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O teatro desagradável de Nelson Rodrigues
por
Anderson Figueredo BrandãoDepartamento de Ciência da Literatura
Tese de doutorado em Ciência da Literatura apresentadaà Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letrasda Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador:
Professor doutor Ronaldo Lima Lins.
Rio de Janeiro – 1º semestre de 2006.
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2
DEFESA DE TESE
BRANDÃO, Anderson Figueredo.O teatro desagradávelde Nelson Rodrigues. UFRJ. Faculdade de Letras,2006.
245fl.Digitalizada. Tese de Doutorado emLiteratura
Comparada.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________Professor doutor Ronaldo Lima Lins (Orientador)
_____________________________________________________________Professora doutora Adriana Facina
_____________________________________________________________Professor doutor André Bueno
____________________________________________________________Professor doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho
____________________________________________________________Professor doutor Victor Hugo Adler
_____________________________________________________________Professora doutora Vera Lins
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_____________________________________________________________Professora doutora Beatriz Resende
Defendida a Tese:Conceito:Em: / /2006.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador e amigo, o professor doutor Ronaldo Lima Lins que,desde a década de oitenta, vem acreditando em meu trabalho.Ao CNPQ, que me proporcionou uma bolsa de doutorado, sem a qualesta Tese não poderia ser feita.Aos meus familiares Alice Brandão (minha mãezinha; in memoriam)Pedro Vasconcelos (o Tito; in memoriam); Laurinete Brandão (minhamãe), Pedro Brandão (meu pai; in memoriam) André Brandão (meuirmão querido), Gláuber Brandão (meu irmão querido), Jéssica Brandão(minha irmã querida), minhas cunhadas Antônia e Rosa (amabilíssimascomigo), meus sobrinhos curucos Anderson, Andreza, Laurinha e Gabrielsempre ao meu lado nas horas mais difíceis.Aos queridos amigos: Jorge Lucas (por ser meu irmão), Claudia Farias,Mário Crealese, Mauro Silva, Isabel Mascelani, Angela Francisco,Adalgisa Francisco, Daniele Santana, André Santana (biblioteca daMaison France), Getúlio Taigen (pelo Dharma), Mariana Torós (pelapaciência), Neyla Ferreira (pelo carinho por meu filho), Antônio CarlosSantana (UNIABEU) por me acompanharem.Aos meus professores da UFRJ – pelos exemplos de amor à literatura.
Ao meu filho querido,Antônio Carlos Batista Brandão:
luz da minha vida inteira.
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5
Os homens se parecem mais com seu tempodo que com seus pais.
Provérbio árabe.
Sinopse
Considerações sobre as peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora
dos afogados, Dorotéia, que Nelson Rodrigues, nos anos 40 do século
XX, denominou desagradáveis. A análise comparativa entre alguns
dessas peças e outras obras do mesmo autor. Considerações sobre a
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época de formação desses textos e elementos que aparecem nessas
peças. Comparação temática entre as peças desagradáveis de Nelson
Rodrigues e fragmentos das obras de Emily Brontë, Charles Baudelaire,
Marquês de Sade e Franz Kafka.
Sumário
Introdução.........................................................................................8
O estatuto histórico do textoliterário..............................................21
Aspectos da obra de Nelson Rodrigues: entre a modernidade e atradição...........................................................................................80
Sobre odesagradável....................................................................139
Nelson Rodrigues e outrosdesagradáveis.....................................166
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7
A selvagem paixão em Emily Brontë e em NelsonRodrigues.....................................................................................174
Charles Baudelaire e Nelson Rodrigues: da brevidade do grotescoà perenidade dosublime.................................................................182
Marquês de Sade e Nelson Rodrigues: o poder do gozo e o gozodopoder...........................................................................................193
Nelson Rodrigues e Franz Kafka: o desagradável poderdecadente....................................................................................210
Conclusão...................................................................................227
Bibliografia..................................................................................237
Resumo.......................................................................................243
Abstract......................................................................................244
Résumé.......................................................................................245
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8
Introdução
Hoje, quando se quer definir o reles, o idiota, o alienado, diz-se – “Isso éliteratura”.
Nelson Rodrigues
Os estudos de Literatura Comparada não podem estar divorciados
das diversas relações entre a cultura e o texto literário. Uma obra está,
na maioria das vezes, a dialogar com o seu tempo: a encará-lo, a
criticá-lo ou, até mesmo, a ratificá-lo em determinados construtos
presentes no espelhamento entre o objeto artístico e o meio em que ela
surgiu.
Cedo, os comparatistas descobrem que a literatura não apenas
faz parte de um discurso a dialogar com outras formas de literatura. O
texto literário, apesar de suas especificidades, não pode ser retirado do
turbilhão dos outros textos, da profusão de informações oriundas dos
documentos oficiais, dos periódicos, dos relatos orais, das palavras que,
algumas vezes mais e outras menos, sacramentam fragmentos
petrificados dos usos, costumes, idéias, moralidades que, em seu
conjunto, compõem o perfil cultural de uma época que se deseja
estudar.
Em pouco tempo, as relações binárias entre autor e autor, obra e
obra, inscritas na tendência metodológica oriunda da escola francesa do
final do século XIX e que teve como principal expoente o estudioso Paul
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Van Tieghem, revelaram o problema de que esse diálogo não poderia
ser dual, mas deveria cooptar o máximo de influências possíveis, o
máximo de representatividade na formação de um microcosmo no qual
esses discursos viriam mesmo a calhar. Por esse motivo, essas
influências não seriam explicadas sem um resoluto mergulho na
ambiência cultural formadora dos textos literários envolvidos na
comparação ou da obra que se deseja fundamentalmente estudar.
Cedo, críticas como a de Henry Remak intuíram que o modelo
simples e positivista da escola francesa deixava de lado uma série de
possibilidades de aprofundamento em estudos que poderiam ser feitos
se o estudioso não se ativesse somente à visão unívoca do texto
literário. Esse último certamente possui influências de outras formas de
discurso, de outras narratividades que o configuram numa teia bem
mais abrangente e mais representativa de suas relações discursivas nas
sociedades.
Literatura comparada é o estudo da literatura, além dasfronteiras de um país particular, e o estudo das relaçõesentre a literatura, de um lado, e outras áreas deconhecimento, e da crença, tais como as artes (ex.:pintura, escultura, arquitetura, música), filosofia, história,ciências sociais, religião etc., de outro. Em suma, é acomparação de uma literatura com uma outra ou outras, ea comparação da literatura com outras esferas daexpressão humana.1
1 NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Editorada Universidade de São Paulo, 2000, p.28
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A comparação entre o texto literário e outros discursos que podem
ser representativos das mentalidades de determinada época nos leva a
descobrir o quão profundamente um texto pode estar inserido na cultura
que atuou como ambiência formadora de seus construtos. Dessa
maneira, podemos descobrir que os fragmentos de vozes do pretérito
existem na tecitura da obra através de dados que apontam para traços
pertinentes ao imaginário coletivo, dos quais o pesquisador pode traçar
um perfil a partir da comparação entre a obra e estudos sobre a época
na qual o texto foi criado. Aí, nesse cadinho de palavras tecidas sob a
forma de literatura, o estudioso há de encontrar os índices de uma
cultura que está a se desenvolver em seus pressupostos moventes;
permanecem tradições e rupturas vindas de diversos contextos sociais,
das vozes populares, dos ideários que fundamentam o que é
considerado como bem ou mal, certo ou errado, o que é ou não é
socialmente aceito. Por esse motivo, nos estudos comparativos, não
podemos nos ater somente às influências estritamente literárias,
embora a comparação entre literaturas deva constar de todo estudo de
Literatura Comparada.2
O texto literário não está separado dos outros discursos porque
aquele que compõe o seu tecido, o escritor, por mais erudito que seja,
usualmente desce à rua, mergulha na naturalidade e na singularidade
2 No final deste estudo, comparamos a obra de Nelson Rodrigues a de autores comoKafka, Baudelaire, Sade e Emily Brontë.
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de seu tempo, dos costumes e usos impostos pelos diversos níveis de
tradições sociais. Nesse sentido, ele não está separado também das
sociedades com as quais ele tem contato. Suas idéias, suas opiniões,
seus julgamentos precisam se coadunar (ou não) às linhas de força
comuns à sua época. Até mesmo a sua revolta contra os parâmetros
coercitivos de seu tempo ocorrem em relação à dialética entre ele e os
construtos que a contemporaneidade lhe oferece.
O criador arregimenta os dados da cultura com a qual tem ele
contato num discurso literário construído para convencer os leitores de
que os índices de verossimilhança textual não são apenas um acaso no
texto, mas sentidos, pistas seguras através das quais o leitor pode
encontrar não mais um outro nos diversos personagens e tramas, mas
metades, fragmentos de seus próprios desafios, medos ou dissabores.
Outras vezes, a produção do escritor resulta na composição de um
texto que expõe ideários, estéticas que incomodam, atraem e traem o
fruidor. A sensibilidade do criador pode alcançar níveis tão obscuros, tão
negativos da cultura que lhe rodeia e permeia que se tornam
desagradáveis àqueles que fruem a obra. Quando isso acontece, linhas
de poder que até então permaneciam submersas nos usos e costumes
cotidianos saltam para fora da normalidade, expõem-se
assustadoramente no texto. Desejos insuspeitos tornam-se aparentes e
convidam o leitor a deixar-se levar ao abismo de forças até então
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insuspeitas. O autor, qualquer que seja o gênero ao qual ele se dedica,
é o reorganizador de conceitos, idéias e costumes que, latentes em sua
obra, muitas vezes adquirem um teor desagradável ou inusitado para o
fruidor.
Esse dom de lidar com os elementos culturais de sua época ou de
tempos pretéritos é o que vem singularizando o seu trabalho: seja sob o
estigma da imitação dos clássicos ou sob a égide da criação, como, de
fato, ocorre a partir do Romantismo.
Com o Romantismo, a idéia de originalidade foi adquirindoum caráter cada vez mais individualista. Nos séculos XIX eXX, verifica-se a tendência em se ver na "marca própria" oreflexo não somente do esforço criador pessoal do poeta,mas de toda a sua personalidade individual. Quanto maisfor ele mesmo, tanto mais será original. Na buscaincessante de sua individualidade, ele se oporá àsociedade de seu país e de sua época. Como sabemos,isso não passa de uma ilusão romântica, pois o escritor doséculo XIX ou XX sofre as influências do meio e do tempotanto quanto o do século XVI ou XVII.3
O autor é aquele que, ao remodelar os elementos que a cultura
lhe dispõe, “revela” relações e conteúdos muitas vezes inusitados e que
nos pareceriam velados, não fosse o seu trabalho. Ele recodifica dados
culturais em uma escritura cujos pontos de sustentação são construtos
oriundos de seu contínuo lidar com a cultura que lhe cerca.
Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980) soube trabalhar de forma
genial com os dados culturais que estavam à sua disposição. Sua obra
3 NITRINI, 2000, p.140
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apresenta uma série de construtos pertinentes aos dados mais
profundos de nossa cultura, traz à tona espectros com os quais não
gostaríamos de ter lidado, mas que fazem parte de nosso passado. O
contato com essas tensões, com esses conflitos instaurados a partir da
revelação das formas de poder que eles representam, das máscaras de
domesticação que eles usam e retiram para mostrar as suas faces
horrendas fazem com que o fruidor da obra esteja diante da
desagradável sensação de lidar com desejos, pensamentos, idéias com
as quais ele normalmente não lidaria, senão através do lugar daquele
que, voyeur, presencia as várias transgressões que o autor leva ao texto
ou que o diretor realiza nos palcos.
É sobre as relações entre as peças desagradáveis4 de Nelson
Rodrigues e a sua época de formação, a primeira metade do século XX,
como também sobre os índices do desagradável presentes em outras
obras desse mesmo autor, que iremos nos debruçar, num primeiro
momento, neste estudo. Além disso, buscamos encontrar índices do
desagradável nas obras de outros autores, considerados “malditos” na
literatura ocidental e que abordaremos no decorrer desta Tese.
No primeiro capítulo do nosso trabalho, intitulado “O estatuto
histórico do texto literário”, trabalharemos com algumas possibilidades
de diálogo entre a cultura e o texto literário. Abordaremos o conceito de
4 As peças são Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos Afogados e Dorotéia, todasescritas na década de 40 do século XX.
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mimese fundamentado por Aristóteles e aprofundado por Paul Ricoeur
no primeiro volume de Tempo e narrativa5. Aproveitaremos esse texto
para realizar as nossas análises sobre a natureza temporal do texto
literário, que é análoga à temporalidade da experiência humana, o que
faz com que o universo do leitor e aquele que está presente no texto
estejam em profunda intimidade e sirvam de base para que os ensaios
críticos possam ser construídos a partir da leitura do texto literário.
Nesse capítulo, analisaremos alguns textos da época medieval e
tentaremos compará-los a algumas personagens femininas de Nelson
Rodrigues: notadamente àquelas que pertencem às peças que o autor
denominou desagradáveis. Nosso intuito é mostrar o quanto
determinados construtos podem sobreviver através dos séculos e
permanecer na estrutura que compõe o universo ficcional. Com isso,
tentamos demonstrar que essas linhas de poder sobrevivem através do
avanço da cultura e se apresentam, em textos mais recentes, como
discursos que procuram o estatuto de eternos, inerentes à constituição
humana. Na verdade, ao recompormos a historicidade dessas linhas de
poder, estamos nos voltando para a revelação de que esses construtos
nasceram em determinado momento histórico e sobreviveram graças a
interesses de norteamento e contenção de comportamentos através dos
tempos.
5 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (vol. 1). Campinas, SP: Papirus, 1994.
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Ainda nesse capítulo, abordaremos algumas especificidades do
texto literário e do texto histórico. O nosso objetivo é traçar linhas que
possam guiar os estudiosos no sentido de demonstrar o quanto tensões
e conflitos presentes no texto literário sob a forma de alegorias e de
símbolos ajudam o pesquisador a compor um retrato do perfil cultural
de determinada época. Seu estudo não pode se deter às continuidades
presentes no espelhamento entre a obra e o momento histórico que ele
pretende abordar, mas deve avançar à tentativa de responder de que
maneira as idealizações e rupturas, as descontinuidades, aparecem no
texto literário e quais são as relações entre esses construtos e a época
que se deseja estudar.
Por fim, no momento no qual estudamos as especificidades do
texto literário, analisamos a peça de Nelson Rodrigues intitulada O beijo
no asfalto. Nosso intuito foi o de mostrar o quanto “o indizível” presente
nos textos artísticos pode criar uma fresta através da qual surgem
determinadas forças ordenadoras e controladoras dos discursos e
sentimentos. Com isso, esperamos mostrar ao pesquisador que a
análise dessas “frestas”, desses “indizíveis” – representados, neste caso,
pelo beijo entre os personagens da peça – pode revelar-se bastante
interessante àqueles que buscam a comparação entre a cultura e a obra
literária.
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No capítulo seguinte, intitulado “Aspectos da obra de Nelson
Rodrigues: entre a modernidade e a tradição”, tentamos mostrar que os
textos de Nelson Rodrigues estão instaurados no conflito de uma cultura
que está voltada para o progresso, mas que se ressente da permanência
de tradições, usos, costumes e idéias que se mostram resistentes às
forças modernizadoras.
Procuramos demonstrar que a tensão entre a tradição e a
modernidade foi um fator que permeou várias instâncias de nossa
cultura durante a primeira metade do século XX: época na qual Nelson
Rodrigues escreveu as suas peças desagradáveis. A tensão entre o
passado e o presente, entre um discurso que necessita de uma
constante renovação e que precisa voltar as costas para um passado
muitas vezes vergonhoso, atrasado, vem se tornando bastante forte em
nosso desenvolvimento cultural.
Por outro lado, a obra de Nelson Rodrigues não vem a se instaurar
somente sob o aspecto da tensão entre a tradição e a modernidade com
o seu tempo. Em seus textos, os medos, as angústias, os espectros
presentes no imaginário popular estão em sua obra, fazem parte das
tramas de seus enredos. Os horrores da classe média, como também os
lugares de poder que são tão caros à constituição da família são
abordados nesse capítulo. Usamos, nesse texto, alguns exemplos que
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retiramos de periódicos da época para mostrar o quão impactante foi a
presença dessas peças nos longínquos anos 40 do século XX.
Finalmente, nesse mesmo capítulo, analisamos a peça Os sete
gatinhos para podermos ter uma idéia do quanto os ideais de
modernização, de trabalho, de obtenção de riqueza e de poder através
da labuta foram por terra no ambiente familiar da baixa classe média no
Rio de Janeiro. A ambiência dessa peça nos apresenta as filhas de uma
família a se prostituírem, a se conspurcarem em busca do sonho
burguês de casar a caçula, a única “pura” entre aquelas mulheres
corrompidas pelo poder do capital. A impossível realização do sonho,
dos ideais de pureza na união sacramental estavam fundamentadas
num contexto onde as relações humanas cada vez mais estavam
pautadas na perda do controle da sexualidade feminina e no poder cada
vez mais concentrado no capital: capaz de comprar os corpos, subverter
moralidades e fazer apodrecer esperanças. “Seu’ Noronha” é o
protagonista de uma tragédia que demonstra a impossibilidade da
tradição sob os auspícios de uma modernidade cada vez mais
devoradora e destruidora de sonhos.
No capítulo “Sobre o desagradável” procuramos abordar
determinados índices que apontam para o choque advindo das
mentalidades presentes na época de formação das peças desagradáveis
e os conteúdos presentes nesses textos de Nelson Rodrigues. Nessa
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parte de nosso trabalho, procuramos mostrar que o epíteto de
“desagradável” não é somente pertinente a determinados textos desse
autor, mas que aparecem em suas outras obras. Por esse motivo,
trouxemos para o leitor deste trabalho alguns fragmentos da obra
Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados6 , como
também de outros textos do autor que pudéssemos instaurar nessa
categoria.
Em “Nelson Rodrigues e outros desagradáveis”, fizemos uma
breve introdução à comparação entre os textos de Nelson Rodrigues e
alguns autores considerados “malditos” na cultura ocidental. Nosso
ponto de partida para a escolha desses autores foi o texto de Georges
Bataille A literatura e o mal7 . A partir da leitura desse texto,
descobrimos que – apesar de a obra de Nelson Rodrigues estar inserida
no espelhamento entre o texto e a cultura que lhe formou – seu Teatro
Desagradável poderia se comunicar com autores pertencentes à cultura
ocidental, conhecidos como malditos, cuja literatura também era
“desagradável”.
No capítulo “A selvagem paixão em Emily Brontë e em Nelson
Rodrigues”, abordamos o tema da paixão como elemento que instaura a
desmedida entre os personagens, como naqueles de o Morro dos ventos
6 RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados.São Paulo: Companhia das Letras.7 BATAILLE, Geoges. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989.
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uivantes8. Trabalhamos, nesse capítulo, com a peça Anjo negro, com o
intuito de demonstrar que a obsessão do personagem “Ismael” por
“Virgínia” acaba por instaurar a desagradável sensação de que os laços
que unem o casal foram compostos tanto pelo ódio, como pela paixão
num desejo que não se esgota com a posse do corpo do outro, mas se
alimenta da possessão de forma inesgotável. Também nessa parte,
lidamos com fragmentos da peça Senhora dos afogados com o intuito de
demonstrar que a selvagem paixão de “Moema” por seu pai acaba por
alimentar o ódio no seio daquela família.
A seguir, abordamos a comparação entre alguns poemas de
Charles Baudelaire e aspectos da obra de Nelson Rodrigues em “Charles
Baudelaire e Nelson Rodrigues: da brevidade do grotesco à perenidade
do sublime”. Apresentamos determinados quadros grotescos
notadamente ligados à carne em putrefação, presentes na obra dos dois
autores. A peça do Teatro desagradável de que escolhemos para análise
foi Dorotéia. Além disso, tecemos considerações sobre a influência
romântica na obra de Nelson Rodrigues, assunto tratado por Adriana
Facina9 em seu ensaio sobre a obra de Nelson Rodrigues.
Em “Marquês de Sade e Nelson Rodrigues: o poder do gozo em o
gozo do poder” trabalhamos com algumas categorias de poder nos dois
autores e apontamos para o fato de que ambos possuem personagens
8 BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. São Paulo: Scipione, 1993.9 FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de NelsonRodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
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que instauram as suas formas de dominação através do jugo sexual
daqueles que são oprimidos. Dessa forma, concentramo-nos em Álbum
de família em comparação com alguns fragmentos da obra de Sade. A
seguir, analisamos mais detidamente o conto “O padre amante” do
Marquês, a fim de apreciarmos o quanto esse escritor trabalhava com as
inversões de posturas e poderios notadamente marcados em sua época.
Encontramos, na obra de Nelson Rodrigues, o mesmo gosto por
conspurcar figuras insuspeitas – como a dos padres.
Finalmente, em “Nelson Rodrigues e Franz Kafka: o desagradável
poder decadente”, tentamos mostrar o quão pode ser desagradável a
sensação de submissão a determinados ditames que se mostram em
decadência. Com isso, o leitor experimenta a sensação do “duplo
desagradável”, por ver-se diante da submissão às formas cerceadoras e
de domesticação dos corpos e por perceber que essas estruturas, apesar
de eficazes, são frágeis, são perecíveis, passam com o tempo ou se
desfazem diante de um poder maior. Nesse capítulo, nos detemos de
forma mais aproximada à análise do conto “Na Colônia Penal”, de Kafka
e nos ativemos à peça Dorotéia.
Esperamos que este ensaio possa contribuir para o estudo de
textos que incomodam o leitor, mas fazem com que novas
possibilidades de estudos ou de espelhamentos entre obra e cultura
possam ser feitos. O objetivo é ver – através do texto literário – o
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quanto podemos descobrir, em nossa cultura ou nas linhas temáticas
que unem textos artísticos oriundos de culturas aparentemente
diferentes, os traços dos jogos de poder que permanecem imersos nas
relações quotidianas, mas que não são expostos, senão em obras que
nos revelam, através da dor, os grilhões que nos prendem a opiniões, a
tradições, a submissões que, de tanto permanecerem em nossa cultura,
dizem-se existentes a nos dominar, cercear e domesticar desde sempre.
O estatuto histórico do texto literário.
É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamentedeterminadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua
configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em umsistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma
rede.
Michel Foucault in Arqueologia do saber.
O pesquisador interessado no estudo comparativo entre o texto
literário e as diversas formas de representação e estudo da realidade
social, seja com o intuito de traçar um perfil dos elementos que
influíram na construção da obra ou curioso sobre as formas que a
literatura pode representar idéias, usos e costumes ou traços das
mentalidades que sobrevivem através das épocas, normalmente se
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depara com o aparente hiato que há entre o universo ficcional e o
momento histórico que ele pretende analisar.
Tal fato ocorre porque, a priori, a obra literária não possui
compromisso justo e direto com a representação de fatos ocorridos, com
algum retrato fiel das mentalidades características de sua época de
formação ou anteriores ao seu nascimento. No entanto, de acordo com a
fundamentação mimética que vigora desde a seminal Arte poética
aristotélica, o texto literário costuma dialogar com diversos níveis da
realidade que serviu de berço à sua formação. Não há como desenraizá-
lo das influências e contingências do presente e do pretérito, mesmo
quando a sensibilidade comum ao texto artístico aponta para idéias e
estéticas que serão adotadas num futuro próximo ou sob a forma de
algum movimento ou escola vanguardista.
