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Análise marxista das jornadas de junho/ julho que tomaram as ruas do Brasil. É apontado que a esquerda organizada precisa se renovar, a nível de teoria e de métodos (inclusive com a utilização do ciberativismo) para poder influenciar ideologicamente essas massas, cujo um dos elementos centrais é um novo proletariado (parcialmente vinculado ao ramo da tecnologia), resultado da modernização capitalista vivida na última década de governo PT/PMDB e também de suas contradições.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, Edição Especial, 2013
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Decifra-me ou devoro-te
As jornadas de junho/julho e a luta de classes no Brasil contemporâneo
Diego Grossi1
Os filósofos até hoje se preocuparam em interpretar o mundo, mas o que importa é
transformá-lo.
Karl Marx
Inovar no método e sempre que falhar, tentar outro.
Lenin
Introdução
O objetivo do presente trabalho é discutir o caráter histórico das jornadas de
junho/ julho, situando não só as mobilizações em si, mas também os agentes
envolvidos, no quadro geral do desenvolvimento econômico de caráter capitalista
ocorrido no país na última década, assim como, tendo noção de que vivemos um
processo ainda em curso, contribuir para que o fenômeno traga saldos positivos ao povo
brasileiro em longo prazo (o que torna fundamental uma renovação crítica das
organizações de esquerda).
As manifestações que vêm ocorrendo em todo o Brasil nos últimos anos
atingiram o ápice nos meses de junho e julho de 2013. Sua origem mais aparente foi a
campanha contra o aumento no preço das passagens do transporte público em São
Paulo, em que, diante da repressão policial e da divulgação através da internet
(principalmente o Facebook) a adesão popular aumentou rapidamente no município e
serviu de estímulo para que outras localidades se sublevassem (ou voltassem às ruas
1 Diego Grossi é professor de História da rede pública de Magé-RJ e especialista em História do Brasil
Contemporâneo (Unesa). E-mail: [email protected]
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com mais força, como no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, nos quais havia uma
série de processos reivindicatórios em curso).
A ampla cobertura da mídia tradicional e os aspectos ideológicos dos
propagandistas das mídias digitais (principalmente os perfis anonymous) fizeram com
que as reivindicações fossem metamorfoseadas rapidamente, o que mobilizou setores
com anseios diversos e até mesmo contraditórios. Ensaiando uma forte guinada à
direita, as passeatas passaram a repudiar organizações tradicionalmente envolvidas com
as lutas de massa, como os partidos de esquerda e os sindicatos, pegando de surpresa a
militância desses movimentos (alguns chegaram a ficar feridos por conta de ataques
físicos), que também foram às ruas de maneira unificada em julho para colocar em
pauta reivindicações históricas da classe trabalhadora, como a redução da jornada de
trabalho para 40 horas semanais.
Quando a onda de protestos espontâneos já entrava em declínio no Brasil, o Rio
de Janeiro foi palco de uma nova reorientação ideológica, dessa vez para a esquerda, em
que a Rede Globo de Televisão se tornou o alvo principal dos protestos, junto do
governador Sérgio Cabral (confrontado com grande força desde o início do processo).
Inseridas no quadro de modernização capitalista pela qual o Brasil vem passando
com o governo do PT, as jornadas desnudam todas as contradições desse processo,
inclusive a incapacidade das organizações tradicionais da esquerda de oferecerem
alternativas reais aos anseios das massas nesse início de século XXI, colocando como
desafio a inovação da teoria e da prática. Nesse sentido vale a pena resgatar as
contribuições teóricas daqueles que estiveram a frente dos grandes processos
revolucionários do século XX, como Lenin e Mao Tsé-Tung.
1. Brasileiros e brasileiras ocupam as ruas
Os protestos que ganharam as ruas de todo o Brasil em junho e julho foram o
coroamento do acirramento da luta de classes no país, fenômeno que já vinha dando
sinais há algum tempo. Em 2012, de acordo com o Dieese (Departamento Intersindical
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de Estatística e Estudos Socioeconômicos)2, o número de greves cresceu 58%
(comparado com 2011), totalizando 873 paralisações, sendo 461 na esfera privada e 409
na esfera pública. Os trabalhadores do ramo industrial e os funcionários públicos
municipais foram os principais agentes desse processo (330 e 227 greves
respectivamente). 75% das mobilizações obtiveram sucesso. No Rio de Janeiro, um bom
exemplo ainda está em curso, no qual, desde o ano passado, estudantes e funcionários
da Universidade Gama Filho vêm promovendo uma série de atividades3 contra o
aumento das mensalidades e por melhores condições de trabalho, incluindo greves e
ocupações da reitoria e do prédio da mantenedora, algo inédito no movimento
estudantil nacional. Logo, o grande diferencial adicionado pelas massas no meio deste
ano foi, além do elevado número de pessoas nas ruas (que no dia 20 de junho chegou a
mais de meio milhão em todo o Brasil4), certa unidade pragmática e a solidariedade
entre os movimentos. Por mais que, em cada localidade, pautas diversas fossem
levantadas por diferentes setores sociais, havia um sentimento em comum que cobrava
dos governantes posturas éticas e competência diante dos serviços públicos mais
básicos, como transporte, saúde e educação.
Os protestos que se iniciaram contra o aumento das tarifas do transporte público
sofreram ampla cobertura dos meios digitais. A repressão policial só aumentou a
indignação e a solidariedade coletiva levando um contingente ainda maior de pessoas às
ruas que passaram a pautar determinadas bandeiras que já vinham crescendo no senso
comum há algum tempo. A questão ética tornou-se o principal eixo aglutinador
tornando comum a presença de gritos de guerra contra a corrupção, exaltando a figura
de Joaquim Barbosa5 e criticando a PEC 376. Os gastos com a Copa do Mundo também
estiveram em pauta.
