o mais favorecido na Ressurreição foi Pedro‘. [Restituição possível: o mais favorecido de todos os discípulos na Ceia; o mais favorecido de todos os discípulos na Ressurreição]. ‗Na Ceia o que mais ofendeu a Cristo foi Judas; na Paixão o que mais o ofendeu foi Pedro‘. [Restituição possível: o discípulo que mais ofendeu a Cristo entre todos os discípulos; o discípulo que mais ofendeu a Cristo entre todos os discípulos].

Essa inferência do conjunto com o qual se comparam Judas e Pedro pode

ser feita pela frase: ―Notai agora, e notai muito, que, lavando o Senhor os pés de

todos os discípulos, só de Judas e de Pedro faz menção neste ato o evangelista‖.

Há casos em que o elemento elíptico não aparece em outras partes do texto, e sua

restituição, mesmo por meio do contexto ou do conhecimento partilhado, se torna um

processo extremamente complexo. No entanto, restituir os elementos elípticos nem

sempre é um processo essencial à compreensão da relação expressa. É possível,

também, que a restituição do termo elíptico não seja uma prioridade na intenção do

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enunciador. Na comparação de superioridade, por exemplo, é comum que o

segundo termo seja completamente elíptico, como acontece no trecho que segue.

Talvez a intenção seja evidenciar a superioridade de um elemento sem manifestar o

outro elemento com o qual se estabelece um cotejo, como pode ser o caso da

comparação a seguir:

mas no juízo dos males sempre conjecturou melhor quem presumiu os maiores. [Elipse parcial do primeiro termo e total do segundo termo. Restituição possível: quem presumiu os maiores males de todos os males conjecturou melhor do que quem não presumiu os maiores males].

Além da expressão de comparativa e de superlativo relativo, por estruturas

específicas, também há comparações gerais apreendidas no texto. As que

expressam diferença foram as mais frequentes, enquanto as comparações de

semelhança e de identidade tiveram ocorrência bem menor. Talvez esse fato esteja

relacionado com a proposta de Vieira, comentada anteriormente, de apresentar o

amor de Cristo como um amor superior, que não se iguala a nenhum outro. Também

o barroco pode ter influência na quantidade de comparações de diferença, já que o

contraste e o jogo de contrários são parte da essência desse movimento. Sem

dúvida, no sermão Vieira procura muito mais distinguir as coisas do que igualá-las.

As marcas de estabelecimento de comparação mais utilizadas nos casos de

comparação geral são os verbos (comparar, competir, igualar), os adjetivos

(superior, inferior, último, outro, mesma, supremo, distinta), os numerais ordinais

(terceiro), os demonstrativos (esta) e os substantivos (semelhança, diferença,

comparação, igualdade, desigualdade).

Muitos são os cotejos estabelecidos entre a morte e a ausência, sobretudo

no que se refere aos efeitos de cada uma, como se pode notar na parte do sermão

que segue: ―Vede-o nos efeitos naturais de uma e outra [morte e ausência]. Os dois

primeiros efeitos da morte são dividir e esfriar. [...] Estes mesmos efeitos ou poderes

têm a vice-morte, a ausência‖. Vieira faz uso dos pronomes indefinidos ―uma‖ e

―outra‖, que se referem respectivamente à morte e à ausência. É proposta, de início,

uma apreciação comparativa dos dois elementos tendo como particularidade seus

efeitos. Na sequência, o autor revela quais são os efeitos da morte (dividir e esfriar)

e, por meio do adjetivo ―mesmo‖ estabelece uma comparação de identidade entre a

morte e a ausência, que são semelhantes por produzirem os mesmo efeitos.

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Como é possível perceber, em muitos casos de comparação geral, Vieira

usa vários expedientes em um mesmo cotejo. No caso a seguir, o mecanismo

comparativo é representado por meio de adjetivo, demonstrativo e advérbio:

Que as outras horas e dias parecessem ao amorosíssimo Senhor muito breves não é tão grande maravilha, porque eram horas de estar com os que tanto amava; mas que também as da Paixão, sendo de tão excessivas penas, as abreviasse igualmente o seu amor? Sim, e pela mesma causa. As outras eram breves, porque eram horas de estar conosco, e estas eram também breves, porque eram horas de padecer por nós.

Nesse trecho percebe-se o uso desses expedientes no estabelecimento das

proporções, extremamente presentes nos sermões de Vieira, como observa Saraiva

(1980) 87. A proporção, neste caso, aparece com elevado grau de valor comparativo.

Para demonstrar como o amor de Cristo foi capaz de diminuir o tempo, Vieira, aqui,

estabelece cotejos entre as horas em que Cristo esteve com os homens (colocadas

em um polo pelo adjetivo ―outras‖) e as horas de sua Paixão, em que padeceu pelos

homens na cruz (colocadas no polo oposto pelo demonstrativo ―estas‖).

O autor estabelece dois cotejos consecutivos entre os elementos em

contraste (horas de convivência e horas da Paixão). No primeiro cotejo, o elemento

comum é a aparente brevidade das horas, e a comparação se resolve em

semelhança, pois as horas são igualmente breves. No segundo, o elemento comum

é a causa da brevidade, e a comparação é de identidade, pois as horas tiveram a

mesma causa de abreviação: o ser humano. As marcas de semelhança da

brevidade das horas de Cristo são os advérbios ―também‖ e ―igualmente‖. A marca

de identidade da causa da abreviação é o adjetivo ―mesma‖. Também se percebe,

aqui, outro artifício muito usado por Vieira, o da pergunta retórica, que será exposto

em outros trechos do sermão mais adiante. Não só nesse como em outros cotejos,

Vieira lança mão de diferentes recursos, como a proporção, a comparação e as

figuras retóricas, para atingir seu objetivo, que é impressionar e convencer os fiéis.

Em outra frase, retirada do mesmo parágrafo que a anterior, uma oração

comparativa de igualdade é reforçada advérbio igualmente, que conclui e confirma

os cotejos anteriores: ―[...] por isso, diminuiu igualmente as horas tanto o gosto do

padecer pelos homens como o gosto de estar com eles‖.

Em certa parte do sermão, Vieira narra a revelação que Cristo fez aos seus

discípulos, depois da Ceia, de que quando ele se ausentasse mandaria o Espírito

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Santo à terra. Segue-se a descrição das conseqüências do amor e da ausência de

Cristo e, quase ao final do parágrafo, Vieira relata o cumprimento da revelação da

Ceia: ―Assim o prometeu o Senhor, e assim o cumpriu‖.

Nessa frase, há comparação geral de semelhança entre a promessa e o

cumprimento do Senhor. Essa comparação é marcada pelo advérbio demonstrativo

―assim‖. O que chamou a atenção durante a análise, é que a repetição do advérbio,

no segundo termo, atribui um valor modal-comparativo semelhante ao que é

expresso por meio da construção correlativa assim como... assim. Na frase

analisada, os termos estão unidos pela conjunção aditiva ―e‖, o que atribui à

comparação também um valor aditivo. As construções correlativas com assim

como... assim não costumam aceitar uma conjunção aditiva, no entanto também há

um valor aditivo implícito, em menor grau do que o valor modal-comparativo, fato

que merece uma interpretação ligada à proposição da notável existência de fluidez

categorial nesse campo (NEVES, 2010). Esse aspecto será retomado em um

momento posterior da análise.

Nas comparações gerais, o resultado do cotejo também aparece sugerido

por perguntas retóricas. Na passagem exposta a seguir, há uma comparação geral

de diferença, com uma superioridade questionada. A resposta está no argumento

que vem sendo desenvolvido ao longo do sermão: ―Que objeto mais digno de ser

amado? Que objeto que compita com ele, não digo na igualdade, senão na

semelhança? Toda a outra formosura, em comparação da sua, não é fealdade?‖.

Mais uma vez, Vieira coloca a figura de Cristo em tela de comparação. No

capítulo de conclusão de seu sermão, ele estimula os cristãos, público de seu

discurso, a amarem a Cristo. De início, questiona qual objeto pode ser mais digno de

ser amado que Cristo. Descarta, então, a possibilidade de uma comparação de

igualdade entre Cristo e outros possíveis objetos de amor. Induz, assim, uma

comparação de semelhança em forma de pergunta, pondo como elemento comum a

formosura. A argumentação que vem sendo construída no sermão, com base na

superioridade de Cristo, é que vai sugerir a resposta à pergunta colocada por Vieira:

toda formosura, comparada à formosura de Cristo, se resolve como tão inferior à sua

que chega a ser considerada fealdade.

Nessa comparação entre formosuras, fica evidente o juízo de valor

implicado, segundo observa Gutiérrez Ordóñez (1997a). A qualificação da

87

Cf. subseção 4.1.2 do quarto capítulo.

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formosura, que não é a de Cristo, relativizada pela formosura que é a de Cristo,

chega a provocar tanta mudança que passa a ser considerada fealdade. Essa

relativização ocorre por conta das concepções que Vieira tem de formosura, de

fealdade, e da figura de Cristo. Percebe-se também que juízo de valor expresso na

comparação depende, ainda, do contexto histórico e situacional em que Vieira

escreveu, bem como da sua justificativa e da sua intenção ao escrever o sermão. A

formosura atribuída a Cristo é importante na finalidade do sermão, de demonstrar a

grandeza e o poder do amor de Cristo ao público. Como se vê, muitos são os fatores

que irão influenciar o estabelecimento das comparações nos sermões de Vieira.

Em outro trecho do sermão, a comparação geral é estabelecida pelo verbo

―comparar‖. Nesse caso, a resolução do cotejo e o elemento comum estão implícitos:

Comparai-me o Criador do céu e da terra com os pescadores de Tiberíades; o adorado dos anjos com os desprezados do mundo; o infinito, o imenso, o incompreensível, o que só é, e dá o ser a tudo, com os que verdadeiramente eram nada, como somos todos.

Aqui Vieira sugere a comparação de vários pares de elementos. Em todos

os pares, um elemento se refere a Deus e o outro aos homens (em um dos casos

dois homens em específico: os discípulos Pedro e João). Também nesse ponto a

argumentação que vem sendo defendida leva a supor comparações de diferença,

em que Deus é superior em relação a alguma propriedade. O reforço da

superioridade, assim como a identificação do elemento comum, é oferecido pelo

trecho que antecede e pelo que sucede imediatamente às comparações analisadas:

‗E se a melhoria do objeto é tão poderoso e eficaz remédio para mudar de amor, não digo eu quão poderoso seria, senão quão onipotente no nosso caso, em que a diferença ou a competência não era de homem a homem, senão de homens a Deus, nem de Faltiel a Davi, senão de Pedro e João ao Eterno Padre‘. ‗[...] e vereis quão temerária esperança seria, e quão louco pensamento o de quem cuidasse que à vista de tal objeto podia ter lugar, não digo o amor, mas nem a memória dos homens‘.

Por esses dois trechos, Vieira prega que Deus é melhor objeto para o amor

de Cristo do que os homens. Ele recorre a essas comparações para reforçar como

foi grande a melhoria do objeto do amor de Cristo quando partiu da terra para o céu,

e para mostrar que a conclusão mais esperada é a de que o amor e a memória dos

homens não podem ter lugar se comparados a Deus.

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100

Algumas estruturas presentes no sermão expressam relações semânticas

diversas, como relação adversativa, consecutiva e modal, com determinado grau de

valor comparativo. Nesses casos, percebe-se a fluidez das categorias gramaticais, a

qual perpassa as relações semânticas na combinação de orações (cf. subseções

2.2.1 e 2.2.2 do segundo capítulo).

As orações coordenadas aditivas com correlação do tipo não só... senão...

apresentam semelhança semântica com as comparativas com correlação do tipo

tanto... quanto..., conforme ilustra a frase a seguir: ―[...] concorriam nela outras duas

razões naturais, não só para chorar, senão para chorar mais‖. O sentido expresso

pela coordenada é semelhante ao da construção ―tanto para chorar, quanto para

chorar mais‖.

As orações subordinadas consecutivas implicam uma condição que foi

atendida e desencadeou uma consequência. As consecutivas do tipo tão/tanto...

que... implicam igualdade entre um nível de intensidade necessário para

desencadear a consequência e o nível de intensidade que foi alcançado de fato. Os

trechos que seguem ilustram essa relação:

‗A ausência de Cristo era tão distante, que excedia a esfera de todos os elementos, e passava da terra até o céu‘. ‗Quando a lua está mais longe do sol, então se vê mais alumiada, porque tão longe estão os longes do sol de lhe diminuir a luz, que, antes, à medida da distância lhas comunica maiores‘.

No primeiro trecho, está expresso que a intensidade da distância (condição)

atingiu um nível igual ou superior ao que é necessário para exceder a esfera de

todos os elementos (consequência). No segundo, a intensidade da longitude do sol

(condição) atingiu um nível igual ou superior ao que é necessário para ser possível

aumentar a brilho da lua (consequência).

As orações não correlativas com como são propícias ao estabelecimento de

valores semânticos de comparação, modalidade e conformidade, que aparecem em

graus às vezes tão semelhantes que se torna difícil a identificação do valor principal.

É o que se pode notar nas frases a seguir: ―Padeceu Cristo em sua Paixão, como

provam todos os teólogos com Santo Tomás‖; ―[o amor] É como a eternidade, que

se, por impossível, tivera fim, não teria sido eternidade‖; ―E o amor como a lua que,

em havendo terra em meio, dai-o por eclipsado‖.

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Em alguns momentos Vieira estabelece proporções de valor comparativo por

meio da simples justaposição de orações, como é o caso das proporções dos

trechos que seguem:

‗Em todas as outras coisas o deixar de ser é sinal de que já foram; no amor o deixar de ser é sinal de nunca ter sido‘. ‗Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores‘. ‗[...] o amor do figurado excede infinitamente ao da figura, e o de Jesus ao de Jacó‘.

A negação ou incerteza de uma comparação também pode dar espaço a

outros possíveis valores, os quais podem ser inferidos de acordo com o contexto ou

com a argumentação que vem sendo construída em cada parte do sermão. A

comparação a seguir aparece em um momento do sermão em que Vieira menciona

a ida de Madalena ao sepulcro de Cristo. A comparação nega ser igual a intensidade

das causas do choro de Madalena (amor a Cristo e medo do efeito da ausência):

―Diz, com notável pensamento, Orígenes, que [a causa do choro de Madalena] não

era tanto pelo que a Madalena amava a Cristo, quanto pelo que temia de si‖.

A negação da comparação de igualdade construída com tanto... como,

segundo Gutiérrez Ordóñez (1997a) 88, abre espaço para outras duas interpretações

esperáveis: de superioridade ou de inferioridade. No entanto, diz o autor, há

interpretações pragmáticas em que tanto... como equivale a al menos tanto... como

ou igual o más... que. Da mesma forma, a negação de tanto... como pode ser

interpretada como menos... que. As considerações de Gutiérrez Ordóñez (1997a)

estão direcionadas à língua espanhola, mas podem ser percebidas na prática, na

comparação anterior, que se constrói com a negação de tanto... quanto.

Teoricamente, se a causa do choro de Madalena não é tanto pelo que amava a

Cristo quanto pelo que temia de si em função da ausência do corpo de Cristo, há

possibilidade de duas interpretações esperáveis: a) a causa do choro de Madalena

era mais pelo que a Madalena amava a Cristo, do que pelo que temia de si; b) a

causa do choro de Madalena era menos pelo que a Madalena amava a Cristo, do

que pelo que temia de si. No caso do sermão, há uma interpretação pragmática de

inferioridade que prevalece, parafraseada na opção ‗b‘.

88

Cf. subseção 3.3.1 do terceiro capítulo.

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Essa interpretação está vinculada à argumentação que o autor vem

desenvolvendo no sermão, no sentido de demonstrar que os efeitos da ausência são

poderosos para combater o amor dos homens. Nesse sentido, o cotejo entre as duas

causas do choro de Madalena tem função de ilustrar a inferioridade de outros

fenômenos e sentimentos frente à ausência, no que se refere à intensidade ou

poder. Outra passagem do texto demonstra essa ideia:

Pois o amor da Madalena, tão forte, tão animoso, tão constante, tão ardente, o amor da Madalena canonizado de grande, engrandecido de muito: Quoniam dilexit multum, tão pouco fiava de si mesmo, que temesse esfriar-se?.

Nesse mesmo trecho está implicado certo valor comparativo na oração

subordinada consecutiva, com correlação tanto… que….. Em outras palavras, a

igualdade ou superioridade entre o nível alcançado e o nível suposto constitui a

condição que é atendida para uma determinada consequência. No caso do trecho,

fica implícito que a baixa confiança de Madalena atingiu um grau equivalente ou

superior ao grau que gera a consequência que é o temor de ter seu amor esfriado.

A oração em frase interrogativa tem valor semântico diferente do valor que

ela teria em uma frase afirmativa. Com frequência Vieira sugere o resultado de uma

comparação por meio de perguntas retóricas, como se verá em outros exemplos

adiante. Esse recurso retórico, sobretudo no movimento barroco, cumpre função de

impressionar e comover o público.

Outras comparações aparecem apenas sugeridas ou interrogadas. Vejam-se

os dois seguintes casos que aparecem no texto quando se trata do terceiro remédio

do amor, a ingratidão:

‗Que sentença mais justa que privar do amor a um ingrato?‘ ‗Sendo, pois, a ingratidão o maior contrário do amor, quem duvida que este terceiro remédio seria também o último, e o mais presente e eficaz, ou para extinguir de todo, ou, quando menos, para mitigar o amor de Cristo?‘

Na primeira frase, se sugere que não há nenhuma sentença mais justa a um

ingrato do que privá-lo do amor. Essa comparação sugerida serve para atestar que a

ingratidão é o remédio mais efetivo contra o amor, pois está aprovado e ordenado

pela razão. Na segunda frase, pela maneira como a ingratidão vem sendo tratada no

sermão, Vieira leva o leitor a concluir que ela é um contrário suficientemente

poderoso para diminuir o amor de Cristo. Uma ideia contrária aos preceitos cristãos

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é insinuada para cumprir efeito retórico e estético, por meio de uma comparação e

de uma pergunta.

Para voltar ao objetivo maior, que é mostrar a grandeza do amor de Cristo

sobre os remédios, na sequência o autor muda o percurso do raciocínio comparativo

e avalia o amor de Cristo em relação à ingratidão com o fogo em relação ao vento.

Assim como acontece com o fogo, quando o amor é grande, o seu elemento

contrário, ao invés de diminuí-lo, só faz aumentá-lo ainda mais. Com isso, fica

negada a comparação sugerida anteriormente: ―É a ingratidão com o amor, como o

vento com o fogo: se o fogo é pequeno, apaga-o o vento; se é grande, acende-o

mais‖.

Às vezes, nem o sentido expresso da comparação (igualdade ou

desigualdade, com superioridade ou inferioridade) é explicitado. Na maior parte dos

casos, o tipo da comparação expressa está implícito. É o que se pode encontrar a

seguir: ―E se estes são os efeitos, ou os primores do sol quando se ausenta, quais

serão os daquele Senhor que criou o sol?‖. Essa comparação geral entre o sol e

Cristo vem sendo feita quando se trata dos efeitos da ausência de Cristo. Veira,

depois de mencionar a revelação de Cristo de que sua ausência faria aumentar a

grandeza das obras de seus discípulos, relata como o sol, quando ausente, permite

que a lua se veja mais iluminada. Na continuação da argumentação, sugere uma

comparação entre a grandeza dos efeitos que tem a ausência do sol e a ausência de

Cristo, o Senhor que criou o sol. Está implícito, pelo contexto e pelo próprio caminho

argumentativo do sermão – de atribuir superioridade aos atributos e poderes de

Cristo – , que os efeitos da ausência de Cristo são superiores, em quantidade,

qualidade ou intensidade, aos efeitos da ausência do sol.

O mesmo mecanismo está presente no trecho que segue. Nesse caso, trata-

se da ausência do homem, cujos efeitos sobre o amor são de diminuição ou

destruição. Vieira estabelece uma relação de proporção entre o efeito da ausência e

o efeito da morte (negaçao da vida), com sentido implícito de superioridade do efeito

da ausência (negação da presença). Na segunda interrogação, ele procura

configurar a gravidade de cada uma delas relacionando-as com a distância: ―Se os

mortos são tão esquecidos, havendo tão pouca terra entre eles e os vivos, que

podem esperar, e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra

causam tais efeitos, tantas léguas que farão?‖.

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Em alguns casos, a resposta à interrogação vem em seguida. Isso reforça o

caráter retórico com que comparação aparece, para chamar a atenção do receptor

da mensagem. É o que parece ocorrer nesta parte do sermão:

[...] por isso hão eles [os discípulos] de fazer maiores obras que as suas [do Senhor Jesus], e maiores também que as vossas [do Senhor Jesus e de seu Pai]? Porventura haveis de ser mais poderoso no céu, do que éreis na terra? Não, responde o divino Amante. Não hão de experimentar esta diferença meus discípulos, porque lá hajam de ser maiores as jurisdições do meu poder, senão porque hão de ser maiores os efeitos do meu amor.

Nesta seção do texto, Vieira questiona qual o motivo da mudança na

grandeza das obras que serão realizadas pelos discípulos, depois da partida de

Cristo. Ele lança uma possibilidade: Cristo e o Pai serem mais poderosos no céu do

que na terra. A resposta à própria pergunta vem imediatamente: Não. Além de negar

a comparação, o autor apresenta outra comparação, na qual expressa a

superioridade do amor de Cristo, decorrente de sua ausência, como a causa real das

maiores obras de seus discípulos.

Às vezes, o que está inquirido ou implícito é a intensidade da comparação. É

o que se vê nos dois casos abaixo:

‗Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor?‘ ‗E se a melhoria do objeto é tão poderoso e eficaz remédio para mudar de amor, não digo eu quão poderoso seria, senão quão onipotente no nosso caso, em que a diferença ou a competência não era de homem a homem, senão de homens a Deus, nem de Faltiel a Davi, senão de Pedro e João ao Eterno Padre‘

No primeiro caso, Vieira afirma que o ferro é gasto pelo uso e interroga

sobre a intensidade com que o uso gasta mais o amor do que gasta o ferro. Essa

interrogação já deixa claro que a comparação entre o gasto do amor e o do ferro é

de superioridade, expressa pelo advérbio mais. O pronome quanto sugere uma

quantidade que não é explicitada.

Na parte do sermão que antecede o segundo trecho, Vieira narra a história

da Princesa Micol, que teve de deixar seu marido Fatiel para ser restituída ao rei

Davi. O autor defende que o amor que Micol sentia por Fatiel diminuiu porque a

mudança pela qual passou (de Fatiel a Davi) significava uma melhoria do objeto de

seu amor. Assim, a oração que inicia o trecho faz referência à mudança do amor de

Micol. Esse efeito é expresso em uma oração condicional: ―E se a melhoria do objeto

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é tão poderoso e eficaz remédio para mudar de amor...‖. O atendimento da condição

sugere, de maneira implícita, uma comparação entre o efeito da melhoria no amor de

Micol (primeiro elemento), que passou de Fatiel para Davi, e no amor de Cristo

(segundo elemento), que passou dos homens para o Pai.

A conclusão se encaminha no sentido de demonstrar que o remédio

denominado por Vieira como a ‗melhoria do objeto‘, no caso de Cristo, é muito mais

poderoso e eficaz do que no caso de Micol. Contudo, Vieira desvia a lógica do

raciocínio, e manifesta que esse remédio tampouco foi capaz de mudar o amor de

Jesus: ―[...] sem embargo de ser o Padre tão infinitamente maior e melhor objeto, tão

fora esteve o objeto de render e levar a si o amor, que antes o amor rendeu e levou

a si o objeto‖.

Outro tipo de valor semântico aliado à construção comparativa que se

encontrou foi o valor hipotético, como no trecho seguinte: ―Oh! quanto nos pesa

nesta hora, e para sempre, de vos não ter amado como devíamos!‖. No último

parágrafo do sermão, Vieira se dirige a Deus e lamenta que os homens não o

tenham amado como deviam. A comparação proposta é de igualdade entre o modo

com o qual os homens amaram e o modo com o qual deveriam ter amado, o que

instaura, pelo uso da conjunção ―como‖, valor modal-comparativo. O verbo ―dever‖,

no pretérito imperfeito, expressa algo que era esperado e que não se cumpriu. O

não cumprimento também é expresso pela negação da comparação.

Em outra parte do sermão, Vieira nega a relação causal entre a ausência de

Cristo e a vinda do Espírito Santo à terra. Estabelece, então, uma comparação de

igualdade entre a duas hipóteses: a vinda do Espírito Santo como consequência da

ausência de Cristo, e a vinda do Espírito Santo sem que Cristo se ausente: ―Todos

os teólogos concordam, e é sem dúvida, que tanto podia vir o Espírito Santo

ausentando-se Cristo da terra, como não se ausentando‖. O verbo ―poder‖,

conjugado no pretérito imperfeito, ainda que elíptico no segundo termo da

comparação, é responsável por atribuir aos dois elementos do contraste um valor de

hipoteticidade.

O mesmo ocorre na seguinte ocorrência, pelo uso do verbo ―haver‖,

conjugado também no pretérito imperfeito:

E sendo a minha partida para melhorar tanto de estado e de objeto, se eles me amaram verdadeira e desinteressadamente, haviam de poder mais as minhas melhoras para os alegrar, que a minha ausência para os entristecer.

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Esse trecho é parte de um pronunciamento que Vieira atribui a Jesus, sobre

a tristeza de seus discípulos por conta de sua partida iminente ao céu. A lógica

estabelecida é a de que, se a partida de Cristo representa uma melhoria, e, se os

discípulos amam a Cristo de maneira verdadeira e desinteressada, a melhoria deve

ser um motivo mais poderoso para a alegria dos discípulos do que ausência é um

motivo para a tristeza deles. Vieira constrói uma relação condicional, em que a

comparação de duas finalidades aparece como um atendimento hipotético à

condição expressa. Essa lógica também pode ser representada por meio de um

esquema:

Condição 1: partida de Cristo = melhoria. Condição 2: amor verdadeiro e desinteressado dos discípulos a Cristo. Finalidade 1: poder das melhoras de Cristo para alegrar os discípulos. Finalidade 2: poder da ausência de Cristo para entristecer os discípulos. Comando resultante do atendimento das condições 1 e 2 = comparação hipotética = finalidade 1 > finalidade 2.

A pergunta retórica é um dos processos figurativos que mais aparece no

sermão, atrelada às comparações estabelecidas e sugeridas por Vieira. Contudo, ele

faz construções em que os mecanismos comparativos se atrelam a outras figuras,

como a metáfora e a antítese, conforme ilustram os dois trechos a seguir,

respectivamente: ―Os olhos são as frestas do coração, por onde respira [...]‖; ―O que

neles é tristeza, para ser amor havia de ser alegria, e o que em mim parece que

havia de ser alegria, porque é amor, é tristeza‖.

Cabe destacar nesta análise a força de criação de relevos que a carga de

comparativos traz aos textos de Vieira. A título de ilustração, segue uma

comparação encontrada no sermão, que trata do sentimento de Madalena: ―Diz, com

notável pensamento, Orígenes, que [a causa do choro] não era tanto pelo que a

Madalena amava a Cristo, quanto pelo que temia de si‖. Vieira coloca em foco, pela

comparação, o medo que Madalena sentiu de ter seu amor diminuído pela ausência

de Cristo. Ao mesmo tempo, ele transfere a um segundo plano o amor que ela sentia

por Cristo, negando a igualdade entre os dois sentimentos como causadores do

choro de Madalena.

No trecho que segue, os ―extraordinários efeitos‖ se referem ao choro. Aqui,

o choro recebe proeminência e aparece ligado à ausência.

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[...] assim o coração ausente, faltando-lhe a respiração da vista, e não tendo por onde dar saída ao incêndio, recolhe dentro em si toda a força e ímpeto do amor, o qual cresce naturalmente, e se acende e adelgaça, de sorte que, não cabendo no mesmo coração, rebenta em maiores e mais extraordinários efeitos.

5.2 A comparação no Sermão do Mandato de 1650

Assim como no Sermão do Mandato de 1643, no Sermão do Mandato de

1650 foram observados inúmeros tipos de comparações, expressas por estruturas

específicas e por estruturas gerais. Como dizem Ruiz e Theodoro (2000, p. 3), a

finalidade principal de Vieira é ―que os ouvintes tirem uma lição da consideração do

‗mandatum novum‘ de Cristo‖, e o artifício do seu discurso é ―mostrar que tudo que

se falou sobre o amor de Cristo pelos homens não foi visto sob o ‗novo‘ aspecto que

ele quer destacar‖. Desse artifício surgem comparações que refletem o contraste

entre o que foi dito anteriormente por santos e doutores da igreja e o que Vieira

disse de novo. Também há comparações que estão relacionadas aos exemplos e

ilustrações do autor, como ocorre nos demais textos.

Nesta parte da análise, busca-se relacionar as comparações e suas funções

no discurso de Vieira, observando o modo como o mecanismo comparativo aparece

nos seus argumentos, nos seus recursos retóricos e estilísticos, e, com especial

atenção, nas comparações resgatadas e comentadas na carta de Sor Juana, cuja

análise constitui a última parte deste capítulo. No decorrer da análise do sermão de

1650, são registradas alusões à carta e às opiniões de Sor Juana, sempre que se

comenta uma ideia ou comparação específica do sermão que apresente uma

contraparte na carta. Contudo, a análise desses pontos de contato entre os dois

textos aparece de maneira mais elaborada na parte da análise que se refere

especificamente à carta (seção 5.3).

Vieira já inicia seu sermão estabelecendo uma comparação entre as obras

da Criação e as da Redenção, conforme se observa no trecho transcrito a seguir.

Em um primeiro plano, ele expressa igualdade entre as duas situações. Em um

segundo plano, cada termo da comparação contém outra comparação, que vem com

superlativo relativo de superioridade, atribuindo superioridade às obras que

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ocorreram no fim de cada situação. No primeiro uso do superlativo relativo, o

elemento que representa o referente não é o conjunto de todas as obras da Criação,

mas sim ―o poder de Deus‖, o que implicita o sentido de que o referente é o conjunto

de todas as obras que possam ser realizadas pelo poder de Deus. No segundo uso,

o elemento com papel de referente é ―o seu amor‖. Igualmente, há uma implicitação

do sentido de que o referente seja um conjunto de todas as obras que possam ser

realizadas pelo amor de Cristo: ―Como nas obras da Criação acabou Deus no último

dia pelas maiores do seu poder; assim nas da Redenção, de que este dia foi o

último, reservou também para o fim as maiores do seu amor‖ (p. 189).

A partir da superioridade atribuída às obras finais da Redenção, o autor nega

a superioridade do amor de Cristo. Nas passagens que seguem, Vieira compara o

amor de Cristo em diferentes momentos de sua vida, atribui igualdade à intensidade

do amor e nega a diferença e/ou superioridade dessa intensidade. Ele questiona

qual a diferença expressa nos dois trechos do versículo, que ele coloca em latim e

que Pécora (2000, p. 189) traduz como ―tendo amado‖ e ―amou-os até o fim‖,

respectivamente:

‗Porque é certo que o amor de Cristo para com os homens desde o primeiro instante de sua Encarnação até o último de sua vida, sempre foi igual e semelhante a si mesmo: nunca Cristo amou mais nem menos‘ (p. 189). ‗Pois se o amor de Cristo foi sempre igual sem excesso, sempre semelhante a si mesmo sem aumento: se Cristo enfim, tanto amou aos homens no fim, que diferença há, ou pode haver entre o cum dilexisset, e o in finem dilexit

89?‘ (p. 189).

Para explicar essa diferença sem negar a igualdade do amor de Cristo no

início e no fim, Vieira separa dois conceitos relativos ao amor: os afetos, que

segundo ele são internos, e os efeitos, externos. Ele atribui apenas aos efeitos a

superioridade no fim da vida de Cristo, o que o leva a atribuir superioridade também

às finezas do amor de Cristo no fim da vida. Na primeira sequência que vem adiante,

ele nega que a intensidade do ato de amar no fim seja superior, e afirma a

superioridade das ações do amor no fim, com relação às ações do princípio. Na

segunda sequência, Vieira estabelece uma sucessão de comparações, atribuindo

superioridade aos aspectos externos do amor de Cristo, e, finalmente, às finezas

desse amor:

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‗Dizem que usou destes termos o Evangelista, não porque Cristo no fim amasse mais do que no princípio amara, senão porque fez mais seu amor no fim do que no princípio, e em toda a vida fizera‘ (p. 189). ‗[...] e o amor de Cristo quanto aos afetos de dentro, tão intenso foi no princípio, como no fim: mas quanto aos efeitos de fora, muito mais excessivo foi no fim, que em todo o tempo da vida. Então foram maiores as demonstrações, maiores enfim todas as finezas que cabem em um amor humanamente divino, e divinamente humano‘ (p. 189).