Por outro lado, a mimésis que, em última análise, é a base do
texto literário, não pode ser considerada como restrita a uma simples
transposição de um fato, idéia, costume ou acontecimento situado no
tempo e no espaço. Os laços que a literatura possui com as
representações sociais, na maioria das vezes, não se restringem a um
decalque superficial e claro – como sonhariam os estudiosos, mas a
níveis de idéias, usos e costumes que podem aparecer como alegorias10
10 A definição de alegoria presente em Le Robert micro é bastante pertinente:“Allégorie: Suite d’éléments descriptifs ou narratifs concrets dont chacun correspondaux divers détails de l’idée abstraite qu’ils prétendent exprimer, symbolizer.” Traduçãonossa: Alegoria: conjunto de elementos descritivos ou narrativos concretos que
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nem sempre transparentes ao estudioso. No jogo de poder entre as
representações alegóricas, muitas vezes são evocados símbolos11 cuja
força e interesse normalmente requerem um recuo à época estudada e
uma atualização de seu desenvolvimento através dos tempos.
Para termos uma idéia do quanto a realidade pode estar
dissociada do universo ficcional, entendamos que a mimese – elemento
de articulação entre o real e o literário – não é tão simples como uma
primeira abordagem poderia nos mostrar. Paul Ricoeur, no primeiro
volume de Tempo e narrativa, analisa de forma bastante interessante
esse mecanismo. Para ele, a mimese é, na verdade, um conjunto de
três transposições. Vejamos.
Vê-se qual é, na sua riqueza, o sentido de mimese I:imitar ou representar a ação, é primeiro, pré-compreendero que ocorre com o agir humano: com sua semântica, comsua simbólica, com sua temporalidade. É sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que seergue a tessitura da intriga e, com ela, a mimética textualliterária.12
Como vimos, o que Ricoeur chama de mimese I está relacionado à
pré-representação da cultura no texto literário. A cultura une aquele que
correspondem aos diversos detalhes da idéia abstrata que eles pretendem exprimir,simbolizar. In REY, Alain (dir.)Le Robert micro.Paris: Dictionnaires Le Robert, 1998,p.3511 Da mesma forma: “Symbole: Être, objet ou fait qui, par sa forme ou sa nature,évoque spontanément (dans une société ou une civilisation donnée) qqch. d’abstrait oud’absent.” Tradução nossa: Símbolo: ser, objeto ou fato que, por sua forma ou suanatureza, evoca espontaneamente (em uma sociedade ou uma civilização) algo deabstrato ou ausente. Ibid., p. 128812RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (vol. 1). Campinas, SP: Papirus, 1994, p.101
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tece a urdidura da obra àquele que frui o texto literário. Portanto, a
mimese I é a pré-compreensão, a representação da realidade, o
conhecimento coletivo que aproxima autor e leitor13.
Tal fato não poderia ocorrer senão através da permanência de
fatores oriundos das mentalidades coletivas no desenvolvimento das
sociedades e que unem, sob um mesmo construto14 de idéias, poderes
ou vontades de poder que sobrevivem ao passar dos séculos e que se
cristalizam em modelos que denominamos genericamente de tradições.
Esse movimento é presente tanto na fruição de obras contemporâneas,
como também na permanência do texto15 através das várias leituras
que ocorrem durante o desenvolvimento da cultura na linha do tempo.
Cabe-nos também considerar dois pontos importantes. O primeiro
é o fato de que o desenvolvimento da cultura ao longo dos séculos se dá
13A concepção oriental de cultura se nos parece aplicável à noção de que a sua pré-compreensão une o autor ao leitor. Embasada na lei búdica da interdependência, osorientais entendem que os conteúdos individuais também são coletivos e vice-versa:“A consciência individual é feita da consciência coletiva, e a consciência coletiva, dasconsciências individuais. As duas coisas não podem ser separadas. Contemplando aconsciência individual, tocamos a coletiva. Nossas idéias sobre beleza, bondade efelicidade, por exemplo, são as idéias da sociedade.” In NHAT HANH, Thich. A essênciados ensinamentos de Buda. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 9114 Essa palavra é muito usada em Poética do pós-modernismo, como podemos ver aseguir: “Demonstra-se que essas teorias são construtos humanos que podem serpreparados para operar de acordo com os interesses do poder político,tanto quantocom os do conhecimento “desinteressado”: todas são – potencialmente – discursos demanipulação.”In HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro:Imago, 1991, p. 234.15 Para fins metodológicos, entendamos que há a permanência da essência do texto,malgrado as sucessivas edições que o texto pode sofrer e que – bem sabemos –alteram substancialmente a obra. No entanto, neste caso específico, preferimos nãoentrar no âmbito da crítica genética, embora estejamos conscientes de sua atuação eimportância para a busca de um texto que esteja o mais próximo possível da escritaoriginal do autor.
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de acordo com linhas mais ou menos estáveis que, aliás, são guias de
muitos estudiosos das relações possíveis entre as representações da
realidade e o universo instaurado na urdidura do texto literário. Essas
linhas foram, durante muito tempo, os guias que fundamentaram o
desenvolvimento das escolas literárias no Ocidente. Vejamos.
Levando-se em consideração a literatura da épocamoderna, desde o começo da formação da sociedadeburguesa, constata-se que, em diferentes povos europeus,ocorre uma mesma sucessão regular de correntesliterárias. A similitude dessas correntes em diferentescomunidades não pode ser resultado do acaso, mas édeterminada historicamente por condições semelhantes daevolução desses povos: renascimento, barroco,classicismo, romantismo, realismo, naturalismo,modernismo. Essa regularidade faz pensar numa evoluçãoúnica e ordenada de sistemas artísticos inteiros,condicionada no seu aspecto ideológico e artístico.16
Essas linhas conhecidas como fórmulas estéticas tradicionais são
também formadas por maneiras de ver o que é permitido ou é proibido,
de formas de interpretar e se comportar nos diferentes planos do
contexto social; são fruto da necessidade de imposição de algum tipo
poder necessário à estrutura da composição das regras sociais e que se
transformam posteriormente em tradição: comportamentos ossificados
enquanto servirem a interesses que avançam pouco ou permanecem
essencialmente imutáveis durante o avançar dos séculos.
16 NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Editorada Universidade de São Paulo, 2000, p.48
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Os fenômenos estéticos atendem a uma demanda social, podem
servir de paradigma às identificações comportamentais e, por isso,
estão sempre a dialogar com as diversas representações da realidade,
mesmo quando a leitura de uma obra é momentaneamente restrita a
determinados segmentos letrados. Lembremos que o texto literário pode
durar à espera de uma posteridade que lhe seja mais propícia, enquanto
a sociedade se transforma: as releituras que a obra tem o potencial de
propiciar são canais abertos à dialogia17 entre o texto e a sociedade.
A literatura não existe apesar dos fenômenos sociais: ela é um
fenômeno social. Para reinseri-la no tempo e em seu contexto
originários, basta que o estudioso saiba matizar o nível de influência e
de representatividade que a obra pode adquirir em relação ao momento
de sua gênese, como também estar atento às relações de poder que
permeiam os símbolos e alegorias presentes no texto literário.
Isso não quer dizer que a literatura exista para simplesmente
afirmar ou negar interesses ou mentalidades de cada época – apesar de
o texto literário ser um documento privilegiado no que concerne à sua
tessitura marcada pelo contínuo movimento de permanência e de crise
característico da evolução dialógica do signo lingüístico, parece-nos que
a literatura não pode ser, apesar disso, encarada somente sob esse
aspecto, visto que o desejo de transcendência que leva o homem à
17 Empregamos o termo, posto que o deslocamento temporal faz, muitas vezes, comque uma palavra adquira um matiz de significação diferente da original, o que tambémpode ser responsável pela (re)atualização das leituras do texto literário.
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construção do objeto artístico escapa à mera representação de tensões
entre poderios.
O enigma perene que a literatura nos oferece é a contínua tensão
com os paradigmas de comportamentos e idéias existentes no momento
histórico que desejamos trabalhar. Essa tensão pode se revelar ora
negativa, ora positiva, ora neutra: principalmente se analisarmos o
impacto dinâmico que a literatura pode exercer na tensão entre obra de
arte e a cultura.
No âmbito do texto literário, entramos no reino do “como se”, o
da mimese II observada por Ricoeur.
Com mimese II abre-se o reino do como se. Eu poderia terditoo reino da ficção, de acordo com um uso corrente emcrítica literária. Privo-me, contudo, das vantagens dessaexpressão inteiramente apropriada para a análise demimese II, a fim de evitar o equívoco que o emprego domesmo termo criaria em duas acepções diferentes: umaprimeira vez, como sinônimo das configurações narrativas,uma segunda vez, como antônimo de pretensão narrativahistórica de constituir uma narrativa "verdadeira"18.
O texto literário instaura uma representação microcósmica da
realidade através do tratamento singular dado ao signo lingüístico, cuja
plurissignificação permite o deslocamento dos significados para além da
força de imposição de representação de uma narrativa “verdadeira” e
em busca de uma trama que pareça verossímil ao leitor. Paul Ricoeur
está atento à diferenciação entre a narrativa literária e a histórica,
18 RICOEUR, 1994, p.101
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principalmente no que condiz à pretensão que a História possui de
narrar a descrição de um evento ou fato com a maior aproximação
possível da realidade, enquanto a literatura está sempre a manipular
eventos que podem corresponder ou não a fatos que realmente
aconteceram.
É claro que, ao criar uma narrativa a partir de considerações
sobre uma época ou a partir da interpretação de documentos, o texto
histórico aproxima-se perigosamente da ficção, posto que os elementos
que compõem a subjetividade do historiador: posicionamento ideológico,
escolha das características e fatos mais importantes em detrimento de
outros, etc, são comuns também àquele que compõe a obra literária19.
O texto histórico – por mais isento que ele queira parecer – deixa
transparecer essas subjetividades bastante singulares e que não devem
ser varridas para baixo do tapete da isenção da linguagem científica.
No entanto, o que pode ser um elemento negativo para alguns,
em nosso caso é um fato extremamente positivo. A natureza
semelhante do texto histórico e do ficcional somente nos abre caminhos
para a busca de elementos coincidentes, através dos quais poderemos
entender as possíveis relações entre a obra literária e os estudos sobre
as diversas representações da realidade humana, tais quais os estudos
19 Oportunamente falemos aqui da metaficção historiográfica que notadamenteconsagrou-se em língua portuguesa através de títulos de autores como José Saramagoe que fundou novas visões do homem ocidental – notadamente os lusófonos – sobreperspectivas críticas a respeito de sua História. É o caso de SARAMAGO, José.Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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históricos e os sociológicos: com isso, podemos enriquecer deveras
nossa compreensão sobre as diversas maneiras de compreender os
dados provenientes da cultura, que nunca são oriundos de apenas um
setor, mas do entrecruzamento de diversos saberes afins.
No caso específico da análise de Paul Ricoeur, observamos que
tanto a Literatura como a História são escritas feitas a partir de
representações da realidade: enquanto a literatura é formada a partir do
reino do “como se”, o texto histórico busca a seara do “assim foi”.
Outro ponto que devemos notar é que o texto literário costuma
representar um microcosmo fechado, voltado para ele mesmo: um
espaço onde cenas, personagens, alegorias, símbolos e ações estão
voltados para uma narrativa que se encerra no âmbito intrínseco das
tramas, enquanto o texto histórico está invariavelmente aberto, sempre
à espera de outras pesquisas que possam ajudá-lo a recuperar algo que
– na verdade – está inexoravelmente distante: o passado.
Façamos uma breve digressão e evoquemos os distantes tempos
medievos através da análise dos textos a seguir. Nossa interrogação
será o aparente fosso que havia entre a idealização do feminino e uma
prática social na qual a mulher era elemento que suscitava desconfiança
naquele ambiente fundamentalmente misógino. Neste caso, nos
interessa saber por qual motivo uma idealização no campo da literatura
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corresponde a uma depreciação e uma desconfiança no campo das
relações sociais.
Antes disso, é necessário pensarmos que essas dissociações entre
as práticas sociais e o universo presente no texto literário normalmente
escondem idealizações cujo movimento geralmente está voltado para
acobertar o exercício de poderes e tensões que são realizadas de forma
contínua no âmbito das relações sociais.
Esse fato normalmente ocorre porque – em primeira instância – a
literatura costuma ser o espaço onde há a possibilidade de driblar as
regras que normalmente são impostas quando no âmbito da realidade.
O universo presente no texto literário tem sido o lugar onde o
impossível e o ideal se enlaçam para mascarar o aguilhão dos poderes
controladores dos homens.
Por outro lado, se analisarmos o texto literário num nível mais
profundo, veremos que a dialogia que caracteriza o signo lingüístico é
capaz de revelar tensões de interesses que estão por detrás dos
microcosmos estilizados. Esse deslocamento só se torna visível porque a
literatura escapa do que Roland Barthes chama de imposição do poder
através da linguagem.
A razão dessa resistência e dessa ubiqüidade é que opoder é o parasita de um organismo trans-social, ligado àhistória do homem, e não somente à sua história política,histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde
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toda a eternidade humana, é: a linguagem – ou, para sermais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.20
Na verdade, pelo fato de o texto literário escapar dos parâmetros
coercitivos da imposição dos significados é que podemos ver, através
das frestas da literariedade, os padrões de tensão entre poderes que
são exercidos no âmbito das relações sociais. Vejamos mais um
fragmento da aula de Roland Barthes.
Pode-se dizer que a terceira força da literatura, sua forçapropriamente semiótica, consiste em jogar com os signosem vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria delinguagem cujos breques e travas de segurançaarrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio dalinguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas.21
Essa heteronímia faz com que – por um lado – o signo literário se
mostre incapaz de encobrir de forma total os interesses que há por
detrás das idealizações que pululam nos textos literários. Sempre há a
fresta, oriunda dos deslocamentos dos significados, através da qual as
relações encobertas, os interesses voltados para as continuidades de
tradições que normalmente aparecem como “eternizadas” no âmbito das
relações humanas, aparecem de forma bastante clara.
No entanto, a análise do texto literário, por si só, não é capaz de
clarificar essas frestas que mostram o quanto podem ser encobertos
interesses e tensões entre poderes. É fundamental o entrecruzamento
20 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 1978, p.1221 Ibid., p.29
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com textos que trabalhem, com em nosso caso, com discursos que
tentam recuperar a realidade histórica ou social que serviu à
representação, à construção do texto literário.
Voltemos à análise dos textos que nos propomos. Em primeiro
lugar, devemos entender que tipo de sentimento está retratado na
literatura daquele tempo. Nosso ponto de partida deve ser a leitura do
texto literário.
A idealização da mulher – dissociada de sua materialidade e
presente em grande parte desses poemas – atende, em primeiro lugar,
à necessidade de exílio do corpo feminino, considerado impuro e
desviante no ambiente católico e misógino da Idade Média. De um lado,
encontramos a figura idealizada da mulher, ao mesmo tempo virgem e
mãe, Maria e, de outro, a imagem perigosa da feminilidade desejante –
Eva, fêmea – usurpadora das chaves do reino dos céus e aquela que
afastou a humanidade dos frescores e abundâncias inocentes do
Paraíso.
Entre Av’e Evagran departiment’á.
Ca Eva nos tolheuo Parais’e Deus,Ave nos i meteu;
porend’, amigos meus:
Entre Av’e Evagran departiment’á.
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Eva nos foi deitardo dem’ en sa prijon,
e Ave en sacar;e por esta razon:
Entre Av’e Evagran departiment’á.
Eva nos fez perderamor de Deus e ben,
e pois Ave avernoi-lo fez; e poren:
Entre Av’e Evagran departiment’á.
Eva nos encerrouos ceos sen chave,
e Maria britouas portas per Ave.
Entre Av’e Evagran departiment’á22.
A idealização do feminino, sob as hostes de uma imaterialidade
confortável, corresponde a uma real desconfiança e até mesmo ao
temor no plano das relações sociais. A mulher é vista como um bem de
troca, valioso, que – na economia matrimonial – significa a passagem
segura de terras, seja ao seu filho primogênito ou ao seu consorte. Por
outro lado, a ideologia eclesiástica olhava seus naturais meios de
sedução com extrema desconfiança, ocupada que estava em mantê-la
exilada de um poder que se consolidava sob os auspícios do
celibatarismo e cujo modus operandi realizava-se não poucas vezes pela
22 Música antiga da UFF. Cânticos de amor e louvor. Rio de Janeiro: UFF, 1996. 1 CD.
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negação do desejo através da demonização do corpo e da sexualidade
femininas.
Sob a frivolidade e os sarcasmos jaz a advertência, firme,e tudo repousa sobre uma idéia indiscutível, indiscutida: aidéia que os dirigentes da Igreja faziam das mulheres daFrança do século XII. Eles constatavam. A natureza,julgavam, cavou um fosso profundo entre duas espéciesdistintas, a masculina e a feminina. Ao longo dessafratura, instala-se a frente de um implacável combate.23
O que geralmente ocorre quando estudiosos se debruçam sobre o
texto literário é que são priorizadas as continuidades através das quais o
texto passa a ser visto como o reflexo de comportamentos e tradições
que se duplicam no universo das relações sociais. Quando o estudioso
se depara com a aparente descontinuidade entre os dois universos
representados – um deles é o literário e o outro é o que se mostra
presente em seus estudos – a tendência é exilar a análise da literatura
no nível das relações intertextuais que possivelmente podem ocorrer
entre as obras: ao coincidir com as representações sociais, o texto está
voltado para uma representação da realidade; ao diferir, o texto está
voltado para o universo da estética e da idealização, essas últimas
dissociadas, distantes das representações sociais.
Um estudo que realmente abarque as relações possíveis entre o
texto literário e as representações sociais que lhe serviram de berço não
23 DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia dasLetras, 2001, p.15
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deve ser embasado somente nas continuidades reveladas pelos
espelhamentos sucessivos entre a obra e os textos sobre a realidade. As
descontinuidades também devem ser analisadas.
No nível das descontinuidades, vemos que a aparente dissociação
entre o que é retratado na literatura e o espelho da realidade social que
a narrativa histórica propicia ao leitor pode servir como interrogação
bastante proveitosa. Em nossa análise, por exemplo, a idealização do
feminino, numa ambiência de desconfiança, faz surgir questionamentos
reveladores dos significados possíveis dos símbolos ou das alegorias:
artifícios normalmente usados para encobrir conflitos, interesses que
estão voltados às tensões do exercício do poder entre segmentos da
sociedade que serviu de berço à obra.
O exílio do corpo feminino, separado em sua sensualidade
imanente, faz com que a imagem da mulher seja bipartida em duas
instâncias definidamente estipuladas: não é o feminino que realmente
se deseja exilar, mas tudo aquilo que pertence à feminilidade e que
escapa aos interesses daquela sociedade fundamentada na sujeição da
mulher. Com isso, a dicotomia se nos parece bastante clara: não há
uma contradição entre idealização e misoginia, mas uma vontade de
sujeição a partir da criação de um télos, lugar onde o construto –
símbolo feminino positivo, Maria – formado de qualidades normalmente
apreciadas na mulher, convive intimamente com o seu oposto negativo
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– símbolo feminino negativo, Eva – formado do conjunto de todo
comportamento desviante.
Traidora – era Eva: “Quem convenceu a provar do que eraproibido?” – briguenta, avara, leviana, ciumenta e, porfim, encimando esse elenco de ruindades, ventre voraz.24
Pensemos agora nos sentimentos retratados nas Cantigas de
Amor: como entender a devoção cega ao outro, como é o caso das
sentimentalidades cavalheirescas, num contexto onde as uniões eram
agenciadas e realizadas em torno de interesses fundiários?
Em primeiro lugar, temos que pensar no lugar onde está
normalmente localizado o amor cavalheiresco: fora das uniões formais.
No entanto, apesar de esse amor aparentemente ameaçar a estabilidade
das relações maritais consagradas sob as hostes do pertencimento e da
fidelidade da Senhora ao seu marido, o que vemos é o florescimento de
um elenco de sentimentalidades que parecem fugir desse conluio. Mais
ainda, o que há é a construção de uma verdadeira tradição poética
consolidada na devoção do “valete” à sua dama eternamente proibida.
No entanto, a verdadeira disputa que há entre o “valete” e o poder
imutável do marido não deixa de mostrar o real deslize que há para a
potência que encorpa a figura feminina: subitamente alçada ao poderio,
a ter, sob o seu jugo, os cuidados de quem jamais lhe possuirá e,
graças a essa impossibilidade, sempre há de lhe desejar. Na verdade, o
24DUBY, 2001, p.17
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que se deseja não é o feminino, o seu corpo ou sua presença que, por
mais deslumbrante, esgotaria-se sob o peso da experiência. Vê-se que o
que se deseja, na verdade, é o “desejar” perenemente alimentado pela
impossibilidade da posse do objeto do desejo. Mais uma vez, a mulher –
em sua real materialidade – é colocada num patamar distanciado, num
ponto em que sua atuação social está voltada à observância estrita das
leis comportamentais que lhe são impostas.
A paixão certamente era considerada um elemento perigoso e que
deveria ser deslocada do âmbito das uniões matrimoniais. Pesquisas
históricas apresentam a existência de um sentimento esponsal muito
mais voltado à amizade e ao amor domesticado: o casamento era um
negócio para produzir herdeiros e manter ou aumentar bens; a sua
manutenção se dava por uma espécie de acordo mútuo, no qual o sexo
era apenas mais uma das obrigações do casal.
A busca do exílio da paixão no casamento atravessará a Idade
Média e sobreviverá em longa duração na Idade Moderna até o final do
século XIX, quando instituição das uniões começará a ser bombardeada
pelas novas disposições do indivíduo, consumidor cada vez mais livre
para fazer valer os seus rebeldes sentimentos pessoais e alçá-los ao
âmbito das instituições sociais.
Paulatinamente as novas disposições da família burguesa serão
orientadas a buscar a associação entre o sentimento amoroso em todos
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os seus aspectos no contrato matrimonial. Até então, podemos dizer
que o exílio da paixão – entendamo-la em toda a sua anti-
socialibilização individualista e vista até mesmo como insalubre – no
matrimônio tornou-se uma prática de longa duração, seja sob a égide
da nobreza latifundiária ou sob os auspícios de uma burguesia ansiosa
por aproveitar os bons e seguros exemplos da classe a qual veio
destituir.
É importante notarmos que a literatura cria paradigmas
comportamentais que, vistos como modelos idealizados, não deixam de
influenciar, mesmo que seja através da diluição oriunda da
paraliteratura, diversos segmentos sociais, que não se comportam de
maneira estanque e dissociada: são motrizes que, juntas, formam o
engenho que dá movimento às relações entre os homens.