2 "Número de greves no ano de 2012 foi o maior desde 1997, aponta o Dieese" <http://www.brasildefato.com.br/node/13006> Acesso em 30 de julho de 2013 3 O blog da União Estadual dos Estudantes - RJ oferece uma série de matérias sobre o tema <http://ueerio.blogspot.com.br> Acesso em 30 de julho de 2013 4 Só no Rio de Janeiro foram 300 mil, já em São Paulo, 100 mil. 5 Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) que ganhou destaque na grande mídia por ser o principal
elemento no julgamento dos acusados pelo “Mensalão”, suposto esquema de compra de parlamentares ocorrido durante o primeiro governo de Lula.
6 Proposta de Emenda Constitucional que tirava do Ministério Público o poder de investigação criminal. Com os protestos a mesma foi rejeitada por ampla maioria de votos na Câmara dos Deputados.
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A onda de lutas que já vinham sendo promovidas em locais diversos e por
motivos variados, inclusive as atividades mais radicais de grupos feministas, como as
Femen, criou condições subjetivas para a legitimação dos protestos enquanto exercício
da cidadania. Assim, os problemas presentes no imaginário dos brasileiros tomaram as
ruas ao serem canalizados pelo clima criado7 com a Copa das Confederações, prelúdio da
Copa do Mundo, em que os questionamentos morais sobre os gastos públicos levaram
logicamente às críticas aos demais problemas relacionados à corrupção. A própria forma
das manifestações, assim como seus símbolos e palavras de ordem retratam uma relação
direta entre a subjetividade popular e os costumes tradicionalmente relacionados à
própria Copa do Mundo, como desfiles em massa com a bandeira e as cores do Brasil, o
canto do hino nacional, etc.
Inicialmente, quando o foco ainda era a questão do preço da passagem, a
cobertura da mídia seguiu o padrão de boicote geral com pequenas exceções para as
difamações, porém a contra-informação dos meios alternativos e a legitimidade
alcançada pelos protestos locais hegemonizaram a percepção popular, fazendo, como já
foi dito, com que a adesão aos protestos crescesse8. Diante da nova conjuntura os
grandes meios de comunicação adotam uma estratégia diferente, não só dando grande
cobertura aos atos, mas também insuflando as idéias direitistas que já vinham
implantando no senso comum há tempos, colocando em atividade um público com
perfil mais conservador.
O caráter ideológico diluído num patriotismo confuso e em questões abstratas
sobre a corrupção, assim como tal postura da mídia, facilitou a infiltração de setores
declaradamente direitistas, como gangues neofascistas9. Sob a alegação de que a
população ali manifesta era apartidária (na prática antipartidária), sem ideologia (“nem
7 A visibilidade mundial da visita do papa contribuiu para a continuidade desse clima de manifestações no
Rio de Janeiro após a primeira fase de ascensão, pois manteve na subjetividade das massas um momento concreto compartilhado e conhecido por todos e, por isso, palco propício para as demonstrações públicas de indignação.
8 Numa pesquisa com claros intuitos difamatórios realizada por Datena no programa Brasil Urgente, da Band, o apresentador ficou numa situação complicada com a insistência popular em apoiar os protestos que estavam ocorrendo. O vídeo com o momento encontra-se no Youtube (http://www.youtube.com/watch?v=A_DmLsVUr9I)
9 “Ex-integralista denuncia ação de grupos de extrema direita contra militantes de esquerda” <http://www.pco.org.br/nacional/ex--integralista-denuncia-acao-de-grupos-de-extrema-direita-
contra-militantes-de-esquerda-/aiob,a.html> Acesso em 30 de julho de 2013
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de esquerda e nem de direita”) e cuja única bandeira seria a do Brasil, vários militantes
políticos e organizações de esquerda foram atacados e expulsos dos atos. O MPL
(Movimento Passe-Livre), que havia dado início às lutas em São Paulo, se retira
publicamente das manifestações por conta da guinada à direita10. Muito difuso, sem
direção e tendo possivelmente boa parte dos manifestantes cansados pelo ritmo intenso
das passeatas, no final de junho os protestos espontâneos diminuíram bruscamente.
Os que permaneceram nas ruas, mesmo em menor número, assumem objetivos
mais claros. Com a adesão em massa aos protestos contra a TV Globo no Rio, iniciados
por militantes de organizações políticas populares, as mobilizações reencontram-se com
uma perspectiva de esquerda, ainda que diluída e não dirigida por qualquer entidade.
Nos resquícios das passeatas de junho, em julho passam a ser alvos, além da TV Globo,
o governador de SP, Geraldo Alckmin, e o conservadorismo da Igreja Católica por conta
da Jornada Mundial de Juventude, além da continuidade aos ataques contra o
governador Sérgio Cabral no RJ.11
2. Organização, agitação e propaganda através do ciberativismo
O mais próximo de uma direção que essa primeira onda de protestos teve foi, sem
dúvida, o movimento ciberativista Anonymous. Possuindo origens distintas e
funcionando de forma descentralizada, os milhares de anonymous espalhados pelo
mundo inserem-se num contexto global de virtualização de diversas funções da
sociedade, como o comércio, a troca de informações e os relacionamentos pessoais.
Nesse processo foram surgindo especialistas autodidatas em informática que passaram
a utilizar a internet como forma de concretizar algum desejo por essa nova via. Entre
esses especialistas alguns se dedicaram a quebrar as leis tanto para o banditismo
comum (com o roubo de recursos financeiros ou informações), como para o protesto
social, oferecendo alternativas às censuras impostas pelos governos e grandes meios de
comunicação. A popularização da internet e o paralelo surgimento dos blogs e redes
10 "MPL se retira de protesto para evitar ser confundido com direita" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=8&id_noticia=216734> Acesso em 30 de julho de
2013 11 "RJ: manifestantes voltam a protestar em frente à casa de Cabral" <http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/rj-manifestantes-voltam-a-protestar-em-frente-a-casa-de-
cabral,7918d5a9b2720410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html> Acesso em 30 de julho de 2013
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sociais permitiram que esse ciberativismo passasse a ser compartilhado também por
pessoas leigas em informática.