Sobre a diferença entre os trechos do versículo, Vieira destaca entre as

demais interpretações feitas pelos Santos da igreja a sua própria interpretação:

―Respondem os Santos com muitas palavras com o que já insinuei em poucas‖ (p.

189); ―Esta é a verdadeira e literal inteligência do texto‖ (p. 190).

Depois de chegar à afirmação da superioridade das últimas finezas do amor

de Cristo, Vieira questiona a superioridade relativa a essas finezas já superiores:

entre as maiores, qual foi a maior? É essa proposta de comparação da comparação

que vai conduzir as proposições de Vieira. No trecho que vem a seguir, ele

apresenta essa proposta em uma sucessão de comparações, em que estabelece

uma diferença entre o cotejo do Evangelista (João) que é comparação simples de

superioridade e o seu próprio cotejo, que é de superioridade dentro da

superioridade:

Suposto que do amor de Cristo as finezas do fim foram maiores que as de todo o tempo da vida; entre as finezas do fim, qual a maior fineza? Esta comparação é muito diferente da que faz o Evangelho. O Evangelista compara as finezas do fim com as finezas de toda a vida, e resolve que as do fim foram maiores: eu comparo as finezas do fim entre si mesmas; e pergunto: destas finezas maiores qual foi a maior? O Evangelista diz quais foram as maiores de todas; e eu pergunto: qual foi a maior das maiores? Esta é a minha dúvida, esta será a matéria do Sermão (p. 190).

Depois de definir a proposta do sermão, Vieira revela qual será seu decurso

retórico, que por sua vez se baseia também em três comparações e na negação de

uma quarta comparação. Ele declara que apresentará finezas superiores a outras

três finezas defendidas por três santos da igreja, e nega a possibilidade de que haja

uma fineza em relação de igualdade com a quarta fineza que ele defenderá:

89

―[Jo 13:1] [Antes do dia da festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim.]‖ (PÉCORA, 2003, p. 189).

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110

O estilo que guardarei neste discurso [...] será este: referirei primeiro as opiniões dos Santos, e depois direi também a minha; mas com esta diferença: que nenhuma fineza do amor de Cristo me darão, que eu não dê outra maior; e a fineza do amor de Cristo que eu disser, ninguém há de dar outra igual (p. 190).

Esse estilo baseado na afirmação da superioridade e na negação de uma

posterior igualdade será objeto dos comentários de Sor Juana em alguns momentos

de sua carta. A freira qualifica a intenção de Vieira como ousada e pretensiosa,

conforme se verá na última parte da análise.

Vieira chega a considerar que sua intenção pode parecer desmedida, porém

não no que se refere às comparações com as opiniões alheias, e sim no que se

refere à veracidade do nível de superioridade atribuída às finezas do amor de Cristo.

Justifica sua intenção relativizando as finezas em si e o que se diz sobre elas. Ele

afirma que, tendo em conta a grandeza das reais finezas, a superioridade atribuída

por ele torna-se ―agravo delas‖:

‗Parece muito prometer? Parece-vos demasiado empenhar este? Ah Senhor, que agora é o tempo de reparar que estais presente, todo-poderoso, e todo amoroso Jesus! Bem creio que no dia em que as fontes de vossa graça estão mais abertas, não ma negareis, Senhor, para satisfazer às promessas, a que por parte de vosso divino amor me tenho empenhado‘ (p. 190). ‗[...] protesto que tudo o que disser de suas finezas, por mais que eu lhes queira chamar as maiores das maiores, não são exagerações, senão verdades muito desafetadas; antes não chegam a ser verdades, porque são agravo delas‘ (p. 190). ‗[...] que aquele que mais altamente falou do amor de Cristo, quando muito o agravou menos‘ (p. 190).

Dessa maneira, Vieira busca legitimar o julgamento que faz das

superioridades expressas por ele, caracterizando como insuficiente a intensidade

com que os homens falam sobre o amor de Cristo. Ele qualifica o sofrimento de

Cristo, resultado dessa insuficiência, como uma fineza entre as maiores finezas do

seu amor: ―[...] passe por uma das maiores finezas suas, sofrer que em vossa

presença digamos tão pouco dele‖ (p. 191).

Vieira dá início à refutação das opiniões dos Santos. A primeira delas é a de

Santo Agostinho, opinião em que o santo atribui superioridade à morte de Cristo

enquanto fineza do seu amor. Vieira menciona uma passagem bíblica na qual Cristo

atribui superioridade ao amor dos mártires. O autor admite essa superioridade

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111

expressa na passagem bíblica e soma a ela duas outras superioridades, atribuídas à

valentia e ao ato do sacrifício, expressas por meio de superlativo relativo:

E parece que o mesmo Cristo quis que o entendêssemos assim, quando disse: Majorem hac dilectionem nemo hablet, ut animam suam ponat quis pro amicis sus

90, que o maior ato de caridade, a maior valentia do amor, é

chegar a dar ele a vida pelo que ama (p. 191).

Na continuação, Vieira nega a superioridade superlativa atribuída à morte, e,

para essa negação o autor pede licença ao Santo e a seus seguidores. O cotejo

primário é entre morrer e ausentar-se:

Com licença, porém, de Santo Agostinho, e de todos os Santos e Doutores que o seguem, que são muitos, eu digo que o morrer Cristo pelos homens, não foi a maior fineza de seu amor: maior fineza foi em Cristo o ausentar-se, que o morrer: logo a fineza de morrer não foi a maior das maiores (p. 191).

Em seguida, o padre se posiciona sobre a questão de qual seja a fineza que

ele julga ser superior à morte. Em uma sucessão de comparações de superioridade,

ele estabelece cotejos entre o amor de Cristo pelos homens e o amor de Cristo por

sua própria vida, entre ausentar-se e morrer:

Discorro assim: Cristo Senhor nosso amou mais aos homens que a sua vida [...] logo muito mais fez em se ausentar, que em morrer; porque morrendo, deixava a vida, que amava menos; ausentando-se, deixava os homens, que amava mais (p. 191).

Na passagem a seguir, Vieira qualifica seu fundamento como ―grande‖,

fundamento. Um dos argumentos usados por ele para defender a superioridade da

ausência enquanto fineza é o fato de, no versículo 13 do livro de João, o evangelista

ter usado o termo ―partir‖ (traduzido por Pécora (2003) como ―passar‖) ao invés de

―morrer‖. Segundo o padre, o uso do termo ―partir‖ resultou na superioridade do

encarecimento da fineza do amor de Cristo, conforme nota-se na segunda

passagem:

‗Reparo e com grande fundamento. [...] e muito mais encarecida e ponderada ficava a sua fineza em dizer que se partia, do que em dizer que morrera‘ (p. 191).

90

―Jo 15:13 [Ninguém tem maior amor que o daquele que dá a sua vida por seus amigos].‖ (PÉCORA, 2003, p. 191).

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‗[...] porque achou que encarecia mais com dizer em uma só palavra que se partira, que com fazer dilatadas narrações dos tormentos e afrontas (posto que tão excessivas) com que morrera‘ (p. 191).

Vieira invoca Madalena como testemunha, ao tratar da ausência.

Primeiramente, ele apresenta uma comparação entre a intensidade do choro de

Madalena no Sepulcro e do choro de Madalena na Cruz, com superioridade do

primeiro termo expressa pelo elemento de grau ―mais‖ e o conector ―que‖. Depois

estabelece uma relação proporcional de diferença entre as lágrimas de Madalena no

Sepulcro e as lágrimas na Cruz, pelo uso do demonstrativo ―estas‖ e do adjetivo

―outras‖. Por fim, apresenta outra comparação do choro de Madalena nas duas

situações (Sepulcro e Cruz) em forma de interrogação, também com superioridade

do choro no Sepulcro e uso de ―mais... que...‖:

É muito de reparar que chorasse mais a Madalena na madrugada da ressurreição às portas do Sepulcro, que no dia da paixão ao pé da Cruz. Destas lágrimas nada se diz no Evangelho, das outras fazem grandes encarecimentos os Evangelhos: pois por que chorou mais a Madalena no

Sepulcro, que na Cruz? (p. 192).

Vieira coloca a superioridade da dor de Madalena no Sepulcro como causa

da superioridade das lágrimas de Madalena também no Sepulcro. A superioridade

da dor, por sua vez tem causa no estado em que se encontrava Cristo. Em uma

pergunta retórica, Vieira sugere que a dor de Madalena por ver Cristo roubado é

superior à dor de vê-lo defunto. Ele faz uma observação no final do primeiro trecho,

expressando igualdade entre os dois estados de Cristo. Usando a correlação tão...

como.., afirma que os dois estados englobam a morte de Cristo. Então observa uma

desigualdade na comparação dos mesmos estados, dessa vez com valor de

inferioridade: como defunto, Cristo compreende menos o estado de ausente do que

como roubado. No segundo trecho, Vieira expressa a superioridade da ausência de

Cristo como causa da superioridade da dor de Madalena:

‗[...] e eram aqui mais as lágrimas, porque era aqui maior a dor. Maior a dor aqui? Agora tenho eu maior dúvida. E é maior dor a dor de considerar a Cristo roubado, que a dor de ver a Cristo defunto? Sim; porque a dor de o ver, ou não ver roubado, era a dor de ausência: [...] tão morto estava Cristo roubado, como defunto; mas defunto estava menos ausente do que roubado‘ (p. 192). ‗[...] e como o roubo era a maior ausência do amado, por isso foi maior a dor da amante‘ (p. 192).

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O argumento da Madalena foi negado por Sor Juana, que não admite a

proporção entre a superioridade do choro e a superioridade do sofrimento, mas

defende a proporção contrária.

Aparece na argumentação de Vieira o par de conceitos ―parte e todo‖. Ele

considera que, na junção de corpo e alma, o corpo de Cristo é a parte menor. A

seguir, os pares ―vivo e morto‖, ―parte e todo‖, ―morte e ausência‖, aparecem em

uma sucessão de comparações que têm como elemento comum o choro e o

sentimento de Madalena. No final do trecho, Vieira sugere uma comparação, em

forma de interrogação, entre a fineza do amor de Madalena e a fineza do amor de

Cristo. Pelo contexto, fica implícito que a fineza do amor de Cristo é superior:

[...] o que vos falta na sepultura, é só uma parte dele, e a menor, o corpo: pois por que haveis de chorar mais a perda do morto, que a perda do vivo; a perda da parte, que a perda do todo? Aqui vereis quanto maior é o mal da ausência, que o mal da morte. Chora Madalena menos a morte de um vivo, que a ausência de um morto; a morte do todo, que a ausência da parte. E se o amor de Madalena, que era menos fino, a avaliava assim a causa da sua dor entre a morte e a ausência; que faria o amor de Cristo, que era a mesma fineza? (p. 192).

A comparação entre ―ser‖ e ―estar‖, enquanto finezas, é inválida, na opinião

de Sor Juana, já que ela nega que Cristo se tenha ausentado. Contudo, mesmo

negando isso, propõe-se provar que a morte foi uma dor maior do que a ausência.

Neste ponto, faz a ausência ficar compreendida na morte.

Vieira se dispõe a demonstrar os sentimentos de Cristo para com a morte e

com a ausência. Ele descreve a morte dos homens na idade que Cristo tinha quando

morreu e estabelece duas comparações de igualdade, que mostram o caráter

dilacerador da morte. Essa caracterização parece levar à conclusão de uma imagem

também dilaceradora da morte de Cristo. Então Vieira estabelece uma relação

adversativa, seguida de uma relação consecutiva, na qual a intensidade de quietude

da morte de Cristo gera a simplicidade de movimento na consumação de sua morte.

[...] padeceu Cristo a morte naquela idade robusta, em que os homens costumam morrer fazendo termos não só violentos mas horríveis, agonizando ansiosamente, como se a morte lutara com a vida, e arrancando-se a alma do corpo, como a pedaços,[...] contudo Cristo morreu tão plácida e quietamente, como o dizem aquelas palavras: Inclinato capite traditum: que entregou uma vida de trinta e três anos sem outra violência, nem movimento mais que uma inclinação de cabeça (p. 192).

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A simplicidade de movimento, por sua vez, é implicitada pela negação da

superioridade desse movimento. Neste caso, em língua portuguesa, a combinação

da negação aliada à estrutura ―mais que‖ gera um valor equivalente ao de

―somente‖, assim como ocorre na língua espanhola segundo Alarcos Llorach (1994,

p. 347). Essa combinação leva à interpretação de que Cristo entregou sua vida

apenas com o movimento de inclinação de sua cabeça. A tranquilidade da morte de

Cristo, defendida por Vieira, também é negada por Sor Juana, que descreve a morte

de Cristo como agonizante, usando a mesma passagem bíblica que Vieira, ―posto

em agonia‖ (Lucas 22:43), porém atribuindo essa agonia à morte, não à ausência.

Na continuação das comparações do sentimento de Cristo para com morte e

ausência, Vieira coloca dois conceitos em relação de proporção com as duas

finezas: ser e estar. Nas passagens transcritas a seguir, esses conceitos são

cotejados por Vieira tanto sem marca comparativa formal, quanto por meio de

comparações específicas com valor de superioridade atribuído ao sentimento de

Cristo em deixar de estar, ação colocada como equivalente a ausentar-se:

‗[...] e mais sofrível se lhe fez a Cristo a morte, que era apartamento de si para consigo, que a ausência, que era apartamento de si para conosco; e muito mais sentiu Cristo o dividir-se de nós, que dividir-se de si‘ (p. 193). ‗[...] pela morte deixou de ser Cristo, pela ausência deixou de estar com os homens: e sentiu mais o amoroso Senhor deixar de estar com quem amava que deixar de ser quem era. A morte privou-o de ser, a ausência privou-o de estar: e mais sentiu Cristo o deixar de estar, que o deixar de ser: mais sentiu a perda da companhia, que a destruição da essência‘ (p. 193).

Esse cotejo em que se separam morte e ausência, ser e estar, reflete a linha

de pensamento existencialista seguida por Vieira, conforme apontam Ruiz e

Theodoro (2000, p. 3 e 4). A base existencialista de Vieira também foi refutada por

Sor Juana, que segue uma linha de pensamento essencialista. Para ela, o estar é

parte da unidade e da essência do ser.

Outro argumento apresentado por Vieira está ligado aos remédios que Cristo

usou para combater a morte e a ausência. Na frase adiante, ele constitui uma

relação de desproporção entre o tempo que Cristo levou para remediar morte e

ausência. Como causa dessa desproporção, aponta a superioridade do sentimento

de Cristo para com a ausência. Esse mesmo argumento foi usado por Sor Juana

para negar que houve ausência, como se verá mais adiante.

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[...] e como Cristo sentia mais o ausentar-se que o morrer, o remédio da morte dilatou-o, o remédio da ausência preveniu-o. Como a ausência lhe doía tanto, aplicou o remédio antes: como a morte lhe doía menos, deixou o remédio para depois (p. 194).

Vieira antecede a possibilidade de sua opinião ser contestada com base na

passagem de João, capítulo 15, versículo 13, já abordada no início de seu sermão:

E se replicam com a autoridade de Cristo: Majorm hac dilectionem nemo habet

91: que morrer é a maior fineza; responde S. Bernardo, que falava

Cristo das finezas dos homens, e não das suas. Mas eu respondo que ainda que falasse das suas, se prova melhor o nosso intento. Se o morrer é maior fineza, e o ausentar-se é maior que o morrer, segue-se que a fineza de se ausentar não foi maior fineza entre as grandes, senão maior entre as maiores: foi uma fineza maior que a maior (p. 194-195).

Para justificar a possível contestação, ele admite a superioridade atribuída

por Cristo à morte, na referida passagem, e afirma que a ausência é uma fineza

superior à morte. Mais uma vez, ele expressa em seu argumento uma comparação

de superioridade com relação a outra superioridade:

Ao relatar a opinião de São Tomás, Vieira observa que admitir a fineza

defendida pelo Santo é praticamente negar que houve a ausência de Cristo.

Considerar válido o ―deixar-se conosco‖ no Sacramento anula a ausência como

termo de comparação com a morte de Cristo enquanto finezas:

‗Diz S. Tomás que a maior fineza do amor de Cristo hoje foi deixar-se conosco, quando se ausentava de nós‘ (p. 195). ‗Foi tão grande que parece desfaz tudo, quanto até agora temos dito; porque ainda que no amor de Cristo seja maior fineza o ausentar-se, que o morrer, a fineza de se deixar conosco desfaz a fineza de se ausentar de nós. Bem aviados estamos‘ (p. 195).

Sem fazer mais considerações sobre a questão da anulação da ausência,

Vieira declara sua opinião sobre a opinião do Santo. O autor apresenta a fineza de

Cristo em encobrir-se no Sacramento como superior à fineza de deixar-se entre os

homens sacramentado, conforme mostra a passagem transcrita adiante. No final da

passagem, Vieira constitui uma relação de proporção entre deixar-se e encobrir-se,

buscar remédio e renunciar alívios, comodidade e fineza:

91

―Jo 15:13 [Ninguém tem maior amor que o daquele que dá a sua vida por seus amigos].‖ (PÉCORA, 2003, p. 191).

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[...] e com eu ser grande venerador da doutrina de S. Tomás, digo que o deixar-se conosco não foi a maior fineza de seu amor: dou outra maior. E qual foi? Maior fineza foi no mesmo Sacramento o encobrir-se, que o deixar-se: logo a fineza de se deixar não foi a maior das maiores. Que fosse maior fineza o encobrir-se que o deixar-se, provo: O deixar-se foi buscar remédio à ausência, isso é comodidade: o encobrir-se, foi renunciar os alívios da presença, isso é fineza (p. 195).

Em outra passagem, Vieira estabelece uma comparação de igualdade entre

o Homem e Cristo, quanto à impossibilidade de se verem um ao outro no

Sacramento. Então estabelece uma segunda comparação, entre a pena da ausência

e a pena da presença sem permissão para ver, com superioridade do primeiro

termo. Ao longo de seu discurso, Vieira sempre busca intensificar o custo e o

sofrimento que as finezas apontadas por ele demandaram de Cristo, com a

finalidade de exaltá-las.

Assim como nós não vemos a Cristo debaixo daqueles acidentes, assim Cristo nos não vê a nós com os olhos corporais. Encobrindo-se pois Cristo no Sacramento, ainda que está presente com os homens, a quem ama, está presente sem os ver; e a presença sem vista é maior pena que a ausência (p. 195).

Para ilustrar e sustentar sua afirmação, de que a presença sem poder ver

causa mais sofrimento do que a ausência, Vieira narra a história de Davi e Absalão,

e segue realizando comparações entre ausência e presença. Na frase que segue,

Vieira compara ausência e presença qualificando-as com os adjetivos de grau

comparativo ―melhor‖ e ―pior‖, respectivamente. Depois estabelece igualdade entre a

presença de Absalão em Jerusalém e a de Cristo no Sacramento: ―E por isso diz que

melhor lhe era estar ausente em Gessur, que presente em Jerusalém; porque

presença com lei de não ver é pior que ausência. Tal é a de Cristo no Sacramento‖

(p. 196).

Em outra frase, há uma igualdade entre a privação de Absalão em Gessur e

em Jerusalém, e em uma relação adversativa Vieira nega a igualdade da dor que os

dois tipos de privação geram. Termina comentando a contradição implicada em sua

lógica:

Absalão tanto deixava de ver a Davi quando estava ausente em Gessur, como quando estava presente em Jerusalém; porém o não ver estando presente, ou não ver estando ausente, ainda que seja a mesma privação, não é a mesma dor; [...] E se isto nas palavras é contradição, que violência será na vontade? (p. 196).

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Na continuação do sermão, Vieira dispõe uma sucessão de cotejos e

relações de proporção. Ele atribui superioridade ao tormento da ausência, e da

intensidade desse tormento resulta uma relação consecutiva, em que a

consequência foi a preferência de Absalão pela morte. Vieira estabelece uma

relação de identidade da personagem Absalão em duas situações diferentes, por

meio do adjetivo ―mesmo‖. Essas duas situações se configuram em uma relação de

proporção na qual Vieira opõe ontem e agora, ausência e presença, morte como

castigo e morte como remédio:

Porque ainda que Davi concedeu a presença a Absalão, concedeu-lhe a presença com proibição da vista, e a presença com proibição da vista é um tormento tanto maior que a ausência, que o mesmo Absalão, que ontem escolheu a ausência por remédio, para se livrar da morte, agora toma a morte por partido, para se livrar de tal presença (p. 196-197).

Em seguida, Vieira estabelece diferenças e semelhanças entre Absalão e

Cristo. A última diferença apontada e ressaltada por Vieira é a causa das atitudes

dos dois homens. Ele atribui superioridade a Cristo com relação a Absalão, na

propriedade de filho de Davi, e afirma que a causa da fineza de Absalão foi o amor

por seu pai, enquanto a de Cristo foi o amor pelos homens.

Em Absalão no primeiro caso querer antes a ausência que a morte, não andou fino, nem parecido a Cristo, que sentiu mais o ausentar-se, que o morrer; mas em entender Absalão no segundo caso que presença sem vista era maior mal que a ausência, andou muito fino, muito discreto e muito parecido a Cristo, que assim o padece no Sacramento. Porém nesta mesma semelhança de Cristo a Absalão acho eu uma diferença grande e muito digna de notar. Absalão toda esta fineza fá-la por amor de seu Pai Davi; mas Cristo, melhor filho de David que Absalão, ainda que no dia de hoje se partia para seu Pai, não fez esta fineza por amor de seu Pai, fá-la por amor de nós (p. 197).

Outra vez Vieira sugere a invalidação de uma fineza defendida por ele, e

mais uma vez essa possibilidade envolve uma comparação. Antes, admitir a fineza

de São Tomás anulava a ausência como termo de comparação com a morte. Desta

vez, a condição de Cristo no Sacramento (impassível) anula a presença com

privação como termo de comparação com a ausência. Depois de comparar o vivo

que não vê quem ama e o morto que não sente o que sofre, atribuindo superioridade

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ao primeiro termo, Vieira observa que Cristo está impassível no Sacramento, e, por

raciocínio lógico, não pode também sentir a privação da vista:

Já eu me dera por satisfeito, se do mais interior do mesmo Sacramento não resultara uma réplica tão forte, que na diferença da comparação parece que desfaz a fineza. Maior fineza é a de um vivo sem ver a quem ama, que a de um morto sem sentir o que padece. Mas Cristo no Sacramento também não sente, porque está ali impassível: logo não é fineza o não ver, onde se não sente a privação da vista (p. 198).

A explicação que Vieira apresenta para que Cristo seja capaz de sentir a

privação aparece em outra comparação de igualdade entre a recopilação dos

sentimentos da paixão e dos sentimentos da privação:

Assim como o amor de Cristo na privação da vista dos homens recopilou todos os sentimentos da sua paixão, assim na instituição do Sacramento recopilou todos os sentimentos desta privação da mesma vista. Mas como, ou quando? O quando, foi quando consagrou o seu corpo: e o como, consagrando-o de tal maneira, que estivesse nele como cego, e sem a vista dos olhos. Então padeceu recopiladamente passível, o que depois não podia padecer impassível (p. 198).

Chama a atenção a parte do sermão em que Vieira explica o sofrimento de

Cristo pela lançada que recebeu depois de morto. O autor estabelece uma relação

proporcional entre a lançada em si e a sua aceitação prévia por parte de Cristo:

―Porque ainda que a recebeu impassível depois da morte, aceitou-a vivo e passível

no princípio da vida‖.

Configura-se certa duplicidade do ato da lançada, representado na sua

aceitação prévia por parte de Cristo. Na referência aos elementos duplicados (Cristo,

seu coração, sua ferida, a lançada que recebeu), Vieira faz uso do pronome adjetivo

―mesmo(a)‖, de alto valor comparativo, diversas vezes:

‗[...] manifestou-lhe o Eterno Padre tudo o que queria que padecesse pela salvação dos homens, [...] e a isso aludiu o mesmo Cristo, quando, mandando embainhar a espada a S. Pedro lhe disse: Quomodo implebutur scripturae?

92‘ (p. 199).

‗[...] e já daqui ficou o mesmo coração de Cristo sujeito e obrigado à lançada‘ (p. 199). ‗E como esta aceitação voluntária, antevendo a mesma lançada, foi de Cristo vivo e passível, por isto a padeceu morto e impassível, tanto por amor de nós, como as outras feridas‘ (p. 199).

92

―Mc [Mt] 26:54 [Como, pois, cumprir-se-ão as Escrituras que declaram que assim deve suceder?]‖ (PÉCORA, 2003, p. 199).

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‗Porque a mesma lançada que recebeu depois de morto, já a tinha antevisto e aceito estando vivo‘ (p. 199).

Também aparece duplicada a unção de Madalena a Cristo. Desta vez Vieira

alia o uso de expedientes comparativos específicos de igualdade ao uso do pronome

adjetivo ―mesmo(a)‖:

[...] pois se o não ungiu na sepultura morto, como o ungiu para a mesma sepultura vivo? Porque o mesmo unguento que o Senhor recebeu vivo no Cenáculo, o aceitou como morto no Sepulcro: e tanto valeu a aceitação antecipada de Cristo vivo, como se a Madalena ungira depois de morto (p. 199 - 200).

No trecho que segue, Vieira estabelece relação de igualdade entre a

duplicação da unção e a duplicação da lançada. O padre afirma que a aceitação da

lançada foi suficiente para que o padecimento ocorresse depois da morte na mesma

proporção em que a aceitação da unção foi suficiente para que ela não acontecesse

depois da morte. Ele também atribui igualdade à suficiência dessas duas aceitações:

Assim como Cristo recebeu o unguento como vivo, e o aceitou como morto, assim recebeu a lançada como morto e a aceitou como vivo; e assim como esta aceitação bastou para que a Madalena fizesse o que não fez: Ad sepeliendum me facit

93: assim bastou a aceitação da lançada, para

que padecesse o que não padeceu (p. 200).

Vieira passa à terceira opinião, a de São Crisóstomo: ―A terceira e última

opinião é de S. João Crisóstomo, o qual tem para si, que a maior fineza do amor de

Cristo hoje, foi o lavar os pés a seus Discípulos‖ (p. 201).

Antes de apresentar sua própria opinião, Vieira se refere aos fundamentos

do Santo. Na primeira passagem transcrita, o autor atribui superioridade hipotética

às circunstâncias do lavatório enquanto provas da defesa de São Crisóstomo. Na

passagem seguinte, Vieira faz menção aos fundamentos do Santo e de seus

seguidores em uma comparação de igualdade entre os fundamentos deles e o

demonstrativo ―isto‖. Depois de expressar sua discordância em relação à opinião do

Santo, Vieira atribui superioridade à sua própria fineza, a qual se insere no lavatório

mencionado por São Crisóstomo:

93

―Mt 26:12 [Por isso, derramando ela este bálsamo sobre o meu corpo, fê-la como para me sepultar.]‖ (PÉCORA, 2003, p. 199).

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‗[...] entra logo a descrever a ação do lavatório dos pés, ponderando uma por uma todas suas circunstâncias, como se foram ela e elas a maior prova do que dizia. O mesmo confirmam os assombros e pasmos de S. Pedro, nunca semelhantes em outra alguma ação de Cristo‘ (p. 201). ‗Sendo tão fundada como isto a opinião de S. Crisóstomo, e dos outros Doutores antigos e modernos, que a encarecem e seguem; eu contudo não posso consentir que seja esta a maior fineza do amor de Cristo hoje; porque dentro do mesmo lavatório dos pés darei outra maior. E qual é? Não excluir dele Cristo a Judas. Muito foi, e mais que muito, lavar Cristo os pés aos Discípulos; mas lavá-los também a Judas, essa foi a fineza‘ (p. 202).

Na argumentação construída no sermão, diversas comparações cumprem a

função de enaltecer a fineza apresentada por Vieira, como na parte do texto que

segue, na qual a circunstância de servir a um traidor é caracterizada por uma

sucessão de superlativos relativos de superioridade: ―Porque nesta circunstância

consistia o mais profundo da humanidade, o mais subido da ação, e o mais fino do

amor de Cristo‖ (p. 202).

A ideia que Vieira defende ao tratar desta terceira fineza pode soar como

paradoxal, pois o conceito de igualdade, representado na ação de Cristo em não

excluir a Judas, aparece em resposta ao conceito de desigualdade ou diferença,

representado na oposição entre Judas e os demais discípulos. Na parte do sermão a

seguir, Vieira diferencia Judas dos demais discípulos usando o substantivo

―diferença‖ e fazendo uma distribuição proporcional dos elementos ―onze‖ e

―duodécimo‖, ―amigos‖ e ―traidor‖. No final, apresenta a propriedade ―amados‖ como

comum aos elementos, usando o adjetivo ―todos‖:

Eram os doze da sua escola, da sua família, e da sua mesa, donde se levantava. Todos estes eram os seus, mas com grande diferença seus: os onze seus, porque eram os seus amigos; e o duodécimo também seu, porque era o seu traidor; mas sem embargo desta diferença todos amados neste fim (p. 202).

Nessa correspondência entre igualdade e desigualdade é que Vieira justifica

a superioridade atribuída por ele à fineza de Cristo em lavar os pés de Judas. É

justamente por agir com igualdade que o amor de Cristo aparece como mais fino,

segundo Vieira. Entre os trechos reproduzidos a seguir, essa dinâmica é percebida

na quantidade de vezes em que aparecem as palavras ―igualdade‖ (e palavras

derivadas), e ―diferença‖:

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‗A fineza do amor mostra-se em igualar nos favores os que são desiguais nos merecimentos: não em fazer dos indignos dignos, mas em os tratar como se o fossem‘ (p. 203). ‗Verdadeiramente não pode haver maior igualdade com todos; mas igualdade que parece injustiça‘ (p. 203). ‗[...] e sendo tanto maior a diferença de servir ou ofender, a servir mais, ou a servir menos; os operários da vinha que tinham servido mais, queixaram-se muito do Pai de famílias os igualar aos que serviram menos‘ (p. 203). ‗Pois se a mesma diferença entre bons e maus podia agora fazer Deus com o seu Sol, e a sua chuva, porque trata com a mesma igualdade a todos? Porque então obrava no Egito como Juiz severo, agora comunica-se ao mundo como Pai amoroso. E o amor fino (qual é sobre todos o amor de Pai) quando é igual na benignidade para os que a merecem e desmerecem, nessas mesmas aparências de menos justiça realça mais os quilates da sua fineza‘ (p. 203). ‗Os outros Discípulos eram justos e bons, Judas era injusto e péssimo: e contudo (antes por isso) com reflexão, que era Filho de Deus, tratou igualmente a todos‘ (p. 204). ‗[...] e porque os outros Discípulos na grande diferença de Judas se podiam queixar desta igualdade, e dizer como os Operários: Parem illum nobis fecisti; não desistiu por isso o amor de Cristo, antes se gloriou da mesma desigualdade, porque as queixas, quando as houvesse da sua justiça, eram os maiores penegíricos da sua fineza‘(p. 204). ‗Em nome de todos podia dizer S. João com a confiança e familiaridade de valido: Basta, Senhor, que com a mesma igualdade haveis de tratar a um Discípulo tão indigno, e os que tanto vos servem, e vos merecem? Com a mesma igualdade aos fiéis, e ao traidor? Aos maiores amigos, e ao mais cruel inimigo?‘ (p. 204). ‗E a este Judas, e àquele Pedro será justo, Senhor, que vós trateis com a mesma igualdade?‘ (p. 205). ‗Bem vejo que esta igualdade, que tanto admirais e encareceis entre extremos tão desiguais, não é para arguir injustiça no amor de Cristo, mas para mais apurar sua fineza‘ (p. 205).

Quando descreve o sentimento de Cristo na Cruz para com os demais,

Vieira se refere outra vez a Santo Agostinho. Parafraseando o Santo, ele expressa

comparações de igualdade, uma negada e outra afirmativa, para demonstrar a

maneira como Cristo olhava para seus inimigos. No trecho subsequente, ele qualifica

como ―pouco‖ o que o Santo disse, e expõe o seu próprio ponto de vista, também

por meio de duas comparações de igualdade, colocadas em relação de proporção

por meio da disjunção ―uns/outros‖:

‗Olhava Cristo na Cruz para seus inimigos, diz Santo Agostinho, mas não como para aqueles que lhe tiravam a vida, senão como para aqueles por quem ele a dava‘ (p. 206). ‗Disse bem Santo Agostinho, mas disse pouco: para todos olhava seu amor, e para tudo: para uns como mais efetivo, e para outros como mais fino‘ (p. 206).