É certo que a ideologia moral expressa pelos estóicos – osque crêem que a felicidade está na virtude –, durante osprimeiros séculos de nossa era, antes da expansão docristianismo, favorecia a procriação, a propagação daespécie, como fim e justificativa do casamento. Muitoamor, no entender de Jerônimo, confessor e doutor daIgreja, era justamente o amor sem reservas ou limites. Emuito amor era ruim. Esse era um tipo de amor nefasto,pois equivalente à paixão dos amantes fora do casamento.Um homem sábio devia amar sua mulher comdiscernimento e não com paixão. E, por conseqüência,controlar seu desejo e não se deixar levar pelo prazer dosexo. “Nada é mais impuro do que amar sua mulher comoa uma amante. Que eles se apresentem às suas mulherescomo maridos e não, amantes.”O tom de Jerônimo, comovê o leitor, é o de um mandamento. A velha e banalfórmula do “amor contido” no casamento e do “amor-paixão” fora do casamento, de início concebida pelo
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estoicismo, não como uma prática, mas como a regra deum código moral, era aí aproveitada.25
A paixão deveria estar fora das uniões matrimoniais, exilada no
âmbito de um desejo irrealizável. Essa aparente tragédia, conforme
poderíamos pensar, hoje em dia, tem servido perfeitamente aos
interesses do capital desde a Idade Média, pois exila o amor desmedido,
elemento perigoso, à instância de uma idealização vassalar, impossível
de se realizar ou ameaçar os pactos matrimoniais. Assim é que se
apresenta o amor vassalar das Canções de Amor.
O paradigma do amor medieval, que ocorre entre a dama casada
e o seu apaixonado, um “valete” sempre à sua disposição para os
trabalhos mais árduos, para as provas de devoção mais pitorescas,
sobrevive em longa duração na literatura ocidental não somente por
conta de sua especificidade literária, mas por corresponder a uma
necessidade perene de representação do exílio da paixão, que não é
restrita somente aos distantes tempos medievos, mas que percorre
gerações de homens e mulheres submissos à ordem dos interesses do
capital sobre a domesticação dos corpos.
26Madame, si je vivais éternellement
25 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil.São Paulo: Contexto, 2005, p.7526 Tradução livre e nossa: “Senhora, se eu vivesse eternamente/ eu sempre vos seriafiel./ Estranhamente me apraz/ amar-vos, quaisquer danos/que me sejam destinadosou a porvir./ Se eu não posso fruí-lo (o amor) totalmente/ mesmo assim, vos dedicomeu coração/meu pensamento, em todo caso, em melhor valor/eu vos dedico melhorvigor/ e distração e alegria.// Por Deus! bela e doce amiga/ pela qual eu me inflamo eelanguesço/ vós haveis me conquistado de tal maneira/ que amar outra não me trará
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toujours je vous serais fidèle.Étrangement il me plaît
de vous aimer, quelque dommage que j'en puisse avoirdestiné ou à venir.
Si je ne puis jouir de toutaussi bien que le souhaiterai mon coeurma pensée du moins en vaut davantage
j'en estime mieux jeunesseet distraction et gaieté.
Par Dieu! belle douce amiepour laquelle je m'enflamme et languis
vous m'avez conquis de telle sorteque jouir d'une autre ne me plairait pas
j'ai essayé de mentirpour mieux couvrir
l'amour excessif que j'avais pour vous.Jamais un jour n'a changé ma pensée
de vous aimer finementet je n'en aurais pas le pouvoir.
Je préfère votre seigneurieà celle de quelque autre dame que je vis jamais.
Et votre personne noble et loyaleplus gracieuse que je ne saurais dire
me fait mourir de désircar plus souvent nous nous regardons.27.
[...]
Notemos que o sentimento retratado nessa Cantiga de Amor está
intimamente ligado à servidão vassalar, a um amor que, apesar de se
configurar como impossível, exige uma servidão que não admite
quaisquer possibilidades de outro objeto do desejo. Por outro lado, é
prazer/ eu tentei mentir/ para melhor encobrir/ o extremo amor que tenho por vós./Nem por um dia, mudei minha intenção/ de vos amar delicadamente/ mesmo sem teresse poder.// Eu prefiro vossa senhoria a qualquer outra dama que eu possaconhecer./ E vossa pessoa nobre e leal/ mais graciosa do que eu saberia dizer/ faz-memorrer de desejo/ somente ao nos olharmos.”
27 ZUCHETTO, Gérard; GRUBER, Jörn. Le livre d'or des troubadours. Paris: Les Éditionsde Paris, 1998, p.49
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interessante notarmos que é o servo que configura o poder à dama,
poder esse que se realiza a partir de uma impossibilidade de “ser
possuído” por outra que não seja a de seus anseios. É esse o sentido
que está normalmente expresso nas cantigas de amor: o objeto
idealizado, a figura feminina, nada mais é do que um ícone – valioso,
claro – que arregimenta o impulso daquele que se coloca como seu
“valete”. Nesse sentido, a “feminilidade desejante”, que é – na verdade
– o que se quer encobrir através dessa idealização, não aparece.
Servo e senhora passam a ser unidos pelos laços que os mantêm
no âmbito de posse e de possuidor, posto que o ícone feminino só
possui a distinção de ser adorado a partir do momento em que é
“distinto” de outras damas através da obsessão do adorador. Com isso,
consegue-se o claro objetivo de exilar a sexualidade feminina ao âmbito
de uma idealização alimentada pela sua perene impossibilidade de
realização, com a vantagem de encobrir – sob os belos véus da quase
imaterialidade – a mulher como sujeito de um desejo.
O poder exercido pela simbologia do feminino é o da mulher
impossível, que notadamente engloba la terre28, cuja posse é visceral na
Idade Média. Essa nuance deve ser adicionada à concepção do amor
28 É importante notarmos que a representação simbólica da terra é basicamentefeminina: “Simbolicamente, a terra opõe-se ao céu como o princípio passivo aoprincípio ativo; o aspecto feminino ao aspecto masculino da manifestação; aobscuridade à luz; o yin ao yang; tamas (a tendência descendente) a Sattva (atendência ascendente); a densidade, a fixação e a condensação (Abu Ya’qub Sejestani)à natureza sutil, volátil, à dissolução.” In CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Riode Janeiro: José Olympio, 2003, p. 878
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42
provençal e está presente no exemplário norteador das relações
amorosas entre homens e mulheres.
A Igreja cristã, tão pronta a captar as pulsões secretas,fez tudo para canalizar os velhos cultos agrários que atinham precedido: ela enquadrou, guiou, assimilou, osjogos e as festas ao ritmo das estações, as “árvores demaio”e os fogos de São João, mas ela não quis ir até ofundo do subconsciente camponês: a terra é Mulher, ohomem a fecunda e os frutos são seus. Os padres quelevaram Maria para diante dos altares não ousaram fazerdela uma deusa-mãe, uma Ceres cristã.29
É na aparente dissociação entre exílio do corpo e idealização do
feminino que reside a ligação clara numa sociedade que vê a mulher
como um bem valioso, que pode representar riquezas ou terras, tanto
no âmbito das relações sociais, como notadamente no campo simbólico,
e formadora de uma literatura na qual o feminino é adorado plenamente
muito mais como um ícone do que como um corpo ou um ser.
Se nos voltarmos para a longa duração da idealização da mulher
como instrumento de sua submissão, vemos que essa prática tem
permanecido ao longo dos séculos nas culturas ocidentais. Esse é um
padrão, digamos, comum e que tem suas raízes escondidas numa
tradição que pode, num primeiro momento, nos parecer anistórica, mas
cuja historicidade nos dá pistas sobre o seu surgimento e dos porquês
de sua permanência. Esse, talvez, seja um dos trabalhos mais
29 LE GOFF, Jacques et SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidentemedieval. Bauru, SP: EDUCS; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.556
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interessantes do pesquisador: recuperar as tensões do passado para
que, em sua sobrevivência no presente, consigamos material para
questionar relações de dominação que de tão arraigadas em nossa
cultura parecem constituídas “desde sempre”.
Lembrar que aquilo que, na história, aparece como eternonão é mais que o produto de um trabalho de eternizaçãoque compete a instituições interligadas tais como afamília, a igreja, a escola, e também, em uma outraordem, o esporte e o jornalismo (estas noções abstratassendo simples designações estenográficas de mecanismoscomplexos, que devem ser analisados em cada caso emsua particularidade histórica) é reinserir na história e,portanto, devolver à ação histórica, a relação entre ossexos que a visão naturalista e essencialista dela arranca(e não, como quiseram me fazer dizer, tentar parar ahistória e retirar às mulheres seu papel de agenteshistóricos).30
O universo das mulheres nas peças “desagradáveis” de Nelson
Rodrigues31 possui uma série de elementos que apontam para modelos
femininos importantes em seu universo ficcional. Ao percebermos e
compararmos alguns padrões de norteamento e contenção da
sexualidade feminina na Idade Média, vemos, em algumas personagens
de Nelson Rodrigues, uma curiosa internalização da ordem masculina
sob a forma do exagerado pudor feminino, da auto-desconfiança a
30 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003,p.631 Falaremos com mais acuidade sobre o Teatro Desagradável de Nelson Rodriguesmais adiante. Por hora, analisemos oportunamente alguns indícios do feminino emlonga duração em seu universo ficcional.
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respeito da própria sensualidade, do nojo do corpo como o lugar do
pecado e da lascívia: elementos que nos fazem pensar que os ditames
da sexualidade reprimida permaneceram em longa duração em nossa
cultura e que possuem a capacidade de aparecer na literatura, como
podemos ver, a seguir, nesse fragmento de Senhora dos afogados.
AVÓ – Eu, (indica o próprio peito) eu quando era moça ebonita, como és agora, eu tinha vergonha de mimmesma... Tinha vergonha de tudo que era mulher emmim. (rápida e acusadora) E tu? tens vergonha? de teupróprio corpo, tens? ...Ou despes teu busto diante doespelho para namorá-lo? Responde!32
Essa personagem é característicamente reprimida em seus anseios
sexuais. Na verdade, sua presença marca a existência da lembrança da
tradição que abarca as mulheres daquela família: o desejo pela negação
da sexualidade. O que torna a mulher obscena, o que a faz romper os
pactos é o desejo. Nesse caso, o desejo feminino é o fator que está
ligado à traição, ao desvio, à possibilidade de rompimento dos pactos.
Nesse texto, a personagem “D. Eduarda” deixa-se seduzir pelo
noivo de sua filha. Ele a leva para o bordel, com o intuito de possuí-la,
como também de humilhá-la. Neste ponto, encontramos o interessante
índice de que a conspurcação do feminino ocorre através da realização
de seu desejo. Por outro lado, não podemos deixar de notar que é
justamente a realização desse mesmo ato que se apresenta sob a forma
32 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1993, p. 675.
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de vingança. “D. Eduarda” é consciente de que não está a trair somente
o seu marido, mas toda uma série de parentes da família Drummond –
contexto profundamente cerceador e opressor.
D. EDUARDA – Minha também!...Minha! Eu também estoume vingando...Deles, todos!...Daquela casa, e dosparentes, vivos e mortos...do meu marido! Da minha filha!E me vingo também de mim mesma....Me vingo de minhaprópria fidelidade...(novo tom, dolorosa) Só não me vingodo meu filho....Dele, não. Também é o único...33
Em Anjo negro, vemos que o desejo imperioso de “Ismael” por
“Virgínia” é um índice que mostra o quanto cabe ao homem o lugar de
possuidor do corpo feminino. O casamento deles é iniciado com uma
violação: “Ismael” é convidado por uma tia vingativa de “Virgínia” para
realizar a posse sexual violenta no quarto da moça. Por esse motivo é
que o negro médico consegue se casar com uma mulher branca. Àquele
que desvirginou a mulher, cabe a posse de seu corpo sacralizada
através do casamento.
Se a relação sexual se mostra como uma relação social dedominação, é porque ela está construída através doprincípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo,e o feminino, passivo, e porque este princípio cria,organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculinocomo desejo de posse, como dominação erotizada, e odesejo feminino como desejo da dominação masculina,como subordinação erotizada, ou mesmo, em últimainstância, como reconhecimento erotizado da dominação.34
33 Ibid., p.71734 BOURDIEU, 2003, p.31
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No entanto, “Virgínia” se nega a consubstanciar esse amor a partir
do momento em que mata todos os filhos homens, negros oriundos
daquela relação. Essa é a sua vingança, posto que se o seu corpo é
pertencente a “Ismael”, ele não possuirá o fruto masculino dessa
relação. Se o espaço dele é o da posse, o dela seria o da reduplicação
desse mesmo ato através da maternidade: é justamente isso que ela
nega vorazmente. Dessa forma, ela consegue – ainda que de forma
igualmente trágica e violenta – impor a sua vontade de se revoltar
contra a violação constante que sofre de seu marido.
Anjo negro realiza uma profunda reflexão sobre o pertencimento
da mulher ao marido, sobre a impossibilidade de saída de uma mulher
que, condenada pelo casamento a não mais possuir o próprio corpo, se
revolta através da negação ferrenha do seu papel de mãe. Relegada ao
patamar de um objeto – ainda que valioso – “Virgínia” se revolta
constantemente em relação à sua sina, ao seu encarceramento
involuntário. No entanto, não vê possibilidade de fuga de sua prisão.
Esse fato torna a ambiência da peça cada vez mais angustiante, posto
que não há possibilidade de vida além dos muros da verdadeira
fortaleza que “Ismael” construíu para defender o seu precioso bem – o
corpo vivo de sua mulher branca.
Dorotéia é dedicada inteiramente ao universo feminino, onde os
paradigmas personalizados pela negação do desejo nas irmãs do clã de
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“D.Flávia” convivem com a prostituta ansiosa por redenção “Dorotéia”. A
sexualidade como elemento que conspurca o corpo feminino é levada ao
extremo do paroxismo por personagens que se recusam a qualquer
manifestação de sensualidade. Uma casa onde não há quartos para que
as mulheres não sonhem, onde homens não podem entrar, onde a
grande esperança é a negação de qualquer desejo se transforma num
cáustico deserto capaz de sugar tudo o que é vivo através da morte ou
do lento apodrecimento.
A negação do desejo se transforma, portanto, na impossibilidade
do amor, do gozo, do sonho, do idílio: uma norma a ser seguida
religiosamente pelas mulheres daquele clã. Nesse ponto, o leitor é
levado ao horror de estar diante do paroxismo da contenção sexual: até
um certo nível, é uma questão importante, até mesmo tradicionalmente
positiva. A mulher virtuosa é aquela que não se deixa levar pelos apelos
insidiosos da carne. No entanto, o que vemos em Dorotéia é que a
negação do desejo chega a tal ponto que se transforma num verdadeiro
pesadelo, nutrindo-se da carne, dos sonhos de gerações e gerações de
mulheres horríveis, profundamente pudicas e assustadoramente
assexuadas.
D. FLÁVIA – É também a nossa vergonha eterna!...(baixo)Saber que temos um corpo nu debaixo da roupa...Masseco, felizmente, magro...E o corpo tão seco e tão magroque não sei como há nele sangue, como há nelevida...(gritando) Que vens fazer nesta casa sem homens,nesta casa sem quartos, só de salas, nesta casa deviúvas? (exultante) Procura por toda parte, procura
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debaixo das coisas, procura, anda, e não encontrarás umafronha com iniciais, um lençol, um jarro!35
As mulheres da família de “D. Flávia” são estranhamente
parecidas com as iconografias feitas das mulheres medievais. Magras,
lívidas, sujeitas a uma virtude que estaria acima delas, que estaria
distante de sua possibilidade de alcance: a negação de um desejo
pertencente de forma indelével às suas constituições físicas e mentais.
O dado perverso é que somos acostumados a ver a mulher como vítima
da imposição desses ditames, o que nos coloca na grata posição de nos
solidarizarmos com aquelas que, no passado, sofreram por gerações e
gerações a imposição de leis de dominação e domesticação dos corpos.
Em Dorotéia, por outro lado, a mulher não é objeto da imposição
das leis de contenção e de domesticação da sexualidade. Ao contrário,
ela é o agente que impõe a si e ao outro esses movimentos
profundamente dolorosos. Não resta ao leitor a nobre postura da
compaixão: a vítima tornou-se um algoz pior que os algozes que lhe
haviam submetido. A prostituta “Dorotéia” abraça tão apaixonadamente
o cerceamento de sua própria sexualidade que chega a se contaminar
com chagas para que seu semblante nunca mais atraia qualquer olhar
ou desejo masculino.
35 RODRIGUES, 1993, p.635
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Acontece, que não há como negar um desejo – esse é parte da
constituição humana. Qualquer doutrina, pacto, virtude ou religião
jamais farão extinguir, no homem, o apelo inexaurível da vida, da
sexualidade. Transformada em uma mulher horrenda, “Dorotéia” une-se
indelevelmente ao modelo de virtude “D. Flávia”. Essa última, descobre
tardiamente que o desejo que há em seu corpo é totalmente
inextinguível. Sua carne sonha, como devaneia a carne de “Das Dores”:
sua filha que retorna ao seu útero. Fecha-se o círculo de fogo –
condenadas a desejar e a negar-se a esse desejo, as mulheres do clã de
“D. Flávia” e de “Dorotéia” remontam à longa duração do contrato de
mortificação, de desconfiança, de demonização da sexualidade feminina
que, há séculos, perdura em nossa cultura.
Por esse motivo, cabe-nos avaliar o quanto um texto literário
pode nos revelar a respeito dos pactos que fazemos e que aceitamos
tacitamente quando no quotidiano das relações sociais. Pouco ou nada
saberemos sobre as verdades que repetimos, sobre as decisões ou os
julgamentos que realizamos se não estivermos dispostos a observar o
cruzamento das forças que permeiam as relações entre os homens.
Cabe-nos, portanto, olhar para o espelho retorcido que
determinados textos literários nos oferecem, posto que eles
potencialmente guardam a possibilidade de revelação de o quanto os
pactos sociais não são simples, do quanto a vítima pode se tornar algoz
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e vice-versa. Esses textos desagradáveis nos mostram que – na verdade
– somos todos cúmplices das forças que pensamos combater. Estamos
mais envolvidos do que gostaríamos nas linhas de força que atuam na
dominação e na pedagogia do poder.
O que o texto nos oferece é a possibilidade de escolher continuar
ou não a compactuar com as mesmas tradições, a olhar as
possibilidades de norteamento dos comportamento com os olhos menos
turvados pelas forças de eternização. No entanto, a leitura – em si
mesma – não nos abre tantos caminhos quanto se não acompanharmos
esses insights com outros textos que abarquem os fenômenos sociais,
como os históricos, os sociológicos, os antropológicos, etc.
A partir da leitura da obra e da escolha das áreas dos fenômenos
sociais mais importantes para a pesquisa, o estudioso começará o
cruzamento com os textos das áreas escolhidas a fim de traçar as
pontes que recolocarão a literatura no mundo, assim como o mundo na
obra de arte. Esse é o âmbito da mimese III, conforme estipulado por
Ricoeur.
Generalizando para além de Aristóteles, diria que mimeseIII marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundodo ouvinte ou do leitor. A intersecção, pois, do mundoconfigurado pelo poema e do mundo no qual a açãoefetiva exibe-se e exibe sua temporalidade específica.36
36 RICOEUR, 1994, p.110.
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O âmbito da mimese III se dá fundamentalmente na relação entre
o texto e a ação efetiva da leitura. Essa é a fresta na qual há a
confrontação entre o microcosmo do “como se” e a realidade cultural
experienciada pelo leitor. Esse é o âmbito da interpretação da literatura,
ou melhor, da interpenetração entre a cultura contemporânea ao leitor e
a que aparece no texto.
O resultado dessa tensão, ao transformar-se em vivência no
fruidor do texto literário, tem o potencial de redimensionar-se em textos
críticos sobre a obra: no caso do leitor especializado, do estudioso. Uma
interessante distinção é apresentada por Pierre Bourdieu, quando diante
da diferenciação de papéis, o do autor e o do leitor. Para tanto, esse
estudioso remonta à época medieval. Vejamos:
E, para avançar um pouquinho nessa reflexão, gostaria delembrar a oposição medieval que me parece muitopertinente entre auctor e lector. O auctor é aquele queproduz ele próprio e cuja produção é autorizada pelaauctoritas, a de auctor, o filho de suas obras, célebre porsuas obras. O lector é alguém muito diferente, é alguémcuja produção consiste em falar das obras dos outros. Estadivisão, que corresponde àquela de escritor e crítico, éfundamental na divisão do trabalho intelectual37.
Também é no parâmetro da mimese III que o trabalho do
historiador se confunde com o do crítico literário, posto que ambos estão
imbuídos do propósito de “interpretar” a obra: vista pelo primeiro como
37 Pierre Bourdieu in CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: EstaçãoLiberdade, 2001, p.232
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documento histórico e, pelo segundo, como objeto estético. No entanto,
os dois estudiosos não poderão deixar de escutar os ruídos do tempo no
qual o texto foi feito.
Quanto ao fato de o crítico estar disposto a interpretar o texto
literário, isso não é novidade para a tradição dos estudos de Teoria ou
de Literatura Comparada. No entanto, estudiosos de outras áreas vêm
descobrindo a facilidade que uma devida interpretação não só das
continuidades entre obra e sociedade, mas descontinuidades entre esses
dois contextos pode servir para enriquecer os seus trabalhos.
O modus operandi crítico-interpretativo do historiador, por
exemplo, não é uma novidade para a historiografia mais recente. É,
antes de tudo, um conselho metodológico às gerações que surgiram a
partir do advento da História das Mentalidades.
Sublinhou, com razão, Eric Hobsbawm que a nova históriatem, em primeiro lugar, objetivos de alargamento eaprofundamento da história científica. Sem dúvida que elaencontrou problemas, limites e talvez impasses. Mascontinua a alargar o campo e os métodos da história e, oque é mais importante, Stone não teve em conta o quepodia ser verdadeiramente novo, “revolucionário”, nasnovas orientações da história: a crítica do documento, onovo tratamento dado ao tempo, as novas relações entrematerial e “espiritual”, as análises do fenômeno do podersob todas as suas formas e não só do político.38
38 LE GOFF, Jacques. História e memória.Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996,p.143, grifo nosso.
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É nesse sentido que podemos dizer que a literatura pode dialogar
com os textos que encontramos em áreas que não são as restritas à
crítica literária, posto que o texto artístico não se insere somente no
microcosmo formado por escritos de sua mesma categoria39. Ao
contrário, quando o pesquisador faz o cruzamento de textos literários
com outros que não são considerados artísticos, ele se depara com
pistas bastante interessantes entre os conteúdos que estão na obra e os
que estão em seu exterior, posto que os textos não literários também
possuem o poder de representar fragmentos do imaginário, idéias, usos,
costumes ou mentalidades pretéritas ou contemporâneas à época de sua
formação.
Tal fato ocorre porque os laços que unem a escrita literária e suas
possíveis ligações com as representações da realidade do autor e do
leitor ocorrem também no nível da inter-relação temporal. A escrita
literária e suas possíveis referências à experiência existencial é objeto
de estudo em Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur, no qual o autor
realiza a importante missão de re(unir) a literatura às bases de uma
temporalidade que não se circunscreve apenas à urdidura do texto, mas
que avança à realidade da experiência.
39 Embora possua uma metodologia própria e voltada para a busca dedescontinuidades, a genealogia de Michel Foucault – ao expandir a sua pesquisaatravés de textos de diversas áreas – nos ensinou que comparação de textos de outrasáreas com os literários podia nos render considerações importantes.
