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Universidade Federal de Juiz de Fora Pós-Graduação em História Mestrado em História Andréia de Freitas Rodrigues De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer considerações sobre a inspiração filosófica de “Melencolia I” Juiz de Fora 2009 1

De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

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Page 1: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Universidade Federal de Juiz de Fora

Pós-Graduação em História

Mestrado em História

Andréia de Freitas Rodrigues

De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer

considerações sobre a inspiração filosófica de “Melencolia I”

Juiz de Fora

20091

Page 2: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Andréia de Freitas Rodrigues

De Marsilio Ficino a Albrecht Dürerconsiderações sobre a inspiração filosófica de “Melencolia I”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História, área de

concentração História, Cultura e Poder, linha de pesquisa: Narrativas, Imagens e Sociabilidades,

da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre

Orientador: Professor Doutor Cássio da Silva Fernandes

Juiz de Fora2009

2

Page 3: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Rodrigues, Andréia de Freitas.

De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a inspiração filosófica de ‘Melencolia I’ / Andréia de Freitas Rodrigues. – 2009.

143 f. : il.

Dissertação (Mestrado em História)—Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.

1. Melancolia. 2. Artes - História. 3. Renascimento. I. Título.

CDU 159.974 3

Page 4: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Andréia de Freitas Rodrigues

De Marsilio Ficino a Albrecht Dürerconsiderações sobre a inspiração filosófica de “Melencolia I”

Aprovada em 14 de outubro de 2009.

_________________________________________________Orientador Professor Doutor Cássio da Silva Fernandes

UFJF

______________________________________________________Examinadora Professora Doutora Leila Maria Brasil Danziger

UERJ

__________________________________________________________Examinadora Professora Doutora Angela Brandão

UFJF

4

Page 5: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Para Vera e Atílio, Rogê e Juliana,

Cláudia e Marcelo, Izabela, Daniel

5

Page 6: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos amigos e mestres Leila e Cássio, pela disponibilidade, paciência, sensibilidade e bom humor, obrigada sempre!

À Ângela, pelo acolhimento e carinho.

Aos professores Maraliz, Sônia, Célia, Silvana, Marcos, Alexandre, Fábio, por boas críticas e conselhos.

Ao Prof. Bruno, danke schön.

Aos meus amigos, por todo apoio.

6

Page 7: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

RESUMO

O tema da melancolia tem sido fonte de atenção de filósofos, médicos, artistas, historiadores,

pensadores de várias áreas do conhecimento, desde tempos imemoriais. Parte desse interesse

se compreende pelo mistério que guarda sua própria definição, ambivalente e fascinante, que

se refere à melancolia ora como um estado de desequilíbrio doentio, ora como pecado a ser

punido, ora como estado da alma que exalta a genialidade.

Na história das artes, a melancolia sempre determinou uma iconografia à parte, desde a

antiguidade clássica. Este trabalho trata então, da melancolia abordada por um artista em

particular, em uma época específica. Tendo como ponto essencial o estudo e a interpretação

da gravura “Melencolia I”, de Albrecht Dürer, este trabalho privilegiará não apenas as

características formais desta obra, mas as várias possibilidades e conexões que a mesma

possui com o tempo e lugar onde foi produzida, principalmente a filosofia neoplatônica de

Marsilio Ficino.

Percorrendo além dos limites estreitos de uma leitura puramente formalista, a pesquisa

considera a obra de arte como uma relação complexa e ativa aos acontecimentos da história

circundante, pensando em sua análise iconográfica como um instrumento de reconstrução do

indivíduo, do ambiente, da história geral.

Palavras-chave: melancolia, Renascimento, História da Arte.

7

Page 8: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

ABSTRACT

The topic of melancholy has been a source of attention from philosophers, doctors, artists,

historians, thinkers in various fields of knowledge, since time immemorial. Part of this

interest to understand the mystery that keeps its own definition, ambivalent and fascinating,

which is sometimes referred to melancholy as a state of imbalance sick, sometimes as sin to

be punished either as a state that exalts the soul of genius.

In the history of the arts, the melancholy always the part of an iconography from ancient

classic. This work is then addressed by melancholy of an artist in particular, in a specific time.

With the key point the study and interpretation of the engraving "Melencolia I", by Albrecht

Dürer, this work focus not only the formal characteristics of this work, but the various

possibilities and connections that it has the time and place where it was produced, mainly

Neo-Platonist the philosophy of Marsilio Ficin.

Traveling beyond the narrow confines of a purely formalist reading, the study considers the

work of art as an active and complex relationship to the events surrounding the story, thinking

about his iconographic analysis as a tool for reconstruction of the individual, the environment,

the general history.

Key words: melancholy, Renaissance, Art History.

8

Page 9: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................10

2 FICINO E A MELANCOLIA............................................................................................14

2.1 A melancolia como tema desde a antiguidade ...................................................................15

2.2 Ficino e a Tradição Clássica ............................................................................................. 25

3 SOBRE A FILOSOFIA PERENE.....................................................................................43

3.1 Astrologia .......................................................................................................................... 44

3.2 Alquimia ............................................................................................................................ 47

3.3 Alegoria ............................................................................................................................. 54

4 DÜRER E A MELANCOLIA.............................................................................................61

4.1 O peso, o número, a medida .............................................................................................. 62

4.2 Gravura .............................................................................................................................. 68

5 A IMAGEM MELANCÓLICA......................................................................................... 71

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 85

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 93

ANEXO I................................................................................................................................. 98

9

Page 10: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

“Il maninconico è freddo ed asciutto Come la terra, e sempre ha il core amaro,

Resta pallido e magro e par distrutto Ed è tenace, cupido e avaro:

E vive in pianto, pena, doglia e lutto, Ed a sua infermità non è riparo:

è solitario e pare un uom monastico, senz’amicizia, ed ha ingegno fantastico1”

1 Fra’ Giovanni Maria Tolosani, La Nuova Sfera, Florença, 1514, in: KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Saturno y la melancolia. Alianza editorial: Madrid, 2004: 129. Tradução livre: “O melancólico é frio e seco. Tal como a terra, e tem sempre um centro amargo, Continua pálido e magro e sem par, E é tenaz, ganancioso e avarento: E vive em lágrimas, tristeza, dor e luto, E a sua enfermidade não tem proteção: é solitário e parece um tanto monástico, sem amizade e tem um grande talento.”

10

Page 11: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

INTRODUÇÃO

Começo por uma imagem:

Melencolia I. Albrecht Dürer.

Gravura em buril, 1514. 239 x 168 mm. Paris, Bibliothèque Nationale.

11

Page 12: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Existem imagens que marcam e definitivamente, nos acompanham ao longo do tempo.

Estamos em 2009 e 495 anos me separam desta obra, a primeira vez que a vi de fato, foi em

2002, mas todas as vezes que a olho, ainda o vigor dos sentidos provocados pela primeira

visão, mesmo que abrandados pelo tempo ou distraída na vida cotidiana, me fazem retornar

sempre à sensação do estranhamento inicial.

A proposta parecia simples: após uma minuciosa observação de uma reprodução da gravura,

deveria desenvolver alguns exercícios de releitura e/ou experiências da melancolia para a

disciplina Desenho IV. No entanto, o que deveria ser uma primeira visão, pareceu-me tão

familiar, tão íntima, tão aconchegada que seria impossível que ainda não fizesse parte do meu

repertório imagético. O tema, a construção, o espaço plástico, o acúmulo, a figura central, o

abandono, eu já os conhecia de alguma forma e até faziam parte de alguns trabalhos que vinha

desenvolvendo.

Examinando um pouco mais atentamente, percebi que obras que conhecia anteriormente, de

artistas como Leonilson, Iberê Camargo, Goeldi, Ismael Nery, Van Gogh, Arnold Böcklin,

Domenico Feti, Giacometti, Lucas Cranach, Anselm Kiefer, guardavam em seu interior uma

relação com a melancolia, com aquela gravura.

E aí me perguntava porque ou como semelhante alegoria, tão ligada ao espírito do

Renascimento ressurgia em obras posteriores, em diferentes épocas e estilos? O que faz uma

obra ser tão impactante? Quais as razões para sua permanência e atualidade? Quais sentidos

evoca? Como trabalhar com a obra, tentando encontrar indícios para compreensão dessas

questões?

Comecei a perseguir e juntar textos, livros, obras de autores e artistas que trabalharam com o

tema, tentando encontrar relações que pudessem estabelecer uma analogia entre a obra de

Dürer e outras, que ao longo do tempo foram sendo produzidas. E não foi pouco o material

reunido... assim como não foi pequena a dificuldade em destrinchar tudo aquilo, encontrando

um caminho que fizesse sentido.

A pesquisa aqui apresentada resultou do estudo de documentos e textos diversos, capazes de

restituir uma trajetória histórica e iconográfica da melancolia e sua inserção temporal no

Renascimento. Embora inicialmente meu interesse fosse mais amplo, neste momento um

recorte definido do assunto foi necessário, para uma compreensão mais clara do caminho que

começava a trilhar. Tão importante quanto à gravura em si, foi o ambiente que a influenciou e

que por ela foi influenciado posteriormente. Portanto, priorizei a análise da complexa teia que

envolve o tema e o artista, sua produção artística anterior e posterior, o ambiente renascentista

italiano e alemão, tomando por base o trabalho do filósofo italiano Marsilio Ficino. Procurei 12

Page 13: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

explicações e respaldo no estudo teórico e na investigação das relações estabelecidas neste e

na reflexão do tema em questão, esperando certamente, encontrar referências suficientes para

compreender a longa trajetória da melancolia nas artes e em um outro momento dar

continuidade ao estudo, relacionando a gravura e o tema à arte brasileira.

É uma pesquisa que abrange a história da arte num trabalho historiográfico claramente

interdisciplinar, em contato com a filosofia, literatura, psicanálise, mas principalmente, e é

claro, a história, como área do conhecimento. O ponto de partida é a experiência efetiva da

arte, da análise histórica e plástica de “Melencolia I” e sua fortuna crítica. O objeto analisado

somente será compreendido e terá sentido dentro de um contexto que relacione seus aspectos

formais, históricos e culturais, suas ligações, mediações e contradições, considerando-os todos

e seguindo seus desdobramentos, dentro do processo de produção artística e vivência pessoal

de seu autor, abordando o trabalho de pesquisa em História e História da Arte: artistas, obras,

épocas, contextos.

A pesquisa segue então, dividindo-se basicamente em duas partes distintas mas

complementares. A primeira analisa as fontes teóricas e plásticas que Dürer provavelmente

conheceu e se deixou influenciar, principalmente o Neoplatonismo florentino, na figura de

Marsilio Ficino. Aqui, traço um breve histórico do tema, desde a antigüidade clássica,

retomando alguns conceitos médicos, astrológicos, alquímicos e alegóricos, que serviram de

fonte inspiradora ao filósofo de Careggi e procuro encontrar as bases de sua obra “De vita

triplici”, ponto que considero central como inspirador da gravura dureriana.

A segunda fase então, desdobra-se na relação da obra de Dürer não apenas em seu contexto

cultural, mas também com o universo artístico onde o artista atuou, ou seja, abordando Dürer

como um dos mais destacados artistas do Renascimento e representante da renovação cultural

fora da Itália. Analisa a obra em si, reconhecendo em cada objeto gravado reminiscências da

filosofia neoplatônica estudada anteriormente, identificando esta relação e delineando uma

trajetória do tema melancolia no trabalho de Dürer, desde os primeiros trabalhos onde aborda

o assunto até a produção das gravuras da tríade “O Cavaleiro, a Morte e o Diabo” (1513),

“São Jerônimo em sua cela” (1514) e “Melencolia I” (1514) e todas as possíveis influências e

confluências que outros autores e/ou obras possam ter tido ao longo de sua produção artística.

Aqui será possível analisar e discutir aspectos da história da arte e do homem, tanto como

produtor quanto receptor das produções artísticas, tendo a recorrência do tema (melancolia) ao

longo da história, mas principalmente no Renascimento, onde é estabelecida a imagem que

permanecerá13

Page 14: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

exemplo do estado melancólico até os dias atuais, levando-se em conta o contexto histórico,

social, cultural onde a presença deste estado anímico surge, ressurge, refaz seu conceito e se

torna modelo para épocas posteriores.

Diante da quantidade e intensidade das interpretações que acompanham esta obra e das

oscilações que cercam tanto a gravura, quanto o conceito da melancolia em seu trajeto

histórico, espero chegar à considerações que levem, certamente não a uma resposta definitiva

e que nem acredito possível, mas à uma compreensão dos conceitos e ligações deste

sentimento, comportamento que durante o Renascimento, desvela uma idéia que abre espaço

para manifestações posteriores na história da arte.

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Page 15: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

FICINO E A MELANCOLIAMalencolia significa ingegno2

2 PANOFSKY, Erwin. Vida y arte de Alberto Durero. Madri: Alianza Forma, 2005: 179. “Malencolia significa ingegno”: melancolia significa genialidade. Nesta parte do texto, Panofsky tece um longo comentário sobre a influência da idéia de Aristóteles e Platão sobre os neoplatônicos, quando se tratava da melancolia e o sentido da genialidade que acompanhava os homens por ela acometidos. A glorificação da melancolia. A citação seria atribuída à Aristóteles.

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Page 16: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

A Melancolia como tema desde a antiguidade

A melancolia aparece por volta de 900 a.C., em textos bíblicos do Antigo Testamento, na

história do melancólico Saul3, nomeado ao trono por Samuel. O rei de Israel, após não

cumprir as resoluções de seu antecessor, é tomado por um “mau espírito”, a “melancolia do

rei”. Seu estado de ânimo, abalado pela culpa às suas transgressões, viveu o embate de uma

gestão que exigia a sábia dialética entre o velho e o novo, a dignidade e a responsabilidade,

levando o monarca à loucura. A causa da melancolia do rei era produto da cólera divina.

“Ora, o Espírito do Senhor retirou-se de Saul, e o atormentava um espírito maligno da parte do Senhor (...) E quando o espírito maligno da parte de Deus vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa, e a tocava com a sua mão; então Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele.” 4

Na Grécia, cerca de 850 a.C., Belerofonte encarnou o sofrimento melancólico do herói, que

após cometer a grave infração de tentar ascender ao Olimpo, foi abatido pelo ódio dos deuses

e condenado a errar sozinho na planície de Aléion, com o coração devorado pela mágoa,

evitando o vestígio dos homens. A melancolia de Belerofonte seria a primeira forma clássica

de loucura.

“(...)Mas, quando, alfim se tornara também, pelos deuses, odiado,e pelos campos Aleios famosos vagava sozinho,a alma por dentro a roer e a fugir do convívio dos homens(...)”5

Em torno do século V a.C., a melancolia escreveu-se nas tragédias de Ésquilo e Eurípedes. No

primeiro, a concepção de melancolia oscila entre uma visão puramente mítico-religiosa,

lembrando Homero e a que admite no interior do próprio homem a causa do distúrbio.

Orestes, personagem de Ésquilo, pode ser considerado profundamente melancólico, produto

de conflitos impostos por destinos que transcendem qualquer possibilidade de escolha

individual. Orestes recebe a ordem de Apolo para matar sua mãe e assim vingar o assassinato

de seu pai. Entretanto, ao não obedecer à ordem, entra em um terrível tormento, que assume

3 SCLIAR, Moacir. Saturno nos Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003: 64. “Melancólico é o adjetivo que mais comumente se aplica a ele (não porém no texto bíblico: o termo só surgia séculos depois)”.4 Bíblia Sagrada. Velho Testamento. Primeiro livro de Samuel, capítulo 16, versículos 14 – 23. Imprensa Bíblica Brasileira: Rio de Janeiro, 1995:256 – 257. É interessante perceber que já nesta passagem, a música está indicada no alívio daquela aflição causada pelo mau espírito. Também Hipócrates, Galeno e mesmo Marsílio Ficino viam na música um recurso no tratamento da melancolia. 5 HOMERO. Ilíada. Tradução Carlos Alberto Nunes. Ediouro: Rio de Janeiro, 2001: 121.

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Page 17: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

todas as características de um conflito melancólico. Eurípedes descreveu a melancolia como

uma luta interior do homem, entre suas paixões e as censuras sociais, entre o desejo e a

repressão, entre a razão e a emoção. Assim, o autor descreveu a melancolia de Fedra, fruto de

um embate decorrente de uma paixão adúltera.

No mundo clássico, a melancolia ainda está presente nos escritos de Aulus Cornélius Celsus

(25 a.C. – 50 d.C.), que recomendava a exposição ao sol para o tratamento da melancolia e

Rufus de Éfiso (98 – 117) que considerava a melancolia originada pela bile negra.

Em sua origem grega, a palavra melancolia significa bile negra: “melas” (negro) e “kholé”

(bile), que corresponde à transliteração latina melaina-kole.6 Em Pitágoras verificamos algum

rastro do temperamento melancólico. Sua estruturação do mundo se baseou no número,

simetria e harmonia. A importância do número quatro e a descrição das categorias tetraédicas

para ordenar a realidade, a definição da saúde como equilíbrio entre partes distintas, tudo isso

constitui uma base para a futura teoria dos quatro humores.

É certo que suas primeiras definições surgiram a partir da atenção voltada à fisiologia do

corpo humano. Seu conceito é atribuído a Hipócrates (460 – 377 a.C.), que a definiu no

Aforismo 23 do livro VI como um estado de tristeza e medo de longa duração: “Se o medo e a

tristeza duram muito tempo, tal estado é próprio da melancolia” 7, e considerou duas formas

de melancolia: a endógena, aquela que aparece sem motivo aparente; e a exógena, que surge

em resultado de um trauma externo. O médico de Cós situou a bile negra entre os quatro

humores juntamente com a fleuma, a bile amarela e o sangue, líquidos presentes no corpo

humano. Esta teoria da melancolia desenha uma lógica de pensamento que vincula

diretamente o microcosmo e o macrocosmo, integrando em um campo de correspondências as

estações do ano estabelecidas por Pólibo, as etapas da vida, os planetas conhecidos e os

elementos básicos da natureza. A melancolia corresponde, no ciclo das estações, com o

outono, que precede o inverno, como na vida, a velhice precede a morte. No plano

6 Melancolia, sf. “estado de tristeza, depressão” XV, melanconia XIII, Menãcoria XIV, manencoria XV, malancolia XV, etc. Do latim melan – cholia, derivado do grego melagcholia: de melan(os) “negro”, “sombrio”, “triste”, “funesto” + cholé “bilis”, “fel”, “veneno”. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa, 1982. KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Saturno y la melancolia. Alianza editorial: Madrid, 2004: 267. Tradução livre. Klibansky chama atenção para o manuscrito 1205 da Biblioteca Riccardiana de Florencia de Nicodemo Tranchedini, alto funcionário e embaixador de Francesco Sforza em Florença, onde podemos ler os equivalentes latinos para melanconia: “Melanconia, anxietas, egritudo, animi, afflictio, solicitudo, menor, mesticia, amaritudo, mestitudo, dolor, angor, cura, molestia, turbatio, perturbatio, calamitas, languor, procella, difficultas, tristia, confusio, pena, scrupulum, supplicium, stimulus, miseria”. Segundo o autor, “esta enumeração seria interessante porque circunscreve o campo semântico que a palavra tinha por volta de 1450-1460, quando Ficino era jovem e nos permite verificar até que ponto este a alterou ou enriqueceu”. 7 BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia e contemporaneidade. Cadernos Espinosianos XVII, São Paulo. Disponível em: www.ffich.usp.br/df/espinosianos. Acesso em fevereiro/2008.

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Page 18: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

psicológico, esse estado crepuscular da natureza simboliza o estado crepuscular da alma

desamparada e ociosa, que se sente impotente para apreender a realidade. Considerava-se que

a “justa medida” entre as substâncias corporais corresponderia à expectativa de vigor humano 8, sendo possível encontrar variações de simbologia e associações cósmicas, mas de modo

geral, delimitadas do seguinte modo:

Substância Elemento Estação do ano Período da vida PlanetasSangue Ar Primavera Infância Júpiter

Bile amarela Fogo Verão Adolescência MarteBile negra Terra Outono Maturidade Saturno

Fleuma Água Inverno Velhice Lua

O processo de patologização da melancolia começa aí. Hipócrates foi o primeiro a pensar no

desequilíbrio dos quatro humores (fig. 05) como causa determinante das doenças.

“(...)O corpo do homem contém sangue, fleuma, bile amarela e negra — esta é a natureza do corpo, através da qual adoece e tem saúde. Tem saúde, precisamente, quando estes humores são harmônicos em proporção, em propriedade e em quantidade e, sobretudo quando são misturados. O homem adoece quando há falta ou excesso de um desses humores, ou quando ele se separa no corpo e não se une aos demais. Pois é necessário que, quando um desses humores se separa e se desloca para adiante de seu lugar, não só este lugar donde se desloca adoeça, mas também o lugar no qual ele transborda, ultrapassando a medida, cause dor e sofrimento. E quando um desses humores flui para fora do corpo mais do que permite a sua superabundância, a evacuação causa sofrimento. Se, por outro lado, for feita a evacuação, a metástase e a separação dos outros humores dentro do corpo, é forçoso que isto cause, conforme o que já foi dito, um duplo sofrimento: no lugar do qual se deslocou e no lugar em que superabundou.Tendo prometido, realmente, demonstrar que as substâncias que eu afirmaria constituírem o homem são sempre as mesmas segundo o costume e a natureza, afirmo então serem elas o sangue, a fleuma e a bile, tanto amarela quanto negra. E, primeiramente, afirmo que os nomes desses humores, segundo o costume, se distinguem, e nenhum deles tem o mesmo nome. Em seguida, de acordo com a natureza as aparências se diversificam: nem a fleuma se parece com o sangue nem o sangue com a bile nem a bile com a fleuma(...)” 9

Influenciado pela filosofia de Empédocles, seu contemporâneo, via a natureza composta por

quatro elementos (água, fogo, terra e ar) definidos pela mistura, duas a duas, das quatro

propriedades básicas: seco ou úmido, frio ou quente. Hipócrates relacionou os elementos aos

8 KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F.. Opus cit.: 31-32.9 CAIRUS, Henrique. Da natureza do homem Corpus hippocraticum. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.6, n.2, Out.1999.

Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid. Acesso em fevereiro/2008.18

Page 19: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

quatro humores do corpo humano, determinando assim quatro temperamentos segundo os

quais respondemos às vicissitudes, aos fatores climáticos causadores de doenças e

principalmente, aos nossos sentimentos. Para ele, os quatro humores corporais eram

responsáveis pelas associações entre o corpo e a mente. Os de fluxo sanguíneo acentuado

eram normalmente calorosos, tendendo à cólera. Os fleumáticos, aqueles de excessivo fluxo

de linfa, eram necessariamente serenos e tranquilos. Já a demasia da bílis amarela

representava o indivíduo normalmente agressivo. Finalmente, os problemas com a bílis negra

eram diretamente incidentais no baço, uma manifestação fisiológica que culminava na

melancolia. O médico grego afirmou ainda que as moléstias causadas por repleção curam-se

pela depleção e vice-versa, ao que ele chamou de "cura pelos opostos". Hipócrates sugeriu um

programa de cura que unia vários procedimentos, incluindo dietas, idade, compleição física,

disposição do espírito:

“(...)Pois é evidente que as dietas que o homem segue não lhe são propícias, quer em sua totalidade, quer em grande parte, quer em um só de seus pontos; deve-se adequar o que foi observado, tendo em vista a natureza, a idade e a aparência do homem, a estação do ano e o tipo de doença, e proceder ao tratamento, ora separando, ora juntando os elementos, como foi dito outrora por mim, e lutar contra cada condição das idades, das estações, dos aspectos, das doenças, com remédios e com dietas(...)”10

Este pensamento teve seu apogeu na releitura da doutrina dos quatro temperamentos, a

primeira, atribuída a Galeno de Pérgamo (129 - 200), médico e físico que viveu em Roma nos

primeiros anos da Era Cristã e sintetizou os conhecimentos surgidos ao longo dos cinco

séculos anteriores. A medicina galênica estruturou-se no diagnóstico sindrômico e energético

das moléstias e no aprimoramento sobre aquilo que Hipócrates chamara ciência dos opostos.

Galeno acreditou que o cérebro regulava as faculdades racionais, tais como julgamento,

imaginação, memória, mas que as emoções seriam controladas pelo coração e fígado,

considerado principal órgão humano. Galeno ainda dizia que a bile negra seria feita das partes

menos puras e nutritivas do quilo ingerido. Por ser espessa, tendia a descer, enquanto o

sangue, mais vivo e energético a subir. Era função do baço regular esse movimento e purificar

o sangue da bile negra. Quando não executava essa função, havia um acúmulo de humor

estagnado, o qual emitia o vapor negro provocador da melancolia. Galeno ainda relacionou os

humores aos tipos físicos e disposições emocionais: o melancólico seria magro, pálido,

taciturno, lento, silencioso, desconfiado, invejoso, ciumento, solitário. O melancólico sofreria

10 CAIRUS, Henrique. Opus cit.19

Page 20: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

de insônia e como a coruja, símbolo de sabedoria, mas ave triste, não estimava a luz.11

Outro desdobramento importante está na obra de Constantinus Africanus (1010 – 1087),

monge beneditino, autor árabe medieval nascido em Cartagena e fundador da escola médica

de Salerno no Século XII, seguidor da filosofia aristotélica, adotou as teorias de Hipócrates e

Galeno e traduziu para o latim, a partir do árabe, a obra dos médicos gregos, conservando as

concepções desses autores. No início de seu livro “De melancholia”, lê-se:

“Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem na alma parecem ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimos porque confundem a alma. Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muito intensamente amado. O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano.”12

Essa noção de tristeza desenvolveu-se como uma teoria da perda. Melancólicos são, entre

outros, aqueles que perderam filhos e amigos queridos, ou algo precioso que não puderam

restaurar. Como se observa, o melancólico estaria num lugar, do qual vê com sofrimento o

passado, em razão das perdas e se perturba com o futuro, pelo medo de outro possível dano. A

partir dessa base, Constantinus elaborou uma série de reflexões de cunho médico para

estabelecer relações de causa e efeito entre problemas físicos e emocionais.

Tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia apresentou-se como uma doença.

Para o primeiro, a constituição da melancolia, como desequilíbrio da bile negra, decorre de

uma degradação do sangue, de uma putrefação, que desordena o funcionamento do corpo. Já o

segundo, atenta para a alteração emocional. Ambos apresentam estratégias para a cura,

fundamentadas na alimentação, na bebida e na música. Para deter as causas, entretanto, era

preciso mais do que tudo um senso de medida. A bile negra emite vapores que causam

delírios. Ela seria resultado de excessos ou faltas. Existe um modelo de equilíbrio humano,

que supõe a capacidade de dosar, na vida, o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a

comida e a bebida, as paixões da alma. O excesso de algum desses elementos pode gerar no

corpo um efeito nocivo. Chama a atenção, na argumentação de Constantinus, a idéia de que o

excesso de meditação e a tentativa de investigar o incompreensível provocam melancolia.