Sor Juana viu uma relação de causa e efeito na superioridade atribuída por

Vieira à fineza defendida por ele. Com base nisso, ela também considera inválida a

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comparação entre a fineza apontada por Vieira e a fineza apontada por Santo

Agostinho. Em contraparte, Vieira não chega a expressar de maneira explícita uma

relação de causa e efeito envolvida na fineza de Cristo ao lavar os pés de Judas.

Vieira nega que haja causa no ato de Cristo para com Judas, e coloca este fato

como razão para enaltecer a fineza, conforme se nota no trecho seguinte:

Acabemos com o mais fino de todas as finezas deste ato, compreendendo desde o princípio até o fim dele todos os Discípulos e todo o lavatório [...]. A fineza tanto maior quanto mais sentida de Cristo nesta última Cena do seu amor, foi que começou lavando, e acabou sem lavar. [...]Desgraça grande, se o Senhor não soubera o que havia de ser; mas sabendo-o, como advertiu, o Evangelista, por isso a maior fineza! [...] O amor fino é aquele que não busca causa, nem fruto: ama porque ama e ama por amar. Nos outros discípulos teve o amor de Cristo causa tão grande causa, como amar os que o amavam e haviam de amar até a morte. Em Judas não só não teve causa para o amar, mas muitas para o aborrecer e abominar, quais eram a sua ingratidão, o seu ódio, a sua traição e desatinada cobiça, e a vontade por tantos modos obstinada de um coração entregue ao demônio. [...] E como o Senhor sabia o mau grado que havia de colher deste seu cuidado e diligência; que quando a devera mandar cortar e lançar no fogo, a regasse tão amorosamente como as demais, e perdesse o trabalho de suas mãos, e também o regadio mais alto das suas lágrimas, esta foi a fineza sobre fineza do lavatório dos pés‘ (p. 207-208).

Por último, Vieira revela qual é a maior de todas as finezas do amor de

Cristo em sua opinião: ―Digo que a maior fineza de Cristo hoje, foi querer que o

amor com que nos amou, fosse dívida de nos amarmos‖ (p. 208). Vieira defende que

Cristo não quis a correspondência de seu amor para si, mas para os homens.

Também esta última proposição foi negada por Sor Juana, pois a freira não admitia

que Cristo não quisesse a correspondência de seu amor.

Na continuação do sermão, Vieira explica que não há exemplos na bíblia

para esta fineza, e nega qualquer tipo de igualdade, semelhança ou superioridade

entre a fineza de qualquer outra pessoa e a fineza de Cristo. Neste momento, ele

evidencia mais uma vez sua intenção de apresentar finezas superiores às dos

Santos e de apresentar também uma quarta fineza em relação à qual ninguém

apontaria outra igual nem superior:

‗Abramos bem os olhos e vejamos a diferença deste amor a todo o que se usa e tem visto no mundo‘ (p. 208). ‗[...] o amor de Cristo, superior a toda a razão, é só igual a si mesmo, que diz? Não diz: o que me deveis a mim, pagai-mo a mim; senão: o que me deveis a mim, pagai-o a vós‘ (p. 208). ‗Diga-me agora a terra e o Céu, digam-me os homens e os Anjos, se houve ou pode haver, nem amor maior que este amor, nem fineza que iguale esta

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fineza? Por isso eu me empenhei a dizer, que dando a todas as outras finezas de Cristo hoje outra maior, como fiz, à última que eu sinalasse, ninguém me havia de dar outra igual‘ (p. 209). ‗[...] para esta nem dentro, nem fora da Escritura se achará algum que se pareça com ela, quanto mais que a iguale‘ (p. 209). ‗[...] mas nem o amor dos irmãos, nem o dos pais, nem o dos filhos, nem o dos esposos, nem o dos amigos, que se não funda em carne e sangue, ainda fingidos e imaginados se puderam nunca medir, quanto mais igualar o que tem as raízes no imenso e o tronco no infinito‘ (p. 209).

Vieira volta a qualificar seu fundamento, desta vez como sólido. Ele

menciona uma passagem da bíblia em que Cristo dá aos homens um mandamento,

e o chama de mandamento novo. Então, pede a licença dos doutores que comentam

esse texto e revela que a sua interpretação será a verdadeira:

‗Agora, depois de declarado o que prometi, vos quero mostrar o fundamento sólido de quanto disse, e prová-lo‘ (p. 209). ‗[...] como lhe chamou Cristo mandamento novo: Mandatum novum do vobis? Para responder a esta dificuldade se dividem os Doutores em catorze opiniões diferentes [...]. Mas com licença de todos, eu cuido que hei de dar o verdadeiro entendimento ao Texto‘ (p. 210).

A novidade do mandamento, para Vieira, consiste no aparecimento do amor

de Cristo como meio para o amor entre os homens, que é o fim. Ele opõe essa

novidade à antiguidade dos outros mandamentos, nos quais o amor de Cristo não

aparecia como meio. Fica clara a presença do par de conceitos ―meio e fim‖

atrelados à última fineza apontada por ele. Padre Vieira distribui meio e fim, na

qualidade de componentes do Mandato novo, em uma relação de proporção:

‗De sorte que a novidade do mandamento e do amor, não está em os homens se amarem uns aos outros: está em que o amor com que se amarem, seja paga do amor com que Cristo os amou [...] Amarem-se os homens uns aos outros em satisfação do amor com que eles amam, e ainda sem essa satisfação (como sucede no amor dos inimigos) é mandamento velho com maior ou menor antiguidade‘ (p. 210). ‗[...] o amor com que Cristo nos amou entra no Mandato como meio, e o amor com que nós nos devemos amar como fim‘ (p. 211).

Vieira declara ter encontrado na singularidade desta última fineza o acerto

da pregação do Mandato:

‗E porque tal fineza e amor se não viu nunca no mundo, por isso o preceito deste amor se chama mandamento: Mandatum novum do vobis‘ (p. 210-211). ‗Daqui infiro eu que só hoje acertei em pregar o Mandato, não no discurso, que não sou tão desvanecido, mas no intento‘ (p. 211).

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Tomando-se a questão do relevo como aspecto a ser analisado, percebe-se,

também no Sermão do Mandato de 1650, a criação de relevos que os mecanismos

comparativos trazem aos textos. Nesse sermão, Vieira segue situando em primeiro

plano o choro de Madalena relacionado à ausência de Cristo, por meio da

comparação. Nas comparações que seguem, ele modifica a ordem dos elementos e

faz o verbo ―chorar‖ anteceder ao sujeito ―Madalena‖, deixando o choro em

evidência: ―[...] pois por que chorou mais a Madalena no Sepulcro, que na Cruz?‖ (p.

192); ―Chora Madalena menos a morte de um vivo, que a ausência de um morto; a

morte do todo, que a ausência da parte‖ (p. 192).

Na frase transcrita a seguir, o choro e a dor, dois efeitos originados pela

ausência de Cristo, aparecem em relevo, e relacionados. Vieira estabelece uma

relação causal e proporcional entre a intensidade do choro e a intensidade da dor

sentida: ―[...] e eram aqui mais as lágrimas, porque era aqui maior a dor‖ (p. 192).

5.3 A comparação na Carta Atenagórica

Assim como nos sermões, na carta os mecanismos comparativos são

expressos tanto por estruturas mais específicas quanto por elementos linguísticos

gerais. Aqui, as comparações desempenham funções não apenas nos valores

expressos, nas figuras retóricas utilizadas, nos recursos estilísticos e literários, mas

ajudam, principalmente, a refletir os contrastes entre os autores e os textos

correlatos. No exame que a seguir se apresenta, serão analisadas as comparações

mais relacionadas ao tema, estilo e argumentação da carta em si. Mais adiante, a

análise se aterá às comparações que refletem direta e indiretamente as

semelhanças e diferenças entre a carta e o sermão de 1650, e entre os autores das

duas peças.

Em geral, as comparações com valor de superioridade quantitativa são as

mais ocorrentes na carta. Nos três textos analisados, fatores relacionados ao

discurso e à intenção comunicativa favorecem o aparecimento desse tipo de

comparação. Devido ao fato de o tema das peças estar relacionado ao amor de

Cristo, suas virtudes e finezas, e ao fato de os argumentos recorrerem sempre a

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paralelismos entre o amor de Cristo e o amor dos homens, não é de estranhar que a

maior parte das comparações tenha valor de superioridade atribuída à figura de

Cristo.

No sermão de 1650, nota-se que esse fato se deve também ao objetivo

central do autor: apresentar finezas que sejam superiores às finezas apontadas

pelos santos da igreja. Na carta, a disparidade é ainda maior, pois não só estão

representadas muitas comparações de Vieira, como são defendidos por Sor Juana

novos argumentos e novas finezas superiores às de Vieira.

Algumas vezes, Sor Juana faz uma comparação de superioridade negativa,

em que o resultado da combinação ―no más que‖ tem um sentido equivalente a

―solo‖, conforme observa Alarcos Llorach (1994, p. 347), sobre a negação na

comparação. Na parte da carta exposta a seguir, Sor Juana se desculpa pela

brevidade com que resgata os argumentos de Vieira, antes de passar aos seus

próprios argumentos. Ela diz que aquelas passagens são apenas algumas

anotações para deixar a resposta mais clara, e sugere a leitura do próprio sermão,

de maneira mais demorada: ―[…] pues V. md. los podrá leer despacio en el mismo

autor a que me refiero, y esto no es más que unos apuntamientos o reclamos para

dar claridad a la respuesta‖ 94 95.

Também se referindo ao ato de escrever a carta, Sor Juana expressa a

possibilidade de que tenha conseguido apenas o atrevimento em tentar apresentar

uma fineza que se iguale à de Vieira ou a supere. Essa possibilidade se expressa

pela negação da superioridade aliada ao sentido hipotético dos verbos ―haber‖ e

―ser‖, no presente do subjuntivo e pretérito imperfeito do subjuntivo,

respectivamente: ―Que cuando yo no haya conseguido más que el atreverme a

hacerlo, fuera bastante mortificación para un varón […]‖.

Mais adiante, ao defender a morte como maior fineza do que a ausência, Sor

Juana busca demonstrar a maneira enfática com que Cristo declarava que daria sua

vida pelos homens. O sentido resultante da negação nessa comparação é o de que

Cristo somente ostenta a prontidão para a morte como prova de seu amor: ―y no

ostenta para prueba de su amor más que la prontitud a la muerte‖.

94

Neste capítulo, as citações do córpus não serão traduzidas, visto que se analisam as estruturas em sua língua original. 95

Como a versão da Carta Atenagórica usada nesta análise não apresenta paginação, as citações relativas a essa carta não estão acompanhadas pelo número da página em que ocorrem.

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Tratando do mesmo tema, a autora quer provar que a morte foi maior fineza

porque era a única coisa que Deus, na condição de homem, podia dar pelos

homens. Também aqui, a negação da superioridade expressa sentido de ―solo‖: ―[…]

en cuanto hombre, no tiene más que poder dar, que la vida‖.

Quando trata da última opinião de Vieira, Sor Juana defende que Cristo quis

nossa correspondência. Para isso, declara a infinidade de passagens bíblicas que

demonstram não só o conselho, mas a ordem de que os homens amem a Deus. Na

seguinte passagem há um sentido comparativo de diferença expresso com o

demonstrativo ―otra‖ e o conector ―que‖. A negação dessa estrutura também acaba

equivalendo a ―solo‖, porém com um valor implícito que intensifica de forma um tanto

exagerada a ocorrência dos preceitos na Bíblia: ―que no se halla otra cosa en todas

las Sagradas Letras que instancias y preceptos que nos mandan amar a Dios‖.

Conforme afirma Alarcos Llorach (1994, p. 346), o uso da negação na

comparação pode aparecer para evitar a sequência ou proximidade de elementos

homófonos, e também para atribuir valor enfático quando a comparação envolve

dois verbos no infinitivo, conforme se percebe nos seguintes trechos da carta: ―¿Más

sentimiento hicisteis de que Absalón fuese cruel con Amnón, que no de que lo fuese

con vos?‖; ―[…] más le cuesta a Dios el no hacernos beneficios que no el

hacérnoslos y, por consiguiente, mayor fineza es el suspenderlos que el

ejecutarlos‖.

Note-se, no entanto, que no trecho anterior a segunda comparação também

envolve dois verbos no infinitivo, porém não há uso da negação. A comparação

seguinte, que se refere ao sentimento de Cristo para com Judas, também envolve

verbos no infinitivo e tampouco há negação: ―Con que parece que se arrepiente de

haberle hecho el beneficio de la creación, porque le estuviera mejor el no haber

nacido que nacer para ser tan malo.‖

Além das orações comparativas específicas, outras construções presentes

na carta apresentam certo valor comparativo. Há uma quantidade significativa de

orações coordenadas aditivas, com as correlações no solo... pero/mas... e no solo...

sino..., em que o valor se aproxima das subordinadas comparativas de igualdade,

expressas com tanto... como..., conforme ilustra a seguinte passagem: ―[…] procura

no sólo quitar a su padre el reino, pero la vida y la honra profanando públicamente

sus lechos‖.

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Na frase anterior, Sor Juana narra a história do rei Davi, no momento em

que seu filho, Absalão, pretende destruí-lo. O sentido da construção é bastante

próximo ao de ―procura tanto quitar a su padre el reino, como la vida y la honra...‖.

Na frase seguinte, a autora questiona o fato de Davi querer poupar a vida de

Absalão, justo quando sofreu dele a maior afronta. Nesse caso, a construção

equivale a ―tanto no estáis enojado, como estáis tierno?‖: ―por la mayor que es

quereros matar a vos, no sólo no estáis enojado, mas estáis tierno?‖.

O próximo trecho aparece no momento em que Sor Juana defende que,

entre as espécies de fineza do Sacramento, estar presente diante das ofensas foi a

maior. Ela usa a correlação no sólo... pero..., que dá um sentido de soma e de

comparação de igualdade aos dois resultados da fineza: buscar o positivo dos

ciúmes (ou zelos) e sofrer ultrajes ao respeito. Porém, com a informação entre

parênteses, Sor Juana não só reforça o sentido comparativo da sequência, como

substitui o valor de igualdade pelo de superioridade, por meio do quantificador más:

―[…] pero ponerse presente a las ofensas, es no sólo buscar el positivo de los celos,

pero (lo que más es) sufrir ultrajes en el respeto.‖

Outro caso de construções em que se percebe certo valor comparativo é o

de algumas orações subordinadas consecutivas, com correlação tanto… que…,

presentes na carta. Na passagem a seguir, Sor Juana busca provar que Deus quer

dos homens a correspondência do seu amor, e que seu ciúme atinge um nível igual

ou superior ao necessário para que Ele queira, além do amor correspondido, que o

mundo tenha conhecimento disso: ―[…] porque es Dios tan celoso, que no sólo

quiere ser amado y preferido a todas las cosas, pero quiere que esto conste y lo

sepa todo el mundo […]‖.

Defendida sua posição, Sor Juana se propõe fornecer um exemplo na Bíblia

que servisse à opinião de Vieira, a de que Cristo não quis a correspondência de seu

amor para si. Ela recorre outra vez à história de Davi e de Absalão, que é

sentenciado à morte por Davi, por ter matado Amon. Nesse trecho é possível

observar que o nível de ira de Davi atinge um nível igual ou superior ao necessário

para desencadear a consequência, que é ordenar a saída de Absalão. Da mesma

forma, a ira de Davi igualou ou superou o nível necessário para intimidar Joab:

Mata Absalón a su hermano Amnón por el estupro de Tamar. ¿Y qué hace su padre, el rey David? Se indigna tanto que obliga a Absalón a salir,

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huyendo de la muerte, a Gesur; y permanece tan airado el rey, que aun Joab, su primer ministro, no se atreve a hablar en su perdón.

Sor Juana segue narrando a história: depois de Absalão ter voltado e ter

tirado o trono de Davi, seu pai pede a Joab que poupe a vida de seu filho. Ela

expressa, na parte seguinte, que a grandeza do amor de Davi atingiu um nível igual

ou superior ao que lhe fez perdoar as maldades de seu filho Absalão: ―Y ya que es

tan grande vuestro amor que le queráis perdonar tan execrables maldades contra

vos, ¿cómo cuando mató a su hermano Amnón, no mostrasteis esa ternura, sino que

le queríais matar a él?‖.

A autora defende a ausência de benefícios como maior fineza do amor de

Deus, e argumenta que os benefícios geram débitos em igual proporção. A repetição

do quantificador ―más‖ na sequência a seguir também expressa, além da relação

proporcional, valor comparativo e consecutivo. Há uma igualdade entre o aumento

do recebimento e o aumento do débito da conta desse recebimento. Além dessa

relação de igualdade, a relação consecutiva: o aumento do débito é consequência

do aumento do recebimento: ―[…] Mientras más es lo recibido más grave es el cargo

de la cuenta.

Alguns cotejos na carta são estabelecidos sem nenhuma marca formal, mas

por um paralelismo, como o que segue. Na frase exposta a seguir, Sor Juana coteja

a encarnação e a morte de Cristo. Ela opõe os verbos ―encarnar‖ e ―morir‖, os

adjetivos ―inmensa‖ e ―limitada‖ e a qualidade de duas distâncias, ―de Dios a

hombre‖ e ―de hombre a muerte‖. Nesse paralelismo se repete o verbo ―medir‖. Na

relação entre o encarnar e o morrer do Verbo, o ato de medir é o mesmo, porém há

diferenças nos resultados dessas medições: ―Encarna el Verbo, y mide por nuestro

amor la inmensa distancia de Dios a hombre; muere, y mide la limitada que hay de

hombre a muerte‖.

Em alguns momentos, diversas comparações, construídas por meio de

diversos expedientes gramaticais, são apresentadas em sequência e muitas vezes

atreladas umas às outras. Esse tipo de ocorrência é mais frequente nos sermões de

Vieira, mas também aparecem na carta. Chama a atenção um trecho em que os

termos de uma comparação constituem outras duas comparações:

Y es ésta tanto mayor fineza que aquélla, cuanto va de un amor agraviado a un amor reprimido; y lo que dista el dolor de un deleite que no se goza, a una ofensa que se tolera, dista el de privarse de los sentidos al de hacer

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cara a los agravios. No ver lo que da gusto, es dolor; pero mayor dolor es ver lo que da disgusto.

Aqui Sor Juana defende a maior espécie de fineza do Sacramento: estar

presente diante das ofensas. Para marcar o contraste entre essa fineza e a que foi

defendida por Vieira (Cristo estar privado dos sentidos no Sacramento), ela iguala a

superioridade de sua fineza com uma grande distância. Cada um desses dois termos

é expresso por comparação: o primeiro por superlativo relativo, o segundo, uma

comparação geral sem marcas, porém em que se expressa de maneira implícita a

diferença entre um ―amor agraviado‖ e um ―amor reprimido‖. Sintetizando, Sor Juana

mostra que o nível de superioridade de sua fineza é tão alto quanto o nível de

diferença dos dois amores. A essa comparação seguem outras duas gerais,

expressas pelo verbo ―distar‖, e uma expressa pelo adjetivo em grau comparativo

―mayor‖, com finalidade de cotejar as dores e sofrimentos que envolvem as finezas

defendidas pelos autores. Todas as comparações expressas nesse trecho estão

relacionadas ao cotejo entre essas duas finezas.

Ao concluir o argumento, Sor Juana resgata o cotejo, porém com uma

comparação de inferioridade: ―Y es menos dolor privarse del logro del amor, que

sufrir agravios del amor y del respeto.‖

Outra sucessão de cotejos ocorre no momento em que Sor Juana narra a

história de Davi e Absalão. Visto que Davi teve reações contrárias frente a duas

faltas graves de Absalão, Sor Juana questiona essa diferença por meio do adjetivo

―mismo‖, que aponta a identidade do referente frente às duas reações, contrastadas

nos adjetivos ―airado‖ e ―tierno‖, e reforçadas pelos advérbios ―ahí‖ e ―aquí‖. As

ofensas de Absalão, perante as quais Davi reagiu, também são cotejadas por meio

dos adjetivos de grau comparativo ―menor‖ e ―mayor‖. Entre as duas ofensas, a

menor foi ter matado Amon e a maior foi ter desejado matar Davi. Por fim, Sor Juana

coteja os sentimentos de Davi: os sentimentos gerados pela crueldade e falta de

amor de Absalão para com Amon são colocados como superiores aos sentimentos

gerados pela crueldade e falta de amor de Absalão para com o próprio Davi:

Éste es el mismo Absalón: pues ¿cómo ahí estáis airado por la menor ofensa que fue matar a su hermano, y aquí, por la mayor que es quereros matar a vos, no sólo no estáis enojado, mas estáis tierno? ¿Más sentimiento hicisteis de que Absalón fuese cruel con Amnón, que no de que lo fuese con vos? ¿Más sentís que faltase Absalón al amor de Amnón que al vuestro?.

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Na carta de Sor Juana muitas comparações são sugeridas por meio de uma

pergunta retórica. Nesses casos, a resolução da suposta comparação, mesmo que

já implícita pelo contexto, vem, em geral, explicitada em alguma sequência posterior.

No trecho a seguir, Sor Juana defende que uma fineza de amor deve ter um custo

ao amante e uma utilidade ao amado. Assim, ao apresentar a morte como a fineza

com mais custo e mais utilidade, primeiro supõe a superioridade desses atributos,

em forma de interrogações, depois confirma a superioridade da fineza, que acaba

por confirmar a superioridade dos atributos por raciocínio lógico: ―Pues pregunto,

¿cuál fineza para Cristo más costosa que morir? ¿Cuál más útil para el hombre que

la Redención que resultó de su muerte? Luego es, por ambos términos, la mayor

fineza morir‖.

Outra pergunta retórica em que se indaga o resultado de uma comparação

aparece no momento em que a autora defende que o amor a Deus deve vir em

primeiro lugar. Assim, Sor Juana busca mostrar que, quando os homens atendem ao

pedido de Cristo de se amarem uns aos outros, é por obrigação a Cristo, a quem

têm mais apreço. Ela quer mostrar que, quando se atende ao pedido de alguém em

favor a outra pessoa, o apreço que se tem a essa terceira pessoa é muito maior. Da

mesma forma, ela conta que quando Deus quis destruir o povo por idolatria e Moisés

lhe rogou que salvasse o povo, Deus atendeu seu pedido muito mais pelo apreço a

Moisés, e assim Moisés é que ficou mais obrigado a Deus:

¿Quién quedó aquí --pregunto-- más obligado a Dios, Moisés o el pueblo? Claro está que Moisés, pues aunque el beneficio resultó en bien del pueblo y quedó muy obligado a Dios, más lo quedó Moisés, pues lo hizo Dios por su respeto.

Outro recurso retórico que aparece relacionado às comparações na carta

são as construções com efeitos de antítese e de paradoxo. Não causa

estranhamento a estreita relação das comparações com esses efeitos nos textos do

córpus, já que nesses mecanismos há sempre uma ideia primária de oposição, e

que tanto comparação quanto antítese e paradoxo são recursos muito presentes nas

obras barrocas. É possível notar esses recursos no ponto da carta que trata do

choro de Madalena. Mesmo tendo negado que Cristo se ausentou, Sor Juana se

dispõe a responder ao argumento de Vieira de que, como Madalena chorou pela

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ausência de Cristo, sofreu mais sua ausência do que sua morte: ―[…] será preciso

responder a la prueba de la Magdalena‖. Ela defende, então, que o argumento de

Vieira não é válido: ―[…] que de llorar la Magdalena en el sepulcro y no llorar al pie

de la Cruz, no se infiere que sea mayor dolor el de la ausencia que el de la muerte;

antes lo contrario.‖

Sor Juana refuta o argumento de Vieira segundo o qual que o choro de

Madalena é tido como indicador de maior sofrimento. Ela aponta o fato de o choro

poder indicar tanto o sofrimento quanto o contentamento e realiza uma comparação

geral de semelhança entre as lágrimas de pesar e as de gosto. Aparecem em cotejo

dois sentimentos contrários entre si e que, sem nenhuma diferença, são indicados

pelo choro: ―[…] luego no son indicio de muy grave dolor las lágrimas, pues es un

signo tan común, que indiferentemente sirven al pesar y al gusto‖.

A partir daí, Sor Juana defende a não validade do argumento de Vieira

apresentando uma linha de raciocínio que vai de encontro a uma crença geral já

instituída sobre o choro e o sofrimento. Em geral, a ideia de choro é associada à

ideia de grande sofrimento. Essa comum associação é desconstruída por Sor Juana,

na medida em que a autora afirma que o sofrimento menor é que permite que se

exprima o choro. Ela compara o amor de Cristo por Lázaro e por Judas, e também o

amor de Madalena por Lázaro e por Cristo. Observa que Cristo amava muito a

Judas, mas chorou na morte de Lázaro, assim como Madalena, que amava muito a

Cristo, chorou na morte de Lázaro. Esse jogo de choro e ausência de choro, entre

maior dor e menor dor, pode ser captado nas comparações dos trechos da lista

seguinte:

‗Porque el inferior dolor, llora; el supremo, suspende y no deja llorar‘. ‗[…] exhala por el llanto aquellos mismos espíritus que le congojan por confortarle, en señal de que ya no necesita de tanto fomento como al principio‘. ‗[…] que es menor el dolor cuando da lugar al llanto, que cuando no permite que se exhalen los espíritus porque los necesita para su aliento y confortación‘. ‗[…] porque aquí el mayor dolor embargó al llanto, y allí el menor le permitía‘. ‗Es porque tuvo menor dolor en la muerte de Lázaro que en la muerte de su Maestro. Luego se prueba ser mayor dolor el que no deja llorar, que el que llora‘.

Sor Juana resgata as ideias de Vieira sobre a maior das finezas, e na

construção de sua paráfrase fica expressa uma relação paradoxal na superioridade

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da prova que Vieira apresenta para tal fineza. O paradoxo não ficou tão explícito nas

construções de Vieira quanto nesta paráfrase de Sor Juana: ―porque dice que la

mayor prueba de esta fineza es el carecer de pruebas, porque es fineza sin

ejemplar.‖

No momento em que Sor Juana expõe sua opinião com relação à maior

fineza do amor de Deus aparecem outras ideias paradoxais atreladas a

comparações. Segundo a autora, a maior fineza são os benefícios que Deus deixa

de fazer aos homens. A proposição atribui a superioridade da fineza à sua própria

inexistência, o que normalmente causa certo estranhamento:

‗De manera que se arrepiente Dios de haber hecho beneficios al hombre que han de ser para mayor daño del hombre. Luego es mayor beneficio el no hacerle beneficios‘. ‗Agradezcamos y ponderemos este primor del Divino Amor en quien el premiar es beneficio, el castigar es beneficio y el suspender los beneficios es el mayor beneficio, y el no hacer finezas la mayor fineza‘.

Na continuação da análise, serão examinadas as comparações que estão

mais atreladas às estratégias argumentativas de Sor Juana, às referências que ela

faz do sermão e de Vieira, e aos contrastes e semelhanças existentes entre ela e

Vieira.

Ao longo do texto, Sor Juana usa inúmeros recursos para afirmar e reforçar

seus posicionamentos frente aos dos Santos (concordância) e ao de Vieira

(discordância). Expressões como ―Sea ejemplo‖, ―Confírmase esta verdad‖,

―Pruébolo‖, ―Aprieto más‖, ―Vamos al segundo‖, ―Vamos al caso‖, aparecem do início

ao fim do texto. As comparações entre as finezas apontadas por ela e as apontadas

por Vieira também são sempre resgatadas, ora com uso de oração comparativa, ora

com uso de superlativo relativo, e quase sempre com uso do adjetivo comparativo

―mayor‖. Somente na parte em que Sor Juana trata da opinião de S. Agostinho esse

reforço aparece no mínimo catorze vezes. Seguem algumas delas:

‗La opinión primera es de Augustino, que siente que la mayor fineza de Cristo fue morir‘ ‗Luego es la mayor de las finezas de Cristo‘ ‗Luego es, por ambos términos, la mayor fineza morir‘ ‗[…] y que sólo comprende su Muerte, que es la mayor de sus finezas‘ ‗Luego fue mayor fineza el morir‘ ‗Luego la mayor es morir‘ ‗Luego ésta es la mayor‘

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Por diversas vezes Sor Juana se refere à carta em si, ao ato da escrita, à

qualidade de seu texto, ao teor da carta, à repercussão que ela possa ter, etc.

Dessas referências à carta, grande parte se faz em oposição ao sermão e à maneira

como ele está configurado, principalmente no que tange ao engenho e aos

argumentos do padre. Nas duas comparações que vêm a seguir, porém, não há

referência a Vieira. Na primeira, Sor Juana se retrata por não ter polido mais seu

discurso, o que reflete seu estilo sintetizado e direto. Na segunda, ela se iguala a

uma ursa quando pare seus filhotes, o que leva a um paralelo implícito entre sua

carta (produzida) e os filhotes (paridos): ―La demasiada prisa con que lo he escrito

no ha dado lugar a pulir algo más el discurso […]‖; ―Remítole en embrión, como

suele la osa parir sus informes cachorrillos […]‖.

Em outras comparações, Sor Juana coteja propriedades de Vieira e de seu

discurso (texto, estilo, proposições, argumentos, etc.). Logo no início da carta, ela

coteja o embasamento e a destreza do padre. A primeira distinção aparece no

adjetivo que ela atribui ao engenho: ―sinigual‖. Depois, ela confere valor de

superioridade ao engenho do padre com relação aos seus fundamentos, usando os

elementos ―más... que...‖. Fazendo uso de hipérbatos, Sor Juana apresenta uma

alegoria, na qual as bases sólidas de uma fábrica representam o embasamento do

discurso, e a formosura de outra fábrica representa a habilidade retórica. A

igualdade estabelecida entre as duas fábricas (a bela e a de base sólida), com

relação à admiração que despertam, é negada pelos elementos ―no... tanto...

como...‖. Por último, a comparação de igualdade, entre os fundamentos fracos da

bela fábrica e as proposições de Vieira, é explicitada pelo conector ―cuales‖.

[…] alabando algunas veces sus fundamentos, otras disintiendo, y siempre admirándome de su sinigual ingenio, que aun sobresale más en lo segundo que en lo primero, porque sobre sólidas basas no es tanto de admirar la hermosura de una fábrica, como la de la que sobre flacos fundamentos se ostenta lucida, cuales son algunas de las proposiciones de este sutilísimo talento.

Com essa sequência de comparações, Sor Juana exalta o engenho de

Vieira, em detrimento de sua fundamentação. De fato, a refutação (e muitas vezes a

desconstrução) de seus argumentos e proposições é a trilha pela qual segue o

discurso da autora.

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Sor Juana recorre outra vez à alegoria da construção com bases fracas.

Depois de arguir a segunda opinião de Vieira, ela declara que o edifício das provas

caiu por terra. Então, estabelece uma comparação de igualdade entre a força

atribuída por Vieira a suas proposições e a propensão a queda que essas

proposições apresentaram: ―[…] cae en tierra el edificio de las pruebas: que cuanto

eran más fuertes, tanto son más prontas al precipicio, saliendo flaco el

fundamento‖.

Para justificar que o que escreve em sua carta não está contaminado pela

paixão de seus sentimentos, Sor Juana apresenta três razões de sua reverência por

Vieira. Uma delas é a admiração que ela afirma ter pelo engenho dele, e por meio da

estrutura ―otro que‖ diferencia o engenho entre um grupo de talentos: ―[…] que si

Dios me diera a escoger talentos, no eligiera otro que el suyo‖.

Também justifica seu atrevimento em ter escrito a carta ressaltando a

pretensão que Vieira teve em declarar que ninguém apontaria finezas superiores às

que ele apontou. Ela estabelece um paralelismo entre seu atrevimento e o de Vieira,

buscando mostrar que, se ele se atreveu a discordar dos santos da igreja, não seria

tanto atrevimento de sua parte discordar de um homem. Confere superioridade aos

santos com relação a Vieira, e por meio de perguntas retóricas, deixa implícita a

superioridade do atrevimento do autor com relação ao seu: ―Si hay quien ose

combatir en el ingenio con tres más que hombres, ¿qué mucho es que haya quien

haga cara a uno, aunque tan grande hombre?‖

Depois de concluir sua refutação, Sor Juana julga a intenção de Vieira como

pretensiosa. Vieira havia negado a possibilidade de uma igualdade entre sua fineza

e as demais, além de atribuir superioridade às suas finezas com relação às finezas

dos santos. Essas comparações e negações de comparações, colocadas por Vieira,

são passíveis de castigo divino, na opinião de Sor Juana. No trecho que vem a

seguir, ela atribui a Vieira a crença na superioridade de seu engenho em relação aos

dos santos:

Creo cierto que si algo llevare de acierto este papel, no es obra de mi entendimiento, sino sólo que Dios quiere castigar con tan flaco instrumento la, al parecer, elación de aquella proposición: que no habría quien le diese otra fineza igual, con que cree el orador que puede aventajar su ingenio a los de los tres Santos Padres y no cree que puede haber quien le iguale.