Os anonymous12 ganham força justamente por conseguirem inserir numa
estratégia global de ação diversos indivíduos distintos, com habilidades por vezes
díspares, mas com certa afinidade ideológica e/ou pragmática. Na primeira década do
século XX algumas pessoas se mobilizaram na internet e saíram às ruas nos EUA para
protestarem contra questões pontuais de caráter religioso, muitos deles usavam as
máscaras do personagem V de Vingança13. A identificação da rebeldia hacker com o
herói anarquista ultrapassou a América do Norte e passou a ser o elo entre diversos
ciberativistas pelo mundo, principalmente com a campanha global contra as leis de
controle draconiano da internet e em defesa de Julian Assange, fundador da Wikileaks.
No geral os anonymous não se identificam enquanto entidade, mas na prática
funcionam como células que se organizam virtualmente sem qualquer tipo de comando
oficial, porém com certa unidade ideológica por conta da identificação simbólica (a
máscara do V14) e pragmática (defesa irrestrita da liberdade de expressão, do uso da
internet para compartilhamento de informações, certa inclinação ao anarquismo, etc.),
constituindo núcleos que acabam por irradiar suas bandeiras através de simpatizantes
menos familiarizados com as atividades clandestinas do movimento (como invasão e
derrubada de sites)15.
O próprio caso Assange16 demonstra a importância que o ciberativismo vem
ganhando enquanto manifestação da luta de classes em todo o planeta, pois em alguns
poucos anos conseguiu fazer do seu site Wikileaks um ponto de referência para a
divulgação de informações escondidas por diversos governos17.
12 Perfil no Facebook <https://www.facebook.com/AnonymousBr4sil?fref=ts> Site de outra célula <http://www.anonymousbrasil.com> 13 Herói dos gibis criado por Alan Moore na década de 1980, cujo cenário é uma Inglaterra fictícia em que
V é um anarquista que luta contra o governo de inspiração fascista. Ficou muito famoso por conta do filme lançado nos anos 2000.
14 A máscara do V, por sua vez, é baseada em Guy Fowkes, um rebelde real que tentou explodir o parlamento inglês no século XVI.
15 "Confira o mapeamento da difusão na internet nas primeiras manifestações" <http://revistaforum.com.br/blog/2013/06/mapeamento> Acesso em 30 de julho de 2013 16 Perseguido pelas atividades da Wikileaks, Assange foi vítima de uma falsa acusação de estupro na
Inglaterra, mas conseguiu fugir e se refugiar na embaixada do Equador. 17 Sobre Wikileaks e Bradley Manning conferir em: <http://www.brasildefato.com.br/node/14859> Acesso em 30 de julho de 2013
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A importância logística da internet é reconhecida até mesmo pelas práticas de
diversos governos18, como o chinês que possui um exército oficial de hackers treinados.
O imperialismo estadunidense chegou a criar um vírus especialmente voltado para
sabotar o programa nuclear iraniano, além de montar uma rede de espionagem global,
conforme relatado recentemente pelo ex-agente dos serviços secretos estadunidenses,
Edward Snowden19. O próprio Facebook foi acusado de ser uma armadilha utilizada pela
espionagem dos EUA.
Sendo ou não arma propositalmente criada, o fato é que o Facebook (e
anteriormente o Twitter) vem servindo de meio para organização, agitação e
propaganda de diversos movimentos sociais em todo o mundo, ganhando muito
destaque durante a chamada “Primavera Árabe”20. No Brasil as principais páginas
identificadas como Anonymous vinham sendo muito bem recebidas há algum tempo21,
promovendo ataques contra sites de governos e empresas, além de fornecer tutoriais
sobre técnicas de ciberativismo. Ideologicamente divulgavam tanto as lutas de
anonymous de outros países como vinham colocando em pauta as questões éticas da
política nacional (que ganharam as ruas de fato em junho), atacando governos de
diversas linhas sem se comprometer com nenhuma, por mais que a maioria das críticas
se dirigisse contra o PT (Partidos dos Trabalhadores).
Algumas convocações para manifestações já vinham sendo feitas pelos perfis
anonymous há tempos, mas nenhuma obteve adesão significativa. Apesar da influência
ideológica não havia real capacidade orgânica de mobilização. Porém, muitos que
passaram a ocupar as ruas em junho já estavam ideologicamente influenciados pelo
ciberativismo e tinham no Anonymous uma referência (o grande número de máscaras
18 "Hackers do exército chinês: a ponta do iceberg na guerra cibernética" <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1241054-hackers-do-exercito-chines-a-ponta-do-iceberg-
na-guerra-cibernetica.shtml> Acesso em 30 de julho de 2013 19 "Caso Snowden expõe falhas de segurança na internet do Brasil" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=219109&id_secao=9> Acesso em 30 de julho de
2013 20 Que de primavera até agora não teve nada, servindo apenas para consolidar os interesses imperialistas
no Oriente Médio. É importante lembrar que há um equívoco na percepção do papel cumprido pela internet nesses
processos, pois em nenhum momento ela foi a causa para qualquer rebelião, servindo apenas como meio, uma ferramenta para que as pessoas descontentes com determinada situação real pudessem romper o controle do governos sobre os meios de comunicação.
21 A principal página no Facebook, hoje, é curtida por mais de um milhão de pessoas.
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do V nas manifestações ilustra bem o quadro), o que foi facilitado pela ausência de uma
direção reconhecida em grande parte dos protestos.
3. Ofensiva das centrais sindicais
Inicialmente rechaçado dos atos, o movimento sindical tenta se reorganizar e
assumir a direção da luta de classes no Brasil, demarcando com as manifestações
espontâneas e convocando atividades paralelas próprias. Mesmo unificadas, as centrais
não conseguem obter os mesmos impactos do movimento espontâneo, tanto por
debilidades próprias quanto por terem se lançado de maneira organizada já na fase de
descenso das mobilizações, o que não pode ofuscar o sucesso das manifestações que
mobilizaram cerca de 400 mil22 em todo o país no dia 11 de julho.