Além da determinação de que a melancolia seja uma doença, na Grécia também se elaborou a

idéia de que ela fosse um “estado de exceção”, responsável por capacidades distintivas. Em

Aristóteles (384 – 322 a.C), ela apareceu como privilégio dos homens verdadeiramente fora

do comum. Mas para ele não apenas os heróis trágicos e sim todos aqueles que se destacavam

11 SCLIAR, M. Opus cit.: 71-72.12 KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Opus cit.: 100 -101.

20

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no domínio das artes, da poesia, da filosofia e da política, eram marcados pela melancolia. A

melancolia que ele evoca não é uma doença, mas sim a própria natureza dos filósofos, o seu

ethos (sua moral). A proposição atribuída a Aristóteles, levou à compreensão de que existiria

uma ligação entre a postura melancólica e o pensamento contemplativo necessário para a

filosofia.13

É em “Problema XXX”, um dos trinta e oito livros curtos que compõe “Problemas”, onde

Aristóteles, tratando do pensamento, da sabedoria e da criação, influenciou a interpretação do

gênio humano mais do que todos os outros escritos. Sua obra, aliás, seria uma daquelas que,

sem destacar-se por seu estilo ou pela densidade de pensamento, mantém sua fulguração

inalterada: “Um sentimento de familiaridade nos liga a [obras como essa]”, afirma o filólogo

Jackie Pigeaud, para quem tais obras falariam de “evidências, ou antes, de idéias que

recebemos não sabemos mais de onde (...) narram lugares-comuns de nossa própria cultura

(...)” 14

“Por que todos os homens que foram excepcionais (perittoí) no que concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes aparecem como seres melancólicos (melancholikoí), ao ponto de serem tomados pelas enfermidades oriundas da bílis negra (apò melaínes cholês) - como o que se diz de Hércules nos [mitos] heróicos? Pois este parecia ser desta natureza (tês phýsios), e é por este motivo que os antigos designaram doença sagrada as enfermidades dos epilépticos (...)Ainda há [os mitos] a respeito de Ájax e Bellerofonte: dos quais um tornou-se completamente ekstátikos, enquanto o outro buscava lugares ermos (tàs eremías edíoken), por isto Homero compôs assim: “Mas, depois que ele [Bellerofonte] tornou-se odiado por todos os deuses, vagou sozinho pela plana Aléia, roendo seu coração (thymón) e alijando o caminho dos homens". E, dentre os heróis, muitos outros parecem sofrer o mesmo pathos (homoiopatheîs) que esses. Entre os mais recentes, Empédocles, Platão e Sócrates e muitos outros dentre os ilustres. E, ainda, a maior parte dos que se ocupam da poesia. Para muitos destes, estas enfermidades (nosémata) surgem de uma determinada mistura (kráseos) no corpo; para outros, sua natureza inclina-se visivelmente para estes pathe. Todos são, então, para falar simples, tal qual sua natureza, conforme foi dito(...)O humor (chymós) e a mistura da bílis negra são pneumáticos. E é por isso que os médicos dizem serem melancólicas as afecções pneumatóides (pneumatóde páthe) e as hipocondríacas (hypochondriaká)(...)O que torna-se evidente a partir de certas conformações: dos melancólicos muitos são, com efeito, secos (sklerói) e as [suas] veias são salientes. E a causa disto não [é] a grande quantidade de sangue, mas de pneuma; porque nem todos os melancólicos são secos ou negros, mas, sobretudo, aqueles mal-humorados (kakóchymoi), é uma outra questão (lógos). Mas, retornemos sobre aquilo que, desde o princípio, tomamos para discorrer, que na natureza tal humor -

13 KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Opus cit.: 39 - 57.14 PIGEAUD, Jackie. Apresentação. ARISTÓTELES. O Homem de Gênio e a Melancolia. O Problema XXX, 1. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1998: 7.

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o melancólico - se mistura diretamente; pois é uma mistura do quente e do frio, e a natureza se compõe destes dois. Por isso, também, a bílis negra se torna tanto muitíssimo quente quanto muitíssimo fria(...)A bílis, negra, que é fria por natureza e não sendo superficial e, estando assim como se disse, se superabunda no corpo, produz apoplexias (apoplexías), ou torpor (nárkas) ou atimias (athymías) ou temores (phoboús); se está superaquecida, [produz] eutimias acompanhadas de cantos (oidês euthymías), êxtases (ekstáseis), erupções de úlceras (ekdzéseis elkôn) e outras [coisas] semelhantes. Então, para muitos, [a bílis negra] que se origina da alimentação diária, não produz nenhum ethos, com relação aos diferentes, mas resulta apenas em alguma enfermidade melancólica. Aqueles que possuem em sua natureza uma tal mistura, estes tornam-se imediatamente variados, no que diz respeito aos éthe, diferentes segundo cada mistura(...) Tal como a mistura melancólica produz anômalos nas enfermidades, assim também ela própria é anômala; pois ela é tanto fria, como a água, quanto quente(...)Então, para dizer o que é capital, pelo fato da dýnamis da bílis negra ser anômala, anômalos são os melancólicos; pois ela pode se tornar muito fria e muito quente. E pelo fato de ela ser criadora-de-ethos (ethopoiós) (pois, do que está em nós, principalmente o quente e o frio criam ethos), como o vinho que, sendo misturado em maior ou menor [quantidade] no corpo, torna-nos de determinado tipo quanto ao ethos. Ambos [são] pneumáticos, o vinho e a bílis negra. Posto que é possível ser a anomalia bem governada (eúkraton) e se apresentar de uma boa forma, em que a disposição (diáthesis) deve estar mais quente e novamente fria, ou vice-versa, de acordo com a extremidade apresentada: excepcionais (perittoí), então, são todos os melancólicos, não por enfermidade (nóson), mas por natureza.” 15

Sem questionar o fato de que todo ser de exceção, nos mais variados domínios, é um

melancólico, Aristóteles oferece exemplos e aborda diretamente as causas da melancolia – o

excesso de bile negra, resíduo instável por excelência. O pensamento aristotélico elevou a

condição melancólica a uma certa consagração, pois a melancolia passou a ser considerada

um agente de precisão máxima da sensibilidade, revisto e exaltado principalmente durante o

Renascimento: o temperamento melancólico, por sua natureza favorável, era uma

característica de personalidade própria de heróis e pensadores, daqueles que se destacavam

em diferentes frentes de atuação. Isto fez com que a idéia de uma enfermidade melancólica,

corporal ou espiritual, presente em Hipócrates, Galeno ou mesmo na melancolia de Saul, se

transportasse para a idéia de um caráter melancólico nobre, com grande ressonância durante o

humanismo principalmente. Para além de seus elementos perturbadores, a melancolia

constituía um reforço de percepção, que paradoxalmente, embora provocasse desordens de

pensamento, permitia sentir e contemplar de modos que, em condições equilibradas, não

seriam possíveis.

A argumentação de Aristóteles toma como ponto principal a defesa da propriedade da

15ARISTÓTELES. Problema XXX. Tradução de Elisabete Thamer. Disponível em: www.ifcs.ufrj.br/~fsantoro/ousia/traducao. Acesso em fevereiro/2008. Grifos meus.

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inconstância que a bile negra tem. O filósofo explica que ela pode comportar-se de maneira

variável, tornando-se muito quente ou muito fria, podendo causar efeitos diversos. A

multiplicidade de marcas de comportamento da bile negra faria do melancólico um ser

polimorfo, apto a agir e sentir de maneiras diversas e contraditórias, oscilando entre a apatia,

o desapego à vida e as manifestações eufóricas. O polimorfismo da melancolia seria uma das

raízes de não haver uma definição rigorosa para ela (o polimorfismo da bile negra foi

associado na Idade Média e Renascimento, às propriedades plásticas de mutação do diabo): a

inconstância da bile negra tornava inconstantes os melancólicos.

Em contraste com a perspectiva clássica, teólogos medievais concebiam a melancolia como

uma doença, apenas com algumas exceções. Para William de Auvergne, um aristotélico,

representava um estado de graça e para Crisóstomo, um estado espiritual de profunda

introspecção e que só a oração poderia tornar suportável ou até compreensível. A maioria,

como Hildegard de Bingen, reforçou o sentimento de que a melancolia refletia não um estado

de graça, mas de queda - o derradeiro objeto de desespero - descrevendo a melancolia não

simplesmente como uma doença mental, mas como uma sentença final. Um médico

competente poderia produzir algum alívio da dor, mas a doença era incurável, hereditária e

universal. Para os filósofos clássicos era desejável; aos teólogos medievais era anátema. Este

dilema é particularmente agudo para os seguidores de Platão, para quem a melancolia tinha

tomado uma dimensão espiritual.

Por volta dos séculos VIII e IX buscou-se uma correspondência astrológica entre

temperamentos e planetas, amparada por fontes árabes, que continham um sistema completo

de coordenação: o temperamento sanguíneo se ligava a Vênus, o colérico com Marte, o

fleumático com a lua. O melancólico foi então associado com Saturno e o deus Cronos, todos

marcados por profunda dualidade. O planeta distante, de lenta movimentação, considerado

entre os antigos o mais elevado no firmamento e por isso superior, extremo e frio, seria capaz

de influenciar o desenvolvimento das capacidades incomuns.

“Saturno é um planeta maligno, frio e seco, noturno e pesado e por isso, nas fábulas se apresenta velho. Seu círculo é o mais distante da Terra e ainda assim é o mais nocivo... Quanto à cor, é pálido, lívido como o chumbo, porque tem qualidades mortíferas, a saber, a frieza e a secura. Daí que o nascido ou concebido sob seu domínio, ou morrem ou tomam suas piores qualidades. Segundo Ptolomeu, em seu livro dos juízos, sobre os astros apresenta um homem feio, malfeitor, pesado, triste, raras vezes alegre ou risonho.”16

16 ANGLICUS, Bartolomeus. De propietatibus rerum, in: KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. 23

Page 24: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Para os gregos, Cronos é, por um lado, o deus benéfico da agricultura, que realiza festas nas

colheitas; de outro, um deus sombrio, solitário, que vive na extremidade mais recolhida da

terra, deus da morte e dos mortos. Pai dos deuses e dos homens, ele é capaz de devorar seus

próprios filhos (Fig. 14). A melancolia também tem uma especial relação com o tempo: para o

melancólico, a temporalidade é quantificada, espacializada. O porvir se vê sempre relacionado

ao passado. Também os neoplatônicos consideraram Saturno superior a Júpiter e a todos os

outros planetas. Enquanto Júpiter simbolizava meramente a “alma” do mundo, aqueles que

sabiam governar, Saturno simbolizava a “mente” e a inclinação para contemplação e

investigação tanto das coisas consideradas celestes como daquelas consideradas terrenas.17

Para a tradição cabalística, Saturno rege a esfera de “Binah”, cuja cor é o negro e possui a

faculdade da inteligência. Por isso os neoplatônicos atribuíram à Saturno o dom da sabedoria.

Já a alquimia trata Saturno como símbolo do chumbo e da putrefação.

Assim, a posição do planeta Saturno, as atitudes de Cronos e as suscetibilidades da bile negra,

oscilando entre graus intensos e opostos, fazem parte de uma articulação que confirma a

vocação do melancólico para sentimentos extremos.

Na Idade Média ocidental também surge o termo acedia ou acídia, desgaste ou perturbação do

coração, doença normalmente verificada entre os monges e solitários, assim como os

anacoretas que viviam próximos ao deserto de Alexandria. Era na plenitude da solidão que

este acometimento, também considerado um pecado, configurava uma espécie de desolação

naqueles que sofriam de seu mal, gerando uma inquietude quase paralisante e sonolência

excessiva. Os textos religiosos acusam a acedia de ser uma das causas de um dos maiores

pecados: a preguiça. A acídia estava associada à "tristitia" e à "desperatio".

No pensamento grego, a atitude melancólica foi associada à geometria e à ametria, isto é, a

uma desproporção das medidas humanas, uma defasagem. Sem conseguir a simetria

(suficiência), o melancólico é jogado na ametria (insuficiência). A confusão entre a

sensibilidade melancólica e geométrica remontam à Saturno, governador do tempo,

correspondendo à geometria e em geral, tudo o que se refere à medida do tempo, do espaço e

suas aplicações. O geômetra, que trabalha com números é aquele que vive sob o império de

Saturno.

As atividades geométricas, a ciência da perspectiva por exemplo, que supõe na pintura a

ordenação das propriedades do espaço ou também a arte de construir, a arquitetura, que tanto

Opus cit.: 191.17 PANOFSKY, E. Vida y arte de Alberto Durero. Madri: Alianza Forma, 2005:180 – 181.

24

Page 25: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

se baseia na medida, no peso e na tensão dos materiais, são atividades que se situam sob o

signo da melancolia (Fig 35).

A ação da bile negra acentua a fragilidade do sujeito melancólico, mas, por outro lado,

constitui capacidades perceptivas incomuns. Estas estimulam o sujeito a transcender às

limitações da normalidade. Dotado de dons que o elevariam, esse sujeito é impedido por suas

limitações e impotências. Essa frustração é agravada pelo fato de o melancólico acreditar que

o pensamento ordenado não o permite avançar até o absoluto. Num mundo em que a

matemática é um saber importante, essa posição é paralisante. O melancólico vê o

conhecimento inteiramente ordenado como ineficiente para seus propósitos, como adverte

Olgária Matos:

“(...)aliança entre geometria e melancolia tem uma longa tradição: aqueles dotados para a geometria são predispostos à melancolia, porque a consciência de uma esfera situada fora de seu alcance faz sofrer àqueles que têm o sentimento da limitação e insuficiência no plano do espírito.”18

18 MATOS, Olgária. Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1989: 152.

25

Page 26: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Ficino e a Tradição Clássica

O período histórico-cultural do Renascimento circunscreve os anos que vão de Petrarca a

Francis Bacon, contando mais ou menos trezentos e cinquenta anos. A fase mais intensa e

central desta circunscrição compreende em média cinqüenta anos –vinte e cinco últimos do

século XV e os primeiros do XVI. Foi a época em que as sociedades européias viveram o

impacto das transformações que se seguiram à Idade Média. Tempo de profundas

modificações, quando o divórcio, como se pensou no começo do século XIX, entre o

“pensamento puro, cartesiano, científico e as forças obscuras vitais, almas dos céus e das

coisas,..., de antigas e medievais superstições tenebrosas”19, de fato não existiu, mas ao

contrário, uma convergência de crenças e conceitos novos, antigos e medievais aconteceu,

desfazendo a idéia do homem contemplador de um mundo cósmico de estrutura e hierarquia

fixas, para dotá-lo de sua própria razão universal.

“A origem do humanismo italiano é habitualmente atribuída a Petrarca, o qual teve realmente alguns precursores, mas, segundo a opinião corrente, nenhum verdadeiro predecessor. É indubitável que Petrarca foi a primeira figura verdadeiramente grande entre os humanistas italianos; todavia algumas preocupações e tendências características do humanismo italiano precederam Petrarca, pelo menos uma geração. A origem e a ascensão do humanismo italiano deveram-se, na minha opinião, a dois, ou antes, três fatores. Um deles foi a tradição italiana autóctone da retórica medieval, que fora cultivada por docentes e por notários e era constituída por um conjunto de regras estilísticas para a composição de cartas, documentos e discursos. O segundo fator foi o chamado humanismo medieval, ou seja, o estudo da poesia e da literatura latina clássica, que foi bastante florescente nas escolas do século XII sobretudo na França, enquanto foi limitadíssimo o contributo da Itália naquele período. Cerca do fim do século XII, o estudo dos clássicos latinos foi introduzido também nas escolas italianas e mesclou-se com a tradição retórica do país, que tivera um caráter muito mais prático. Assim o estudo dos clássicos latinos começou a desenvolver-se quando a boa imitação dos autores clássicos, baseada num estudo atento destes autores, se começou a considerar como o melhor treino para quem desejava escrever e falar bem - em prosa ou em verso, em latim ou em vernáculo. A esta situação, que se ia desenvolvendo, acrescentou-se, durante a segunda metade do século XIV, um terceiro fator: o estudo da literatura clássica grega; quase abandonado no Ocidente durante a Idade Média, mas cultivado desde há séculos no Império bizantino, o conhecimento desta literatura foi, nesta época, levado para a Itália a partir do Oriente, após a intensificação de contatos políticos, eclesiásticos e culturais.”20

19 GARIN, Eugênio. Idade Média e Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1994: 144-145.20 KRISTELLER, P. O. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. Lisboa: Edições 70, 1995:130-131.

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O Humanismo marcou o pensamento renascentista num processo contínuo de autodefinição

do caráter humano e valorização da cultura universal e, embora exercendo um impacto

resolutivo sobre o desenvolvimento do individualismo e subjetivismo alcançados então, não é

possível rejeitar totalmente as idéias e interesses medievais relacionados às forças celestes que

captam e regulam o bem estar físico dos corpos e nem mesmo classificá-lo como um

movimento apenas literário e retórico, estabelecendo uma sutil ambiguidade entre a época do

conhecimento científico e sua antecessora mística. Se os humanistas se debruçaram sobre as

obras dos grandes mestres da antigüidade clássica, principalmente Aristóteles e Platão e na

compreensão de seus conteúdos, buscando o verdadeiro valor filosófico inscrito nessas obras,

isso não significou um repúdio total às fontes medievais, mas antes uma retomada da tradição

filosófica à luz da ética e moral, em detrimento da visão metafísica dominante no medievo e

uma crítica à apropriação escolástica da essência de tais obras.

A recuperação da tradição clássica passou pelo resgate da literatura antiga grega e latina,

filtrada pela cultura do Renascimento e suas antecessoras. Significa dizer que, a imitação da

natureza, da realidade, é mediada por um dado da cultura que é resiginificado de tempos em

tempos. Foi através de um manejo de escritos antigos, e porque não da memória artística21,

que se fez o conhecimento renascentista. Foi entre os séculos XIV e XV, que o impasse entre

a superação das categorias das artes se acirra. Literatura, pintura, escultura, qual poderia servir

melhor ao propósito da imitação da natureza, da (re)apresentação da Tradição Clássica? Para

os humanistas a função última e natureza da obra de arte seria o reconhecimento da dimensão

intelectual da arte visual e as questões levantadas pela idéia da imitação. A querela entre

palavra e imagem ganha seu mais alto grau de refinamento na época de Leonardo, que

defende a superioridade da imagem em sua excelência da imitação.

Era formada a imagem de um homem com capacidade de escolha, mas que viverá em meio a

uma grande contradição: se é capaz de decidir, não o fará com segurança, dadas as limitações

de sua natureza terrena, a direção correta, se é que haveria uma. Agraciado pelo dom da

escolha de seu destino e condenado a carregar uma dúvida, este novo homem descobre que

não é tão simples optar por sua autoafirmação e assumir sua insegurança, em um mundo que

afinal, passava por profundas e rápidas mudanças. Não apenas a compreensão da filosofia

platônica, mas também a inserção de Aristóteles, a confluência da ciência mundana filtrada

através do mundo islâmico e as doutrinas mágico-astrológicas medievais latinas, foram

21 A memória artística aqui entendida como a reunião de lembrança, experiência, esquecimento de quem escreveu, ou antes, contou a tradição. O manejo da retórica antiga permitiu a cognição do mundo.

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Page 28: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

fundamentais para a renovação do pensamento e concepção do humanismo renascentista e,

neste ambiente, a presença de Marsilio Ficino fez parte do alicerce capaz de consolidar aquele

movimento.

Antigas comunas foram substituídas por senhorias, reunindo diferentes burgos e cidades,

dominadas por famílias capazes de impor uma organização autoritária nestes territórios.22

Época de alterações políticas, econômicas, mercantis e culturais, o Renascimento foi a

manifestação capaz de consolidar o fortalecimento citadino e impulsionar a afirmação de

cidades como Florença e Veneza, tornando a Itália o epicentro deste movimento, que cultuou

a valorização da antiguidade, recuperou a tradição clássica23, os valores humanos

subordinados ao estudo e à “imitação” da literatura clássica, grega ou latina.

O Humanismo, questão central do projeto renascentista, não atingiu com a mesma força as

civilizações francesa e alemã. Se na Itália a variação em relação à Idade Média foi explícita na

arquitetura, escultura, pintura e literatura, para além dos Alpes o início do Renascimento

aconteceu de modo mais disperso e a ruptura com a Idade Média se fez de forma gradual.

Para Lutero, a oposição entre a Reforma e o Humanismo rendia uma contradição: por vezes

referiu-se à razão (palavra emblemática do humanismo) como a “ meretriz” que desviava o

indivíduo do caminho da fé, por outro lado, jamais deixou de ser um discípulo do humanismo,

de estar próximo a Erasmo, visto ser neste movimento que o reformador encontrava as vias

para a contestação a Roma. Entretanto, os humanistas alemães, integrantes do círculo de

Nuremberg (Albrecht Dürer, Willibald Pirckheimer, Konrad Peuhinger, Phillip Melanchthon

e Jacob Wimpheling), inspirados pelo Humanismo italiano, mas fortemente influenciados pela

paixão por Lutero que invadira toda Alemanha, tiveram que desviar sua energia e inteligência

para os temas teológicos.

A construção do alargamento da experiência humanista fervilhou em Florença, primeira

cidade a desenvolver o humanismo no sentido de uma cultura universal e que, possuindo

elementos particulares que marcavam sua situação local (o deslocamento, em 1439, do

22 TENENTI, Alberto. Florença na época dos Médici. São Paulo: Ed Perspectiva, 1973: 13.

23 Luiz Marques propõe, logo na apresentação, no livro “Constituição da Tradição Clássica”, que aquele projeto encontra-se no limiar de questões levantadas entre a noção de imitação e as práticas artísticas e literárias que conformam essa noção. Entendendo o conceito de imitação da natureza como imitação dos afetos, não obstante “subsistir entre limites geográficos e cronológicos estreitos, a imitação da natureza constitui um paradigma sem rival na história das formas (...) Ninguém ignora entretanto, que a natureza não é um dado imediato da percepção. Ela não se lhe oferece, na realidade, senão como um dado de cultura ou como ideal de cultura.” Assim podemos perceber, mais adiante, no Humanismo renascentista que o esforço pela imitação do antigo está na restauração de uma unidade formal e espiritual, gerada principalmente, no pensamento neoplatônico da Academia de Florença.

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Concílio para a União das Igrejas de Ferrara), absorveu a confluência de representantes

cristãos, gregos e orientais e a ampliação do campo da erudição (artes, literatura, história) em

outras direções, como o da moral ou filosofia. Essa transformação de ordem intelectual,

principalmente, deslocava o ponto de referência da esfera divina para a humana. O centro do

homem está nele mesmo e dele dependerá seu destino. O discurso de Pico della Mirandola

“Sobre a dignidade do homem” foi muito eloquente com referência a este novo ordenamento:

“Decretou então o ótimo Artífice que àquele ao qual nada de próprio pudera dar, tivesse como privativo tudo quanto fora partilhado por cada um dos demais. Assim, pois, tomou o homem, essa obra de tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhes neste termos: ‘A ti, ó Adão, não temos dado nem uma sede determinada, nem um aspecto peculiar, nem um múnus singular precisamente para que o lugar, a imagem e as tarefas que reclamas para ti, tudo isso tenhas e realizes, mas pelo mérito de tua vontade e livre consentimento. As outras criaturas já foram prefixadas em sua constituição pelas leis por nós estatuídas. Tu, porém, não estás coarctado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos te depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal. Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais cômoda, tudo que existe. Não te fizemos nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem, segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar. Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderás, ao invés, por livre escolha da tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos.’ Ó suprema liberalidade de Deus Pai, ó suprema e maravilhosa beatitude do homem! A ele foi dado possuir o que escolhesse: ser o que quisesse. Os animais, desde o nascer, já trazem em si –como diz Lucílio- ‘no ventre materno’, o que irão ser depois. Os espíritos superiores, a partir do início ou logo depois, já eram aquilo que pela eternidade seriam. No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. Se fossem vegetais, plantas; se sensuais, brutos; se racionais, viventes celestes; se intelectuais, um anjo e um filho de Deus. Mas, se porventura, não se afeiçoasse pelo destino de criatura alguma e se recolhesse ao âmago da unidade divina, tornando-se assim um só espírito com Deus, nesse caso ficaria inserido na soledade misteriosa do Pai, que está constituído sobre todos se avantaja. Quem não admiraria esse novo camaleão? Ou que outra coisa mais digna de ser admirada?”24

O trecho acima é o manifesto exaltado acerca do lugar ocupado pelo homem entre todos os

seres da natureza e dos céus. Ser potencialmente capaz de se autocriar e autoprojetar e

modelar a si mesmo com liberdade. Uma expressão do ideal de homem faústico. Essa é talvez

a maior altura antropológica alcançada por um humanista do Renascimento e, por

24 GIOVANNI PICO (Pico della Mirandola). A Dignidade do Homem. 2ª edição, tradução de Luiz Ferracine, Campo Grande: Solivros/Uniderp, 1999: 53-55.