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É chegado o momento de ligar os dois estudosindependentes que precedem e de pôr à prova minhahipótese de base, a saber, que existe entre a atividadehumana de narrar uma história e o caráter temporal daexperiência humana uma correlação que não é puramenteacidental, mas apresenta uma forma de necessidadetranscultural. Ou, em outras palavras: que o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de ummodo narrativo, e que a narrativa atinge seu plenosignificado quando se torna uma condição da existênciatemporal.40
O tempo experienciado está ligado intimamente à nossa
capacidade de dar coerência a determinados acontecimentos que, sem
essa simplificação e dotação de regularidade, estariam totalmente
dispersos em nossa existência. Lembramo-nos do pretérito a partir do
momento em que inter-relacionamos fatos e episódios que ocorreram
em ocasiões específicas. Ordenar esses acontecimentos é situá-los
inexoravelmente em uma linha temporal, onde a coerência que eles
demonstram muitas vezes depende da sucessão em que são dispostos.
A urdidura da narrativa literária41 apresenta uma imitação que
ocorre a partir de elementos retirados de representações da vida não
somente porque (re)dispõe situações, atos, fatos e personagens que são
mais ou menos verossímeis, mas porque – ao representar um
microcosmo – fundamenta-o a partir de uma temporalidade intrínseca,
40 RICOEUR, 1994, p. 8541 Nesse caso, englobamos nestas considerações tanto a narrativa romanesca quanto ogênero dramático que, apesar de ser circunscrito a um tempo mais curto daquele quenormalmente encontramos nas narrativas romanescas, não deixa de se articularatravés de uma temporalidade análoga à da existência, seja a psicológica ou a advindada sucessão dos acontecimentos.
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que pode estar relacionada à ordenação dos episódios ou a
especificidades psicológicas de personagens-chave à trama. O
importante é que tanto a ordenação, como a sucessão de atos, episódios
ou fatos impõem ao texto literário uma movimentação que passa a
configurar-se como dotada de uma temporalidade análoga à experiência
humana.
Essa temporalidade, que entendemos como a urdidura dos fatos e
atos presentes no texto e que comparamos à vida, é de suma
importância na relação entre a literatura e a experiência pessoal. Os
fatos – separados e isolados – não nos causam tanta curiosidade quanto
as suas disposições e sucessão. O homem vem a se identificar com a
movimentação do fluxo de tensões configuradas no texto literário. É por
esse motivo que nos “vemos” ou rechaçamos nossa identificação com
um personagem, seja ele de que forma estiver representado ou qual
poder estiver representando: não é somente o que ele é, mas como ele
age, de que maneira agencia os fatos e como eles são redimensionados
a partir da sua intervenção. A capa do rei ou os andrajos do mendigo,
em última análise, serão o que menos nos importará numa instância
mais profunda e sim quais e como serão realizadas as ações no palco ou
nos enredos dos romances.
O insight de notar que o elemento mais importante na apreciação
do texto literário é a ação que é organizada através de seu
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posicionamento numa linha temporal e não a caracterização, na
verdade, não é novo. Ao contrário, já existe no universo da apreciação
da literatura desde Aristóteles. Não foi por outro motivo que esse autor
aconselha os poetas a se concentrarem mais nos atos do que na
caracterização dos personagens, a fim de emprestar qualidade aos seus
textos.
42La plus importante de ces parties est l’assemblage desactions accomplies, car la tragédie imite non pas leshommes mais une action et la vie, le bonheur (etl’infortune; or le bonheur) et l’infortune sont non unemanière d’être; et c’est en raison de leur caractère que leshommes sont tels ou tels, mais c’est en raison de leursactions qu’ils sont hereux ou le contraire.43
O movimento é o que nos seduz, a maneira como determinados
atos e fatos são agenciados, a forma como eles podem se encaixar ou
se transformar no microcosmo do texto literário serve de paradigma
possível – não entremos aqui no âmbito da positividade ou da
negatividade – às nossas experiências pessoais. Esse movimento é
análogo ao da existência humana porque está imbuído de uma
temporalidade singular, nossa: mesmo quando o texto não for
construído a partir de uma sucessão evolutiva de acontecimentos, está a
42 Tradução nossa: O elemento mais importante é a trama dos acontecimentos, postoque a tragédia não é a imitação dos homens, mas de ações e de vida, de felicidadepara infelicidade e vice-versa. Essa transição não é uma maneira de ser, é em razão deseu caráter que os homens são de tal ou qual maneira, mas é em razão de suas açõesque eles são bem ou mal aventurados.43 ARISTOTE. Poétique. Paris: Les Belles Lettres, 1952, p.38
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dialogar com a experienciação temporal da vida, seu constante
paradigma.
Por outro lado, é importante notarmos que o texto histórico, a
partir da leitura e da interpretação dos documentos, recria uma
narrativa na qual há a inserção de fragmentos do passado numa
temporalidade que busca ser coletiva. Eis aí outro ponto de confluência
entre o texto literário e o histórico, posto que representam para o leitor
uma temporalidade que é análoga à existencial. Isso faz com que ambos
se aproximem estruturalmente da representação de uma “possível
realidade” através de um de seus elementos mais intrínsecos: a
temporalidade.
O resultado da comparação e confrontação entre textos literários e
históricos é aproximação dos usos, costumes, idéias, conceitos num
nível mais superficial e tensões e conflitos entre poderes num nível mais
profundo que podem ser (re)historicizados, ou seja, podem ser
recontextualizados aos seus momentos históricos originários. Esse fato
ocorre por conta da estruturação mimética da literatura, ou seja, de sua
capacidade de representar diversos níveis da realidade através do
artifício da criação, como também por conta da temporalidade análoga
do texto literário e da estruturação de uma linha temporal exigida pela
narrativa histórica.
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É preciso ter em conta que a análise comparativa entre elementos
da História e da Literatura não fornecerá ao estudioso um quadro
estático dos tempos pretéritos. Se houver uma imagem para
exemplificar esse trabalho, ela se assemelhará muito mais a um
mosaico permanentemente inacabado e cujas peças escorrem, mudam
de lugar a cada adição de novos elementos à pesquisa. Permanência e
transformação caminham lado a lado no desenvolvimento das
sociedades. O estudioso deve estar atento não só às permanências de
traços das mentalidades nos contextos sociais, como também aos
instantes de ruptura, de fragmentação que ocorrem durante o avançar
dos séculos. Serão esses os que, em considerável parte dos casos,
funcionarão como guias das pesquisas.
A potencialidade de o texto literário representar dados específicos
de uma determinada época e que podem ser recolocados no mosaico de
um determinado momento histórico, podemos chamá-la de
temporalidade extrínseca, posto que está voltada para a relação
obra/cultura, em seus mais variados aspectos. Essa temporalidade pode
se apresentar fragmentada, formada, na maioria das vezes, por indícios
que são clarificados através do estudo comparativo entre áreas como a
História, a Sociologia e a Antropologia e o texto literário: o aspecto
fragmentário dos dados provenientes da temporalidade extrínseca da
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obra literária nos obriga a fazer a sua reconstrução; as peças que faltam
no mosaico, encontramo-las nos textos não literários.
O pesquisador somente poderá traçar uma linha de investigação
mais ou menos coerente a partir do momento em que entender de que
maneiras há a relação entre o texto literário e o momento histórico que
ele pretende analisar. Sem dúvida, a obra poderá portar a essência de
muitas épocas – estará ligada irremediavelmente ao presente que lhe
serviu de berço, mas será testemunha do passado que alimentou a sua
essência e, não poucas vezes, será uma interrogação ao futuro que,
perplexo, lhe interroga.
Muitas vezes, encontramos nas obras feitas por historiadores um
considerável desconhecimento de quão profundamente o texto literário
pode inserir suas raízes na História, como podemos ver a seguir:
Remédio contra o desejo, antídoto contra a fornicaçãogratuita, o amor pouco tinha das imagens açucaradas queobservamos na poesia lírica44.
Ora, quando a historiadora Mary del Priori analisou as poesias
líricas da época colonial no Brasil certamente não considerou que a
representação do amor distante, exilado de sua consubstanciação carnal
é o que, de fato, representa essa sociedade voltada para a utilidade dos
laços matrimoniais visando a solidificação de uma sociedade
fundamentada no direito e no poder patriarcais. Mais uma vez, temos
44 DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005, p. 39
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em mãos a necessidade de exílio da paixão, que não pode ser
correspondente à uma realidade social onde as uniões sacramentais
eram agenciadas em torno de interesses financeiros, conforme a
historiadora bem observa em nossa realidade colonial no início do século
XIX.
Sob o troar dos canhões, contudo, leitores de ambos ossexos devoravam, ávidos, a história de amor que marcouépoca. A de Julie. O personagem citado na introduçãodeste livro foi protagonista de Nova Heloísa, romance deJean-Jacques Rousseau. O enredo girava em torno de umcasamento típico, então: o de interesse. A heroína sonhadesfazer-se do aristocrático candidato apresentado pelopai para casar-se com um pobre professor, príncipe dosseus sonhos. O candidato: um senhor entrado em anos. Oamado: um jovem. Mas o autor estava aí para lembrarque a paixão não era tudo. Mais importante eram oscompromissos sociais.45
Ideal e real não coincidem de forma clara, mas representam
tensões nas quais o corpo desejado é bem menos importante do que o
próprio sentimento idealizado. O corpo, a mulher encarnada, olhada de
soslaio pela igreja e por segmentos importantes do Estado – como a
análise histórica da época do Brasil Colonial pode facilmente provar – é
deixado de lado pelo sentimento puro, conforme vislumbramos nos
versos a seguir e que antecederam à conclusão da historiadora:
Custódia eu consideroQue o querer é desejarO amor é perfeito amar
45 DEL PRIORE , 2005, p.121
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Eu vos amo e não vos quero.46
O que se pode perceber dos costumes e usos da época do Brasil
quando comparado à literatura da mesma época nos revela, sob muitos
aspectos, um fosso. No entanto, se estivermos atentos a dados mais
profundos, às comparações entre as tensões e conflitos da época e a
literatura, veremos que esse fosso deixa-se transpassar por linhas,
pontes que unem seguramente o texto literário aos diversos níveis de
realidade histórica e social.
É o que, na verdade, a própria Mary del Priori faz logo a seguir, ao
detectar a continuidade entre os conteúdos presentes na literatura e
seus estudos sobre a sociedade da época, quando argumenta que os
amores da Colônia tinham traços claramente visíveis com os romances
da época:
Em comum com os romances que circulavam nas colônias,um dado fundamental: tanto nos temas amorosos quantona vida real, os amantes não realizam seus desejos.47
Quando a historiadora se volta para a das continuidades presentes
tanto na literatura como na sociedade da época, a ponte é facilmente
encontrada. Cabe-no aqui demonstrar que o estatuto histórico do texto
literário é bem mais abrangente do que vemos comumente tanto nas
análises de estudiosos que são provenientes de outras áreas que não as
46 Ibid., p.3847 DEL PRIORE, 2005, p. 39
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específicas aos estudos do texto literário, como os teóricos da literatura
e mesmo os comparatistas. Por isso, muitas considerações a respeito da
cultura e da literatura deixam de ser feitas e as análises perdem a
profundidade que poderiam ter no que concerne ao entrelaçamento
entre a literatura e a cultura de onde são provenientes ou na qual
podem interferir através da mimese III, encontro entre o microcosmo do
texto e o do leitor.
É justamente no campo da descontinuidade que a maioria dos
discursos subliminares se tornam mais aparentes. Lembremos que são
em momentos de ruptura, quando a incerteza e a crise passam a
direcionar o curso da história, que as falhas nos discursos totalitários se
tornam mais claras.
O método de análise de Michel Foucault, cujo trabalho – ao
contrário da maioria dos historiadores de sua época – insere-se no
campo de uma mobilidade desafiadora ao método positivista de
elaboração histórica é um ponto de apoio importante no trato dessas
descontinuidades. Somado a esse fato, há o seu especial interesse pela
análise do discurso. Essas características colocam o autor de História da
loucura e Microfísica do poder entre os referenciais teóricos de nosso
trabalho.
O método parece enganosamente simples: identificar ejustapor diferenças em busca das manifestações de poder
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que permeiam todas as relações sociais. O poder é umfenômeno complexo que desafia os pressupostospositivistas. O método de Foucault permite-nos perceberde que modo funcionam as sociedades. Estudar o poderatravés do discurso também nos permite perceber omomento em que são introduzidas novas tecnologias depoder.48
A metodologia de Foucault está a todo tempo nos mostrando que
o exercício do poder não se dá somente através de alguma força
instaurada de fora para dentro da sociedade, nem mesmo exercida por
setores mais ou menos poderosos. Essa não é uma metodologia que
busca detectar tomos de senhores e escravos que lutam
indefinidamente, mas tentar entender de que forma o discurso
representa uma série de práticas que estão relacionadas à vivência de
uma “vontade de saber”, de um “cuidado de si” que estão de tal modo
instauradas nas relações e nos discursos que não poderiam ser
detectadas senão com um método que flagre as permanentes
descontinuidades entre os discursos, que revelam a fresta através da
qual as relações de poder se tornam aparentes.
Essa série de crises podem ser encontradas quando comparamos
textos que são oriundos de diferentes áreas, como os literários e os
históricos ou os sociológicos, como é o que nós estamos a detectar
neste estudo. No entanto, não podemos deixar de notar que a própria
48 HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.50.
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natureza do texto literário já nos apresenta uma série de
descontinuidades que são inerentes à sua especificidade.
Em alguns autores, essas rupturas são mais transparentes: a
crise se revela através da ironia resultante do convívio, em uma mesma
frase, de elementos díspares. Dessa forma, entendemos que o
deslocamento contínuo das significações pertinentes ao signo literário é
um excelente material para trabalharmos relações de poder que
normalmente ficam encobertas nos discursos.
Resultante do choque entre a fixidez e a mobilidade, Roland
Barthes se nos revelou não somente o prazer do texto, mas a fresta
através da qual o pesquisador pode inscrever um tipo de abordagem da
literatura sob um olhar que esteja atento às duplicidades do texto
literário.
49Sade: le plaisir de la lecture vient évidemment decertaines ruptures (ou de certaines collisions): des codesantipathiques (le noble et de trivial, par exemple) entrenten contact; des néologismes pompeux et dérisoires sontcréés; des messages pornographiques viennent se moulerdans des phrases si pures qu’on les prendrait pour desexemples de grammaire. Comme dit la théorie du texte: lalangue est redistribuée. Or cette redistribution se faittoujours par compure. Deux bords sont tracés: um bord
49 Tradução nossa: Sade: O prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas(ou de certas colisões): códigos antipáticos (o nobre e o comum, por exemplo) entramem contato; neologismos pomposos e derrisórios são criados; mensagenspornográficas vêm se misturar em frases puras, das quais poderíamos tirar exemplosde gramática. Como diz a teoria do texto: a língua é redistribuída. Ora, essaredistribuição se faz sempre através de cortes. Duas bordas são traçadas: uma bordasensata, em conformação, plagiária (diz respeito a copiar da língua em seu estadocanônico, tal qual a fixada pela escola, pelo bom uso, pela literatura, pela cultura) euma outra borda, móvel, vazia (apta a ter não importa quais contornos), que nunca éque o lugar de seu efeito: onde se entrevê a morte da linguagem.
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sage, comforme, plagiaire (il s’agit de copier la languedans son état canonique, tel qu’il a été fixé par l’école, lebon usage, la litterature, la culture) et un autre bord,mobile, vide (apte à prendre n’importe quels contours),qui n’est jamais que le lieu de son effet: là où s’entrevoitla mort du langage.50
Através dos momentos de ruptura, comuns ao texto literário, é
possível estudar hábitos, crenças e costumes impostos por segmentos
possuidores de algum poder físico ou intelectual: essa passagem se dá
através das frestas que a linguagem literária permite e que foram
percebidas por Roland Barthes.
Instâncias de poder, responsáveis pela energia potencial dos
conflitos que movimentam as tramas, são encontradas na estrutura
profunda dos textos literários e são reveladas pelas descontinuidades,
importantes caminhos através dos quais o estudioso pode traçar um
perfil sentimental da época na qual a obra foi urdida. Sob as contínuas
tensões, resultantes de ações volitivas ou inconscientes, os
personagens muitas vezes representam a pantomima de situações que
não aparecem explicitamente nas relações sociais, mas que o estudo
comparativo entre a literatura e áreas afins que trabalham com
representações da realidade social pode revelar.
As instâncias de poder imanentes nos discursos, malgrado suas
intenções de completude e coerência, apresentam falhas, frestas
através das quais o estudioso traça linhas, genealogias. Por elas é
50 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, 1973, p. 14
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possível entender o quanto determinadas verdades são introjetadas no
corpo daqueles que vivem sob o sentimento de pertencimento às
instâncias sociais.
Se tais falhas são subliminares em textos não literários, quase
filigranas a serem vistas com uma poderosa lupa, alguns exemplos
artísticos como, no caso deste trabalho, o de Nelson Rodrigues nos
revelam importantes documentos para o estudo do perfil das idéias e
sentimentos da sociedade que lhes serviu como fonte para formação.
Com a mão na altura do estômago, a irmã da úlcerabalbucia:- Papai e vém! Corre, sua boba!Mas Lúcia é obstinada. Diz, não sem cólera:- Não saio daqui! Não quero sair daqui!Então, as outras fogem. O velho Maciel está descendo,num furor magnífico de pai antigo. Mas vem trôpego. Suaresistência física não o acompanha na cólera. E uma coisao enfurece, acima de tudo. É que a filha continua meigacomo sempre, infantil, menina. Essa inocência aparente epérfida o assombra. Por outro lado, a imagem de Lúcialendo uma revista é a sua obsessão. Lá fora, as vizinhascochicham entre si:- Parece que está havendo um bode na casa do doutor
Maciel!51
A elaboração de um personagem que é o protótipo de um “pai
antigo”, de um patriarca cuja resistência física aponta para a fragilidade
de seu poder ostensivo é colocada no mesmo nível que a “aparente”
inocência de Lúcia. A mobilidade dos paradigmas, quando visível, revela
o seu contrário: nos subterrâneos rios do desejo, o poder maior nem
51 RODRIGUES, Nelson. A mentira: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 ,p.29
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sempre pertence ao mais forte. É uma instância fluida, que escorre
através dos personagens nos momentos que eles se apresentam mais
ou menos fortalecidos pela trama.
O fato claro de relativização da força do patriarca através do
sentimento de impotência diante da filha dileta abre a possibilidade de
desvelar a incontestabilidade de um lugar de poder que se apresenta
inteiro em um primeiro momento, mas que se desfaz quando posto à
prova de outras forças que coabitam entre as quatro paredes do lar,
recinto onde o patriarca deveria exercer plenamente a sua vontade.
O que nos é revelado é a fragmentação dessa estrutura ossificada.
No móvel jogo entre seus personagens, Nelson Rodrigues consegue
deslocá-los de suas máscaras para mostrar as suas faces perplexas
diante de uma realidade incontrolável, onde o devir não pode ser
projetado senão sob o signo da tragédia. Na verdade, esses
personagens estão tão imersos na teia de suas representações sociais,
no poder de exercer sua vontade sobre o outro, no vaticínio que lhes
marca o percurso durante a trama, na inexorabilidade de seus desejos,
que nada mais lhes resta que não esteja fora de seus círculos
concêntricos: nesse caso, a morte é mais do que um fim trágico, mas
uma necessidade que surge a partir da impossibilidade de existir fora
dos contornos que lhes definem.
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Vejamos um outro exemplo que, na peça O beijo no asfalto, nos
mostra o quanto a fresta realizada pela presença do signo literário é
elemento e revelador de tensões que ficariam perenemente encobertas,
não fosse o seu auxílio.
AMADO – Olha. Agorinha, na praça da Bandeira. Um rapazfoi atropelado. Estava juntinho de mim. Nessa distância. Ofato é que caiu. Vinha um lotação raspando. Rente aomeio-fio. Apanha o cara. Em cheio. Joga longe. Há aquelebafafá. Corre pra cá, pra lá. O sujeito estava lá, estendido,morrendo.CUNHA (que parece beber as palavras do repórter) – E
daí?AMADO (valorizando o efeito culminante) – De repente,um outro cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajoelha-se.Apanha a cabeça do atropelado e dá-lhe um beijo naboca52.
O beijo em torno do qual toda a trama dessa peça gira é, na
verdade, um ato que não pode realmente ser explicado, apesar das
obsessivas tentativas que permeiam o seu enredo. Essa ausência cria
uma angústia por entender, desperta a coletiva vontade de saber que
atravessa a toda a trama.
Na verdade, esse ato cai no vazio da impossibilidade de
explicação: um simples ato de misericórdia que não possui um fim na
realização de algum desejo, uma ação que se inicia e termina em si
mesma, o que a faz escapar do fascismo da linguagem, conforme no
ensinou Roland Barthes.
52 RODRIGUES, 1993, p. 945
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Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não énem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente:fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigara dizer.53
É o próprio ato que exige uma explicação, uma normatização
através dos meandros comuns aos atos sociais não domesticados: a
punição daquilo que é diferente, a tentativa de enquadrar o inominável
em uma configuração pré-estabelecida nos parâmetros de contenção e
direcionamento sociais. Já que é impossível explicar, normatizar,
direcionar o beijo, outros poderes emergem em substituição à falência
da linguagem e sob a forma de caricatura.
Por isso, uma série de idéias pré-concebidas a respeito de uma
possível homossexualidade do autor do beijo vão tomando forma, vão
se tornando mais e mais fortes até transformarem a vida desse
personagem num verdadeiro inferno: um lugar onde não há mais pares,
onde a solidão e o abandono imperam. Eis aí uma genial inversão nesse
enredo, posto que um ato possivelmente surgido da caridade e da
compaixão – elementos altamente dignificados numa sociedade herdeira
do ideário judaico-cristão – torna-se gerador de degredo social.
ARANDIR – Na polícia, ainda agora. Eu me senti, derepente, tão só. Foi uma sensação tremenda. Naquelemomento, eu tive assim uma vontade de gritar: Selminha!Dália! (com desespero estrangulando a voz) Quase grito,
53 BARTHES, 1978, p.14
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quase! (mudando de tom) Cheguei aqui e sei que vocêvai...54
Portanto, é na descontinuidade do poder de comunicabilidade da
linguagem que aparece a fresta através da qual várias formas de
sujeição do indivíduo são apresentadas. Essa fresta dá a possibilidade
de existência da “voz” da sociedade, daquela que se arvora a ser
tradutora dos sentimentos, desejos e repúdios sociais: a Imprensa. O
poder de destruição e criação da Imprensa é apresentado de forma
bastante clara nessa peça: uma máquina que sobrevive de escândalos
que possam alimentar continuamente o espectador. Tudo aquilo que
escapa à normalidade, que é entendido como um comportamento
desviante, suscita curiosidade, desejo de incorporar à linguagem
dualista do certo e do errado, do macho e do homossexual, do culpado e
do inocente.
