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Agroalimentaria ISSN: 1316-0354 [email protected] Universidad de los Andes Venezuela Valdete, Boni Movimento de mulheres camponesas, campesinato e soberania alimentar Agroalimentaria, vol. 20, núm. 38, enero-junio, 2014, pp. 71-86 Universidad de los Andes Mérida, Venezuela Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=199229475010 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Movimento de mulheres camponesas, campesinato e soberania alimentar

Agroalimentaria, vol. 20, núm. 38, enero-junio, 2014, pp. 71-86

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Mérida, Venezuela

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=199229475010

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Vol. 20, Nº 38; enero-junio 2014 71

Valdete, Boni1

Recibido: 03-04-2013 Revisado: 20-06-2013 Aceptado: 26-06-2013

1 Bacharel em Ciências Sociais (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC –, Brasil); Mestre emSociologia Política (UFSC, Brasil); Doutora em Sociologia Política (UFSC, Brasil); Pós – doutoranda(UFSC, Brasil). Endereço postal: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Centro de Filosofiae Ciências Humanas – CFH, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política – PPGSP. Núcleo deEstudos sobre Agricultura Familiar. Campus Universitário, Trindade – Caixa Postal 476. CEP: 88040-900– Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Telefone: +55-4896586778; e-mail: [email protected]

MOVIMENTO DE MULHERESCAMPONESAS, CAMPESINATO E

SOBERANIA ALIMENTAR

RESUMEN

RESUMO

El Movimiento de Mujeres Campesinas en Santa Catarina / MMC tiene casi 30 años de historia, y duranteeste tiempo ha sufrido varios momentos con diferentes aspectos cada uno, pero en conjunto, estos momentosmuestran la trayectoria de un movimiento social rural de mujer. Comenzó en medio del ajetreo político delos movimientos sociales, se hizo grande, con un gran número de participantes, que pasó por una fase en laque el número de participantes disminuyó y, por último, que renovó las banderas de lucha que hoy en díasiguen el desarrollo de políticas públicas en el campo. La preocupación por la seguridad de la alimentaciónestá claro cuando se habla de la recuperación de la propiedad de las semillas criollas. Para estas mujeres, tenercontrol sobre las semillas significa no caer dependientes de las empresas multinacionales que controlan laproducción y el comercio de semillas. Las semillas híbridas han garantizado la productividad sólo en suprimera generación como el fruto de la cosecha tales como perder las propiedades originales que garanticennueva productividad sowingwith igual a la primera. En cuanto a las semillas transgénicas , existe preocupaciónpor la polémica de las patentes y el pago de regalías . En la acción de estas mujeres se puede observar unacrítica al modelo de desarrollo impuesto por el Estado a las familias de agricultores, favoreciendo las grandespropiedades y empresas. En el oeste de Santa Catarina, la siembra de estas especies fue estimulado tambiénpara garantizar el suministro de madera para las tiendas.Palabras clave: Movimiento de Mujeres Campesinas, movimientos sociales, seguridad alimentaria, SantaCatarina, Brasil

O Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina/MMC conta com quase 30 anos de história e,nesse período, passou por diversos momentos que foram diferentes em alguns aspectos, mas que somadosmostram a trajetória de um movimento social rural formado apenas por mulheres, o qual se iniciou no bojoda efervescência política dos movimentos sociais, tornou-se grande em número de participantes, atravessouum momento de diminuição da participação e, finalmente, renovou suas bandeiras de luta que, atualmente,acompanham o desenrolar das políticas públicas para o campo. A preocupação com a segurança alimentarfica clara em seus discursos sobre a recuperação da propriedade das sementes nativas. Para essas mulheres,ter o controle das sementes significa não ficar na dependência das empresas multinacionais que controlama produção e a comercialização das sementes. As sementes híbridas têm sua produtividade garantida apenasna primeira geração, sendo que os frutos dessa colheita perdem as características originais que permitiriamum novo plantio com uma produtividade semelhante à primeira. Já em relação às sementes transgênicas,soma-se a polêmica das patentes e do pagamento de royalties. Nas ações das mulheres encontra-se tambéma crítica ao modelo de desenvolvimento que o Estado impõe aos agricultores familiares, privilegiando asgrandes propriedades e corporações. Na região oeste de Santa Catarina, o plantio dessas espécies foi estimuladotambém para garantir o fornecimento de lenha para os frigoríficos.Palavras-chave:Movimento de Mulheres Camponesas; movimentos sociais; segurança alimentar

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ABSTRACT

RÉSUMÉ

The Movement of Peasant Women in Santa Catarina/MMC has nearly 30 years of history, and hasundergone several movements. It started amid the political hustle of social movements, it became large innumber of participants, which decreased later, and has lately renewed its efforts following the developmentof public policies in the countryside. The concern over feeding safety is clear because for these womenhaving control over the seeds means not to be dependent on multinational companies that control theproduction and trade of seeds. Hybrid seeds have guaranteed productivity only in their first generation asthe fruit from such harvest lose the original properties that would guarantee new sowing with productivityequal to the first one. As to the transgenic seeds, there is concern over patents and royalties payment. Intheir actions we notice a critique of the development model imposed by the State to family farmers, whichfavours large properties and corporations.Key words: movement of peasant women; social movements; food security, Santa Catarina, Brazil

1. INTRODUÇÃOEste artigo faz parte de um estudo mais amplodesenvolvido durante o doutorado em sociologiapolítica na Universidade Federal de SantaCatarina cujo tema principal era o movimentode mulheres camponesas. O Movimento dasMulheres Camponesas – MMC – foi criado ofi-cialmente em 2004. De forma isolada nos esta-dos brasileiros, as organizações de mulheresexistiam desde a década de 1980, como é o casodo MMA em SC, do MMTR no RS e Paraná edas extrativistas no norte e nordeste do Brasil,como as quebradeiras de coco de babaçu. Nadécada de 1990 esses movimentos começaram

Le Mouvement des femmes paysannes à Santa Catarina / MMC a près de 30 ans d’histoire , et pendant cetemps il a suivi des étapes variées, mais l’ensemble de ces étapes montre la trajectoire d’un mouvement socialrural des femmes. Il a commencé au milieu de l’agitation politique des mouvements sociaux, il est devenugrand avec un grand nombre de participants, il est passé par une phase où le nombre de participants a diminuéet, enfin, il a renouvelé les drapeaux de combat qui suivent aujourd’hui le développement de politiquespubliques dans le campagne. Le souci de la sécurité de l’alimentation est clair quand ils parlent de la récupérationde la propriété de semences indigènes . Pour ces femmes , avoir le contrôle sur les semences signifie ne pastomber à charge sur les entreprises multinationales qui contrôlent la production et le commerce des semences. Les semences hybrides n’ont garanti la productivité que dans leur première génération puisque le fruit de larécolte perd les propriétés d’origine qui garantissent une productivité des nouveaux sowingwith égale à lapremière. Quant aux semences transgéniques, il est à craindre quant à la polémique des brevets et le paiementde redevances. Dans l’action de ces femmes , on peut noter une critique du modèle de développement imposépar l’Etat aux agriculteurs de la famille, favorisant les grandes propriétés et des sociétés. Dans l’ouest deSanta Catarina, le semis de ces espèces a été stimulée aussi pour garantir l’approvisionnement en bois pourles magasins .Mots-clés: mouvement des femmes paysannes, mouvements sociaux, sécurité alimentarire, Santa Catarina,Brésil

a se articular e criaram a Articulação Nacionalde Mulheres Trabalhadoras Rurais, a ANMTR,que resultou na criação do MMC.