Diante do avanço das idéias de direita nos movimentos de massa que tomaram as
ruas em junho, o próprio ex-presidente Lula entrou em cena para articular os
movimentos sociais a nível nacional23. Atacados nas ruas tanto quanto os partidos
ligados ao governo, como PCdoB e PT, a oposição de esquerda (PSOL, PSTU, PCB e
outras organizações sem registro eleitoral) decide participar da construção do ato
unificado com suas respectivas centrais sindicais. Movimentos sociais tradicionais como
a UNE (União Nacional dos Estudantes) e o MST (Movimento dos Sem Terra)
acompanham os sindicatos nessa empreitada.
No dia 11 de julho os trabalhadores dirigidos pelas centrais realizam diversos atos
pelo em todo o Brasil, inclusive paralisações em empresas importantes como a
Eletrobrás, reivindicando, entre outras questões: redução da jornada de trabalho para
40 horas semanais, fim do fator previdenciário, democratização dos meios de
comunicação, 10% do PIB para saúde, 10% do PIB para a educação, reforma agrária, etc.
22 “Balanço das mobilizações de 11 de julho é positivo e 30 de agosto deve ser ainda maior” <http://www.cut.org.br/acontece/23502/balanco-das-mobilizacoes-de-11-de-julho-e-positivo-e-30-de-
agosto-deve-ser-ainda-maior> Acesso em 30 de julho de 2013 23 "Lula convoca movimentos sociais para ir à ruas pelo Brasil" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=217200&id_secao=8> Acesso em 30 de julho de
2013 É interessante observar também o artigo do ex-presidente publicado no New York Times, em que Lula
defende as manifestações: “The Message of Brazil’s Youth” < http://www.nytimes.com/2013/07/17/opinion/global/lula-da-silva-the-message-of-brazils-youth.html>.
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A proposta de plebiscito para reforma política24 levantada pela presidente Dilma como
resposta às pressões nas ruas em junho foi um dos focos das passeatas. Nas periferias
também ocorreram mobilizações, o que foi um grande avanço.
Com toda a expectativa criada, principalmente em cima de uma suposta greve
geral (questão levantada por um movimento surgido no Facebook para o dia 01 de julho
e que não teve nenhuma adesão considerável, com exceção de um lockout25 de
caminhoneiros), não houve muito lastro nas bandeiras levantadas que, ao contrário das
questões morais, caíram no esquecimento de grande parte da população. O próprio
governo recuou da proposta de reforma política no legislativo. A vitória inicial na
Câmara dos Deputados que garantia a viabilização dos 10% do PIB para a educação
através dos recursos do petróleo pré-sal foi parcialmente cortada no Senado.
O número de pessoas mobilizadas e a unidade dos movimentos sociais foi, sem
dúvida, uma vitória para todo o movimento sindical, principalmente diante da clara
oposição da grande mídia e do clima de ofensiva ideológica da direita. Porém a
perspectiva de que aconteceria algo mais profundo que as manifestações espontâneas
deixou um sentimento de insuficiência, inclusive por causa da própria confusão sobre o
dia nacional de lutas, que foi interpretado por diversas organizações como o dia da
verdadeira greve geral e assim foi divulgado26. Talvez não ousar mais e realmente
convocar uma paralisação nacional tenha sido uma oportunidade jogada fora pela
esquerda de assumir a direção da luta de massas no Brasil, por mais que o receio de se
repetir experiências desastrosas no passado (como durante o governo Allende em que
uma greve de caminhoneiros foi fundamental para o golpe militar liderado por
Pinochet) não seja completamente injustificado.
4. Algumas considerações sobre as possibilidades de um plano da direita
O avanço ideológico da direita através da mídia e do Facebook, assim como os
24 O ponto mais polêmico e central para se combater efetivamente a corrupção é o fim do financiamento
privado das campanhas eleitorais, as quais passariam a depender de um fundo público. Mais detalhes em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html> Acesso em 30 de julho de 2013
25 Greve provocada por patrões que é ilegal no Brasil. 26 Na internet várias imagens compartilhadas pela militância de esquerda chamavam à greve geral.
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ataques físicos sofridos pelos militantes de esquerda durante os primeiros atos, fizeram
surgir hipóteses sobre a possibilidade de que uma articulação nada espontânea pudesse
estar em curso por trás dos movimentos de massa para derrubar o governo de centro-
esquerda de Dilma Rousseff27.
Essa possibilidade é aparentemente contraditória com o próprio processo
histórico pelo qual passa o Brasil que, ao contrários de vizinhos como Venezuela e
Bolívia, não rompeu drasticamente com a elite nacional nem com o imperialismo
estadunidense. O próprio crescimento econômico baseado no combate à miséria, nos
estímulos ao consumo e nos ganhos reais de salário foi acompanhado por enormes
lucros de bancos e grandes empresas privadas28. Porém existem alguns fatores que
merecem ser considerados, pois, por mais que a política econômica do governo PT seja
conservadora, existe uma direita política insatisfeita com o crescimento da esquerda nas
últimas eleições e um público adepto às questões morais e religiosas. Além disso,
mesmo sem bater diretamente de frente com os Estados Unidos, o Brasil tem feito uma
política externa independente, e cede apenas parcialmente o petróleo à exploração
internacional através dos leilões. Sem romper com o capitalismo dependente, mas
também sem se prostituir completamente como fizeram Collor e Fernando Henrique
Cardoso, o governo do PT representa um entrave a nível regional, por apoiar a
integração da América Latina e os inimigos declarados dos EUA na região. Vale lembrar
que o momento de descoberta da camada de petróleo pré-sal foi coincidente à reativação
da IV Frota, que havia parado de patrulhar o Oceano Atlântico após a II Guerra
Mundial29.