Eis aí configurada a clássica vontade de saber, de controlar, de
domesticar os corpos e as consciências. A pressão que é feita para levar
o personagem à marginalização é a fantasia perversa criada em torno
do beijo: um ato como esse deve ter um objetivo, não pode ter um fim
em si mesmo, posto que uma grande ameaça gira em torno daquilo que
é inominável, incompreensível. Portanto, que outro sentido que um ato
como esse deve assumir, senão o do desejo sexual pelo outro? A
54 RODRIGUES, 1993, p.956.
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homossexualidade, neste caso, é vista como elemento destruidor dos
laços matrimoniais, como o desvio causado pela incontinência de uma
vontade de intimidade com uma pessoa do mesmo sexo e que se realiza
– talvez aí a verdadeira transgressão – abertamente, à vista de todos os
transeuntes, em plena Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro.
O suposto desejo por pessoas do mesmo sexo é colocado como
parâmetro negativo que afasta a possibilidade do querer pessoas do
sexo oposto e, através disso, de uma participação efetiva na sociedade.
Se “Arandir” é homossexual não poderia ser casado, se não poderia ser
casado, não poderia constituir família, se não é apto à família, não é um
membro respeitável na sociedade, se não é um membro respeitável na
sociedade, não pode ter direito a um emprego ou a outras benesses da
convivência pública, se não possui esses direitos, é um marginal, se é
um marginal, deve ser degredado, se tentar fugir, é culpado e se é
culpado deve ser anulado através da prisão ou da morte. Esse
verdadeiro ciclo de condenação do outro a partir de idéias pré-
concebidas que trafegam normalmente nas sociedades ocidentais é
colocado em evidência de forma tão clara, tão cristalina que não resta
outra coisa ao leitor senão se horrorizar com essa lógica à qual ele
também está conscientemente ou não atrelado: ele também é, em
parte, cúmplice desse horror. Essa cumplicidade é realçada através de
atos nos quais personagens destituídos de moral comungam com
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desejos e comportamentos normalmente vistos como positivos ou
aceitáveis por heterossexuais masculinos. Se o desejo não se realiza
através dessa “vontade” fascista, a única saída é a pederastia, o desvio
da comunhão dos machos que se voltam para um objetivo comum: a
boa, a fêmea nua.
CUNHA (caricioso e ignóbil) – Escuta. O que significa parati. Sim, o que significa para “você” uma mulher!?ARANDIR (lento e olhando em torno) – Mas eu estoupreso?CUNHA (sem ouvi-lo e sempre melífluo) – Rapaz, escuta!Uma hipótese. Se aparecesse, aqui, agora, uma mulher,uma “boa”. Nua. Completamente nua. Qual seria. É umacuriosidade. Seria a tua reação?55
Aquele que escapa dessa “irmandade” está em posição de
marginalização e deve ser punido, posto que essa escolha não se dá
somente no âmbito de um desejo individual, mas daquilo que se mostra
em público, do que é frontalmente brandido contra a domesticação e
direcionamento da vontade de homens e mulheres unidos em torno dos
laços mantenedores das relações sociais.
Portanto, é no desvão revelado pela dialogia perene no signo
literário que podemos encontrar uma série de frestas através das quais
as relações de poder se tornam claras, saem de seu tranqüilo patamar
de eternização e revelam que, na verdade, o seu subterrâneo é móvel,
procura incessantemente se adaptar às ameaças que questionam sua
autoridade e aplicabilidade a qualquer situação ou momento.
55RODRIGUES, 1993, p.952.
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56En effet, de manière tout à fait frappante, depuis dessiècles, des milliers d'ouvrages ont été consacrés aumariage, à la famille, à l'amour ou à la sexualité dêshétérosexuels, mais en fait l'hétérosexualité en tant quetelle n'apparaissait guere dans ces écrits : elle était engénéral le point de vue, et donc le point aveugle de toutevision.57
O ponto cego de toda visão, a inquestionabilidade de
determinados pressupostos que, de tão enraizados em nossa cultura,
chegam a compor um quadro aparentemente estático onde a
sexualidade, a família, as relações entre indivíduo e a Indústria Cultural
– a todo tempo criando desejos, vontades e oferecendo seus produtos
para aplacá-los – são vistas sob o estigma da normalidade.
Esses mesmos laços representam a continuidade das relações de
submissão e de poderio que fundamentam as regras sociais em grande
parte das sociedades ocidentais. Por esse motivo, tudo o que escapa a
essa teia deve ser submetido ao degredo, à margem de um
comportamento tradicionalmente entendido como negativo, como
usurpador dos comportamentos normatizados pelas regras sociais.
58En effet, dans de nombreuses sociétés, bien que lespratiques hétérosexuelles soient l’usage ordinaire, elles ne
56 Tradução nossa: De fato, de maneira realmente impressionante, há séculos,milhares de obras têm sido consagradas ao casamento, à família, ao amor ou àsexualidade dos heterossexuais, mas, de fato, a heterossexualidade tal e qual éaparece muito pouco nesses escritos: ela é, em geral, o ponto de vista e, claro, oponto cego de toda visão.57 LES TEMPS MODERNES. Paris: Gallimard. no 624.mai/juin/juillet 2003, p.12058 De fato, em numerosas sociedades, ainda que as práticas heterossexuais sejam ouso comum, elas não são jamais exaltadas sob a forma de amor e ainda menos depaixão. Elas constituem uma exigência social objetiva, que estrutura evidentemente asrelações sociais de sexo, relações onde a dominação masculina é exercida, mas pouco
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sont jamais exaltées sur le mode de l’amour, et encoremoins de la passion. Elles constituent une exigence socialeobjective, qui structure évidemment les raports sociaux desexe, rapports où s’exerce en général la dominationmasculine, mais elles ne sont guère sublimées, le désir del’homme pour la femme étant perçu comme nécessaire etsecondaire en même temps.59
O efeito de “O Beijo no Asfalto” é jogar com a perenidade de
relações de submissão e de domesticação dos indivíduos. A transgressão
é, na verdade, criada pelo jornalista que o transforma – através da
máquina sempre ávida da Imprensa – num pastiche de tragédia: a
Imprensa e a Polícia, representados respectivamente pelos personagens
“Amado Batista”e “Cunha” passam a urdir uma trama, que é costurada
minuciosamente com a linha da ameaça à integridade física dos
personagens, da criação de uma história na qual “Arandir” e o morto
eram amantes.
AMADO – A polícia sabe que havia. Havia entre seu maridoe a vítima uma relação íntima.SELMINHA (no seu espanto) – Relação íntima?AMADO – Uma intimidade, compreendeu? Um tipo deintimidade que não pode existir entre homens. Uminstante, Cunha. A viúva já desconfiava. O negócio dobanheiro, entende? E quando leu o “Beijo no Asfalto”, viuque era batata. Basta dizer o seguinte: ela. Sim, a viúva!(triunfante) não foi ao cemitério.CUNHA (com uma satisfação bestial) – Menina, olha. Estána cara que seu marido não é homem.60
sublimadas, o desejo do homem pela mulher sendo percebido como necessário esecundário ao mesmo tempo.59 LES TEMPS MODERNES, 2003, p.12060 RODRIGUES, Nelson, 1993, p.977.
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O beijo toma a forma de um crime passional, com direito a
casamentos desfeitos e amores proibidos. A reação que o espalhafatoso
aparelho do entretenimento inicia, engenho que se alimenta daquilo que
ajuda a condenar qualquer subjetividade que lhe pareça desviante, é a
da anulação de “Arandir”, que passa a ser destituído de toda a
possibilidade de usufruir dos valores “positivos” que a domesticação dos
corpos havia lhe proporcionado: um casamento, um emprego, uma vida
em sociedade a liberdade e, por fim, a vida.
APRÍGIO – Arandir! (mais forte) Arandir! (um últimocanto)Arandir!Cai a luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir.Trevas.61
Enquanto obras como a de Roland Barthes, Pierre Bourdieu e de
Michel Foucault nos auxiliam no estudo das descontinuidades através
das quais podemos analisar rupturas de onde provém dados importantes
sobre a constituição dos jogos de poder que há por trás de usos e
costumes de uma determinada sociedade, a ferramenta das
mentalidades nos permite estudar o quanto certos construtos de idéias,
usos e costumes permanecem no imaginário coletivo. Na verdade, é
através da sobrevivência dessas idéias, usos e costumes que podemos
vislumbrar o quanto as interferências no quotidiano dos indivíduos são
veladas, buscam eternizar-se através de discursos onde não há
61 RODRIGUES, Nelson, 1993, p.989.
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possibilidade de saída, de horizonte que não os estipulados pelas formas
de sujeição e domesticação tradicionais.
No entanto, não nos enganemos: por trás da aparente calmaria
dos sentimentos, usos e costumes coletivos existem forças em conflito.
A permanência desses construtos não se dá por uma pontual vitória
sobre o efêmero, mas por uma constante busca de silenciar os discursos
que discordam, que criticam, que colocam em xeque a sua autoridade.
Por isso, por detrás das fanfarras, das trombetas, dos gritos esfuziantes
e até mesmo do silêncio cúmplice dos vitoriosos, podemos ouvir a voz
dos vencidos. Recordemos as lições de Walter Benjamin.
62Le chroniqueur, qui rapporte les événements sansdistiguer entre les grands e les petits, fait droit à cettevérité: que rien de ce que eut jamais lieu n’est perdu pourl’histoire. Certes, ce n’est qu’a l’humanité rédiméequ’échoit pleinement son passé. C’est-a-dire que pour elleseule son passé est devenu intégralement citable. Chacundes instants qu’elle a vécus devient une “citacion à l’ordredu jour” – et ce jour est justement celui du Jugementdernier.63
A evolução das sensibilidades não se desenvolve segundo um
percurso sucessivo e linear. Como vimos, há idéias, sentimentos e
crenças que ultrapassam a barreira do tempo e persistem no
62 Tradução nossa: O cronista que narra os eventos, sem distinguir entre grandes epequenos, considera a verdade de que nada do que houve jamais pode estar perdidopara a história. Indubitavelmente, somente a humanidade redimida poderá ter acessopleno ao seu passado. Isso quer dizer que por ela somente o seu passado poderá serintegralmente citável. Cada instante que ela vive se transforma em uma “citacion àl’ordre du jour” – e este dia é justamente aquele do juízo final.63 BENJAMIN, Walter. OEuvres III. Paris: Editions Gallimard, 2000, p.429
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inconsciente coletivo por – não poucas vezes - séculos posteriores ao
seu surgimento ou sedimentação. Essa permanência surge da
necessidade de perpetuação de uma tradição que está continuamente a
buscar, no passado, atos e comportamentos que são, durante muitas
ocasiões, o único lugar plausível para fundamentar raízes e certezas. No
entanto, não podemos deixar de notar que o passado, a tradição, nesse
caso, é uma construção que se faz a respeito de determinados
comportamentos pretéritos, onde todos os jogos e violências de
submissão são aplainados por um desejo de encontrar um
comportamento subliminarmente “inato” ao homem.
O texto literário possui uma maior permissividade para as
correntes de eternização e de descontinuidade que permeiam as
sensibilidades históricas e sociais, posto que não está necessariamente
preso a uma representação unívoca da realidade: não tem força de lei
ou compromisso de narrar algo que realmente aconteceu. Esse é um dos
motivos que propiciam que o universo criado pelo autor possa ser
estudado como um construto em íntima relação com a cultura que lhe
formou: ele não aponta somente para a verossimilhança com a
realidade imediata, mas para estruturas que podem ser estudadas em
seu desenvolvimento através do tempo.
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O estudioso portar-se-á como um arqueólogo64 e examinar com
atenção cada dado que lhe é apresentado pela obra: de onde é
proveniente e qual a revelação que esse índice pode oferecer-lhe para a
compreensão da cultura que permitiu ao autor compor os elementos
com os quais ele pôde confeccionar a sua criação.
No momento da realização da leitura, o texto literário oferece, na
esteira do duplo jogo entre ruptura e tradição, uma série de traços que
apontam para as idéias e conceitos que formam o arcabouço do enredo
ou da trama, mas que são fundamentalmente oriundos do momento
histórico no qual tais obras foram criadas. Por outro lado, o universo que
o texto apresenta não está em consonância apenas com os ideais
estéticos ou filosóficos do momento no qual surgiu. Existem diversos
níveis através dos quais a obra pode apontar para a sociedade que lhe
serviu como berço.
O estudo comparativo do texto literário, a partir de uma visão que
priorize os possíveis entrecruzamentos entre estudos históricos, os
sociológicos e os vários níveis de apreciação que a obra pode oferecer,
dispõe ao pesquisador uma série de dados importantes sobre as
relações entre a cultura que serviu de arcabouço à realização da obra e
determinados dados presentes nas instâncias do texto e da cultura.
Esses poderiam apresentar-se muitas vezes enigmáticos se não fossem
64 Cf. FOUCAULT, Michel. L’archeologie du savoir. Paris: Editións Gallimard, 1969.
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observados sob uma ótica que, além de englobar uma visão estética,
compreenda as outras dimensões dos fenômenos culturais.
É claro que os estudos comparativos entre discursos que teçam
representações da realidade, como a História e a Sociologia e a
Literatura, como os que estão a ser feitos atualmente, não poderiam
ocorrer não fosse a revolução que as ciências, notadamente as
históricas, passaram a partir do estudo das mentalidades, quando os
usos, costumes e idéias do passado aproximaram os estudiosos de
textos oriundos da psicologia, da crítica literária, da sociologia, da
filosofia e da antropologia.
Essa abertura permitiu a urdidura de textos críticos que não mais
priorizavam episódios ou segmentos sociais entendidos como
paradigmáticos, mas que passaram a trabalhar com sensibilidades,
sentimentos e crenças comuns a um período e que formavam, de forma
notadamente coerente, o perfil das épocas: um construto sentimental,
coletivo, resultante da soma de maneiras de ver e sentir o mundo; elos
de identificação e repúdio entre o indivíduo e seu meio social; idéias que
eram aceitas ou tidas como tabu; crenças perenes, que atravessavam
os séculos pouco ou nada alteradas.
Portanto, a oferta da “interdisciplinaridade” como possibilidade de
entrecruzarmos textos advindos de diversas áreas do conhecimento
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pode nos auxiliar na pesquisa sobre as mentalidades na longue durée65,
ou seja, a sobrevivência de idéias e conceitos que permanecem, apesar
das aparentes mudanças nos costumes dos homens, em sociedade.
Sobre as mentalidades, nos fala Michel Vovelle:
66[...]les mentalités se distinguent des autres registres del’histoire parce que R. Mandrou avait défini comme “untemps plus long”, allusion à la longue durée brauélienne etaux “prisons de longue durée”. Les mentalités renvoientdonc de façon privilégiée au souvenir, à la memoire, à desformes de résistances: en un mot à ce qui’il est devenubanal de définir comme “la force d’inertie des structuresmentales”, même si l’explication demeure verbale.Surtout, dans la perspective qui nous intéresse, ce constatà premiére vue irréfutable de l’inertie des mentalitésoriente vers plusieurs types d’interpretation, oud’hypothèses de travail.67
Notemos que, por um lado, essa corrente da historiografia
francesa buscou afastar-se do exercício específico da escrita literária, a
partir do momento no qual abraçou o rigor científico não só no trato de
seus objetos, como também em sua narrativa. Esse afastamento deveu-
se, no século XX, a reações às teses narrativistas que tentavam colocar,
65 Inicialmente voltado para o tempo das lentas transformações geográficas, essetermo passou a ser usado pelos historiadores das mentalidades quando diante dasobrevivência de usos e costumes ao longo dos séculos nas sociedades. Cf. BRAUDEL,Fernand. Lá Mediterranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris, AColin, 1976.66 Tradução nossa: [...] as mentalidades se distinguem dos outros registros históricospelo que R. Mandrou definiu como um “tempo mais longo”, alusão à longa duração deFernand Braudel e às “prisões da longa duração”. As mentalidades nos remetem demaneira privilegiada à lembrança, à memória, às formas de resistência: em umapalavra, àquilo que se tornou banal definir como “a força de inércia das estruturasmentais”, ainda que essa explicação permaneça verbalmente. Sobretudo naperspectiva que nos interessa, essa constatação, num primeiro momento irrefutável,da inércia das mentalidades, encaminha vários tipos de interpretação ou de hipótesesde trabalho.67 VOVELLE, Michel. Idéologies e mentalités. Paris: Editions la Decouverte, 1985, p.13
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no mesmo plano, os textos literários e históricos. Tais estudos estavam
embasados no fato de que qualquer abstração a respeito de um evento
se dava através de uma consciência textual, narrativa que era comum
às duas áreas68. Com isso, houve um afastamento das áreas relativas à
Literatura e – no caso específico dos estudos sobre as mentalidades – à
História. Notemos o cuidado com que Georges Duby, em resposta à
revista “Le Debat”, procura distinguir os campos relativos ao texto
literário e ao histórico.
69Je travaillais donc les phrases, mais en respectant lesrègles de mon métier, ces impératifs qui distinguentl’historien du romancier ou du poète. L’historien n’est paslibre. Il lui faut transcrire fidèlement ce qu’il extrait desdocuments, de toutes des traces du passé qu’il repère etqu’il est strictement interdit de manipuler.70
Por outro lado, a revolução documental que modificou a visão dos
historiadores em relação às fontes de sua pesquisa lhes obrigaram a
ultrapassar a simples noção de autenticidade do documento histórico
para buscar, em diversos materiais, tudo aquilo que pudesse contribuir
para a reconstrução do passado. O seu novo objetivo era criar uma
68 As teses narrativistas, que contaram com nomes como o de Roland Barthesbuscavam estipular: “L’histoire est pour lui, un genre littéraire comme un autre. Ellen’a pas de régime de verité supérieur aux autres genres littéraires: ainsi, le roman est,ni plus, ni moins que l’histoire, une forme de connaissance du réel.” Tradução nossa:Ahistória é, por ela, um gênero literário como outros. Ela não possui um estatuto deverdade superior aos outros gêneros literários: assim, o romance é nem mais nemmenos que história, uma forma de conhecimento do real.Cf. BARTHES, Roland. Apud.LE DUC, Jean. Les historiens et le temps. Paris: Éditions du Seuil,1998, p.17469 Eu trabalho com frases, mas respeitando as regras da minha área, os imperativosque distinguem o historiador do romancista ou do poeta. O historiador não é livre. Eledeve transcrever fielmente aquilo que é extraído dos documentos, de todos os traçosdo passado que ele marca, mas que é estritamente impedido de manipular.70 DUBY, Georges. apud. LE DUC, Jean, 1998, p.197.
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narrativa formada a partir do engendramento de um monumento
formado não somente por confluências de discursos, mas por
descontinuidades que propiciassem a crítica do momento histórico a
respeito das formas de poder atuantes em sua época.
Segue-se-lhe a definição de revolução documental emprofundidade e da nova tarefa que se apresenta aohistoriador: “A história, na forma tradicional, dedicava-sea “memorizar” os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e em fazer falar os traços que, por sipróprios, muitas vezes não são absolutamente verbais, oudizem em silêncio outra coisa diferente do que dizem; nosnossos dias, a história é o que transforma os documentosem monumentos e o que, onde dantes se tentavareconhecer em negativo o que eles tinham sido, apresentaagora uma massa de elementos que é preciso depoisisolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação,constituir em conjunto.71
No escopo das relações dentre a cultura e o texto literário,
destaca-se o fato de que a literatura não pode ser mais vista como mais
um documento a ser analisado em busca da construção de uma
narrativa sobre o passado. Ao contrário, a obra de arte pode nos
oferecer muito mais a partir da comparação entre os conteúdos restritos
à temporalidade extrínseca ao texto e aqueles referentes aos momentos
históricos que pretendemos analisar.
72Entre le “réel” de l’histoire et l’“irréel” de la fiction il n’y apas d’abîme infranchissable. Histoire et fiction se serventl’une de l’autre. Les historiens se senvent de la fiction73.
71 Segundo Michel Foucault (apud LE GOFF, 1996, p.546)72 Tradução nossa: Entre o real da história e o da ficção não há um abismointransponível. História e ficção se servem uma da outra. Os historiadores se servemda ficção.
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83
No que concerne à comparação entre cultura e literatura, o texto
literário deve ser objeto de uma crítica que dê conta tanto das
continuidades presentes entre a obra e a sociedade que lhe deu origem,
como também das descontinuidades entre esses dois fatores: ambas
ferramentas para o estudo das formas de poder que entrelaçam os
objetos estéticos aos sociais.
Aspectos da obra de Nelson Rodrigues: entre a
modernidade e a tradição.
Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado éapreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só
inevitável, como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempopassado e presente.
Jacques Le Goff
Em uma das aulas do professor doutor Eduardo Portella que
valeram como créditos para o nosso doutoramento, o tema Nelson
Rodrigues foi aventado. Alguns alunos fizeram pertinentes observações
sobre a sua dramaturgia; falaram sobre seus intrigantes personagens,
seus diálogos perfeitos, seus trágicos destinos que, à guisa de uma
73 LE DUC, Jean, 1998, p.192
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verdadeira moira74, os arrastava a situações imprevisíveis e implacáveis.
Outros, como é usual quando o tema da discussão é o polêmico autor,
teceram comentários sobre sua vida, suas posturas e idéias políticas,
sua ótica em permanente perplexidade diante dos absurdos de sua
época.
Finalmente, Eduardo Portella situou a obra de Nelson Rodrigues no
limite entre dois mundos: entre um passado eivado de conteúdos
latentes, amortecidos pelo esquecimento que os encobria parcialmente,
e os desafios presentes na modernização dos usos e costumes que
influenciou profundamente o quotidiano dos indivíduos no século
passado.
Na verdade, as palavras do eminente professor serviram para
ratificar as nossas pesquisas, pois o estudo comparativo entre a época
de formação da obra e os textos de Nelson Rodrigues revelaram o
quanto as tensões oriundas de uma determinada época podem ecoar em
um texto literário.
Conforme vimos no capítulo “O estatuto histórico do texto
literário”, uma obra não existe divorciada de seu tempo, das tensões de
74 Moira: destino que, nas peças clássicas, acima da vontade dos homens e dosdeuses, arrasta os personagens inelutavelmente aos seus desfechos trágicos. Segundoobservação do professor doutor Ronaldo Lima Lins, mencionada em uma de nossasreuniões de orientação, Nelson não comungava do espírito de utopia, com a idéia desalvação do homem, pois o interior de seus personagens sempre os traía, o que oslevava, inexoravelmente, aos seus destinos trágicos. De certa forma é esse omovimento da tragédia contemporânea – o destino trágico passa a ser internalizado,não mais uma instância exterior ao personagem.
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sua época. O que pode ocorrer é que algumas refletem mais claramente
o seu tempo, outras estão eivadas de representações simbólicas ou
alegóricas que refletem os jogos de poderes e de interesses norteadores
que se colocam por detrás das várias possibilidades de metáforas ou de
metonímias que a linguagem literária pode oferecer.
Dessa forma, a obra de Nelson Rodrigues foi espelho das tensões
oriundas de seu momento de formação. Por esse motivo, decidimos nos
debruçar sobre algumas características da primeira metade do século
passado, tempo em que Nelson Rodrigues começou a criar os seus
textos dramáticos.
No estudo dessa primeira metade da centúria, concentramo-nos
nos índices de conflitos entre os novos tempos oriundos com o advento
da modernidade e o impacto que esses mesmos construtos ocasionaram
nas tradições de longa duração em nossa cultura.