A discussão a respeito do nome que teria omovimento suscita uma importante questão, osignificado do termo «camponês». As antigasdenominações de «agricultoras» e «trabalhadorasrurais» foram substituídas por «camponesas».Uma das justificativas do MMC diz que aescolha se deu pelo fato de que o termocamponês englobaria as diferentes atividadesexercidas no campo, sejam as agricultoras, asassalariadas rurais, as pescadoras ou asextrativistas. Outra justificativa refere-se ao

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entrelaçam na medida em que, para um povo,deter a soberania alimentar significa chances bemmaiores de garantir a segurança alimentar.

O termo segurança alimentar provém de doistermos ingleses, foodsecurity (quantidade dosalimentos) e foodsafety (qualidade dos alimen-tos), o que caracteriza a segurança para o con-sumidor. Nesse contexto, essa é uma discussãocomplexa porque não se refere somente à pro-blemática da fome – que sem dúvida é a maispreocupante – mas também aos outros proble-mas que são causados pela falta de comida,excesso de comida ou carência de nutrientes; etambém a qualidade dos alimentos num momen-to em que, além do consumo exagerado deprodutos industrializados, refrigerantes, enlata-dos, entre outros, com muitos corantes econservantes, temos ainda o alto índice deagrotóxicos e outros insumos utilizados sem odevido acompanhamento na produção alimen-tar. Por esse motivo, não será possível falar emsegurança alimentar de uma forma mais especí-fica no âmbito deste trabalho. As colocaçõesaqui apresentadas servem apenas para introduziro debate sobre produção agroecológica, a nãoutilização dos agrotóxicos e o resgate de sementescrioulas de hortaliças pelas camponesas doMMC, que associam essa prática a uma formade garantia de sua soberania alimentar.

3. SEGURANÇA ALIMENTAR – SAÚDE,RISCO E FOMEConforme dados da FAO, existem atualmentecerca de 800 milhões de pessoas que passamfome no mundo. A maior concentração dafomed está nos países africanos, alguns paísesasiáticos e na América Latina. Para a Via Cam-pesina (2011), esse número sobe para 925milhões, se somarmos os problemas decorrentesda má alimentação que resultam em doençascomo a diabetes e a obesidade, entre outros. ParaMenezes (1998), apesar de o problema estar lo-calizado nas regiões mais pobres do mundo, nãose pode esquecer que as crises econômicasglobais e as crescentes migrações revelam quetambém em países desenvolvidos estão se for-mando bolsões de miséria.

No Brasil, é na região Nordeste que se loca-liza o maior número de pessoas atingidas pelafome, mas o problema está presente em todasas regiões do país, desde as regiões metropolita-nas mais populosas até as áreas rurais, onde essa

trabalho familiar e à produção de alimentos,conforme documento do movimento. A mulhercamponesa, para o Movimento é aquela que, deuma ou de outra maneira, produz o alimento egarante a subsistência da família. «É a pequenaagricultora, a pescadora artesanal, a quebradeirade coco, as extrativistas, arrendatárias, meeiras,ribeirinhas, posseiras, boias-frias, diaristas,parceiras, sem-terra, acampadas e assentadas,assalariadas rurais e indígenas» (MMC, 2009, p.s/n).

Não se pode deixar de notar que, mesmoque as camponesas não assumam a influência daVia Campesina nesta decisão, esta ocorreu nomomento em que passaram a fazer parte da Via.Ao criarem o MMC, esse movimento seincorporou à Via Campesina, por ocasião da IVConferência da Via Campesina que ocorreu emjunho de 2004 no Brasil. Essa união já vinhasendo discutida, ou seja, não há como separaressa decisão, pois isso é uma consequência dasarticulações entre os movimentos sociais docampo para se fortalecerem frente aos desafioscolocados nas últimas décadas em relação àprópria existência de algumas organizações. En-tretanto, o importante para este trabalho é oque o próprio MMC considera para explicar estamudança.

O MMC nesse momento atual discute muitoquestões ligadas a segurança alimentar, ao culti-vo de alimentos saudáveis e ao modelo de agri-cultura agroecológica. Assim, definimos por ini-ciar o artigo expondo alguns aspectos sobre ocampesinato e a segurança alimentar e entãoabordar especificamente o contexto doMovimento de Mulheres Camponesas nesse as-pecto, trazendo seus pontos de vista em relaçaoao modelo de agricultura que elas trabalham. Asfalas das mulheres camponesas retratadas aquisão frutos da pesquisa de campo realizadas emdiversos momentos, especialmente em eventosorganizados pelo MMC.

2. CAMPESINATO: INTERLOCUÇÃO COMSOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAREsses dois conceitos são tratados por diversosautores e tentarei reproduzir somente partedesse debate, o suficiente para embasar adiscussão que o Movimento de MulheresCamponesas faz, especialmente sobre asoberania alimentar. Embora com significadosum pouco diferentes, esses dois conceitos se

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incidência é ainda maior.No Brasil, é significativamente maior,para a área rural, a proporção daspopulações abaixo da linha da pobre-za. Os índices são muito altos emquase todas as unidades da federação,sendo que apenas São Paulo está emum nível abaixo de 20%. No Nordes-te, os resultados são extremamenteelevados. Estados como Piauí e Paraíbaapresentavam mais do que 70% de suapopulação rural em condição de ex-trema pobreza. O índice médio daregião mostra que mais da metade dapopulação que vive no campo seencontra naquela condição, tendocomo consequência a fome e a próprianegação de sua cidadania. Mas o quecausa espanto é que, fora do Nordes-te, em estados consideradosexemplares no nível de desenvol-vimento e riqueza que alcançaram,como o Paraná, esta proporção chegaa quase 40% do total da populaçãorural. Tudo isto fortalece a convicçãode que a superação da miséria e dafome, no Brasil, passa em grande me-dida por uma profunda transformaçãodas relações sociais no campo(Menezes, 1998, p. s/n ).

Os três eixos de ações citados acima podemser traduzidos também como ações estruturais(direcionadas às causas mais profundas da fomee da desnutrição), ações específicas (para asfamílias que não tem condições de se alimentaradequadamente) e ações locais que foramdesenvolvidas no âmbito das prefeituras e se-cretarias municipais (Maluf, 2009, p. 91).

Para diminuir a insegurança alimentar,Chonchol (2005, p. 40) propõe dar atenção àsexperiências vivenciadas por países como Japãoe Indonésia, por exemplo, que – há algumas dé-cadas – têm dado prioridade à agricultura, con-trastando com países da África que priorizarama produção industrial em substituição à produçãomanufatureira anterior. Assim, enquanto os paí-ses do Sudeste Asiático aumentaram a produçãode cereais básicos para sua alimentação – comoo arroz, na África –, governos priorizaram aprodução industrial em detrimento da agricul-tura. Jacques Chonchol chama a atenção para afalácia da concentração da produção como uma

propaganda para o fim da fome e dasubalimentação.

É por isso que todo sistema deintensificação da produção, no qual amaior parte desta é obtida por umpequeno número de grandesprodutores modernizados, e ospequenos produtores familiares ousubfamiliares ficam marginalizadosassim como os trabalhadores semterra, não pode garantir e, pelocontrário, agrava a segurança alimen-tar nos campos. Isso é, em grande par-te, o que tende a ocorrer hoje emmuitos países em desenvolvimento,como vemos o caso da América Lati-na. As políticas públicas de reformaagrária, de crédito, de investimento ede comercialização devem, pois, ircontra essa tendência à concentraçãoda produção (Chonchol, 2005, p. 41).

O que temos assistido no Brasil é justamen-te uma política agrícola que favorece aconcentração. Embora possa ser visto que osinvestimentos para a agricultura familiaraumentaram na última década, o modelo agrí-cola brasileiro é o agronegócio.