O próprio João Pedro Stédile, líder do MST, em entrevista ao Brasil de Fato (25
jun. 2013)30 levantou a possibilidade da direita e da CIA (Central de Inteligência
Americana) estarem se aproveitando das mobilizações populares e envolvidas num
27 "Está tudo tão estranho, e não é à toa." <https://medium.com/primavera-brasileira/dfa6bc73bd8a> Acesso em 30 de julho de 2013 28 "Bancos já lucraram R$ 127 bi no governo Lula" <www.pstu.org.br/node/15441> Acesso em 30 de julho de 2013 29 "A Quarta Frota e os senhores da guerra" <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=177601&id_secao=9> Acesso em 30 de julho de
2013 30 “O significado e as perspectivas das mobilizações de rua” <
http://www.brasildefato.com.br/node/13339 >
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plano de desestabilização do governo, ainda que não através de um golpe (como alguns
levantaram), pois para ele o foco seria desgastar o governo para as eleições de 2014:
A classe dominante, os capitalistas, os interesses do império Estadunidense e seus porta-vozes ideológicos, que aparecem na televisão todos os dias, têm um grande objetivo: desgastar ao máximo o governo Dilma, enfraquecer as formas organizativas da classe trabalhadora, derrotar quaisquer propostas de mudanças estruturais na sociedade brasileira e ganhar as eleições de 2014, para recompor uma hegemonia total no comando do Estado brasileiro, que agora está em disputa. Para alcançar esses objetivos, eles estão ainda tateando, alternando suas táticas. Às vezes, provocam a violência para desfocar os objetivos dos jovens. Às vezes, colocam nos cartazes dos jovens a sua mensagem.
Apesar de difícil, a possibilidade de infiltração estrangeira vai ao encontro da
tática utilizada pelo imperialismo para assumir o controle de diversos movimentos de
massa pelo mundo, tanto no Oriente Médio como aqui na América Latina. No Paraguai,
inclusive, um presidente (Fernando Lugo), cujo governo tinha características moderadas
assim como o PT, foi vítima de um golpe branco por conta de um conflito entre as forças
do Estado e camponeses. As revelações de Snowden sobre o Brasil estar no centro da
espionagem ianque reforçam a hipótese de que algo especial pode estar acontecendo por
aqui. Stédile, na entrevista citada, comenta a questão:
(...) são evidentes os sinais da direita muito bem articulada e de seus serviços de inteligência, que usam a internet, se escondem atrás das máscaras e procuram criar ondas de boatos e opiniões pela internet. De repente, uma mensagem estranha alcança milhares de mensagens. E aí se passa a difundir o resultado como se ela fosse a expressão da maioria. Esses mecanismos de manipulação foram usados pela CIA e pelo Departamento de Estado Estadunidense, na Primavera Árabe, na tentativa de desestabilização da Venezuela, na guerra da Síria. É claro que eles estão operando aqui também para alcançar os seus objetivos.
A semelhança nas formas dos ataques perpetrados contra a militância de
esquerda também é alvo de suspeitas, pois em todos os casos foram relatados a presença
de homens mascarados sem qualquer disposição para diálogo e, em alguns momentos,
auxiliados por grupos de extrema direita. Ao que tudo indica são os mesmos elementos
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que, durante diversas manifestações, realizaram atos de depredação que serviram para
justificar a repressão. Um grupo de mascarados chegou a ser preso durante a
manifestação das centrais sindicais no Rio de Janeiro, mas a polícia não deu muitas
informações, limitando-se a dizer que os mesmos eram envolvidos com a milícia e o
tráfico de drogas31.
Com o acúmulo de experiência por parte dos manifestantes que continuam nas
ruas, algumas imagens mostraram indivíduos responsáveis por atos de depredação
durante as passeatas vestindo roupas da PM (Polícia Militar) em outros momentos,
confirmando as hipóteses de infiltração policial32. A questão é saber se é a infiltração que
sempre ocorreu visando simplesmente desacreditar o movimento e facilitar a repressão
ou se há interesses maiores por trás, o que ainda não está claro.
Mesmo que a possibilidade de atuação sistematizada da direita nacional e/ou
internacional seja verídica, o que fica claro, tanto no Brasil quanto nos outros países, é
que só quando não há capacidade das organizações populares (tradicionais ou surgidas
nas lutas do momento) levarem à frente um projeto histórico consequente e
independente é que surgem condições para que forças obscuras manobrem as
mobilizações de massa. É imperativo então que a esquerda organizada brasileira consiga
responder aos desafios dados.
5. Modernização e desenvolvimento capitalista no Brasil
Desde a queda da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) em 1991 os
povos do mundo têm sido colocados na defensiva diante dos ataques do imperialismo.
No entanto, vêm surgindo pólos importantes de resistência, principalmente na Ásia e na
América Latina. Com a deflagração da crise econômica mundial a partir de 2007/2008 a
luta de classes se acirrou até mesmo nos países capitalistas centrais, como EUA e nações
européias, em que a classe trabalhadora vem se organizando para lutar contra as
sangrias causadas pela crise global. No geral não há uma perspectiva estratégica clara,
31 Conforme denúncias de militantes presentes. 32 "Cabral diz que não sabia de policiais infiltrados em manifestações no Rio" <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/cabral-diz-que-nao-sabia-de-policiais-
infiltrados-em-manifestacoes-no-rio.html> Acesso em 30 de julho de 2013
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com exceção de alguns países em que os partidos comunistas possuem larga influência e
capacidade de luta (como a Grécia). Porém aos poucos a consciência de classe dos
trabalhadores tem evoluído para um sentimento anti-sistema e de democracia radical,
sem ainda oferecer alternativas viáveis (o que pode vir a ocorrer com o acúmulo de
experiências).
No Brasil as jornadas de junho/ julho assumiram um caráter diferente, com perfil
mais heterogêneo e que não teve como causas a queda do nível de vida (pelo contrário,
nos últimos 10 anos os índices econômicos e sociais têm crescido constantemente33),
colocando as questões econômicas de forma secundária nas pautas de reivindicações,
diferentemente do que vem ocorrendo na Europa e nos EUA.
Se há no Brasil um processo de modernização capitalista, na qual as grandes
massas estão incluídas, sendo também beneficiadas, temos de compreender as causas
das grandes manifestações como parte desse próprio processo e de suas contradições.
