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“Como se de ventre livre tivesse nascido”: algumas considerações sobre alforrias
de mulheres e de suas filhas e seus filhos na região de Feira de Santana, Bahia,
1871-18851
Por: Karine Teixeira Damasceno2
Introdução
Neste texto buscamos tecer algumas considerações sobre a movimentação
das mulheres escravas, libertas e livres para conquistar a própria liberdade e, muitas
vezes, das suas filhas e filhos entre os anos de 1871 e 1885, na região de Feira de
Santana, período em que o governo imperial conduzia o país rumo a uma gradual
abolição da escravidão. As mulheres que investigamos eram a maioria das pessoas
alforriadas e não estavam alheias às preocupações dos proprietários, dos escravizados e
das autoridades, por isso, parece-nos relevante situá-las dentro deste contexto de
conquistas e, ao mesmo tempo, de incertezas, sem perder de vista que seus projetos de
liberdade, muitas vezes, foram construídos a muitas mãos. Para tanto, as cartas de
liberdade conquistadas por elas se constituiu como uma documentação de importância
singular, pois abriu uma janela tanto para que possamos traçar o perfil dessas mulheres
quanto para que possamos conhecer algumas especificidades da escravidão feminina e
entender como elas as acionaram na luta por liberdade naqueles anos.
Cartas de alforrias
O desafio de reconstituir a experiência de sujeitos sociais que não escreveram a
próprio punho as informações sobre suas vidas, como as mulheres negras – escravas,
libertas e livres – que tiveram suas vidas entrelaçadas à região de Feira de Santana entre
1 Trabalho para Avaliação final da Disciplina Resistência Escrava nas Américas. Ministrada pela
Professora Doutora Iacy Maia Mata. Entregue em 15 de julho de 2015. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, UFBA.
Turma 2015.
2
os anos de 1871 e 1885, exige de nós o esforço de garimpar em busca dos vestígios
sobre suas vidas.3 Por entendermos que o esforço de reconstituir o passado dessas
mulheres necessariamente, implica no estudo sobre os homens que vivenciavam o
mesmo contexto de escravidão e de luta pela liberdade, tentamos, ao longo desse estudo,
encontrar informações sobre aspectos da experiência das mulheres e dos homens
escravos e, sempre que possível, fazer emergir as aproximações e diferenciações
existentes no interior desses grupos, sem deixar de atentar para o contexto em que estes
documentos foram produzidos4.
Sob esta perspectiva, considerando as 390 “cartas de liberdade” de Feira de Santana
do período, constatamos que dentre os alforriados, havia uma porcentagem de 250
mulheres (64,1%) e 140 homens (35,9 %) – predominância feminina que podemos
constatar, inclusive, considerando o universo específico de africanas e de africanos que,
por sua vez, chegaram à porcentagem de 16 mulheres (4,1%) e 13 homens (2,8%)
3SEYFERTH, Giralda. “Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização”. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org). Raça, ciência e
sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996, p. 41-43. De acordo com esta autora a ideia de raça
dominou o pensamento social em muitos lugares, inclusive no Brasil, onde ainda obteve o respaldo da
ciência, por isso, com este estudo buscaremos indagar a documentação no tocante noção de raça no Brasil
do século XIX. Para tanto nos interessa conhecer as aproximações e diferenciações apresentadas em
outros lugares do mundo atlântico. Nesse sentido, identificamos algumas reflexões interessantes em:
ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009; GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla
consciência. São Paulo: Editora 34/Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos
Afro-Asiáticos, 2001; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo:
Editora 34, 2002; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo:
Editora 34, 2002. MATA, Iacy Maia. Conspirações da ‘Raça de Cor’: escravidão, liberdade e tensões
raciais em Santiago de Cuba (1864-1881). Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, 2012; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.
17 e SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: Uma odisseia atlântica na era da
emancipação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. 4 SCOTT, Joan Wallach. Prefácio“a gender and politics of history”.In: Cadernos Pagu– Núcleo de Estudos
de Gênero/UNICAMP, Campinas, n. 3, 1994; SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para a análise
histórica”. Campinas, http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/generodh/gen_categoria.html. Acesso em:
10 de julho de 2016 e CUNHA, Maria Clementina da Cunha. “De historiadoras, brasileiras e
escandinavas: loucuras, folias e relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX)”. In. Tempo,
Rio de Janeiro, vol. 3, 1988.