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conseguinte, todas as outras tentativas, antecessoras ou sucessoras, encontram nela sua síntese

e acabamento. Daquele ponto de vista, o homem do Renascimento se autoconcebe como um

ser dinâmico, reconhecendo todas as suas possibilidades de transformar a si mesmo, pois

tanto pelo viés ideológico quanto pela execução dessa Weltanschauung (visão de mundo), o

homem do Renascimento percebe o mundo a seu redor e seus iguais em constante

movimento, como bem expõe Kristeller, acerca do pensamento renascentista:

“... os humanistas do Renascimento se interessavam pelos valores humanos, mas tal estava subordinado à sua preocupação principal, que era o estudo e a imitação da literatura clássica, quer grega, quer latina. Este humanismo clássico do Renascimento italiano era em primeiro lugar, um movimento cultural, literário e pedagógico e, embora tenha marcado o pensamento renascentista com o seu cunho, nunca nele foi possível isolar de todo as idéias filosóficas dos interesses literários. O termo ‘humanismo’, para descrever o movimento classicizante do Renascimento foi cunhado por historiadores do século XIX, mas os termos studia humanitatis e ‘humanista’ foram forjados justamente durante o Renascimento. Já no tempo dos antigos Romanos alguns autores se serviram do termo studia humanitatis para nobilitar o estudo da poesia, da literatura e da história, e tal expressão foi retomada pelos homens eruditos do primeiro Renascimento italiano para sublinhar o valor humano dos estudos por eles cultivados, que eram: a gramática, a retórica, a poesia, a história e a filosofia moral, no sentido em que na altura se entendiam estas disciplinas. Não tardou muito que quem ensinasse por profissão essas matérias recebesse o nome de humanista, termo que aparece pela primeira vez em documentos do final do século XV.”25

A tarefa de aparar as arestas em relação a religião que tal movimento apresentava, coube a

Marsilio Ficino (1433 – 1499), filho do médico Diotifeci Ficino, intelectual, médico e

filósofo, que amparado pela liberdade e iniciativa de Cosme de Médici26, funda a Academia

Platônica de Florença, criada quando Cosme, entusiasmado pela chegada de Pléton, estudioso

da filosofia platônica e da antiguidade clássica, resolveu encarregar Ficino da tradução e

estudo de vários manuscritos gregos, em uma casa em Careggi. Estudou grego com o

propósito expresso de examinar as fontes originais da filosofia platônica, tornando-a acessível

ao ocidente europeu, embora seja reconhecido que as fontes de que Ficino se utilizou foram

em sua maioria neoplatônicas, e que sua preocupação essencial era a conciliação entre a

filosofia e o cristianismo, contendo muito da teologia medieval. Segundo Eugênio Garin, com

Ficino nasce o “literato da corte”, o intelectual palaciano que não ensinava na universidade,

mas que se encontrava a serviço do governante, que se utilizava dele para dar glória à sua casa

25 KRISTELLER, O. Opus cit.: 130.26 TENENTI, Alberto. Opus cit :103.

30

Page 31: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

e como propaganda política.27 Uma análise da vida e dos escritos de Ficino mostra uma

posição ambígua e cheia de contradições. Ao lado da presença austera de Girolamo

Savonarola ou vigorosa de Pico della Mirandola, Marsilio apresentava-se subserviente à

família Médici, no prólogo do “De vita triplici” (Fig 33 e 34), Ficino sustenta que:

“O médico Diotifeci Ficino o tinha gerado corporalmente em Figline a 19 de outubro de 1433 para o encaminhar para o tratamento dos corpos. Mas sua alma chamava pai a Cosme de Médici, pai da pátria, que, médico autêntico, o tinha voltado a gerar no espírito, afastando-o de Galeno e encaminhando-o através de Platão para o tratamento das almas.” 28

Sua obra reflete os embates entre ciência e magia, religião e astrologia, medicina do corpo e

medicina da alma, buscando como objetivo não somente o desenvolvimento intelectual do

homem, mas, sobretudo o estímulo à sua reforma moral e espiritual, em consonância com o

ideário humanista. Na Academia, promoveu um movimento de renovação da fé, baseado nas

novas demonstrações filosóficas mais acomodadas à nova cultura humanista. O homem era o

meio de todas as coisas criadas, o ponto médio entre os seres mais baixos e os seres mais

altos. A força primordial de seu espírito, seu conteúdo, se definia pelo seu amor à beleza e à

bondade divinas, na autodeterminação que levava à união com Deus e à sua meta principal, ou

seja, a imortalidade.

Ficino, então fortemente influenciado pelo pensamento dos pagãos Platão e Aristóteles, pelo

mulçumano Avicena e o cristão Orígenes e assombrado pela “concordância das três religiões

monoteístas a respeito da ressureição da carne”29, dedicou-se à tarefa de erigir um sistema

onde o Platonismo e o Cristianismo, a razão e a fé, se soldassem e se sustentassem em uma

fórmula nova. A época de maior predomínio da Academia Platônica de Florença é também

uma época de intensificação de um movimento de reacionarismo religioso na Itália, que

pretendeu restaurar certas formas de pensamento da escolástica e que se fez presente ao longo

de todo século, cujo movimento filosófico fora marcado pela tensão entre fé e conhecimento.

Continuando seu projeto de construção filosófica, amparado pelos sábios antigos, Ficino

estabeleceu uma oposição sutil, ambígua entre a magia demoníaca e a magia natural. Esta

magia autêntica, herdeira da antiga ciência persa, ateve-se diante de Cristo e tornou-se

27 GARIN, Eugênio. Opus cit.: 247.28 GARIN, E. Opus cit.: 245 – 246. “Ego sacerdos minimus, ho avuto due padri, Ficinum medicum et Cosmum Medicem. Dal primo io sono nato, dal secondo rinato. Il primo mi affidò a Galeno, medico e platônico, il secondo mi consacrò al divino Platone. Ambedue mi destinarono alla medicina. Se infatti Galeno è medico dei corpi, Platone è il medico delle anime.” 29 KLEIN, Robert. A forma e o intelegível. São Paulo: Edusp, 1998: 87.

31

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simultaneamente em sacerdócio e técnica, medicina da alma e dos corpos, tratamento

convergente das almas e de muitas enfermidades terrestres. Em suma, para Ficino o nexo

entre magia e religião é entendido como uso de forças espirituais em sentido lato, contínuo e

indissolúvel, com a única diferença de que o mago “negro” se serve de forças infernais ou

diabólicas enquanto o “branco” utiliza forças superiores ou divinas. A magia é sempre o

domínio de forças capazes de inserir-se ativamente na estrutura ordenada e cristalizada das

coisas, modificando as suas formas de maneiras novas e não ordinárias.30

Para entender Ficino é necessário sua inserção em questões fundamentais sobre a natureza da

astrologia, da mágica e da ciência, atentando para dois modos muito diferentes de percepção

da realidade, que oscilam entre o místico e o racional. Um parece depender da experiência

subjetiva, o outro da observação objetiva. A astrologia contemporânea de Ficino, seria

reivindicada por ambos os campos, que ainda procuravam por sua autoridade natural.

Considerando as diferentes tradições que informaram o Renascimento, a possibilidade de se

tomar a magia como a forma mais elevada de ciências naturais, permitiu pensar que tal

distinção é na verdade, superficial. A questão da relação do homem com o cosmo, os astros e

as estrelas sempre esteve no cerne de sua busca pela sabedoria, tanto de filósofos quanto de

adivinhos. Até o século XV, a tradição clássica da astrologia como um sistema racional de

apreender o funcionamento do cosmos foi completamente estabelecido no Ocidente, com base

no modelo aristotélico de causalidades celestes. Livros gregos e árabes sobre astrologia

foram conhecidos através de traduções latinas, como o “Tetrabiblos” de Claudio Ptolomeu,

um trabalho helenístico tardio que expõe um quadro conceitual da astrologia: um modelo que

implica uma correlação dos efeitos a partir do céu com a terra, em um tempo, desdobrado em

uma determinada forma, como engrenagens de uma grande máquina de destino. A astrologia

de Ptolomeu defendeu um processo natural de causalidade e introduziu o conceito de éter, um

espaço volátil onde toda substância espera pelo momento da criação, cuja qualidade depende

de corpos celestiais. Ptolomeu compreendia que o homem alcançaria a capacidade de

entender e prever eventos do temperamento humano através da análise daquele éter e

estabeleceu o primado do momento de origem, aquele em que uma conjução celeste marcaria

de modo indelével o indivíduo. Essa concepção de uma influência astral quantificável

pressupunha a figura onisciente do astrólogo, observador objetivo de um padrão fixo, que

permitia-lhe dar uma sentença irrevogável sobre o destino, selado pelo momento do

nascimento. Implicava também em pensar o tempo em uma evolução linear e abria o caminho

para a “moderna” investigação astrológica científica, baseada na análise estatística, medições

30 GARIN, E. Opus cit.: 154-155.32

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quantitativas e observação empírica dos fenômenos. No período medieval, o cristianismo

ortodoxo não encontrou problemas na astrologia natural, que compreendeu as

correspondências entre o céu e o mundo material e utilizou este conhecimento em áreas como

a agricultura e medicina. Mas, para negar certa liberdade humana e a atribuição da

onipotência de Deus ao astrólogo, a astrologia foi severamente condenada. São Tomás de

Aquino definiu as tentativas de predizer eventos humanos, seja através de sonhos, astrologia

ou práticas ocultistas como adivinhação, como pecadoras, reconhecendo apenas a revelação

divina, como único meio legítimo de conhecimento. Adivinhação, para ele, era invenção do

homem e por isso, passível de erros ou atração de maus demônios. O que seria revelação

divina, seria recebida pelo homem por vontade de Deus. Mesmo que fosse possível prever

efeitos astrais sobre sentidos corporais, uma vez que estes estavam sujeitos à sua razão, o

homem poderia contrariá-los através de seu livre arbítrio.

A preocupação em determinar a distinção entre a verdadeira e a falsa magia, astrologia,

alquimia, a medicina mágica esteve presente em toda filosofia ficiniana, desenvolvida em

suas “Cartas”31 e apresentada conclusivamente nos três volumes do “De vita triplici”. No

texto, Ficino sintetiza os conceitos da astrologia em sentido positivo para os objetivos da

medicina: o médico deveria servir-se das imagens e orações para exaltar as forças profundas,

as virtudes ocultas, para excitar os espíritos do enfermo e curar seus órgãos. A alma é

onipotente, as palavras, signos, símbolos podem ajudar no restabelecimento do doente. No

terceiro livro do De vita, o “De vita coelitus comparanda”, Marsilio Ficino procurou

demonstrar que toda astrologia é uma tradução da linguagem celeste para a realidade, uma

projeção histórica do todo: as figuras fantásticas das imaginações transcrevem os movimentos

da psique, a agitação dos afetos, os processos das gerações, as cadeias dos conceitos. Saber

ver todas as linguagens, tanto das cores, das pedras como das figuras astrais ajuda a

compreender cada vez melhor a vida no mundo, oferecendo soluções para aflições humanas.

Apesar da tentativa de estruturar a medicina sobre bases astrológicas, Ficino acreditava no

laço que une cada homem ao “seu” planeta a partir do momento de seu nascimento de forma

indestrutível. A idéia de afinidades eletivas entre planetas a certas atividades foi expressa por

Ficino em diversas passagens de sua obra:

“(...) Lembramos sempre que pelas inclinações e desejos de nossa mente e pela mera capacidade de nosso espírito, podemos alcançar fácil e

31 PANOFSKY, E. Opus cit: 179. O trabalho de Ficino logo teve uma boa acolhida por toda Alemanha. E havia sido traduzido e publicado por Koberger. Dürer tinha conhecimento da obra, já em 1512 citou as “idéias platônicas” ao modo de Ficino.

33

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rapidamente à influência daqueles astros que denotam essas inclinações, desejos e capacidades; em conseqüência , pelo conhecimento das coisas terrenas, pelo ócio, solidão, teologia e filosofia esotérica, pela superstição, magia chegamos à influência de Saturno.”32

Queixava-se da influência exercida sobre ele e sobre todo curso de sua vida o astro funesto,

que figura no ascendente de seu próprio horóscopo. A ele, o filho de Saturno, é negada a

facilidade e a segurança na conduta da vida. Ainda assim, não considerava esse

reconhecimento do destino astrológico uma renúncia definitiva à autonomia de se conferir

forma à própria vida. Ao homem não é concedido escolher seu astro e, em decorrência disso,

sua natureza físico-moral, seu temperamento, de outra parte é livre para fazer suas escolhas

dentro dos limites que esse astro lhe prescreve. Pois cada astro contém em sua própria esfera

uma multiplicidade de formas de vida diferentes, abertas à vontade e à decisão final sobre

elas. Se por um lado Saturno é o demônio da indolência e da melancolia infrutíferas, de outro

lado ele também é o gênio da observação e da profundidade intelectuais, e da contemplação.

Essa polaridade que reside nos próprios astros e que havia sido reconhecida e expressa pelo

sistema da astrologia, abre caminho agora para o livre arbítrio do homem. “Se a esfera do

querer e do realizar está rigidamente determinada para o homem, a direção deste querer não o

está.”33

O humanismo do Renascimento italiano foi capaz de absorver a concepção aristotélica do

gênio, da influência de Saturno e do homem de temperamento melancólico e seu potencial

criativo e intelectual. Influência das três potências da ação na história (Religião, Estado e

Cultura) desenvolvida por Burckhardt, quando reconhece que em períodos de predominância

da cultura, florescem os notáveis homens de letras, artistas, arquitetos... Em “De vita

triplici”, Ficino dá a definição do gênio melancólico moderno e difunde este conceito pela

Europa, expondo ainda, uma teoria da natureza da melancolia: “Melancolia tem duas

naturezas distintas, uma patologia médica na qual o humor apenas está presente e outra, um

nirvana espiritual no qual o humor queima ferozmente.” 34, sendo o primeiro autor a relacionar

32 FICINO Marsilio. De vita triplici, III, 2: De concordia mundi. De natura hominis secundum stellas.Quomodo fiat attractus ab unaquaque stella. Tradução livre. “Ubique vero memento per affectum studiumque animi et per ipsam spiritus qualitatem nos facillime subitoque exponi planetis eundem affectum ac eiusmodi studium et qualitatem significantibus. Per separationem igitur a rebus humanis, per otium, solitudinem, firmitatem, per theologiam secretioremque phiosophiam, superstitionem, magiam, agriculturam, per maerorem Saturno subicimur. Per civilia et ambitiosa negotia, per phiosophiam naturalem communemque, per religionem civilem perque leges Iovi” 33 CASSIRER, Ernst. Indivíduo e cosmos na filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001: 188.34 FICINO Marsilio. De vita triplici, I, 5: Cur melancholici ingeniosi sint et quales melancholici sint eiusmodi, quales contra. Tradução livre. “ melancholia, id est, atra bilis est duplex: Altera quidem Naturalis um medicis appellatur, altera vero adustione contingit.”

34

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o caráter melancólico referido por Aristóteles (melancolia como um dom divino e singular,

ligada à pensamentos profundos que levam a maior tomada de consciência da solidão humana

) e o neoplatonismo cristão (para Platão, a melancolia é um furor divino que faz do coração

como um deus que sai de si, em busca de um caminho mais terreno):

“...Confirmo agora no livro Problemata, que Aristóteles disse que todos os homens com alguma habilidade, são melancólicos. Ele confirmou o que declarou Platão no Livro do Conhecimento e também Demócrito, quando reconheceu nos dotados de mente privilegiada, a condução à loucura. Parece que Platão em “Phaedrus” reafirma que não há poesia sem loucura...” 35

Para Ficino, a doutrina aristotélica dava a base científica para a teoria platônica do furor

divino:

“(...)a ação do humor melancólico, que Aristóteles havia equiparado com o vinho tinto, parecia explicar aqueles êxtases misteriosos que ‘petrificam e quase matam o corpo quando arrebatam a alma’, (...)Desse modo a expressão furor melancholicus foi tida como sinônimo de furor divinus.”36

Este refeito interesse renascentista pela melancolia ocorre ao mesmo tempo em que a

imprensa é inventada, assim como a pólvora, os grandes descobrimentos marítimos alargavam

as fronteiras do mundo conhecido, da descrição de Copérnico do sistema heliocêntrico... Mas

é também um tempo de pobreza, pestes, de guerras e conflitos entre os Estados que

(re)surgiam do mundo feudal. É um período singular, quando o novo e o antigo convivem em

uma mesma duração. A alquimia convive com o início da química moderna, a astrologia

existe paralelamente à astronomia. Contudo essa passagem não se desenvolve sem culpa, e a

culpa gera depressão ou melancolia. Doença, pecado, sintoma de genialidade ou todas essas

coisas a um tempo, a melancolia tinha contudo uma importante dimensão social, expressando

um relacionamento com o mundo e a sociedade.

Para Ficino, as teorias de Hipócrates e Aristóteles são a gênese para o estudo da melancolia e

classificar tal estado de espírito atribuindo-lhe causas unicamente físicas, patológicas, para

35 FICINO Marsilio. De vita triplici I, 5: Cur melancholici ingeniosi sint et quales melancholici sint eiusmodi, quales contra. Tradução livre. “...Quod quidem confirmat in libro Problematum Aristóteles omnes enim, inquit, viros em quavis facultate praestantes melancholicos extitisse. Qua in re Platonicum illud, quod in libro De scientia scribur, confirmavit, ingeniosos videlicet plurimum concitatos furiososque esse solere. Democritus quoque nullos inquit viros ingenio magnos, praeter illos, qui furore quodam perciti sunt, esse unquam posse. Quod quidem Plato noster in Phaedro probare videtur, dicens poeticas fores frustra absque furore pulsari. Etsi divinum furorem hic forte intelligi vult, tamen neque furor eiusmodi apud physicos aliis unquam ullis praeterquam melancholicis incitatur.” 36 PANOFSKY, E. Opus cit.: 179.

35

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ele, era reduzir algo que era visivelmente articulado com o corpo e o espírito. Hipócrates

sugeriu a possível querela e além disso foi capaz de muito avant la lettre apontar dois tipos

para este padecimento da bílis negra: uma melancolia endógena que aprisiona o indivíduo

num mundo de isolamento e personalidade taciturna, sem motivo nenhum aparente, enquanto

a melancolia exógena era provocada por um trauma necessariamente externo, do mundo

concreto. Algum tempo depois, Aristóteles tenta resolver a questão, sugerindo a intrínseca

ligação entre a melancolia e a genialidade. Partindo do princípio de que somente aqueles que

travavam relações diretas com as artes de uma maneira geral poderiam sofrer de melancolia,

sobretudo por estarem voltados para o silêncio que buscava sua superação por meio da criação

humana.

Platão (427-347 a.C.) filósofo grego discípulo de Sócrates, mestre de Aristóteles e fundador

da Academia. Concebeu, no diálogo “Fedro”, a Teoria das Idéias, noção do homem em

contato permanente com dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível. Aquela é a

realidade, mais concreta, permanente, imutável, igual a si mesma. Esta são todas as coisas que

nos afetam os sentidos, são realidades dependentes, mutáveis e são imagens das realidades

inteligíveis, constituindo possibilidade do conhecimento e fornecendo uma inteligibilidade

relativa aos fenômenos. Não esquecendo que o pensamento de Ficino oscila sempre entre dois

pólos, Deus e alma, ao escrever o “Comentário sobre o banquete de Platão”, em 1469,

percebemos sua preocupação em buscar e provar que o mundo e a vida encontram seu sentido

na união com Deus. O “Banquete” tem por tema a definição do amor e Ficino comenta a

ordem de valores que tornam possível a elevação do homem, da matéria a Deus,

transformando seu espírito humano pela abertura da natureza da alma, de sua condição divina

a seu lugar e papel no universo efetivamente. A imortalidade da alma, para ele, se impunha

como exigência, por sua essência, seu poder, mas sobretudo por seu destino.

A novidade do pensamento ficiniano estava na idéia de que, “Problemata XXX” corroborava a

célebre fórmula platônica, em “Teeteto” e “Fedro”, segundo a qual os homens de gênio são

habitualmente arrebatados. Só existem gênios entre os homens tomados por algum furor.

“A disputa pela primazia da doutrina de Platão ou de Aristóteles, tal como é empreendida na segunda metade do século XV, em momento algum se aprofunda a ponto de atingir o âmago dos princípios últimos. O critério, sobre cuja aplicação as duas partes adversárias estão de acordo, reside, também neste caso, nas premissas religiosas e nas escolhas dogmáticas; está além, portanto, do âmbito sistemático-filosófico. Assim, em última análise, também essa disputa permanece infértil para a história do pensamento: a distinção rigorosa entre o conteúdo e o princípio fundamental efetivo das doutrinas platônicas e aristotélica não demora a ceder lugar ao postulado e à 36

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tentativa de reuni-las num amálgama sincrético. E justamente a Academia de Florença, que se considera a guardiã do verdadeiro legado de Platão, é a que mais longe vai nessa tentativa. Ao lado de Ficino, figura aqui Pico della Mirandola – o “Princeps Concordiae”, como era chamado por seus amigos - , para quem a meta principal de toda a atividade do pensamento deveria ser a unificação e a reconciliação da Escolástica com o Platonismo. Não como trânsfuga, mas como explorador – estas são suas próprias palavras numa carta a Ermolao Barbaro – é que ele teria chegado à Academia de Florença. E desse seu trabalho de exploração resulta a constatação de que Aristóteles e Platão, por mais que pareçam se opor nas palavras, concordam plenamente quanto a questões de fundo.” 37

Aristóteles inova, contudo, ao interpretar o furor divino de Platão como uma sensibilidade da

alma, medindo a grandeza espiritual de um homem por sua capacidade de experiência e,

sobretudo, de sofrimento, empreendendo no texto a grande tarefa do deslocamento da noção

mítica de furor pela noção científica de melancolia. Graças à causalidade física da bile, esse

texto nos confirma que se, por certo, é necessário um dom38, o outro está em nós. Assim o

estagirita substitui a gratuidade da escolha divina pelo acaso da mistura que nos constitui. O

problema, então, diz respeito a uma fisiologia: são as condições do nosso corpo que nos

determinam a falar, e não um Deus que fala por nossa voz. Mais interessado no

comportamento do homem do que na doença, o autor destaca os efeitos do vinho, a gradação

dos estados de embriaguez em detrimento da quantidade do líquido absorvida pelo indivíduo.

A bile negra age como o vinho: ambos modelam o caráter de cada um. Ébrio ou melancólico,

o homem é projetado mais ou menos progressivamente fora de si mesmo, em direção aos

outros. A loquacidade, a piedade, o amor por outrem, a afeição exagerada ou mesmo a

agressividade e a violência são comportamentos que implicam a relação com o outro.

A conciliação entre a melancolia platônica e aristotélica realizada por Ficino ainda seria

complementada pela teoria plasmada de Avicena (980-1037)39, que propôs um universo

formado por três ordens: o mundo terrestre, o mundo celeste e Deus. Do mundo terrestre, a

inteligência, através de uma intuição mística, estabelecia o contato com o mundo celeste.

37 CASSIRER, Ernst. Opus cit.: 05-06.38 PIGEAUD, J. Opus cit.: 47- 48. Assim como Platão afirma que ninguém seria bom poeta sem o sopro inspirado comparável à loucura, Aristóteles escreve, na Retórica, sobre a origem da poesia na inspiração. A poesia supõe então a possessão do poeta por uma força divina, Musa ou Apolo, um ‘fora de si’ mais ou menos definido. O essencial é compreender que refletir sobre a poesia exige que se imagine ao mesmo tempo um dom, qualquer coisa pela qual o indivíduo não é responsável, e uma arte, isto é, uma técnica habilidosa, e gêneros instituídos, que implicam, ao contrário, uma educação e uma maestria. 39 FICINO Marsilio. De vita triplici I, 6: Quo pacto atra bilis conducat ingenio. “ ...Quod non solum Democritus atque Plato affirmant, sed etiam Aristoteles in Problematum libro et Avicenna in libro Divinorum et im libro De anima confitetur...” (...Isto confirma não só Demócrito e Platão, Aristóteles no livro "Problemata" e Avicenna no seu livro "Divino" e livro "Sobre a alma"...) Tradução livre. Entre outros trechos do “De vita”, por exemplo, Ficino fala sobre as influências da bile negra, baseando-se nos autores antigos.

37

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Deus, além de ser ato puro e o Primeiro Motor (como no pensamento de Aristóteles),

representa o Ser necessário, cuja essência se equipara à sua própria existência e que constitui

a base de todas as possibilidades. Avicena também tentou reunir a fé na providência servindo-

se da teologia de Aristóteles, supondo uma relação necessária entre o criador (ou Deus) e a

criatura, chegando a sugerir uma tese “libertina”, onde fala do descompasso entre a alma e o

corpo: este é o único instrumento da salvação daquela. O filósofo árabe propôs considerações

rigorosamente filosóficas que caminhavam com os sentidos ocultos presentes em tradições à

margem da filosofia, tais como o hermetismo e o gnosticismo, ambos variantes populares do

pensamento neoplatônico. Ficino tomou as idéias do avicenismo para reforçar o postulado

segundo o qual a sorte da alma está presa às ações do corpo. Retornando à sua preocupação

em distinguir as magias demoníaca e celeste e como esta deveria ser utilizada como benefício

médico, Ficino “aceita o bom conselho de Avicena: saibam que na natureza há maravilhas, e

que as forças ativas superiores se unem às forças passivas inferiores para produzir coisas

extraordinárias”40, sustentando a eficácia da imaginação na produção de efeitos reais.

Avicena, que considerava a melancolia uma doença, também escreveu sobre as características

melancólicas e suas relações com os humores corporais, introduzindo a idéia de que poderiam

ocorrer quatro tipos diferentes da enfermidade, resultado de diferentes combinações dos

quatro fluidos. A melancolia natural seria aquela resultante do desequilíbrio da bile negra,

mas as outras três, as não naturais, seriam resultantes do desequilíbrio do sangue, fleuma ou

bile amarela:

“Se a bile negra, causa da melancolia, se mesclasse com o sangue, pareceria

alegre e brincalhona e não acompanhada de tristeza intensa; mas se

mesclasse com a fleuma, viria acompanhada de inércia e calma; se se

mesclasse com a bile amarela, seus sintomas seriam agitação, violência e

obsessões, seria como um furor. E se fosse a bile negra pura, então ocorreria

o grau máximo da meditação e furor, menos agitação, salvo naquele paciente

provocado ou desafiado ou alimentado por um ódio que não pode

esquecer.”41

40 GARIN. Eugênio. O Zodíaco da vida. Lisboa: Editorial Estampa, 1988: 61.41AVICENA. Liber canonis. Veneza, 1555.

Disponível em www.alfama.sim.ucm.es/dioscorides/consulta_libro.asp ?. Acesso em dezembro/2007. Tradução livre. “Etdicimus quod cholera nigra faciens melancholiam, cum est cum sanguine, est cum gaudio et risu et non concomitatur ipsam tristitia vehemens. Si autem est cum phlegmate est cum pigritia et paucitate motus et quiete. Et si est cum cholera, vel ex cholera est cum agitatione et aliquali daemonio et est similis maniae. Et si fuerit cholera nigra pura, tunc cogitatio in ipsa erit plurima et agitatio seu furiositas erit minus: nisi moveatur et rixetur et habeat odium cuius non obliviscitur”.

38

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As características das três formas de melancolia não naturais, com exceção da fleumática que

se transforma em seu pólo oposto, mostravam diferenciações delicadas dos sintomas gerais e

que refletiam em escolhas sutis no tratamento médico proposto por Avicena.

A doutrina desenvolvida por Ficino postulava que a alma possuía três faculdades distintas que

formavam um todo hierarquicamente ordenado: a “imaginatio” ou imaginação, “ratio” ou a

razão discursiva e a “mens” ou razão intuitiva.42 Somente as faculdades inferiores do homem

estavam sujeitas, até certo ponto, à influência das qualidades astrais. As faculdades da alma,

em particular a mens, eram essencialmente livres.