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Muitas comparações na carta apresentam diretamente um cotejo entre Vieira

e a própria Sor Juana, seus discursos, estilos, etc. A primeira comparação aqui

apresentada se estabelece por meio da combinação Art. + mismo + que, e expressa

identidade entre o método de Vieira e o de Sor Juana. Ela adianta que tratará, em

geral, das mesmas questões que Vieira tratou, e seguindo a mesma ordem: ―[…]

digo que seguiré en la respuesta el método mismo que siguió el orador en el

sermón citado, que es del Mandato‖.

Sor Juana qualifica a parte de sua carta na qual ela refuta a última opinião

de Vieira como a parte mais difícil: ―Ahora vamos a lo más arduo, que es a la

opinión que últimamente forma el autor‖. No desenvolvimento deste último ponto

abordado, são cotejados o nível de conhecimento do padre e o de Sor Juana.

Usando o adjetivo comparativo ―mejor‖, ela atribui superioridade ao ―saber‖ do padre

sobre os mandamentos de Cristo. Com isso, defende que Vieira teve intenção de

ostentar seu engenho ao declarar que Cristo não mandou que os homens o

amassem. Mais uma vez, sem deixar explícito, Sor Juana pretere o embasamento

argumentativo de Vieira: ―¿cómo se puede entender que Cristo no quiere nuestra

correspondencia cuando con tanto aprieto la encarga y manda? Claro está que el

autor sabrá esto mejor que yo, sino que quiso hacer ostentación de su ingenio, no

porque sintiese que lo podría probar‖.

Ao defender que Cristo quis a correspondência de seu amor pelos homens,

Sor Juana apresenta como argumento uma referência que Vieira usou em outro

sermão, que fala da passagem bíblica em que Cristo diz ―Eu sou a videira e vós os

ramos‖ 96. A partir dessa referência, ela se apropria da alusão e compara a união

dos ramos à videira e a união dos ramos entre si. Com relação à ordem ou

importância atribuída às duas uniões, ela indica superioridade da primeira união por

meio do ordinal ―primero‖ e do conector ―que‖. Na conclusão do argumento, fica

implícita a representação do amor a Cristo na primeira união, com o que Sor Juana

reafirma que Cristo quer e ordena a correspondência de seu amor. Assim, partindo

de uma referência usada por Vieira, ela refuta uma opinião do próprio Vieira.

Luego para cumplir el precepto de amar al prójimo hemos de amar primero a Dios. Si Cristo (como dice en otro sermón el mismo autor) se llama Vid y a nosotros Sarmientos: Ego sum vitis, vos palmites, y los sarmientos primero

96

Ver: A bíblia Sagrada, João, capítulo 15, versículo 5.

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se unen a la vid que ellos entre sí; luego quiere Cristo, luego solicita Cristo, luego manda Cristo que le amemos.

Depois de refutar todas as finezas defendidas por Vieira, Sor Juana se

desculpa, caso não tenha conseguido alcançar o que se dispôs a fazer em sua

carta. Por meio de alegoria, identifica seu discurso com um tiro ao alvo. Nessa

alusão, Sor Juana compara duas situações: o desprezo do ferro de tiro quando se

lança contra um alvo inacessível e quando se lança contra alvos comuns. Como a

comparação de igualdade tan... como... é negada, o sentido provável é que o

desprezo na primeira situação seja inferior ao desprezo na segunda situação.

Entende-se então que o objetivo de Sor Juana ao responder as opiniões de Vieira é

representado pelo alvo inacessível, e seu discurso, assim, é representado pelo ferro

de tiro menos desprezado:

El asunto también, con su dificultad, deja disculpado el no conseguirse; pues en blanco inaccesible no queda tan desairado el yerro del tiro como en los comunes, y basta para bizarría en los pigmeos atreverse a Hércules. A vista del elevado ingenio del autor aun los muy gigantes parecen enanos.

Há ainda considerações relevantes sobre esse último trecho. Logo após a

alegoria do tiro ao alvo, Sor Juana usa outra alegoria: identifica-se com os pigmeus

que atentaram contra Hércules 97. A fábula de Hércules e os pigmeus traz em si a

moral de que um homem grande e forte esmaga facilmente os pigmeus. Ao afirmar

que é suficiente extravagância os pigmeus se atreverem contra Hércules, Sor Juana

qualifica mais uma vez como ousada sua intenção de comentar o sermão de Vieira.

Na última parte do trecho, Sor Juana eleva mais uma vez o grau de destreza

de Vieira. Ela justifica a dificuldade do assunto tratado estabelecendo uma oposição

de indivíduos em relação à propriedade estatura. Essa última comparação chama a

atenção não só pelo jogo de antítese mas também porque reflete a relativização

implicada no mecanismo comparativo. A autora inferioriza a propriedade ―altura‖ do

elemento ―gigantes‖, atribuindo-lhe uma semelhança com o elemento ―enanos‖. Essa

inferioridade se dá pela relativização do elemento ―gigantes‖ com o elemento

97

―Havia antigamente uma raça de homens que não chegavam a ter três palmos de altura: chamavam‐nos pigmeus. Estando uma vez na terra deles, Hércules pôs‐se a dormir à sombra de uma

árvore Acudiram os pigmeus ajustados para matá‐lo; Hércules porém, pegando na pele do leão que lhe servia de manta, os foi enxotando, como quem enxota mosquitos, e continuou a dormir.

MORALIDADE. ‐ Sempre os pigmeus se ajuntam contra o homem esforçado; este, porém, com um simples aceno os faz fugir, e os esmaga.‖ (ROCHA, 2002).

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―elevado ingenio del autor‖, que se refere a Vieira. Note-se que são comparadas

propriedades diferentes: engenho e estatura. Contudo, a estatura atribuída aos

―gigantes‖ e aos ―enanos‖ representa o nível de habilidade retórica dos autores que

possam comparar-se a Vieira. O que se expressa é que os autores mais

engenhosos não são superiores em uma comparação com Vieira.

Essa relativização está relacionada ao juízo de valor, também implicado nos

mecanismos comparativos, de acordo com Gutiérrez Ordóñez (1997a, p. 5). A

semelhança entre gigantes e anões depende, neste caso, do juízo que Sor Juana

faz sobre o engenho de Vieira. Na passagem que vem a seguir, que pertence ao

início da carta, Sor Juana coloca a capacidade humana de discernir, de discriminar,

de julgar, como motivo pelo qual ela não pôde deixar de expor suas opiniões.

Que juntas a la general de no tener espíritu de contradicción sobraban para callar (como lo hiciera a no tener contrario precepto); pero no bastarán a que el entendimiento humano, potencia libre y que asiente o disiente necesario a lo que juzga ser o no ser verdad, se rinda por lisonjear el comedimiento de la voluntad.

Na última parte da carta, Sor Juana responde a seu interlocutor sobre qual a

maior fineza de Deus. Antes de expor sua opinião, ela ressalta que se preocupou em

separar essa opinião das anteriores, pois as demais estavam restritas à vida de

Cristo enquanto homem, e esta se refere a Deus em todo o tempo. As comparações

que seguem não se estabelecem por elementos comparativos específicos, são

comparações gerais com valor de diferença. Sor Juana faz uma diferença entre dois

momentos de seu discurso, por meio dos advérbios ―allí‖ e ―aquí‖, diferencia seu

discurso do de Vieira com os adjetivos ―uno‖ e ―otro‖, e uma diferença entre seu as

maneiras de opinar dela e as de Vieira por meio do substantivo ―disparidad‖. Afirma

que seria uma argumentação viciosa e censurável a oposição dessa última fineza

com as demais finezas dadas pelo autor:

‗Pues no ha sido olvido sino advertencia, porque allí, como era una conversación sucesiva, fueron llamando unos discursos a otros, aunque no fuesen muy del caso, y aquí es necesario hacer separación de los que no lo son, para no confundir uno con otro‘. ‗Ahora, este modo de opinar tiene mucha disparidad con el del autor, porque él habla de finezas de Cristo, y hechas en el fin de su vida, y esta fineza que yo digo es fineza que hace Dios en cuanto Dios, y fineza continuada siempre; y así no fuera razón oponer ésta a las que el autor dice, antes bien fuera una muy viciosa argumentación y muy censurable; por lo cual me pareció separarla‘.

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Os pares de conceitos apontados por Theodoro e Ruiz (2000, p. 4), e

observados nas comparações do sermão de 1650 (seção 5.2), também estão

presentes na carta. Alguns dos pares são colocados em plano de comparação pela

autora, em outros momentos ela questiona a comparação dos pares feita por Vieira,

quando ele atribui superioridade a um dos conceitos enquanto fineza do amor de

Cristo.

Sor Juana defende a morte como a maior fineza de Cristo. Ela compara

morte e Encarnação, posto que vê a segunda como uma grande maravilha. A autora

compara meios e fim, atribuindo inferioridade aos meios, com relação ao apreço que

produzem nas pessoas. Então ela afirma que a Encarnação de Cristo foi um meio

para um fim: a sua morte. Assim, defende a morte como fineza igualmente superior à

Encarnação:

Todos aquellos que se eligen por medios para algún fin, se tienen por de menor aprecio que el fin a que se dirigen. La Encarnación fue medio para la muerte, pues Cristo se hizo hombre para morir por el hombre; conque fue mayor fineza morir que encarnar, aunque sea mayor maravilla encarnar que morir.

No embate entre deixar de ser (morte) e deixar de estar (ausência), Vieira

atribuiu superioridade ao deixar de ser, enquanto fineza. Sor Juana nega que Cristo

tenha se ausentado e, consequentemente, nega também que a ausência tenha sido

maior fineza que a morte, já que não houve ausência. Ela defende que houve falha

na comparação de Vieira e atinge o interior do mecanismo comparativo,

denunciando a falta do relativo (ou referencial) da comparação:

Y mi argumento es que la muerte de Cristo fue la mayor fineza de las finezas que obró: no de la supuesta ausencia, que en ésa niego todo el supuesto y no hay relativo de comparación entre lo que tiene ser y lo que no le tiene.

Vieira comparou sua fineza (estar sem sentidos no Sacramento) com a de S.

Tomás (sacramentar-se), e julgou sua fineza como superior à do Santo. Sor Juana

denunciou sua falha, pois a fineza que ele deu é de espécie, e a de São Tomás é de

gênero, e ela julga o cotejo entre gênero e substância inadequado. Sor Juana

estabelece um paralelo entre a comparação de Vieira e uma comparação entre

substância e homem, em que igualmente se coteja gênero e espécie. Então, ela

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qualifica o argumento como sofista, mesmo igualando suas provas a supostas

provas muito elegantes, conforme se percebe na seguinte parte do texto:

Si uno dijese que la más noble categoría era la de substancia, y otro le replicase que no, sino el hombre, aunque para esto trajese muy elegantes pruebas (cuales son las que trae el autor), ¿no diríamos que no servían, porque era sofístico el argumento y pecaba en la forma, pues el hombre es especie del género substancia y está comprendido debajo de ella? Claro está. Pues así juzgo yo éste, si no es que me engaño.

Quando Sor Joana examina a terceira opinião de Vieira, que considera como

maior fineza de Cristo lavar os pés de Judas, ela não só declara ser falha essa

proposição, como a compara com a anterior. A autora expressa semelhança entre as

falhas, já que, no caso, a superioridade atribuída por Vieira está estabelecida entre

causa e efeito:

Otra tenemos, no muy diferente de la pasada: aquélla, de especie a género; ésta, de efecto a causa. ¡Válgame Dios! ¿Pudo pasarle por el pensamiento al divino Crisóstomo, que Cristo obró tal cosa sin causa, y muy grande? Claro está que no pudo pensar tal cosa.

Sor Juana coloca em questão a superioridade atribuída por Vieira entre sua

própria fineza e a fineza de São Crisóstomo. Ela vê nessas finezas uma relação de

causa e efeito, e por isso nega a validade da comparação feita por Vieira entre as

finezas:

Pues si el motivo de lavar los pies y la ejecución de lavarlos se han como causa y efecto, y la causa y efecto son relativos, que aquí no pueden separarse, ¿dónde está esta mayoría que el autor halla entre lavar y la causa de lavar, si sólo su diferencia es ser generante la causa y el efecto engendrado?.

A autora Juana segue comparando o discurso de Vieira com o de São

Crisóstomo. No trecho que se transcreve logo adiante, por meio de uma comparação

de superioridade, ela observa o fato de São Crisóstomo ter manifestado o lavatório

como maior fineza, e deixado implícita a causa do lavatório. De maneira indireta, a

expressão hipotética da causa, inferiorizada na comparação, representa a prática de

Vieira, de expressar a causa como sendo a maior fineza de Cristo. No segundo

trecho, com os mesmo elementos comparativos, ela enaltece o silêncio e as

informações que ficam implícitas, em detrimento das informações explícitas. De

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certa forma, essa comparação com juízo de valor, que enaltece o caráter sintetizado

do discurso, reflete o estilo também sintetizado e conceitista de Sor Juana, em

oposição ao estilo culteranista e repleto de adornos e artifícios engenhosos de

Vieira:

‗y ésta es la causa, o una de las causas, que el Santo incluyó, refiriendo el efecto, con más misteriosa ponderación que si las expresara‘. ‗[…] que lo que no cabe en las voces queda más decente en el silencio; y expresa y da a entender más un: no se puede explicar cómo es la Gloria, que un: así es la Gloria. Así el Crisóstomo: la obra, que es exterior, expresa; la causa, la supone, y como inexplicable la deja de decir‘.

Parece que o ―implícito‖ ganha extrema importância no discurso de Sor

Juana. Ao demonstrar que Cristo quis a correspondência de seu amor, ela deixa

implícito o pedido de amor a Deus, inscrito no pedido de amor ao próximo. Sor

Juana nega a proposição de Vieira de que Cristo não pede amor a ele, colocando-a

como implícita na ordem ―também vós deveis lavar os pés uns aos outros‖ 98, que é

a base do mandato defendido por Vieira.

[…] pues aunque en la cláusula: et vos debetis alter alterius lavare pedes, no se expresa el amor que nos pide Cristo para sí y se expresa el que nos manda tener al prójimo, se incluye y envuelve en ella misma el amor de Dios, aunque no se expresa con mayor eficacia que el del prójimo, que se manda.

Para Vieira, o amor de Cristo aparece como causa para um fim, que é o

amor dos homens entre si. Esse par de conceitos não está reconhecido por Sor

Juana, contudo há comparações em seu discurso que chegam perto de admitir essa

relação entre meio e fim, no que se refere à correspondência do amor de Cristo. Há

uma diferença de conceitos que Sor Juana aponta sobre essa correspondência, e

que segundo ela não foi reconhecida por Vieira. Ela estabelece uma comparação

geral em que diferencia a correspondência e a utilidade da correspondência, e

declara que a utilidade é que foi renunciada por Cristo: ―Y es que no dio el autor

distinción entre correspondencia y utilidad de la correspondencia. Y esto último es

lo que Cristo renunció, no la correspondencia‖.

Em outros trechos da carta, é possível subentender a ideia do amor a Cristo

como meio para o amor ao próximo:

98

Ver: A Bíblia Sagrada, João, capítulo 13.

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‗Y nadie ignora que el medio que une dos términos, se une él más estrecha e inmediatamente con ellos, que a ellos entre sí‘. ‗Dice más Cristo: que su precepto es que amemos al prójimo como su Majestad nos ama […] Pero para poder cumplir nosotros este precepto, ¿qué disposición hemos menester? El mismo Cristo la enseña: Qui diligit me, mandatum meum, ut diligatis invicem, sicut dilexi vos

99‘.

‗Luego para cumplir el precepto de amar al prójimo hemos de amar primero a Dios. Si Cristo (como dice en otro sermón el mismo autor) se llama Vid y a nosotros Sarmientos: Ego sum vitis, vos palmites, y los sarmientos primero se unen a la vid que ellos entre sí; luego quiere Cristo, luego solicita Cristo, luego manda Cristo que le amemos‘.

Certas comparações estabelecidas na carta refletem cotejos entre as

posições de Sor Juana e de Vieira no contexto social e histórico em que estavam

inseridos. Logo no início da carta, a freira se compara com o padre na propriedade

de filhos da religião cristã católica. O substantivo ―hija‖ aparece com função de

adjetivo, e intensificado por ―menos‖. A negação da inferioridade desse atributo de

Sor Juana dá lugar a duas interpretações possíveis: Sor Juana é tão filha quanto

Vieira ou Sor Juana é mais filha do que Vieira: ―La primera es el cordialísimo y filial

cariño a su Sagrada Religión, de quien, en el afecto, no soy menos hija que dicho

sujeto‖.

No final da carta, Sor Juana volta a se referir à questão religiosa,

qualificando a si própria como superior com relação à propriedade ―obediente‖.

Dessa vez, ela usa o superlativo relativo de superioridade, sem expressar os

elementos ou o grupo de elementos com os quais se estabelece a relativização.

Assim, o contexto sugere algumas possibilidades de identificação dos elementos

com relação aos quais Sor Juana é a mais obediente à igreja, como uma totalidade

mais absoluta, por exemplo, todos os seres humanos, ou um grupo mais restrito, por

exemplo o grupo dos sacerdotes da igreja, do qual Vieira é integrante: ―Vuelvo a

poner todo lo dicho debajo de la censura de nuestra Santa Madre Iglesia Católica,

como su más obediente hija‖.

Conforme já exposto anteriormente, Sor Juana recrimina a proposição de

Vieira de que ninguém daria uma fineza maior que a dele. No trecho seguinte, ela

usa o adjetivo ―ajeno‖ para expressar uma relação de diferença entre a proposição

do padre e a sua própria proposição: Sor Juana crê que qualquer pessoa pode

adiantar seu discurso. Essa comparação geral reflete o ponto de vista da freira sobre

99

―Eu lhes dou este novo mandamento: Amem uns aos outros. Assim como eu os amei, amem também uns aos outros.‖ A Bíblia Sagrada, João, capítulo 13, versículo 34.

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a diferença de postura dos autores, já que ela, mesmo admitindo ser ousada em seu

discurso, busca expressar submissão e obediência à igreja e a seus preceitos.

En cuya suposición, digo que esto no es replicar, sino referir simplemente mi sentir; y éste, tan ajeno de creer de sí lo que del suyo pensó dicho orador diciendo que nadie le adelantaría (proposición en que habló más su nación, que su profesión y entendimiento), que desde luego llevo pensado y creído que cualquiera adelantará mis discursos con infinitos grados.

Nessa mesma passagem, Sor Juana coloca em cotejo também a

nacionalidade e a profissão de Vieira. Ela afirma que a influência que a nação do

autor exerce em sua proposição é superior à influência exercida por sua profissão.

No trecho transcrito a seguir, não há nenhuma marca comparativa formal,

mas percebe-se um contraste entre Vieira e Sor Juana, com relação ao gênero:

Que cuando yo no haya conseguido más que el atreverme a hacerlo, fuera bastante mortificación para un varón […] ver que se atreve una mujer ignorante, en quien es tan ajeno este género de estudio, y tan distante de su sexo; pero también lo era de Judit el manejo de las armas y de Débora la judicatura.

Sor Juana se refere a Vieira como ―varón‖ e a si como ―mujer‖, e os aspectos

que acompanham sua caracterização refletem a situação do gênero feminino no

contexto em que ela vivia: ―ignorante, en quien es tan ajeno este género de estudio,

y tan distante de su sexo‖. Em seguida, por meio do advérbio ―también‖, ela atribui

semelhança entre si e duas personagens bíblicas, Judite 100 e Débora 101. A

propriedade comum entre as três mulheres é o atrevimento de atuar em áreas nas

quais seu gênero não era prestigiado ou bem aceito.

Assim como nos sermões, na Carta Atenagórica percebe-se a estreita

relação entre a comparação e a criação de relevo. Tome-se como ilustração um

trecho que trata do sentimento de Madalena: ―Luego amaba la Magdalena más a

Cristo que a Lázaro su hermano‖. Sor Juana faz o verbo ―amar‖ anteceder ao seu

sujeito, ―la Magdalena‖, e atribui superioridade ao amor de Madalena a Cristo.

Assim, Sor Juana deixa o amor de Madalena em relevo, diferentemente do que fez

Vieira em seu sermão de 1643.

100

Ver: Bíblia Fácil, Judite. 101

Ver: A Bíblia Sagrada, Juízes.

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No sermão de 1650, Vieira construiu uma relação de causa e proporção

entre a dor e o choro de Madalena. Na carta de Sor Juana, a relação proporcional é

negada, e até invertida. No trecho da carta que segue, o advérbio ―indiferentemente‖

situa os elementos ―pesar‖ e ―gusto‖ em um plano neutro: ―[...] luego no son indicio

de muy grave dolor las lágrimas, pues es un signo tan común, que indiferentemente

sirven al pesar y al gusto‖. Em outra passagem, o adjetivo comparativo ―menor‖

desloca a dor a um plano mais baixo: ―[…] que es menor el dolor cuando da lugar al

llanto, que cuando no permite que se exhalen los espíritus‖. Em outro trecho, por

meio do adjetivo comparativo ―mayor‖, o elemento ―dolor‖ figura em relevo positivo,

porém em uma relação causal com a ausência do pranto: ―[…] porque aquí el mayor

dolor embargó al llanto, y allí el menor le permitía‖. No mesmo trecho, o adjetivo

comparativo ―menor‖ dispõe o elemento ―dolor‖, elíptico na oração, em uma posição

de relevo negativo, e em uma relação causal com a aprovação do pranto.

Devido a essa diferença no tratamento comparativo dos dois elementos,

choro e dor, constituem-se relevos distintos para esses elementos postos em

contraste.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No trabalho realizado, foi possível traçar uma caracterização dos aspectos

semânticos, sintáticos e pragmáticos das estruturas comparativas, como base para a

identificação e para um exame aprofundado dessas construções nos textos do

córpus. Nesse sentido, a noção de fluidez de categorias gramaticais apontada em

estudos assentados no Funcionalismo foi essencial. Por meio dessa noção, foi

possível ampliar o olhar sobre as comparações, bem como observar valores da

comparação expressos por meio de uma diversidade considerável de estruturas e

elementos linguísticos.

Alguns aspectos observados condizem com o que comumente se instaura

nas interações linguísticas. É o caso, por exemplo, da intensa ocorrência de elipse.

Outro caso que ocorre comumente, conforme observado na caracterização das

estruturas comparativas, e que se percebe nos sermões e na carta, é o fato de que

nos mecanismos comparativos, ativados por estruturas comparativas específicas,

superlativo relativo, e comparações gerais, os valores de diferença e de

superioridade são expressos de maneira acentuada.

No caso dos textos do córpus, essa alta frequência de comparações com

desigualdade e superioridade se põe a serviço da função comunicativa que os textos

se propõem cumprir e servem ao gênero discursivo que representam. Os sermões e

a carta, na condição de manifestações do discurso religioso, valem-se de exemplos

e ilustrações, na finalidade de obter a adesão dos interlocutores com respeito às

ideias defendidas, e nessas ilustrações há sempre um cotejo. No caso dos textos

examinados, os cotejos são instituídos entre Cristo e os homens (principalmente

personagens bíblicas), e na maior parte deles, a superioridade relacionada a Cristo é

afirmada, e a igualdade entre Cristo e os homens é negada. Muitas vezes, somente

a diferença é expressa, com um valor de superioridade subentendido.

No sermão de 1650 e na carta, particularmente, a finalidade específica dos

textos colabora para que o sentido de diferença e superioridade seja frequente. A

intenção de Vieira no sermão é apresentar finezas superiores às finezas já

apresentadas pelos santos da igreja, bem como apresentar uma quarta fineza

impossível de ser igualada ou superada. Sor Juana busca reafirmar a superioridade

das finezas dos santos e apresentar uma fineza superior à última defendida por

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Vieira. A macroestrutura dos textos tem base na superioridade, por isso esse valor é

constantemente expresso nas comparações. Soma-se a isto o fato de que os textos

estão filiados ao barroco, movimento em que a noção de contraste é essencial.

O exame das comparações efetuado no trabalho transpôs a categoria das

orações comparativas e chegou a outras categorias como as orações aditivas (do

tipo não só... mas e no solo... pero), as consecutivas (do tipo tão/tanto... que e

tan/tanto... que), e as modais e conformativas (com como). Com frequência, nas

orações pertencentes a essas categorias se verificou valor comparativo, tanto em

língua portuguesa quanto em língua espanhola. As orações comparativas, por sua

vez, apareceram por vezes carregadas de outros valores, como o valor restritivo (por

meio da combinação no... más... que) e o valor hipotético (pelo uso de como se... e

como aliada a verbos no pretérito imperfeito).

De modo geral, as estruturas comparativas da língua portuguesa e da língua

espanhola estão configuradas de maneira bastante semelhante nos textos. Algumas

diferenças entre as duas línguas, com relação a essa estrutura gramatical, não se

fizeram tão marcantes, como é o caso do uso dos advérbios mais/más, com o

adjetivo grande. No português, esse uso sofre algumas restrições normativas

enquanto no espanhol ele é corrente junto ao uso do adjetivo na forma sintética

comparativa mayor. Na carta de Sor Juana, o uso do adjetivo mayor é predominante.

A diferença mais visível foi a forma da correlação de igualdade tão/tanto... quanto,

no português, que na língua espanhola aparece com o conector como no lugar de

quanto, além da variação na forma do intensificador (tan), questão sem relevância

para o trabalho.

As demais diferenças na configuração das estruturas comparativas devem-

se mais à própria diferença de construção textual e de estilo dos dois autores.

Percebeu-se que, em Vieira, as estruturas comparativas aparecem de maneira mais

complexa, envolvidas em estruturas que implicam outros valores, e dispostas em

sequências de cotejos consecutivos expressos por diferentes expedientes

linguísticos. Essas sequências de comparação estão presentes também em algumas

passagens da carta de Sor Juana, porém são mais frequentes nos sermões de

Vieira. Basicamente, os autores se valem de expedientes construcionais bastante

semelhantes. Tanto nos sermões quanto na carta, os mecanismos comparativos são

ativados com diversidade de estruturas e elementos linguísticos, frequentemente

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com forte caráter figurativo. A diferença mais sentida se refere aos valores que os

autores atribuem aos elementos em cotejo.

Grande parte dos mecanismos comparativos ativados por Vieira são

retomados por Sor Juana. Os mecanismos comparativos diretamente ligados ao

objetivo específico do sermão, que é o de apresentar finezas superiores, são todos

desconstruídos por Sor Juana. Ela quase sempre nega a validade das comparações

de Vieira, apontando a maneira indevida como ele põe elementos em comparação,

na sua opinião. Para a comparação de Vieira entre ausência e morte, Sor Juana

nega que tenha havido ausência, e consequentemente nega a superioridade da

morte. Para a comparação de Vieira entre o sacramento e a privação no

sacramento, Sor Juana julga indevido que a privação seja um elemento de

comparação, pois ele é parte do próprio sacramento. Para a comparação de Vieira

entre o lavatório e a não exclusão de Judas no mesmo lavatório, Sor Juana vê uma

comparação entre causa e efeito, e também invalida a superioridade afirmada por

ele.

Por último Sor Juana retoma a fineza de Cristo em não querer a

correspondência do seu amor para si. Vieira afirma que essa fineza foi superior a

todas as demais finezas e que não há possibilidade de que ela seja igualada, muito

menos superada. Sor Juana nega a superioridade atribuída por Vieira, pois não

reconhece que Cristo abdicou da correspondência do seu amor. Além disso, mesmo

não reconhecendo a validade da última fineza oferecida por Vieira, Sor Juana

apresenta outra fineza, que afirma ser superior à de Vieira. Neste ponto ela

desconstrói a suposição de Vieira, de que a fineza apresentada por ele não poderia

ser superada. Os elementos colocados em cotejo na defesa das ideias centrais dos

textos são praticamente os mesmos em Vieira e em Sor Juana. Contudo, o valor

semântico que os autores atribuem às partes nas comparações entre esses

elementos é bastante diferente, pois as comparações firmadas por Vieira são

negadas por Sor Juana.

Nesses pontos principais dos textos, além dos contrastes próprios entre as

finezas de Cristo que acabam de ser resgatados, aparecem os contrastes entre os

dois autores. As comparações revelam a diferente opinião que Vieira e Sor Juana

manifestam em relação a pares de conceitos implicados nos cotejos: morte e

ausência, ser e estar, essência e acidentes, gênero e espécie, causa e efeito, meio e

fim. Nas proposições de Vieira, que segue uma linha de pensamento existencialista,

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esses conceitos aparecem como mais independentes e mais desvencilhados uns

dos outros. Para Sor Juana, essencialista, trata-se de conceitos relativos,

inseparáveis. Na sua proposição, a morte compreende a ausência, o ser

compreende o estar, o gênero compreende a espécie, etc.

Outro contraste que aparece nas comparações, sobretudo nas de Sor

Juana, é aquele que se estabelece entre o modo pelo qual cada autor constrói seu

texto. Os recursos retóricos e estéticos aparecem com intensidade diferente nos dois

autores. De um lado, Vieira, lança mão de inúmeros artifícios, figuras, proporções,

inversões, com a finalidade de comover e convencer seu público. De outro lado, Sor

Juana, preza as bases sólidas de suas proposições, e seu percurso retórico caminha

nessa direção. Não por acaso algumas comparações de Sor Juana apresentam o

engenho de Vieira como elemento comum no contraste entre os dois autores.

Elevando o engenho de Vieira, Sor Juana pretere a qualidade do fundamento do

orador. Na carta, Sor Juana coloca em contraste também seu papel social e o papel

social de Vieira. Foram identificadas comparações gerais de diferença de gênero e

de postura perante a igreja, relacionadas aos dois autores. Sor Juana marca de

forma sutil a diferença envolvida no fato de Vieira ser contestado por uma mulher e a

diferença das condições em que viviam homens e mulheres em áreas que exigiam

alto nível de conhecimento e instrução. Ela demonstra as condições e restrições

impostas à mulher por conta desta diferença. Também marca a igualdade entre si e

Vieira, na condição de filhos da igreja, e, mais adiante, atribui superioridade a si na

condição de filha obediente, o que de certo modo reforça que Sor Juana julgou

ousada a intenção de Vieira.

Nos argumentos mais secundários e complementares, também aparecem

muitos mecanismos comparativos de Sor Juana que têm contraponto com os

mecanismos utilizados por Vieira. Um exemplo disso são as passagens dos dois

textos em que os autores comparam os sentimentos de Cristo com relação à morte e

à ausência (nas referências ao horto e à cruz), e comparam as causas do choro de

Madalena. Alguns contrapontos Sor Juana não restringe ao sermão de 1650. Sor

Juana resgata uma alegoria usada em outro sermão de Vieira, na qual Cristo se

iguala a uma videira, para demonstrar que Cristo quis a correspondência dos

homens. Esse resgate feito por Sor Juana indica que o discurso da carta dialoga de

certa forma com todo o conjunto de sermões de Vieira.

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Os dois sermões de Vieira selecionados para esta pesquisa apresentam

muitos pontos em comum. Em primeiro lugar, aparece a temática comum, o amor de

Cristo, e as constantes comparações entre o amor de Cristo e o dos homens.

Nessas comparações, o homem é representado por personagens bíblicas e muitas

delas aparecem nos dois sermões (Madalena, Davi e Absalão, Judas e Pedro, etc.)

Em segundo lugar, outras comparações pontuais aparecem nos dois textos: a

superioridade da ausência com relação à morte, a superioridade da ingratidão de

Judas, a igualdade entre a intensidade do amor de Cristo no início e no fim de sua

vida, a superioridade dos efeitos do amor de Cristo no fim de sua vida.

Visto que Sor Juana contrapõe em suas comparações algumas dessas

comparações comuns aos dois sermões, é possível afirmar que ela refuta, de

maneira indireta, o conjunto dos sermões de Vieira. Além disso, quando Sor Juana

estabelece comparações entre ela e Vieira, entre seu engenho e o engenho dele,

essas oposições não parecem estar limitadas apenas ao sermão de 1650.