3
alforriados neste período5. Assim, interessa-nos saber quais eram as especificidades da
escravidão feminina e de que forma as mesmas influenciaram nas condições destas
mulheres e suas filhas e filhos na conquista da liberdade.
A documentação privilegiada para estas reflexões, as cartas de alforrias, nos deixam
ver fragmentos da trajetória de personagens como Maria, escrava de Dona Maria Roza
de São José, moradora da Fazenda Capoeira, em Feira de Santana, que recebeu a
liberdade condicional em 3 de dezembro de 1861, sob a condição de servir a sua
senhora até o fim da vida da mesma6. Outras revelam a experiência bem sucedida de
conquista da liberdade vivenciada por mulheres como Maria Lourença, crioula, 22 anos,
que, ao pagar 600$000 réis, recebeu a alforria concedida por sua proprietária Dona
Guilhermina Angélica do Nascimento Ferreira em 26 de maio de 18767; e também, a de
Benedicta, africana que, ao pagar 100$000 réis, recebeu a alforria de seu senhor
Quintiliano Jesus Marques, naquele mesmo ano8.
As ex-escravizadas citadas, assim como outras tantas que encontramos, dentro de
sua pequena margem de escolhas, resolveram investir nas estratégias de negociar o
direito à liberdade diretamente com seus proprietários, como denunciam expressões do
tipo “aos bons serviços prestados”, bastante comuns nestes documentos. Ao que parece,
estas mulheres sabiam que era preciso convencer seus proprietários de que mereciam a
liberdade e, provavelmente, levavam um longo período investindo nesta negociação até
conseguirem, enfim, serem declaradas “como se de ventre livre tivesse nascido”9 e, em
5 Uma referência importante sobre alforria de africanas: FARIA, Sheila de Castro. “Damas mercadoras: as
pretas minas no Rio de Janeiro (século XVIII-1850)”. In:SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Rotas
atlânticas da diáspora do Benim ao Rio de Janeiro, Niterói: EDUFF, 2007, p. 101-132. 6 Carta de Liberdade de Maria, Feira de Santana – CEDOC/UEFS. 3 de dezembro de 1861. Registro n.
842. 7 Carta de Liberdade da escrava Maria Lourença, Feira de Santana – CEDOC/UEFS. Maio de 1876.
Registro n. 210. 8 Carta de Liberdade da escrava Benedicta, Feira de Santana – CEDOC/UEFS. 1876. Registro n. 842. 9 Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana (AAFA). Livro de Batismo, n. 4-B, 1866. Registro n. 165.
Sobre tipos de alforrias ver: ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforria em Rio de Contas – Bahia,
século XIX, Dissertação de Mestrado, UFBA, Salvador, 2006. p. 109-110. PIRES, Maria de Fátima
Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos sertions de sima- BA (1860-1929). São
Paulo Annablume, 2009. p. 66-90.
4
muitos, casos, garantindo também a liberdade de suas filhas e filhos, como podemos
depreender das cartas de alforrias.
Além das mulheres constituírem a maioria da população escrava alforriada,
constatamos que entre 1871 a 1880, 139 de mulheres (57,2%) e 70 de homens (28,8%)
foram alforriados, ou seja, neste período houve um aumento dos alforriados em Feira de
Santana. Sendo que, no tocante aos dados da década de 1880, período mais próximo à
Abolição, só encontramos registros referente aos primeiros cinco anos, isto é, dos anos
de 1881-1885, nos quais podemos constatar que apenas 17 mulheres (6,9%) e 17
homens (6,9%) foram alforriados10.