Partindo desta concepção, Ficino elaborou seu método de terapia capaz de abarcar todos os

métodos anteriores, desde prescrições dietéticas até as práticas supersticiosas da medicina

astral ou liberdade de pensamento, levando em conta ainda, as características fisiológicas e

constitucionais que conformavam o melancólico: a baixa estatura, pele seca, alternância de

períodos de otimismo, euforia e filantropia com períodos de atonia, pessimismo, prostração e

misantropia. O indivíduo melancólico dividia-se em fases de atividade frenética e exaltada

com fases de letargia e torpor. Em correspondência com as três classes que predispunham os

altamente dotados de melancolia, os remédios contra a enfermidade foram divididos em três

categorias: em primeiro lugar, regime, baseado nas prescrições dos médicos árabes, que

evitavam toda intemperância, com a divisão racional do dia, da vida e do alimento. Caminhar,

massagear a cabeça e o corpo e sobretudo, música. Continuando, medicamentos preparados

com determinada classe de plantas das quais se poderiam fazer inalações e finalmente, a

magia astral dos talismãs, que evocavam a influência dos astros, assegurando um efeito mais

concentrado: essa terapia mágico astrológica indicava o uso de substâncias, pedras, sons e

odores dirigidos pelos sete planetas, ativando, captando e transformando influências astrais de

acordo com as características constitucionais do indivíduo. Assim, indicava-se por exemplo,

a inalação de odores e perfumes pertencentes à série planetária de Vênus, o uso de amuletos

metálicos que continham as virtudes da Lua, pedras associadas à Mercúrio, a música solar, o

uso de substâncias naturais que reproduziam as forças violentas de Marte, o discurso racional

de Júpiter ou a comtemplação desterrada por Saturno.

Uma inovação do método ficiniano estava na divisão do tratamento em dietético,

farmacêutico e iatrométricos (astrais), que se resolviam em uma unidade superior. A cura

médica estava, na realidade, na exposição do corpo e da alma do paciente às forças astrais

42 KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Opus cit.: 259.39

Page 40: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

ocultas. Segundo Ficino, o verdadeiro interesse de um passeio ao ar livre, que Constantinus

Africanus considerava uma medida dietética, residia nos raios solares e de outros astros, que

chegam de todas as partes de maneira livre e elevam nossa alma do spiritus mundanus que

flui melhor por esses raios.43

Ficino conseguiu pelo seu sistema, dar à contradição emanente de Saturno, um poder

redentor: o melancólico altamente dotado, que sofria sob Saturno, na medida em que este

atormentava o corpo e as faculdades inferiores com dor, temor e depressão, podia salvar-se

precisamente com uma orientação voluntária do mesmo Saturno.44 Em última instância,

Ficino considerava que o próprio astro funesto conteria a propriedade de regenerar o

indivíduo da melancolia. Os outros métodos eram paliativos.

“Pois assim como o Sol é hostil aos animais noturnos, mas amigo dos que atuam na luz do dia, assim Saturno é inimigo daqueles que levam ostensivamente uma vida ordinária, que se deixam acompanhar por gente ordinária, porém não desejam estar do lado de sentimentos vulgares. Pois é cedida a vida comum para Júpiter, mas a vida solitária e divina é impossível. Os homens que possuem as mentes realmente apartadas do mundo encontram um amigo. Pois o próprio Saturno é (falando em termos platônicos) um Júpiter para as almas que habitam suas esferas sublimes (...) É o maior inimigo, sem dúvida, para aqueles cuja vida contemplativa é mera aparência, sem nenhuma realidade. Saturno não os reconhecerá como seus (...) os que escapam da influência maléfica de Saturno e desfrutam de sua influência benigna, não aqueles que se aconchegam em Júpiter, mas aqueles que se entregam de todo coração à divina contemplação, que se honram com o exemplo do próprio Saturno.”45

O primeiro livro do “De vita triplici”, é dedicado ao tratamento dietético, higiênico e

farmacêutico que Ficino derivou de Hipócrates e Galeno, passando por Avicena e Rufo de

Éfeso. Convicto de que a alimentação seria o primeiro remédio a ser usado, enumerou

43 FICINO,Marsilio. De vita triplici, III, 11.44 KLIBANSKY, R., PANOFSKY, E. y SAXL, F. Opus cit.: 264.45 FICINO, Marsilio. De vita triplici, III, 22: Quomodo septem modis nos coelestibus accommodare possumus, et quibus Saturnus sit maleficus, quibus propitius; quos Juppiter a Saturno defendat, Quomodo coelum agat in spiritum et corpus et animam. Tradução livre. “Sicut enim Sol animalibus quidem nocturnis inimicus est, diurnis autem est amicus, ita Saturnus hominibus vel vulgarem palam vitam agentibus, vel fugientibus quidem vulgi consuetudinem, vulgares tamen affectus non dimittentibus est adversus. Vitam namque communem concessit Iovi, separatam vero sibi vendicavit atque divinam. Mentibus autem hominum re vera hinc pro viribus segregatis tanquam sibi cognatis quodammodo est amicus. Nam et spiritibus sublimem habitantibus aerem ipse Saturnus (ut Platonice loquar) est pro Iove, sicut Iuppiter hominibus communem agentibus vitam est iuvans pater. Nullis vero Saturnus est infensior quam hominibus contemplativam vitam simulantibus quidem nec agentibus. Hos enim nec Saturnus agnoscit ut suos, nec Iuppiter ipse, Saturni temperies, adiuvat eos qui communes hominum leges moresque et commercia fugiunt. Haec enim sibi Iuppiter usurpavit (ut aiunt) ligato Saturno, segregata Saturnus”.

40

Page 41: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

alimentos de origem vegetal e animal, advertindo para as alterações quantitativas e

qualitativas da bile negra que seriam alteradas: as qualidades melancólicas de ser fria, escura e

seca seriam neutralizadas com alimentos de complexão oposta, quentes, claros e úmidos.

Como medidas higiênico-sanitárias, prescrevia o equilíbrio e a moderação entre atividade,

comida, bebida e lazer.

A terapia seguiu no terceiro tratado, desta vez de modo original, substituindo a medicina

natural pela terapia mágico-astrológica, consistindo na fitoterapia, cromoterapia,

aromaterapia, astrologia, talismãs e música astral ou celeste. Neste sentido, o tratamento da

melancolia baseava-se sobretudo no contraste da influência negativa de Saturno frente a toda

sorte de usos naturais e atividades planetárias: vestir-se com variações do verde, amarelo e

laranja, evitar a inalação de odores e perfumes metálicos e viciantes, evitar alimentos da série

saturnina. Uso de talismãs manufaturados com material selecionado de acordo com o

momento astrológico propício, concentrando o autêntico poder mágico e as características

positivas do planeta evocado.

A força oculta das notas musicais refletia e reforçava as harmonias naturais dos planetas, uma

manifestação terrestre das estrelas e da perfeição de todo o sistema cósmico. Agrippa

relacionou cuidadosamente as escalas musicais com os planetas e os elementos. Baseando-se

na teoria neoplatônica que afirmou a existência de uma harmonia universal, Ficino observou

que haviam tipos de músicas celestiais fundamentais na magia oracular. Ele mesmo escreveu

canções para invocar os poderes dos planetas e concentrar suas influências.A música não

reestabelecia o equilíbrio psíquico e emocional do melancólico, mas era fundamental na

construção da harmonia cósmica. A música monocórdica da lira reproduziria a música da

memória pitagórica, a juventude, o canto cadente e ritmado de Marte, doce da lua, amável e

carinhoso de Mercúrio ou sensual de Vênus.

Consistia em uma terapia baseada no princípio fundamental das características especiais e

multiformes de cada indivíduo, conhecendo e utilizando fontes médicas antigas e medievais,

gregas, orientais, latinas e islâmicas. A tradição astrológica antiga que dizia que o planeta

decidia o destino do indivíduo sofreu uma tentativa de ser apagada pelo cristianismo, porém

ficou retida no oriente islâmico. Com a retomada renascentista da cultura antiga, a concepção

natural do homem microcosmo foi confrontada ao macrocosmo e aos poderes cósmicos.

Redescoberto por Warburg em 1920, o lendário escrito mágico “Picatrix”, que trazia as

propriedades mágicas do mundo mineral, relacionando-o às energias astrais e planetárias e

continha a descrição detalhada de talismãs relacionados aos planetas e orações, circulou pela

Europa, via Espanha, por um fervoroso seguidor, Roger Bacon. As doutrinas do “Picatrix”, 41

Page 42: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

que remontam às religiões astrais da Babilônia, aparecem no “De vita triplici”, principalmente

no terceiro livro, onde Ficino usou a astrologia como um recurso racional frente aos poderes

ocultos. Warburg identificou sinais do zodíaco, representados em três símbolos astrais, três

decanos, divindades sob as quais estão o domínio de três grupos zodiacais nos afrescos de

Borso d’Este em Ferrara, Schifanoia por Francesco Corsa (Fig 36 - 38). A temática da

astrologia provavelmente chegou a Ferrara, vinda de Pádova, cidade universitária e centro

humanista: afrescos originários da sala della Ragione, representando planetas, sinais zodiacais

e profissões influenciadas pelas estrelas, no princípio de século XIV e provavelmente

concebidos pelo célebre mago Pietro d'Abano. Um salão pintado por Peruzzi, no Ministério

de Chigi, simboliza deuses astrais da natividade.

Em Pádua muitos alemães eram estudantes, levando a astrologia para a Alemanha pré

reforma. Lutero não acreditou na influência dos astros, mas o famoso Melanchthon sim,

gerando grande polêmica pró e contra a astrologia.

A crença astrológica pode ser identificada em uma série de calendários do princípio do século

XVI, compilados por Warburg, que em 1912, propôs em texto uma rota de circulação desses

símbolos astrais que passava pelas cidades de Cizico-Alexandria-Oxene-Bagdá-Toledo-

Roma-Pádova-Ferrara-Augusta-Erfurt-Wittenberg-Goslar-Lüneburg.46

Partindo destes conhecimentos, Ficino foi capaz de analisar o seu próprio horóscopo e

efetivamente realizar a sua interpretação pessoal: o maléfico planeta Saturno, posicionado

sobre o seu ascendente, indicava uma existência miserável e brutal. Por outro lado, o deus

Saturno, informado pelo reino divino inteligível do conhecimento, promete uma coisa

completamente diferente: a possibilidade de assumir uma transcendência física pela vida

contemplativa. A experiência de Saturno dependeria do nível correspondente de identificação

do indivíduo com a matéria, quanto mais desapegado a partir do literal, menos a alma estaria

limitada. Ficino descobriu que, assumindo as profundezas da sua melancolia, poderia se

transformar em algo maior.

Um melancólico não tem alternativa senão resignar-se ao seu destino sob os mandos de

Saturno, ser excelente e sofrer por isso. Para Ficino “o conhecimento quer encerrar o infinito

no nosso pensamento: o amor dilata a mente em toda a imensidão da misericórdia divina.”47

Filosofar é uma tarefa melancólica para quem sabe da fugacidade do tempo, conhece o risco

de transformar uma necessidade em esperança e uma esperança em certeza. Diante da tristeza

46 WARBURG, Aby. Arte italiana e astrologia internazionale nel palazzo Schifanoja di Ferrara. In: La rinascita del paganesimo antico. Firenze: La Nuova Italia, 1966: 264.47 GARIN, E. Opus cit.: 262.

42

Page 43: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

que esta afirmação da vida provoca, Ficino também quis convertê-la em canto, como Platão,

para quem a filosofia era música elevadíssima e a atividade do filósofo não mais do que a

prática da música.48

48 GARIN, E. Opus cit.: 262.43

Page 44: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Sobre a Filosofia Perenee sua inscrição no De vita triplici

Filosofia Perene sugere uma série de conhecimentos ordenados e relacionados, que tentam

compreender o homem, sua natureza e seu mundo desde tempos imemoriais, manifestados em

leis universais, conhecidas em diferentes tradições históricas e geográficas da humanidade.

Grande parte da rede de estruturas que compõem este conhecimento manisfestam uma

expressão simbólica do universo, cheia de analogias e equivalências do cosmo, como por

exemplo informa-nos a filosofia hermética que, ao abarcar diferentes áreas (artes liberais,

alquimia, tarot, astrologia, simbolismo...) cria uma série de inter-relações cíclicas e

harmoniosas que pretendem ampliar o despertar da consciência da natureza humana e a

contemplação da beleza.

Tomando emprestada da Filosofia Perene a idéia de construção do cosmo, abordo aqui duas

de suas partes, a alquimia e a astrologia, presentes na filosofia de Marsilio Ficino.

44

Page 45: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Astrologia

A Astrologia, considerada uma das mais antigas formas de conhecimento, se desenvolveu a

partir do sedentarismo e da observação dos ciclos naturais, lunares e os das estações, que

influenciavam principalmente a agricultura. Os mais antigos registros conhecidos, são

Mesopotâmios, de cerca de 15 mil anos a. C, onde as fases da Lua eram anotadas em pedaços

de ossos. O exame e estudo destes ciclos levou ao desenvolvimento de todo um sistema

simbólico e místico de conhecimentos que se desdobrariam nas bases da astrologia, cálculos

astronômicos, o zodíaco e as características planetárias com suas regências.

Praticada por sacerdotes por muitos anos, o seu lado mágico, religioso e sagrado era

enfatizado e usado para o estudo e previsão de eventos coletivos. E durante a civilização

grega terá definidas suas bases filosóficas e a estruturação da astrologia desenvolvida pelas

civilizações do Médio Oriente. Nos primeiros séculos da Era Cristã destaca-se Claudius

Ptolomeu que na sua obra "Tetrabiblos" reuniu grande parte do conhecimento astrológico da

época, contemporâneo de Galeno, incorpora não apenas Hipócrates e sua teoria dos humores,

mas estabelece a conexão entre estes e os elementos na astrologia. Ptolomeu colocou as

categorias da medicina aplicada ao simbolismo astrológico. Este livro vai tornar-se mais tarde

uma das grandes bases da astrologia árabe e europeia. Durante a Idade Média, continuará a se

desenvolver no mundo árabe enquanto no ocidente será retomada no Renascimento.

É válido reafirmar que pensar a astrologia no Renascimento não significa entender aquele

momento apenas como o divisor entre seus aspectos mítico-religiosos e crítico-científicos. De

fato, foi uma época que viu ressurgir sob uma nova ótica os grandes embates da reflexão

humana: o lugar do homem e seu propósito no universo, as leis da natureza, a validade do uso

do cálculo e instrumentos matemáticos, os diferentes ritmos da experiência, que atingiam ao

mesmo tempo o nexo entre investigação científica, vida política e religiosa, produção artística.

A astrologia, desde Ptolomeu, mostrou que é composta de duas partes: uma científica,

baseada em métodos que buscavam efeitos práticos e outra que, amparada pela primeira

porém menos metódica, pretendia resultados proféticos estabelecidos pela configuração

celeste. A astrologia “divinatória” mostrou também recepções diferentes entre a Itália e

Alemanha: enquanto naquela, o domínio da “nova concepção artístico-estética” antiga

afirmava-se como fenômeno artístico, de criação de arte e beleza, nesta o ambiente pré

Reforma encontrava no revigoramento dos símbolos astrais da literatura profética o 45

Page 46: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

prognóstico do momento político49. Em muitas obras da época, houve a tentativa de distinguir

os movimentos celestes e suas radiações dos cultos astrais, estabelecendo as bases da

astronomia moderna, como em “Disputationes adversus astrologiam divinatricem” de

Giovanni Pico della Mirandola, entretanto a dubiedade entre teoria astrológica e sua prassi

permaneceria, não obstante as críticas e debates. Pensadores como Savonarola, Pico ou

mesmo Lutero que reivindicavam os elementos racionais dos astros em nome da livre

vontade do homem, não sujeitos à natureza, mas aos desígnios de Deus, “movidos por uma

paixão moral e religiosa”, acabavam por se opor às idéias de humanistas como Melanchthon50.

Ficino permaneceu entre as duas correntes, sugerindo uma validade científica da astrologia,

associando-a à medicina, como escrevera em 1489, “Se a vida te pesa, toma remédios

confirmados pelos céus [caelesti quodam adminiculo confirmatas]”51. Embora tivesse o

conhecimento do uso da astrologia em nome da ciência, rendia-se às tentações estelares,

revisitando as fontes antigas orientais, gregas, árabes, egípcias e medievais à luz do

Renascimento. Utilizou principalmente o “Picatrix”, o maior e mais completo tratado

islâmico, que evoca o poder da magia de Hermes Trimegisto, através do uso de talismãs. Toda

magia do Picatrix considera que o cosmo é composto de três mundos: matéria, espirito e

intelecto e ensina a desenvolver a capacidade de captar a influência do espírito, revelando sua

materialidade nos talismãs astrais.

A astrologia dividiu o zodíaco em dois ciclos: um anual, de doze signos mensais e outro

diário, a roda do zodíaco completada pelo giro da Terra ao redor de seu eixo. Muitos

astrólogos julgaram que a primeira volta que segue ao nascimento de uma pessoa, refletir-se-á

toda sua vida. Então, a roda zodiacal foi dividida em doze casas, correspondendo cada uma a

duas horas, permitindo a indicação dos signos ascendente e descendente e vários aspectos da

personalidade do indivíduo. Outros pontos considerados de grande importância seriam a

latitude do lugar de nascimento, o dia do ano e a hora do dia. O conhecimento dos princípios

dos quais derivam as manifestações particulares permitem a reunião do simbolismo da casa

zodiacal constituindo o horóscopo do sujeito, que mostrará os reflexos que as influências

celestes determinarão no seu interior. A informação do histórico astral do indivíduo era

fundamental para a confecção dos amuletos. Ficino escreverá em “De vita triplici”, que os

49 WARBURG, Aby. Divinazione antica pagana in testi ed immagini dell'età di Lutero. In: La rinascita del paganesimo antico. Firenze: La Nuova Italia, 1996: 315-316.50 GARIN, E. O Zodíaco da vida. Lisboa: Editorial Estampa, 1988:23.51 GARIN, E. Opus cit.: 82.

46

Page 47: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

homens estão entregues ao destino em virtude dos poderes astrais que o influenciam no

momento de seu nascimento. Sempre fiel ao hermetismo e ao modo de Avicena, analisou a

magia natural, astral dando-lhe um caráter científico, especialmente medicinal, aliado à

eficácia da imaginação e ao potencial dos efeitos que poderia alcançar, não de ilusões ou

milagres, mas das maravilhas naturais.

“ A vida do mundo sempre presente difunde-se nas ervas e nas árvores, quase pele do seu corpo e cabelos; e depois nas pedras e nos metais quase dentes e ossos (...). E esta vida comum desabrocha ainda mais sobre a terra nos corpos mais sutis e mais próximos da alma. Devido à sua força interna, a água, o ar e o fogo têm em si os seus vivos e movem-se. Esta vida aquece e move mais o ar e o fogo do que a terra e a água. Finalmente vivifica ao máximo os corpos celestes quase cabeça, coração, olhos do mundo. E finalmente, por meio das estrelas como seus olhos, difunde em qualquer lugar do mundo os seus raios não só visíveis mas videntes”.52

52 FICINO Marsilio. De vita triplici, III, 11: Quibus modis spiritus noster haurire plurimum potest de spiritu vitaque mundi; et qui planetae spiritum procreant atque recreant; et qualia ad unumquemque planetam pertinent. Tradução livre: “... Vita quidem mundi omnibus insita propagatur evidenter in herbas et arbores, quasi pilos sui corporis atque capillos. Tumet insuper in lapides et metalla, velut dentes et ossa (...). Haec enim non tam propria quam ipsa communi totius vita vivunt. Quae sane communis vita multo etiam magis super terram in corporibus viget subtilioribus tanquam propinquioribus animae. Per cuius vigorem intimum aqua, aer, ignis viventia sua possident atque moventur. Vita haec aerem ignemque etiam magis quam terram et aquam fovet agitatque perpetuo motu. Et denique coelestia corpora quasi mundi caput vel cor vel oculos quam maxime vegetat. Unde per stellas velut oculos radios non visibiles solum, sed etiam visualesusquequaque diffundit...”

47

Page 48: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Alquimia

A origem histórico-mítica mais atribuída à alquimia é a da ciência de Hermes Trimegisto,

descrito como rei egípcio. A alquimia tem sua origem remontada à figura do deus egípcio

Thot (Hermes para os gregos e Mercúrio para os romanos), deus que inventou e ofereceu aos

egípcios a escrita dos hieróglifos, considerado o maior de todos os legados e mensageiro dos

deuses encarregado de comunicar aos homens os princípios de uma civilização superior.

Assim, a arte de Hermes já é encontrada na figura da uruboros desenhada num manuscrito

alquímico de Cleóplata, passando pela civilização babilônica e China, onde foi conhecida

como Segredo da Flor de Ouro. Chegou à Europa na Idade Média, vinda do Oriente pelas

mãos dos árabes, grandes mestres alquimistas. Há também outro elemento, que relaciona a

alquimia às receitas, remanescentes de tradições profissionais secretas, que se originaram com

os feiticeiros africanos e se relacionaram com a produção de feitiços amorosos, etc, assim

como com a fabricação de ligas metálicas. Todas essas receitas eram segredo dos artesãos-

ferreiros e de curandeiros. Durante a civilização egípcia, elas eram provavelmente

transmitidas por certas classes de sacerdotes que tinham o monopólio da fabricação de

determinadas ligas ou mezinhas, que obtinham através do Faraó reinante e, provavelmente

mantidas em livros secretos conservados nos templos.

E finalmente a filosofia natural grega introduzida pelos textos gregos aos antigos escritos

químicos. Talvez um dos maiores eventos históricos da Antiguidade tenha sido o fato de que,

na filosofia natural grega, a filosofia pré-socrática (Demócrito, Heráclito, Tales de Mileto,

Anaxímenes e Anaximandro) especularam sobre teorias acerca da natureza e foram os

criadores de termos técnicos tais como tempo, espaço, átomo, matéria e energia .

A palavra alquimia é de origem árabe “al khemya”, a fusão: um dos principais afazeres

alquímicos era fundir e processar metais até reduzi-los à prima materia, a hipotética matéria

primordial que dava origem a todas as outras. Derivada do substantivo egípcio “khemi” , a

raíz khem refere-se ao Egito como a terra preta, ou terra do solo preto e a arte da alquimia foi

chamada de ciência ou arte negra. Ao conseguir a prima materia o alquimista poderia

transformar chumbo em ouro. Mircea Eliade53 nos diz que o comum entre o ferreiro e o

alquimista é que ambos reivindicam uma experiência mágico-religiosa particular na sua

relação com a substância num segredo que se transmite através dos ritos iniciáticos dos

ofícios, numa concepção de matéria viva e sagrada que com seus esforços, procuram

53 ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.48

Page 49: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

transformá-la e aperfeiçoá-la. São quatro as fases pelas quais o alquimista deveria passar até

atingir sua máxima sabedoria e ligação divinas. Embora os textos alquímicos apresentem

inúmeras variações, tanto na forma quanto no conteúdo, é utilizada quase sempre a escrita

alegórica, quando observamos a recorrência da caracterização dos estágios de transformação

da matéria através do surgimento de diferentes cores ao longo do processo.

Nessa perspectiva, as cores seriam meios de expressão de fatos e circunstâncias morais, do

mesmo modo no homem como na obra. Assim, negro foi considerado a matéria original da

transmutação por sua conversão em ouro depois de passar pelo branco e vermelho, o que

indica uma relação da alquimia com a espagíria, logo com a pintura. Algumas passagens

alquímicas são vinculadas também aos quatro temperamentos ou relacionadas a determinados

componentes astrológicos do caráter, ligando-os aos estágios de transformação da alma no

indivíduo durante o processo de trasmutação.

Resumidamente as fases do desenvolvimento alquímico são Albedo, Citrinitas, Rubedo e

Nigredo.

A fase Albedo estaria ligada à água e à claridade, ao branqueamento, à purificação e à prata. É

uma fase de compreensão mental que acaba modificando a intensidade da emoção.

O próximo passo, Citrinas, é intermediário. O amarelo significa que a albedo amareleceu,

envelheceu, está ligada ao enxofre, a algo que apodrece e cheira mal. A alma começa a olhar

para além de si e experimenta a compaixão.

A fase vermelha, Rubedo, está ligada ao mercúrio e ao ouro, acontecendo num processo de

síntese interna, numa união entre forças opostas que atuam no interior do ser.

A palavra Nigredo está associada à cor negra, ao chumbo, a Saturno, ao que é pesado, difícil e

que causa sofrimento. O primeiro passo do trabalho alquímico é, portanto, travar

conhecimento com seu lado sombrio. Esse enfretamento com o aspecto humano mais difícil

não raro causa depressão, melancolia e abandono de ação. Este passo propõe um

aprofundamento no auto conhecimento. Na alquimia clássica, essa imersão no inconsciente

era causada pelos gases tóxicos emitidos pela manipulação do chumbo. A passagem da fase

acontece quando, internamente há o domínio dos aspectos obscuros.

A fase nigredo guarda uma idéia fundamental relacionada com a morte, a morte da matéria,

imprescindível e iniciadora, que posteriormente conduziria a um renascer numa forma mais

perfeita e purificada que, reunindo todas as qualidades elementares, seria capaz de promover o

equilíbrio do corpo.

Somente a elaboração das forças antagônicas, adquiridas através da reconstrução da matéria

permitiria uma reorganização dos elementos. Na fase nigredo, experimentam-se estados de 49

Page 50: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

melancolia, os quais emergem em função do contato com os aspectos mais sombrios do

indivíduo. No entanto, é somente através da vivência destes estados que se consegue,

posteriormente, esclarecer e distinguir as características da alma até então indiferenciadas,

trazendo à tona conteúdos regenerativos e enriquecedores na transformação da personalidade.

A desconstrução que o preto permite experimentar como dúvida, pensamento negativo,

suspeita, destruição, falta de valor, explica porque a nigredo é necessária para qualquer

mudança de paradigma. A fascinação do preto dissolvia o que quer que fosse reconhecido

como real e caro. Sua força negativa retirava da consciência suas noções dependentes e

confortantes. Se o conhecimento é bom, então o preto o confronta com a ignorância; se a vida

é boa, então o preto representa a morte; se as virtudes morais significam o bem, então o preto

é o mal. Ao desconstruir os lados sombrios do indivíduo, a nigredo torna possível a

transformação interior.

A expressão simbólica da alquimia tem vários níveis de sentido: o sentido literal das imagens

e palavras, o sentido alegórico, convencional ou emblemático, onde cada elemento do texto

tem um significado próprio e característico como por exemplo a águia representa a

sublimação de um composto, o corvo a putrefação, a lua a obra em branco e o sentido

hermético que é construído através de um sistema peculiar de alegorias, dividido em dois

pontos: o sentido espagírico onde a alegoria alquímica contribui para o desenvolvimento da

ciência química e o sentido espiritual, parecido com o sentido anagógico medieval onde as

imagens ou narração expressa o estado da alma e a busca do alquimista. A arte hermética

consiste então em despertar o sentido das analogias, é a ponte que liga o microcosmo e o

macrocosmo, que permite o fenômeno da iluminação, assentado numa relação justa entre o

visível e o invisível, pois para os alquimistas o visível é reflexo do invisível.

A pedra alquímica, objetivo final dos alquimistas, deveria ser composta de Chumbo, de forma

a ter peso, gravidade, densidade, ponderação e também a profundidade que só a tragédia

saturnina, o isolamento e a melancolia poderiam alcançar. Também, seria feita de Sal, pois

recorda e tem a interioridade do sangue, do suor, da urina e das lágrimas, uma sensibilidade

que impede que a dor aguda e a imaginação volátil se dissipem.