4. SOBERANIA ALIMENTAR –INDEPENDÊNCIA DAS MULTINACIONAISE AUTONOMIANa década de 1930, o mundo viveu um paradoxono que diz respeito à produção de alimentos e oseu consumo. Por um lado, vários paísesdesenvolvidos possuíam excessos de produçãomas, por outro lado, observava-se, nos países emdesenvolvimento, problemas de subnutrição ede fome. Conforme Chonchol (2005, p. 33),enquanto especialistas em nutrição alertavampara a necessidade de se produzir mais alimen-tos para suprir a carência mundial, economistasfaziam o contrário, falavam em diminuição daprodução por causa dos excessos em alguns paí-ses. É nesse contexto que, em 1945, através dediscussões feitas no âmbito das Nações Unidas– ONU, surge a Organização para aAlimentação e Agricultura – FAO.

Em 1962 a FAO cria o Programa AlimentarMundial, que tinha por objetivo sanar o proble-ma da fome no Extremo Oriente2. Com isso, acomunidade científica apoia a iniciativa de

2 O Extremo Oriente corresponde a países comoChina, Japão, Coreia do Sul, Coreia do Norte,Taiwan, Hong Kong, Mongólia e Macau.

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introduzir o plantio de sementes de altorendimento. Então, inicia na Ásia, em 1965, aRevolução Verde. Segundo Chonchol (2005, p.34), esse processo aumentou consideravelmentea produção, no entanto, os custos sociais foramainda maiores. Na Índia, por exemplo, antes daRevolução Verde, 18% do campesinato nãopossuía terras, e já em 1970, esse número cresceupara 33%. Na década seguinte, países comoEtiópia, Bangladesh e também os da regiãoconhecida como Sahel3 africano passaram porperíodos de fome. Conforme Maluf e Menezes(2000), a falta de estoques de alimentos nas dé-cadas de 1960 e 1970 fundamentaram a ideiade que o problema da fome no mundo era faltade alimentos suficientes para toda a população,o que reforçou o argumento de que aumentar aprodutividade seria uma das soluções possíveis.Com isso, as ideias favoráveis à Revolução Ver-de ganharam mais força.

Procurava-se convencer a todos, deque o flagelo da fome e da desnutriçãono mundo desapareceria com o au-mento significativo da produção agrí-cola, o que estaria assegurado com oemprego maciço de insumos quími-cos (fertilizantes e agrotóxicos). Aprodução mundial, ainda na década desetenta, se recuperou – embora nãoda mesma forma como prometia aRevolução Verde – e nem por istodesapareceram os males dadesnutrição e da fome, quecontinuaram atingindo tão gravemen-te parcela importante da populaçãomundial (Maluf & Menezes, 2000, p.1).

Na década de 1980, os estoques alimentaresmundiais crescem, entretanto, como essecrescimento ocorre nos países maisdesenvolvidos, o problema da fome persiste.Como coloca Choncol (2005, p. 34), «a fomenão é tanto consequência de uma produção ali-mentar insuficiente, como da marginalização

3 O «Sahel africano» corresponde a uma região quefaz divisa entre o deserto do Saara e a parte sul daÁfrica onde as terras são mais férteis. É uma faixa detransição entre o clima desértico e o clima tropical eabrange países como Mauritânia, Senegal, Mali,Burkina Faso, Níger, Chade, Nigéria, RepúblicaDemocrática do Congo, Camarões e Sudão. 

econômica de certas populações». Assim, au-mentar a produtividade dos países que jáproduzem estoques suficientes não resolveria oproblema da fome; seria mais eficaz darcondições para que todos possam produzir paragarantir o mínimo de auto sustento interno. Oproblema da carência de alimentos em diversospaíses não é decorrente somente de problemasclimáticos, mas, sobretudo de conflitos políti-cos em muitas regiões. Esses conflitos se tornam,na década de 1990, o principal motivo danecessidade de ajuda alimentar para vários paí-ses, principalmente na África.

Chonchol, em texto de 20054, expôs umaprevisão para o ano de 2010. Conforme aprevisão, a população mundial seria de 7 bilhõesde habitantes, sendo que 94% se encontraria nospaíses em desenvolvimento. O crescimento daprodução de alimentos seria de 1,8% ao ano,acompanhando o decréscimo que já vinhaocorrendo desde a década de 1970. Nesta pers-pectiva também estava previsto para 2010 que,na Ásia do Sul, haveria em torno de 240 milhõesde pessoas subalimentadas e que asubalimentação crônica atingiria ainda cerca de300 milhões de pessoas da África ao Sul do Saara,que giraria em torno de 35% da população. Emtodo o planeta a estimativa prevista era de quecerca de 730 milhões de pessoas seriam afetadaspela fome e pela subalimentação. Chonchol(2005, pp. 37-38) alertava ainda para o aumen-to da produção animal nos países emdesenvolvimento. Com isso, parte da produçãode grãos se destinaria à alimentação animal, oque poderia se tornar um risco, na opinião doautor, devido a um possível aumento de preçosdos cereais que são a base alimentar dapopulação mais pobre.

Também as previsões de aumento das áreascultivadas não podem ser analisadas sem a realnoção da capacidade de crescimento, ou seja, ade que cerca de 92% das terras aptas para aprodução agrícola e que ainda não foram explo-radas estão concentradas na África ao Sul doSaara e na América Latina, nesse caso, grandeparte no Brasil. Dois terços dessas terras estãoem países como o Brasil, Argentina, Bolívia,Colômbia, México, Peru, Venezuela, Zaire,

4 O texto foi publicado pela primeira vez em 2002 noChile. A versão referida aqui é de 2005, publicada noBrasil.

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Indonésia, Sudão, Moçambique, Argélia eTanzânia. Grande parte dessas terrassupostamente disponíveis está recoberta por flo-restas e reservas naturais.

Conforme destaca Maluf (2009, pp. 134-135), há no Brasil uma disponibilidade de cercade 3.000 kcal/dia por pessoa, quantidade acimada média recomendada pela FAO, que é 1.900kcal/dia para cada pessoa. No entanto, paragerar essa quantidade de alimentos, setores liga-dos ao agronegócio declaram que é necessárioexpandir a produção e que esta expansão temum custo. Traduzindo, se a necessidade éproduzir alimentos, os danos ambientais devemser relevados. «Não se trata então de escolherentre fome e destruição do meio ambiente, massim de optar pelo desenvolvimento sustentávelcom modelos de produção e também consumoigualmente sustentáveis» (Maluf, 2009, pp. 134-135).

A Via Campesina apresentou um conceitode soberania alimentar na Conferência Mundialsobre a Alimentação realizada em 1996, emRoma, pela FAO. Este conceito ressalta asoberania alimentar como «o direito que os povostêm de definir suas próprias políticas agrícolas ealimentares sem dumping de outros países». Esteé o grande desafio, uma vez que mais do quenunca os rumos da política agrícola dos paísessão decididas em cúpulas fechadas e nas bolsasde valores, locais em que não somente os agri-cultores, mas a maioria da população sequerconhece a dinâmica de funcionamento.Refletindo em termos de Brasil, de 1996 paracá, a política agrícola esteve ainda mais orienta-da para a exportação (Maluf, 2009). Apreocupação maior tem sido um modo deprodução que seja aceitável para os países paraos quais esses produtos serão destinados e não agarantia de qualidade de vida dos produtores eda população do país de origem. Em outraspalavras, quando a produção é voltada para aexportação, a preocupação é aumentar aprodutividade do que será exportado em detri-mento da variedade necessária à alimentação dapopulação interna, não garantindo alimentossaudáveis e com valores nutricionais necessários.