Estes dados não podem ser analisados sem levar em consideração que, na segunda
metade do século XIX, o governo imperial vinha adotando uma série de leis
emancipacionistas como a, de 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que pôs fim ao tráfico de
escravizados no país. Havemos de lembrar que na década 1860, juntamente com a
Espanha que tinha escravizados em duas colônias, Cuba e Porto Rico, o Brasil era um
dos últimos baluartes da escravidão na América.11 A despeito das continuidades,
mudanças e conflitos entre os antigos escravizados e seus antigos proprietários, os
Estados Unidos, por exemplo, deixaram o Mundo Atlântico atordoado nesse período,
uma vez que, em nenhum outro país, os libertos conseguiram conquistar tão
rapidamente direitos políticos integrais e poder.12 Ou seja, foi em um contexto de
pressões internas e externas crescente para o fim da escravidão que a Lei de 28 de
10 Para ver uma sobre as alforrias e o tráfico interprovincial de escravos ver: PIRES, Maria de Fátima
Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforria nos sertões de sima – BA (1860-1920), São
Paulo: Annablume, 2009. p. 33-95; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história
dasúltimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia da Letras, 2003. 11 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 141. 12 FONER, Eric. FONER, Eric. Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado. Rio de
Janeiro/Brasília: Paz e Terra/CNPq, 1988, p. 73-124. Ver também: SCOTT, Rebecca J. &
HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: Uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2014. p. 169-190. Esta obra trás uma discursão interessante sobre a
Constituição da Luisiana de 1868, uma das mais revolucionárias do período pós-guerracivil dos
Estados Unidos aprovou o fim das barreiras legais para o casamento entre pessoas negras e brancas,
garantiu “direitos públicos” em questões de transporte, entretenimento e alojamento público, além da
proibição de colégios públicos separados por raça. Ou seja, interferiu para a redução de restrições às
“pessoas de cor” em Luisiana.
5
setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre, proibiu a escravidão das crianças que
nascessem a partir daquela data, e ao mesmo tempo, proibiu a revogação da alforria, a
separação de famílias escravas, aprovou o direito a pecúlio para os escravos e da alforria
a revelia da vontade dos senhores.13 Como ressaltou Sidney Chalhoub, trata-se de um
momento de grande preocupação da elite senhorial e seus representantes no governo que
se viam diante da eminência do fim da escravidão no Brasil, e, certamente na região de
Feira de Santana não foi diferente. Desse modo, enquanto subalternizadas as mulheres
que buscamos souberam usar esse contexto de acordo com os seus interesses no
processo de negociação com seus proprietários e, algumas vezes, foram bem sucedidas.·.
Certamente a tentativa de conseguir a manumissão amigavelmente era o
primeiro investimento das escravizadas e apenas no caso deste longo investimento não
ser bem sucedido, optavam em levar suas demandas à justiça. Conforme Maria Eugenia
Chaves, em Guayaquil, ainda no fim do período colonial, muitas mulheres levaram suas
demandas de liberdade à justiça utilizando em seus discursos elementos como honra,
raça, gênero e posse. Para elas conhecer as regras do jogo judicial e construir uma
ampla rede de apoio foi fundamental para a construção de um argumento legal de
liberdade.14
Do mesmo modo, Camilla Cowling analisando as similaridades entre as
concepções de liberdade entre Havana e Rio de Janeiro constatou que muitas mulheres
escravizadas moveram ações de liberdade contra seus senhores usando argumentos
como a de maternidade e da piedade, isto é, ao mesmo tempo em que elas lançaram mão
de preocupações da sociedade escravistas próprias do século XIX, elas se apropriaram
13 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. Para ver uma discussão interessante sobre as pressões britânicas para o fim do tráfico e
sobre as ações de liberdade de africanos consultar: MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. “O direito de ser
africano livre: os escravos e as interpretações da lei de 1831”. In. LARA, Silvia Hunold e
MEDONÇA, Joseli Maria Nunes (Orgs.) Direitos e Justiça no Brasil Ensaios de história social.
Campinas: Editora da Unicamp, 2006. 14 CHAVES, María Eugenia Chaves. Honor y libertad: Discursos y recursos enlaestrategia de libertad
de una mujeresclava (Guayaquil a fines delperiod colonial). Gotemburgo: Departamento de Historia e
Instituto Iberoamericano de laUniversidad de Gobemburgo, 2001, p. 33-34 e p. 217.
6
das leis de diferentes maneires ao acionar a justiça reivindicando a liberdade.15 Com
efeito, ao que parece em diferentes lugares do atlântico as mulheres escravizadas e seus
aliados traçaram estratégias de liberdade usando de acordo com seus interesses o
cenário político, econômico e social.