A pedra conteria Enxofre, ou não seria rica e gorda, vital e combustiva, e assim não seria

capaz de tingir e multiplicar. Sem o enxofre ela não teria progenia, seria apenas pura matéria,

incolor, inodora, um conceito santificado de puro espírito somente. Da mesma maneira, a

pedra possuiria a perfeição do Mercúrio, um compositum oppositorum, incapaz de permanecer

preso em definições, embora nada na natureza possa ser mais agudamente definido. Leve e

pesada, venenosa e curativa, enorme no efeito e minúscula no tamanho, trazendo incontáveis 50

Page 51: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

mensagens, sendo múltiplos de milhões, embora diferentemente única em cada caso, a pedra

(lapis) é capaz, por causa da fusibilidade mercurial, de participar, de juntar, de dissolver, de

significar alguma coisa sem perder a essência.

Aqui, a fase alquímica de maior interesse é a Nigredo, por ser ela a que está diretamente

vinculada à melancolia. O auto conhecimento é um processo capaz de conduzir o ser humano

a lugares profundos. É compreensível que os alquimistas chamassem sua melancolia nigredo,

uma noite “de um preto mais preto que o preto”, uma aflição da alma.

. . . . . .

A obra “De vita triplici ”, segundo E. Garin, foi publicada em 148954, obtendo grande

circulação desde seu lançamento, pela Europa. Em 1531, Agrippa de Nettesheim (1486-1535)

lançava a primeira versão impressa de sua obra principal, “De occulta philosophia”55 (Fig 25)

, releitura da obra ficiniana à luz da alquimia. Mas a versão original, manuscrita, circulou

entre os humanistas alemães entre os anos de 1509 e 1510, época em que Agrippa esteve por

cidades alemãs, inclusive Nuremberg. Ao contrário da versão impressa, esse primeiro livro,

dedicado a Trithemius de Würzburg, amigo de Pirckheimer, era muito mais breve e bem mais

próximo da filosofia neoplatônica de Ficino. Agrippa elaborou o neoplatonismo e o

hermetismo, mas também a astrologia, a mística dos números, alquimia e a cabala como

instrumentos para o conhecimento e dominação do cosmo, formando um conceito próprio de

magia. Em “De occulta philosophia”, o autor subdividiu a magia em três seções, dedicando a

cada uma delas um volume: tratou da magia natural no primeiro, da celestial no segundo e da

cerimonial no terceiro. Influenciado por Ficino, assegurou que a magia naturalis ajuda o ser

humano a reconhecer tanto os atributos das coisas naturais quanto dos astros e que, por meio

da adivinhação poderia servir-se desse conhecimento. Em última análise, Agrippa considerou

os mágicos como investigadores precisos da natureza e a magia uma área da philosophia

naturalis. Contudo o domínio da magia estaria atrelado ao domínio do sistema da “forma

emanacionista da física”56, que se desdobra na concepção do microcosmo/macrocosmo.

Agrippa enfatizou o papel das estrelas, planetas e zodíaco nesse sistema emanacionista

mediante a abordagem detalhada de suas forças (virtudes) e de sua influência sobre o mundo

54 GARIN, E. Opus cit.: 81. Há uma pequena divergência entre autores, quanto ao ano da primeira publicação do De Vita. Considero aqui, de modo geral, as datas fornecidas por Eugênio Garin, embora a edição digitalizada da obra da qual tive acesso, data de 1498.

55 AGRIPPA von Nettesheim, Heinrich Cornelius De occulta philosophia libri tres. Disponível em http://host.uniroma3.it/progetti/kant/online/operecomplete. Acesso em junho/2007.

56 MÜLLER-JAHNCKE, Wolf-Dieter. Magia filosófica, empirismo e cepticismo, in: Filósofos da Renascença. Paul Richard Blum (org.). São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000: 151.

51

Page 52: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

sublunar, explicando os fenômenos naturais e espirituais da magia e astrologia a ela ligada: o

conhecimento da alma reconhece e controla as forças ocultas (coisas abstratas, estrelas,

espíritos, inteligências ou demônios).

O fluxo e refluxo das forças cósmicas unificaria o universo e Agrippa demonstrou que a

atuação destas forças permitia ao homem não só praticar a legítima magia, mas também

usufruir de seus maiores triunfos espirituais e intelectuais. Assim, o homem alcançaria a

inspiração de três formas: através de sonhos proféticos; pela contemplação intensa ou através

do furor melancholicus induzido por Saturno.57 A interpretação dada por Agrippa, deriva-se

diretamente do “De vita triplici”, de Ficino, chamando a atenção para o fato de que o estudo e

prática da alquimia ultrapassam as simples combinações químicas, chegando à reuniões bem

mais refinadas e complexas da química, astrologia, filosofia, astronomia e a sua concepção do

gênio melancólico pode ser considerada o ponto intermediário entre Ficino e Dürer.

Ficino pouco se interessou efetivamente por política ou arte, privilegiando seu pensamento

para os gênios saturninos entre os literatos e estudiosos (poetas, teólogos e filósofos): a

faculdade metafísica e portanto mais elevada, a “mente intuitiva” (mens) receberia as

influências inspiradoras de Saturno. A “razão discursiva” (ratio) que comanda as ações

políticas e morais, pertence a Júpiter e a “imaginação” (imaginatio), que guia as mãos do

artista e artesão, a Marte ou ao sol. Para Agrippa, sem dúvida, o furor melancholicus, de

influência saturnina, poderia transitar em cada uma dessas três faculdades, induzindo uma

atividade extraordinária ou até mesmo sobrenatural.

Assim, Agrippa propôs a existência de três classes de gênios (quadro abaixo), sobre os quais

Saturno pode atuar: aqueles em que a imaginação é mais forte que a mente ou a razão e

poderiam ser artistas e artesãos maravilhosos (pintores ou arquitetos); aqueles onde

predomina a razão, seriam cientistas, médicos ou estadistas e aqueles onde sobressai a mente,

conheceriam os segredos do reino divino, seriam teólogos ou profetas.58

57 PANOFSKY, E. Opus cit.: 182.58 PANOFSKY, E. Opus cit.: 183.

52

Page 53: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Nível Habitat psicológico

Âmbito da criação Âmbito da profecia

1 Espíritos inferiores

Imaginatio Artes mecânicas, em especial arquitetura e pintura

Acontecimentos naturais, em especial dilúvios, fome, etc

2 Espíritos médios

Ratio Conhecimento em coisas naturais e humanas, em especial medicina e política

Acontecimentos políticos, queda de governantes, restaurações

3 Espíritos superiores

Mens Conhecimento em segredos divinos, em especial a lei divina e teologia

Acontecimentos religiosos, revelação de novos profetas e surgimento de novas religiões

Agrippa julgou então, a alquimia como uma disciplina onde aspectos teórico e prático

estavam indissociados, supondo correspondências, afinidades e influxos entre os diferentes

componentes visíveis e invisíveis do cosmo: os livros e tratados de caráter mágico,

astrológico ou alquímico traziam analogias e correspondências entre o homem, a natureza e o

mundo celeste, formando o cosmo, o todo constituído de partes que respondem a estímulos

semelhantes, exprimindo a Unidade que os une e da qual advém o conhecimento, a ciência.

Enquanto os alquimistas destilavam líquidos, fundiam materiais, aqueciam e resfriavam

substâncias na intenção de transmutar algo como o chumbo em ouro, ou a pedra filosofal,

produzia-se também uma grande modificação interna, que acompanhava paralelamente todas

as fases feitas em laboratório e culminava com a transmutação do próprio alquimista, alguém

cujo interior seria tão rico e valioso quanto o ouro, unindo, assim seu coração a Deus e ao

amor divino. É um processo de modificação da alma, que exige concentração, retiro, solidão e

que acontece em quatro fases. Todo o processo alquímico, era tido como a Grande Obra e

dedicado a Deus, atingia seu máximo na comunhão com a Luz Divina, quando exterior e

interior se uniam. Dessa união, material e mística, surgia o ouro filosofal, ouro místico, de

matéria sutil. Nessa perspectiva, o homem é o operador que transforma a matéria, mas termina

transformado por ela. Uma inovação do pensamento de Agrippa estava em sustentar que os

alquimistas não procuravam pela perfeição tendo o homem como ponto de partida, mas sim a

matéria: seu esforço com a matéria se concentrava em embrenhar-se na natureza das

transformações químicas, ao mesmo tempo em que se projetavam na química desconhecida

dessa matéria.

Em “De occulta philosophia”, encontramos a junção da alquimia à toda filosofia astral de

Ficino, reforçando seu caráter de acolhimento de crenças ocultas que deveriam se unir à uma 53

Page 54: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

crença divina maior e promover uma cura e conversão dos homens, os escolhidos, tornando-

os mais próximos do deus.

Ficino apesar de não fazer citações diretas da alquimia em sua obra, “De vita triplici”, utiliza

ensinamentos do “Picatrix”, aquele manual de simpatia e magia astrais, que possui também

uma ligação consistente com a alquimia, mas reconhecemos em diferentes momentos, ecos

dos significados, preceitos e sentidos alquímicos, denotando seu conhecimento da matéria59,

como por exemplo, ao ensinar como produzir amuletos, pílulas ou xaropes contra patologias

ou para alterar estados de ânimo, quando, além de considerar a importância da confluência

astral do momento da manufatura do amuleto ou cocção da calda, também era importante a

ordem da mistura dos materiais, a escolha das pedras , metais e substâncias, o estado de

concentração e espiritual do manipulador.

No Renascimento, período como já dito, de grandes e profundas transformações em diversas

áreas, a alquimia conviveu com a química, a astrologia medieval e a astronomia: mitos e

crenças antigas informavam novas áreas do conhecimento. O potencial do homem de

descobrir, decidir e se autoafirmar contudo, não o libertou de remotas dúvidas e incertezas,

retornando sempre ao ponto primitivo de sua insegurança diante do novo. Era fundamental o

embate com seus conflitos e ambiguidades num ambiente de concentração, retiro e solidão,

propostos pela alquimia, onde o processo de autoconhecimento o levaria à modificação da

alma, mostrando a posição que de fato, deveria ocupar no mundo. Naquela escala de valores

era importante o saber anterior, filtrado pelos conhecimentos de sua nova realidade. As artes

alquímica e astral reuniam vários desses fatores: pela via do conhecimento místico antigo,

propunham a imersão do indivíduo na busca por sua renovada identidade.

59 Existe uma tradução do texto latino “Liber de Arte Chemica”, impresso no Theatrum Chemicum, vol 2, Genebra, 1702: 172 – 183, onde embora não seja absolutamente certa a autoria de Ficino, a atribuição é dada a ele, em um escrito onde trata de conceitos e preceitos alquímicos.

54

Page 55: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Alegoria

“Em 1475, os Médici receberam uma máquina encomendada a um artesão: um relógio. Ficino o interpreta duplamente, como alegoria explicativa do próprio procedimento de interpretação alegórica, e como alegoria do universo. O relógio é alegoria do cosmos porque em sua forma visível se intui Deus, círculo espiritual cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma. Alegoria sensibilizadora, o relógio é também um exemplo da intelecção humana da arte, segundo Ficino, nos seguintes termos: não se pode compreender como uma obra foi feita por um artista se não se possui também, em mesmo grau, a inteligência artística. O intérprete é movido pela simpatia, que é um “sentir junto”. Se consegue chegar a tal compreensão graças à correspondência da inteligência, poderá também, depois de descobrir o mecanismo da obra, reproduzi-la, desde que tenha a matéria adequada para fazê-lo. Todos os homens são relojoeiros, desde que compreendam o mecanismo e tenham a matéria adequada para produzi-lo. O relógio, contudo, também alegoriza o universo, nele espelhado. Assim como vê a máquina, o homem vê a ordem do céu, o movimento dos astros e sua origem, as distâncias, etc. Não se pode negar que é análogo ao Criador e que seria também capaz de fazer um análogo do Céu se tivesse os instrumentos e a matéria adequada. Segundo Ficino, o homem o faz seguindo os mesmos princípios, embora em outra matéria. Assim, o macrocosmo se expressa no microcosmo e tudo se corresponde na analogia generalizada. O homem é, pois, um demiurgo: o que Deus criou, o homem o concebe pelo ato intelectual, expressa-o pela linguagem nas obras que constrói como forma na matéria do mundo. A arte alegoriza a Criação e atesta a potência criadora do homem.”60

Assim João Adolfo Hansen mostra como Ficino exemplifica e formula sua idéia sobre o que

seria alegoria: uma figura de estilo utilizada nas artes visuais e na literatura para expressar

idéias abstratas, sentimentos. Expressão de um pensamento ou conceito por meio de uma ou

várias imagens ou metáforas, pelas quais é possível a leitura de um sentido figurado ou

alegórico em lugar do sentido literal.

Etimologicamente, do grego, “allos”, outro, “agorein”, falar, “allegoreno”, falar de outro

modo, “allegoría” significa dizer o outro, dizer alguma coisa diferente do sentido literal, e

substituiu um termo mais antigo, “hypónoia”, significação oculta, muito utilizado para

interpretar, por exemplo, os mitos de Homero. A alegoria ainda pode ser pensada como

expressão, a alegoria dos poetas, construtiva ou retórica, que é um modo de escrever e falar ou

como interpretação, a alegoria dos teólogos, interpretativa ou hermenêutica, uma forma de

decifrar e compreender.

60 HANSEN, João Adolfo. Alegoria – construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra / Editora Unicamp, 2006: 145-146. Nesta passagem de seu livro Hansen apoia-se em falas de André Chastel (Marsile Ficin et l’art. Genève: Droz & Lille, Giard, 1954).

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Embora confundida com o símbolo, a alegoria se diferencia daquele por seu caráter moral e

por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. É importante a

distinção que Walter Benjamin faz entre alegoria e símbolo: a primeira, enquanto revelação

de uma verdade oculta ou “uma verdade escondida sob bela mentira”, na célebre definição de

Dante, no “Convívio”, é temporal e aparece como um fragmento arrancado à totalidade do

contexto social; o símbolo é essencialmente orgânico.

Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, ou, como segundo Quintiliano, no

“Institutio oratoria”, uma “metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra

pelo sentido”, ou Cícero, no “De Oratore”, para quem a alegoria era um sistema de

metáforas, a alegoria é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos

tempos. Um modo de distinguir metáfora e alegoria foi proposta pelos retóricos antigos: a

primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos

inteiros.

Na tradição grega mais antiga, uma aplicação possível da proto-idéia de alegoria é o ensino

dos pitagóricos, cujo sistema filosófico, apoiado em relações numéricas simbólicas, contém

associações de natureza alegórica. Tal acontece, por exemplo, na doutrina do dualismo

essencial entre limite e ilimitado, que se funda na composição de dez pares de opostos, alguns

alegóricos como luz/trevas e bom/mau.

Tendo lugar fundamental nas artes literárias ou visuais de todas as épocas e nações, a alegoria

está presente nas antigas escrituras hebraicas, nos textos religiosos como os de Santo

Agostinho, Santo Ambrósio ou São Paulo, na literatura clássica: o mito da caverna de

Platão61, nas “Metamorfoses”, de Ovídio, na “Divina Comédia”, de Dante Alighieri,

considerada uma das maiores alegorias literárias, na obra “Os Triunfos”, de Petrarca ou

“Amorosa Visão”, de Boccaccio. Presente em obras figurativas de Giotto no afresco da

Capela dos Scrovegni (Fig 39 – 42), mostra figuras femininas personificando vícios e

virtudes, ou no conjunto de afrescos atribuído a Francesco Traini no Campo Santo de Pisa,

onde figura “O Triunfo da Morte”. Entre as mais conhecidas pinturas alegóricas, estão os

afrescos de Rafael para as salas papais do Vaticano, como a Stanza della Segnatura, em que

compõe alegorias da teologia, da filosofia e da poesia. Atingiu no século XVII, sua mais

representativa expressão, uma profusão de formas e personagens em composições alegóricas,

nas representações de vício e virtude, de vida e morte, as vanitas (Fig 16, 17 e 18), eficaz

61 É no mito da caverna na República que Platão, por um processo alegórico, mostra como a alma passa da ignorância à verdade, embora deva ser notado que Platão sempre se opôs às interpretações alegóricas dos mitos antigos como parte da educação dos jovens, porque “quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não é.” República, II: 378d

56

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advertência e aviso de nossa efêmera passagem pelo mundo.

Entre os alemães, Albrecht Dürer sempre será lembrado por sua série de gravuras alegóricas,

entre elas “Melencolia I”.

Até à Idade Média inclusive, a alegoria serviu de instrumento de defesa de teólogos, que

recorreram às interpretações alegóricas da Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas.

Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma alegórica: “No Velho

Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento, o Velho Testamento

é revelado.” Para o Autor de “A Cidade de Deus”, a alegoria não está nas palavras, mas deve

ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é permitido o conhecimento

literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido outro o homem poderá aproximar-se,

mas nunca chegar totalmente, da Verdade Divina.

Orígenes (185–252) acreditou no destino determinado por ações anteriores praticadas pela

pessoa, reafirmando a crença no livre arbítrio, defendeu a justiça divina argumentando que as

ações de nossas vidas passadas – e não os caprichos de Deus – são a causa da nossa situação

atual, trazendo assim, uma nova interpretação espiritual dos castigos infernais.

O teólogo alexandrino interpretou o Velho Testamento como figura do Novo, baseado no

pressuposto platônico de que o mundo físico nada mais é que uma imagem embaçada do

mundo espiritual, defendendo um método de interpretação que atribuía diversos sentidos ao

texto das escrituras em três níveis de leitura. O primeiro, cosmológico, o sentido literal situa-

se ao nível do corpo, seria o fato ocorrido. O segundo, antropológico, o moral ao nível da

alma conteria uma exortação quanto à conduta e o terceiro e principal, o místico, o alegórico

ao nível do espírito ensinaria uma doutrina para se crer. Em sua interpretação, vários

dispositivos confluem, assim como a retórica grego-latina, a etimologia, a filosofia platônica,

a exegese judaica da Torah, a astrologia persa, todos adaptados em função da propaganda da

fé cristã e da desmistificação da religião pagã. Para fazê-lo, Orígenes estabeleceu a verdade

histórica e o sentido literal do texto bíblico, mantendo o sentido alegórico, que desloca das

palavras para as coisas, como sentido espiritual.

“ A interpretação das coisas e homens da Bíblia como alegoria factual pressupõe que, por ser criado por Deus, o tempo é análogo Dele como semelhança e oposição dos eventos. Orientadas por essa concepção, duas operações complementares são aplicadas aos textos sagrados. Por uma delas, todas as diferenças temporais dos eventos e seres do Velho e do Novo Testamento, como as vidas de profetas, reis de Israel e Cristo, participaram da identidade do conceito indeterminado de Deus como seres reflexos ou

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Page 58: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

predicados do mesmo. Pela outra operação, afirma-se que a única coisa que se repete no tempo, Deus, é identidade absolutamente indeterminada, fora de todo tempo e de todo conceito; logo, afirma-se que Deus é exterior a qualquer representação, porque eterno e infinito; mas, simultaneamente, que é sempre um conceito idêntico a si mesmo nos eventos e seres, pois são criados por Ele. Desta maneira, no espaço e no tempo, os eventos, as coisas e os homens se distinguem em número e passam, porque são finitos; o Conceito que os funda, contudo, é absolutamente idêntico a si mesmo – perfeito, absoluto, infinito e eterno – quando sempre se repete em todos eles em todos os tempos. A história nunca se repete; o que se repete nela é seu fundamento, Deus, que é sempre idêntico a Si, nas diferenças temporais que participam Nele e que O espelham segundo vários graus das analogias, atribuição, proporção, proporcionalidade ”62.

Orígenes também se preocupou em distinguir ídolos e imagens: “ele disse que os ídolos não

existem, mas não disse que não existem imagens”63, empregando palavras ambíguas

exemplificadas por Platão (a passagem das idéias celestes às suas imagens terrenas,

inevitavelmente inadequadas) ou São Paulo [“... sabemos que o ídolo (imagem) nada é no

mundo...”]64. Sua argumentação não se limitou a repetir a proibição das imagens, mas em

diferenciá-las dos ídolos, justificando sua propensão a usar de metáforas centradas em

imagens, por exemplo, quando compara Deus Pai com “uma estátua tão grande que é capaz de

conter a terra [...] que, pela sua imensidão, não pode ser bem examinada por ninguém e o

Filho com outra estátua perfeitamente idêntica pelo desenho dos membros e traços

fisionômicos, por forma e matéria, sem no entanto a desmedida grandeza, para que os que não

podiam observar e examinar aquela imensa, vendo esta, confiem em ter visto a outra, pois que

reproduz com semelhança [similitudine] absoluta todas as características, traços dos membros

e da fisionomia, forma e matéria.”65 A semelhança entre Deus Pai e o Filho, assim como entre

Deus e o homem, deveria ser entendida de maneira puramente espiritual: o sentido alegórico.

A interpretação das imagens em termos miméticos dava por certa sua relação com o mundo

natural; já a interpretação da linguagem humana como convenção, proposta por Aristóteles

contra Platão, convidava a explorar a fundo a gama de fenômenos que estão antes, junto e

além da linguagem. Entretanto, essa explicação é insuficiente, porque ignora uma diferença

mais profunda e intrínseca entre palavras e imagens. Uma palavra como “bodecervo” pode

receber o predicado de “não existência”; a imagem correspondente não. As imagens, quer

representem objetos existentes, inexistentes ou objeto nenhum, são sempre afirmativas. As

62 HANSEN, J. A. Opus cit: 104-105.63 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001: 123.64 Bíblia Sagrada. Novo Testamento. Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 08, versículo 4. Imprensa Bíblica Brasileira: Rio de Janeiro, 1995: 163.65 GINZBURG. Opus cit.:131.

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imagens são o que são.66

Tais afirmações são retomadas pela Academia de Careggi, no século XV, fundindo expressão

alegórica com interpretação hermenêutica, repropondo a alegoria como instrumento principal

de interpretação, construção dos discursos e expressão de mistérios. Em Marsílio Ficino, a

alegoria passa a ser pensada como um misto retórico-hermenêutico, pois segundo a orientação

neoplatônica de sua interpretação, as “coisas elevadas” da ordem poética estão para além de

qualquer conceito e a alegoria efetua um sentido inefável. Possuindo um grande acervo de

documentos de diversas procedências: tradição oriental, judaica, etc..., Ficino procurou

demonstrar que as emanações de Deus revelam-se de várias maneiras e sua tarefa, enquanto

erudito, deveria ser rastreá-lo em todas as suas expressões, sem diferenças essenciais entre as

fontes cristãs ou não cristãs.

“Parece que Platão não se opõe de maneira alguma à crença comum das Teologias hebraica, cristã e árabe, de que o mundo teve um começo, de que os anjos foram criados na origem e de que as almas imortais dos seres humanos são criadas a cada dia.”67

Ficino então, à partir de uma tradição bastante eclética e sua vocação astrológico-cabalística,

promove uma releitura alegórica dos textos antigos adaptando-os à sua interpretação mística.

Evidenciando a questão da arte, a alegoria é usada como um dispositivo da invenção,

incluindo o que a retórica antiga separava como elocução ou “ornamento”. Como ars

inveniendi, a alegoria valoriza o engenho do sábio e do artista.68 O método alegórico

florentino supunha o ser divino revelado de diferentes maneiras e a tarefa do erudito-poeta,

distinto do comum dos mortais pela intuição, seria seguí-lo e desvendá-lo em todas as suas

manifestações, colocando-se em contato direto com hierarquias celestes. O fundamento

último da alegoria florentina era, portanto, acreditar que para uma alma humana consciente

dos outros mundos, a realidade terrena é um sonho, metáfora de sua filiação primordial.69

Rejeitando uma idéia de totalidade e de plenitude de sentidos, a imagem alegórica, pela

incompletude humana, seria a única capaz de dar conta daquele mundo renascentista, que

exaltando o lugar do sujeito, mantinha-o irremediavelmente ligado a seu passado místico, sua

66 GINZBURG. Opus cit.: 122 a 138.67 HANSEN, J. A. Opus cit.: 142. Citação de Chastel (Marsile Ficin et l’art. Genève: Droz & Lille, Giard, 1954). 68 HANSEN, J. A. Opus cit.: 140-141.69 HANSEN, J.A .Opus cit.: 174.

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Page 60: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

formação religiosa e a evidência dos limites de sua constituição terrena.

Walter Benjamin, muito tempo depois de Ficino, também pensou a alegoria e a viu como a

revelação de uma verdade oculta. Uma alegoria não representa as coisas tal como elas são,

mas pretende antes dar-nos uma versão de como foram ou podem ser, por isso o filósofo

alemão se distanciou da retórica clássica e assegurou que a alegoria se encontra “entre as

idéias como as ruínas estão entre as coisas”. Por isso Benjamin fala da alegoria como

expressão da melancolia:

“Quando o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, deixa escapar a vida, fica como morto, fixado para a eternidade. Assim se depara ao artista alegórico, a ele destinado para a glória ou infortúnio; quer dizer, o objeto é totalmente incapaz de irradiar sentido ou significado, apenas lhe cabendo como sentido aquele que o alegórico lhe conceda.”70

Distinguiu ainda, dois tipos de alegoria: a “cristã”, que nos dá a visão da finitude do homem

na absurdidade do mundo, e a “moderna”, colocada ao serviço da representação da

degenerescência e da alienação humanas.

Também Heidegger estudou a natureza da obra de arte como sendo constitutiva de uma

realidade alegórico-simbólica indivisível:

“A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é, ‘allo agoreuei’. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa: ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. Reunir-se diz-se em grego ‘symballein’. A obra é símbolo.”71

Enquanto o símbolo requer o acesso de uma identidade ou identificação, a alegoria indica uma

distância em relação à sua própria origem, e, renunciando à nostalgia e ao desejo de

coincidência, fixa a sua linguagem no abismo ou vazio desta diferença temporal.

“Melencolia I” é uma obra que, embora todas as diferentes interpretações que possui, todas

concordam que seja uma alegoria. Como observa Hansen:

“Alegoria de alegorias astrológicas, cabalísticas e místicas, a gravura figura o humor negro daquele que, dotado para o cálculo geométrico, pensa por

70 TIEDEMANN, R.Ursprung des deutschen Trauerspiels. Frankfurt, 1963: 204. O pensamento de Benjamin certamente não foi uma influência para Ficino, nem Dürer, porém, como contemporâneo de Panofsky, principal comentador publicado da obra dureriana, é possível perceber o diálogo estabelecido entre o filósofo e o historiador alemães em diferentes momentos. Um deles é a recepção da alegoria florentina no século XX, quando ambos escreveram suas obras, ou quando Panofsky analisa a obra Melencolia I. 71 HEIDEGGER. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1992: 13.