No Fórum Mundial sobre Soberania Alimen-tar realizado em Havana, Cuba, no ano de 2001,a soberania alimentar foi definida como

(...) o direito dos povos a definir suaspróprias políticas e estratégias

sustentáveis de produção, distribuiçãoe consumo de alimentos que garantamo direito à alimentação para toda apopulação, com base na pequena emédia produção, respeitando suaspróprias culturas e diversidade dosmodos campeiros, pesqueiros e indí-genas de produção agropecuária, decomercialização e gestão dos espaçosrurais, nos quais a mulher desempenhaum papel fundamental (Vía Campe-sina, citada por el MPA, 2013, p. s/n).

Para Maluf (2009, p. 19), a incorporação danoção de soberania alimentar aos princípios daSeguridad Alimentar e Nutricional traz umanova visão que difere das ações para a segurançaalimentar anteriormente implementadas pelosgovernos, porque traz à tona a discussão dasgrandes corporações e sua influência nas decisõesque envolvem a produção de alimentos e o queé concebido como soberania pelos movimentossociais.

5. A RECUPERAÇÃO DE SEMENTESPELO MMC: UM PROJETO DEAGRICULTURA CAMPONESAAté algumas décadas atrás, os camponesesguardavam uma parte de suas colheitas para oplantio da próxima safra. Na região oeste de SantaCatarina, isso ocorria com as culturas de milho,feijão, trigo, arroz e também com as hortaliças,leguminosas, enfim, praticamente todas assementes utilizadas nas propriedades eramproduzidas nelas mesmas. A partir da RevoluçãoVerde essa realidade começou a mudar. Assementes híbridas de milho substituíram assementes crioulas, o trigo e o arroz deixaram deser cultivados em parte das propriedades e,também, as sementes utilizadas nas hortas earredores passaram a ser adquiridas nas coope-rativas e nas agropecuárias. Hoje, essas sementesvoltaram a ser valorizadas por muitos grupos,entre eles o MMC.

Há diversas experiências de recuperação dassementes pelo mundo. Em Santa Catarina, umadas experiências mais importantes em termosde recuperação de sementes crioulas é a do milhocrioulo em Anchieta. Anchieta é uma cidade doextremo oeste do estado, com pouco mais decinco mil habitantes, que iniciou o programa deresgate das sementes crioulas em 1996. No ano

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de 2000 foi realizada a primeira festa dassementes crioulas. No ano de 2011, ocorreu a 5ªFesta da Semente Crioula e a feira de sementescrioulas, na qual mulheres do MMC tambémparticiparam (MMC, 2000).

Conforme Marta Chiappe (2006), o milhose coloca entre os quatro cereais responsáveispor mais da metade da alimentação do mundo.É também o alimento principal em 12 países daAmérica Latina. Os maiores produtores de milhosão os Estados Unidos, que concentram cercade 40% da produção mundial; a China, com18%; e o Brasil, com 8%. Segundo estes dados,publicados em 20065, cerca de 20% da área cul-tivada nos EUA era de milho transgênico.Atualmente o controle sobre as sementes seconcentra em dez empresas multinacionais.Com relação às sementes transgênicas, esse nú-mero cai para apenas seis empresas (Chiappe,2006). Com relação às sementes de milho,somente duas empresas, a Monsanto e a DuPont,controlam 65%.

O México é o país que concentra a maiorprodução mundial de milho não transgênico.

México tiene una importancia estra-tégica en la producción mundial demaíz por ser centro de origen, domes-ticación y una de las reservas mundia-les de diversidad genética. A pesar dela pérdida de rentabilidad respecto aotros cultivos, el maíz continúa sien-do el cultivo más importante a nivelnacional, con una producción de másde 18 millones de toneladas (Chiappe,2006, p. 9).

Entre os produtores mexicanos, mais de 80%utilizam sementes próprias. Esse número é im-portante porque, passados mais de quatro déca-das desde a Revolução Verde, os camponesescontinuam utilizando as sementes nativas queforam sendo adaptadas para cada região, solo eclima. Mesmo as sementes híbridas, introduzidaspela Revolução Verde, atingem menos de 20%da produção camponesa. As sementestransgênicas, por sua vez, são proibidas no país,embora já haja casos de contaminação portransgênicos em diversas regiões (Chiappe,2006).

Conforme Altieri & Bravo (2007), o cultivode milho para a produção de etanol nos EstadosUnidos passou de 18 milhões de toneladas em2001 para 55 milhões de toneladas em 2006. Ocombustível proveniente do milho e da soja con-juntamente representou em 2006 apenas 3%do consumo de combustível naquele país. Se todaa produção de milho e soja fosse destinada àprodução do etanol, somente 12% danecessidade de combustível dos EUA seriasuprida. Mesmo assim, em alguns Estados dafederação, como Dakota do Sul e Iowa, cerca de50% da plantação total de milho foi destinada àprodução de etanol. Isso não traz apenas pro-blemas econômicos e sociais, como a diminuiçãodas exportações de milho dos EUA, gerando aconsequente alta nos preços desse produto, oque prejudica os países que necessitam impor-tar para suprir as necessidades alimentares desua população. Outro fator importante é o am-biental. Com a demanda por mais milho, amonocultura se acentua ainda mais, gerandoproblemas típicos deste modelo como oaparecimento de pragas e doenças que, por suavez, serão combatidos com mais agrotóxicos.

La especialización en la producción demaíz puede ser peligrosa: a principiosde los 70s cuando los maíces híbridosde alto rendimientos uniforme cons-tituían el 70% de todos los cultivos demaíz, una enfermedad de la hoja(leafblight) que afectó a estos híbridoscondujo a un 15% de pérdida de ren-dimientos a través de esa década. Esesperable que este tipo de vulnerabili-dad de los cultivos se incremente ennuestro clima crecientemente volátil,causando un efecto ondulatorio entoda la cadena alimentaria (Altieri &Bravo, 2007, p. 2).

Essas preocupações embasam as críticas aosbiocombustíveis. Se, em relação aos EstadosUnidos, a grande preocupação é com o cultivode milho, no Brasil isso ocorre em relação à sojae à cana-de-açúcar. Altieri & Bravo (2007)apontam dados que mostram que cerca de 21milhões de hectares de florestas foram devasta-dos para dar lugar às plantações de soja. De 1995até 2006, o crescimento anual da área plantadafoi de 3,2%. Esses autores colocam a soja e acana-de-açúcar como as duas maiores culturasbrasileiras, ocupando juntas 21% do total deáreas cultivadas.

5 Levando-se em conta que a produção detransgênicos cresce a cada ano, a estimativa é queessa área cultivada seja bem maior no momento atual.

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Altieri & Bravo (2007) chamam a atençãopara outro problema causado pela expansãodestas monoculturas voltadas à produção debiocombustíveis. Com relação ao Brasil, aexpansão da fronteira agrícola, notadamentepara o cultivo da soja, já que a maior produçãode cana-de-açúcar se concentra no sudeste/suldo país, especialmente São Paulo, avançou parao Cerrado e a floresta Amazônica. Enquantosurge um emprego na produção da soja, outrosonze trabalhadores são excluídos, aumentandoainda mais a concentração de terras. ConformeGuilherme Delgado (2005, p. 70), «a ocupaçãoda força de trabalho na produção é fortementerestringida em face do padrão tecnológicoalcançado pelo sistema do agronegócio». Aindaconforme este autor, a «frouxidão» da políticafundiária brasileira, entendida como aincapacidade de controlar, fiscalizar e regular omercado de terras no Brasil em relação aoprincípio da função social da terra, gera uma nãofronteira entre terras consideradasimprodutivas, devolutas e terras ocupadas pelasgrandes propriedades, o que dá margem agrilagens, posses ilegais e titulações fictícias (Del-gado, 2005, p. 76).