De acordo com a bibliografia sobre o tema, a predominância das mulheres entre
os alforriados, muitas vezes, fez parte de uma estratégia coletiva adotada pelos
integrantes da vasta rede de solidariedade que se empenhava para a concretização dos
projetos de liberdade escrava para os quais libertar as mulheres constituía uma
prioridade. Dentre as razões apresentadas para este fenômeno, os historiadores indicam
que o preço das mulheres era menor em relação aos homens, o que facilitava não só a
compra da alforria, mas, também, a possibilidade de o senhor adquirir outra escrava;
além disto, alforriar as mulheres significava liberar o ventre. Leve-se ainda em
consideração, as possíveis relações construídas por elas com as senhoras e os
senhores16.
Ao nos voltarmos para as cartas de alforrias das crianças depreendemos que, a
única referência à família das mesmas diz respeito a suas mães, geralmente escravas.
Em 9 de julho de 1873, por exemplo, ao conferir a liberdade a um escravo, Dona Maria
Carolina de São Boaventura Lima, afirmou que o “pardinho Theodorio”, de “ idade de
três” anos era “filho” de sua “escrava crioula”, “do serviço da lavoura”17. Da mesma
forma, em 2 de maio de 1876, Dona Senhorinha Maria de Jesus, também não deixou de
trazer algumas informações ao declarar “forra” e “liberta” sob a condição de
acompanhá-la enquanto viva for” a menina “Genovena”, de “idade de dois anos”,
“parda” e “filha” de sua “escrava Francisca” que, por sua vez, era “parda escura”18.
15 COWLING, Camillia.Conceiving freedom.Women of color, gener, and the abolition of slavery in
Havana and Rio de Janeiro.Chapel Hill: The Universityof North Carolina Press, 2013, p. 72. 16 ALMEIDA, Kátia Lorena N. Alforria em Rio de Contas.p. 105-113. NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro.
E as mulheres da terra de Lucas? quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas – Feira de
Santana, 1850-1888. Monografia de Graduação, UEFS, Feira de Santana, 2009, p. 53-55. 17 64 – Theodorio – Cópia. Feira, nove de julho de 1887. 18 212 – Cópia da carta de liberdade daescrava Genoveva conferida por sua senhora D. Senhorinha Maria
de Jesus, como abaixo se declara. Em 2 de maio de 1876.
7
Nesse sentido, a agência das mulheres negras foi observada por Cecilia Moreira
Soares que, ao estudá-las no contexto baiano – ao longo do século XIX –, concluiu que
elas tinham um grande poder mobilizador para libertar os filhos ainda escravos19.
Marcelo Paixão e Flavio Gomes, ao estabelecer uma comparação entre Caribe, Estados
Unidos e Brasil, concluiriam que uma das bases do poder das mulheres verificava-se na
manutenção da família negra,
“Na tentativa de impedir que filhos e esposos fossem vendidos
separadamente, recusavam-se a trabalhar e ameaçavam os senhores
com o suicídio e o infanticídio. Fazendeiros temiam em especial
envenenamento que poderiam ser praticados por mucamas. Em um
mundo cercado de opressão, tais mulheres construíam ambientes de
autoestima e se tornavam decisivas, por exemplo, para viabilizar fugas
ou obter informações a respeito de vendas e transferências
indesejáveis. Muitas delas prestavam auxílio àqueles interessados em
escapar, além de providenciar suprimentos aos escravos em fuga.
Ajudando a manter a integridade dos arranjos familiares, assim como
a riqueza e a originalidade da cultura forjada em torno deles, elas
foram os principais agentes da emancipação das comunidades
afrodescendentes na Diáspora”20.