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imagens espaciais e não por abstrações filosóficas e, assim, permanece sempre aquém da contemplação superior. O melancólico move-se na esfera da imaginação ou das quantidades espaciais, que é forma primeira do engenho humano, conforme os renascentistas. Desta maneira, também é alegórico o número I do título Melencolia I ”.72

Mais adiante retornarei à interpretação específica da gravura dureriana.

72 HANSEN, J.A.. Opus cit: 22.61

Page 62: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Dürer e a Melancolia“Se alguém viu alguma coisa atrás das sibilas,

isso aconteceu graças a mim”73

73 TSCHERNING, Andreas. Melancholey Redet Selber. In: BENJAMIN, Walter. A Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984: 170. “Eu, mãe de sangue denso, fardo putrefato pesando sobre a terra quero dizer quem sou, e o que por meu intermédio pode vir a ser. Sou a bílis negra, primeiro encontrada no latim, e agora no alemão, sem ter aprendido nenhum dos dois idiomas. Posso, pela loucura, escrever versos tão bons como os inspirados pelo sábio Febo, pai de todas as artes. Receio apenas que o mundo possa suspeitar de mim, como se eu pretendesse explorar o espírito do inferno. De outra forma, eu poderia anunciar, antes da hora, o que ainda não aconteceu. Enquanto isso permaneço uma poetisa, e canto minha própria história, e o que sou. Devo essa glória a um nobre sangue, e quando o espírito celeste em mim se move, inflamo rapidamente os corações, como uma deusa. Eles ficam então fora de si, e procuram um caminho mais que terrestre. Se alguém viu alguma coisa atrás das sibilas, isso aconteceu graças a mim.”

62

Page 63: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

O peso, o número, a medida

No fim do século XV, enquanto a arte italiana já modificara a perspectiva medieval,

afirmando a idéia do “artista dotto” e implantando a transformação cultural do Renascimento,

a Alemanha ainda era marcada pelas tradições do gótico e pela concepção de vida

fundamentalmente religiosa. A movimentação econômica, motivada pela ascensão da

burguesia, provocou mudanças que culminaram em rica inovação das atividades artísticas e

intelectuais da região. É neste ambiente de intensas trocas, principalmente com a Itália, que

Nuremberg, juntamente com Augsburg, se firma como centro do humanismo alemão, com

todo o estudo dos clássicos, retorno às fontes e línguas antigas (grego e latim), buscando uma

concepção original do saber e uma renovação cultural que ali se subordinavam a fins civis e

políticos próprios. Sua organização social privilegiava as ricas famílias de comerciantes e

burgueses, que se dividiam entre juristas, clero, médicos e alguns outros letrados. Ainda que

possuísse um artesanato refinado e bastante desenvolvido para os padrões europeus, inclusive

com uma significativa produção de instrumentos de precisão e científicos e uma classe de

artesãos reconhecidos e enriquecidos, estes continuavam a pertencer a uma categoria

excluída dos mais altos níveis sociais.

Movimentos para o desenvolvimento de idéias humanistas no norte, começaram a ser feitos

aproximadamente em 1348, com a fundação da Universidade de Praga74 pelo rei Carlos IV da

Boêmia, onde em 1415 Jan Hus, reformador religioso, foi o primeiro reitor condenado a

morte na fogueira pela inquisição e logo depois, em 1358, com a fundação da Universidade de

Heidelberg. Tratava de uma elaboração original do método da "veracidade a priori" com o

"método da autoridade" (a autoridade da Bíblia): de Aristóteles, Platão, Hipócrates e Galeno e

dos seus exegetas árabes, como Avicena, Averróis e dos grandes filósofos-teólogos da Igreja

Católica Romana da Idade Média (Santo Ambrósio, São Jerónimo, Santo Agostinho e São

Gregório). A formação acadêmica germânica caracterizou-se desde seu início pelo confronto

entre as suposições da fé cristã e a compreensão mais racional do mundo: Rudolf Agricola

(1444-1485), buscou a reforma do ensino com a introdução do latim, o poeta Konrad Celtis

(1459-1508), convocado por Maximiliano I, foi o primeiro professor de expressão e de poesia

de Viena, Johannes Reuchlin (1455-1522) promoveu o estudo do idioma grego e hebraico e

74 É também na Universidade de Praga (1409) que encontramos a evolução da “nacionalização”: as nações (agrupamentos de estudantes e mestres de mesma etnia) desta Universidade são obrigadas a prestar juramento de fidelidade à coroa da Boêmia, instalando uma divisão política. A "nação" alemã decide abandonar a Universidade de Praga para fundar a de Leipzig.

63

Page 64: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Philipp Melanchthon (1497-1560) ficou conhecido pelo caloroso debate entre as idéias

humanistas e reformistas, Jacob Wimpfeling (1450-1528) escreveu o primeiro trabalho

histórico (Germania, 1501) e Ulrich von Hutten (1488-1523) lutou contra os abusos da igreja

romana e a favor da nova identidade do povo alemão. Erasmo (1467-1536) pensava em um

equilíbrio entre ética humanista e a piedade cristã. Seu trabalho científico culminou na edição

grega do Novo Testamento, de 1516. O poeta e tradutor Willibald Pirkheimer, o historiador

Rhenanus Beato, Johann Aventinus e Konrad Peutinger formavam o círculo humanista de

Nuremberg. Diante deste quadro cultural efervescente e da busca pelo conhecimento, os filhos

das famílias abastardas da Alemanha iam complementar seus estudos em universidades no

norte da Itália.

É também em Nuremberg, que se constitui um importante centro de impressão e difusão de

livros, sobressaindo publicações ilustradas, graças ao desenvolvimento da xilogravura nos

ateliês da cidade.

Em 1471, nasceu Albrecht Dürer. Seu pai, um ourives de ascendência húngara, foi seu

primeiro incentivador, iniciando o filho no ambiente artístico logo em 1486, contatando

Michael Wohlgemut, o melhor pintor e importante gravador de Nuremberg de então, para

que o filho fosse seu aprendiz. Durante seus anos de aprendizado, Dürer participou da feitura

dos desenhos e gravuras que compunham uma enciclopédia cosmográfica, entre os anos de

1487 e 1488, publicada por Anton Koberger em 1493, que descrevia o mundo desde sua

criação até o juízo final, ricamente ilustrada com 1809 gravuras que representam cenas

bíblicas, personagens míticos e históricos, além de vistas das principais cidades do mundo.75

Koberger publicou também, à partir de 1497, textos de Marsilio Ficino, Erasmo, Eneas Silvio

Picolomini, além de autores científicos, como Copérnico, mostra do interesse dos cidadãos de

Nuremberg pelo neoplatonismo florentino e a cultura humanista.

Em 1490, Dürer fez sua primeira viagem, passando pelas cidades de Colmar, Estrasburgo e

Basiléia, onde conheceu outros artistas, aprendeu e desenvolveu novas técnicas. Em 1494,

regressou a Nuremberg para casar-se com Agnes Frey, filha de uma família tradicional e

pouco depois, partiu para a Itália, onde conheceu os ateliês de Giovanni Bellini e Andrea

Mantegna76, artistas renascentistas que terão uma influência reconhecida em sua obra , como

75 PEIFFER, Jeanne. Durero Geómetra, in: DURERO, Alberto. De la medida. Madrid: Ediciones Akal, 2000: 16.76 Mantegna foi o pintor italiano que gravou um número significativo de chapas de cobre. Por outro lado, Dürer queria conhecer o grande pintor do norte da Itália, mas antes que ele chegasse em Mântua, Andrea estava morto, fato que causou em Albrecht grande tristeza.

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Page 65: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

será visto mais tarde em trabalhos como “A morte de Orfeu”(Fig. 28) ou “Batalha dos deuses

marinhos” (Fig 29A, 29B, 30 e 31)onde reconhecemos suas influências, quer sejam na

literatura, pelas traduções de Ovídio feitas provavelmente por Angelo Poliziano, quer sejam

pelas artes visuais, em desenhos do ateliê de Mantegna77.

Em 1505 Dürer volta à Itália, onde permanece até 1507, passando pelas cidades de Bolonha,

Florença, Roma e Veneza. Nesta viagem, Dürer adquiriu uma cópia da primeira tradução

latina de Euclides, que incluia elementos de geometria e ópticos. Seus estudos da perspectiva

o levaram a ler “De divina proportione”, um tratado matemático escrito em italiano por Fra

Luca Pacioli78. Pacioli parece ter estudado matemática com Piero della Francesca, em Borgo

S. Sepolcro, onde ambos tinham nascido, ou em Urbino, onde cada um teria vivido. Dürer

estava interessado em alcançar a perfeita proporção e a beleza em seus trabalhos e esta

questão o fez aprofundar em seus estudos da geometria e perspectiva, porém para ele esta

habilidade seria como um dom de Deus, um Deus geômetra que criou o mundo segundo as

“leis do peso, do número e da medida”79, por isso mesmo fora do alcance das criaturas

humanas, sempre sucetíveis ao erro. Dürer expressa a limitação e a inadequação da geometria

euclidiana para seu projeto estético e a necessidade de uma geometria mais complexa. O

tratado de Pacioli permitia essa ampliação do saber: as formas complexas dos sólidos não

regulares, de número crescente de lados, obtidos por truncamentos sucessivos dos angulos dos

poliedros conhecidos. No Livro IV das Proporções do corpo humano, dedicado ao

movimento, Dürer inscreve elementos do corpo em sólidos estereométricos e ensina como se

copiar aquilo que se vê80. Ainda consciente da restrição da geometria e do limite terreno do

conhecimento, não renunciou à busca do saber81, e da beleza, que para ele estava na

proporção e harmonia. “A beleza está na harmonia das partes e em sua relação mútua e com

o todo”.82

Esse convívio com a arte renascentista européia, iniciado em sua primeira viagem e retomado

77 WARBURG, A. Dürer e L’Anchichità Italiana. In: La rinascita del paganesimo antico. Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1996: 195 a 200. 78 Há indicações do conhecimento de Dürer sobre o tratado de Pacioli tanto em seus escritos quanto em “Melencolia I”, alguns temas abordados por Dürer, incluindo a construção geométrica do alfabeto romano, ilustrações dos cinco sólidos regulares, ou a adoção de um novo sistema de progressividade das proporções em figuras, refletindo a influência de Pacioli. 79 Bíblia Sagrada. Velho Testamento. Livro da Sabedoria de Salomão, capítulo 11, versículo 20. São Paulo: Paulus, 1990: 892. Esta passagem do Livro da Sabedoria foi algumas vezes mencionado por Dürer, ao longo de seus escritos, como observa Jeanne Peiffer na introdução de De la medida: 120,121.80 DURERO, Alberto. De la medida. Madrid: Ediciones Akal, 2000: 326.81 PEIFFER, Jeanne. Opus cit.: 121, 122.82 PANOFSKY, Erwin. Vida y arte de Alberto Durero. Madrid: Alianza Forma, 2005: 271.

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Page 66: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

aqui, contribuiu para que Dürer fosse reconhecido como o primeiro artista do Renascimento

setentrional, conhecedor das tradições clássicas, frequentador dos círculos de estudos e ateliês

de artistas famosos, possuidor de um notável dom para a forma plástica, que foi além das

tradições artesanais e levou o Renascimento para dentro das fronteiras alemãs. Pintor e

gravador, criou meios para expressar os gestos habituais do entalhe aliados à investigações

geométricas mais apuradas. Dürer constituiu uma exceção ao sistema social de sua cidade,

frequentando os círculos mais abastados, consolidando sua longa amizade com Willibald

Pirckheimer (Fig. 19), humanista e conselheiro imperial.

Pirckheimer traduziu do grego para o latim um significativo número de textos de Lucian, um

deles descrevendo uma pintura de uma mulher amamentando um jovem centauro,

provavelmente inspiração para Dürer conceber, em 1505, a gravura “Centauro e Ninfa com

bebê” (Fig. 11). Entre os anos de 1512 e 1513, Pirckheimer teve um exaustivo trabalho de

tradução do texto grego “Hieroglyphica”, de Horapollo, para o Imperador Maximiliano I (Fig.

20). A tradução, ilustrada por Dürer, estava pronta em 1514. O texto de Haropollo trata de

vários símbolos egípcios, muitas vezes usados em decoração de sepulturas. Explica como o

Ser se desdobra em três mundos, que por sua vez, tomados em seu conjunto, formam uma

imagem matemática, mágica, cabalística e alegórica, pela qual é possível remontar-se para a

contemplação da própria Unidade, de sua transcendência. Com efeito, é por meio da

matemática pitagórica, da magia, da cabala e da alegoria que o mistério fecundo da existência

se revelaria em toda sua plenitude e majestade. Horapollo interpretou para o grego e embora

algumas vezes equivocado, permaneceu o uso da figura de animais em diferentes

representações. O “Hieroglyphica” afirma por exemplo, que os antigos egípcios representam

um rei por um cão com um arminho, assim Dürer desenhou o Imperador como um cão com

uma estola. O conhecimento deste texto permitiu a Dürer ampliar seu vocabulário gráfico,

influenciando várias de suas obras, inclusive medalhas, moedas e arcos do triunfo. Foi

também nessa época que se ocupou de um intenso estudo das proporções humanas e escreveu

algumas notas para a educação de jovens pintores.

Outro texto que parece ter influenciado Dürer foi o “Grande Hipias” de Platão. Desde a

antiguidade, o belo foi tratado por Platão, Aristóteles e Plotino. Neste diálogo, Platão se ocupa

longamente da definição do belo, de qual seria o traço comum de todos os objetos

supostamente belos. Aristóteles considerou o belo em três formas: a ordem, a simetria e o

limite, formas que a matemática demonstra especialmente. Hípias, a princípio, propõe à

Sócrates que o belo fosse o útil, porém ao longo da discussão, conclui que são coisas distintas.

O belo é independente de qualquer condição. O belo, numa conceituação clássica, seria então 66

Page 67: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

aquilo agradável à vista e ao ouvido. Tratando do conceito de beleza e da busca por ela, o

artista alemão acreditou que a beleza fosse algo inexplicável, cabendo apenas a Deus julgá-la.

Afirmou que “Embora esta seja a beleza em muitas coisas, eu não sei o que é”. Ou como diria

Kant, muito depois, o belo “agrada sem conceito”. O belo relaciona-se à obra de arte no nível

do gosto, do equilíbrio, da harmonia e perfeição, efeitos da fruição.

Dürer foi o primeiro artista do norte a sentir o “phatos da distância”. Sua atitude em face da

arte clássica não era a do herdeiro nem do imitador, mas sim do conquistador.

Não se deve esquecer que Dürer, apesar de todo seu “anseio pelo sol” era, e sob muitos

aspectos permaneceu um artista nórdico do final do período gótico. Seu extraordinário dom

para a forma plástica era igualado por uma percepção também notável do pictural, sua intensa

preocupação com a proporção e claridade, a beleza e a correção, por um impulso igualmente

forte para o subjetivo e o irracional, para o realismo microscópio e a fantasmagoria.

Dürer provavelmente conheceu a obra de Ficino por volta de 1497, quando Antón Korberger,

padrinho de Dürer e gravador da cidade de Nuremberg editou uma versão de “De vita

triplici”. Antes Korberger já havia publicado as “Cartas” de Ficino, onde era evidente o

pensamento Neoplatônico, consolidado no “De vita triplici”. Dürer transferiu os princípios

universais da astrologia e medicina propostos pela filosofia de Ficino para tratar da educação

do pintor e mais tarde, ao escrever seu tratado das proporções defendeu que as características

humanas são condicionadas pelos temperamentos e astros, sendo distintas visivelmente pelas

medidas das proporções humanas.

Em 1498, Dürer grava “O monstro marinho” e em 1501, “O milagre do mar”, trabalho que

traz criaturas fantásticas que Hans Sachs (1494 – 1576) interpreta pelo viés da melancolia,

anos mais tarde.83 Em 1502 produziu a primeira gravura (Fig 04) conhecida onde trata

claramente do tema da melancolia, uma alegoria onde estão presentes elementos que a

caracterizam (Saturno, outono, crepúsculo, terra, o vento boreal) e que estampou a obra “Libri

amorum” de Conrad Celtes, marcadamente ainda influenciado pelas representações medievais

da melancolia, o que sugere que embora conhecesse a nova doutrina renascentista, ela ainda

não estava completamente inserida em sua obra. Usou o esquema dos quatro ventos e a

imagem típica medieval do Cristo rodeado pelos símbolos do evangélio.

83 WAETZOLDT, Wilhem. Dürer und seine Zeit. Zurique: Phaidon, 1950: 90. “Fahr immer hin dein Straßen du ernstliches Meerwunder...” Conduzindo-te sempre pelas sérias maravilhas do mar... Tradução livre.

67

Page 68: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Em 1503 apresentou “Nêmesis”(Fig 21) ou a grande fortuna, alegoria baseada em escritos de

seu diário de 1497, a partir da pequena fortuna, que mostra a personificação da mulher alada,

iniciando uma “linguagem da imagem” que irá aparecer em “Melencolia I”84.

A gravura em metal “Melencolia I” (Fig.01), realizada em 1514, possui imensa fortuna

crítica. Segundo referências dadas por E. Panofsky e R. Klibansky, esta obra seria a

representação, nas artes, da filosofia de Marsilio Ficino. Até hoje, continua desafiando

historiadores, artistas, filósofos, psicanalistas, pensadores de várias áreas do conhecimento. É

uma obra que não constitui-se apenas numa referência fundamental para a representação da

melancolia nas artes plásticas, onde tornou-se um marco, mas também como uma singular

inserção no contexto da obra de seu autor e no contexto mais geral do Renascimento, período

histórico marcante não apenas para uma reflexão sobre a melancolia, mas também toda

reflexão sobre uma nova época, onde a possibilidade que se apresentava ao espírito humano

de pensar o mundo como uma totalidade inteligível (racional e real) se unia às doutrinas

religiosas que até então haviam conduzido esse espírito.

Todos os elementos da obra possuem significados simbólicos atribuídos conscientemente pelo

artista e constroem um espaço plástico denso, fortemente marcado pelo neoplatonismo, a

religiosidade medieval e a revolução da fé promovida pelo luteranismo85.

Assim é que esta obra vem se mantendo, ao longo dos tempos, como um enigma e um

modelo. Incompreendida e admirada, ocupando um espaço onde gravitam dúvidas, hipóteses,

teorias...

84 WAETZOLDT, Wilhem. Opus cit.: 87. Nesta passagem o autor não deixa claro qual seria a pequena fortuna citada. Talvez porque o próprio Dürer não tenha sido claro em sua anotação.85 Kampff Lages, Susana. Opus cit: 43.

68

Page 69: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Gravura86

Seguindo uma trajetória histórica que se inicia nas cavernas primitivas, passando pela

Mesopotâmia, Egito, Impérios Romano e Chinês, as técnicas de gravação percorreram um

longo caminho de (re)elaborações de seus processos e materiais, e com o impulso da

descoberta do papel pelos chineses em 105, as impressões puderam se sofisticar e ter uma

circulação ampliada.

As xilogravuras chegaram à Europa por volta de 1418, primeiramente na Alemanha e logo

depois pela França, Itália e Holanda, somente depois que o continente passou a conhecer e

produzir o papel e foram usadas inicialmente para a impressão de cartas de baralho e

confecção de mementos religiosos, mesclando elementos de escrita e imagens. Os ilustradores

e artistas alemães tornaram-se exímios nesta técnica87, por volta do século XV, tornando as

imagens cada vez mais refinadas, com grande variedade de traços, sombreados e texturas.

Bastante influenciada pelo espírito da pintura flamenga, a arte na Alemanha se desenvolveu

de modo diferente, comparada à italiana, sobretudo em suas definições estilísticas. O

surgimento da consciência artística deste povo nasceu aos poucos e foi somente por meio de

embates conceituais que firmou suas concepções estéticas. O traçado do desenho não era,

definitivamente, uma inscrição carinhosa; abrupto, mais parecia um corte, uma marca

rasgada, despedaçada, dobrando-se bruscamente em linhas incontidas, evocando, no interior

de seu simbolismo, no intuito de impor, como uma idéia fixa, a expressão da dura

sensibilidade espiritual do norte, diferentemente dos florentinos, com representações suaves

das sombras por traços paralelos, curtos e oblíquos. A escolha dos temas também continha a

austeridade estilística e realismo característico, como a representação do martírio dos santos

ou a ferocidade dos personagens. Esta habilidade artística germânica culminou na elaboração

de gravuras, primeiramente sobre madeiras e depois, sobre metal e foi nesta técnica que a arte

alemã obteve sua auteridade na representação da multiplicidade dos afetos humanos.

Tecnicamente foi a xilografia88 (Fig 22) que primeiro se desenvolveu no século XV na

86 Gravura é a denominação genérica das técnicas que permitem obter imagens (impressões) por meio de matrizes.87 BUCKLAND-WRIGHT, John. Etching and Engraving – Techniques and the Modern Trend. New York: Dover Publications, 1973: 172.88 Prancha de superfície igualada onde se desenha. O desenho pode ser feito diretamente na prancha, pode ser transferido por decalque, ou ainda, consistir numa colagem sobre a matriz de papel fino onde a imagem se mostra. Há artistas cuja metodologia consiste em pintar a superfície da prancha de branco. Com uma lâmina bem afiada escava-se em torno dos riscos e manchas, de modo a deixar o desenho em relevo. Como os talhos são de

69

Page 70: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Alemanha. Textos variados foram editados, ilustrados por figuras gravadas, depois da

invenção da impressa por Gutemberg89. Rapidamente a Alemanha se destacou como pólo de

impressão e edição das mais variadas espécies e consequentemente num movimento intenso

de trabalhos para ilustrações.

As xilogravuras sempre foram mais simples e populares que os buris, por sua produção menos

laboriosa e custosa. De leitura mais direta e simplificada, causavam grande impacto ao

observador. Dürer pode ser considerado o responsável por grande parte da evolução técnica

da gravura em madeira, tornando-a mais refinada com o uso do claro e escuro realçado pelo

entrelaçamento de linhas e tornando suaves as áreas negras.

A gravura em metal ou buril90 (Fig 06), permite um desenho mais elaborado, resultando um

trabalho mais detalhado se comparado à xilogravura, mais simples. Outro artista alemão,

Martin Schongauer (Fig 23), já vinha aprimorando a técnica da gravura em metal quando

Dürer, interessado em desenvolver estudos do corpo humano, elege o buril como técnica. Se

nos primeiros trabalhos ainda compunha as figuras com hachuras cruzadas e pequenos

entalhes, o aperfeiçoamento de sua técnica permitiu a elaboração e harmonização dos espaços

e texturas. Por volta de 1500, seus traços tornam-se mais flexíveis, delicados e sintonizados à

composição. Para Dürer o desenho tinha importância fundamental, constituindo o esboço do

sentido criativo, do pensamento. A autonomia intelectual de Dürer quase o impossibilitava de

conformar-se com a simples imitação do sensível, optando, assim, pela livre idiossincrasia, re-

elaborando aquilo que retirava do contato com a natureza. Sua arte se aproxima muito da

doutrina artística re-discutida na Itália da época, conhecida a princípio pelo nome de Idéia91.

Panofsky92 conta que enquanto Dürer trabalhava na oficina de editores, nos primeiros anos de

carreira, não talhava pessoalmente seus desenhos, já que esta tarefa fazia parte de um

esquema divisor de trabalhos. No entanto, muitas vezes o fez, para se familiarizar com o

certa profundidade, não é preciso uma técnica muito especial de entintamento. A tinta de natureza oleosa, para melhor fixação ao papel, é passada a tampão ou a rolo.89 Johann Gensfleisch, Gutenberg, ourives de profissão, criou a “escrita mecânica”, a partir da invenção da tipografia por caracteres móveis de metal, em Mogúncia (Meinz), na Alemanha, inaugurando a era de cópias múltiplas e idênticas de um original, que, após escovado e acrescido da forma gráfica se transforma em livros impressos. As inovações técnicas que constituíram a base para a emergência da função editor se verificaram primeiro em meados do século XV e significaram uma grande mudança em relação às práticas técnicas anteriores, inclusive às reproduções xilográficas, e especialmente devido aos caracteres alfabéticos da escrita ocidental (mas não só), trouxeram conseqüências completamente diferentes, no Ocidente, das provocadas pelas experiências com tipos móveis de madeira e cerâmica, ou mesmo de metal, ocorridas antes no Oriente.90 Placa metálica de superfície igualada onde se talha, rasga, ou se faz corroer (no caso, com ácido), linhas representativas do próprio desenho. Após este procedimento, aplica-se um líquido “revelador”. O entintamento se estende por toda a superfície da chapa, que, depois de polida, mantém a tinta apenas dentro dos sulcos.91 PANOFSKY, E. Idea.Contribución a la historia de la teoria del arte. Madrid: Cátedra Ediciones, 1985.92 PANOFSKY, E. Vida y arte de Alberto Durero. Madri: Alianza Forma, 2005.

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processo técnico e, sobretudo, a fim de demonstrar a força de suas intenções para os

talhadores profissionais, muito embora não lhe coubesse tal obrigação. Com o tempo, formou

sua própria equipe de talhadores que contava com uma nova geração de artesãos, como era o

caso de Hieronymus Andreae, chamado de “Formschneyder”, que talhou a maior parte das

xilogravuras de Dürer em meados de 1515. Por meio de registros deixados por outros artistas

contemporâneos de Albrecht Dürer é possível notar que havia um número considerável de

xilogravadores suficientemente habilidosos trabalhando nos ateliês somente como ajudantes

do artista: Hans Glaser, Hans Guldenmund, Henri Hondius.

Dürer repetiu nos buris temas das xilogravuras e vice-versa. Enquanto estas inovavam

tecnicamente, se tornando cada vez mais simples e de expressão elementar, aquelas

apresentavam um conhecimento apurado de formas e técnica bem executada. Trabalhou com

cópias de modelos italianos à exaustão. Segundo Wölfflin, “...o homem que poderia dar à arte

germânica uma completa concepção nova de realidade, contentava-se com uma arte

emprestada...”93 e o fato de todos estes corpos pressuporem uma natureza diferente da

germânica aparentemente não causava a ele preocupação, pois sabia que ao circularem pela

Europa as cópias de suas gravuras, firmava-se indiscutível seu talento plástico tipicamente do

norte.94 Dürer tinha consciência de seu dom e da possibilidade de permanência para a

posteridade. Sua busca pela beleza e harmonia encontraram uma resposta na gravura “Adão e

Eva”, de 1504 (Fig. 28). Ainda sendo uma representação da natureza, apresentava a

inteligência e o poder de abstração do artista em todo seu conteúdo e temática. O desenho,

considerado “intelectual”, não satisfazia somente as obrigações de clareza e abstração, mas

demonstrava em si o resultado da marca mais fundamental da natureza humana.95

93 WÖLFFLIN, Heinrich. The Art of Albrecht Dürer, Londres, 1971: 27.94 WAETZOLDT, Wilhem. Opus cit.: 84. Waetzoldt menciona a distribuição pela Europa das gravuras de Dürer, de acordo com notas de compra, por Johannes Cochlaeus, em 1512, de modelos da “Paixão”; Anton Tucher, em 1515 de exemplares de “São Jerônimo” e “ MelencoliaI” e ainda uma nota de 1560, onde o Monsenhor Sabba de Castiglione fora para a Itália levando dois volumes de gravuras. Dürer sabia bem que ao circular suas obras como “MelencoliaI”, “Apocalipse” ou “Nemesis” estava determinando uma certa arte política pessoal (persönliche Kunstpolitik).