Nota-se no exame das peças que a comparação está perpassada pelo juízo

de valor emitido pelo autor, e que essa comparação reflete a capacidade de

discriminar da mente humana. São os juízos de valor e as motivações de Sor Juana

que a levam a discordar de Vieira e, consequentemente, estabelecer cotejos que

dialogam com os cotejos construídos por ele, o que gera uma rede de contrastes e

comparações entre conceitos, opiniões, argumentos, etc. Desse modo, é possível

afirmar que as comparações presentes nos textos examinados são determinadas por

fatores que vão desde a capacidade básica dos autores de discriminar entidades e

conceitos ao seu redor, até fatores mais específicos, como a finalidade de cada um

deles em comunicar suas opiniões. Entre os fatores que ocasionam a intensa carga

comparativa dos textos, estão tantos outros, como o gênero discursivo utilizado, o

contexto social, histórico e cultural no qual os textos foram produzidos, as

concepções e os julgamentos que cada autor elabora sobre determinados conceitos.

Conforme já explicitado, os textos em análise são peças retóricas. A

conclusão a que se chegou neste trabalho, afinal, foi de que o mecanismo

comparativo é um instrumento retórico por excelência pela capacidade que ele tem

de criar relevos. Na retórica procura-se apresentar e marcar os argumentos fortes

com vistas a provar o que se defende. Nesse aspecto, a criação de planos é

fundamental na retórica. A importância da comparação é a criação de planos, que é

altamente favorecedor da retórica.

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É notável a maneira como Vieira e Sor Juana ordenam os elementos na

estrutura comparativa. A comparação em si já aparece nas peças como um recurso

essencial para dispor certos elementos em planos de rebaixamento e proeminência,

e a inversão de elementos na comparação reforça esse mecanismo. Entende-se que

a estratégia de inversão da ordem das palavras está atrelada à intenção do autor do

discurso no processamento da informação, e encaminha a leitura para uma

interpretação marcada pela produção de relevos.

Considerando que o mecanismo de comparação é um mecanismo de

criação de relevo constante, pode-se dizer que nas peças examinadas a

comparação constitui um recurso primordial para a proeminência ou o rebaixamento

que os autores dão aos elementos. Na medida em que comparam continuamente, os

autores dispõem os elementos em relevo continuamente no texto. Da mesma forma,

na medida em que estabelecem comparações dentro de comparações, criam planos

de relevo dentro de outros planos de relevo.

A ativação constante e complexa dos mecanismos comparativos nos textos,

por meio de sequências de comparações aliadas a outros valores semânticos, e

expressas por meio de expedientes linguísticos diversos, tece as linhas de

raciocínio, as analogias e os argumentos dos sermões e da carta. Tanto as

estruturas comparativas quanto as comparações gerais desempenham funções

essenciais na organização textual e na potência discursiva dos sermões de Vieira e

da carta de Sor Juana, que aqui se contrastaram.

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ANEXOS

ANEXO A – SERMÃO DO MANDATO (1643) Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000018pdf.pdf>. Acesso em 18 de abril de 2011. Sciens Jesus quia venit hora ejus ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos. (1)

I Quem entrar hoje nesta casa — todo-poderoso e todo amoroso Senhor — quem entrar hoje nesta casa — que é o refúgio último da pobreza e o remédio universal das enfermidades — quem entrar, digo, a visitar-vos nela — como faz todo este concurso da piedade cristã — com muito fundamento pode duvidar se viestes aqui por pródigo, se por enfermo. Destes o céu, destes a terra, destes-vos a vós mesmo, e quem tão prodigamente despendeu quanto era e quanto tinha, não é muito que viesse a parar em um hospital. Quase persuadido estava eu a este pensamento, mas no juízo dos males sempre conjecturou melhor quem presumiu os maiores. Diz o vosso evangelista, Senhor, que a enfermidade vos trouxe a este lugar, e não a prodigalidade. Enfermo diz que estais, e tão enfermo que a vossa mesma ciência vos promete poucas horas de vida, e que por momentos se vem chegando a última: Sciens Jesus quia venit hora ejus (Jo. 13,1). Qual seja esta enfermidade, também o declara o Evangelista. Diz que é de amor, e de amor nosso, e de amor incurável. De amor: cum dilexisset; de amor nosso: suos qui erant in mundo; e de amor incurável e sem remédio: in finem dilexit eos. Este é, enfermo Senhor, e saúde de nossas almas, este é o mal ou o bem de que adoecestes, e o que vos há de tirar a vida. E porque quisera mostrar aos que me ouvem que, devendo-vos tudo pela morte, vos devem ainda mais pela enfermidade, só falarei dela. Acomodando-me pois ao dia, ao lugar e ao Evangelho, sobre as palavras que tomei dele, tratarei quatro coisas, e uma só. Os remédios do amor e o amor sem remédio. Este será, amante divino, com licença de vosso coração, o argumento do meu discurso. Ainda não sabemos de certo se o vosso amor se distingue da vossa graça. Se se não distinguem, peço-vos o vosso amor, sem o qual se não pode falar dele, e se são coisas distintas, por amor do mesmo amor vos peço a vossa graça. Ave Maria.

II Os remédios do amor e o amor sem remédio são as quatro coisas, e uma só, de que prometi falar, porque, sendo a enfermidade do amor a que tirou a vida ao Autor da vida, não se pode mostrar que foi amor sem remédio, sem se dizer juntamente quais sejam os remédios do amor. Desta matéria escreveu eruditamente o Galeno do amor humano, nos livros que intitulou De Remedio Amoris, cujos aforismos, porque hão de ser convencidos, entrarão sem texto e sem nome, como quem não vem a autorizar, senão a servir. Os remédios, pois, do amor mais poderosos e eficazes que até agora tem descoberto a natureza, aprovado a experiência e receitado a arte, são estes quatro: o tempo, a ausência, a ingratidão, e, sobretudo, o melhorar de objeto. Todos temos nas palavras que tomei por tema, e tão expressos que não hão mister

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comento: Cum dilexisset, eis aí o tempo; suos qui erant in mundo, eis aí a ingratidão; ut transeat, eis aí a ausência; ex hoc mundo ad Patrem, eis aí a melhoria do objeto. E com se aplicarem todos estes remédios à enfermidade, todos estes defensivos ao coração, e todos estes contrários ao amor do divino Amante, nem o tempo o diminuiu, nem a ingratidão o esfriou, nem a ausência o enfraqueceu, nem a melhoria do objeto o mudou um ponto: In finem dilexit eos. Estas são as quatro partes do nosso discurso; vamos acreditando amor e desacreditando remédios.

III O primeiro remédio que dizíamos é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira, embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhes os defeitos, enfastia-lhes o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos. Baste por todos os exemplos o do amor de Davi. Amou Davi a Bersabé com aqueles extremos que todos sabem, e, sendo o coração deste homem feito pelos moldes do coração de Deus, e Deus tão picado de ciúmes, como ele confessa de si: Ego Deus zelotes (2), coisa é digníssima de grande reparo que o mesmo Deus o deixasse continuar naquele amor, sem lhe procurar o remédio, senão ao cabo de um ano, quando o mandou reduzir pelo profeta Natã. Quanto Deus sentisse este desamor de Davi, bem se vê da circunstância deste mesmo cuidado, pois ele, sendo o ofendido, foi o que solicitou a reconciliação, sem esperar que Davi a procurasse. Pois, se Deus queria e desejava tanto que Davi se apartasse do amor de Bersabé, por que dilatou esta diligência tanto tempo, e não lhe procurou o remédio senão no fim de um ano? Pois esse mesmo ano, e esse mesmo tempo foi o primeiro remédio com que o começou a curar. As outras enfermidades têm na dilação o maior perigo; a do amor tem na mesma dilação o melhor remédio. Via, o que só vê os corações dos homens, que, enquanto duravam aqueles primeiros fervores da afeição de Davi, dificultosamente se lhe havia de arrancar do coração um amor em que estava tão empenhado; pois deixe-se a cura ao tempo, que ele pouco a pouco o irá dispondo, e assim foi. Ao princípio não reparava Davi no que devia ao vassalo, nem no que se devia a si, nem no que devia a Deus: matava homens, perdia exércitos, não fazia caso da fama nem da consciência, que tanta violência trazia aquele bravo incêndio em seus princípios; mas foi andando um dia e outro dia, foi passando uma semana e outra semana, foi continuando um mês e outro mês, e quando já chegou o fim do ano, em que estado estava o amor de Davi? Estava a chaga tão disposta, o coração tão moderado, e o calor tão remetido, que bastou uma só palavra do profeta para o sarar de todo. O que era desejo se trocou subitamente em dor; o que era cegueira, em luz; o que era gosto, em lágrimas; e o que era amor, em arrependimento. E se tanto pode um ano, que farão os muitos?

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Estes são os poderes do tempo sobre o amor. Mas sobre qual amor? Sobre o amor humano, que é fraco; sobre o amor humano, que é inconstante; sobre o amor humano, que não se governa por razão, senão por apetite; sobre o amor humano, que, ainda quando parece mais fino, é grosseiro e imperfeito. O amor, a quem remediou e pôde curar o tempo, bem poderá ser que fosse doença, mas não é amor. O amor perfeito, e que só merece o nome de amor, vive imortal sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o enfraquecem, nem as eternidades o cansam: Omni tempore diligit, qui amicus est (3), disse nos seus Provérbios o Salomão da Lei Velha; e o Salomão da Nova, Santo Agostinho, comentando o mesmo texto, penetrou o fundo dele com esta admirável sentença: Manifeste declarans amicitiam aeternam esse, si vera est; si autem desierit, nunquam vera fuit: Quis-nos declarar Salomão — diz Agostinho — que o amor que é verdadeiro tem obrigação de ser eterno, porque, se em algum tempo deixou de ser, nunca foi amor: Si autem desierit, nunquam vera fuit. Notável dizer! Em todas as outras coisas o deixar de ser é sinal de que já foram; no amor o deixar de ser é sinal de nunca ter sido. Deixou de ser? Pois nunca foi. Deixastes de amar? Pois nunca amastes. O amor que não é de todo o tempo, e de todos os tempos, não é amor, nem foi, porque se chegou a ter fim, nunca teve princípio. É como a eternidade, que se, por impossível, tivera fim, não teria sido eternidade: Declarans amicitiam aeternam esse, si vera est. Tão isento da jurisdição do tempo é o verdadeiro amor. Porém um tal amor, onde se achará? Só em vós, Fênix divino, só em vós. Isso quer dizer: Cum dilexisset: como tivesse amado. E quando, ou desde quando? Primeiramente, desde o princípio sem princípio da eternidade, porque desde então começou o Verbo eterno a amar os homens, ou desde então os amou sem começar, como ele mesmo disse: Et deliciae meae esse cum filiis hominum (4). E um amor, que teve as raízes na eternidade, vede como podia achar remédio no tempo? O tempo começou com a criação do mundo, porque antes do mundo não havia tempo. E este tempo em Cristo divide-se em duas partes: o tempo em que amou desde o princípio do mundo, com a vontade divina, e o tempo em que amou desde o princípio da vida, com a vontade divina e humana. Desde o princípio da vida passaram trinta e quatro anos; desde o princípio do mundo passaram mais de quatro mil, e em tantos anos e tantos séculos de amor, nenhum poder teve sobre ele o tempo. Oh! amor só verdadeiro! Oh! amor só constante! Oh! amor só amor! Que não desfez, que não acabou a continuação pertinaz de tantos anos, quantos correram desde o princípio do mundo até o fim da vida de Cristo? Que cidade tão forte que não arruinasse? Que mármore que não gastasse! Que bronze que não consumisse? Todas as coisas humanas, em tão comprida continuação, acabou o tempo, e o que é mais, até a memória delas; só o amor de Jesus, apesar dos anos e dos séculos, sempre inteiro, sem diminuição, sempre firme, sempre perseverante, sempre o mesmo, porque, assim como tinha amado no princípio: Cum dilexisset, assim amou, e com a mesma intenção, no fim: In finem dilexit. Tão fora esteve o tempo — vede o que digo — tão fora esteve o tempo de poder diminuir o amor de Cristo, que antes o amor de Cristo diminuiu o tempo. No mesmo texto do nosso Evangelho o temos: Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem: Sabendo Jesus que era chegada a hora de passar deste mundo ao Padre. — Isto disse o evangelista, falando dos mistérios da última Ceia, em que Cristo, com o maior prodígio da sua humildade, e com o maior milagre da sua onipotência, manifestou aos homens qual era o extremo com que os amava.

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Mas a hora em que o Senhor passou deste mundo ao Padre não foi neste dia, senão no dia de sua Ascensão, quarenta e dois dias depois deste. Pois, se ainda lhe restavam a Cristo quarenta e dois dias para estar no mundo antes de subir ao Padre, como diz o evangelista que já era chegada a hora: Quia venit hora ejus? Eram tantos dias, e era uma só hora? Sim, porque todos estes dias em que o Senhor se havia de deter no mundo, eram dias de estar com os seus amados: Cum dilexisset suos, e, ainda que pela medida do tempo eram muitos dias, pela conta do seu amor era uma só hora: Hora ejus. Notai muito agora o cômputo destes mesmos dias, e reparai no que nunca reparastes. Desde a hora da Ceia até a hora em que Cristo subiu ao céu, passaram-se pontualmente mil horas, sem faltar nem sobejar uma só. E todos estes dias que medidos pelas rodas do tempo, faziam cabalmente mil horas, contadas pelo relógio do amor, que Cristo tinha no peito, era uma só hora. Por isso se chama: Hora ejus: hora sua, porque para o mundo e para o tempo eram mil horas, e para Cristo e para o seu amor era uma. E se o amor de Cristo de mil horas fazia uma só hora, vede quão certo é o que eu dizia, que, em vez de o tempo diminuir o amor, o amor diminuiu o tempo. De Jacó dizia a Escritura que, sendo sete os anos que serviu por Raquel, lhe pareciam poucos dias, porque era grande o amor com que a amava: Videbantur illi pauci dies prae amoris magnitudine (Gên. 29,20). Não seria Jacó tão celebrada figura de Cristo se também o seu amor não tivesse a propriedade de diminuir o tempo. Mas nesta mesma diminuição é necessário advertir que os anos que a Jacó lhe pareciam poucos dias não foram só sete, senão muitos mais, ou muito maiores. Assim como o gosto faz os dias breves, assim o trabalho os faz longos. A Abraão disse Deus que seus descendentes serviriam aos egípcios quatrocentos anos, sendo que serviram cem anos somente, porque o trabalho dobra e redobra o tempo, e cem anos de servir são quatrocentos anos de padecer. Do mesmo modo se hão de contar os anos de Jacó. Jacó serviu com tanto trabalho, de dia e de noite, como ele bem encareceu a Labão, não sendo os enganos e trapaças do mesmo Labão a menor parte do seu grande trabalho. Logo, assim como o amor de Jacó diminuía os anos por uma parte, assim o trabalho os acrescentava por outra, e, concorrendo juntamente o amor a diminuir e o trabalho a acrescentar os mesmos anos, já que eles se não multiplicassem tanto que fossem três vezes dobrados, ao menos haviam de ficar inteiros. Como podia logo ser que a Jacó lhe não parecessem anos, senão dias, e esses poucos? Não há dúvida que esta mesma que parece implicação é o maior encarecimento do amor de Jacó. O tempo fazia os anos, o trabalho multiplicava o tempo, mas o amor de Jacó, maior que o trabalho e maior que o tempo, não só diminuía os anos que fazia o tempo, senão também os que multiplicava o trabalho. Com o gosto de servir diminuía o amor uns anos, com o gosto de padecer diminuía os outros, e por isso, ainda que fossem anos sobre anos, e muitos sobre muitos, todos eles lhe pareciam dias, e poucos dias: Videbantur illi pauci dies. Muito estimara eu que estes dias do amor de Jacó, que a Escritura chama poucos, nos dissesse também a mesma Escritura quantos eram, ou quantos seriam. Mas dado — impossivelmente — que cada ano lhe parecesse um só dia, ainda o amor do figurado excede infinitamente ao da figura, e o de Jesus ao de Jacó. No tempo que diminuiu o amor de Cristo entra também o tempo da sua Paixão; e se o trabalho acrescenta e multiplica o tempo à medida do que se padece, quem poderá medir neste caso o tempo com o trabalho, e a duração do que o Senhor padecia com o

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excesso do que padeceu? Padeceu Cristo em sua Paixão, como provam todos os teólogos com Santo Tomás, mais do que padeceram nem hão de padecer todos os homens, desde o princípio até o fim do mundo. Os tormentos em si mesmos eram acerbíssimos, e fazia-os incomparavelmente maiores a delicadeza do sujeito, a viveza da apreensão, a tristeza suma, bastante ela só a tirar a vida, e, sobretudo, o conhecimento compreensivo da injúria infinita cometida contra Deus naquele e em todos os pecados do gênero humano. E quantos séculos de padecer vos parece que caberiam naquelas compridíssimas horas? Foram tão compridas, que bastou a duração delas para satisfazer pela eternidade das penas do inferno, que com a mesma duração se pagavam. E que sendo tão compridas, ou tão eternas aquelas horas, as reduzisse o amor de Cristo a uma só hora: Hora ejus? Oh! amor verdadeiramente imenso! Que as outras horas e dias parecessem ao amorosíssimo Senhor muito breves não é tão grande maravilha, porque eram horas de estar com os que tanto amava; mas que também as da Paixão, sendo de tão excessivas penas, as abreviasse igualmente o seu amor? Sim, e pela mesma causa. As outras eram breves, porque eram horas de estar conosco, e estas eram também breves, porque eram horas de padecer por nós. Não sofreu o amor que pudesse menos contra o tempo o gosto da paciência que o da presença: por isso, diminuiu igualmente as horas tanto o gosto do padecer pelos homens como o gosto de estar com eles. Uma e outra coisa compreendeu e declarou S. Paulo em uma só palavra, quando disse, falando da morte de Cristo: Ut pro omnibus gustaret mortem (5). Não diz que padeceu o Senhor a morte por todos, senão que a gostou: Ut gustaret. Esta palavra gustaret quer dizer gostar e provar, e por isso diz com grande energia que Cristo gostou a morte, porque o gosto com que a padeceu a abreviou de tal sorte, como se somente a provara. Excelentemente S. Anselmo, comentando as mesmas palavras: Ut gustaret, idest, horariam, et non longam, quasi ali quid gustando transiret: Quer dizer o Apóstolo — diz Anselmo — que padeceu o Senhor a morte com tanto gosto, como se a não padecera toda, e somente a tocara, e passara por ela: Quasi aliquid gustando transiret. E por isso, sendo de tantas horas, e tão longas, lhe pareceu de uma só hora: Horariam, et non longam. Notai o novo adjetivo horariam, formado sem dúvida do hora ejus de São João. E vede que remédio podia ser o do tempo para curar o nosso divino enfermo, se a força do seu mal, ou do seu e nosso bem era tão forte e tão aguda que, em vez de o tempo diminuir o amor, o amor foi o que diminuiu o tempo: Cum dilexisset, dilexit.

IV O segundo remédio do amor é a ausência. Muitas enfermidades se curam só com a mudança do ar; o amor com a da terra. E o amor como a lua que, em havendo terra em meio, dai-o por eclipsado. À sepultura chamou Davi discretamente terra do esquecimento: Terra oblivionis (Sl. 87, 13). E que terra há que não seja a terra do esquecimento, se vos passastes a outra terra? Se os mortos são tão esquecidos, havendo tão pouca terra entre eles e os vivos, que podem esperar, e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra causam tais efeitos, tantas léguas que farão? Em os longes, passando de tiro de seta, não chegam lá as forças do amor. Seguiu Pedro a Cristo de longe, e deste longe que se seguiu? Que aquele que na presença o defendia com a espada, na ausência o negou e jurou contra ele. Os filósofos definiram a morte pela ausência: Mors est absentia animae a corpore. (6) E

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a ausência também se há de definir pela morte, posto que seja uma morte de que mais vezes se ressuscita. Vede-o nos efeitos naturais de uma e outra. Os dois primeiros efeitos da morte são dividir e esfriar. Morreu um homem, apartou-se a alma do corpo: se o apalpardes logo, achareis algumas relíquias de calor; se tomastes daí a um pouco, tocastes um cadáver frio, uma estátua de regelo. Estes mesmos efeitos ou poderes têm a vice-morte, a ausência. Despediram-se com grandes demonstrações de afeto os que muito se amavam, apartaram-se enfim, e, se tomardes logo o pulso ao mais enternecido, achareis que palpitam no coração as saudades, que rebentam nos olhos as lágrimas, e que saem da boca alguns suspiros, que são as últimas respirações do amor. Mas, se tomardes depois destes ofícios de corpo presente, que achareis? Os olhos enxutos, a boca muda, o coração sossegado: tudo esquecimento, tudo frieza. Fez a ausência seu ofício, como a morte: apartou, e depois de apartar, esfriou. Ouvi o maior exemplo que pode haver desta verdade. Foi a Madalena ao sepulcro de Cristo na madrugada da Ressurreição, olhou, não achou o sagrado corpo, tornou a olhar, persistiu, chorou. E qual cuidais que era a causa de todas estas diligências tão solícitas? Diz, com notável pensamento, Orígenes, que não era tanto pelo que a Madalena amava a Cristo, quanto pelo que temia de si: Metuebat, ne amor Magistri sui in pectore suo frigesceret, si corpus ejus non inveniret, quo viso recalesceret (7) Sabia a Madalena, como experimentada, que a ausência tem os efeitos da morte: apartar e depois esfriar; e como se via apartada do seu amado, que é o primeiro efeito, temia que se lhe esfriasse o amor no coração, que é o segundo: Metuebat, ne amor Magistri sui in pectore suo frigesceret. Pois o amor da Madalena, tão forte, tão animoso, tão constante, tão ardente, o amor da Madalena canonizado de grande, engrandecido de muito: Quoniam dilexit multum (8), tão pouco fiava de si mesmo, que temesse esfriar-se? Sim, que tais são os poderes da ausência contra o mais qualificado amor. E como o coração se aquenta pelos olhos, por isso procurava com tanta diligência achar o corpo de seu Senhor, para que, com a sua vista, se tornasse a aquentar o amor, ou se não esfriasse sem ela: Si corpus ejus non inveniret, quo viso recalesceret. Estes costumam ser os efeitos da ausência, ainda nos corações mais finos, qual era o da Madalena, coração humano enfim. Porém, o coração de Cristo, humano e divino juntamente, ainda que, como humano, se aparta, como divino não se esfria. O fogo pode-se apartar, mas não se pode esfriar. Ao perto e ao longe, ou presente ou ausente, sempre arde igualmente, porque sempre é fogo. Poderá ser tão distante a ausência, que o tire da vista; mas nenhuma tão poderosa, que lhe mude a natureza. Tal o amor de Cristo — diz São Bernardo -quia nunquam et nusquam potuit non amare, qui amor est: Assim como o amor de Cristo não podia deixar de amar em nenhum tempo, porque é eterno, assim não pode deixar de amar em nenhum lugar ou distância, porque é amor. – O amor não é união de lugares, senão de vontades; se fora união de lugares, pudera-o desfazer a distância, mas como é união de vontades, não o pode esfriar a ausência. A ausência mais distante que se pode imaginar é a que hoje fez Cristo: Ut transeat ex hoc ad Patrem: ausência deste para o outro mundo. Todas as outras ausências, por mais distantes que sejam, sempre se fazem dentro do mesmo elemento, de uma parte da terra para a outra. A ausência de Cristo era tão distante, que excedia a esfera de todos os elementos, e passava da terra até o céu. Mas com a distância e a ausência serem tão excessivas, pôde a

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distância apartar os corpos, mas não pôde dividir os corações; pôde a ausência impedir a vista; mas não pôde esfriar o amor. Tão longe esteve a ausência com os seus longes de ser remédio para o amor de Cristo, e tão longe de causar os seus efeitos, que antes produziu os contrários. Os efeitos da ausência, como vimos, são dividir e esfriar; e a ausência de Cristo, em vez de dividir, uniu, e em vez de esfriar, acendeu. Em vez de dividir, uniu as pessoas, e em vez de esfriar, acendeu o amor. Quando São Paulo, antes de ser santo nem Paulo, caminhava furioso para Damasco, as vozes com que Cristo o derrubou e converteu, foram: Saule, Saule, quid me persequeris (At. 9, 4): Saulo, Saulo, por que me persegues? — Sucedeu este grande caso no ano vinte do imperador Tibério, dois anos depois da subida de Cristo ao céu. Pois, se Cristo estava no céu — pergunta Santo Agostinho — se estava no céu, onde não podiam chegar as fúrias de Saulo, nem os poderes das provisões que levava da sinagoga, como se queixa o mesmo Cristo de que Saulo o perseguia? Se dissera que perseguia a seus discípulos, isso é o que refere o texto: Saulus autem adhuc spirans minarum, et caedis in discipulos Domini (9). Mas dizer que Saulo, o qual estava na terra, o perseguia a ele, estando no céu? Sim, responde o mesmo Santo Agostinho, porque, ainda que o Senhor estava tão distante dos discípulos, quanto vai do céu à terra, estava contudo tão unido com eles, que os não distinguia de si. Se os distinguira de si, dissera: Por que persegues a meus discípulos? Mas, porque os não distinguia de sua própria pessoa, por isso disse: Por que me persegues a mim: Quid me persequeris? Bem se encaminhava este texto a concluir o que eu pretendo provar, se não tivera contra si uma grande réplica. Quando no Horto vieram prender a Cristo os ministros dos Príncipes dos Sacerdotes, e disseram que buscavam a Jesus Nazareno, apontando o Senhor para os discípulos que o acompanhavam, disse: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire (Jo. 18,8): Se me buscais a mim, deixai ir a estes. — Agora entra o meu reparo. Pois, se Cristo no Horto faz tão grande distinção de si aos seus discípulos, quando está no céu, por que se não distingue deles? Porque no Horto estava ainda presente, no céu estava já ausente, e o primeiro efeito que causou a ausência em Cristo foi uni-lo mais com os mesmos de quem se ausentara. Quando estava presente, Cristo e os discípulos eram eu e estes: Si me quaeritis, sinite hos abire; porém, depois que esteve ausente, já não havia eu e estes, senão eu; já não havia: Por que os persegues a eles, senão a mim: Quid me persequeris? E se a ausência com efeito tão contrário a si mesma, em vez de dividir, uniu as pessoas, também em vez de esfriar, acendeu o amor. Depois da Ceia deste dia despediu-se o divino Mestre amorosamente dos mesmos discípulos, e, vendo-os tristes por sua partida, consolou-os com estas palavras: Expedit vobis ut ego vadam: si enim non abiero, Paraclitus non veniet ad vos; si autem abiero, mittam eum ad vos (Jo. 16,7): Discípulos meus, não vos desconsole a minha partida: ausento-me de vós, mas adverti que a vós vos convém e importa muito esta mesma ausência, porque, se eu não for para o céu, não virá o Espírito Santo; porém se for, como vou, eu vo-lo mandarei de lá. — Todos os teólogos concordam, e é sem dúvida, que tanto podia vir o Espírito Santo ausentando-se Cristo da terra, como não se ausentando; que conseqüência tem logo haver de vir se Cristo se ausentasse e se fosse para o céu, e não haver de vir se se não ausentasse? Ninguém ignora que o Espírito Santo essencialmente é amor; mas em que amor se viu jamais tal conseqüência? Ir-se o amor quando se vai o amante, esta

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é a conseqüência ordinária do que cá chamamos amor; mas haver-se de ir o amante para que venha o amor, e não haver de vir o amor, se não se for e se não se ausentar o amante? Só na ausência e no amor de Cristo se acha tal conseqüência. Assim o prometeu o Senhor, e assim o cumpriu. Partiu-se, foi para o céu, e dentro em poucos dias, ficando lá a pessoa do amante, veio cá em pessoa o seu amor. Mas como veio? Não menos intenso, não menos ardente, não menos abrasado que em forma de fogo. Bem dizia eu logo que, em vez da ausência lhe esfriar o amor, o havia de acender mais. O mesmo Cristo o tinha já dito muito tempo antes. Falava deste fogo de seu amor, e disse que ele viera pôr fogo à terra, e que nenhuma coisa mais desejava senão que se acendesse: Ignem veni mittere in terram, et quid volo, nisi ut accendatur? (10) Pois, se o Senhor desejava tanto que o fogo de seu amor se acendesse na terra, por que o não acendeu enquanto esteve nela? Porque é propriedade maravilhosa deste fogo divino aguardar pela ausência para se acender. As mesmas palavras, se bem se consideram, o dizem: Ignem veni mittere in terram. Não diz que veio para trazer o fogo à terra, senão para o mandar; logo sinal era que se havia de ausentar primeiro, e tornar para o céu, donde o mandasse. E isto é o que disse aos discípulos em próprios termos: Si autem abiero, mittam eum ad vos: Se eu me for, se eu me ausentar de vós, então vos mandarei o fogo do meu amor, ou o meu amor em fogo, para que vejais quanto vos convém esta minha ausência, e para que não receeis que ela, como costuma, me haja de esfriar o amor, porque antes o há de intender e acender mais. O amor da Madalena, que ainda era imperfeito, buscava o remédio da vista para se não esfriar: Quo viso recalesceret; porém, o amor perfeitíssimo, qual era o do coração de Cristo, não depende do ver para amar, antes, quando a ausência e distância lhe impedem a vista, então se reconcentra e arde mais. Os olhos são as frestas do coração, por onde respira, e daqui vem que o coração na presença, em que tem abertos os olhos, por eles evapora e exala os afetos; porém, na ausência, em que os têm tapados pela distância, que lhe sucede? Assim como o vaso sobre o fogo, que, tapado e não tendo por onde respirar, concebe maior calor e o reconcentra todo em si, e talvez rebenta, assim o coração ausente, faltando-lhe a respiração da vista, e não tendo por onde dar saída ao incêndio, recolhe dentro em si toda a força e ímpeto do amor, o qual cresce naturalmente, e se acende e adelgaça, de sorte que, não cabendo no mesmo coração, rebenta em maiores e mais extraordinários efeitos. Tudo o que acabo de dizer é filosofia não minha, senão do mesmo Cristo, e nesta mesma hora, declarando aos mesmos discípulos quais haviam de ser os efeitos da sua ausência. Na presença de seu soberano Mestre obravam os discípulos aquelas prodigiosas maravilhas com que assombravam o mundo, e cuidavam agora, entristecidos, que com a ausência do sol ficariam destituídos de todas estas influências. — Mas não há de ser assim, diz o Senhor; cada um de vós não só há de fazer as mesmas obras que dantes fazia, nem só tão grandes como as minhas, senão ainda maiores, e isto não por outra razão, senão porque me ausento: Opera quae ego facio, et ipse faciet, et majora horum faciet: quia ego ad Patrem vado. (11) Esta última cláusula: Quia ego ad Patrem vado, é digna de sumo reparo. — De maneira, Senhor, que porque ides para o Padre, e porque vos ausentais de vossos discípulos, por isso hão eles de fazer maiores obras que as suas, e maiores também

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que as vossas? Porventura haveis deser mais poderoso no céu, do que éreis na terra? Não, responde o divino Amante. Não hão de experimentar esta diferença meus discípulos, porque lá hajam de ser maiores as jurisdições do meu poder, senão porque hão de ser maiores os efeitos do meu amor. Porque me vou: Quia vado, por isso hão de ver o que pode comigo a ausência; e porque vou para tão longe, ad Patrem, por isso hão de ver o que obram em mim as distâncias. Os longes só hão de servir de mais os favorecer, de mais os honrar, de mais os estimar, porque o meu amor todo é estimação, e o preço da estimação são os longes: Procul, et de ultimis finibus pretium ejus. (12) Com razão chamei sol a Cristo nesta ocasião. O profeta chamou-lhe Sol de Justiça, e eu chamo-lhe Sol da Ausência. Quando a lua se mostra oposta ao sol no seu ocaso, então está maior e mais cheia, e faz em sua ausência outro novo dia. Mas donde lhe vêm à lua estas enchentes de luz e de resplendores? Sábia e discretamente Apuléio: Quanto longius abit a sole, tanto largius illuminatur; pari incremento itineris et luminis: Quando a lua está mais longe do sol, então se vê mais alumiada, porque tão longe estão os longes do sol de lhe diminuir a luz, que, antes, à medida da distância lhas comunica maiores. — E se estes são os efeitos, ou os primores do sol quando se ausenta, quais serão os daquele Senhor que criou o sol? Já ele o tinha dito de si pelo profeta Jeremias: Putasne Deus e vicino ego sum, et non Deus de longe (Jer. 23,23)? Cuidais que eu só sou Deus de perto, e não Deus de longe? — Enganai-vos. De perto sou Deus, e de longe Deus; antes, do modo que pode ser, mais Deus ainda de longe do que de perto, porque de perto mostro a minha presença, e de longe a minha imensidade. Tal o amor do nosso Deus, ou o nosso Deus do amor. Aparta-se e ausenta-se de nós nesta hora: Ut transeat; a distância é tão grande quanto vai da terra ao céu: Ex hoc mundo ad Patrem; mas as gages da sua presença não se diminuem, antes crescem: Pari incremento itineris et luminis, porque, quanto são mais remotas as distâncias da sua ausência, tanto são maiores e mais intensos os afetos e efeitos de seu amor: Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.