Os principais limites referem-se à ausência de uma ruptura radical com a estrutura
interna e externa de dominação da classe burguesa nacional associada ao imperialismo
internacional. Por mais que em 10 anos de governo o PT/PMDB tenha atingido índices
sociais elevados, toda a orientação desse fenômeno foi no sentido conciliador, sem
enfrentar, a não ser pontualmente (e sempre que possível incorporando ao novo ciclo de
desenvolvimento capitalista), determinadas características herdadas ao longo dos 500
anos de história, como o poder dos latifundiários e as elites locais ligadas ao mesmo, o
monopólio dos meios de comunicação por parte de alguns grupos empresariais, o
sistema político-eleitoral, práticas arcaicas de manutenção e aproveitamento do Estado
(como a corrupção generalizada e a venda de votos), etc. Ao não conquistar mudanças
profundas, o governo de centro-esquerda deixou, apesar da melhoria na qualidade de
vida da população (o que, entre outros fatores, explica o bom desempenho eleitoral das
forças governistas), um leque amplo de insuficiências percebidas pelas pessoas com
condições e interesses em um Brasil mais moderno.
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista no país comandado
pelo Estado (garantindo a distribuição de renda entre as classes e as regiões do país) um
33 "Brasil atinge menor nível de desigualdade social desde 1960" <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,brasil-atinge-menor-nivel-de-desigualdade-
social-desde-1960,105210,0.htm> Acesso em 30 de julho de 2013
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maior número de pessoas teve acesso à informação (por diversos meios, inclusive a
escola e a universidade34) e passou a ter condições de refletir sobre as problemáticas que
os cercavam. Contraditoriamente, mesmo sendo fruto do governo PT/PMDB, é
justamente esse setor que compreende e sente os limites do processo e, facilitado pela
estabilidade econômica (o que afasta, por exemplo, o perigo do desemprego), passa a
ocupar as ruas do país.
Em junho as massas demonstram disposição a também serem agentes do
processo de modernização capitalista no país, que até agora foi feito de cima para baixo.
O fato de surgirem como beneficiados pelo sistema capitalista pode ajudar a explicar a
dificuldade que a esquerda vem enfrentando para penetrar nesse setor, erroneamente
classificado como “nova classe média”.
Além do conceito “classe média” ser inexato do ponto de vista histórico e social
(considerando como classe um grupo heterogêneo composto pela pequena burguesia,
aristocracia operária, etc.) a idéia de uma “nova” classe média esconde a condição de
simples trabalhador de grande parte dessas pessoas. Oficialmente esse grupo é
composto por famílias com renda per capita entre R$ 291 e R$ 1.019, agrupando mais
da metade da população do Brasil35. Para o DIEESE36, o salário mínimo deveria ser R$
2.873, sendo um absurdo considerar como médio um setor que, em sua maioria, vive
abaixo das necessidades consideradas mínimas.
Alguns dados coletados pelo IBOPE37 em oito capitais do país no dia 20 de junho
ajudam a compreender com mais exatidão quem era a multidão nas ruas: dos
manifestantes (divididos igualmente entre homens e mulheres) 75% trabalhavam, 52%
estudavam e 43% haviam terminado alguma faculdade. 23% possuíam renda familiar
maior que 10 salários mínimos, 26% entre 5 a 10, 30% entre 2 a 5 e 15% até 2 (6% das
34 "Ensino superior cresce 110% em dez anos" <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/07/ensino-superior-cresce-110-em-dez-anos>
Acesso em 30 de julho de 2013 35 "Mais de 50% dos brasileiros estão na classe média" <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-20/mais-de-50-dos-brasileiros-estao-na-classe-
media> Acesso em 30 de julho de 2013 36 "Salário mínimo precisaria ser de R$ 2.873,56, diz Dieese" <http://exame.abril.com.br/economia/noticias/salario-minimo-precisaria-ser-de-r-2-873-56-diz-
dieese> 37 Veja os dados da pesquisa do Ibope no link: <http://especial.g1.globo.com/fantastico/pesquisa-de-opiniao-publica-sobre-os-manifestantes> Acesso
em 30 de julho de 2013
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pessoas não responderam). Cerca de 80% esteve presente nas passeatas acompanhado
por alguém, na grande maioria por amigos, e mobilizados pela internet (91% ficou
sabendo dos atos virtualmente, sendo 62% via Facebook – usado por 75% das pessoas
para convocar outros participantes). Quase a metade (46%) estava participando de um
protesto pela primeira vez na vida. 61% disseram ter muito interesse em política e 28%
manifestaram interesse médio, contrastando com os 11% que disseram ter pouco ou
nenhum interesse na área. 89% não se sentem representados por nenhum partido e 81%
por nenhum político individual. 86% não são filiados a nenhuma organização de massa
(sindicato, entidade estudantil, etc.). 63% era composto por jovens de até 29 anos.
O que pode ser percebido é a entrada em cena de um setor inexperiente na luta de
classes e que se formou no meio de um processo histórico complicado, favorecendo a
desorientação política e a consequente manipulação por parte dos grandes meios de
comunicação e suas idéias pós-modernas muito em voga desde o fim da Guerra Fria,
como a suposta inexistência da esquerda e da direita. A configuração ideológica
assumida nessas primeiras jornadas reflete tais contradições, mas, no geral, pode ser
classificada como cidadã e patriótica, pois o sentimento que unia as pessoas nas ruas
era a vontade de se cobrar melhorias para o Brasil (dentro da ordem capitalista) por
meio de protestos justificados pela idéia de que o povo tem o direito e o dever de dirigir
a política do país.
Demonstrando grande disposição de luta, inclusive em situações de
enfrentamento às forças de repressão, esse setor encontra-se hoje em disputa, assim
como ele próprio busca disputar a participação no processo de modernização no Brasil,
que hoje tende a levar o país ao estado de bem-estar social. No entanto, resta saber se
será possível alcançar tal situação sob o capitalismo (necessariamente dependente) sem
romper bruscamente com as amarras internas e externas, e qual o nível de interferência
da população na condução desse projeto, o que dependerá da capacidade das entidades
tradicionais de esquerda reatarem seus laços orgânicos e ideológicos com as massas.