A expansão da fronteira agrícola na produçãode biocombustíveis, na opinião de Altieri (2009),é «um atentado contra a soberania alimentar dospaíses em desenvolvimento», porque não ape-nas a terra está sendo usada para alimentarautomóveis dos países do Norte, como porque adiminuição da área cultivada para a produção dealimentos faz subir os preços destes, como é ocaso do milho nos Estados Unidos. Com o au-mento do preço dos cereais, o preço da carnetambém se eleva.

Pat Roy Mooney (1987) mostra ascontrovérsias em relação aos bancos de genespara conservação das sementes. Entre os pro-blemas apontados por ele estão os altos custosde manutenção dos «superlaboratórios» e, devidoa isso, diversos países não priorizam essa prática.Conforme o autor, uma das causas do descaso éque países do terceiro mundo são convidados apôr «todos os seus ovos na cesta dos outros»(Mooney, 1987, p. 34); ou seja, como nãopossuem condições de manter um banco nacio-nal de sementes para preservação de suasespécies nativas, deixam que essas espéciesfiquem sob a guarda de outros países ou de em-presas multinacionais.

Um estudo da FAO, a respeito dasfontes de coleta de trigo mantidaspelo USDA demonstra o absurdo daposição do Terceiro Mundo. Por voltade 1970, o USDA6 possuía materialde 27 nações; apenas cinco não eramdo Terceiro Mundo. Os bancos degenes americanos haviamarmazenado mais variedades de trigoque as existentes em coleções identi-ficadas em 16 dos 27 países. Quatorzepaíses – todos do terceiro Mundo –não tinham nada do seu próprio trigonativo armazenado. Colocando deoutra forma: enquanto o Afeganistão,o Egito e a Coréia observam adiversidade natural de suasagriculturas ser cada vez maisuniformizada, irão descobrir que vir-tualmente todas as variedades de seustrigos nativos podem ser obtidas ape-nas nos Estados Unidos (Mooney,1987, pp. 34-35).

Tanto já foi dito acerca da Revolução Verde,que parece que este é um tema que se esgotou.No entanto, é bom sempre lembrar que foi estefenômeno que acirrou o processo de extinçãode sementes e de apropriação das mesmas porempresas particulares. A própria FAO, em 1957,lançou uma campanha mundial de sementes.Concomitantemente a isso, se iniciou o processode proteção de novas variedades. Assim, as em-presas de melhoramento de sementes tiveram odireito de patente por suas variedades modifica-das (e muitas vezes pelas variedades que deramorigem a estas) com a criação das Leis deProteção a Cultivares. Essa lei logo se expandiupara os países do Terceiro Mundo, onde avariedade de sementes é maior e onde os pacotestecnológicos da Revolução Verde penetraramsem restrições já que o objetivo propagado era ade produzir mais alimentos para eliminar o pro-blema da fome que assolava diversos países(Mooney, 1987).

A segunda fase da Revolução Verde foi do-minada por aquilo que Mooney (1987) conside-ra como a Revolução da Semente, ou seja, oprocesso de apropriação das sementes pelasempresas. Essa fase iniciada com as sementes

6 Acrônimo do Departamento de Agricultura dosEstados Unidos.

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híbridas persiste até hoje com o desenvolvimentodas diversas variedades de sementestransgênicas. Quando tratamos de transgenia,as sementes que aparecem citadas com maiorfrequência são as de milho e soja, porque são,juntamente com o trigo, os cereais mais cultiva-dos no mundo. No entanto, as sementes dehortaliças e dos demais cereais fundamentais nadieta alimentar, também podem são híbridas outransgênicas.

Mooney (1987, pp. 68-69) já mostrou aexistência, na década de 1970, da aquisição dasempresas de sementes por indústriasagroquímicas. Essas companhias segundo ele, deescala global, têm o mundo todo como merca-do. Isso demonstra que há cerca de quatro dé-cadas essas empresas vêm atuando no mercadode sementes. Uma preocupação levantada peloautor se refere ao código de conduta para ascompanhias transnacionais discutido naquelemomento pela ONU, onde os recursos genéticosvegetais e estoques de sementes das nações nãoforam enquadrados como sendo de interessenacional vital, o que permitiu o monopólio porparte de empresas transnacionais.

As mulheres do MMC estão preocupadascom as sementes transgênicas de soja e milho,mas seu interesse maior são as sementes dehortaliças. Elas lidam com a alimentação de suasfamílias no dia-a-dia e perceberam, ao longo dosanos, o empobrecimento de variedadesdisponíveis na mesa. Mesmo que, entre as parti-cipantes, muitas mantenham certa quantidadede diferentes variedades, percebem que em seuentorno isso se perdeu.

6. A RECUPERAÇÃO DAS SEMENTESCRIOULAS DE HORTALIÇASA discussão sobre as sementes enquantoexpressão de soberania é bastante antiga, masme deterei na história recente, ou seja, a partirda modernização da agricultura. Pat RoyMooney publicou em 1979 no Canadá o livro«O escândalo das sementes: o domínio naprodução de alimentos», tratando sobre opatenteamento das variedades. Já nesse tempo,o autor denunciava as incertezas advindas dosprogramas de «melhoramento de sementes»pelas grandes empresas, uma vez que os agricul-tores de todo o mundo foram os que melhoravamas plantas durante toda a história da agricultura.

Conforme dados da FAO7, somente 150espécies cultivadas alimentam a maior parte dapopulação mundial; e, destas, somente 12proporcionam 80% da energia da dieta humanaproveniente das plantas. O arroz, a batata, o tri-go e o milho respondem por cerca de 60% dadieta energética. Mooney (1987, p. 4) jámostrava, em 19798, que 95% da nutrição hu-mana derivava de não mais de 30 plantas, dasquais oito eram responsáveis por 75% danutrição vegetal. Destas oito espécies, o trigo, oarroz e o milho respondiam também por 75%do consumo vegetal. Conforme este autor, pelomenos 500 vegetais eram utilizados na agricul-tura antiga e, num espaço de mil anos, esse nú-mero se reduziu a 200 espécies cultivadas pelospequenos horticultores. «A moderna históriaagrícola é, ao menos em parte, uma história deredução de variedades alimentícias, porquantomais e mais pessoas são alimentadas cada vezmenos por espécies vegetais» (Mooney, 1987,pp. 4-5).

Sempre foi da tradição dos camponesespraticar a policultura, ou cultivar diversas varie-dades de uma mesma espécie para garantir aprodução em situações climáticas adversas.

Então, esse projeto domelhoramento... da produção emelhoramento de sementes crioulasque o Movimento das MulheresCamponesas me faz lembrar, aquiloque minha vó sempre dizia. Aquelesvalores do passado estão sendo pre-sentes pra nós hoje. Porque eu melembro muito bem que ela semprefalava, ninguém comprava nenhumtipo de semente, eles produziam todasua subsistência, sua comida e aspróprias sementes. Isso elas mesmasfaziam, não compravam, não usavamnada de químico e não compravamalimentação, porque eles produziam.E ela contava quando matavam osporcos, porque eles criavam porco,galinha, tudo para a sua subsistência.Quando matavam um porco

7 Disponível em http://www.fao.org/news/story/es/item/20162/icode/; acesso em 11/10/2011.8 Ano de publicação do livro no Canadá. A suatradução para o português foi publicada no Brasil em1987.