O nosso ponto de partida foi a leitura dos textos de Nelson
Rodrigues, principalmente aqueles compreendidos dentre as suas peças
“desagradáveis”. Nosso intuito foi buscar os ecos da cultura no texto
literário. Por esse motivo, não nos ativemos a fatos históricos ou a um
desenvolvimento cronológico desses mesmos fatos. Nem mesmo nos
ativemos àqueles relativos à vida do autor: seara por demais explorada
por tantos pesquisadores.
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Em nossa perspectiva, buscamos – a partir da leitura de textos de
Nelson Rodrigues –, os ruídos das mentalidades patriarcais em choque
com os tempos modernos, como a obsessão pela doença, os lugares de
poder familiar, etc. forças de tensão que tão bem caracterizam a sua
obra.
Usamos fundamentalmente a pesquisa de historiadores,
notadamente aqueles reunidos em torno da História da Vida Privada no
Brasil. No entanto, para que nosso estudo obtivesse maior aproximação
com a primeira metade do século XX, usamos alguns exemplos retirados
de periódicos da época, como revistas e jornais. Privilegiamos as
publicações do início da década de 40, posto que tencionávamos captar
aspectos da ambiência cultural formadora de seu teatro “desagradável”.
O autor escreveu até o final dos anos 70: sua última peça, “A
Serpente”, data de 1978. No entanto, acreditamos que a primeira
metade do século XX – as peças desagradáveis foram escritas na
década de 40 – foi muito importante para a construção de seu universo
dramático e ficcional. Desse tempo, Nelson Rodrigues conseguiu
absorver as tensões entre a modernidade e a tradição e fez com que seu
universo dramático fosse abundante em contradições pertinentes ao
cerne do desenvolvimento da vida sob os auspícios dos novos tempos no
Rio de Janeiro.
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No Brasil, nas esferas política, cultural e dos costumes, a primeira
metade do século XX foi palco de profundas alterações no
comportamento dos indivíduos. Marcada pelo advento da Revolução
Científico-Tecnológica75, essas primeiras décadas assistiram a uma
tentativa de modernização contundente e que atingiu diversos
segmentos da sociedade de forma drástica, muitas vezes catastrófica.
Os ideais civilizadores embutidos no nascimento da centúria foram
impostos pelas elites brasileiras ao restante da população, como se
sobre as cinzas da tradição pudesse ser erguida uma sociedade nova,
livre das mazelas e dos atrasos que vinham mesclando as nossas
relações interpessoais nos espaços citadinos desde os tempos coloniais.
Vejamos o interessante quadro que Nicolau Sevcenko nos apresenta
sobre as primeiras décadas do século XX.
No curso de seus desdobramentos surgirão, apenas parase ter uma breve idéia, os veículos automotores, ostransatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, ailuminação elétrica e a ampla gama de utensílioseletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, atelevisão os arranha-céus e seus elevadores, as escadasrolantes e os sistemas metroviários, os parques dediversões elétricas, as rodas-gigantes, as montanhas-russas, a seringa hipodérmica, a anestesia, a penicilina, oestetoscópio, o medidor de pressão arterial, os processosde pasteurização e esterilização, os adubos artificiais, osvasos sanitários com descarga automática e o papelhigiênico, a escova de dentes e o dentrifício, o sabão empó, os refrigerantes gasosos, o fogão a gás, o aquecedorelétrico, o refrigerador e os sorvetes, as comidasenlatadas, as cervejas engarrafadas, a Coca-Cola, a
75 Cf. NOVAIS, Fernando (Coord.ger.). História da vida privada do Brasil: República: daBelle Époque à Era do Rádio. (vol.3) São Paulo: Companhia das Letras,1998, p.8
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aspirina, o Sonrisal e, mencionada por último mas nãomenos importante, a caixa registradora.76
Os regimes governamentais estavam, cada qual em sua vigência,
profundamente preocupados em promover os ideais do que se pensava
ser a modernidade: estávamos condenados a abraçar o futuro para fugir
de um presente continuamente vergonhoso, sempre atrasado em
relação às grandes metrópoles.
A República, seguindo uma linha contínua iniciada na Belle
Époque, foi fiel divulgadora e realizadora do progresso, apesar de sua
práxis colocar o desenvolvimento nacional entre um discurso
perenemente voltado para o futuro e uma realidade política direcionada
pelos setores mais tradicionais da sociedade que sempre foram avessos
a qualquer mudança estrutural que pudesse ameaçá-los.
Em nome do “progresso”, hábitos antigos foram deixados de lado
em prol das modas vindas das grandes metrópoles intelectual ou
economicamente colonizadoras. Tal fato ocorreu tanto no âmbito
espacial das nossas principais cidades, recortadas por projetos de
reurbanização radicais, como no das relações interpessoais.
As idéias civilizacionais foram usualmente impostas de forma
violenta pelos agentes detentores do poder que, não poucas vezes,
arvoraram-se de missionários da modernidade. No entanto, a ordem dos
76 NOVAIS, 1998, p. 9
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discursos modernizantes através dos diversos períodos do século XX
nem sempre foi prontamente atendida. Houve muitos focos de
resistência, que surgiram como entraves aos ideais impostos pelas elites
brasileiras e salpicaram a nossa história com eventos de crueldade e
violência oriundas, na maioria das vezes, dos gabinetes oficiais.
A luta entre a tradição e um discurso que se propunha como novo
teve, por exemplo, em Canudos, uma paradigmática realização de como
os novos tempos republicanos passaram a tratar todos aqueles que se
opunham aos seus objetivos77.
Apesar de as forças do governo representarem uma elite que,
tradicionalmente, se mantinha no poder desde os tempos do império, o
que a caracterizaria como tradicional, o discurso dos positivistas para
destruírem Canudos foi o da aniquilação de redutos ainda nostálgicos do
período imperial, focos ainda não tocados pela presença insidiosa do
positivismo. Tudo aquilo que escapasse à ordem, deveria ser extirpado
em nome do progresso.
Tanto o episódio de Canudos quanto o da Revolta daVacina, com suas evidentes afinidades, são dos maisexemplares para assinalar as condições que se impuseramcom o advento do tempo republicano. Um tempo maisacelerado, impulsionado por novos potenciais energéticos
77 A carnificina que foi promovida em nome do expurgo de todos aqueles que seimpunham contra a República pode ser apreciada nesse pequeno trecho narrado porNicolau Sevcenko: “Como quem fosse feito prisioneiro pelos soldados eraimediatamente degolado, os sobreviventes resistiram até o fim. Na incapacidade deimpor uma vitória militar, os oficiais decidiram verter barris de querosene sobre oscasebres de pau e palha, queimando vivos os moradores remanescentes e os últimoscombatentes, reduzindo a cidade de Canudos a cinzas.” In NOVAIS, 1998, p. 18
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e tecnológicos, em que a exigência de acertar os ponteirosbrasileiros com o relógio global suscitou a hegemonia dediscursos técnicos, confiantes em representar a vitóriainelutável do progresso e por isso dispostos a fazer valer amodernização “a qualquer custo”. As ações concretasdesencadeadas por esses discursos [...] se traduziram emformas extremas de opressão quando voltadas para aspopulações destituídas de qualquer educação formal ealheadas dos processos decisórios78.
O canônico romance Os sertões79, de Euclides da Cunha, marcou a
literatura voltada para a discussão sobre a tensão existente entre um
povo que se recusava à submissão aos ditames da nova ordem. Figuras
e costumes tradicionais, como a do Imperador, o da união sagrada entre
Estado e Igreja, ainda povoavam o imaginário da população de
Canudos. O poder da nova ordem republicana, disposto a destruir
qualquer ameaça aos seus ideais, viu esses exemplos da mentalidade
tradicional como uma ameaça.
A Belle Époque, cenário de fundamentação do modelo republicano,
foi iniciada com uma batalha sangrenta, cujos efeitos ecoaram na capital
do Rio de Janeiro: a criação das primeiras favelas compostas pelos
casebres dos combatentes desmobilizados após o conflito, no morro
próximo à Central do Brasil, local onde se situa o Ministério da Guerra.
Canudos (1896), a Revolta da Vacina (1904) e tantas outras
marcaram a história dos conflitos entre as mentalidades80 tradicionais
78 NOVAIS, 1998, p.2779 CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Martin Claret, 2002.80 O choque entre o avanço contínuo das elites e as reações populares é tema presentenas discussões em torno da História das Mentalidades, como podemos ver no pequeno
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da população e os ideais de modernidade no século passado: o conflito
entre a tradição e o progresso ocorreu tanto no campo, como nas
cidades.
O fenômeno da resistência cultural atingiu, em parte considerável,
a população, acostumada que estava a figuras tradicionais que
representavam o poder das instituições às quais estavam submissas em
longa duração. João do Rio, em suas pesquisas voltadas para o
desvendamento dos mistérios populares nas ruas da Capital Federal,
detectou essa resistência.
Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mãodireita entre o polegar e o indicador, cinco sinais quesignificam as chagas. Não há nenhum que não acreditederrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mãoassim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhorcrucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandoufazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos,os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem desová-lo.- Parece que estão dando em Jesus!
A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significaligeireza n'água, a âncora e a estrela o homem do mar, asarmas da República ou da Monarquia a sua compreensãopolítica. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi,quase todo esse pessoal é monarquista.81
trecho a seguir: “É verdade que nesse primeiro nível da história das mentalidades - oda história das culturas - não se poderia, por conseguinte, esquivar algumas questõesprévias. A questão - simplificando - de um tempo desdobrado: o das culturaspopulares, domínio da inércia das tradições..., o das culturas "de elite", como se diz,sede da inovação e das provocações... Cultura popular, cultura de elite: outra dialéticamaior, tema de interrogações atuais”. In LE GOFF, Jacques (org). A história nova (4a
ed.) São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.7481 JOÃO, do Rio. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras,1997, p.109.
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João do Rio pôde perceber que as tatuagens feitas entre o final do
século XIX e o início do século XX eram, na verdade, fragmentos do
imaginário coletivo que estavam presentes nas mentalidades daquela
época. Dentre os símbolos religiosos e laicos, destinados a dar proteção
e força àqueles que os possuíam em suas peles, destacamos a
proeminência dos desenhos inspirados na coroa monárquica. Tal fato
nos mostra que a idéia de poder ligada à monarquia ainda perseverava
entre as classes populares, embora a República já estivesse, por esse
tempo, consideravelmente estabelecida. A tradição e a modernidade, os
novos e os antigos tempos sempre estiveram em tensão na Capital
Federal.
Essa tensão entre o antigo e o novo era bastante clara já entre os
séculos XIX e XX. Vejamos um outro exemplo vindo da pena de João do
Rio, agora sobre o efeito desagradável de uma moda que, diante da
voracidade do novo, havia passado.
Os pares voltaram todos ao salão. Prates pareceurecordar; atacou um acorde, depois outro, e os primeiroscompassos ecoaram. Um vago mal-estar pareceu, derepente, estreitar a sala. Que coisas cômicas, que coisasgrotescas, que coisas estúpidas, essas notas de pianosugestionavam à gente!...A sensação do passadoenraivece sempre. Os convidados estavam irritados comose fossem recebendo uma longa humilhação. Eu tinhavontade de rir e ao mesmo tempo de destruir, de quebraro piano. Na sala, as meninas largaram os paresdesanimadas; moças nervosas sentavam-se aos cantos eera uma crescente exclamação de desprazer.82
82 RIO, João do. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002, p.101
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A sensação das músicas cujo estilo já havia passado, o desprazer
que todos na festa sentiram marcava os gostos de uma população cada
vez mais ávida por consumir os estilos e as modas que passaram a se
suceder no Rio de Janeiro. Essas novidades, notadamente no século XX,
imiscuíram-se nas sociabilidades urbanas conduzidas pelos avanços
tecnológicos e influíram nos novos usos e costumes citadinos.
A princípio, o progresso deu ao mundo a ilusão de que o século
assistiria ao nascimento de uma nova civilização montada no vertiginoso
avançar da tecnologia, antídoto plenipotente aos males da humanidade.
Depois, o homem passou a assistir, perplexo, aos avanços servirem às
forças de aniquilação e de barbarização. Cada vez mais os ideais
burgueses propostos pela Revolução de 1789 foram sendo submetidos,
esquecidos, afrontados e até mesmo ridicularizados. Foram poucos os
que ousaram olhar para o pretérito.
83Il existe un tableau de Klee qui s’intitule “AngelusNovus”. Il représente un ange qui semble sur le point des’éloigner de quelque chose qu’il fixe du regard. Sés yeuxsont écarquillés, sa bouche ouverte, ses ailes déployées.
83 Tradução nossa: Há um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Ele representaum anjo que parece afastar-se de algo que ele olha fixamente. Seus olhos estãoarregalados, sua boca aberta, suas asas desdobradas. Assim deve ser o anjo daHistória. Ele está voltado para o passado. Onde vemos uma série de eventos, elepercebe uma única catástrofe a acumular ruína sobre ruína depositadas aos seus pés.Ele gostaria de se deter para despertar os mortos e curar aqueles que foramdesmembrados. Mas, do paraíso, sopra uma tempestade que prende as suas asas tãoviolentamente que ele não pode mais cerrá-las. Essa tempestade o empurrairresistivelmente ao porvir, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínasse eleva até o céu. Essa tempestade, nomeamos de progresso.
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C’est à cela que doit ressembler l’Ange de l’Histoire. Sonvisage est tourné vers le passé. Là où nous apparaît unechaîne d’événements, il ne voit, lui, qu’une seule et uniquecatastrophe, qui sans cesse amoncelle ruines sur ruines etles précipite à ses pieds. Il voudrait bien s’attarder,réveiller les morts et rassembler ce qui a été démenbré.Mais du paradis souffle une tempête qui s’est prise dansses ailes, si violemment que l’ange ne peut plus lesrefermer. Cette tempête le pousse irrésistiblement versl’avenir auquel il tourne le dos, tandis que le monceau deruines devant lui s’élève jusqu’au ciel. Cette tempête estce que nous appelons le progrès.84
A experiência assustadora do desenvolvimento exponencial da
violência no século XX viria a caracterizá-lo como uma das mais
traumáticas centúrias pela qual a humanidade passou. As duas grandes
guerras, que uniram o ocidente ao oriente sob os laços do ódio,
serviram para desfazer o que restava do ideário iluminista que
fundamentou a subserviência das classes populares a uma burguesia
que, afinal de contas, fora a responsável pelo financiamento do avanço
prodigioso das ciências e a detentora dos meios de produção dos quais a
maioria da população dependia.
Nelson Rodrigues situou o marco divisor entre o fim da Belle
Époque e o início das turbulentas décadas de vinte e trinta com um
evento que aterrorizou o Rio de Janeiro, em 1918: a gripe espanhola.
No livro de memórias A menina sem estrela, ele relembrou o enorme
impacto que essa doença causou na sociedade do Rio de Janeiro a partir
da experiência da banalização da morte.
84 BENJAMIN, Walter. OEuvres III. Praris: Éditions Gallimard, 2000, p.434
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E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores.Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudoera possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, apicareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos.Todo mundo era despejado em buracos, craterashediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, derepente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mãocheia de bichos85.
Se a Primeira Guerra assombrou a Europa com o fenômeno da
industrialização da morte, a gripe espanhola trouxe-a do front para o
seio das maiores capitais do mundo. Houve um surto avassalador da
doença ajudado pelo encurtamento das distâncias decorrente do
aprimoramento das máquinas de transporte. O século que se iniciou
embriagado pela luminosidade dos novos tempos, sofreu com o segundo
impacto negativo da tecnologia, que servira à guerra e, por fim,
disseminou a peste.
A experiência traumática da gripe espanhola impôs novas atitudes
às populações que sentiram os seus efeitos. Nelson Rodrigues narrou
que a passagem da peste no Rio de Janeiro trouxe à população
sobrevivente uma intensa onda de erotização, como se a dor provocada
pelo falecimento dos entes próximos impusesse a celebração da vida
através da via segura do prazer.
Outro fato importante que ocorreu foi a desritualização da morte,
que não fora mais acompanhada pelo cortejo fúnebre que a
85 RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela. São Paulo: Companhia das Letras,1993.p.55
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singularizava dos outros acontecimentos quotidianos. Os novos tempos
exigiam uma prática menos ritualística.
Antes da gripe, achava a morte rigorosamente linda. Lindapelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, epelas alças de prata. Lembro-me de que, na primeiramorte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dossapatos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A espanholaarrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas86.
Quando diante de períodos extremamente difíceis e paradoxais, o
ritual costuma dar lugar à praticidade e à sobrevivência. Assim tem sido
em momentos sob a efígie da peste, tanto no passado mais remoto,
quanto neste breve descortinar do início do século XX. Fenômenos de
longa duração também acompanharam a psicologia dos povos diante de
mortalidades avassaladoras. Tal fato, podemos vê-lo na busca aos
prazeres eróticos, que adquiriram um aspecto bastante especial àqueles
que, de uma forma ou de outra, sobreviveram à peste: para fugirem do
reino sombrio de Tânatos, mergulharam nos braços de Eros, como
podemos ver no seguinte depoimento de Jean de Venette, um carmelita
parisiense que viveu durante a peste que se alastrou pela França entre
os anos de 1348 e 1349.
Quando a epidemia, a pestilência e a mortalidade tinhamcessado, os homens e as mulheres que restavamcasavam-se sucessivamente. As mulheres sobreviventestiveram um número extraordinário de filhos (. . . ). Ai!,dessa renovação do mundo, o mundo não saiu melhorado.
86 RODRIGUES, 1993, p.55
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Os homens foram depois ainda mais cúpidos e avaros,pois desejavam possuir bem mais do que antes; tornadosmais cúpidos, perdiam o repouso nas disputas, nos ardis,nas querelas e nos processos.87
Com o advento da gripe espanhola no Rio de Janeiro, não foi
diferente. Nelson Rodrigues atestou que a face inteira da cidade fora
alterada. O velho Rio de Janeiro, a tradicional cidade de Machado de
Assis, pereceu para dar lugar a uma desabalada corrida a valores muito
mais condizentes aos tempos modernos.
De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortosatirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam,humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. Apeste deixara nos sobreviventes não o medo, não oespanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte.Lembro-me de um vizinho perguntando: - "Quem nãomorreu na espanhola?". E ninguém percebeu que umacidade morria, que o Rio machadiano estava entre osfinados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiuo Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes,valores, pudores88.
Esse transbordamento da busca do prazer coincidiu com a
valorização dos atributos físicos, como o culto ao corpo apolíneo, magro,
elástico, jovem, valores da modernidade no século XX.89. Cada vez mais
o corpo, o movimento, a saúde e a juventude passaram a tomar conta
87 BENAETS e SAMARAM, 1926, apud DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente:1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.88 RODRIGUES, 1993, p. 5589 O Rio de Janeiro, por ser capital da República, torna-se um paradigma damodernidade nacional, como podemos ver no trecho seguinte : “0 Rio passa a ditarnão só as novas modas e comportamentos, mas acima de tudo os sistemas de valores,o modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais quearticulam a modernidade como uma experiência existencial e íntima.” In NOVAIS,1998, p.522
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do imaginário. Numa época em que o novo passou a ser valorizado
como um bem em si mesmo, ser jovem, forte e belo passou a ser o
objetivo inculcado no imaginário social. Essa verdadeira ditadura do
novo como a incessante busca da juventude atravessou o século XX e
foi identificada por Nelson Rodrigues, em seus textos sobre a cultura
brasileira, no final dos anos 60 – momento em que essa tendência fixou-
se.
Fala-se em “Poder Jovem”, na “Jovem Revolução” e umpadre de passeata, em seu veemente sermão, chamouNossa Senhora de “a mãe do Jovem Salvador”. Vejam: - étão importante ser jovem que já se providenciou umaidade promocional para Jesus. Há também os queproclamam a razão da idade. Nada tenho a objetar. Queseja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e quefaçam o mundo à sua imagem e semelhança.A meu ver, porém, chegou a hora de ser falar também da“jovem obtusidade”. Que ela existe como uma realidadeconcreta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida.Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constataçãovisual. Se me pedirem fatos, direi – “Vamos aos fatos”.90
Nos anos 40, época de formação do teatro desagradável de Nelson
Rodrigues, os periódicos estavam repletos de propagandas que
incentivavam as jovens a praticarem o culto à beleza. A mulher, para se
enfeitar, deveria consumir os produtos oriundos da indústria emergente:
cada vez mais variados e específicos à vontade arregimentada em torno
da prática da beleza a qualquer preço. Sua pele não poderia ter
manchas, seus cabelos deveriam estar perfeitos, seus lábios deveriam
90 RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.241
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ostentar a cor rubra, mas singela do batom “Colgat”. Enfim, toda uma
série de normas e comportamentos foram divulgados pela propaganda
através dos periódicos da época.
Além do seu odor desagradável, o excesso de suor debaixodos braços estraga as roupas. Não há toillete que escape!Para não comprometer a sua elegância, use um bomdesodorante como o Magic, que suprime a transpiraçãoexcessiva fazendo desaparecer completamente a umidadee o cheiro característico do suor.Magic é recomendado pelos Drs. Aloysio de Castro, AAustregesilo, Werneck Machado e outros.Distr; Araujo Freitass, & C, Ourives, 88 - Rio.91
Notemos que o produto foi ratificado pela medicina. O discurso
médico possuía o poder de ditar as regras do consumo sob a capa
daquilo que era ou não saudável à população. A propaganda ainda não
havia criado autonomia suficiente em relação ao discurso científico:
ciência e marketing estavam unidos para o “bem do consumidor”.
Atenta à cultura que permeava o seu tempo, a obra de Nelson
Rodrigues estava eivada de personagens obsessivos por limpeza, o que
reflete uma mentalidade na qual a sujeira corporal estaria ligada à
fraqueza de caráter. Na ótica de Nelson, esse dado da cultura
transformou-se em obsessão, como no conto “Banho de Noiva”, da
década de 50.
Vinte e quatro horas antes do casamento, Detinha suspira:- Meu filho, posso te fazer uma pergunta?
91 JORNAL DAS MOÇAS No [?] 4/01/1940. p. 6
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100
Peçanha (Antônio Peçanha), que estava limando as unhascom um pau defósforo, boceja: - “Mete lá”. E ela:- Quantos banhos tu tomas?Admirou-se:- Por quê?E ela:- Responde. Quantos banhos tu tomas por dia?- Um, ora essa!- Só?Peçanha caiu das nuvens:- Tu achas pouco?Admitiu, lânguida:- Acho.92
Ao apresentar tensões relativas ao limiar entre a tradição e os
novos costumes impostos à sociedade brasileira a partir do
desenvolvimento intenso de urbanização e industrialização pelas quais a
sociedade do Rio de Janeiro passou, a obra de Nelson Rodrigues atuava
como um espelho dos novos parâmetros de sociabilidade impostos aos
indivíduos. Tal fato pode ser depreendido tanto de sua obra dramática,
quanto dos outros gêneros aos quais o autor se dedicou. É claro que as
suas crônicas e contos aproximavam-se muito mais do quotidiano de
suas épocas de formação, mas até mesmo as suas peças
"desagradáveis" - consideradas míticas93 por Sábato Magaldi - refletiam
os efeitos negativos da crescente individualização do homem moderno e
92 RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é...São Paulo: Companhia das Letras, 1992,p.2193 Sábato Magaldi faz a seguinte classificação das peças de Nelson Rodrigues –importante porque foi assistida e aprovada pelo próprio autor: Peças Psicológicas: Amulher sem pecado, Vestido de Noiva, Valsa no6, Viúva, porém honesta, Anti-NelsonRodrigues; Peças Míticas: Álbum de família, Anjo negro, Dorotéia, Senhora dosafogados; Tragédias Cariocas: A falecida, Perdoa-me por me traíres, Os sete gatinhos,Boca de Ouro, O beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Todaa nudez será castigada, A serpente. Cf. RODRIGUES, Nelson. 1993. p.1134.