V O terceiro remédio do amor é a ingratidão. Assim como os remédios mais eficazes são ordinariamente os mais violentos, assim a ingratidão é o remédio mais sensitivo do amor, e juntamente o mais efetivo. A virtude que lhe dá tamanha eficácia, se eu bem o considero, é ter este remédio da sua parte a razão. Diminuir o amor o tempo, esfriar o amor a ausência, é sem-razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão o aprova, o persuade, e parece que o manda. Que sentença mais justa que privar do amor a um ingrato? O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do mais tíbio amor, mas merecedor de todo o ódio. Finalmente o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E

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ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver? O exemplo que temos para justificar esta razão ainda é maior que os passados. O primeiro ingrato depois de Adão foi Caim: ingrato a Deus, ingrato aos pais, ingrato ao irmão, e a toda a natureza ingrato. Matou a Abel, e, morto ele, parece que ficava segura a ingratidão de ter a correspondência que merecia no coração ofendido; mas vede o que diz Deus ao mesmo Caim: Vox sanguinis fratris tui clamat ad me de terra (Gên. 4,10): A voz do sangue de teu irmão desde a terra, onde o derramaste, está clamando a mim e pedindo vingança. — Notável caso! Três razões acho em Abel, que desafinam muito nos meus ouvidos estas suas vozes. Ser irmão, ser santo e ser morto. Se era morto, como brada? Onde está a insensibilidade da morte? Se era santo, como não perdoa? Onde está o sofrimento da virtude? Se era irmão, como pede vingança? Onde está o afeto da natureza? Aqui vereis quão poderosa é a ingratidão, para trocar em aborrecimento ainda o mais bem fundado amor. Aonde achará amor um ingrato, se nem em um irmão achou piedade, nem em um santo perdão, nem em um morto silêncio? É tão justa e tão certa paga da ingratidão o aborrecimento, que porque houve um ingrato homicida, houve logo um aborrecimento ressuscitado. E se a ingratidão ressuscita o aborrecimento até nos mortos, como achará amor nos vivos? A natureza e a arte curam contrários com contrários. Sendo, pois, a ingratidão o maior contrário do amor, quem duvida que este terceiro remédio seria também o último, e o mais presente e eficaz, ou para extinguir de todo, ou, quando menos, para mitigar o amor de Cristo? Assim o ensinam os aforismos da arte, assim o confirmam as experiências da natureza, mas não foi assim. É a ingratidão com o amor, como o vento com o fogo: se o fogo é pequeno, apaga-o o vento; se é grande, acende-o mais. Mais ofendido foi Cristo que Abel, maiores ingratidões usaram com ele os homens que a de Caim, mas nenhuma, nem todas juntas foram bastantes para lhe remitirem um ponto o amor, nem vivo, nem morto: Cum dilexisset suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos. Aquelas palavras: qui erant in mundo: os seus que estavam no mundo -parecem supérfluas, e que antes limitam do que encarecem o amor. Cristo, Senhor e Redentor nosso, como Senhor e Redentor de todos os homens, não só amou aos que estavam no mundo, senão também aos que não estavam. Não só amou os presentes, senão os passados e os futuros, porque por todos os que eram, foram e haviam de ser, deu o preço de seu sangue. Fez, porém, expressa menção o evangelista só dos presentes e dos que estavam no mundo: Suos qui erant in mundo, porque estes foram os mais ingratos. Os futuros ainda não eram, os passados, pela maior parte, não conheceram a Cristo; os presentes conheceram-no, ouviram sua doutrina, viram seus milagres, receberam seus benefícios, e como lhe pagaram? Deixando-o, negando-o, vendendo-o, crucificando-o. Pode haver correspondências mais desiguais, mais contrárias, mais ingratas? Não pode. Mas não podendo as ingratidões ser maiores, tiveram tão pouco poder contra o amor de Cristo, que — assim como dissemos dos outros remédios — em vez de as ingratidões o diminuírem, o acrescentaram, e em vez de serem remédio para aborrecer, foram motivo para mais amar. Quando os filhos de Israel caminhavam pelo deserto para a Terra de Promissão, acompanhava-os milagrosamente uma penha, da qual saíam ribeiras de água também sucessiva, com que o povo matava a sede. Fala deste milagre S. Paulo, e diz assim: Bibebant de consequente eos petra, petra autem erat Christus (1 Cor. 10,

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4): Bebiam da pedra que os seguiam, e esta pedra era Cristo. — Se fora no passo em que estamos, não era muito que Cristo se convertesse em pedra, porque não há coisa que tanto seque e endureça como a ingratidão. Mas que achou São Paulo nesta pedra milagrosa, para dizer que era Cristo? O mesmo texto que conta a história no-lo dirá: Percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae. (13) Aquela pedra era pederneira: silicem; feriu-a Moisés duas vezes com a vara: Percutiens virga bis silicem; e o que a pedra ferida brotou de si foi grande cópia de água: Egressae sunt aquae largissimae. Daqui tirou a sua conseqüência o apóstolo. O natural da pederneira, quando lhe dão golpes, é lançar de si faíscas de fogo; e pedra — diz São Paulo — que ferida uma e outra vez, em vez de responder com fogo, se desfaz em água, esta pedra não era pedra, era Cristo: Petra autem erat Christus. Ponhamo-nos agora com o pensamento no Cenáculo de Jerusalém, e veremos este mesmo milagre, não só repetido, mas verificado. Dois golpes deram hoje naquela pedra divina; com dois golpes feriram hoje o coração de Cristo dois homens, de quem ele devera esperar, e a quem merecia bem diferente tratamento. Um golpe lhe deu Judas, que o vendeu, outro golpe lhe deu Pedro, que o negou. E que aconteceu? Oh! milagre de amor verdadeiramente divino! Em lugar de sair da pedra fogo, saiu água: Egressae sunt aquae largissimae; em lugar de sair fogo — castigo próprio de infiéis — com que os abrasasse, o que saiu foi água, com que, por suas próprias mãos, lhes lavou os pés: Misit aquam in pelvim, et caepit lavare pedes discipulorum (14). Notai agora, e notai muito, que, lavando o Senhor os pés a todos os discípulos, só de Judas e de Pedro faz menção neste ato o evangelista. De Judas: Cum diabolus jam misisset in cor; ut traderet eum Judas, surgit a caena, et ponit vestimenta sua (15); de Pedro: Misit aquam in pelvim, et caepit lavare pedes discipulorum: venit ergo ad Simon Petrum (16). — Pois, Senhor, vós que tudo sabeis e estais vendo, vós os pés de Judas? Vós os pés de Pedro? Não são os pés de Pedro aqueles pés covardes que vos hão de seguir de longe? Não são os pés de Pedro aqueles pés desleais que o hão de levar ao paço, onde vos há de negar três vezes? Os pés de Judas não são aqueles pés infiéis que deste mesmo lugar hão de partir a vender-vos? Os pés de Judas não são aqueles pés traidores que hão de guiar vossos inimigos a vos prender no Horto? Pois, diante de pés tão indignos estais vós prostrado de joelhos? Estes pés lavais com vossas próprias mãos e com a água que sobre essa água estão derramando vossos olhos? Sim, que não fôreis vós, Deus e Senhor meu, quem sois, nem o vosso amor fora amor, nem fora vosso, se o puderam mudar ingratidões ou diminuir agravos. Porque nesses dois homens andou a ingratidão mais refinada, por isso com eles se mostra o vosso amor mais fino. E não só mais fino no ato do lavatório dos pés, que foi comum a todos os discípulos, senão mais fino também nos favores particulares com que a estes dois mais ingratos singularizou entre todos vosso amor. Se bem repararmos antes e depois da morte de Cristo, acharemos que o mais favorecido na Ceia foi Judas, e o mais favorecido na Ressurreição foi Pedro. Na Ceia todos os discípulos comeram igualmente, e só a Judas fez o Senhor um mimo particular: Et cum intinxisset panem, dedit Judae (17). Na Ressurreição a todos igualmente mandou a nova, e só a Pedro nomeou em particular: Dicite discipulis ejus, et Petro (18). E por que só a Judas e só a Pedro estes favores particulares? Porque só Judas e só Pedro tiveram particularidade na ingratidão. Na Ceia o que mais ofendeu a Cristo foi Judas; na Paixão o que mais o ofendeu foi Pedro. E como

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o amor de Cristo das maiores ingratidões faz motivos de mais amar, foram estes dois os mais favorecidos, porque foram estes dois os mais ingratos. Se o amor de Cristo fora como o nosso, haviam de ser as ingratidões motivos de aborrecer; mas como o seu amor era o seu, foram incentivos de mais amar, e razões sobre toda a razão de mais bem fazer. Ora, eu buscando a causa destes contrários efeitos — que todos, creio, desejam saber — e filosofando sobre a diferença deles, acho que toda procedia da qualidade singular do coração de Cristo. Era tal a qualidade daquele soberaníssimo coração que, metidas nele as ingratidões dos homens, e estiladas com o fogo do seu amor, o estilado das mesmas ingratidões vinham a ser favores e benefícios. O mesmo Cristo se queixava por boca de Davi de que, semeando benefícios nos corações dos homens, de grandes benefícios colhia maiores ingratidões: porém o seu amor — que é o que agora digo — estilando essas mesmas ingratidões dentro no coração, de grandíssimas ingratidões, tirava maiores benefícios. Já o vimos nos exemplos de Cristo vivo e de Cristo ressuscitado: vejamo-lo agora, com maior assombro, no de Cristo morto. Morto o Redentor na Cruz, abriram-lhe com uma lança o peito, e saiu dele sangue e água: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19,34). Mas que sangue foi este em um corpo que o tinha derramado todo, e que água em um morto, morto a sede? Nem a água, nem o sangue eram o que tinham sido. São Cirilo Jerosolimitano diz que o sangue fora o sangue que tomaram sobre si os que procuraram a morte do Senhor: Sanguis ejus super nos (19), e que a água fora a água com que Pilatos lavou as mãos quando o condenou ou entregou à morte: Aqua lavit manus coram populo (20). As palavras do santo são breves, mas expressas: Erant haec duo de latere, judicanti aqua, clamantibus vero sanguis. E como esta injustiça foi tão ímpia e bárbara, e a ingratidão tão desumana e tão atroz, não é muito que o Senhor a sentisse como merecia, e que — ao modo que se diz da água do dilúvio: Tactus dolore cordis intrinsecus (21)— a mesma água e o mesmo sangue lhe chegassem ao coração, e se conservassem nele até a morte. Isto é o que tinham sido aquele sangue e aquela água, quando entraram no coração de Cristo. E quando saíram, que foram? Tertuliano, S. Crisóstomo, Santo Agostinho, e o comum sentir dos Padres concordam em que o sangue era o Sacramento da Eucaristia, e a água o Sacramento do Batismo, dos quais se formou a Igreja, saindo do lado de Cristo como Eva do lado de Adão. Deixo as autoridades, porque são sabidas. Pois se este sangue e esta água, quando entraram no coração de Cristo, foram os dois instrumentos de sua morte, como agora, quando saem do mesmo coração, são os dois elementos de nossa vida? Porque esta é a qualidade soberana do coração de Cristo, e assim se mudam e trocam nele as ingratidões dos homens. Os agravos se trocam em benefícios, as injustiças em misericórdias, os sacrilégios em sacramentos, e o consumado da ingratidão no estilado do amor: Contumelia invertitur; disse Teofilato. Mas qual foi o motivo que teve o mesmo amor para sair com este prodígio? Foi, porventura, a fé do centurião, que, reconhecendo a divindade do crucificado confessou publicamente que era Filho de Deus: Vere Filius Dei erat iste (22)? Foi, porventura, a contrição e penitência dos que tornavam do Calvário para Jerusalém batendo nos peitos: Percutientes pectora sua, revertebantur (23)? Não. O motivo que

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tomou o amor para converter nos dois maiores benefícios as duas maiores ingratidões foi outra ingratidão maior que todas. A maior de todas as ingratidões que os homens usaram com Cristo, é, sem controvérsia, que foi a lançada. Porque as outras foram cometidas contra Cristo vivo, e a lançada, não só contra Cristo morto, mas morto pela salvação dos mesmos homens, que assim lhe pagaram o morrer por eles. Por isso o mesmo Senhor, naquele salmo em que se referem todos os tormentos da Paixão, só da lançada pediu a Deus o livrasse: Erue a framea, Deus, animam meam (24), não pela dor que houvesse de sentir o corpo, que já estava morto, mas pelo horror que já lhe feria e penetrava a alma, na apreensão de uma atrocidade tão feia e tão ingrata. E essa foi a razão por que não disse que lhe livrasse da lança o seu corpo, senão nomeadamente a sua alma: Erue a framea animam meam, Deus. Sendo, pois, esta a mais cruel e desumana ingratidão que jamais se cometeu nem podia cometer no mundo, que não só a convertesse o coração de Cristo no maior e mais consumado benefício, mas que esperasse com o peito fechado até que a lança, como diz São Crisóstomo, fosse a chave que lho abrisse, por que pela mesma ferida nos comunicasse sem nenhuma reserva os últimos tesouros de sua graça? Não há dúvida que, assim como da parte da ingratidão foi o maior excesso a que podia chegar a fereza humana, assim da parte do amor foi o maior extremo com que a podia corresponder a benignidade divina. E se este é o modo com que Cristo vinga os agravos, e esta a moeda com que paga as ingratidões, como podia sarar o seu amor com este remédio, ou deixar de amar os seus, por mais que lhe fossem ingratos: Suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos?

VI Não havendo aproveitado até agora nem o remédio natural do tempo, nem o artificial da ausência, nem o violento da ingratidão, antes, tendo mostrado a experiência que com os remédios cresce a enfermidade, e com os contrários se aumenta, como já disse Ricardo Vitorino: Quia amoris incendium ex alterutra contradicitone magis exaestuat (25), também eu parara aqui, e deixara de aplicar ou explicar o quarto remédio, se ele não fora tão poderoso e superior na eficácia a todos, que sobre a maior desconfiança pode dar esperanças da melhoria. É pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar: o melhorar de objeto. Dizem que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga. Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito, assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que, se acaso se encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afetos como a luz entre as qualidades. Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas. Grande luz era o Batista antes de vir Cristo ao mundo; apareceu Cristo, que era a verdadeira luz: Erat lux vera, quae illuminat omnem hominem (26), e que lhe sucedeu ao Batista? Logo deixou de ser luz: Non erat ille lux (27). O mesmo lhe sucede ao amor, por grande e extremado que seja. Em aparecendo o maior e melhor objeto, logo se desamou o menor.

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Entre as injustiças que el-rei Saul cometeu contra Davi, a mais sensível e a mais sentida dele foi negar-lhe a princesa Micol, que era o preço da vitória do gigante, e não só negar-lha, que fora menor injúria, senão dá-la a seu despeito a Faltiel. Dissimulou esta dor Davi, até que se viu com a coroa de Israel na cabeça, e a primeira coisa que fez, ou a primeira condição com que aceitou a mesma coroa, foi que Micol lhe fosse logo restituída. — Sofriam-se estes câmbios na moeda corrente de cada dia. — Conta o caso a Escritura, e refere uma circunstância muito digna de reparo: Misit ergo Isboseth, ET tulit eam a viro suo Phaltiel: sequebaturque eam vir suus, plorans usque Bahurim (2 Rs. 3,15 s). Quer dizer que mandou Isboset, filho de Saul, tirar a Faltiel sua mulher Micol, e que ele a acompanhou chorando até o lugar onde se havia de entregar, e não diz mais. O que agora noto é que neste apartamento chorasse Faltiel, e não chorasse Micol. Para Micol chorar, bastava ver chorar a Faltiel; e quando não bastasse, concorriam nela outras duas razões naturais, não só para chorar, senão para chorar mais. A primeira, porque nas despedidas costumam enternecer-se mais os que vão que os que ficam. Assim o temos por exemplo em Davi, quando se apartou de Jônatas: Fleverunt pariter, David autem amplius (28). A segunda, por ser Micol mulher, e mulher que se apartava de seu marido, segundo aquela regra da natureza: Uxor amans flen tem, flens acrius ipsa tenebat (29). Pois, se Micol nesta ocasião tinha tantas razões de chorar, e se apartava de Faltiel, e se apartava para sempre — que era outra nova razão — por que não chorou nem uma só lágrima? Não chorou, porque já não amava, e não amava, porque melhorou de objeto. Faltiel chorava, porque perdia a Micol, e Micol não chorava, porque trocava a Faltiel por Davi. Enquanto Micol vivia com Faltiel, não podemos duvidar que o amasse, porque Micol era princesa, e o amor era obrigação; porém, tanto que lhe falaram nas bodas de el-rei Davi, mudou logo de afeição, porque melhorou de objeto. E se a melhoria do objeto é tão poderoso e eficaz remédio para mudar de amor, não digo eu quão poderoso seria, senão quão onipotente no nosso caso, em que a diferença ou a competência não era de homem a homem, senão de homens a Deus, nem de Faltiel a Davi, senão de Pedro e João ao Eterno Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem. Comparai-me o Criador do céu e da terra com os pescadores de Tiberíades; o adorado dos anjos com os desprezados do mundo; o infinito, o imenso, o incompreensível, o que só é, e dá o ser a tudo, com os que verdadeiramente eram nada, como somos todos, e vereis quão temerária esperança seria, e quão louco pensamento o de quem cuidasse que à vista de tal objeto podia ter lugar, não digo o amor, mas nem a memória dos homens. Contudo o evangelista, depois de referir esta diferença e de ponderar a mesma desigualdade, dizendo: Ex hoc mundo ad Patrem, ainda persiste em afirmar que os homens foram não só amantes, senão os amados: In finem dilexit eos. Cuidava eu, e tinha infinita razão para cuidar e para crer que, quando o evangelista disse que Cristo se partia para o Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, o que havia de continuar a dizer em boa conseqüência, era: In finem dilexit eum. Enquanto esteve no mundo, amou aos homens: Cum dilexisset suos qui erant in mundo; porém no fim, em que se partiu do mundo para o Padre: Ex hoc mundo ad Patrem, então, com a mudança e melhoria do objeto, e tal objeto, também mudou e melhorou de amor, e não os amou a eles, senão a ele: In finem dilexit eum. Assim o cuidava eu, e sem injúria nem agravo do amor dos homens; mas o evangelista, falando da despedida dos homens e da partida para o Padre, o que diz, com assombro da razão e pasmo do nosso mesmo juízo, é que o

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Padre foi o fim da jornada, porém os homens o fim do amor. O Padre, o fim da jornada: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; e os homens, o fim do amor: In finem dilexit eos. Assim o disse S. João, e assim o dizem todas as palavras e ações do amorosíssimo Senhor nesta mesma hora da sua partida. Viu tristes o divino Mestre aos discípulos, como era justo que estivessem em tal ocasião e tão precisa, estranhando-lhes a tristeza, disse: Si diligeritis me, gauderetis utique, quia vado ad Patrem, quia Pater major me est (Jo. 14, 28): Se vós, discípulos meus, me amáreis, havíeis-vos de alegrar com a minha ida, porque vou para meu Padre, que é maior que eu. Parece que da tristeza neste caso não se inferia bem o não amar. Antes, Senhor, porque os discípulos vos amam, por isso sentem vossa partida, e os entristece vossa ausência. Não -diz o divino Mestre -já eu lhes disse, e dei por razão, que o Padre para onde vou é maior que eu: Quia Pater major me est. E sendo a minha partida para melhorar tanto de estado e de objeto, se eles me amaram verdadeira e desinteressadamente, haviam de poder mais as minhas melhoras para os alegrar, que a minha ausência para os entristecer. Assim é em lei do perfeito amor. Mas, pouco depois de o mesmo Senhor ensinar e seguir este alto ditame, chega ao Horto, despede-se ultimamente dos mesmos discípulos, e foi tal o extremo da sua tristeza, que sem encarecimento lhes disse que era bastante a lhe tirar a vida: Tristis est anima mea usque ad mortem (30). Pois, se os discípulos se haviam de alegrar nesta despedida, porque seu Mestre e Senhor vai para o Padre, por que se não alegra também o mesmo Senhor, antes se entristece com tal extremo? Não vai para o Padre, que é maior? Sim. Não vai para melhorar tanto de estado e de objeto? Sim. Pois, por que não são bastantes estas melhoras para o alegrar, e basta a ausência dos homens para o entristecer? Por isso mesmo e pela mesma regra do verdadeiro amor. Poder mais a minha ausência para entristecer os discípulos, do que as minhas melhoras para os alegrar, é amarem-se eles a si; mas poderem menos as minhas melhoras para me alegrar, do que a sua ausência para me entristecer, é amá-los eu a eles. O que neles é tristeza, para ser amor havia de ser alegria, e o que em mim parece que havia de ser alegria, porque é amor, é tristeza. E, sendo estes dois afetos, de alegria e tristeza, tão contrários entre si, e os objetos de um e outro tão infinitamente desproporcionados quanto vai do Padre aos homens, que à vista de uma razão tão imensa de alegria tenha ainda lugar e peso a tristeza, e que no gosto e alvoroços de ir ao Padre, se não afogue, como em um mar ou dilúvio, o sentimento de deixar os homens? Só no coração imudável de um Homem-Deus se podia achar tal constância, e só no seu amor tal firmeza. Mas apertemos bem o ponto e o texto em todo o rigor de Teologia. A alma de Cristo, Senhor nosso, nesta vida, e desde o instante de sua Encarnação, sempre viu a Deus, e sempre foi sumamente bemaventurada, sem haver momento algum em que deixasse de o ser. Como podia logo a mesma alma, e no mesmo tempo, estar triste, e com tanto extremo triste: Tristis est anima mea usque ad mortem? Os teólogos, com Santo Tomás, declarando como isto podia ser, distinguem na alma, posto que não tenha partes, uma como parte superior, que é a intelectual, e outra inferior, que é a sensitiva. E deste modo, dividida de si para consigo mesma, a alma de Cristo, no mesmo tempo podia estar — e estava — alegre e triste juntamente: alegre na parte superior, e sumamente alegre, como bem-aventurada, e triste, na parte inferior, e sumamente triste, como tão desconsolada e afligida. Vistes o ar coberto e cerrado de nuvens grossas e espessas que rebatem os raios do sol totalmente, e não

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deixam lugar à luz a que se nos comunique? Neste caso a parte superior do mesmo ar, e que olha para o céu, está toda clara e alegre, e a parte inferior, que cerca a terra, toda escura e triste, e não em diversos tempos, senão no mesmo. Pois, da mesma maneira, e no mesmo tempo, a alma de Cristo, pela parte superior, como gloriosa, estava sumamente alegre, e pela parte inferior, como afligida e tão afligida, sumamente triste. Estes são os afetos e efeitos contrários que couberam na alma de Cristo, Senhor nosso, enquanto compreensor e viador juntamente; e os mesmos ajuntou o amor na mesma alma de Cristo só enquanto viador, não sei se com maior milagre. O partir para o Padre, e o apartar-se dos homens, ambos foram atos de viador; e sendo os objetos tão infinitamente diversos e desiguais, para que a melhoria do primeiro não eclipsasse os efeitos do segundo, que fez o amor? Ou partiu a alma do amante que se partia, dando uma parte ao Padre outra aos homens, ou a deu toda aos homens e toda ao Padre, sem a partir, toda alegre, porque ia para ele, e toda triste, porque nos deixava a nós. Lá disse a sutileza saudosa de Santo Agostinho, no apartamento de um seu amigo, que só lhe ficara ametade da alma, e a outra ametade se partira com ele, e que, vendo-se assim meio vivo e meio morto, tinha horror de si mesmo. Mas deste dito ou encarecimento se retratou depois o mesmo Santo Agostinho, e com razão, porque só do amor de Cristo, e de quando se apartou dos seus amados se podia dizer ou considerar com verdade. Assim o mostrou a experiência na mesma hora em que declarou aos discípulos a tristeza da sua alma. Apartou-se o Senhor deles para orar ao Padre, sempre com o mesmo nome do Padre na boca: Abba, Pater (Mc. 14, 36), e notam os evangelistas que três vezes orou, e três vezes veio buscar os discípulos: Iterum abiit, et oravit tertio (31), diz S. Mateus; Et venit tertio, et ait illis (32), diz S. Marcos. De sorte que andava o Senhor, no mesmo tempo da oração, vindo do Padre para os discípulos, e indo dos discípulos para o Padre, e tantas vezes dos discípulos para o Padre, como do Padre para os discípulos. Agora conheço, Amante divino, com quanta razão duvidei se o vosso amor vos dividira a alma entre o Padre e os homens, ou a dera toda a ele, e toda a eles. Quando vos vejo ir para o Padre três vezes, e tornar para os homens três vezes, não só me parece que está dividida a vossa alma, mas dividida, que é mais, em partes iguais. Porém, quando ouço o sentimento do que dizeis em uma parte, e a dor do que estranhais na outra, não posso duvidar que falais com toda a alma, e que toda a leva o vosso amor quando ides, e toda a traz quando tornais. Mas, como pode ser que seja toda e a mesma, sendo os caminhos tão diversos e os termos tão opostos? Quando vos apartastes dos discípulos para orar ao Padre, diz S. Lucas que a distância foi um tiro de pedra: Quantum jactus est lapidis (Lc. 22,41).E se víssemos que uma pedra por si mesma já subia para cima, e já tornava para baixo, que diríamos? Fundamento tínhamos para dizer que esta pedra tinha dois centros. Quereis logo, Amante divino, ou dai-nos licença para que cuidemos e digamos o mesmo de vós? Quando ides para o Padre, diremos que um centro vosso é o Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; e quando vindes para os homens, diremos que outro centro também vosso são os homens: In finem dilexit eos. Não sei se me atreva a dizer tanto; só digo que tão pouco como isto obrou, e tão pouco pode a melhoria do objeto para mudar ou diminuir o amor de Cristo. E para que concluamos este discurso, como os outros, com efeito contrário, acrescento que, sem embargo de ser o Padre tão infinitamente maior e melhor objeto, tão fora

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esteve o objeto de render e levar a si o amor, que antes o amor rendeu e levou a si o objeto. E de que modo? Fazendo que o mesmo Padre, que havia de ser o objeto, só amado, fosse ele também amante dos homens. E quando os homens parece que haviam de perder o amor do Filho que se partia, não só conservaram inteiro o amor do mesmo Filho, mas adquiriram de novo o amor do Padre. Ouvi e pasmai. O amor com que o Padre e o Filho se amam é de tal qualidade, que assim como são a mesma coisa por natureza, são também a mesma coisa por amor. E quando o Filho se partiu dos homens para o Padre, que sucedeu? Cresceu esta mesma união de amor, e se multiplicou de tal sorte, que não só Cristo e o Padre entre si, senão Cristo, o Padre e os homens todos ficaram a mesma coisa. Nem crer, nem imaginar se pudera tal extremo de união se o mesmo Cristo o não declarara, como declarou na mesma hora. Despedindo-se o Senhor dos discípulos, estando ainda à mesa depois da Sagrada Ceia, fez esta oração a seu Padre: Non pro eis rogo tantum, sed et pro eis, qui credituri sunt per verbum eorum in me, ut omnes unum sint, sicut tu Pater in me, et ego in te, ut et ipsi in nobis unum sint (Jo. 17,20 s). Quer dizer: Não só vos rogo, Pai meu, por estes poucos discípulos que tenho presentes, senão por todos aqueles que, por meio da sua doutrina, hão de crer em mim — que são todos os cristãos — e o que vos peço é que, assim como nós, por união de amor, somos uma mesma coisa, vós em mim e eu em vós, assim eles em vós e em mim sejam também uma coisa, pela mesma união. — Quem não pasma tendo ouvido tais palavras, ou não tem juízo, ou não tem fé. E por que não parecesse que esta união de amor era só pedida por Cristo em dúvida de o Padre a conceder ou não, o mesmo Senhor testificou logo que ele, em nome seu e no do Padre, a tinha já concedido aos homens: Et ego claritatem quam dedisti mihi, dedi eis, ut sint unum, sicut et nos unum sumus. Ego in eis, et tu in me, ut sint consumati in unum (33). Um e outro texto é tão claro, que não hão mister comentos; mas, para maior satisfação de todos, quero que ouçais o do doutíssimo Maldonado, cuja autoridade sabem quão singular é todos os que lêem as Escrituras: Sensus est -diz ele — ea ratione fieri, ut cum Pater in Christo unum sit, et Christus unum cum discipulis, et discipuli unum cum Patre, idest, cum Deo sint, qua unitate nulla potest esse major. Oh! se alcançássemos a compreender quão alto, quão divino, quão inestimável foi este último e supremo invento do amor de Cristo, o qual, antes de se obrar, excedia toda a imaginação, e, depois de obrado, excede toda a capacidade humana. O Padre no Filho, o Filho no Padre, o Padre e o Filho no homem, e o homem no Padre e no Filho, com uma trindade de pessoas e uma unidade de amor tão perfeito que o mesmo Cristo lhe chamou consumada: Ego in eis, et tu in me, ut sint consummati in unum. Mas até os mesmos apóstolos então não puderam compreender tal extremo de união e amor, e por isso lhes disse o mesmo Cristo que, depois de alumiados pelo Espírito Santo, o conheceriam: In illo die vos cognoscetis quia ego sum in Patre meo, et vos in me, et ego in vobis (34). Fique logo, por última conclusão, que mal podia a melhoria do objeto mudar o amor de Cristo para com os homens, pois, em vez de o mudar nesta mesma partida para o Padre, o melhorou de maneira que até o mesmo amor com que Cristo ama ao Padre, e o amor com que o Padre ama a Cristo, se uniram em um amor, para mais e mais os amar: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, in finem dilexit eos.