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repartiam entre os vizinhos, e depois...todos comiam a mesma coisa, entãosempre vinha... cada pouco vinha car-ne fresca, mesmo não tendo congela-dor, não tendo geladeira, não tendonada dessas modernidade. E isso mevem presente em tudo aquilo com oresgate das sementes. É isso que nóstemos que abraçar hoje. Produzir parao nosso auto-sustento, e produzir anossa semente pra nossa comida.Então eu acho de fundamentalimportância este projeto pra nós,mulheres da roça (Liderança do MMCexplicando sobre o projeto derecuperação de sementes crioulas dehortaliças / maio de 2010).

Nesse projeto das sementes, eu achomuito importante também o resgateque está tendo das ervas medicinais.Porque isso é uma coisa da natureza. Eos nossos antepassados eles usammuito isso, sobreviviam dos remédioscaseiros, dos remédios de ervasmedicinais. Mas depois com o uso dosveneno aí que tanto tão usando, aservas foram sendo extintas e aí entãoesse projeto do Movimento deMulheres Camponesas vem trazendopra nós, ou resgatando de volta o usopras nossas famílias, que é muito im-portante a mãe faze um chazinho, usaos remédios naturais em vez de pracada coisinha tem que está correndona farmácia, ou está comprando osremédios químicos. Então já pode estáutilizando. E isso pra nós é umaexperiência muito importante e queestá sendo resgatado também o projetodas sementes. Então isso vem trazerpra nós um estímulo de volta pra nósaquilo que é da natureza. Os remédios,usando eles, utilizando eindustrializando pro nosso uso e parao uso da nossa família, dos nossos filhos(Liderança do MMC explicando sobreo projeto de recuperação de sementescrioulas de hortaliças / maio de 2010).

Percebemos, nas falas como a anterior,referências contra o uso de agrotóxico naprodução de alimentos e a utilização de ervas

medicinais para o tratamento de saúde. Junta-mente com a recuperação de sementes, ascamponesas resgataram valores e conhecimentostradicionais para utilizar as ervas medicinais. Osantigos chás que eram utilizados pelas mulheresmais velhas, frutos de um conhecimento acu-mulado que foi se perdendo com a popularizaçãodos remédios alopáticos. O MMC foi buscarconhecimentos nesta área, aproveitando aqueleque algumas camponesas já detinham; foram embusca de mais formação no campo das plantasmedicinais e da homeopatia9.

7. AS MULHERES E A ALIMENTAÇÃO:SEGURANÇA E SOBERANIA ALIMENTARPara Marta Chiappe (2006) ocorre certaconfusão entre os conceitos de soberania esegurança alimentar, quase sempre utilizadoscomo sinônimos. No entanto, por soberania ali-mentar deve-se entender o controle dos alimen-tos por parte dos camponeses e por segurançaalimentar, a condição de existência de alimentossuficientes e de qualidade para que todos possamter acesso.

Conforme León (2003, p. 218), na Áfricasubsaariana e no Caribe, as mulheres sãoresponsáveis pela produção de 60 a 80% dosprodutos básicos utilizados na alimentaçãoenquanto que na Ásia as mulheres realizam maisde 50% do trabalho nos cultivos de arroz. Damesma forma, no Sudeste Asiático e na Améri-ca Latina, as hortas cultivadas pelas mulheresaparecem entre os sistemas agrícolas maiscomplexos. Mesmo assim, a ideia de que énecessário o cultivo de transgênicos para alimen-tar o mundo é propagada cada vez mais. Essediscurso sai do ambiente das multinacionais e sepropaga mesmo entre camponeses, com o intuitode que eles abandonem seus cultivos tradicionaise adotem o sistema produtivo que é comerciali-zado em larga escala pelas empresas.

Dessa maneira, a internacionalizaçãodo campo, onde, insistimos, a agricul-tura e a produção alimentar se ajustam

9 Dona Rosalina da Silva fez diversos cursos sobreplantas medicinais e também sobre homeopatia. Jádetinha um conhecimento herdado de sua mãe e,pela proximidade com a Igreja, teve uma formaçãona área da saúde com as freiras que trabalhavam comervas medicinais; e, depois, pelo MMC continuouessa formação. Seu horto de plantas medicinais égrande e muito variado.

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a fins lucrativos, tem incidido negati-vamente na vida das mulheres,convertendo-as em simplesassalariadas e alienando-as da suarelação com a terra, com a agricultu-ra, com os saberes e conhecimentoshistóricos, especialmente aqueles que,como inventoras da agricultura, têmtransmitido de geração em geração(León, 2003, pp. 218-219).

Essas medidas, continua a autora (León,2003, p. 219), eliminarão as práticas de soberaniaalimentar concebidas pelas mulheres durantetoda a história da agricultura, obrigando-as apagar aos donos das patentes para utilizarem osrecursos que sempre fizeram parte de sua vida.

Irene de León (2003, p. 220) diz ainda que aagricultura científica excluirá ainda mais asmulheres do acesso ao conhecimento e destrui-rá seus saberes tradicionais, continuando oprocesso que foi deflagrado pela Revolução Ver-de. A colocação da autora é chocante, masverdadeira, porque o que assistimos foi umafastamento das camponesas do conhecimentobásico sobre o plantio dos alimentos e adiminuição da variedade e qualidade alimentardessas famílias. No entanto, tamanha exclusãogera revolta e, consequentemente, a busca dealternativas. É o que o MMC faz ao estimular ascamponesas a resgatar as práticas alimentares ede tratamento por meio de uma alimentaçãomais saudável, que vai desde a maneira deproduzir o alimento, a variedade dos alimentos eas formas de preparo, até as ervas medicinaisque são alternativas aos remédios alopáticos.

Um dos grandes vilões que colocam em riscoa segurança alimentar são os agrotóxicos, por-que além da contaminação dos alimentos e daágua, eliminou diversas espécies de plantas utili-zadas na alimentação e no preparo de remédios.

8. SEGURANÇA ALIMENTAR E OSAGROTÓXICOSConforme Londres (2011), na última década, ouso de agrotóxicos no Brasil cresceuassustadoramente; somente entre os anos de2001 e 2008 a venda subiu de pouco mais deUS$ 2 bilhões para mais US$ 7 bilhões. Assim, oBrasil atingiu a posição de maior consumidor deagrotóxicos do mundo. Em 2008 foram aplica-dos 986,5 mil toneladas e em 2009 mais de ummilhão de toneladas, o que significa 5,2 kg de

agrotóxico por habitante (Londres, 2011, p. 19).A autora apresenta também dados da Anvisasobre, pelo menos, dez tipos de agrotóxicos quejá foram proibidos na União Europeia, EUA,China, entre outros, que continuam sendo usa-dos no Brasil. Esses dados apontam que ocrescimento agrícola no país foi pequeno frenteao aumento exorbitante no volume de vendasdos agrotóxicos.

Levantamentos do Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE) edo Sindicato Nacional da Indústria deProdutos para Defesa Agrícola(Sindag), ambos de 2009, apresentamo crescimento de 4,59% da área culti-vada no período entre 2004 e 2008.Por outro lado, as quantidades vendi-das de agrotóxicos, no mesmo perío-do, subiram aproximadamente44,6%. E os números não levam emconta a enorme quantidade deagrotóxico contrabandeado para o país(Carneiro & Soares, 2010; apud Lon-dres, 2011, p. 19).

Outra característica importante a ser levadaem conta é a concentração das empresas quedetém a produção e comercialização deagrotóxicos. Em 2007, seis empresas – a saber,Bayer, Syngenta, Basf, Monsanto, Dow eDuPont –, controlavam mais de 80% da vendade agrotóxicos no Mundo (Terra, Pelaez &Rodrigues da Silva, 2010). No Brasil, essa taxaera ainda maior. Essas empresas não controlamsomente os agrotóxicos ou as sementes de milhoe soja, como nos parece mais evidente, mastambém sementes de hortaliças; ou seja, assementes de toda a base de alimentação vegetal.