95 HITNER, Sandra Daige. As gravuras brasileiras de Albrecht Dürer. Disponível em http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br. Acesso em fevereiro/2008.

71

Page 72: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

A imagem melancólica“Votre âme est un paysage choisi”96

Paixão ou loucura, o furor, como Platão compreendia a força capaz de levar ao conhecimento,

fonte de inspiração, regida pelo temperamento melancólico e sua biliosa e negra expressão,

atribuída ao planeta Saturno (Fig.14). Recordando o sentido simbólico e elevado deste planeta

e as sutis energias que contém, além de seus aspectos negativos e das pesadas cargas que lhe

aplica a interpretação supersticiosa, possui também distintas características opostas das coisas.

Saturno é a lentidão e a sabedoria da velhice, a passagem para o estado purificador que

precede a morte. O Renascimento valorizou de modo extraordinário a melancolia, e o

sentimento triste com o qual se manifesta e considerou que era um estado onde florescia a

inspiração, o berço da compreensão e do êxtase. Grandes artistas como Albrecht Dürer a

retrataram e destacaram sua vinculação com o metafísico, o simbólico, o numérico e o

esotérico. Atribuiu a este humor o mesmo valor que Aristóteles: seria próprio de heróis,

poetas e grandes homens e sua manifestação geraria o frenesi que leva à sabedoria e à

revelação.

Todos os elementos da obra possuem significados simbólicos atribuídos conscientemente pelo

artista e constroem um espaço plástico denso, que embora cuidadosamente organizado pela

perspectiva, parece quase inteiramente encerrado no primeiro plano, ressaltado pelo ponto de

fuga colocado na sucinta paisagem situada à esquerda da figura.

“Embora tendo sido influenciada pelo neoplatonismo da época e fortemente marcada, simultaneamente, pela religiosidade medieval e pela revolução da fé promovida pelo luteranismo, a obra de Dürer anuncia a modernidade(...)”97.

96 VERLAINE, Paul. Clair de lune. Disponível em http://wwwdominiopublico.gov.br. Acesso em março/2009. Tradução livre. “Votre âme est un paysage choisi/Que vont charmant masques et bergamasques/Jouant du luth et dansant et quasi/Tristes sous leurs déguisements fantasques./Tout en chantant sur le mode mineur/L'amour vainqueur et la vie opportune/Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur/Et leur chanson se mêle au clair de lune,/Au calme clair de lune triste et beau,/Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres/Et sangloter d'extase les jets d'eau,/Les grands jets d'eau sveltes parmi les marbres.”

A vossa alma é uma paisagem escolhida/Que encantando vão máscaras e bergamascas,/Tocando alaúde e dançando, e quase/Triste nos seus disfarces extravagantes./Cantando em modo menor/O amor triunfante e a vida oportuna,/Não têm ar de acreditar na sua felicidade/E a sua cantiga mistura-se com o luar,/Com o calmo luar triste e belo,/Que faz sonhar as aves nas árvores/E soluçar de êxtase os repuxos,/Os grandes repuxos esbeltos entre os mármores.

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Na verdade, o que ocorre é que, diante da ambivalência de “Melencolia I”, todas as

interpretações parecem ser, simultaneamente, pertinentes e incompletas, gerando sempre uma

insatisfação no observador, que pressente “algo mais” na obra e “algo menos” na

interpretação, mas que no fundo, não sabe exatamente em que consistiria esse “algo”. Talvez

o índice mais evidente da modernidade de “Melencolia I” possa ser atribuído precisamente a

seu caráter enigmático, hermético, que provoca uma multiplicação das interpretações, muitas

vezes conflitantes entre si. Por outro lado, esse hermetismo acarreta também uma sensação de

falência interpretativa, típica da crítica da modernidade, cada vez mais consciente da

parcialidade de todo gesto interpretativo.

A imagem pensativa do gênio feminino alado, sentado e desolado, desnorteado, sonhando

com as nuvens, em meio a uma arquitetura inacabada, que se eleva sobre um mar noturno e

vazio, iluminado pela luz de um cometa, ilustrou o caráter fundamentalmente enigmático do

humor melancólico. Enquanto tipos ardorosos, coléricos e fleumáticos continuam vivendo

suas vidas, a melancolia simplesmente permanece sentada e pensando. Pensando em algo sem

sentido, sem esperança, compartilhando um sentimento de tristeza e desolação, declarando a

ambígua e misteriosa natureza e o sofrimento da introspecção. Dá corpo às duplicidades e

ambivalências do caráter humano, ora espiritual ou material, ora cheio ou vazio, veloz ou

lento, infernal ou divino, ativo ou inativo... Pólos que só se deixam apreender recorrendo a um

terceiro elemento: a arte.

A leitura de “Melencolia I” pode ser pensada através das fontes literárias neoplatônicas,

muitas sabidamente disponibilizadas por Pirckheimer à Dürer, de modo que encontramos

referências a textos sobre geometria, alquimia, astrologia. A figura central segura um

compasso e tem sob seus pés diversos utensílios espalhados: pregos, réguas, serrote. Há um

certo diálogo entre o produzir e o meditar. Não existem provas de que Dürer tenha se

aprofundado no estudo da alquimia, entretanto, é aceitável seu conhecimento sobre a matéria,

comum entre os estudiosos e importante no contexto cultural de seu tempo. Encontramos

pistas da iniciação alquímica, na balança, no cadinho que repousa à esquerda, próximo ao

poliedro, importantes ferramentas para o preparo das ligas e fusões alquímicas e da busca pela

pedra filosofal. A ampulheta, o quadrado mágico, o cão, o putto, a escada, o morcego....são

numerosos indícios de diferentes influências possíveis.As figuras geométricas refletem tanto a

pitagórica e platônica insistência sobre a importância do número e da forma no cosmos, como

97 KAMPFF Lages, Susana. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002: 43.73

Page 74: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

também um componente da doutrina alquímica. A balança e a ampulheta, com suas escalas

graduadas, lembram a escrita do livro da sabedoria de Salomão. São instrumentos de medida e

precisão que fazem parte do universo de domínio de Saturno. Assim como outros elementos

como o cometa, o arco íris que remetem aos estudos e crenças astrológicas. Cercado de seus

instrumentos, o anjo pode estar constatando os limites da compreensão humana. A geometria,

a prática e o conhecimento, exemplificado nos diferentes materiais espalhados, salientam que

as realizações concretas deixam claros esses limites. Assim, posso pensar que “Melencolia I”

deve ter surgido como um rico repositário de imagens do simbolismo de crenças e filosofias

antigas, medievais e renascentistas, reconhecidos por seus contemporâneos.

Seguindo um estudo da obra, alguns significados atribuídos a certos elementos da gravura

podem indicar as influências às quais Dürer estava exposto e que certamente não deixou de

impingir à obra.

A bolsa e as chaves, presas à cintura da figura alada: “A chave significa poder, a bolsa,

riqueza” como afirma Dürer 98, em única anotação conhecida sobre esta obra. Um cofre ou

uma bolsa de moedas são elementos recorrentes na representação da figura saturnina ou

melancólica. Entre as descrições medievais do melancólico, todas o mostram como avarento

ou ladrão, subtendendo riqueza. O poder é algo que deve ser conquistado e a falta de poder é

feio, como disse Ficino: "Potentia ergo pulchrum, impotentia turpe". Hippias concorda. Na

mitologia antiga, Cronos era tido como o guardião do tesouro e inventor da cunhagem de

moedas, além de governador. Na hierarquia planetária, Saturno fora considerado o mais

poderoso, característica que se transmitia àqueles sob seu domínio. Também era vilão e

traidor...Muitas descrições e representações medievais de Saturno o trazem com bolsas, cofres

ou moedas, mas nunca sem as chaves. E esta característica perpetuou-se nas representações

dos melancólicos.

98 WAETZOLDT, Wilhelm. Dürer und seine Zeit. Zurique: Phaidon, 1950: 102.74

Page 75: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

A coroa: usada pela figura sentada é composta por dois tipos de plantas aquáticas,

testemunhando a prática do século XIV de recomendar aos melancólicos o uso de emplastros

de ervas úmidas sobre a testa. Ficino, no “De vita”, recomenda também vegetais aquosos.

Uma das plantas usadas é o hipérico ou erva de São João, com poderes para espantar maus

espíritos. Atualmente (inicialmente na Alemanha) é usada no tratamento da depressão.

Associada à valeriana, é um potente indutor do sono, um sedativo.

O arco-íris: visto no fundo, foi o preferido símbolo da alquimia para as cores, que na

sequência culmina no vermelho, assim como durante as operações da grande obra, a fase

vermelha é aquela onde o alquimista chega ao ápice de sua transformação interior.

O cometa: referência à astronomia, tem significações antigas que evocam o mistério e o mau

agouro.

O horizonte distante, o mar e o litoral: no âmbito do arco-íris e do cometa, se referem ao

universo terreno e celeste. Para Walter Benjamin o mar no horizonte longínquo mostrava a

inclinação do melancólico para grandes viagens solitárias.

O quadrado mágico: além de ser comum o uso dos quadrados mágicos como amuletos,

provavelmente Dürer recebeu uma influência do “De Occulta Philosophia” que apresentava

um cubo mágico para cada um dos sete planetas, variando de 3/3 (quadrado de Saturno) até de

9/9 (quadrado da Lua).

Agrippa intensificou a advertência de Ficino sobre a influência de Saturno culminando em 75

Page 76: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

melancolia e argumentou que o cubo de Júpiter (4/4) estabeleceria a proteção contra o

saturniano humor. Usou uma prática baseada na leitura de palavras do alfabeto hebraico como

números e vice-versa (A=1, B=2, C=3), a gematria, que aplicada aos números do quadro de

Júpiter evocam sua proteção e virtude.

O cubo mágico em “Melencolia I” é composto por quatro linhas de quatro números cada:

16,3,2,13; 5,10,11,8; 9,6,7,12; 4,15,14,1, onde a soma das quatro casas, em qualquer sentido,

resulta 34. Dürer fez uma modificação na última linha, colocando o 15 e o 14, ano em que a

gravura foi impressa e também ano da morte de sua mãe. Essa mudança torna este quadrado

mágico o “quadrado de Dürer”, um amuleto singular colocado sobre a cabeça da figura, com

harmonia própria de seu arranjo numérico voltado para o gravador, como recomendado por

Ficino. Um autor do século XIV escreveu: “Quem o carrega, a má sorte se transformará em

boa sorte e sua boa sorte em melhor ainda”.

O putto (Fig. 09): ao contrário da figura do anjo inativo, com a cabeça apoiada sobre a mão, o

putto parece de fato envolvido numa atividade (escrevendo? Tem um lápis na mão), mas de

modo despreocupado, próprio a um ser apenas atarefado de modo inconsciente. Influência de

representações italianas, estavam presentes em um quadro perdido de Mantegna,

“Malancolia”, de 1494, onde figuravam imagens de desesseis puttos músicos e dançarinos,

bem próximas à figura de Dürer.

76

Page 77: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

O sino: pendurado sobre a melancolia, presumivelmente representa aritmética e música. A

música foi incluída na divina quadrivium, com a aritmética, a geometria e astrologia, pelo

argumento de que era também matemática. Tanto Ficino quanto Agrippa prescreveram a

música astrológica ou celestial para afastar a melancolia aguda que Saturno poderia causar no

jovem artista.

A escada de sete degraus: outra característica comum do simbolismo alquímico, onde cada

degrau representa um dos sete metais e cada um dos corpos celestes associados. Há menções

de livros alquímicos que contêm obras que representam, por exemplo, um homem de pé sobre

o sexto e sétimo degraus (representando prata e ouro) recolhendo o dourado fruto da árvore

filosófica. Em outro, um homem jovem utilizando uma pedra como seu travesseiro, é

mostrado adormecido ao pé de uma escada que ostenta anjos subindo e descendo. Há também

a referência bíblica da escada de Jacó, símbolo religioso que conta como chegaremos à

morada de Deus galgando degrau por degrau a escada da vida. É o símbolo do caminho para

a perfeição. Sua colocação no painel do aprendiz indica que o neófito colocou o pé no

primeiro degrau da escada, iniciando sua busca para o aperfeiçoamento moral. É também pela

escada de jacó, onde anjos subiam e desciam até os céus, que simbolicamente conhecemos os

ciclos evolutivos e involutivos da vida num perpétuo fluxo e refluxo através de sucessivos

nascimentos e mortes. Os diferentes aspectos do simbolismo da escada estão ligados às

relações entre o céu e a terra. A escada é o símbolo por excelência da ascensão e da

valorização, ligando-se à simbólica verticalidade, indicando uma ascensão gradual e uma via

de comunicação em sentido duplo entre diferentes níveis. Na arte, a escada aparece como 77

Page 78: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

suporte imaginário da ascensão espiritual. Ela é também o símbolo das permutas e das idas e

vindas entre o céu e a terra.

O poliedro: referência à geometria descritiva cuja função principal era a construção

matemática e perspectiva das figuras de faces múltiplas. Sendo o quadrado representação da

terra e o círculo uma imagem do céu, o octógono é considerado como uma figura capaz de

unir ambos e, portanto, como um símbolo do mundo intermediário, que comunica o inferior

com o superior. Portanto, é relacionado com a idéia do mistério da “quadratura do círculo” e

da “circulatura do quadrado”, que serviu para expressar o fato da espiritualização do corpo e

da “corporificação” do espírito, ou seja, da união indissolúvel do espiritual e do material, e

que por sua vez seria utilizado para representar a “passagem” por esse mundo intermediário.

O número oito é frequentemente relacionado com a morte, e em particular com a morte

iniciática. Na astrologia, a oitava é a casa da morte, indicando que essa “passagem” terá que

implicar na morte dos estados profanos e na ressurreição aos mundos superiores e, nesse

sentido, o octógono simboliza uma verdadeira regeneração espiritual que supõe uma

transmutação e um novo nascimento. Com relação ao simbolismo de atravessar as águas, é

interessante o fato de que o timão com o qual se conduz a nave tenha forma octogonal. Por

outra parte, no percurso através das águas são necessários certos pontos de referência e 78

Page 79: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

orientação, e é justamente o símbolo da rosa dos ventos, que se relaciona também com o das

“oito portas”, que se utiliza para designar as oito direções do espaço (os quatro pontos

cardeais e os outros quatro intermediários) que servirão de guia durante a viagem iniciática.

Muitas vezes, as representações da roda aparecem com oito raios, e em certos casos com eles

se combinam os quatro elementos (terra, água, ar e fogo) com os quatro estados

intermediários da matéria (o seco, o úmido, o frio e o quente). Na tradição oriental, sempre foi

concedida ao octógono uma importância simbólica fundamental e é a estrutura básica do

“Livro das Mutações” ou I Ching. Também entre os chineses são comuns os templos de base

quadrada (terra) coroados com uma cúpula semi-esférica (céu), que aparece sustentada por

oito pilares ou colunas (mundo intermediário – homem).

Aristóteles fez notar que terra e água pesadas, naturalmente moviam-se para baixo, enquanto

fogo e ar, leves, moviam-se para cima. O movimento nos céus, circular, deveria ser

constituído por um outro elemento capaz de contrabalançar o peso e a leveza. O filósofo

grego defendeu que este quinto elemento seria a "essência". Pacioli, sem se referir a

Aristóteles, afirmou que Platão tinha associado a quintessência ao dodecaedro, composto por

doze pentágonos. No livro quatro, Dürer deu instruções de como produzir os cinco sólidos

platônicos. Para ele o problema de encontrar um equivalente para o belo tinha no dodecaedro

uma solução disponível.

A esfera: sugestiva de mudança e regeneração, ligada à símbolos do antigo Egito, como o

oroboros, a serpente que morde a sua própria cauda, significando a eternidade. Outra

concepção alquímica ligada à esfera é o vaso de Hermes, dentro do qual circulam os

materiais da Grande Obra.

O motivo da cabeça inclinada: o anjo que tem um livro fechado e um compasso pertence a

uma tradição da personificação da geometria, referida também em outros objetos da gravura.

Em outro trabalho de 1504, Dürer mostrou um astrônomo medindo um globo com um 79

Page 80: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

esquadro sob a lua, mas se aqui o personagem está estudando atentamente o mundo, ali, o

anjo ignora o globo. A Melancolia apoia a cabeça sobre a mão fechada, e não aberta, como

era recorrente em muitas representações de tristeza, luto e dor encontradas até mesmo na arte

egípcia. O punho cerrado é também alusão à avareza característica do melancólico. Está

rodeada de objetos que simbolizam a busca do conhecimento, mas aos quais ela não parece

dar importância, ou antes se interroga sobre sua real utilidade. Seu rosto apoiado na mão não

deixa de ser o gesto simbólico do savant fatigué que se pergunta para quê, afinal, serve tudo

aquilo. É de resto um personagem bastante representativo de uma época em que o

desenvolvimento do conhecimento é promissor, mas também confuso, a astronomia

misturando-se à astrologia, a matemática à numerologia, a filosofia à teologia, a química à

alquimia..., desenvolvimento que portanto não consegue apontar para uma direção certa e

segura, não consegue mostrar sua própria utilidade, nem cumprir suas promessas, mostrando

assim a impotência daquele que imaginava poder tirar de si e deles mais do que ele e eles

realmente podiam proporcionar. Cercado de alusões saturninas, mais uma vez demonstra seu

espírito ambíguo, tanto evoca a inspiração do maior dos planetas, quanto a proteção aos danos

devastadores de Saturno. O personagem é angelical não apenas por suas asas, mas também

pela escada atrás que conduz não ao topo do edifício inacabado, mas para cima, para o céu.

Vemos ao longo de toda gravura as ferramentas, as figuras geométricas, alusões às

tradicionais ocupações de Saturno, suas habilidades em número e medição, mas transfigurado

em uma atmosfera de melancolia tornaram-se instrumentos de inspiração artística do gênio.

A única figura ativa na gravura é o putto e ele aparece para realizar alguma atividade. O anjo

melancólico parece estar em um intenso e visionário transe, um estado garantido contra a

demoníaca intervenção.

Melencolia I: diz Orígenes que, tal como a magia, o nome e seu poder não são vãos e sem

importância mas, pelo contrário, uma ciência temível. Assim, o uso de nomes mágicos

deverão ser utilizados com prudência e circunspeção, cuja eficácia deriva de sua pronúncia

em sua língua original, porque é precisamente o som o que atua. Permanecendo como um

emblema, a legenda "Melencolia I" sob as asas de morcego corresponde além de um título,

um lema. Dürer inova na inscrição da melancolia substituindo o a pelo e, talvez pelo mesmo

motivo que o fez criar um quadrado mágico personalizado.

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“Melencolia I” (Fig 01), “São Jerônimo em sua cela”(Fig 03), (seria a Melancolia II ?), 1514,

há algumas especulações sobre a existência da gravura Melancolia III, que perdeu-se, “o

Cavaleiro, a Morte e o Diabo” (Fig 02), (seria a Melancolia III ?), 1513. Ainda que a terceira

gravura seja bastante distinta, as três formam uma unidade espiritual, correspondendo à

classificação escolástica medieval das virtudes, divididas em virtudes morais (O cavaleiro...),

teológicas (São Jerônimo) e intelectuais (Melancolia I). A tríade de gravuras formam um

conjunto plausível com a classificação estabelecida por Agrippa dos três mundos: imaginatio,

ratio e mens, reconhecidos nas três gravuras, “Melencolia I”, “O Cavaleiro, a Morte e o

Diabo” e “São Jerônimo em sua cela”. O Cavaleiro, crê-se que representa o soldado cristão

do programa de Erasmus, Melencolia seria a transição da infância à velhice e São Jerônimo o

estágio da maturidade e elevação espiritual e intectual. Cada uma das três obras primas inclui

uma ampulheta e um cão, em primeiro plano. Provavelmente, o relógio de vidro é a marca do

tempo e Saturno, Chronos, inspirador do herói de cada gravura. A ampulheta traz a noção do

tempo que não acaba porque sempre há um recomeço, um tempo reversível, do mesmo modo

em que conta o tempo que passa. Sua forma física remete ao símbolo do infinito e ao número

oito.

O cão (Fig. 10) também exige interpretação. Em Melencolia, o cão espera adormecido, no

Cavaleiro, o cão acima de um lagarto, acompanha a marcha, em São Jerônimo, o cachorro

está ao lado de um leão, vigilante. Em qualquer um dos casos é um fiel companheiro. Agrippa

é explícito sobre animais. Morcegos e lagartos são de Saturno, os cães são de Júpiter, leões

são solares. Morcegos e lagartos são melancólicos, leões e cães combatem a melancolia. O 81

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morcego acima do cão representa a influência dominante de Saturno sobre Júpiter. O cão

superior ao lagarto supõe a dominação de Júpiter sobre Saturno.

É também o cão um ser dominado pelo baço, simbolizando a complexão melancólica quando

o baço se degenera e um ótimo farejador, ou seja, um ótimo investigador. Na gravura aparece

dormindo. Os maus sonhos originam-se do baço, mas os sonhos proféticos são privilégios dos

melancólicos.99

Desde a Idade Média, São Jerônimo encarna a erudição cristã, detentor dos conhecimentos

antigos, pois tinha pesquisado as Escrituras. Os humanistas tinham por ele grande afinidade,

pois combinava os saberes da antiguidade pagã e da teologia cristã. Era sempre representado

em sua cela, cercado por livros antigos, imerso em pensamentos ou em estudos, símbolo da

atividade acadêmica. Na Alemanha, a simpatia por esse santo floresceu juntamente com o

humanismo, ao longo do século XV. Em Nuremberg, por exemplo, muitas famílias nobres,

que cultivavam a educação humanista, eram devotadas ao santo, dando a seus filhos seu

nome: “Hieronymus”, tornando-o muito popular (Hieronymus Ebner, Hieronymus

Baumgartner e outros). Dürer teve uma especial ligação com os santos. Nesta gravura, o santo

de devoção dos humanistas alemães, encontra sua completa descrição. O espaço não é uma

cela, mas uma confortável sala de estudos, por onde entram raios de luz pela janela. Ao longo

do quarto estão livros e ferramentas espalhados com uma certa ordem, causando um efeito

acolhedor, porém, entre os objetos, nenhum recebe ênfase especial. O crânio sob a janela,

além de um simples objeto de investigação, pode ser um aviso da transitoriedade a que

pertence o ser humano, uma referência às vanitas100 (Fig 18). São Jerônimo se senta em uma

grande mesa, onde também está um pequeno crucifixo e escreve sobre uma tabela. O Santo,

lembrado na igreja por sua imensa piedade, encarna aqui o estudioso por excelência. Logo na

entrada está um leão, uma barreira de proteção. Nada pode perturbar Hieronymus. A imagem

de satisfação com o trabalho científico estão presentes nas representações de Jerônimo nas

obras de Dürer.

99 BENJAMIN, Walter. Opus cit.: 174-175.100 Já ao longo do século XVI começa a difundir-se pela Europa um gênero de representação pictórica que posteriormente foi reagrupada com o nome de Vanitas ou Vaidade, união de todos os símbolos que a constituem. Considerada uma natureza morta, ao longo das obras acumulam-se objetos simbólicos como velas apagadas, flores murchas, ampulhetas ou clepsidras, um indício da fugacidade do tempo; a caveira, informando nossa finitude e o encontro inadiável com a morte; objetos ostentatórios, pérolas e jóias prevenindo sobre o prejuízo da vaidade da riqueza, objetos episcopais revelando o caráter ilusório do poder, livros e instrumentos musicais, símbolos do caráter vão do conhecimento e da arte. Estes objetos estão representados geralmente envolvidos numa atmosfera melancólica, anunciando a brevidade da vida humana, a incerteza evidente do mundo, conduzindo à reflexão e à meditação.

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Em seu diário de viagem aos Países Baixos, Dürer mencionou sua indignação contra os

boatos que corriam à respeito da morte de Lutero, dirigindo-se à Erasmo, perguntava como o

poder mundano poderia ir contra o cavaleiro de Cristo (du Ritter Christi), protetor da verdade,

ganhador da coroa dos mártires.101 A expressão soldado de Cristo é uma referência ao

“Manual do soldado cristão”, escrito por Erasmo e publicado em 1501, onde os soldados,

munidos com as armas de deus: “a couraça da justiça, o escudo da fé e o elmo da

salvação”102, representavam os peregrinos cristãos que conduziam os fiéis pelo caminho do

bem. Erasmo interpretou essa imagem pelo filtro humanista, em uma idéia de fé viril, clara e

forte, que enfrentava os perigos e tentações mundanas reais: a carne, o demônio e o mundo.

Os inimigos dos homens faziam parte de sua realidade, não eram mais espectros ou

fantasmas, como os inimigos medievais. Foi a nova imagem renascentista do cavaleiro de

Deus que Dürer representou na gravura, “O Cavaleiro, a Morte e o Diabo”. A vestimenta do

cavaleiro faz parte de um estudo, de 1498, do qual Dürer adaptou o desenho. A morte é

assustadoramente representada, não como um esqueleto, mas como um débil cadáver em

decomposição, ao lado da ampulheta, reafirmando a fugacidade da vida.

O cavalo103 aparece de perfil, mostrando a perfeição de suas proporções e anatomia, revelando

os inúmeros estudos anteriores de Dürer sobre o tema equestre.

Já o demônio tem sua imagem clássica, meio bode, meio homem e se coloca atrás do

cavaleiro, à espera de qualquer vacilo para que possa tentá-lo. Mas o cavaleiro jamais olha

para trás. Segue se aventurando diante de todos os perigos, o frio e o escuro.

Para Ficino, no mundo terreno as leis divinas se expressam através da natureza, entendida na

101 PANOFSKY, E.Vida y arte de Alberto Durero. Madri: Alianza Forma, 2005: 166.102 PANOFSKY, E. Opus cit: 167.103 PANOFSKY, E. Opus cit. Reprodução: O cavalo pequeno, 1505. Gravura em buril, 16,5 x 108mm.

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magia natural, nas leis que regulam os ciclos astrológicos e astrais, e nas energias angelicais.