Conforme, as conclusões dos autores, na luta por melhores condições de vida
para os seus, as mulheres negras assumiam um papel fundamental. Por sua vez, Isabel
Cristina Ferreira Reis afirma que, mesmo diante dos riscos e incertezas das fugas, as
mulheres negras optavam por não deixar para trás seus filhos pequenos21. No entanto,
ela nos alerta que, embora no discurso senhorial, na família escrava somente havia mãe,
filhos e irmãos; e a condição da mãe definia o estatuto jurídico dos filhos isso não
significa dizer que o pai estivesse ausente da vida da criança escrava22. Olhando para
lados diferentes do atlântico, Camilla Cowling soma para essa discussão ressaltando que
19 SOARES, Cecilia Moreira. Mulher negra na Bahia no século XIX. Dissertação de Mestrado, UFBA,
Salvador, 1994. p. 42. 20 GOMES, Flavio; PAIXÃO, Marcelo. “Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas
sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação”. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana
Barreto; GOMES, Flavia (Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São
Paulo: Selo Negro, 2012. p. 298. 21 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio, e consta que já tem dous filhos”: fuga e
família entre escravos na Bahia. In: Afro-Ásia, Salvador: 1999. p. 27-46. 22 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “Uma negra que fugio, e consta que já tem dous filhos”. p. 42-43.
8
a despeito da invisibilidade na documentação sobre a presença dos pais na vida dos
filhos, muitas mulheres e homens escravizados viveram, trabalharam e constituíram
família juntos, ou seja, muitos pais amaram, nutriram e ajudaram a comprar a
manumissão de suas crianças.23 Por certo que também em Feira de Santana muitos dos
aliados das mulheres que investigamos ocupavam esse lugar em suas vidas e na das
crianças alforriadas junto com elas.
A luta pela conquista de liberdade travada por essas mulheres era um
projeto que exigia o esforço de várias pessoas. Além disso, essa rede solidariedade era
tão fundamental tanto para a conquista da liberdade quanto para construção de uma vida
no mundo dos livres, especialmente levando em consideração que, ter a posse da carta
de liberdade não significava estar livre de ter que provar a liberdade recorrentemente
sua condição de livre, ou seja, o esforço para livrar-se das marcas do cativeiro, e
notadamente de suas restrições, na maior parte das vezes, acompanharia as libertas e os
seus ao longo da vida como nos deixa ver Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard ao seguir
mais de um século o itinerário transatlântico da família da africana Rosalie.24
Nesse sentido, Maria Inês Côrtes de Oliveira e Robert Slenes contribuíram,
sobremaneira, para a construção do conhecimento sobre as famílias conjugais, extensas
e intergeracionais de escravos e, notadamente, sua importância para a preservação da
identidade cultural e conquista da liberdade de seus membros25. Segundo estes autores,
trata-se de laços familiares que extrapolavam os vínculos consanguíneos entre pessoas
de estatutos jurídicos diferentes, por isso mesmo, para compreender estas relações
familiares tão complexas no Recôncavo Baiano, na segunda metade do século XIX,
Reis propõe o conceito de família negra26. Ao olharmos para as cartas de alforrias de
23 COWLING, Camillia.Conceiving freedom.Women of color, gener, and the abolition of slavery in
Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013, p. 54. 24 SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: Uma odisseiaatlânticana era da
emancipação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. 25 OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto, seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988;
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da famíliaescrava,
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 14-201. 26 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de
Doutorado, UNICAMP, Campinas, 2007. p. 19.
9
mulheres da região de Feira de Santana, notamos que elas não lutavam pela liberdade
sozinhas e, muito menos queriam construir o ambicioso projeto de liberdade sem os
seus.
Considerações finais
As “cartas de liberdade” constituem-se como fonte fundamental, para que
possamos abrir uma janela para o complexo mundo das mulheres negras alforriadas na
região de Feira de Santana, entre os anos 1871 e 1885. Contudo, considerando as
especificidades de sua experiência, acreditamos que o cruzamento de uma
documentação eclesiástica – assentos de batismo e de casamentos, assim como outros
documentos cartoriais como – registros de compra e venda de escravos, e ainda,
documentos judiciais – ações de liberdade e processos crimes – são de grande
importância para a reconstituição do passado de nossas protagonistas.
Em suma, além da conquista da carta de liberdade em si, outras informações
como “nome”, “idade”, “cor”, “origem”, “ocupação”, “preço” e “tipo de liberdade (sem
condição/condicional)”, bem como todo o protocolo que constitui este tipo de
documento são fundamentais, para que possamos descortinar o passado de mulheres
negras nas últimas décadas da escravidão e, ao mesmo tempo, situar suas escolhas
individuais e coletivas dentro de um contexto mais geral.
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