O que o movimento de mulheres propõe é irna direção contrária a este processo. É resgatarvalores (sementes) e técnicas que suas mães eavós dominavam, para restituir com isso umaalimentação melhor para suas famílias, comomostram os trechos retirados de umdocumentário produzidos pelo MMC/SC.

Para aproveitar os restos de guerra, aburguesia internacional criou umprojeto de agricultura química, paraaproveitar as indústrias que jáfabricavam o veneno, os motores e osprodutos químicos. Então se instalouaqui no Brasil, a partir dos anos 60, afamosa Revolução Verde sobre a qual

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os governos davam o total apoio, in-clusive criou-se a extensão rural paralevar até as nossas unidades deprodução o esclarecimento: como éque nós tinha que produzi, o que é quenós tinha que produzir e com adesculpa de aumentar a produtividadee de saciar a fome do mundo é queeles vinha com essa onda de RevoluçãoVerde. Com essa farsa demodernidade foi feito a tentativa dedestruir a agricultura camponesa, osvalores, o jeito de produção que nóstinha, que nós produzimos o próprioalimento, mas não conseguiram. Poisaqui estamos resistindo e fazendo al-ternativas para dar conta de uma vidadigna, com saúde (liderança doMMC).

E no caso das produções tem tudo osagrotóxicos que eles nem chamaramde veneno. Chamavam do quemesmo? Defensivos agrícolas! Vejabem, uma coisa que prejudica anatureza, o ser humano, não foi bota-do o nome de veneno, é defensivoachou que era isso mesmo. ‘Ah temque passar um remedinho ali pra ma-tar as pragas’, não é assim que a genteescuta todo dia? Só que esseremedinho pra matar as pragas vaimatando nós também (XX EncontroEstadual do MMC – 21 a 23 agostode 2010).

Conforme Vandana Shiva (2003, p. 39), aRevolução Verde não substituiu somente assementes nos países do Terceiro Mundo, massafras inteiras. Ao fazer isso justificou que de-terminadas variedades de sementes, por sereminferiores, produziam muito pouco. Para Shiva,as camponesas da Índia conheciam as varieda-des produzidas e seu valor nutritivo. Estes culti-vos, no entanto, foram considerados inferiores;além disso, muitos foram extintos pelo uso dosagrotóxicos. Da mesma forma, diversas espéciesagrícola. Defensivo é pra defender, de venenopassou pra remédio, e a gente de plantas queantes eram consumidas pelos camponeses nooeste de SC, hoje são dificilmente encontradasporque, com a intensa utilização de agrotóxicosnas lavouras e a diminuição de variedades culti-

vadas, essas também se perderam. Por outrolado, percebe-se que as lideranças do MMC, aoiniciarem o resgate de sementes crioulas dehortaliças, se disseram admiradas com as varie-dades que as camponesas trouxeram e que erammantidas em suas propriedades. Somente noencontro que ocorreu no ano de 2002 emCuritibanos, na Serra Catarinense, ascamponesas trouxeram mais de 40 variedadesde couve.

9. PLANTAR PARA O AUTOCONSUMO – SOBERANIA ESEGURANÇA ALIMENTARPara Irene León & Lidia Senra (2010, p. 17),mulheres e homens vêm construindo uma ideiadiferente do que é agricultura. Isso se explica,em parte, pelas condições que foram dadas, aolongo da história, para homens e para mulheres.Dessa forma, a imagem construída pelasmulheres é de uma agricultura como fonte dealimentação e de produtos que são destinadosao sustento da família.

Conforme as autoras acima, em diversas par-tes do mundo, o controle da produção pelogoverno e pelas grandes empresas foi precedidopor uma associação do produto oriundo dasexplorações familiares a uma má qualidade ou aproblemas sanitários. Essas medidas afetaramespecialmente as mulheres que tradicionalmen-te comercializam sua produção nos mercadoslocais. Em conversa com uma liderança, ela falavadas dificuldades de comercializar a produção empequena escala. O objetivo principal para asmulheres que participam dos projetos do MMCé cultivar para o consumo da família, mas semprehá um excedente que pode ser comercializado.Mas como fazer isso, se o mercado exigequantidade?

Então, assim, em 8 de março 2007,houve o lançamento da campanhanacional pela produção de alimentossaudáveis. Nós temos o cartaz aí.Temos aqui. E daí, comocompromisso, nesse ano também nóstivemos uma feira na capital deFlorianópolis, e nós levamos nossoproduto pra distribuir pra comunida-des que a gente visitou naqueleencontro. A primeira feira dadiversidade, em 2008, foi também oquarto congresso estadual do

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movimento. Nessa feira dabiodiversidade, tinha as sementes,tinha produtos da roça, mais as plan-tas medicinais com as suas essências,pomadas, remédios. Tendo dois diasde estudos, e depois uma, um últimodia com a feira então. 2008 depoiscontinuou os ensaios, aqui nós esta-mos com o Grupo Saudades de SãoMiguel do Oeste, ensaios e também...e também como no comecinho nósdávamos uma semente para cadamulher, aqui nós fazíamos ensaios nogrupo de mulheres. Oito, dezmulheres, vinte mulheres (mulheresexpondo a sua prática em forma deapresentação coletiva / maio de 2010).

A maioria dos agricultores que possuemintegração de aves e suínos já não produzem di-versos alimentos que eram cultivados há algunsanos atrás, mesmo os mais básicos como o feijão,o arroz, a batata doce, a batatinha (batata-in-glesa), a cebola, etc. Esses produtos estão entreos que deixaram de ser produzidos porque a ofer-ta deles nos supermercados é regular e, confor-me falaram alguns agricultores, «não compensaplantar porque é mais barato comprar no super-mercado». O plantio de hortaliças também caiumuito entre esses agricultores; diversas varieda-des deixaram de ser cultivadas, restando algumascujas sementes e mudas são encontradas nascooperativas e agropecuárias. Entre as mulheresque não participam do MMC, podem-se encon-trar aquelas que mantêm as sementes crioulasde hortaliças e demais alimentos, sementes queforam guardadas por gerações. No entanto hápoucas mulheres que possuem integrações emsuas propriedades e, ainda assim, mantém tantoas sementes como a prática antiga dostratamentos com ervas seja para as pessoas, sejapara o cuidado dos animais.

Entre os produtos para o próprio consumomais cultivados hoje pelos agricultores estão amandioca, algumas espécies para horta comoradice, alface, cenoura, beterraba. Já o repolho eas diversas variedades de couve não são muitocultivados porque a ocorrência de pulgões é gran-de. Os insetos que atacam os cultivos são outroargumento muito utilizado para justificar o nãoplantio de diversos produtos, especialmente nahorta. Muitos dizem que não adianta plantar«porque os pulgões, as lagartas, ou mesmo os

passarinhos estragam, então fica mais baratocomprar».

Já no MMC, o que ouço é um discurso bemdiferente, como mostram as falas das partici-pantes dos encontros, cursos e oficinas dos quaisparticipei. As camponesas mostraram umalistagem bem extensa dos alimentos que aindacultivavam e dos que voltaram a cultivar pelainiciativa dos projetos do MMC.

Em estudo sobre os alimentos aindaproduzidos para o consumo entre agricultoresgaúchos, Menasche, Wagner & Marques (2007,p. 67) se referem à questão do «tempo» que osagricultores alegam não possuir mais para plan-tar. Conforme relato de uma agricultora entre-vistada por estas autoras, depois que iniciou umplantio de laranjas em maior escala, foi perdendoas sementes dos produtos que antes eramcomuns na propriedade, como o feijão, oamendoim. Também com a saída dos filhos daterra, o trabalho se concentrou no casal, assim,não puderam mais se dedicar ao plantio dessesalimentos.