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101
a incapacidade de instituições e lugares sociais refrearem um desejo que
se insinuava por detrás das representações sociais e arrastava os
personagens aos seus destinos trágicos. O que fundamentalmente
aparecia nas peças de Nelson eram os anseios secretos, os desejos de
posse e de reificação do outro - fosse ele o filho, o pai, a filha, etc. - em
prol de vontades pessoais inconfessáveis.
No que concerne à estrutura familiar modelar da sociedade carioca
nos anos 40, tais modelos tradicionais de família eram herdeiros do
patriarcal construto habilmente montado em torno de papéis pré-
estabelecidos, impostos e que não podiam ser contrariados, sob pena de
infração de normas que norteavam o convívio social em vários níveis,
inclusive o criminal. Lembremos que, nessa época, a traição feminina
justificava crimes passionais raramente punidos como assassinatos
comuns.
Esse modelo possuía suas bases na constituição da família
burguesa no século XIX, em que a associação no casamento era uma
empresa que definia muito bem o papel de seus participantes. No
entanto, se o modelo de família nessa época já se fundamentava numa
crise gerada pelos novos parâmetros de sociabilidade que a urbanização
trouxe, na primeira metade do século XX as tensões permaneciam,
senão mais fortes, posto que estavam aumentadas pelo advento da
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102
entrada definitiva das diversas formas de industrialização - a de cultura,
a dos bens de consumo, etc. - no quotidiano dos indivíduos.
Entendamos que esse tipo exemplar de família deva ser visto
como uma idealização, um modelo que nem sempre correspondia à
realidade das famílias brasileiras, notadamente aquelas que possuíam
uma condição pecuniária menos favorecida e que viviam, em sua
maioria, sob o regime de concubinato. Apesar disso, esse modelo de
comportamento burguês imperou em longa duração no imaginário
brasileiro: resultado da solidificação de sociabilidades que
fundamentariam as relações familiares embasadas num paradigma em
que a autoridade paterna deveria ser incontestável, enquanto os
sentimentos e fragilidades deveriam estar relegados ao espaço da
maternidade.
É embasado nesse paradigma que Nelson construiu o seu teatro
“desagradável”. Vejamos a representação desse modelo em Álbum de
família.
SPEAKER - Segunda página do álbum. Mil novecentos etreze. Um ano antes do chamado "pandemônio louco".Senhorinha não é mais aquela noiva tímida e nervosa;porém uma mãe fecunda. Do seu consórcio com o primoJonas, nasceram, pela ordem de idade: Guilherme,Edmundo, Nonô e Glória. E ainda há quem seja contra ocasamento! 94
94 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de janeiro: Nova Aguilar,1993, p.532.
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103
Não foi de outra fonte a estrutura familiar em Senhora dos
afogados, que reduplicava esse paradigma, quando ainda havia lugar
para os parentes mais próximos sob um mesmo teto, nos oitocentos e
em decadência na centúria posterior.
Abre o pano e Misael vai entrando, em companhia deMoema. Toda a família se reúne num grupo estático. Oúnico sentado é o próprio Misael, o chefe da família, queacaba de chegar do banquete. Há nele qualquer coisa deprofético, nos olhos duros, na barba imensa e negra, nasfaces fundas. faz pensar também numa intensasensualidade contida. A seu lado, à direita, nobre e altiva,D.Eduarda; à esquerda, fria e inescrutável, Moema. Aolado da irmã, Paulo, com uma expressão de doçurafeminina. Aos pés de Moema, a avó. Todos imóveis econvencionais, como se o grupo fosse uma pose defotografia [...]95
O modelo que aparece nas peças “desagradáveis” é herdeiro
daquele que normalmente encontramos na sociedade brasileira do
século XIX: patriarcal, mas, sobretudo, diferente das sociabilidades
coloniais do século XVIII. Gilberto Freyre chega a considerá-lo semi-
patriarcal, devido às profundas mudanças que a urbanização trouxe às
relações familiares. É um modelo em que a crise já está instaurada. No
entanto, as amarras que cerceavam os papéis sociais ainda estavam
fortes o bastante para solidificar os papéis sociais.
A compressão do patriarcado rural por um conjuntopoderoso de circunstâncias desfavoráveis à conservaçãode seu caráter latifundiário e, sociologicamente, feudal, fezque ele, contido ou comprimido no espaço físico como
95 RODRIGUES, 1993, p. 684.
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104
social, se despedaçasse aos poucos; que o sistema casa-grande-senzala se partisse quase no meio, os elementossoltos espalhando-se um pouco por toda a parte ecompletando-se mal nos seus antagonismos de culturaeuropéia e de cultura africana ou cultura indígena.96
Por outro lado, não é à toa que modelos de famílias patriarcais
foram aventados nos conturbados anos 30 e 40, como no caso das
obras de Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues. Além de uma influência
recíproca consubstanciada na fundamentação e construção de um novo
sentimento de nacionalidade, como no caso da obra de Freyre, não
podemos deixar de notar que foi justamente nesses anos que o modelo
de família oriundo do século XIX passa a ser contestado de forma mais
drástica. Houve o recrudescimento das crises contínuas devido à
crescente onda de individualização que os novos tempos propiciavam.
Esse foi um dos motivos97 que uniu as obras de Gilberto Freyre e
Nelson Rodrigues, ambos interessados – de um lado, no estudo
sociológico e, do outro, na ficcionalização – desse mesmo modelo de
família patriarcal, posto que levados pela crise que os novos usos e
costumes impunham às tradições daquela época. Sob essa égide, Freyre
construiu as suas duas obras mais famosas: Casa-grande & senzala e
Sobrados e mucambos. Sob esse modelo de família, Nelson Rodrigues
96 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. (Col. Intérpretes do Brasil). Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 2002, p.857.97 Um interessante estudo sobre a obra de Gilberto Freyre e de Nelson Rodrigues foielaborado por Adriana Facina em FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análiseantropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.No capítulo a seguir, apreciaremos um pouco mais de seu trabalho.
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105
escreveu as peças desagradáveis: Álbum de família e Senhora dos
afogados, claramente imaginadas sob o modelo de família patriarcal.
As peças Dorotéia e Anjo negro, por sua vez, problematizavam
determinadas idéias e sentimentos presentes naquele mesmo universo.
Na primeira, observamos que o autor deu um peso considerável à
obsessão pela pureza – ligada à negação do desejo sexual – que
indelevelmente a mentalidade patriarcal instaurou no universo feminino.
Em Anjo negro, notamos uma interessante relação inter-racial:
ponto de questionamentos importantes sobre a flutuação de valores
sociais que estavam ligados à convivência conflituosa entre negros e
brancos em nossa cultura. Sob esse aspecto, as obras dos autores
diferem, posto que se Casa-grande & senzala é um texto partidário da
semi-presença de conflitos raciais no Brasil, a peça Anjo negro leva
várias possibilidades desse conflito ao palco. A alva personagem
“Virgínia”, que se recusa terminantemente a ter filhos negros, chega a
trair o marido com o objetivo de ter um filho branco.
VIRGÍNIA (agarrando-se a ele) – Não, Ismael, não! Euestava louca quando disse que tinha horror de ti! Aspalavras não me obedecem mais. Eu não sei o que digo, oque penso! Estou doida, Ismael, completamente doida! Euprecisava ter um filho – um filho que não fosse teu – e nãopequei, juro que não pequei. Juro, não pelos filhos quemorreram, mas por este (passa a mão no ventre) – esteque está aqui.[...].98
98 RODRIGUES, 1993, p.602
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106
Em todas as peças desagradáveis, havia indícios claros do poderio
que fora instaurado entre os personagens. O poder dos patriarcas –
“Jonas” (Albúm de família); “Ismael” (Anjo negro) e “Misael”(Senhora
dos afogados) não os salvou de seus destinos trágicos, posto que suas
fraquezas muitas vezes fizeram com que eles usassem o poder moral
que possuíam para destruir aqueles que estavam à sua volta.
A obra de Nelson Rodrigues refletia as tensões entre
descontinuidades que ameaçavam construtos de longa duração:
modelos de famílias tradicionais eram implodidos pela impossibilidade
de contenção de sentimentos que, subitamente libertos das amarras
sociais que lhes cerceavam por conta do silêncio e da cumplicidade
domésticas, extrapolavam os padrões contemporâneos ao processo
individualização pertinente ao desenvolvimento dos novos ditames da
modernidade nos anos 30 e 40 do século XX.
Por outro lado, a exacerbação dos desejos de seus personagens,
basicamente sexuais e afetivos, certamente não se coadunavam a
quaisquer níveis de sociabilidade, mesmo dentro das silenciosas paredes
do lar, o que arrastava essas verdadeiras “vontades personalizadas” à
loucura ou implacavelmente à morte.
O anúncio a seguir nos apresenta os limites de contenção
impostos a uma sociedade cada vez mais permissiva e, por isso mesmo,
mais preocupada em dominar os instintos sexuais nos novos tempos.
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Ciência e religião uniam-se para substituir um poder que
verdadeiramente estava em decadência: o da passagem tradicional do
conhecimento através dos contatos familiares. A legitimação dos
ditames e usos não mais ocorria de dentro para fora da família, mas de
fora para dentro: os especialistas e religiosos vinham cercear, nortear,
alardear aquilo que era ou não era proibido em termos de conduta
sexual.
Coleção Cultura Sexual
Frei Monsueto, uma vez mais, espontaneamente, sustentaatravés de “Vozes de Petrópolis”, publicação católica, oseu aplauso irrestrito ao livro de Liepmann – confirmando,assim, a sua recomendação para que todos os pais eeducadores brasileiros leiam essa formidável obra dedivulgação em torno do “Magno problema sexual” assimconsiderado pela Igreja e pelas autoridades do Brasil.A Tragédia Sexual da Juventude, por W. Liepmann. Oautor reuniu nesse livro admirável uma série de confissõesescritas e detalhadas, de rapazes e moças, acerca de suaatividade sexual, processos de ilustração sexual,exemplos, influências, etc., através das quais se vislumbraum mundo de sofrimentos e mal-entendidos, que somenteuma educação defeituosa poderia justificar. Livro elogiadopor Frei Mansueto e por Frei Fuchs.
Outros livros da “Coleção de Cultura Sexual”.
“A perfeição sexual do Matrimônio”, pelo Dr. Hebert Leitd.“Biologia da Mulher”, pelo Dr. F. Hare.“A Questão Sexual pelo Mundo”, por Magnus Hischefeld.“A Tragédia Biológica da Mulher”, pelo prof. A. W. Nenlon.“O Corpo e o Amor”, por M. H.“A alma e o amor”, por M. H.
Freud ao alcance de todos:
1 – “Freud e o ABC da Psicanálise”, Dr. HumbertoSalvador.2 – “Freud e o problema sexual”, pelo Dr. J. Gomes Nerea.
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108
Editorial Calvino Limitada.99
Esse impressionante anúncio nos mostra a intensa preocupação
com o direcionamento da sexualidade nos anos 40. A “tragédia sexual”,
além de seu óbvio direcionamento sensacionalista, demonstra que a
crise nos padrões comportamentais já se insinuava no seio da família
carioca. Os fatores de desagregação estavam cada vez mais claros: o
desejo deixou de ser um segredo e uma intimidade invioláveis e passou
a ser uma contingência a ser norteada, medicalizada, retida aos padrões
de comportamento considerados normais. Como Foucault detectou,
multiplicaram-se vertiginosamente os discursos em torno da
sexualidade, com o intuito da produção de um saber que estava
vinculado ao controle à domesticação dos desejos.
O sexo, segundo a nova pastoral, não deve ser maismencionado sem prudência; mas seus aspectos, suascorrelações, seus efeitos devem ser seguidos até às maisfinas ramificações: uma sombra, um devaneio, umaimagem expulsa com demasiada lentidão, umacumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e acomplascência do espírito: tudo deve ser dito.100
Uma intensa curiosidade ampliada pelo desvendamento de novas
possibilidades de socialização demonstra que nesse tempo já
encontramos um espaço entre as novas e as antigas gerações. A
99 CORREIO DA MANHÃ, 2/03/1941. p.18100 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. [vol 1] Rio deJaneiro: Graal, 1999, p.23
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juventude aparece nesse anúncio como uma propiciadora do caos, caso
não siga as instruções impostas pelos médicos e ratificadas por
representantes da Igreja. Esse fosso entre gerações sucessivas cada vez
se tornará mais claro ao longo do século XX e será responsável pela
considerável mudança dos costumes em torno da sexualidade,
principalmente ao longo dos anos 60 e 70.
Vejamos mais um exemplo de como a sociedade dos anos 40 se
organizava em torno dos costumes que vigoravam a partir dos novos
modelos de comportamento provenientes da modernização dos
costumes. Organizações foram criadas e destinadas a estudar uma
seara que foi se tornando cada vez mais complexa, imersa em mistérios,
como também em fascinação. O sexo haveria de ser um espaço de
encontro, mas as regras permitidas ou proibitivas desse conluio
deveriam estar bem claras aos casais. Para guiar os neófitos nessa
atmosfera de curiosidade e desejo, nada melhor do que a medicina. As
novas técnicas de aprendizagem, como o cinema, foram colocadas a
serviço do conhecimento. Os modernos casais dos anos 40, ávidos por
cumprir os vaticínios dos novos tempos e costumes, deveriam estar a
par das diversas técnicas e saberes que a ciência estava disposta a
oferecer.
Filme de Educação Sexual
O Círculo Brasileiro de Educação Sexual, com sede no Riode Janeiro, reiniciará em abril próximo, em seu salão de
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projeções, a exibição pública e gratuita do filme “Aeducação sexual nos diversos períodos da vida”, editadopor esta instituição, dirigido na parte científica pelo seupresidente Dr. José de Albuquerque e confeccionado nosestúdios da cinédia. Tais exibições se realizarão todas asquartas-feiras, às 20:30 horas, depois da conferência quenesses mesmos dias pronunciará o doutor José deAlbuquerque, na Sede Social do Círculo à rua do Rosário,172.101
Qualquer escapadela, comportamento diferente – principalmente
no caso das mulheres – era visto como uma falha moral, quiçá como
uma anomalia. A família deveria ser defendida a qualquer custo. Sob os
auspícios da contenção e do norteamento da sexualidade, os anos 40
mantiveram-se sob as hostes das sagradas quatro paredes do lar.
O discurso do saber científico era herdeiro da inquestionabilidade e
da violência que o caracterizava desde o aparecimento das hordas
higienistas que passaram a buscar o controle e o saneamento das
populações urbanas. Tudo o que escapava aos seus rígidos padrões: as
anomalias, as incoerências, as imperfeições tanto físicas quanto morais
eram consideradas doenças. Seu portador deveria ser tratado da
maneira mais adequada aos procedimentos científicos. A intervenção
nos pacientes lhes retirava, em primeiro lugar, o domínio sobre o
próprio corpo.
- De repente, essa mulher sem vontade, posso mesmodizer, sem caráter, muda completamente. Sem motivo
101 BEIRA MAR, 19/04/1941. p.15
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nenhum, vira-se contra mim, que ela venerava; e mais,está vendo isso aqui?Diante do médico interessado, doutor Maciel desembrulha,de um papel de seda, o punhal, que comprara a caminhodo consultório. Continua, de olhos fitos no psiquiatra:- Eu encontrei esse punhal debaixo do travesseiro. Querme matar, segundo presumo, durante o sono.102
No romance A mentira, uma farsa foi montada pelo personagem
“Dr. Maciel”. O seu objetivo era fazer a sua esposa parecer louca para
conseguir encarcerá-la num hospício. O testemunho do marido foi uma
marca poderosa dessa trama. Em momento algum o psiquiatra reuniu
informações mais precisas ou sequer ouviu atentamente a mulher. Ele
foi guiado por pistas comportamentais que o levaram realmente a crer
que a esposa de “Dr. Maciel” estava louca. Não foi outro o destino da
mulher, que não o encarceramento. O marido déspota usou todas as
armas que possuía, oferecidas em uma época na qual o seu testemunho
e credibilidades eram fundamentais, posto que partiam de um lugar de
autoridade. No caso do comportamento feminino, ele era conhecido por
ser mais flexível, frágil às doenças emocionais.
A loucura também estava presente em Álbum de família. O
personagem “Nonô” estava corporificado apenas por seus gritos. Sua
presença insidiosa denunciava, por detrás do horror do incesto, a
animalidade subjacente ao desejo realizado, o que o fazia um homem
102 RODRIGUES, Nelson. A mentira: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p.203.
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fora a interdição da realização do conluio sexual com sua mãe. O ato
infame consumiu o que lhe restava de humanidade.
As peças “desagradáveis” de Nelson Rodrigues funcionavam
muitas vezes como um espelho invertido dos discursos que instauravam
uma nova pedagogia comportamental que procurava cercear e
direcionar homens envolvidos no processo de modernização dos
costumes sob os caros limites de contenção burguesa: o horror à
loucura, ao desregramento, às infinitas possibilidades de sofrimento
diante dos sentimentos desmedidos eram muito claros nessa época.
O ciúme – O ciúme é um sentimento terrível, tornaamarga a existência daquele que o acolhe, extermina-lhetoda a esperança, toda a alegria de viver, levando-o aosmais impulsivos e irrefletidos atos.O ciúme excessivo conta com a proteção dos sentimentosde ódio, cólera e vingança.Leitora, se alguém nutre esse ciúme por você, esse ciúmefanático e anormal, não queira esse alguém. Não o queira,leitora, mesmo consagrando-lhe amor que fale alto em seucoração. Não o queira, porque seu amor morrerá, vocêficará desiludida e decepcionada, você nunca mais teráfelicidade.Mas, se alguém nutre por você um ciúme quaseimperceptível, um ciúme que anda de mãos dadas com osentimento de confiança, queira esse alguém, leitora, se éque você o ama.Humberto de Campos103
O que assustava a sociedade carioca dos anos 40 era justamente
o que Nelson apresentava em suas peças. O desvario, a não contenção
fez com que os seus personagens limitassem as suas existências às
103 JORNAL DAS MOÇAS. n0 1542. 04/01/1945.p.23
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amarras de seus sentimentos. Não lhes sobrava muita coisa, senão agir
obsessivamente sob o estigma de suas paixões, fossem elas movidas
pelo desejo pelo outro ou até mesmo pelo repúdio. Ódio e paixão se
tornaram aliados norteadores de comportamentos que usualmente eram
até mesmo aceitos sem a lente de aumento característica de sua obra.
Sob o estigma do desregramento, as paixões se tornavam mais
claras: não havia espaço para o segredo. Os personagens de Nelson
confessavam as suas paixões e o faziam porque era justamente isso que
os definia e o que os movia no decorrer das tramas. Em Álbum de
família, o patriarca era a consubstanciação do desejo sexual exogâmico
e idealmente endogâmico: ele submetia sexualmente jovens com a
mesma idade de sua esposa à época do casamento como simulacro de
uma posse que ele não poderia mais realizar. A peça tinha um de seus
pontos fortes em sua sexualidade exacerbada, a submeter os que
estavam à sua volta.
JONAS – Não desejo você! (muda de tom) Nunca suporteias mulheres que não desejo...POR ISSO DETESTEISEMPRE MINHA MÃE E MINHAS IRMÃS...(com sofrimentoe a maior dignidade possível) Não sei, não compreendoque um homem possa tolerar a própria mãe, a não serque...104
O outro pilar desse texto foi certamente a sua esposa,
“D.Senhorinha”, que buscava submeter os próprios filhos à voracidade
de seu desejo de posse. Apesar de o ato sexual consumado com um de
104 RODRIGUES, 1993, p.542
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seus rebentos tê-lo levado à loucura, ela não hesitou em tentar seduzir
os seus outros filhos. “Guilherme” escapou de sua influência, mas
“Edmundo” passou a existência inteira a desejar a própria mãe, o que o
afastava de qualquer outra possibilidade de relacionamento. Mesmo
casado, mantinha a mulher intacta: a imagem de sua mãe sempre o
afastava da consumação do ato sexual. O desejo obsessivo de “D.
Senhorinha” não foi metaforizado, tornou-se bastante claro em sua
confissão ao final da peça. Seu caminho era auto-consciente e não havia
a necessidade do subterfúgio – ela foi apaixonadamente o seu próprio
desejo.
D. SENHORINHA – Eu não quis esquecer; eu não quisfugir; eu não tive medo nem vergonha de nada.(possessa) Não botei meus filhos no mundo para dar aoutra mulher!105
O universo dramático de Nelson Rodrigues estava eivado de
referências a doenças físicas que transcendiam o espaço restrito do
corpo e atingiam o espaço da mente, do comportamento, da
moralidade. Esse olhar as enfermidades físicas – distante nos dias de
hoje – era bastante comum nos anos 40 no Rio de Janeiro. Na verdade,
o conhecimento científico que aparecia nos periódicos estava muito mais
voltado à venda de medicamentos do que à divulgação de pesquisas ou
saberes científicos. Cultura popular e cientificismo barato muitas vezes
105 ROFRIGUES,1993, p.569
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compartilhavam a mesma página dos jornais ou revistas. Tais discursos
eram, na verdade, o reflexo da insurgente indústria de medicamentos:
cada vez mais especializada nos males que atingiam mormente a faixa
da população que consumia os seus produtos, a classe média.
O fígado irritado é muitas vezes a causa da irritação dassenhoras, principalmente no verão. Uma simplescolherinha de URODONAL, às refeições, desintoxica, limpae refresca o organismo. URODONAL elimina as toxinas eestimula o fígado.106
O sangue era um local onde poderiam se esconder as mais
variadas doenças, os mais insuspeitos miasmas. Por esse motivo, era
fundamental usar os mirabolantes medicamentos oriundos da insurgente
indústria farmacêutica nacional, como o curiosíssimo “Elixir Brasil”,
verdadeiro milagre engarrafado e à disposição dos mais ávidos
consumidores.