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VII Eis aqui, fiéis, como nenhum dos remédios que costumam acabar ou diminuir o amor, nenhum dos contrários, que o costumam contrastar e vencer, foi bastante para que o intensíssimo amor com que Jesus nos amou e ama, não digo se esfriasse ou enfraquecesse, mas se remitisse um ponto, servindo só o poder dos remédios para mais o acender, e a força dos contrários para mais fortemente os triunfar. Venceu o seu amor o tempo, venceu a ausência, venceu a ingratidão, e até da melhoria de um tão incomparável objeto não pôde ser vencido. Julgue agora a nossa obrigação, se quando se rendem ao mesmo amor todos os contrários, será justo que lhe resistam os seus, e se na hora em que morre de amor sem remédio o mesmo amante, será bem que lhe faltem os corações daqueles por quem morre? Amemos a quem tanto nos amou, e não haja contrário tão poderoso que nos vença, para que não perseveremos em seu amor. Se ele nos amou por toda uma eternidade, por que o não amaremos nós por tão poucos dias, e tão breves, como são os da nossa vida? Aprenda a fraqueza da nossa virtude ao menos da constância de nossos vícios; e pois não basta o tempo a nos mudar dos pecados, não baste tão facilmente a nos mudar do arrependimento deles. Não tem o nosso amor o contrário da ausência que vencer, porque sempre temos ao mesmo Cristo, enquanto Deus e enquanto homem, presente; e se a sua presença se não deixa ver de nossos olhos, não seja motivo de diminuir o amor o que foi traça de acrescentar as saudades. Lembremo-nos todas as horas de quem hoje a esta hora se nos deu todo a si mesmo, e amanhã, antes desta hora, estará morrendo por nós em uma cruz. Ele, de tantas ingratidões fez motivos de mais nos amar, e nós por que o não faremos de tantos e tão imensos benefícios? Que nos fez um tão bom Senhor para o ofendermos? Oh! que ingratidão tão desumana! Oh! que ingratidão tão indigna de feras, quanto mais de criaturas com uso de razão! A quem te criou, a quem te remiu, a quem tanto te amou, não amas? A quem te comprou com o sangue o céu, e te tirou do inferno quantas vezes o ofendeste, tens ainda coração para o tornar a ofender? Que amamos, cristãos, se não amamos a Jesus? Que objeto mais digno de ser amado? Que objeto que compita com ele, não digo na igualdade, senão na semelhança? Toda a outra formosura, em comparação da sua, não é fealdade? Toda a outra grandeza não é vileza? E todo o outro nome de bem não é mentira? Indignamo-nos dos que trocaram a Cristo por um malfeitor, e do que o vendeu por tão vil preço, e será bem que nós o troquemos e vendamos ainda mais vil e afrontosamente? Ah! Senhor, que só o vosso amor, que não teve remédio, pode ser o remédio das loucuras do nosso. Remediai tantas cegueiras, remediai tantos desatinos, remediai tantas perdições. E pelo amor com que nos amastes no fim, tenha hoje fim todo o amor que não é vosso. Esta é, amoroso Jesus, esta é só a mercê que por despedida vos pedimos nesta última hora vossa. Lembrai-vos, enfermo divino, que estais nos últimos transes da vida. Não vos esqueçais de nós em vosso testamento. O legado que esperamos de vossa liberalidade, como criados, e a esmola que pedimos a vossa misericórdia, como pobres, é que nos deixeis, pois nos deixais, alguma parte do vosso amor. Amanhã vos hão de partir o coração: reparti dele conosco, para que de todo o coração vos amemos. Oh! quanto nos pesa nesta hora, e para sempre, de vos não ter amado como devíamos! Nunca mais, Senhor, nunca mais! Só a vós havemos de amar de hoje em diante, e posto que em vós concorram tantos motivos de amor, e tão soberanos, só a vós, e por serdes quem sois. Assim o prometemos

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firmemente a vosso amor, e assim o confiamos de vossa graça, e só para que vos amemos eternamente na glória. (1) Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo. 31,1). (2) Eu sou Deus zeloso (Êx. 20,5). (3) Aquele que é amigo é-o em todo o tempo (Prov. 17,17). (4) Achando as minhas delícias em estar com os filhos dos homens (Prov. 8, 31). (5) Gostasse a morte por todos (Hebr. 2,9). (6) A morte é a ausência da alma. (7) Orig. hom. de M. Magdal. (8) Porque amou muito (Lc. 7, 47). (9) Saulo, pois respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor (At. 9,1). (10) Eu vim trazer fogo à terra, e que quero eu, senão que ele se acenda (Lc. 12,49)? (11) Esse fará também as obras que eu faço, e fará outras ainda maiores, porque eu vou para o Pai (Jo. 14,12). (12) De remontadas distâncias e dos últimos confins da terra (Prov. 31, 10). (13)Ferindo duas vezes com a vara a pederneira, saíram dela águas copiosíssimas (Núm. 20,11). (14) Lançou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos (Jo. 13,5). (15) Como já o diabo tinha metido no coração a Judas s determinação de o entregar, levantou-se da ceia e depôs suas vestiduras (Jo. 13, 2. 4). (16) Lançou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos. Veio pois a Simão Pedro (Jo. 13,5s). (17) E tendo molhado o pão, deu-o a Judas (Jo. 13,26). (18) Dizei a seus discípulos, e a Pedro (Mc. 16,7). (19) O seu sangua caia sobre nós (Mt. 27,25). (20) Mandando vir água, lavou as mãos à vista do povo (Mt. 27,24). (21) Tocando interiormente de dor (Gên. 6,6). (22) Na verdade este homem era filho de Deus (Mt. 27,54). (23) Retiravam-se batendo nos peitos (Lc. 23,48). (24) Livra, ó Deus, a minha alma da espada (Sl. 21, 21). (25) Rich. Victor. tract. de 4 grad. viol. charit. (26) Era a luz verdadeira que alumia a todo o homem (Jo 1,9). (27) Ela não era a luz (Jo. 1,8). (28)Choraram ambos, mas Davi mais (1Rs. 20,41). (29) Ovid. (30) A minha alma está numa tristeza mortal (Mt. 26,38). (31)E deixando-os de novo, foi orar terceira vez (Mt. 26,44). (32) E veio terceira vez, e disse-lhes (Mc. 14,41). (33) E eu lhes dei a glória que tu me havias dado, para que eles sejam um, como também nós somos um. E eu estou neles, e tu estás em mim, para que eles sejam consumados na unidade (Jo. 17,22s). (34) Naquele dia conhecereis vós que eu estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós (Jo 14, 20).

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ANEXO B – CARTA ATENAGÓRICA. Disponível em < http://www.ensayistas.org/antologia/XVII/sorjuana/>. Acesso em 18 de abril de 2011.

Carta de la Madre Juana Inés de la Cruz, religiosa del convento de San Jerónimo de la ciudad de Méjico, en que hace juicio de un sermón del Mandato que predicó el Reverendísimo P. Antonio de Vieyra, de la Compañía de Jesús, en el Colegio de Lisboa.

Muy Señor Mío: De las bachillerías de una conversación, que en la merced

que V. md. me hace pasaron plaza de vivezas, nació en V. md. el deseo de ver por escrito algunos discursos que allí hice de repente sobre los sermones de un excelente orador, alabando algunas veces sus fundamentos, otras disintiendo, y siempre admirándome de su sinigual ingenio, que aun sobresale más en lo segundo que en lo primero, porque sobre sólidas basas no es tanto de admirar la hermosura de una fábrica, como la de la que sobre flacos fundamentos se ostenta lucida, cuales son algunas de las proposiciones de este sutilísimo talento, que es tal su suavidad, su viveza y energía, que al mismo que disiente, enamora con la belleza de la oración, suspende con la dulzura y hechiza con la gracia, y eleva, admira y encanta con el todo.

De esto hablamos, y V. md. gustó (como ya dije) ver esto escrito; y porque conozca que le obedezco en lo más difícil, no sólo de parte del entendimiento en asunto tan arduo como notar proposiciones de tan gran sujeto, sino de parte de mi genio, repugnante a todo lo que parece impugnar a nadie, lo hago; aunque modificado este inconveniente, en que así de lo uno como de lo otro, será V. md. solo el testigo, en quien la propia autoridad de su precepto honestará los errores de mi obediencia, que a otros ojos pareciera desproporcionada soberbia, y más cayendo en sexo tan desacreditado en materia de letras con la común acepción de todo el mundo.

Y para que V. md. vea cuán purificado va de toda pasión mi sentir, propongo tres razones que en este insigne varón concurren de especial amor y reverencia mía. La primera es el cordialísimo y filial cariño a su Sagrada Religión, de quien, en el afecto, no soy menos hija que dicho sujeto. La segunda, la grande afición que este admirable pasmo de los ingenios me ha siempre debido, en tanto grado que suelo decir (y lo siento así), que si Dios me diera a escoger talentos, no eligiera otro que el suyo. La tercera, el que a su generosa nación tengo oculta simpatía. Que juntas a la general de no tener espíritu de contradicción sobraban para callar (como lo hiciera a no tener contrario precepto); pero no bastarán a que el entendimiento humano, potencia libre y que asiente o disiente necesario a lo que juzga ser o no ser verdad, se rinda por lisonjear el comedimiento de la voluntad.

En cuya suposición, digo que esto no es replicar, sino referir simplemente mi sentir; y éste, tan ajeno de creer de sí lo que del suyo pensó dicho orador diciendo que nadie le adelantaría (proposición en que habló más su nación, que su profesión y entendimiento), que desde luego llevo pensado y creído que cualquiera adelantará mis discursos con infinitos grados.

Y no puedo dejar de decir que a éste, que parece atrevimiento, abrió él mismo camino, y holló él primero las intactas sendas, dejando no sólo ejemplificadas, pero fáciles las menores osadías, a vista de su mayor arrojo. Pues si

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sintió vigor en su pluma para adelantar en uno de sus sermones (que será solo el asunto de este papel) tres plumas, sobre doctas, canonizadas, ¿qué mucho que haya quien intente adelantar la suya, no ya canonizada, aunque tan docta? Si hay un Tulio moderno que se atreva a adelantar a un Augustino, a un Tomás y a un Crisóstomo, ¿qué mucho que haya quien ose responder a este Tulio? Si hay quien ose combatir en el ingenio con tres más que hombres, ¿qué mucho es que haya quien haga cara a uno, aunque tan grande hombre? Y más si se acompaña y ampara de aquellos tres gigantes, pues mi asunto es defender las razones de los tres Santos Padres. Mal dije. Mi asunto es defenderme con las razones de los tres Santos Padres. (Ahora creo que acerté.)

Y entrando en él, digo que seguiré en la respuesta el método mismo que siguió el orador en el sermón citado, que es del Mandato; y es en esta forma:

Habla de las finezas de Cristo en el fin de su vida: in finem dilexit eos (Ioan. 13 cap.); y propone el sentir de tres Santos Padres, que son Augustino, Tomás y Crisóstomo, con tan generosa osadía, que dice: "El estilo que he de guardar en este discurso será éste: referiré primero las opiniones de los Santos, y después diré también la mía; mas con esta diferencia: que ninguna fineza de amor de Cristo dirán los Santos, a que yo no dé otra mayor que ella; y a la fineza de amor de Cristo que yo dijere, ninguno me ha de dar otra que la iguale". Éstas son sus formales palabras, ésta su proposición, y ésta la que motiva la respuesta.

La opinión primera es de Augustino, que siente que la mayor fineza de Cristo fue morir, probándolo con el texto: Maiorem hac dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis. (Ioan. 15 cap. I.)

Dice este orador que mayor fineza fue en Cristo ausentarse que morir. Pruébalo por discurso: porque Cristo amaba más a los hombres que a su vida, pues da la vida por ellos; luego más fineza es ausentarse que morir. Pruébalo con el texto de la Magdalena, que llora en el Sepulcro y no al pie de la Cruz; porque aquí ve a Cristo muerto y allí ausente, y es mayor dolor la ausencia que la muerte. Pruébalo más, con que Cristo no hace demostraciones de sentimiento en la Cruz cuando muere: Inclinato capite emisit spiritum y las hace en el Huerto, porque se aparta: factus in agonia, porque le es más sensible la ausencia que la muerte. Pruébalo con que, pudiendo Cristo resucitar al segundo instante que murió y sacramentarse después de la Resurrección --que lo primero era el remedio de la muerte y lo segundo de la ausencia--, dilata el remedio de la muerte hasta el tercero día, y el de la ausencia no sólo no lo dilata, sino que le anticipa, sacramentándose el día antes de morir; luego siente más Cristo la ausencia que la muerte.

Prueba más. Dice que Cristo murió una vez y se ausentó una vez; pero que a la muerte no le dio más que un remedio, resucitando una vez, mas que a la ausencia le buscó infinitos, sacramentándose. Y así, a la muerte dio una resurrección por remedio; pero por una ausencia multiplica infinitas presencias. Luego siente más la ausencia que la muerte. Dice más: que siente Cristo tanto más la ausencia que la muerte, que --siendo así que el Sacramento de la Eucaristía, en cuanto sacramento, es presencia, y en cuanto sacrificio es muerte, en que muere Cristo tantas veces cuantas se hace presente-- no repara en que cada presencia le cuesta una muerte. De manera que siente tanto más Cristo el ausentarse que el morir, que se sujetó a una perpetuidad de muerte por no sufrir un instante de ausencia. Luego fue mayor fineza ausentarse que morir.

Éstas son, en substancia, sus razones y pruebas, aunque por no dilatarme las estrecho a la tosquedad de mi estilo, en que no poco pierden de su energía y viveza; y será preciso hacerlo así en todos los discursos, pues V. md. los podrá leer

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despacio en el mismo autor a que me refiero, y esto no es más que unos apuntamientos o reclamos para dar claridad a la respuesta, que es ésta:

Siento con San Agustín que la mayor fineza de Cristo fue morir. Pruébase por discurso: porque lo más apreciable en el hombre es la vida y la honra, y ambas cosas da Cristo en su afrentosa muerte. En cuanto Dios, ya había hecho con el hombre finezas dignas de su Omnipotencia, como fue el criarle, conservarle, etc.; pero en cuanto hombre, no tiene más que poder dar, que la vida. Pruébase no sólo con el texto: Maiorem hac dilectionem, etc., el cual se puede entender de otros amores; sino con otros infinitos. Sea uno el en que Cristo dice que es buen Pastor: Ego sum pastor bonus. Bonus pastor animam suam dat pro ovibus suis, donde Cristo habla de sí mismo y califica su fineza con su muerte. Y siendo Cristo quien solo sabe cuál es la mayor de sus finezas, claro es que cuando se pone a ejecutoriarlas Él mismo, a haber otra mayor, la dijera; y no ostenta para prueba de su amor más que la prontitud a la muerte. Luego es la mayor de las finezas de Cristo.

Más. Dos términos tiene una fineza que la pueden constituir en el ser de grande: el término a quo, de quien la ejecuta, y el término ad quem, de quien la logra. El primero hace grande una fineza, por el mucho costo que tiene al amante; el segundo, por la mucha utilidad que trae al amado.

Hay muchas finezas que tienen el un término, pero carecen del otro. Sea ejemplo de las primeras Jacob sirviendo catorce años. ¡Oh qué trabajos! ¡Oh qué hielos! ¡Oh qué soles! Gran fineza de parte de Jacob. Pero veamos qué utilidad trae eso a Raquel (que es el otro término). Ninguna: pues el tener esposo, sin esas diligencias lo lograría su belleza. Esta fineza tiene sólo el término a quo. Sea ejemplo de las segundas, Ester, elevada al trono real en lugar de la reina Vasti. ¡Gran dicha, por cierto! ¡Gran ventura! ¡Grande utilidad para Ester! Pero veamos el otro término. ¿Qué costo le tiene a Asuero esa fineza? Ninguno: sólo querer. Esta fineza tiene sólo el término ad quem. Luego para ser del todo grande una fineza ha de tener costos al amante y utilidades al amado. Pues pregunto, ¿cuál fineza para Cristo más costosa que morir? ¿Cuál más útil para el hombre que la Redención que resultó de su muerte? Luego es, por ambos términos, la mayor fineza morir.

Encarna el Verbo, y mide por nuestro amor la inmensa distancia de Dios a hombre; muere, y mide la limitada que hay de hombre a muerte. Y siendo así que aquélla es mayor distancia, cuando nos representa sus finezas y nos recomienda su memoria, no nos acuerda que encarnó y nos representa que murió: Hoc est Corpus meum, quod pro vobis tradetur; hoc facite in meam commemorationem. Pues ¿no nos podía decir Cristo: éste es mi Cuerpo, que por vuestro amor le tomé y me hice hombre? No, que la Encarnación no le fue penosa, ni obró luego nuestra redención; y quiere Cristo acordarnos su costo y nuestra utilidad, que son los dos términos que hacen perfecta una fineza, y que sólo comprende su Muerte, que es la mayor de sus finezas.

Porque la Encarnación fue mayor maravilla, pero no fue tan grande fineza: pues en cuanto a maravilla, mayor maravilla fue hacerse Dios hombre, que morir siendo hombre; pero en cuanto a fineza, mayor costo le tuvo morir que encarnar, porque en encarnar no perdió nada del ser de Dios cuando se hizo Cristo, y en morir dejó de ser Cristo, desuniéndose el cuerpo del alma, de que se hacía Cristo. Luego fue mayor fineza el morir.

Y parece que el mismo Señor lo reguló así. Pruébase por discurso. Todos aquellos que se eligen por medios para algún fin, se tienen por de menor aprecio que el fin a que se dirigen. La Encarnación fue medio para la muerte, pues Cristo se hizo hombre para morir por el hombre; conque fue mayor fineza morir que encarnar,

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aunque sea mayor maravilla encarnar que morir. Luego morir fue la mayor fineza en la graduación del mismo Cristo, siendo su Majestad quien únicamente las sabe graduar. Por eso al expirar Cristo dice: Consummatum est, porque el expirar fue la consumación de sus finezas.

Compra Cristo (dice el autor) cada presencia con una muerte en el Sacramento; yo entiendo que compra la muerte con la presencia, pues tiene la presencia por acordarnos su muerte: Quotiescumque feceritis, in mei memoriam facietis. Aquella fineza que el amante desea que se imprima en la memoria del amado, es la que tiene por mayor. Cristo dice: Acordaos de que morí; y no dice: Acordaos de que os crié, de que encarné, de que me sacramenté, etc. Luego la mayor es morir.

Confírmase esta verdad. Aquella fineza que el amante ostenta y reitera más, tiene por la mayor. Cristo reitera su muerte, y no otra. Luego ésta fue la mayor. Y teniendo infinitos beneficios que podernos acordar, sólo nos acuerda que murió. Luego ésta es la mayor.

Más. Las demás finezas de Cristo se refieren, pero no se representan. La muerte se refiere, se recomienda y se representa. Luego no sólo es la mayor fineza, pero es compendio de todas las finezas. Pruébolo. Cristo en su muerte nos repite el beneficio de la Creación, pues nos restituye con ella al primitivo ser de la gracia. Cristo con su muerte nos reitera el de la Conservación, pues no sólo nos conserva vida temporal, muriendo porque vivamos, sino que nos da su Carne y Sangre por sustento. Cristo en su muerte nos reitera el beneficio de la Encarnación, pues uniéndose en la Encarnación a la carne purísima de su madre, en la muerte se une a todos, derramando en todos su sangre. Sólo el Sacramento parece que no se representa en la muerte: y es porque el Sacramento es la representación de su muerte. Y esto mismo prueba ser la mayor fineza la muerte: pues siendo tan grande fineza el Sacramento, es sólo representación de la muerte.

Pues en verdad que hasta ahora no hemos respondido al autor, sino sólo defendido el sentir de Augustino, de que la mayor fineza de Cristo fue morir. Vamos a las razones del autor, pues ya dejamos dichos sus fundamentos. A que, desde luego, le concedemos que Cristo amó más a los hombres que a su vida, pues la dio por ellos. Pero le negamos el supuesto de que Cristo se ausentó; y dado que se ausentase, negamos también el que la ausencia sea mayor dolor que la muerte.

Vamos a lo primero que es probar que Cristo no se ausentó. Sirva de prueba, al mío, su propio argumento. Si dice que Cristo siente tanto el ausentarse y tan poco el morir, que dilata el remedio de la muerte en la Resurrección hasta el tercero día y anticipa el de la ausencia en el Sacramento, ¿por qué suda en el Huerto: factus est sudor eius? ¿Por qué agoniza de congoja: factus in agonia? ¿Porque se ausenta, si queda ya presente Sacramentado en el Cenáculo? Y si remedia la ausencia antes que llegue, ¿cuál ausencia es la que siente, ya remediada? Luego la agonía no es de que se aparta quien deja ya asegurado el que se queda. Luego, de todo esto, se infiere que el ausentarse no sólo no se debe contar por la mayor fineza de Cristo, pero ni por fineza, pues nunca llegó el caso de ejecutarla. Dice el autor que Cristo se va porque nos importa: Expedit vobis ut ego vadam. Es verdad que se va, pero es falso que se ausenta. No gastemos tiempo: ya sabemos la infinidad de sus presencias.

Probado el que Cristo no se ausentó, no sirve la prueba de la Magdalena para esta conclusión, pues sólo sirviera suponiendo el autor la ausencia que yo niego. Y mi argumento es que la muerte de Cristo fue la mayor fineza de las finezas que obró: no de la supuesta ausencia, que en ésa niego todo el supuesto y no hay

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relativo de comparación entre lo que tiene ser y lo que no le tiene. Pero porque propuse probar que no es la ausencia mayor dolor que la muerte, y por consiguiente, ni mayor fineza, sino al contrario, será preciso responder a la prueba de la Magdalena. Y así digo: que de llorar la Magdalena en el sepulcro y no llorar al pie de la Cruz, no se infiere que sea mayor dolor el de la ausencia que el de la muerte; antes lo contrario.

Pruébolo. Cuando se recibe algún grande pesar, acuden los espíritus vitales a socorrer la agonía del corazón que desfallece; y esta retracción de espíritus ocasiona general embargo y suspensión de todas las acciones y movimientos, hasta que, moderándose el dolor, cobra el corazón alientos para su desahogo y exhala por el llanto aquellos mismos espíritus que le congojan por confortarle, en señal de que ya no necesita de tanto fomento como al principio. De donde se prueba, por razón natural, que es menor el dolor cuando da lugar al llanto, que cuando no permite que se exhalen los espíritus porque los necesita para su aliento y confortación.

Pruébase con que este mismo efecto suele ocasionar un gozo; luego no son indicio de muy grave dolor las lágrimas, pues es un signo tan común, que indiferentemente sirven al pesar y al gusto.

A dos hombres gradúa Cristo con el dulce título de amigos. El uno es Lázaro: Lazarus amicus noster dormit. El otro es Judas: Amice, ad quid venisti? Suceden, a los dos, dos infortunios: muere Lázaro muerte temporal; muere Judas muerte temporal y eterna. Bien claro se ve que ésta sería más sensible para Cristo; y vemos que llora por Lázaro: lacrymatus est Iesus, y no llora por Judas: porque aquí el mayor dolor embargó al llanto, y allí el menor le permitía.

La Reina de los Dolores para serlo también de los méritos, se halla al doloroso espectáculo de la muerte de su Unigénito; y cuando lloran con tan distante conocimiento las hijas de Sión, no llora la traspasada Madre: Stantem video, flentem non video. Porque el inferior dolor, llora; el supremo, suspende y no deja llorar.

Dentro del mismo caso de la Magdalena hallaremos otra prueba. No hay duda que la Magdalena amó mucho a Cristo; el mismo Señor lo testifica: Remittuntur ei peccata multa, quia dilexit multum. Pues siendo este amor tan meritorio, claro está que sería perfecto; y el perfecto, claro está que es amar a Dios sobre todas las cosas. Luego amaba la Magdalena más a Cristo que a Lázaro su hermano. Pues ¿cómo llora en la muerte de su hermano: ut vidit eam Iesus flentem, etc., y no llora en la muerte de Cristo? Es porque tuvo menor dolor en la muerte de Lázaro que en la muerte de su Maestro. Luego se prueba ser mayor dolor el que no deja llorar, que el que llora.

Pruébolo más. ¿Qué dolor hay en la ausencia, sino una carencia de la vista de lo que se ama? Pues éste, claro está que le tiene la muerte más circunstanciado: porque la ausencia trae una carencia limitada; la muerte, una carencia perpetua. Luego es mayor dolor el de la muerte que el de la ausencia, pues es una mayor ausencia.

Aprieto más. El ausente siente sólo no ver lo que ama, pero ni siente otro daño en sí, ni en lo que ama; el que muere, o ve morir, siente la carencia y siente la muerte de su amado, o siente la carencia de su amado y la muerte propia. Luego es mayor dolor la muerte que la ausencia: porque la ausencia es sólo ausencia; la muerte, es muerte y es ausencia. Luego, si la comprende con aditamento, mayor dolor será.

Vamos al segundo sentir, que es de Santo Tomás. Dice este Angélico Doctor que la mayor fineza de Cristo fue el quedarse con nosotros Sacramentado, cuando

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se partía a su Padre glorioso. (Ajustadme esto con aquella tan ponderada ausencia del discurso pasado.) Vamos al caso.

Dice este sutilísimo ingenio, que no fue la mayor fineza de Cristo sacramentarse, sino quedar en el Sacramento sin uso de sentidos. Pruébalo con el lugar de Absalón, cuando vuelto de Gesur a la Corte y no enteramente reducido a la gracia de David, quería más la muerte que tan penosa ausencia. Allá verá V. md. en el sermón lo elegante de esta prueba; que a mí me importa, primero, averiguar la forma de este silogismo, y ver cómo arguye el Santo y cómo replica el autor.

El Santo dice: Sacramentarse fue la mayor fineza de Cristo. Replica el autor: No fue, sino quedar sin uso de sentidos en ese Sacramento. ¿Qué forma de argüir es ésta? El Santo propone en género; el autor responde en especie. Luego no vale el argumento. Si el Santo hablara de una de las especies infinitas de finezas que se encierran en aquel erario riquísimo del Divino Amor debajo de los accidentes de pan, fuera buena la oposición; pero si las comprende todas en la palabra Sacramentarse, ¿cómo le responde oponiéndole una de las mismas finezas que el Santo comprende?

Si uno dijese que la más noble categoría era la de substancia, y otro le replicase que no, sino el hombre, aunque para esto trajese muy elegantes pruebas (cuales son las que trae el autor), ¿no diríamos que no servían, porque era sofístico el argumento y pecaba en la forma, pues el hombre es especie del género substancia y está comprendido debajo de ella? Claro está. Pues así juzgo yo éste, si no es que me engaño: que bien podrá ser, pero lo que aseguro es que no será por pasión. Véalo V. md.; que yo me sujeto en esto (como en todo) a su corrección.

Paréceme que quitadas las primeras basas sobre que estribaba la proposición, cae en tierra el edificio de las pruebas: que cuanto eran más fuertes, tanto son más prontas al precipicio, saliendo flaco el fundamento.

Ya pienso que he satisfecho, en lo que toca a la defensa de Santo Tomás, cuya proposición abraza y comprende todas las finezas Sacramentales. Pero si yo hubiera de argüir de especie a especie con el autor dijera: que de las especies de fineza que Cristo obró en el Sacramento, no es la mayor el estar sin uso de sentidos, sino estar presente al desaire de las ofensas.

Porque privarse del uso de los sentidos, es sólo abstenerse de las delicias del amor, que es tormento negativo; pero ponerse presente a las ofensas, es no sólo buscar el positivo de los celos, pero (lo que más es) sufrir ultrajes en el respeto. Y es ésta tanto mayor fineza que aquélla, cuanto va de un amor agraviado a un amor reprimido; y lo que dista el dolor de un deleite que no se goza, a una ofensa que se tolera, dista el de privarse de los sentidos al de hacer cara a los agravios. No ver lo que da gusto, es dolor; pero mayor dolor es ver lo que da disgusto.

Venden a José sus hermanos en Egipto y privan a Jacob del deleite de su vista. Atrévese Rubén a violar el lecho de su padre. ¡Grandes delitos ambos! Pero veamos los castigos que Jacob les previene. A Rubén priva de la primogenitura, expresando por causal el agravio; maldícele y quiere que no crezca: Effusus es sicut aqua, non crescas; quia ascendisti cubile patris tui, et maculasti stratum eius. ¡Bien merecida pena a su culpa! Pero, veamos, ¿qué castigo asigna a los demás por haber vendido a José? Ninguno; ni vuelve a hacer mención de tal cosa.

Pues ¿cómo? ¿Un delito tan enorme se queda así? ¿Vender a su hermano, y a un hermano tal como José, delicias y consuelo de Jacob y después amparo de todos? ¿Y esto se olvida y a Rubén castigan? Sí, que en la venta de José privaron a Jacob sólo del deleite de su amor; pero Rubén ofendió su amor y su respeto. Y es menos dolor privarse del logro del amor, que sufrir agravios del amor y del respeto.

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Luego es en Cristo mayor fineza ésta que aquélla. Esto he dicho de paso, que ya digo que es argumento de especie a especie, que puede hacerse al autor, no al Santo.

Vamos a la tercera, que es de San Juan Crisóstomo. Dice el Santo: que la mayor fineza de Cristo fue lavar los pies a los discípulos. Dice el autor: que no fue la mayor fineza lavar los pies, sino la causa que le movió a lavarlos.

Otra tenemos, no muy diferente de la pasada: aquélla, de especie a género; ésta, de efecto a causa. ¡Válgame Dios! ¿Pudo pasarle por el pensamiento al divino Crisóstomo, que Cristo obró tal cosa sin causa, y muy grande? Claro está que no pudo pensar tal cosa. Antes no sólo una causa sino muchas causas manifiesta en tan portentoso efecto como humillarse aquella Inmensa Majestad a los pies de los hombres. Éste es el efecto; y con su energía, el Crisóstomo quiere que infiramos de él lo grande de las causas, sin expresarlas, porque no pudo hallar más viva expresión que referir tan humilde ministerio en tanta soberanía, como diciendo: Mirad cómo nos amó Cristo, pues se humilló a lavarnos los pies; mirad lo que deseó enseñarnos con su ejemplo, pues se abatió hasta lavarnos los pies; mirad cuánto solicitó la conversión de Judas, pues llegó a lavarle los pies. Y otras muchas más causas que el Evangelio expresa y muchas más que calla, y que el Crisóstomo incluye en aquel: Lavó los pies a sus discípulos.

Pues si el motivo de lavar los pies y la ejecución de lavarlos se han como causa y efecto, y la causa y efecto son relativos, que aquí no pueden separarse, ¿dónde está esta mayoría que el autor halla entre lavar y la causa de lavar, si sólo su diferencia es ser generante la causa y el efecto engendrado? ¿Ni cuál es la mayor fineza que da a lo que el Santo dice? Pues al fin se refunde en que Cristo se abatió a los pies de Judas, cuyo corazón era trono de Satanás, y éste es el efecto que el Santo pondera y expresa; y que la causa fue reducirle, y ésta es la causa, o una de las causas, que el Santo incluyó, refiriendo el efecto, con más misteriosa ponderación que si las expresara.

Quiere el Evangelista San Juan dar pruebas del amor del Eterno Padre y lo prueba con el efecto: Sic Deus dilexit mundum ut Filium suum Unigenitum daret. Amó Dios de manera al Mundo que le dio a su hijo. Luego el efecto es el que prueba la causa. Para encender nuestros deseos en los bienes eternos, se nos dice que ni ojos vieron, ni oídos oyeron, ni corazón humano puede comprender cómo es aquella felicidad eterna. Pues ¿no fuera mejor, para excitarnos el deseo, pintarnos la Gloria? No, que lo que no cabe en las voces queda más decente en el silencio; y expresa y da a entender más un: no se puede explicar cómo es la Gloria, que un: así es la Gloria. Así el Crisóstomo: la obra, que es exterior, expresa; la causa, la supone, y como inexplicable la deja de decir.

Para dar mayor claridad a lo dicho y apoyar más la propiedad con que habló el Santo, apuremos qué cosa es fineza. ¿Es fineza, acaso, tener amor? No, por cierto, sino las demostraciones del amor: ésas se llaman finezas. Aquellos signos exteriores demostrativos, y acciones que ejercita el amante, siendo su causa motiva el amor, eso se llama fineza. Luego si el Santo está hablando de finezas y actos externos, con grandísima propiedad trae el Lavatorio, y no la causa: pues la causa es el amor, y el Santo no está hablando del amor, sino de la fineza, que es el signo exterior. Luego no hay para qué ni por qué argüirle, pues lleva el Santo supuesto lo que después le sacan como nuevo.

Ya hemos respondido por los tres Santos. Ahora vamos a lo más arduo, que es a la opinión que últimamente forma el autor: al Aquiles de su sermón; a la que, en su sentir, tiene por la mayor fineza de Cristo, y a la que dice que "ninguno le dará

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otra que le iguale", que es decir que "Cristo no quiso la correspondencia de su amor para sí, sino para los hombres, y que ésta fue la mayor fineza: amar sin correspondencia".

Pruébalo con aquellas palabras: Et vos debetis alter alterius lavare pedes. De donde infiere que Cristo no quiere que le correspondamos ni que le amemos, sino que nos amemos unos a otros; y dice que es la mayor fineza de Cristo ésta, porque es fineza sin interés de correspondencia. Para esto no trae pruebas de Sagrada Escritura, porque dice que la mayor prueba de esta fineza es el carecer de pruebas, porque es fineza sin ejemplar.

Conque bien mirada la proposición, tiene dos miembros a que responder. El uno es que Cristo no quiso nuestra correspondencia. El otro, que no tiene prueba esta fineza de Cristo. Conque serán dos las respuestas. Una, probar que no sólo no fue fineza la que el autor dice; pero que fue fineza lo contrario, que es que Cristo quiere nuestra correspondencia, y que ésta es la fineza. La otra, probar que cuando supusiéramos que era fineza la que dice el autor, no le faltaran pruebas en la Sagrada Escritura, ni ejemplares donde nada falta.

Vamos a lo primero, que es probar que no fue fineza la que dice el autor, ni Cristo la hizo. El probar que Cristo quiso nuestra correspondencia y no la renunció, sino que la solicitó, es tan fácil, que no se halla otra cosa en todas las Sagradas Letras que instancias y preceptos que nos mandan amar a Dios. Ya se ve que el primer precepto es: Diliges dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et ex tota anima tua, et ex tota mente tua. Pues ¿cómo se puede entender que Cristo no quiere nuestra correspondencia cuando con tanto aprieto la encarga y manda? Claro está que el autor sabrá esto mejor que yo, sino que quiso hacer ostentación de su ingenio, no porque sintiese que lo podría probar; pues aunque en la cláusula: et vos debetis alter alterius lavare pedes, no se expresa el amor que nos pide Cristo para sí y se expresa el que nos manda tener al prójimo, se incluye y envuelve en ella misma el amor de Dios, aunque no se expresa con mayor eficacia que el del prójimo, que se manda.