Da mesma forma como foi constatada umadiminuição da variedade de alimentosproduzidos e consumidos pelos agricultores nooeste de SC, Menasche et al. (2007, p. 75)mostraram que, no Vale do Taquari, no Rio Gran-de do Sul, os agricultores familiares se referirama uma mudança muito grande da alimentaçãode «antigamente» com relação à atual. Confor-me estas autoras, eles foram unânimes ao falarda intensidade destas mudanças, relacionando aalimentação atual como sendo maisindustrializada. «Em geral a produção para oautoconsumo é hoje considerada como sendomuito menor do que a realizada em época ante-rior. Desse modo, muitas respostas apontam nosentido de maior dependência das famílias ruraisem relação à aquisição de alimentos» (Menascheet al., 2007, p. 75).

Zanetti & Menasche (2007, p. 139), em pes-quisa realizada na comunidade de Jacarezinho,Vale do Taquari/RS, mostram que a segurançaalimentar é garantida mais pelas mulheres. Comoa produção de alimentos para o consumo fami-liar é conduzida basicamente pelas mulheres,quando estas deixam de produzir a variedade queeram acostumadas, o consumo destes alimen-tos cai na família. Mulheres mais velhas são asque ainda mantêm a tradição de produzir diver-sos alimentos, já as mais jovens adotaram o há-

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bito de adquirir esses alimentos no mercado. Asrazões apontadas em sua pesquisa sãopraticamente as mesmas apontadas pelas agri-cultoras entrevistadas por mim na região oestede Santa Catarina.

Grisa & Schneider (2008), em levantamentosobre a produção para o autoconsumo entreagricultores gaúchos, constataram que 100%deles ainda produzem alimentos para consumoda família. Essa produção varia conforme omunicípio pesquisado, o grau de integração como mercado, entre outros fatores, mas ela é umaconstante no meio rural. Essa produção permi-te, entre outras coisas, o acesso aos alimentossem intermediações, a produção de alimentosseguindo a tradição cultural da família, e oreconhecimento da qualidade do produto con-sumido. É comum a prática de trocas entrevizinhos, seja de produtos, de mudas para oplantio ou de sementes. Essas práticas foram seperdendo com a intensificação do processo deintegração em muitas comunidades rurais daregião oeste de Santa Catarina, conformemostram os depoimentos das mulheres ligadasao MMC.

Grisa & Schneider (2008) mencionam auto-res como Woortmann e Woortmann (1997) eBrandão (1981, p. 79), que mostram o orgulhoque os camponeses sentem ao afirmar queproduzem seu próprio alimento e que essaprodução é variada e de qualidade. Essasafirmações corroboram os depoimentos dascamponesas do MMC, como este:

Aqui no caso são todas trabalhadoras,que trabalham para produzir alimen-tos. E alimentos só para nós? Alimen-tos para todos. Hoje, na verdade, aagricultura camponesa é responsávelpela produção de quase 80% dos ali-mentos que vão para a mesa dos con-sumidores. Então, esse é o segundoelemento: ser trabalhadorapertencente a uma classe que produzpelo seu trabalho as riquezas e [...] queproduz alimento para as pessoaspoderem viver, nenhum ser vivo vivesem alimento. Então vejam aimportância estratégica doscamponeses e das camponesas. E [...]as mulheres camponesas sãolutadoras, são guerreiras, que daí épróprio da característica de quem faz

parte do movimento, da luta, damilitância (XX Encontro Estadual doMMC – 21 a 23 agosto de 2010).

Na referência a autores como Woortmann& Woortmann (1997) e Brandão (1981), não sedeve deixar de observar que suas publicações têmmais de uma ou até mesmo três décadas e que –deste período até agora – as transformações nocampo foram muitas em relação a essa produçãopara o autoconsumo, conforme constatei emcampo. Estes trabalhos demostram que aprodução para o autoconsumo esteve mais pre-sente nas pequenas propriedades do que agora.

10. CONSIDERAÇÕES FINAISVamos trabalhar em nossapropriedade com o objetivo deproduzir alimentos diversificados paraa família e para a comercialização,buscando a soberania alimentar. Ga-rantir as sementes nas mãos dascamponesas e camponeses éoportunizar possibilidades de vida.Para isso lutamos pelo crédito espe-cial para as mulheres camponesas paraconcretizar o projeto de agriculturaque acreditamos (Cartilha do MMC).

O Movimento de Mulheres Camponesas sereconhece como um movimento social, mas suaspráticas recentes vão além desse movimento maispolítico. O MMC exerce sobre as camponesas afunção de uma organização que libertou asmulheres do papel invisível de trabalhadorasrurais, ao lutar pelos direitos trabalhistas e oreconhecimento da profissão agricultora. Aorganização e a troca de experiências nosencontros, nos cursos, nas assembleias epasseatas fez com que muitas mulheres sereconhecessem como mulheres com direitosiguais aos homens e não mais submissas.

Fica claro, através de diversos depoimentos,como as mulheres se auto definem comocamponesas e como conseguem compor essadefinição mesmo em situações diferentes.Assim, é camponesa a mulher que cultiva semagrotóxicos, porque o modelo de agriculturacamponesa idealizado por elas é agroecológico.Mas não se excluem se, em suas propriedades,seus maridos ainda os utilizem, porque sabemque essa transição é lenta devido aos anos deimposição do mercado sobre aos agricultoresquanto aos insumos a serem utilizados. Écamponesa a mulher que faz regaste de sementes

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AGROALIMENTARIA

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crioulas e busca produzir grande parte dos ali-mentos consumidos na propriedade. Mastambém não se excluem aquelas que possuemintegrações, porque este ainda é «um malnecessário» para muitas famílias se manteremno campo. Para resolver o impasse, classificamdois tipos de agronegócio: o que visa apenas lu-cro (dos grandes produtores, dos monocultivose dos empresários) e o dos agricultores familia-res, que ainda necessitam se manter neste mer-cado para permanecer no campo. É quase comose existisse «um agronegócio do bem e outro domal». Mas mesmo o «do bem» é visto comotransitório, como podendo desaparecer o dia emque outro modelo de desenvolvimento seimpuser.

Este modelo de agricultura camponesaproposto pelo MMC é sustentável; busca aagroecologia, a proteção do meio ambiente (elastiveram formação sobre o Bioma Mata Atlânticapara aprender a preservar e a recuperar áreasdegradadas), e a recuperação não somente devariedades de alimentos como também dealgumas tradições que foram se perdendo com amodernização da agricultura. Quando sereferem a recuperar práticas antigas deixam cla-ro que querem recuperar o que era bom nopassado e não o que era ruim e elas conseguiramsuperar (pelo menos em parte), como opatriarcado.

O projeto de resgate de sementes crioulasde hortaliças permeia diversas esferas, como ada agroecologia, da segurança e da soberania ali-mentar. É importante destacar que essasbandeiras de luta são também as bandeiras daVia Campesina e do Movimento dos PequenosAgricultores, além de movimentos que primampela produção agroecológica e/ou orgânica. Oresgate de sementes crioulas de hortaliças e deoutros alimentos pode também ser percebidocomo um modo de recampesinização, confor-me coloca Ploeg (2006, p. 47). Não é um retor-no ao passado, mas uma «reconstituição derelações e elementos (velhos e novos, materiaise simbólicos) que ajudam a encarar o mundomoderno (...) de forma mais adequada eatrativa». E ainda se levando em conta as noçõesde campesinato construídas pelo MMC, esse tipode resgate de sementes faz dessas mulheres legí-timas camponesas.

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Valdete, Boni

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