6. Os desafios da esquerda para a luta de classes no século XXI
De acordo com Friederich Engels, podemos definir como proletariado:
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(...) a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho para poderem viver.38
Nesse sentido, mesmo que consideremos a possível presença de profissionais
liberais, pequenos burgueses e membros da aristocracia operária nas manifestações
representando um contingente de 50% das pessoas (de acordo com uma interpretação
plausível diante dos dados apresentados pelo Ibope, referentes ao trabalho, a renda e a
educação), é razoável pensar que a outra metade faz parte de um novo setor da classe
trabalhadora, do proletariado moderno, forçando uma avaliação autocrítica por parte
das entidades de esquerda por não conseguirem atingir tais pessoas (o aparecimento de
trabalhadores ligados ao ramo da tecnologia, no qual quase não há sindicatos é um
indício do problema). Inicialmente é preciso tratar de algumas questões presentes no
discurso antipartidário com mais seriedade, pois se é verdade que o pensamento pós-
moderno direitista é constantemente insuflado, isso não leva a concluir que exista por
parte das massas uma assimilação mecânica e irracional dessas idéias. Se determinados
pontos do discurso da direita conseguem colar no senso comum é por, no geral, terem
algum tipo de sintonia com a realidade, por mais frágil que seja.
O problema mais gritante foi o repúdio aos “partidos políticos” de forma
generalizada, colocando no mesmo pacote as organizações que apóiam o governo Lula,
as que fazem oposição e até mesmo grupos sem qualquer vínculo institucional, como o
PCR (Partido Comunista Revolucionário). Basicamente havia duas justificativas: A
primeira era um sentimento de repúdio geral aos partidos por estarem sendo
identificados subjetivamente como parte de legitimação da política à qual se estava
combatendo, e a segunda era a identificação de qualquer partido de esquerda como
parte integrante do governo. Tais atitudes devem acender o alerta vermelho tanto para
as organizações que vem priorizando cada vez mais as atividades legislativas em
detrimento das lutas de massa (que estão se confundindo com aquilo que tentam
combater) quanto para as que se utilizam do discurso despolitizado atacando qualquer
forma de participação eleitoral e ignorando as diferenças, ainda que limitadas, entre a
38 MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2005.
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esquerda institucional e a direita, o que acaba por munir justamente o pensamento
direitista.
A presença de lideranças de qualquer tipo, ainda que individuais, surgidas
espontaneamente, mas principalmente organizadas, como os sindicatos, foi alvo
constante de desconfianças. O medo de cooptação e compra, além do oportunismo para
usar as manifestações como trampolim eleitoral, era a principal justificativa para o
comportamento anárquico. Nesse sentido deve-se refletir sobre práticas muito comuns,
como o afastamento das lideranças eleitas para o legislativo de suas antigas bases (o que
frequentemente leva a desgastes com a própria militância), a negociação sobre o fim de
movimentos e greves às portas fechadas e o dirigismo que trata o fato de se dirigir uma
entidade como um fim em si mesmo e não um meio para conduzir a luta (tanto que boa
parte das direções sindicais e estudantis sofre, durante as eleições de suas respectivas
entidades, os mesmos tipos de críticas, independente de quais forças políticas estejam
tanto na situação quanto na oposição).
Enfim, desde o final da década de 1980 e mais acentuadamente a partir de 2002,
com a entrada em massa de dirigentes populares na estrutura estatal, a burocratização
do movimento sindical vem desgastando as entidades tradicionais junto a suas bases.
Logicamente, tal fenômeno não é um problema exclusivo das direções, já que as mesmas
são formadas justamente em suas bases e nos processos de luta dessas. A conjuntura
global não favorável após a queda da URSS (como já foi dito) e o avanço do
neoliberalismo no Brasil dificultaram a luta de classes facilitando a burocratização. A
contradição que precisa ser solucionada agora, com a melhoria das condições para o
enfrentamento, é não deixar as estruturas burocratizadas já viciadas atrapalharem a
renovação física e teórica das entidades, para que as mesmas possam refletir um novo
ciclo de conquistas através da ocupação das ruas.
Lenin39 demonstrou como o movimento espontâneo é, por si mesmo, limitado.
Sendo necessária a presença de uma direção de vanguarda com agentes históricos que
compreendam as lutas específicas dentro de um contexto histórico geral. Hoje, as
39 LENIN, V. I. Que Fazer?. 1902. Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm> Acesso em 30 de julho de 2013
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entidades de massa originalmente representativas do movimento espontâneo, como
sindicatos e entidades estudantis, ocupam papel intermediário, pois seus dirigentes são,
na imensa maioria, membros de partidos com tal compreensão (que não é única e nem
necessariamente correta). Além destas, que tendem a representar realmente o
movimento espontâneo conforme avançar a luta das respectivas categorias, novas
formas de organização primárias vem surgindo, cujo melhor exemplo é o ciberativismo,
no qual deveria ser também direcionado dentro de uma perspectiva histórica.