Ficino tampouco foi alheio à alquimia, especialmente àquela propagada posteriormente por

Agrippa. Para ele, astrologia e alquimia efetuavam um sistema mágico-astral, cujo principal

objetivo consistia na comunicação direta com os anjos, um nível superior, mediante o poder

da invocação e do alcance da beleza, pois esta seria, em última instância, o feito humano mais

próximo da perfeição divina. Não se pode esquecer que, para o filósofo florentino a tradução

seria a melhor forma de transmissão da tradição104. A transmissão dos conhecimentos

simbólicos nas culturas tradicionais pode ser considerado uma tradução do entendimento

humano das verdades eternas, suas linguagens e modelos. Ficino traduziu, comentou e

prefaciou inúmeras obras da antiguidade clássica, tornando-se afinal, um intérprete daquelas

traduções. Em diferentes momentos, estabeleceu a genealogia mítico e espiritual capaz de

unificar no tempo e espaço, os filósofos herméticos, originada de Mercúrio e com sua máxima

expressão em Platão: no tempo em que floresceu o astrônomo Atlas, irmão do físico

Prometeu, avô materno de Mercúrio, cujo neto foi Mercúrio Trimegisto, o grande saderdote e

rei, instrutor de Orfeu, aquele que desvelou os elementos ocultos a Aglaofemo, sucedido por

Pitágoras, mestre de Filolau e que teve como discípulo, Platão.105 Ficino sentia-se mais uma

peça deste quebra-cabeça filosófico, criando uma obra própria, responsável por continuar a

tarefa de transcendência da memória divina, filtrada pelas circunstâncias de seu tempo.

Em um ambiente onde numerosas mentes criadoras estavam em atividade, espíritos de

disposição liberal participavam de acontecimentos políticos e religiosos, as artes plásticas

encontravam sua refinada expressão em figuras como Boticelli, Michelangelo, ... entre tantos,

e obras, de perfeita técnica formal, carregadas de sentidos místicos, onde imagens e figuras

criaram-se ligadas às idéias de instrução sobre magia, astrologia, filosofias que vinham se

desenvolvendo e que seguiram, manifestando-se posteriormente.

Foi neste contexto que Albrecht Dürer se formou e trabalhou, sendo diretamente influenciado

por Ficino, pelo conhecimento de seus textos próprios ou traduções dos clássicos,

principalmente Platão ou indiretamente, por autores que já naquela época retrabalharam a

obra de Marsilio, como Agrippa. De qualquer forma, as idéias neoplatônicas de alargamento

do conhecimento e glorificação do homem, amparadas pela informação mágico-astrológica,

encontraram seu terreno fértil para manifestarem-se plasticamente nas obras de Dürer.

104 Note que as três palavras, traduzir, transmitir e tradição, estão interligadas em uma mesma realidade, procedendo todas da mesma raiz etmológica.105 FICINO, Marsilio. Contenta in hoc volumine. Pimander. Mercurij Trismegisti liber de sapientia et potestate dei [interprete Marsilio Ficino]. No prólogo, Ficino faz uma pequena explanação da origem, divina, dos filósofos. Disponível em diglib.hab.de/drucke/64-9-quod-2/start.htm. Acesso em outubro/2008.

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Especialmente sobre o tema da melancolia, a aclimatação transalpina realizada pelo artista

alemão encontra todas as sua referências ao longo da obra de Marsilio Ficino, principalmente

no De vita: a retomada da concepção melancólica de Aristóteles ou do furor de Platão, a

influência saturnina e toda sorte de recursos para a proteção de seus efeitos nocivos, o que

incluiu a manufatura de amuletos e poções bem ao gosto alquímico, a música astral ou a

magia celeste, enfim, uma vontade de ambos de aproximação com Deus, que em última

instância, estaria no encontro e realização da perfeição e da beleza. “Melencolia I” apresenta

uma poderosa concordância entre uma idéia e uma imagem concreta.

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Considerações Finais

Desde a antiguidade até os tempos modernos, a melancolia tem sido uma fonte de inspiração e

de contemplação inesgotável para filósofos, estetas, escritores, artistas, cientistas. É no

tangeciamento dos campos da filosofia, astrologia, astronomia, alquimia, artes literárias, artes

visuais e medicina que o tema da melancolia estabelece seu campo fecundo para uma

abundância de obras literárias e criações artísticas, onde a gravura em metal de Dürer oferece

algumas pistas sobre a complexidade e paradoxos do tema da melancolia e ilustra sua

natureza dialética: por um lado uma debilitante e paralisante força que pode levar à astenia, à

inibição ou mesmo uma doença mental, de outro lado, um estímulo criativo e uma reparadora

potência capaz de libertar a criação artística e renovar sua vontade de sobrevivência.

Assim, tornou-se uma referência para o estudo e compreensão da trajetória da melancolia ao

longo da história da arte: representada como uma mulher alada, sentada na clássica posição

dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A seu lado, um cão adormecido,

conhecido acompanhante da melancolia. E uma profusão de objetos usados no cotidiano, em

vários ofícios, na ciência: uma balança, uma ampulheta, martelo, serrote, pregos. Dürer estava

estabelecendo um modelo. Mistura à personificação de certo estado anímico, uma inclinação

particular da sensibilidade e a encarnação em forma de alegoria de uma faculdade criadora da

inteligência, o poder de pensar o mundo mais geometricamente. Confunde assim em uma

mesma figura, duas faculdades humanas não somente heterogêneas (uma afeição anímica e

uma disposição da inteligência), mas também antinômicas, aqui a antiga inapetência espiritual

que conduz à inatividade e ali, o contrário, uma faculdade mental voltada para a criação.

Há aproximadamente cem anos, Karl Giehlow106 propôs uma interpretação de “Melencolia I”,

baseada no texto de Marsilio Ficino em “De vita triplici” que dizia que, indivíduos sujeitos à

influência planetária de Saturno, são propensos à melancolia. Por seu excepcional talento,

Dürer poderia ter reconhecido o seu próprio temperamento. Em uma breve nota de 1902,

Giehlow tinha mostrado que muitas das características peculiares de “Nemesis”(Fig 21), outra

106 GIEHLOW, Karl. Dürers Stich, ‘Melancolia I’ und der maximilianische Humanistenkreis, citado por SCHUSTER, Peter Klaus no texto Melencolia I Dürer et sa postérité, in: Mélancolie, génie et folie en Occident. Paris: Réunion des Musées Nationaux; Galimmard, 2005: 91. Citado também por BENJAMIN, Walter, in: O Estudo Rigoroso da Arte Sobre o primeiro volume do Kunstwissenschaftliche Forschungen.

Disponível em http://www.concinnitas.uerj.br/resumos5/benjamin.pdf/. Acesso em dezembro/2008. Não foi possível a leitura do texto integral, mas sim de partes dele ou indicações de diferentes autores, como as citadas acima.

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gravura do alemão, estavam expostas em um poema escrito por Angelo Poliziano, “Manto”,

escrito entre 1480-1482, na introdução dos estudos sobre Virgílio. Ao comparar esse texto

contra a gravura, Giehlow observou uma escrupulosa ilustração. Não seria “Melencolia I” a

representação plástica do texto de Ficino?

A mistura entre a sensibilidade melancólica e geométrica remetem à Saturno, o deus

geômetra, administrador do tempo. Para Panofsky, esse é o sentido último da gravura de

Dürer: as atividades ligadas à geometria, como a pintura e a arquitetura enquanto artes ligadas

ao número e à medida, induzem naqueles que a praticam, uma imaginação melancólica. A

figura resignada, afundanda em pensamentos, está percebendo as limitações do seu

conhecimento. Panofsky, Klibansky e Saxl estudaram e escreveram, ao longo de cinquenta

anos, a obra mais completa publicada sobre a melancolia, desenvolvendo seu caminho

evolutivo desde a antiguidade. Acreditaram que a gravura representaria a frustração do gênio

inspirado: a melancolia tem grandes asas, mas não voa e sofre com sua condição de gênio

inativo e com a sensação de fracasso e inadequação. É criativo, porém incapaz de expressar

sua visão, mesmo rodeado pelos instrumentos de sua arte. Tal como a filosofia oculta desde

Pico della Mirandola em diante e tal como foi formulada por Agrippa, incluíndo o

pensamento mágico e hermético do neoplatonismo de Ficino, livro de Panofsky não lida com

a categoria básica da magia, deixando de lado a dívida de Dürer para Ficino e seu De vita.

De acordo com os estudos de Panofsky, o estilo das obras de Dürer marca a preocupação do

pintor em redescobrir e reconquistar os padrões clássicos da arte da antiguidade. Por outro

lado, historicamente, Dürer viveu no momento de transição da Idade Média para o

Renascimento. Época marcada por dificuldades advindas de recentes episódios que haviam

assolado o território europeu: a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, as Revoltas Populares,

além de outros acontecimentos. Nesse sentido, a obra de Dürer consistiu num trabalho de

síntese, representando a fusão que a criatividade artística operou entre a sua inspiração nos

clássicos da antiguidade e a sua sensibilidade religiosa - a devoção religiosa de Dürer aparece

com intensidade, sobretudo em sua série de xilogravuras que representam cenas do

Apocalipse. Para Panofsky, o projeto de reconquista da Antiguidade Clássica por Dürer é

movido por uma inspiração atravessada por elementos artísticos procedentes do

“Quatrocento” italiano:

“até a iconografia das primeiras figuras ‘ideais’ de Dürer parece depor a favor, e não contra, sua derivação do ‘Apolo de Belvedere’. Dürer não foi ao encontro do ‘antique’, mas o ‘antique’ é que foi ao encontro de Dürer- através de um intermediário italiano.”107

107 PANOFSKY, E. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979: 359 – 364.87

Page 88: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

A independência reivindicada pelo artista Dürer era, frequentemente, incompatível com a sua

fé religiosa. A geometria era a ciência por excelência tanto para Dürer como para o seu

tempo. Assim, a elaboração da coleção de xilogravuras do artista foi inovadora, na medida em

que deu destaque às imagens procedentes do universo religioso movidas por leis naturais.

Dessa forma, Dürer promoveu a união do real com o imaginário em regras geométricas. Foi

esse trabalho de criação e inovação artística que conferiu a Dürer a condição de primeiro

pintor a elevar a descrição da melancolia à dignidade de um símbolo. Panofsky conclui, então,

que ”Melencolia I” é um reflexo da personalidade de Dürer.

É sabido que os argumentos históricos e filosóficos que orientaram a escrita de “Saturno e a

melancolia” sofreram mudanças conceituais pelos longos anos em que foi escrito. Os

autores viveram épocas de mudanças profundas, políticas e culturais, de violência humana

que acabaram por interferir no pensamento e logo, no texto, de modo que a visão negativa e o

abatimento moral e físico surgiram na interpretação final da gravura de Dürer.

Se é possível acompanhar as imagens da Antiguidade Clássica em seu caminho geográfico e

histórico, é porque elas permanecem como tensão energética, como “vida em movimento”,

cujos traços mais significantes estão inscritos na memória da humanidade. Para Aby Warburg

o tempo da história não é simplesmente uma sucessão cronológica, mas valores expressivos

que ganham força naquilo que chamou Pathosformeln, fórmula de pathos onde se pode ver

uma mímica intensificada da vida, uma gestualidade expressiva do corpo, com origem nas

paixões e afecções sofridas pela humanidade. Cada época seleciona e elabora determinadas

Pathosformeln, à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da

energia inicial. Em contato com a vontade seletiva de uma época, elas intensificam-se,

reativam-se, carregam de significado que entra em conflito com o polo oposto, isto é,

“polarizam-se”. É uma idéia que se aproxima de Jackie Pigeaud, quando comenta Aristóteles

(ver página 21) e o Problema XXX, 1. É assim que a “Melencolia I” de Dürer pode ser vista,

na concepção de Warburg, não apenas como manifestação das forças mais obscuras e

imobilizantes, mas também como a emergência da reflexão e do pensamento. A polaridade

torna-se uma categoria interpretativa de fenômenos culturais. Tudo tem uma relação bipolar:

cultura antiga e moderna, cristã e pagã, pensamento mágico e lógico...Utiliza a linguagem de

pathos heróico e teatral, expressão física intensificada: descoberta da dimensão dionisíaca do

Renascimento, oposta à visão habitual de um Renascimento apolíneo onde triunfa a ordem, 88

Page 89: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

clareza e harmonia108. Warburg atribuiu um profundo significado do humanismo italiano na

obra de Dürer, como um elo na cadeia de transmissão do patético. O potencial criador humano

seria sua saída para vencer o potencial celeste da natureza, como a melancolia e Saturno:

“O sombrio demônio astrológico que devora seus filhos, cuja cósmica luta contra uma outra divindade astral pesa sobre o destino da criatura submetida à sua influência, é na obra de Dürer humanizado, e assim se converte na encarnação plástica do homem que trabalha e pensa.”109

Wilhelm Waetzoldt, na biografia que escreveu sobre o artista alemão, avalia a influência

literária na obra gráfica de Dürer, em grande parte devida à sua autoformação e natureza

imaginativa. A leitura de textos filosóficos, poéticos, astrológicos preenchiam seu conteúdo

fantástico, ligado à sua constituição nas crenças e cultura germânica, ao mesmo tempo em que

ampliavam sua erudição, colocando-o ao mesmo nível de artistas italianos. Do mesmo modo

que Giehlow, viu traduções imagéticas para poemas de Poliziano. Destacou ainda um

constante conflito interior, nascido na dupla natureza de sua formação: de um lado a

imaginação popular, sensível à sua condição terrena e temerosa da vontade divina e de outro,

o mundo transformador das descobertas, invenções e revoluções. Waetzoldt acaba concluindo

que Dürer viveu o momento em que todas as implicações dos acontecimentos não podiam ser

ignoradas, então, transmutou as tensões que pairavam sobre ele em obras que não se

isentavam das agitações daquele momento.

Outros textos mais recentes, retomam interpretações do tema. Em um deles, Jean Clair110

propõe uma visão da melancolia como a portadora da erudição humanista, que já havia

superado sua qualificação medieval. Pode utilizar a geometria, a arquitetura, as aplicações da

nova ciência da perspectiva e não obstante, permanece a sensação de incapacidade,

incompletude... O conhecimento também impõe limites à razão e leva à uma consciência do

limiar de um não-saber.

No mesmo livro, Peter-Klaus Schuster111 tece um longa análise de “Melencolia I” e sua

fortuna crítica. Lembrando várias interpretações da gravura já escritas por Warburg, Giehlow,

Panofsky e Saxl, faz comparações e conclui por uma conciliação entre as diferentes opiniões.

108 GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. Gombrich, notas sobre um problema de método, in: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989: 45.109 WARBURG, Aby. Essais florentins. 1920:280. In: ALCIDES, Sérgio. Sob o signo da iconologia. Disponível em www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/topoi3a5.pdf. Acesso EM novembro/2008:150.110 CLAIR, Jean. Un musée de la Mélancolie. In: CLAIR, Jean (org.). Mélancolie, génie et folie en Occident. Paris: Réunion des Musées Nationaux, Galimmard, 2005: 82 – 88. 111 SCHUSTER, Peter-Klaus. Melencolia I, Dürer et sa postérité. In: CLAIR, Jean (org.). Mélancolie, génie et folie en Occident. Paris: Réunion des Musées Nationaux, Galimmard, 2005: 90 - 105.

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Page 90: De Marsilio Ficino a Albrecht Dürer, considerações sobre a

Se para Panofsky a gravura traz a cautela advinda da percepção dos limites humanos, que

conduz o espírito à astenia paralizante ao reconhecer sua incapacidade para superá-los, para

Warburg traz o reconforto do triunfo do temperamento saturnino diante de seus algozes:

abatimento, sombras, loucura. “Melencolia I” encarna a personificação da vitória das

disposições desse temperamento, escritas por Ficino, reunidas na imagem de Dürer.

Schuster também reconhece, em todos os autores, a percepção da ambiguidade e da

polissemia características da melancolia, oscilando sempre entre a Virtude e a Fortuna. Sua

representação, então, está bastante ligada ao repertório alegórico tanto medieval quanto

renascentista: Panofsky a identifica com a acedia, enquanto Warburg evoca o espírito

humanista do genio melancólico, indicando a inscrição da virtude na elevação do melancólico

em direção à perfeição divina.

Todas essas disposições apresentadas na alegoria de Dürer, a tornaram uma referência

importante na arte alemã, reconhecida principalmente durante o Romantismo, quando bem

encarna a identidade e a sensibilidade alemã ao longo de sua história, expondo todos os

embates que a acompanham em cada momento. Surge o nome de um melancólico célebre,

Walter Benjamin, para quem “O único prazer que o melancólico se permite, um prazer

intenso, é a alegoria”.112

Para Benjamin, “Melencolia I” antecipou um tema central do Barroco, a integração da

imagem renascentista da melancolia com a da vaidade. O saber que vem da ruminação e a

ciência que vem da pesquisa se unem em um novo homem.113 Partes da gravura e da

concepção da melancolia como desespero decorrente de um estado emocional aparecem como

um objeto definido, como por exemplo, no quadro de Domenico Feti, de 1610 (Fig. 17), onde

a figura feminina segura um crânio. Assim é o sonho humano: apenas loucura, o homem

tornou-se divorciado do cosmos. Esse sentimento não era mera afetação, refletia a realidade

de uma compreensão evolutiva, especialmente nas artes visuais.

De acordo com Susan Sontag, Walter Benjamin, considerado “un triste” pelos franceses,

quando dizia que “a solidão parecia o único estado apropriado ao homem”114 se referia “à

solidão da grande metrópole, a atividade do indivíduo que passeia sem destino livre para

sonhar, observar, refletir, viajar”. Essa multidão, contraditoriamente, é o lugar do anonimato.

E essa é uma das características do ser melancólico “a necessidade de estar só – assim como a

112 SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: LPM Ed, 1986: 96.Citando Walter Benjamin.113 BENJAMIN, Walter. Opus cit.: 164.114 SONTAG, Susan. Opus cit.: 87.

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amargura da própria solidão”. A autora traça o perfil do ser melancólico, dizendo que “o

trabalho do melancólico é a imersão, a concentração total”.

Segundo Sontag, os melancólicos nascem sob o signo de Saturno – o planeta dos

desvios, astro de revolução lenta...:

“A influência de Saturno torna as pessoas “apáticas, indecisas, vagarosas”, escreve, em A Origem do Drama Barroco Alemão (1928). A lentidão é uma característica do temperamento melancólico. A falta de jeito é outra, e deriva da percepção de um número excessivo de possibilidades, e da não-percepção da própria falta de senso prático.”115

Outra característica importante, a polissemia, presente na gravura de Dürer, própria do

temperamento melancólico, também é um comentário recorrente em diferentes autores, desde

Aristóteles, que já ressaltara a natureza polimorfa do melancólico.

“A bile negra oferece à natureza melancólica todos os estados da embriaguez com todos os seus perigos (....). O melancólico tem em si, como possíveis, todos os caráteres de todos os homens. O que esclarece prodigiosamente (...) a idéia mesma da criatividade melancólica”.116

Finalmente, é preciso dizer que tentei de todas as formas chegar o mais próximo possível do

pensamento de Ficino e Dürer, procurando a essência filosófica que os conduziu, naquela

época. Tarefa impossível! São outros tempos em um ambiente muito distante. Não compactuo

fielmente da constatação de Panofsky sobre o real sentido da gravura estudada, antes, acho a

posição de Schuster mencionada acima, mais cordata com o ambíguo estado bilioso. Em

“Melencolia I” encontramos toda disposição de Dürer em de fato, criar uma imagem para o

impreciso sentimento saturnino. Aquele que está presente no ideal humanista de superar

constantemente os limites da natureza humana, aproximando-se cada vez mais de Deus.

Acredito que a base desta gravura esteja realmente no De vita. Partindo do fundamento de que

Ficino foi capaz de olhar para o seu próprio horóscopo e efetivamente transformar a sua

interpretação tradicional e pessoal a respeito do maléfico planeta Saturno, posicionando sobre

o seu ascendente e assumindo o estado das coisas que transcendem o físico, onde a

experiência do temperamento melancólico dependeria do nível correspondente da

identificação do indivíduo com a matéria, com o celestial, com o divino, proporcionando a

transformação de sua melancolia em algo mais. Assumiram sua condição de humanos em

busca de transcendência. A filosofia mágico astral neoplatônica de Ficino encontra no

115 SONTAG, Susan. Opus cit.: 87.116 PIGEAUD, Jackie. Apresentação. ARISTÓTELES. O Homem de Gênio e a Melancolia. O Problema XXX, 1. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1998:13.

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trabalho de Dürer a continuidade da escolha de ambos do caminho de aproximação com Deus,

com a perfeição e com a beleza e descobrindo o conforto no aprendizado de que nunca se fará

o bastante e sempre haverá um porvir. De qualquer forma, o que interessa é o caminho que

traçaram para dar a forma a esta experiência e que continua, depois de tanto tempo a provocar

talvez a mesma incompletude que sentiram, quinhentos anos atrás.

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“Há que lembrar, porém, que a melancolia – porque não é uma modalidade, entre outras, da sensibilidade e do sentimento, mas uma manifestação estrutural do ser humano, afectado pela sua relação com o tempo – não pode ser confundida com expressões contigentes da nossa existência como a tristeza ou a nostalgia. A tristeza e a nostalgia têm causas, origens e motivações identificáveis na ordem da experiência empírica dos homens. Se bem que se fale também de “tristeza sem motivo” a propósito de certos estados de alma de ensimesmamento doloroso. Mas, se acrescentarmos “sem motivo” a essa espécie de tristeza – que se aproxima assim da melancolia -, é porque para esta paixão há habitualmente uma causa ou um motivo, real ou suposto. Não é esse o caso da melancolia.”117

117 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. Seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999: 100.

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ANEXO IReproduções118

01 – Melencolia I. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1514. 239 x 168 mm. Paris, Bibliothèque Nationale.

02 – O cavaleiro, a morte e o diabo. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1513. 246 x 190 mm. Paris, Bibliothèque Nationale.

03 – São Jerônimo na cela. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1514. 247 x 188 mm. Paris, Bibliothèque Nationale.

04 – Alegoria da filosofia. Albrecht Dürer. Xilografia, 1502. 217 x 147 mm. Paris, Bibliothèque Nationale. Quattuor Libri Amorum, de Conrad Celtes, capa.

05 – Os quatro humores. Xilografia alemã. Terceiro quarto século XV. Zurich, Zentralbibliothek.

06 – O sonho do doutor. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1497 - 1498. 188 x 119 mm. Paris, Bibliothèque Nationale.

07 – A Família Sagrada. Albrecht Dürer. Desenho, 1492 - 1493. 290 x 214 mm. Berlin, Kupferstichkabinett.

08 – Autorretrato. Albrecht Dürer. Desenho, 1491. 204 x 208 mm. Erlangen, Universitätsbibliothek.

09 – Estudos para a cabeça do putto. Albrecht Dürer. Desenho, 1514. Londres, British Museum.

118 As reproduções aqui apresentadas foram retiradas dos livros “Saturno y la melancolia” e “Vida y arte de Alberto Durero”(1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,19,20,21,22,27,28,29,30,31,32,43) e “Mélancolie, génie et folie en Occident” (16,17,24,25,26,35). Estão incluídas obras atribuídas a Dürer, cópias e réplicas retiradas do catálogo de Fedja Anzelewsky, Albrecht Dürer, Das malerische Werk, Berlin, 1971. A ausência de referência significa que Anzelewsky não as incluiu em seu catálogo. As demais reproduções, retiradas de sites, têm os endereços especificados na listagem.

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10 – Estudo para o cachorro. Albrecht Dürer. Desenho. Musée Bonnat.

11 – Centauro e ninfa com bebê. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1505.

12 – Sanguíneos, coléricos, fleumáticos, melancólicos. Xilogravura, primeiro calendário alemão, 1480, Augsburgo.

13 – Saturno e seus filhos, atribuída a Maso Finiguerra. Gravura, segunda metade século XV, Itália.

14 – Saturno e seus filhos. Xilogravura, provavelmente cópia alemã de um original holandês, 1470. Berlin, Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz, Kupferstichkabinett.

15 – São Jerônimo em seu estúdio. Albrecht Dürer. Xilogravura, 1492. 165 x 115 mm. (reprodução de uma gravura não original, Metropolitan Museum, New York).

16 – Vanité. Philippe de Champaigne. Óleo sobre madeira, primeira metade do século XVII. 28,4 x 37,4 cm. Le Mans, Museu de Tessé.

17 – La Mélancolie. Domenico Feti. Óleo sobre tela, 1614. 172,5 x 128,2 cm. Paris, Museu de Louvre.

18 – Memento mori. Albrecht Dürer. Óleo sobre tela, não datado. 37 x 29cm. São Petersburgo, Museu Ermitage.

19 – Willibald Pirckheimer. Albrecht Dürer. Desenho, 1503-1504. Berlin, Kupferstichkabinett.

20 – Maximiliano I. Albrecht Dürer. Xilogravura, 1519. 414 x 319 mm.

21 – Nemesis (A grande fortuna). Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1501 - 1502. 329 x 220 mm. Londres, British Museum.

22 – O caminho do calvário (a pequena paixão). Albrecht Dürer. Xilogravura, 1509. 127 x 100

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97 mm.

23 – Santo Antônio atormentado por demônios. Martin Schongauer. Xilogravura, 1470-1473. 31,2 x 23cm. Paris, Biblioteca Nacional da França.

24 – Lá Géométrie. Gregor Reisch. Gravura, 1504 . In: Margarita Philosophica. Paris, Biblioteca Nacional da França.

25 – De Occulta Philosophia. Cornelius Agrippa. 1533. Paris, Biblioteca Nacional da França.

26 - Malenconico per la terra. Cesare Ripa. Gravura, 1600. In: Iconologia overo Descrittione d'imagini delle virtv', vitij, affetti, passioni humane, corpi celesti, mondo e sue parti. Opera di Cesare Ripa. Padua, per Pietro Paolo Tozzi, 1611.

27 – A morte de Orfeu. Albrecht Dürer. Desenho, 1494. 289 x 225mm. Hamburgo, Galeria de Arte.

28 – Adão e Eva. Albrecht Dürer. Gravura em buril, 1504. 252 x 194mm.

29 A e 29 B – Batalha dos deuses marinhos, detalhes.

30 – Batalha dos deuses marinhos. Andrea Mantegna. Gravura em buril. Sem datação.

31 – Batalha dos deuses marinhos. Albrecht Dürer. Desenho, 1494. 292 x 382 mm. Viena, Albertina.

32 - Os quatro temperamentos. Final do século XV. Londres, British Museum.

33 e 34 – De vita triplici. Marsilio Ficino.

36 – Deus medindo o mundo com compasso. Iluminura, 1250. In: Bíblia Moralizante. Viena.

37, 38 e 39 – Cenas reproduzidas do Palácio Schifanoia. Afrescos, 1469 – 1470. Disponível 101

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40, 41 e 42 – Cenas reproduzidas da Capela Scrovegni. Giotto. Afrescos, 1304 – 1306. Pádua. Disponível em http://www.wga.hu/. Acesso em março/2009.

43 – Circe e Ulisses. Michael Wolgemut. Xilogravura, 1493. In: Crônica de Nuremberg. (desenho atribuído à Dürer).

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