Pruébolo por razón. Manda Dios amar al prójimo y quiere que lo hagamos porque él lo manda. Luego deja supuesto que debemos amar más a Dios, pues por su obediencia hemos de amar al prójimo. Cuando se hace, por respeto de alguno, alguna acción a favor de otro, más se aprecia aquél por cuya atención se hace, que al con quien se hace.

Quiere Dios destruir al pueblo por el pecado de la idolatría. Interpónese Moisés diciendo: "O perdónales o bórrame del Libro de la Vida". Perdona Dios a aquel pueblo ingrato por esta interposición. ¿Quién quedó aquí --pregunto-- más obligado a Dios, Moisés o el pueblo? Claro está que Moisés, pues aunque el beneficio resultó en bien del pueblo y quedó muy obligado a Dios, más lo quedó Moisés, pues lo hizo Dios por su respeto. Quiere Cristo que nos amemos, pero que nos amemos en él y por él. Luego su amor es primero. Y si no, veamos cómo lleva el que nos amemos sin su respeto. Manda Cristo amar a los padres: Honora patrem tuum; manda amar al prójimo: Diliges proximum tuum, sicut te ipsum. Bien, ¿pero cómo ha de ser este amor? Anteponiendo siempre el suyo no sólo a los amores prohibidos, no sólo a los viciosos, sino a los lícitos, a los obligatorios, a los que él mismo nos manda tener, como entre el padre y el hijo, entre la mujer y el marido. Y todos los demás que Su Majestad quiere, no los quiere en no siendo por su respeto; antes los aborrece y los separa. Y si no, véase el admirable orden con que en el Evangelio nos va enseñando el modo de cumplir y de practicar aquel primer precepto: Diliges Dominum Deum tuum, etc. Ha mandado Su Majestad amar a los

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padres: Honora patrem tuum. Y para que no pensemos que los podemos amar más que a Dios, dice: qui amat patrem, aut matrem plus quam me, non est me dignus. Y aquí parece que se contenta Dios sólo con que no amemos más a los padres que a su Majestad. Pues no; más adelante pasa la obligación, pues hasta ahora sólo manda no amarlos más, pero después manda aborrecerlos si son estorbo de su servicio: Si quis venit ad me, et non odit patrem suum, et matrem, et uxorem, et filios, et fratres, et sorores, etc. He aquí que ya nos manda aborrecer a todos los propincuos. Pues todavía falta, que aún quedamos enteros, y ni aun a nuestros miembros hemos de perdonar si importa a su servicio: Si autem manus tua, vel pes tuus scandalizat te, abscide eum, et proiice abs te. En verdad que ya ni la mano, ni el pie, ni el ojo están exentos. Pero aún hay vida; pues no, ni ésta tampoco: Qui non odit patrem suum, et matrem suam, et uxorem, et filios, et fratres, et sorores, adhuc autem et animam suam, non potest meus esse discipulus. ¡Válgame Dios, qué apretado precepto que no reserva ni aun la vida! Pero aún nos queda el ser. ¿Cómo? ¡Ni el ser se reserva! Oigamos: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum. Si alguno quiere seguirme, niéguese a sí mismo. Veis ahí como nada hay reservado en importando a su servicio. Pues ¿cómo hemos de pensar que no quiere nuestro amor para sí, si vemos que los más lícitos amores nos prohibe cuando se oponen al suyo? Y no como quiera, sino que les hace guerra a sangre y fuego: ego veni ignem mittere in terram; y en otra parte: non veni mittere pacem in terram, sed gladium. Veni enim separare hominem adversus patrem suum, et filiam adversus matrem suam, et nurum adversus socrum suam; et inimici hominis, domestici eius. En que es para mí muy notable la circunstancia de decir Cristo que viene a apartar la nuera de la suegra y a hacer a los criados enemigos de su dueño. Pues, Señor, ¿qué necesidad hay de que vos los apartéis y enemistéis? ¿Ellos no se están separados y enemistados? Apartar al padre del hijo y a la hija de la madre, al marido de la mujer, al hermano del hermano, bien está, porque todos éstos se aman; pero ¿a la nuera de la suegra, a los criados del amo? No lo entiendo; porque ¿qué nuera no aborrece a su suegra, qué criado no es necesario enemigo de su dueño? Pues ¿qué necesidad hay de separarlos si ellos lo están? Ése es el mayor aprieto del precepto: que habiendo tan pocas excepciones de buenos criados y nueras amantes de suegras, no obstante los comprende, porque los pocos que suele haber de esta línea no se tengan por exentos del precepto (que ya vimos un Eliezer fiel criado de Abraham y una Rut amante de su suegra Noemí), porque es Dios muy celoso de lo que toca a este punto de la primacía de su amor y así apenas se halla plana sagrada en que no le repita: Ego sum Dominus Deus tuus fortis, zelotes. Yo soy tu Señor y Dios fuerte y celoso. Y hace de manera ostentación de su amor en sus celos que, después de haber hecho varias amenazas a la Sinagoga por sus maldades, la última y más terrible es: Auferam a te zelum meum. Como si le dijera: pues con tantos beneficios no te quieres reducir, ni con tantos castigos te quieres enmendar, yo ejecutaré en ti el mayor de todos. ¿Y cuál es, Señor? ¿Cuál? Auferam a te zelum meum: quitaré de ti mis celos, que es señal de que quito de ti mi amor.

Quiere Dios examinar la fe del patriarca Abraham y mándale sacrificar a Isaac, su hijo. Ahora reparo yo: ¿por qué es Isaac el señalado; no era hijo también Ismael?

Y si el sacrificio había de ser de un hijo, ¿no bastaba que fuese Ismael, o al menos que Dios le dijera: Sacrifícame uno de tus hijos, sin señalar cuál, y dejar libre la elección a su padre? Pues ¿por qué nombra a Isaac? Atiéndase a las palabras: Tolle filium tuum, quem diligis, Isaac, et sacrifica mihi illum, etc. ¿Así que el querido es Isaac? Pues sea Isaac el sacrificado; que parece que está Dios celoso de que

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sea Isaac tan amado de su padre, y quiere probar cuál amor puede más con Abraham, si el suyo o el del hijo.

Más. Bien sabemos que Dios sabía lo que Abraham había de hacer y que le amaba más a él que a Isaac; pues ¿para qué es este examen? Ya lo sabe, pero quiere que lo sepamos nosotros, porque es Dios tan celoso, que no sólo quiere ser amado y preferido a todas las cosas, pero quiere que esto conste y lo sepa todo el mundo; y para esto examina a Abraham. De todo esto juzgo que se puede conocer el grande aprieto con que Cristo pide nuestro amor y que cuando manda que nos amemos, es siendo su Majestad el medio de este amor. De manera que para amarnos unos a otros ha de ser Su Majestad el medio y la unión. Y nadie ignora que el medio que une dos términos, se une él más estrecha e inmediatamente con ellos, que a ellos entre sí. Cristo se pone por medio y unión: luego quiere que le amemos, cuando manda que amemos al prójimo.

Dice más Cristo: que su precepto es que amemos al prójimo como su Majestad nos ama: Hoc est praeceptum meum, ut diligatis invicem, sicut dilexi vos. Aquí sólo manda que nos amemos unos a otros. Pero para poder cumplir nosotros este precepto, ¿qué disposición hemos menester? El mismo Cristo la enseña: Qui diligit me, mandatum meum servabit; y el evangelista San Juan, en la Epístola I, capítulo 5, dice: Haec est enim charitas Dei, ut mandata eius custodiamus. Luego para cumplir el precepto de amar al prójimo hemos de amar primero a Dios. Si Cristo (como dice en otro sermón el mismo autor) se llama Vid y a nosotros Sarmientos: Ego sum vitis, vos palmites, y los sarmientos primero se unen a la vid que ellos entre sí; luego quiere Cristo, luego solicita Cristo, luego manda Cristo que le amemos.

Creo que me he alargado superfluamente en lo que por sí está tan claro; pero eso mismo causa el que ocurra tanto que decir en la materia, que se trabaja más en dejarlo que en ponerlo. De lo dicho juzgo que sale por legítima consecuencia que Cristo no hizo por nosotros la fineza que el autor supone de no querer correspondencia.

Podránme replicar que si hay fineza que sea digna de tal nombre que Cristo dejase de hacer por nosotros con su inmenso amor. Y diré yo que sí hay, porque hay finezas que les ocasiona a serlo nuestra limitada naturaleza; y ésas no hizo Cristo, porque no eran conformes a su perfección infinita, ni decentes a su inmensa Majestad, ni a la dignidad y soberanía suya. Verbi gratia: Los justos hacen por Cristo algunas finezas que Cristo no hizo por ellos, como es resistir tentaciones luchando con nuestra naturaleza, que coinquinada con el pecado, está propensa al mal, y a más de esto, el temor y peligro de ser de ellas vencido y pelear con incertidumbre de la victoria o la pérdida. Ninguna de estas dos especies de finezas pudo hacer Cristo, pues ni pudo ser tentado ni menos temer peligros de pecar. Pues aunque su Majestad fue llevado al desierto, ut tentaretur a diabolo, bien saben los doctos cómo se entiende este lugar, y lo explica el glorioso doctor San Gregorio sobre el mismo, diciendo que la tentación es en tres maneras: por sugestión, delectación o consentimiento.

Del primer modo --dice-- solamente pudo Cristo ser tentado del Demonio. Porque nosotros, cuando somos tentados, las más veces caemos o en el consentimiento o en la delectación, o podemos, al menos, caer en una de las dos cosas o en ambas; porque como hijos de pecado y concebidos en él, tenemos en nosotros mismos la semilla de la culpa, que es el fomes peccati que nos inclina a pecar. Pero Cristo, nacido de madre virgen y por concepción milagrosa, era impecable; por lo cual no pudo sentir en sí ninguna repugnancia ni contradicción al obrar bien, y así sólo pudo ser tentado por sugestión, que es una tentación

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extrínseca y que estaba muy lejos de su mente y no le podía inclinar, ni hacer guerra ninguna. Y no teniendo ni la lucha ni el riesgo, no pudo hacer la fineza de resistir ni temer el riesgo de pecar. Por lo cual dice el Apóstol: adimpleo ea quae desunt passionum Christi, in carne mea pro corpore eius, quod est Ecclesia. ¿Pues cómo, si fue copiosa la Redención: copiosa apud eum redemptio, dice San Pablo que añade o que llena la pasión de Cristo? ¿A la Pasión pudo faltarle algo? ¿Qué hizo San Pablo que no hizo Cristo? El mismo Apóstol lo dice: Datus est mihi stimulus carnis meae angelus Satanae, qui me colaphizet. Esto es lo que faltó a la pasión de Cristo: luchar con tentaciones y temer peligros de pecar; y esto es lo con que dice San Pablo que llena la pasión de Cristo; y éstas son las finezas que no pudo hacer Cristo y podemos hacer nosotros.

Pues así, el no querer correspondencia fuera fineza en un amor humano, porque fuera desinterés; pero en el de Cristo no lo fuera, porque no tiene interés ninguno en nuestra correspondencia. Pruébolo. El amor humano halla en ser correspondido, algo que le faltara si no lo fuera, como el deleite, la utilidad, el aplauso, etc. Pero al de Cristo nada le falta aunque no le correspondamos. En sí y consigo se tiene todos sus deleites, todas sus riquezas y todos sus bienes. Luego nada renunciara si renunciara nuestra correspondencia, pues nada le añade; y el renunciar lo que era nada no era ninguna fineza; y como no era fineza en Cristo, por eso no la hace Cristo por nosotros. En el libro de Job, al capítulo XXXV, se lee, hablando de la soberanía con que Dios no nos ha menester: Porro si iuste egeris, quid donabis ei, aut quid de manu tua accipiet? Homini, qui similis tui est, nocebit impietas tua; et filium hominis adiuvabit iustitia tua. De donde sale claro que nosotros necesitamos de correspondencias porque nos traen utilidades, y por tanto fuera fineza y muy grande el renunciarlas. Pero en Cristo que no le resulta ninguna de nuestra correspondencia, no fuera fineza el no quererla. Y por eso, como ya dije, no la hace Cristo por nosotros; y antes hace lo contrario, que es solicitar nuestra correspondencia sin haberla menester, y ésa es la fineza de Cristo.

Es el amor de Cristo muy al revés del de los hombres. Los hombres quieren la correspondencia porque es bien propio suyo; Cristo quiere esa misma correspondencia para bien ajeno, que es el de los propios hombres. A mi parecer el autor anduvo muy cerca de este punto, pero equivocólo y dijo lo contrario; porque, viendo a Cristo desinteresado, se persuadió a que no quería ser correspondido. Y es que no dio el autor distinción entre correspondencia y utilidad de la correspondencia. Y esto último es lo que Cristo renunció, no la correspondencia. Y así, la proposición del autor es que Cristo no quiso la correspondencia para sí sino para los hombres. La mía es que Cristo quiso la correspondencia para sí, pero la utilidad que resulta de esa correspondencia la quiso para los hombres.

Acá el amante hace la correspondencia medio para su bien; Cristo hace la correspondencia medio para bien de los hombres. De manera que divide la correspondencia y el fin de la correspondencia. La correspondencia reserva para sí. El fin de ella, que es la utilidad que de ella resulta, se lo deja a los hombres. Acá los amantes recíprocos quieren el bien de su amor para su amado, pero el bien del amor del amado para sí; Cristo, el bien del amor que tiene al hombre y el bien del amor que el hombre le tiene, todo quiere que sea para el hombre. Examina Cristo a Pedro de su amor y dícele: Petre, amas me? Responde Pedro con aquellas ardientes ponderaciones que brotaba su encendido corazón, que sí y que pondrá la vida por su amor. Veamos para qué es este examen tan apretado de Cristo. Sin duda que quiere que Pedro le haga algún gran servicio. Sí quiere. ¿Y cuál es? Pasce oves meas. Esto es lo que quiere Cristo: que el amor de Pedro sea suyo, pero que la

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utilidad resulte en las ovejas. Bien pudiera Cristo decirle a Pedro, y parece que era más congruente: Pedro, ¿amas a las ovejas? Pues apaciéntalas; y no dice sino: Pedro, ¿me amas a mí? Pues guarda mis ovejas. Luego quiere el amor para sí, y la utilidad para los hombres.

Pudiéranme, ahora, replicar diciendo: Si Cristo no ha menester el amor del hombre para bien suyo, sino para el bien del mismo hombre, y para este bien basta el amor de Cristo, que es quien nos ha de hacer el bien, ¿para qué solicita el amor del hombre, pues sin que el hombre le ame, puede Cristo hacerle bien?

Para responder a esta réplica es menester acordarnos que Dios dio al hombre libre albedrío con que puede querer y no querer obrar bien o mal, sin que para esto pueda padecer violencia, porque es homenaje que Dios le hizo y carta de libertad auténtica que le otorgó. Pues ahora, de la raíz de esta libertad nace que no basta que Dios quiera ser del hombre, si el hombre no quiere que Dios sea suyo. Y como el ser Dios del hombre es el sumo bien del hombre y esto no puede ser sin que el hombre quiera, por eso quiere Dios, solicita y manda al hombre que le ame, porque el amar a Dios es el bien del hombre. Dice el Real Profeta David que Dios es Dios y Señor porque no necesita de nuestros bienes: Dixi Domino: Deus meus es tu, quoniam bonorum meorum non eges. Aquí se conoce claro que Dios no necesita de nuestros bienes. Después, hablando en persona del mismo Señor dice, haciendo ostentación de su poder: "Yo no he menester vuestros sacrificios, ni vuestros holocaustos. Yo no recibo vuestros becerros ni vuestros hircos. Mías son todas las aves que vuelan y las fieras que pacen; mía toda la abundancia que produce en sus frutos la tierra; mía, en fin, toda la máquina del orbe. ¿Por ventura pensáis que me sustentan las carnes de los toros o que bebo la sangre vertida de los cabritos?" Pues, Señor Altísimo --le pudiéramos responder--, si de nada necesitáis porque todo es vuestro; si desdeñáis todas las víctimas y no aceptáis los sacrificios; si sois todopoderoso e infinitamente rico, ¿qué podremos hacer en vuestro servicio, vuestras pobres criaturas? Ved que es desconsuelo nuestro el no poderos ofrecer nada, porque lo tenéis todo, cuando nos tenéis tan obligados con vuestros infinitos beneficios. Sí podéis --parece que nos responde al verso 14 del mismo salmo--: Immola Deo sacrificium laudis; et redde Altissimo vota tua. Et invoca me in die tribulationis; eruam te, et honorificabis me. Como si dijera: Hombre, ¿quieres corresponder a lo mucho que te he dado? Pues pídeme más, y eso recibo yo por paga. Llámame en tus trabajos para que te libre de ellos; que esa confianza tuya tengo yo por honra mía. ¡Oh primor del Divino Amor: decir que es honor suyo lo que es provecho nuestro! ¡Oh sabiduría de Dios! ¡Oh liberalidad de Dios! Y ¡oh finezas sólo de Dios y sólo dignas de Dios! Para esto quiere Dios nuestro amor: para nuestro bien, no para el suyo. Y esto fue el primor de su fineza: no el no querer nuestra correspondencia-- como quiere el autor--, sino el quererla para bien nuestro.

Ya queda probado que Cristo quiso nuestra correspondencia y que su fineza mayor fue el quererla. Falta ahora el probar lo que prometí, que es que, cuando supongamos que fuera fineza el no quererla, no le faltaran --como quiere el autor-- pruebas, ni ejemplares, a esa fineza en la Sagrada Escritura; aunque el autor la hace tan grande y tan sin ejemplar, que dice que no ha habido quien del amor que tiene quiera para otro la correspondencia. Veamos si yo hallo alguno que lo haya hecho. Mata Absalón a su hermano Amnón por el estupro de Tamar. ¿Y qué hace su padre, el rey David? Se indigna tanto que obliga a Absalón a salir, huyendo de la muerte, a Gesur; y permanece tan airado el rey, que aun Joab, su primer ministro, no se atreve a hablar en su perdón si no es por medio de la Tecuites; y aun después de todo no quiere David que Absalón le vea la cara. ¡Grande enojo! ¡Grande ira! Vuelve

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en fin Absalón a la gracia de su padre, y apenas se ve en ella, cuando, traidor y rebelde a su amor y a su corona, se hace aclamar rey en Hebrón; procura no sólo quitar a su padre el reino, pero la vida y la honra profanando públicamente sus lechos. ¡Oh qué ofensas! ¡Oh qué ingratitudes! ¡Oh qué ultrajes! ¡Qué tal podemos esperar que esté David de indignado, de ofendido, de airado contra tan mal hijo, contra tan traidor vasallo! ¿Desabrocha las Euménides irritadas de su pecho? Poco falta para que lo veamos, que ya la fortuna de las armas está en favor de David y se podrá vengar a su satisfacción. Oigamos el orden que para esto da al general Joab: Servate mihi puerum Absalom. ¡Jesús! ¿Qué orden es ésta tan al revés de lo que se esperaba? Pues no para ahí. Quebranta Joab, inobediente, el orden; mata a Absalón. ¿Y qué hace David? ¿Qué? Llora, y se vuelve toda la victoria en llanto; y no como quiera, sino que desea ser él el muerto, porque sea Absalón el vivo: Fili mi Absalom, quis mihi det, ut ego moriar pro te? ¿Qué es esto, David; así lloráis por un hijo tan enemigo; por un vasallo tan traidor? ¿Por quien os quería quitar la vida queréis vos dar la vuestra? Y ya que es tan grande vuestro amor que le queráis perdonar tan execrables maldades contra vos, ¿cómo cuando mató a su hermano Amnón, no mostrasteis esa ternura, sino que le queríais matar a él? Éste es el mismo Absalón: pues ¿cómo ahí estáis airado por la menor ofensa que fue matar a su hermano, y aquí, por la mayor que es quereros matar a vos, no sólo no estáis enojado, mas estáis tierno? ¿Más sentimiento hicisteis de que Absalón fuese cruel con Amnón, que no de que lo fuese con vos? ¿Más sentís que faltase Absalón al amor de Amnón que al vuestro? Sí, así pasó. Pues ahora, ¿para quién pedía David la correspondencia de su amor? Bien claro se ve que para Amnón y no para sí. Luego hay prueba y ejemplares de quien busca para otro la correspondencia que se le debe. Luego cuando fuera fineza en Cristo no buscar correspondencia, no carecería de prueba, como dijo el autor; que es la segunda parte a que prometí responder.

Con lo cual me parece que, aunque con mi rudeza, cortedad y poco estudio, he obedecido a V. md. en lo que me mandó. La demasiada prisa con que lo he escrito no ha dado lugar a pulir algo más el discurso, porque festinans canis caecos parit catulos. Remítole en embrión, como suele la osa parir sus informes cachorrillos; y así lleva este defecto más, entre los muchos que V. md. le reconocerá. Pero todos van a sus manos de V. md. Unos corregirá con discreción y otros suplirá con su amistad. El asunto también, con su dificultad, deja disculpado el no conseguirse; pues en blanco inaccesible no queda tan desairado el yerro del tiro como en los comunes, y basta para bizarría en los pigmeos atreverse a Hércules. A vista del elevado ingenio del autor aun los muy gigantes parecen enanos. ¿Pues qué hará una pobre mujer? Aunque ya se vio que una quitó la clava de las manos a Alcides, siendo uno de los tres imposibles que veneró la antigüedad. Y hablando más a lo cristiano, quae stulta sunt mundi elegit Deus, ut confundat sapientes; et infirma mundi elegit Deus, ut confundat fortia; et ignobilia mundi et contemptibilia elegit Deus, et ea quae non sunt, ut ea quae sunt destrueret: ut non glorietur omnis caro in conspectu eius. Creo cierto que si algo llevare de acierto este papel, no es obra de mi entendimiento, sino sólo que Dios quiere castigar con tan flaco instrumento la, al parecer, elación de aquella proposición: que no habría quien le diese otra fineza igual, con que cree el orador que puede aventajar su ingenio a los de los tres Santos Padres y no cree que puede haber quien le iguale. Y pensando que no se estrechó la mano de Dios a Augustino, Crisóstomo y Tomás, piensa que se abrevió a él para no poder criar quien le responda. Que cuando yo no haya conseguido más que el atreverme a hacerlo, fuera bastante mortificación para un varón tan de todas

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maneras insigne; que no es ligero castigo a quien creyó que no habría hombre que se atreviese a responderle, ver que se atreve una mujer ignorante, en quien es tan ajeno este género de estudio, y tan distante de su sexo; pero también lo era de Judit el manejo de las armas y de Débora la judicatura. Y si con todo, pareciere en esto poco cuerda, con romper V. md. este papel quedará multado el error de haberlo escrito.

Finalmente, aunque este papel sea tan privado que sólo lo escribo porque V. md. lo manda y para que V. md. lo vea, lo sujeto en todo a la corrección de nuestra Santa Madre Iglesia Católica, y detesto y doy por nulo y por no dicho todo aquello que se apartare del común sentir suyo y de los Santos Padres. Vale.

Bien habrá V. md. creído, viéndome clausurar este discurso, que me he olvidado de esotro punto que V. md. me mandó que escribiese: Que cuál es, en mi sentir, la mayor fineza del Amor Divino. Lo cual me oyó V. md. discurrir en la misma conversación citada. Pues no ha sido olvido sino advertencia, porque allí, como era una conversación sucesiva, fueron llamando unos discursos a otros, aunque no fuesen muy del caso, y aquí es necesario hacer separación de los que no lo son, para no confundir uno con otro. Explícome. Como hablamos de finezas, dije yo que la mayor fineza de Dios, en mi sentir, eran los beneficios negativos; esto es, los beneficios que nos deja de hacer porque sabe lo mal que los hemos de corresponder. Ahora, este modo de opinar tiene mucha disparidad con el del autor, porque él habla de finezas de Cristo, y hechas en el fin de su vida, y esta fineza que yo digo es fineza que hace Dios en cuanto Dios, y fineza continuada siempre; y así no fuera razón oponer ésta a las que el autor dice, antes bien fuera una muy viciosa argumentación y muy censurable; por lo cual me pareció separarla, y como discurso suelto e independiente de lo demás, ponerlo aquí para que V. md. logre del todo el deseo, pues el mío es sólo obedecerle.

La mayor fineza del Divino Amor, en mi sentir, son los beneficios que nos deja de hacer por nuestra ingratitud. Pruébolo. Dios es infinita bondad y bien sumo, y como tal es de su propia naturaleza comunicable y deseoso de hacer bien a sus criaturas. Más, Dios tiene infinito amor a los hombres, luego siempre está pronto a hacerles infinitos bienes. Más, Dios es todopoderoso y puede hacerles a los hombres todos los bienes que quisiere, sin costarle trabajo, y su deseo es hacerlos. Luego Dios, cuando les hace bienes a los hombres, va con el corriente natural de su propia bondad, de su propio amor y de su propio poder, sin costarle nada. Claro está. Luego cuando Dios no le hace beneficios al hombre, porque los ha de convertir el hombre en su daño, reprime Dios los raudales de su inmensa liberalidad, detiene el mar de su infinito amor y estanca el curso de su absoluto poder. Luego, según nuestro modo de concebir, más le cuesta a Dios el no hacernos beneficios que no el hacérnoslos y, por consiguiente, mayor fineza es el suspenderlos que el ejecutarlos, pues deja Dios de ser liberal --que es propia condición suya--, porque nosotros no seamos ingratos-- que es propio retorno nuestro--; y quiere más parecer escaso, porque los hombres no sean peores, que ostentar su largueza con daño de los mismo beneficiados. Y siendo así que ésta es una como nota en la opinión de liberal, antepone el aprovechamiento de los hombres a su propia opinión y a su propio natural.

Predica el Redentor su milagrosa doctrina, y habiendo hecho en tantos lugare tantos milagros y maravillas, llega a su patria, que parece que debía ser preferida en el cariño, y apenas llega, cuando en vez de aplaudirle sus vecinos y compatriotas, empiezan a censurarle y a sacarle las que, a su parecer de ellos, eran faltas, diciendo: Nonne hic est fabri filius? Nonne mater eius dicitur Maria, et fratres

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eius, Iacobus, et Ioseph, et Simon, et Iudas: et sorores eius, nonne omnes apud nos sunt? Unde ergo huic omnia ista? Y prosigue el Evangelista: Non fecit ibi virtutes multas propter incredulitatem illorum. De manera que Cristo bien quería hacer milagros en su patria, bien quería hacerles beneficios, pero mostraron ellos luego su dañado ánimo en la murmuración y el modo con que recibirían los favores de Cristo, y por eso se contuvo Cristo en hacerlos: por no darles ocasión de ser más malos, como lo expresa el Evangelista: que no hizo muchas maravillas por su incredulidad. Y bien sabía Cristo que también le habían ellos de murmurar el no hacerlas, y tener por escaso y avaro, y así les adelantó él mismo lo que ellos habían de decir y les dijo: Utique dicetis mihi hanc similitudinem: Medice, cura te ipsum: quanta audivimus facta in Capharnaum, fac et hic in patria tua. Y para satisfacer a la calumnia antevista les dice que en tiempo de Elías había muchas viudas y sola una fue remediada, y que muchos leprosos había en tiempo de Eliseo y sólo curó a Naamán sirio, y que ningún profeta es acepto en su patria. Ellos, no entendiendo la satisfacción y prosiguiendo en la calumnia, le quisieron precipitar, confirmando con esta maldad el motivo por que Cristo no les hacía beneficios positivos, sino el negativo de no darles ocasión de cometer mayor pecado. Y éste fue el mayor beneficio que pudo Cristo hacer por entonces a su ingrata patria, en que la prefirió a aquellas dos ciudades que el mismo Señor amenaza por haber sido ingratas a las maravillas que en ellas obró, diciendo: Vae tibi Corozain, vae tibi Bethsaida: quia, si in Tyro et Sidone factae essent virtutes, quae factae sunt in vobis, olim in cilicio, et cinere poenitentiam egissent. Verumtamen dico vobis: Tyro et Sidoni remissius erit in die iudicii, quam vobis. ¡Ay de vosotras, que si en Tiro y Sidón se hubieran hecho las maravillas que se han hecho en vosotras, se hubieran ya convertido! Pero yo os aseguro que en el juicio tremendo serán ellas menos castigadas que vosotras.

Luego de este mayor cargo excusa el Señor a Nazaret con no hacerle beneficios, y entonces es el mayor beneficio el no hacerlos, porque excusa el mayor cargo que de él le resultara. Gravius --dice el glorioso San Gregorio-- inde iudicemur, cum enim augentur dona, rationes etiam crescunt donorum. Mientras más es lo recibido más grave es el cargo de la cuenta. Luego es beneficio el no hacernos beneficios cuando hemos de usar mal de ellos.

Hizo Dios a Judas, fuera de los beneficios generales, muchos particulares, y llegando el caso de su sacrílega traición, lamentando Cristo, no su muerte, sino el daño del ingrato discípulo, dice: Vae homini illi, per quem tradar ego, bonum erat ei, si natus non fuisset. Con que parece que se arrepiente de haberle hecho el beneficio de la creación, porque le estuviera mejor el no haber nacido que nacer para ser tan malo. Más claro se da a entender esto cuando ofendido Dios de las maldades de los hombres determinó acabar el mundo por agua; pues, usando de las humanas locuciones, dice el texto que dijo: Delebo, inquit, hominem, quem creavi a facie terrae, ab homine usque ad animantia, a reptili usque ad volucres coeli: poenitet enim me fecisse eos.

De manera que se arrepiente Dios de haber hecho beneficios al hombre que han de ser para mayor daño del hombre. Luego es mayor beneficio el no hacerle beneficios. ¡Ah, Señor y Dios mío, qué torpes y ciegos andamos cuando no os reconocemos esta especie de beneficio negativo que nos hacéis!

Tiene el otro corta fortuna y, cuando mucho, dice que es castigo de Dios. Cuando sea castigo, el castigo también es beneficio, pues mira a nuestra enmienda, y Dios castiga a quien ama. Pero no es sólo el beneficio de castigarnos el que nos hace, sino el beneficio de exonerarnos de mayor cuenta. Tiene el otro poca salud y le parece que está Dios sordo, porque no oye sus lamentos. No está tal, sino

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haciéndoos el beneficio de no daros salud, porque la habéis de emplear mal. Envidiamos en nuestros prójimos los bienes de fortuna, los dotes naturales. ¡Oh, qué errado va el objeto de la envidia, pues sólo debía serlo de la lástima el gran cargo que tiene, de que ha de dar cuenta estrecha! Y ya que, queramos envidiar, no envidiemos las mercedes que Dios le hizo, sino lo bien que corresponde a ellas, que esto es lo que se debe envidiar, que es lo que le da mérito; no el haberlas recibido, que eso es cargo. Estimemos el beneficio que Dios nos hace en no hacernos todos los beneficios que queremos, y los que también Su Majestad quiere hacernos y suspende por no darnos mayor cargo. Agradezcamos y ponderemos este primor del Divino Amor en quien el premiar es beneficio, el castigar es beneficio y el suspender los beneficios es el mayor beneficio, y el no hacer finezas la mayor fineza . Y si no, díganme: Dios, que dio al Mundo su Unigénito que encarnó y murió por el hombre, ¿qué podrá negar al hombre? Nada. Él mismo dice: Quis est ex vobis homo, quem si petierit filius suus panem, numquid lapidem porriget ei? Aut si piscem petierit, numquid serpentem porriget ei? Si ergo vos, cum sitis mali, nostis bona data dare filiis vestris: quanto magis Pater vester, qui in coelis est, dabit bona petentibus se? Pues, Señor, ¿cómo la madre de los hijos del Zebedeo os pide las sillas y no se las dais? Porque no saben lo que se piden, y en Dios mayor beneficio es no dar, siendo su condición natural, porque no nos conviene, que dar siendo tan liberal y poderoso.

Y así juzgo ser ésta la mayor fineza que Dios hace por los hombres. Su Majestad nos dé gracia para conocerlas, correspondiéndolas, que es mejor conocimiento; y que el ponderar sus beneficios no se quede en discursos especulativos, sino que pase a servicios prácticos, para que sus beneficios negativos se pasen a positivos hallando en nosotros digna disposición que rompa la presa a los estancados raudales de la liberalidad divina, que detiene y represa nuestra ingratitud.

Y a V. md. me guarde muchos años. Vuelvo a poner todo lo dicho debajo de la censura de nuestra Santa Madre Iglesia Católica, como su más obediente hija. Iterum vale.