A orientação que os agentes históricos serão capazes ou não de oferecer não
precisa ser necessariamente aos moldes tradicionais de uma organização específica de
vanguarda, já que a vanguarda se forja e se mostra como tal na própria luta. A esquerda
tradicional deve se debruçar em construir saídas práticas e teóricas para as contradições
do Brasil de hoje, e para isso precisa ser capaz de entender os movimentos e anseios das
massas. Mao Tsé-Tung sintetiza a relação entre os agentes históricas de vanguarda e as
massas:
(...) toda a direção correta é necessariamente “das massas para as massas”. Isso significa recolher as idéias das massas (idéias dispersas, não sistemáticas), concentrá-las (transformá-las por meio do estudo em idéias sintetizadas e sistematizadas), ir de novo às massas para propagá-las e explicá-las de maneira que as massas as tomem como suas, persistam nelas e as traduzam em ação; e ainda verificar a justeza dessas idéias no decorrer da própria ação das massas. Depois é preciso voltar a concentrar as idéias das massas e levá-las outra vez às massas, para que estas persistam nelas e as apliquem firmemente. Sucessivamente, repetindo-se infinitamente esse processo, as idéias vão-se tornando cada vez mais corretas, mais vivas e mais ricas. Tal é a teoria marxista do conhecimento.40
Para isso não basta repetir com mais ênfase o que já vem sendo feito há décadas,
pelo contrário, a esquerda orgânica precisa se modernizar tanto a nível teórico quanto
prático. É um absurdo que uma militância cuja tradição passa pela vitória contra o
nazismo e o enfrentamento ao regime militar seja escorraçada de manifestações por
elementos mascarados, tendo sido ou não infiltrados. Combinar técnicas de luta legais
40 MAO, Tsé Tung. A Propósito dos Métodos de Direcção. 1943. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/mao/1943/06/01.htm> Acesso em 30 de julho de 2013
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com as clandestinas foi uma lição que Lenin41 fez questão de apontar como necessário
em todos os momentos. Quanto a isso, além dos problemas da defesa física, é
importantíssimo que haja um maior preparo quanto às técnicas de ciberativismo, que se
mostra cada vez mais um grande campo para a luta de classes num mundo em que o
desenvolvimento tecnológico assume proporções inimagináveis (podendo servir tanto
para a opressão quanto para a luta). A internet, aliás, serve também como meio de
comunicação interna e externa e deve ser utilizada com uma lógica própria, não basta
virtualizar o panfleto impresso. Os métodos, de uma forma geral, estão defasados. A
propaganda e a agitação são feitas do mesmo jeito há um século e não é só a questão de
utilizar mal as novas tecnologias, mas de ter pouco tato inclusive com as antigas42,
faltam os especialistas. O fato da máscara do V de Vingança ter se tornado símbolo das
manifestações indica a necessidade de ícones e palavras de ordem capazes de ganhar as
massas. Não basta ter só uma orientação política estratégica correta, é preciso ter
métodos eficazes e capacidade para implementá-los. Os próprios cursos de formação
deveriam preparar também para a ação e não apenas discutir a teoria clássica, que
mesmo tendo importância central é pouco assimilada pelos brasileiros (resultado do
baixo nível cultural do país), o que também precisa ser urgentemente superado.
Enfim, há que se ter criatividade e, por parte da esquerda revolucionária, estudar
profundamente o marxismo-leninismo para se dar respostas aos novos problemas
históricos. A tarefa deve ser encarada como de todos aqueles comprometidos com o fim
do sistema capitalista (mesmo que o indivíduo não tenha ainda a consciência de qual
será a alternativa) mobilizando de forma crítica amplos segmentos sociais. Não há
dúvidas de que as dificuldades da esquerda tradicional do país, principalmente para as
organizações de caráter socialista, são resultado de um momento histórico de ofensiva
imperialista e de um Brasil historicamente forjado de cima para baixo (e que eliminou
fisicamente entre 1964 e 1985 as grandes lideranças populares), mas não basta boa
vontade ou autopiedade, pois problemas como os que foram vivenciados no meio do ano
fazem parte da luta, não foi a primeira e nem será a última vez que tais situações terão
de ser enfrentadas. É necessário refletir e agir, pois o sucesso da esquerda brasileira na
41 LENIN, 1902. 42 A própria convocação dos atos do dia 11 de julho dava destaque muito maior às palavras “ato unificado
das centrais” do que a qualquer chamado de agitação. Um “Brasil mostra a tua cara” poderia ter, talvez, surtido melhores efeitos.
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atual conjuntura pode colocar a luta de classes de todo o mundo em outro patamar. Os
dilemas colocados por essa situação complexa e contraditória lembram o velho mito da
esfinge, pois a história está dizendo para a esquerda brasileira exatamente: “decifra-me
ou devoro-te”43.
Conclusão
O saldo das jornadas de junho e julho é até agora positivo. Em diversas cidades os
valores das tarifas de transporte público foram reduzidos e as manifestações
declaradamente de direita tiveram desempenho pífio. O movimento sindical se unificou
e vem insistindo em pautar reformas estruturais que, se forem hegemônicas entre as
massas, poderá alterar profundamente a estrutura política e social nacional.
Uma das grandes dificuldades para a transformação profunda do país é o baixo
nível cultural do povo, inclusive das supostas camadas intelectualizadas. O criticismo
preguiçoso que prevaleceu nas manifestações, apesar de representar um avanço e estar
logicamente ainda em gênese, vem há alguns anos reproduzindo o discurso do senso
comum e da grande mídia, sendo incapaz de separar o que pode servir ao oprimido e o
que pode servir ao opressor. Essa falta de formação política básica, inclusive das noções
de direita e esquerda ou dos partidos e entidades que compõe ou fazem oposição ao
governo, é um desafio que a esquerda tradicional precisa priorizar e enfrentar,
politizando a população.
A classe trabalhadora precisa hegemonizar a ascensão das massas no Brasil,
incorporando inclusive as habilidades de seus novos setores. Para isso, suas
organizações tradicionais precisam renovar a prática e a teoria. Além das questões
pontuais é preciso trabalhar em cima de propostas alternativas ao próprio sistema
capitalista, pois, por mais que tal ponto não esteja na ordem do dia, o desgaste do
Estado enquanto tal tem crescido e, como a história é cheia de surpresas, vale colocar a
discussão do problema, ainda que com muito tato para não se afastar ainda mais da
população.
43 Na mitologia grega a esfinge era um monstro que lançava um enigma para os viajantes do deserto
terminando com a frase citada e devorando literalmente os que falhavam em lhe responder corretamente.
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As jornadas de junho/ julho foram só a primeira etapa de um processo cíclico que
tende a voltar com grande força em 2014, com a Copa do Mundo, e em 2016, com as
Olimpíadas. Cabe à classe trabalhadora se organizar e conquistar não só vitórias, mas
também papel de destaque na atual fase de modernização vivida pelo Brasil, adquirindo,
talvez, a capacidade de ir até mais longe. Até lá, em datas de significado patriótico, como
o 7 de setembro e o 15 de novembro, as consequências de junho irão continuar a se
manifestar, acirrando a luta de classes no Brasil.