Não se acovarde! Reaja contra a Syphilis (sic.) e vença-a!!! Não espere que as impurezas do sangue vençam aresistência de seu organismo e que seus terríveis efeitosse manifestem impiedosamente! Então será tarde demais!Não espere! É o melhor conselho que lhe podemos dar!Dores de cabeça constantes, reumatismo, artritismo,sciática, dores nos ossos, furunculose, eczema, feridasrebeldes, erupções na pele, queda do cabelo, urticária,empingem, hemorróidas, são alguns dos mais banais ecomuns sintomas da impureza do sangue. O Elixir Brasil, àbase de plantas medicinais brasileiras é aconselhado, pelaclasse médica do Brasil, como o melhor depurativo dosangue.107
106 CORREIO DA MANHÃ, 16/03/ 1941, p.5107 Ibid.,16/03/1941, p.7
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116
Os medos provenientes de miasmas vindos do sangue
articulavam-se aos caminhos através dos quais os indivíduos realizavam
as suas experiências: a sífilis encontraria a cura nesse mesmo ano, o de
1941, com a descoberta da penicilina. Até então, a série de normas e
condutas em torno das práticas sexuais visavam assegurar ao indivíduo
formas mais ou menos eficazes de estar livre dessa doença. É
importante notar que o advento de doenças sexualmente transmissíveis
acompanhava uma série de comportamentos que visavam “disfarçar”a
incidência de tal afecção.
Sem dúvida alguma, o aparecimento da sífilis – coincidentemente
à época do descobrimento das Américas – na Europa ajudou a fortalecer
os mecanismos de repressão sexual, como também o poder que a Igreja
passou a ter sobre o gerenciamento das regras e normas voltadas para
um número cada vez mais reduzido de parcerias sexuais que
encontrava, na instituição da família, o seu molde mais perfeito.
Vejamos a sintomatologia dessa doença.
Tradicionalmente distingue-se, após uma incubaçãoimperceptível entre duas a cinco semanas, o acidente“primário”, o cancro indolor no ponto de inoculação, emgeral nas partes genitais, acompanhado por umaadenopatia (hipertrofia de um gânglio) satélite, segue-sepor um período “secundário” com lesões cutâneas pelocorpo, muito contagiosas e com um nome evocador:“sarampelo”, “colar de Vénus”...depois, após um entreatoque pode dura cinco, dez ou mesmo vinte anos, surgem aslesões graves da fase terciária, chamadas “gomas”, aonível da pele, das mucosas e dos ossos. Se o sistemanervoso for atingido, manifesta-se a tabes (espécie de
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paralisia), posteriormente a “paralisia geral” (na verdade,demência sem paralisia), que provoca mais ou menosrapidamente a morte.108
Não foram de outra procedência, posto que o imaginário social
tornava as doenças venéreas uma praga destinada a castigar aqueles
que não se submetiam à castidade, as chagas presentes na peça
Dorotéia, que cumpriram o seu papel de destruir a beleza impura da
personagem principal da trama. Numa casa de mulheres horríveis, que
procuravam obsessivamente o afastamento do desejo sexual, a
presença dessa prostituta, ovelha perdida do seio familiar, representava
um paradoxo que deveria ser desfeito rapidamente. Para tanto, para
que o seu corpo não despertasse mais os anseios dos homens,
“Dorotéia” deveria se contaminar com chagas providenciais, caminho
seguro, através do qual o seu retorno ao seio da família estaria
assegurado.
D. FLÁVIA (cariciosa) – E nunca pensaste numadoença?....Numa doença que consumisse tua beleza?...DOROTÉIA (impressionada) – Tenho muito medo dedoença, muito!...(exultante) Agora eu me lembro: houveuma vez, sim, em que eu pensei numadoença....(compungida) Foi quando houve a separação deum casal, por minha causa...Roguei praga contra mimmesma...Pedi...(trava)109
“Dorotéia” era aquela que não conseguia ter a “náusea” que
acometia as mulheres de sua família quando diante do idílio sexual. Ao
108 MOULIN, Anne-Marie; DELORT, Robert apud. DUBY, Georges. Amor e sexualidadeno Ocidente. Lisboa: Terramar, 1998, p.297109 RODRIGUES, 1993, p.639
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contrário, onde as suas parentes não viam qualquer sombra de homem,
ela conseguia vislumbrar a presença masculina e, por isso, tornou-se
uma perdida. Na verdade, ela era possuidora de seu próprio desejo: fato
que realmente era negado compulsivamente por “D. Flávia” e suas
irmãs. No entanto, ao final da peça, vemos que esse fato também foi
descortinado e “D. Flávia”, após se livrar das irmãs que capitularam
diante da presença do desejo, assumiu possuí-lo e, com isso, percebeu
que o seu destino era o de fenecer ao lado de “Dorotéia”.
A trama dessa peça é pano de fundo para uma profunda reflexão a
respeito do imaginário sobre o feminino, onde as forças da negação e
realização do desejo sexual estavam presentes e corporificadas em suas
personagens. O espaço para a realização do ato sexual, quando na
época da lua de mel, foi palco da náusea que acometia as mulheres da
família e fez com que elas não conseguissem mais ver os seus amados.
Pensemos que, no imaginário patriarcal, a presença real do homem na
vida de uma mulher só poderia ocorrer a partir do idílio consentido na
lua de mel. Fantasias foram tecidas em torno desse encontro pelo
imaginário social e, claro, muitos sonetos como esse povoaram o
caderno das jovens moças casadoiras dos anos 40.
Em Lua de Mel
Era à tardinha. Cores em declínio...Do sol, o incêndio de ouro se extinguia
Subia o aroma do rosal cetíneo,Leve e doce topor dos céus descia.
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À porta, à minha espera, ela sorriaContente de seu tentador fascínio,Que tudo iluminava e elanguecia
Seu corpo esguio, esbelto e curvilíneo.
E acelerando o senso de meu sangueMovia, maliciosa, em gesto langue,Os lábios fartos, rubros e gulosos.
E eu abria os braços túmidos de ansiososPara acolher-lhe a carne em aceso ardorErguendo-a para a vida e para o amor.110
Esse poema, retirado de um periódico que circulava na Zona Sul
do Rio de Janeiro nos anos 40, retrata de forma bastante clara aspectos
do imaginário social a respeito das atuações do feminino e do masculino
na ambiência do idílio amoroso. A primeira estrofe marca o quadro de
intimidade caracterizada pelo declínio da luz e pela busca de conforto e
prazer. Por outro lado, realiza o paradigma do homem voltando para
casa depois de sua jornada de trabalho. Nesse momento, entre o dia e a
noite, a sua esposa o espera à porta de casa.
O espaço da rua, portanto, era o espaço fundamentalmente
masculino, enquanto o espaço do lar pertencia à mulher. Toda a
antevisão do prazer e do aconchego está ligada intimamente à figura
feminina que, da mesma forma que o próprio lar, recebe, voluptuosa, o
seu homem. Suas características corporais retratavam o modelo ideal de
110BEIRA MAR, 23/05/1942, p.13
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beleza dessa época. Seu corpo era magro, mas tinha curvas: o que
realça o poder de atração que a mulher exercia.
À espera de beijos, a mulher realizava a sua imagem tentadora,
já liberta pelas regras sociais, posto que estava sob os auspícios da
união matrimonial. Portanto, sua sexualidade poderia ser exercida e,
efetivamente, ocorria voltada para o seu marido. Desse último,
antevemos apenas os braços: fortes e ansiosas alavancas a erguer a sua
amada ao amor e à vida.
O dado perverso, talvez esteja inserido no fato óbvio: a presença
masculina foi, na verdade, a responsável pela passagem do indivíduo ao
amor e à vida. Melhor dizendo, esse poema retratava de forma clara que
a existência efetiva da mulher ocorria de forma segura e agradável
através da instituição matrimonial e, claro, sob os auspícios do poder da
força masculina.
Se pensarmos em toda carga imaginária que havia em torno do
idílio amoroso na lua de mel, podemos vislumbrar o quanto a trama de
Dorotéia atingia aqueles que fruíram esse texto. Através de um espelho
invertido, Nelson Rodrigues revelou aspectos da sexualidade feminina
nos anos 40, onde a presença do idílio amoroso só poderia ocorrer
depois do casamento e mulheres pudicas contrastavam com aquelas que
experimentavam livremente os seus desejos, as prostitutas.O autor
aproveitou a lógica do imaginário social, na qual o feminino estava
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reduzido à condição de objeto do desejo masculino: sob os auspícios
desse poder, a sedução feminina não era transgressora e ela possuía o
valor dos seus encantos. No entanto, o oposto da beleza, a feiúra,
reduzia as portadoras desse “mal” ao amargor da fealdade e à pudicícia
compulsória.
Tanto para as belas, como para aquelas que desejavam ser belas,
o ideal de uma pele sã, bela, sem manchas ou qualquer marca que a
singularizasse e a retirasse dos padrões estéticos da época era um
objetivo que deveria ser atingido. Um corpo sadio mostrava-se através
de uma pele fresca e sem defeitos ou marcas de doenças.
Aquela que é feia tendo podido evitar a fealdade cometeuum feio pecado...Um rosto bonito não é só o que possui abeleza da forma e sim uma pele unida, sem manchas,espinhas, cravos, rugas, sem imperfeições da cútis.CREME POLLAH fará o vosso rosto bonito, admirado detodos, com uma pele fina e lisa, debaixo da qual como quese verá circular a vida.111
Num tempo no qual o desejo incontido parecia não existir senão
sob o estigma da doença e, claro, do exílio social, Nelson Rodrigues
colocava em seus textos a impossibilidade de cerceamento e
direcionamento do indivíduo: era no segredo das quatro paredes,
momentaneamente distante dos olhares e dos discursos cerceadores
que se dava a atuação dos atos mais censuráveis. Esses atos, embora
111 JORNAL DAS MOÇAS, No [?], 01/08/1940, p.14
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embebidos de clara sensualidade, eram inversões importantes que
atingiram as idéias e crenças que estavam vigentes na época de
formação dessa obra.
A origem social da maioria de seus personagens era
fundamentalmente pertinente à classe média. Foi sobre os melindres,
falsidades, verdades e anseios dessa faixa da população que Nelson
Rodrigues dedicou preferencialmente a sua obra. Os elementos do
imaginário que o autor trabalhava encontravam, nessa classe social, um
eco considerável. Esse fato estava claramente presente em suas
Tragédias Cariocas, como A falecida, Perdoa-me por me traíres, Os sete
gatinhos, Boca de ouro, O beijo no asfalto, Otto Lara Resende ou
Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada, e A serpente nas
quais a maioria dos personagens eram pertencentes a essa classe. No
entanto, nas outras peças houve uma curiosa repetição de temas que
eram caros a essa insurgente classe, como a virgindade, o idílio
amoroso de duas irmãs pelo mesmo homem, a traição feminina, etc.
Essa preferência dos escritores brasileiros foi detectada pelo próprio
Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas no final da década de 60.
[...]Pena é que o teto da nossa ficção seja a classe média.Se pedirmos ao nosso romancista uma grã-fina, ele nãosaberá recriá-la. A rigor, também não entendemos nadado favelado, do operário, do marginal. [...]112
112 RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben Hur: confissões culturais. São Paulo:Companhia das Letras, 1996, p.89
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Sua dramaturgia, certamente, se voltava para o que nós
poderíamos chamar de o público real que ia aos teatros naquela época.
Portanto, o que ocorria era que o público se via diante de um espelho
deformado, pois aqueles que assistiam às suas peças presenciavam o
retrato de abomináveis segredos e transgressões em lugares modelares,
em relações acima de quaisquer suspeitas.
A obra de Nelson Rodrigues foi uma resposta ao pensamento
totalizante, às idéias de verdade e de pertencimento que eram criadas,
postas em prática para o direcionamento dos indivíduos. Os discursos da
medicina, da Igreja, das instituições penais procuravam criar uma
pedagogia do comportamento através da simplificação e da
metodologização de discursos norteadores. Nelson Rodrigues, através
do horror, do hostil, das transgressões, mostrava que havia na alma e
no comportamento do homem uma sombra que jamais seria posta sob a
luz, por mais que a ciência ou as outras instituições cerceadoras
tentassem. Sua ironia em relação à impossibilidade de tais discursos
serem efetivamente uma salvação àqueles que lhes procuravam chegou
às raias do sarcasmo ao apresentar personagens médicos e religiosos,
quando não totalmente descompromissados de suas funções
messiânicas, imersos na mesma ambiência de charlatanismo dos
periódicos da época.
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Vejamos mais um anúncio da época em que Nelson Rodrigues
escreveu as peças desagradáveis. Lembremos que os anos 40 foram o
marco divisor: a 2ª Guerra Mundial trouxe avanços científicos
inquestionáveis às ciências e que começaram a aparecer no cenário
mundial a partir de 1945. Em plena guerra, podemos ver que a
propaganda brasileira ainda estava aferrada a antigos padrões de
conduta e imaginário acerca dos milagres de uma farmacologia que
beirava o charlatanismo.
Epilepsia: declaraçãoSeria injusto silenciar a minha imensa satisfação, nãodeclarando em benefício de todos os que sofrem deataques epilépticos, que estou completamenterestabelecida depois de ter feito uso de 9 vidros doconceituado medicamento.Antiepiléptico BaraschAssig. Olga Castro Taversra/ Professora Publica.113
A epilepsia compunha, com outras doenças, um quadro dos
grandes medos que as famílias tinham. Essas doenças eram vistas como
“anormalidades” que deveriam ser protegidas dos olhos dos estranhos e
eram guardadas como segredos que deveriam ser preservados dentro
das quatro paredes do lar. Um interessante quadro de “anormalidades”
foi pintado por Nelson Rodrigues no fragmento do romance a seguir.
Vejamos.
113 CORREIO DA MANHÃ, 2/03/1941, p.18
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Calou-se, porque não achou palavras. O que ele queriadizer é que, em cada família, há trevas que convém nãoprovocar. Quantas casas, quantos lares são varridos deadúlteras, pederastas, incestuosos, epiléticos? Desde quecomeçara a subir a avenida Niemeyer, ouvia o silêncio dasilhas.114
Através de sua narrativa, o autor deixava transparecer a intenção
de sua obra: no subterrâneo de um modelo, a família, a presença da
doença, da imperfeição física ou moral levava os seus portadores ao
degredo e, pior, à ameaça àqueles que se apresentavam sãos.
Percebamos que, mais uma vez, a epilepsia, uma doença física, foi
equiparada às doenças morais, aos “desvios” sexuais, às vertigens da
alma quando sob efeito das paixões obsessivas. A epilepsia, incesto, o
adultério e a pederastia se completavam para nutrir o leitor da essência
do abismo.
O autor soube descortinar ao fruidor de suas obras a ambiência
dos pavores e dos desejos de sua época. Seus personagens estavam, a
todo tempo, usando imagens ou fazendo referências a determinados
contratos sociais aparentemente pacíficos, mas que, em seu universo,
estavam submetidos a deslizamentos que desafiavam os seus
espectadores. Vejamos de que maneira o patriarca “Jonas” se
apresentou diante de seu filho.
JONAS - Deixe, Rute! Eu é que sou o pai! (surdamente)Me criticar - um sujeito que acaba de largar a mulher! Por
114 RODRIGUES, Nelson. O casamento. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1992.
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que não fez, então, como Guilherme, que continua firmeno seminário, estudando para padre! Eu sei por quê:porque Guilherme é frio. Frio não: feminino até.115
Idéias que antes pareciam fixadas nas mentalidades estavam, a
todo momento, sendo jogadas para o leitor e eram esfaceladas no
decorrer das tramas. Dessa forma, a reafirmação da autoridade paterna
através da ressacralização da palavra “pai” foi o ponto de partida para
que “Jonas” pudesse atacar o filho. É desse lugar de autoridade, de
poder, que as afirmações foram realizadas. Ele remeteu os filhos ao
eterno conflito entre dois irmãos, os quais eram elogiados ou
vilipendiados de acordo com algum interesse imediato. A idéia fixa da
indissolubilidade da união matrimonial foi uma arma para que “Jonas” o
confrontasse. Com isso, ele tentou arrastar “Edmundo” ao pântano
moral em que se encontrava por conta de seus desejos irrefreados.
Em Álbum de família, havia a presença ostensiva da sexualidade
incontida voltada à destruição moral do indivíduo. A negação do desejo
apontava para a contenção tão cara às relações sociais nas quais o
corpo era visto perenemente com desconfiança. Esses parâmetros
serviram para qualificar “Guilherme”, aquele que metaforicamente se
castrou e, com isso, pareceu fugir da ânsia abominável que estava
disseminada por toda a família. No entanto, seus esforços foram inúteis,
pois, mesmo assim, ele foi invadido pelo desejo por sua irmã “Glória”, o
115 RODRIGUES, 1993, p.534
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que o levou, por ciúmes do pai, a assassiná-la e a dar fim à própria
vida. O que era protótipo de pureza, desagregou-se diante dos olhos do
leitor, submetido a todo tempo ao movimento desagradável de
redimensionar-se diante desses modelos em contínuo movimento.
O movimento de mutilação do próprio corpo como uma tentativa
desesperada de escapar de um desejo que se insinuava contra valores
pré-estabelecidos pode ser encontrado em outros textos de Nelson
Rodrigues. Por exemplo, no romance Asfalto selvagem, o personagem
“Sílvio” realizou esse ato por não poder viver com a verdade que amara
a própria irmã: dessa forma, ele foi par de “Guilherme” em Álbum de
família. Essa cena foi um dos mais belos exemplos da ficção de Nelson
Rodrigues, que soube aliar o trágico, o ignominioso a uma descrição
poética, em que as imagens realçaram a profundidade e a
representatividade de um ato desesperado.
Muito depois – quase ao amanhecer – Silvio ergueu-se. Elaestava quieta – nessa calma intensa que há na carnedurante o sono da alma. Sílvio passou alguns minutos, empé, de olhos fechados, como se orasse.Por fim, apanhou a navalha. De repente, Engraçadinha oviu fazer um risco intenso e luminoso. Era a luzquebrando-se na lâmina viva. Na sua mão, a navalhatornou-se ainda mais leve, macia, diáfana. Ele feriu a almada própria carne. Foi um golpe único e exato, Decepado,do cacho do sonho e da vida pendeu do filete vibrante.Finalmente, soltou-se.116
116 RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seuspecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.158
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Já no conto, “A Humilhada”, presente na coletânea A vida como
ela é, Nelson Rodrigues fez uma inteligente inversão com a idéia da
fidelidade feminina, ponto modal da indissolubilidade do matrimônio
que, pautada nesse pilar, considerava a traição masculina muito menos
transgressora. Mais uma vez, o autor jogou com o dado cultural para
proporcionar o efeito do desagradável. A traição da mulher era vista
como uma transgressão séria aos valores morais da classe média. A
necessidade de traição, portanto, causou o efeito contrário, apresentou
a lógica daquela que traiu, do que estava no subterrâneo do desejo e
que não poderia ocultar-se sob as amarras dos paradigmas sociais.
Larga esse homem agora! Larga! Sai dessa casa! Agora,anda!Toda a sua doçura de menina se fundia em paixão, ódio.Então, subitamente serena, Regina compreendeu quecertas esposas precisam trair para não apodrecer.117
Os textos de Nelson Rodrigues incomodavam o leitor, fazendo-lhe
enveredar por questionamentos que seriam inexistentes, não fosse pelo
contato com a sua obra. Sem dúvida, o efeito que havia em tais
enfrentamentos era desagradável, mas foi justamente por isso que
houve uma possibilidade de fruição mais profunda, mais
redimensionadora de seus textos.
117 RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é: o homem fiel e outros contos. São Paulo:Companhia das Letras, 1992, p.163.
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129
Em meados do século XX, a indústria cultural e a de bens de
consumo já estavam solidamente aliadas, estabelecidas em seus
ditames de divulgação e convencimento. A tradição mais e mais passou
a ser aquilo que se desejava desconstruir em nome de um anseio pela
novidade a se renovar continuamente e, por isso, a negar a si mesma
em nome da promessa de um prazer, ao mesmo tempo, momentâneo e
distante. A indústria estava pronta para construir objetos, cujas posses
viriam aplacar por pouco tempo a ânsia de consumir, pois novos
produtos eram lançados no mercado e, com eles, desejos eram
espargidos na população através dos meios de comunicação de massa.
Essa era a lógica de um mercado que, a princípio, no século XIX,
fundamentou-se em instituições sólidas, como a da família sob a rígida
cartilha vitoriana. Na centúria seguinte, esse edifício ideológico passou a
ser desconstruído. Cada vez mais a sociedade estava fundamentada no
desejo, num consumo irrestrito que paulatinamente ultrapassava
qualquer instituição ou norma que pudesse ameaçar a liberdade vigiada
do contínuo querer.
A terceira transformação, em certos aspectos a maisperturbadora, é a desintegração de velhos padrões derelacionamento social humano, e com ela, aliás, a quebrados elos entre as gerações, quer dizer, entre passado epresente.118
118 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914 – 1991. São Paulo:Companhia das Letras, 1995, p.24
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Essa obsessão pelo desejo tem se realizado através da busca de
satisfação imediata através de um objeto, seja ele o outro ou o bem
produzido. O século XX deve ser conhecido como o século em que o
homem esteve mais perto de seus instintos mais básicos, como o de
eros e tânatos, revestidos cada vez mais completamente pela
objetualização do outro, pela obsessão de realização de um desejo cada
vez mais permitido e, por isso mesmo, impossível. O resultado dessa
interminável e sempre adiada orgia tem sido o triunfo da violência e a
destruição da credibilidade nas instituições. O avançar civilizacional se
concentrou no paradoxo de que, apesar de toda a aparência de
progresso, o homem esteve – em grande parte estimulado pelo infindo
jogo de desejos – cada vez mais refém de si mesmo, ou melhor, de sua
parte menos civilizada e mais instintual.
Vão ficando para trás a ternura e o carinho
Pouco a pouco vão ficando postergadas as manifestaçõesde ternura e carinho.A vida vertiginosa das grandes cidades, onde semultiplicam os meios para atrair a economia alheia a trocode falsas diversões para os quais se confeccionam, sob umvéu ridículo a indumentária a mais grotesca e de custovultoso, está colocando atrás, em segundo plano, o amormaternal.Com exceções raríssimas, a mulher que é mãe, nãoesquece uma só das compras que vem fazer na cidadepara satisfação de sua vaidade, mas quase sempre seesquece da farinha alimentícia de que necessita seu filhoque a espera em casa.A carteirinha de cigarros cabe em sua bolsa, que fica semlugar para o pacotinho de balas.
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131
E algumas bolsas já carregam até um pequenorevólver...119
Nesse curioso texto, o consumo já tomava certamente o lugar do
papel social mais importante para a mulher: ser mãe. Em tom de crítica,
o autor detectou o protótipo da obsessão pelo consumo, pela posse do
objeto de prazer que se colocava acima de qualquer relação familiar. Tal
fator de desagregação não poderia sugerir senão da violência da arma
na feminina bolsa. Resta saber se aquelas que as usavam o faziam para
se defender ou para assassinar metaforicamente o seu secular e doce
perfil materno.
De forma avassaladora, novas posturas, idéias e posicionamentos
foram impostos ao indivíduo pelos novos tempos. No jogo móvel das
relações interpessoais, posicionamentos tradicionais deixaram-se
arrastar pela lógica de novas necessidades de consumo e de outras
posturas diante desse mesmo consumo. Numa velocidade cada vez mais
considerável, o que era sólido se desagregou em nome de um discurso
que ditava regras de modernização.
No casamento, havia declinado a distância social entre ohomem e a mulher, que era uma das características davelha família patriarcal. A diferenciação das funçõespersistia: o homem continuava o “cabeça do casal”, o
119 JORNAL DAS MOÇAS, N0[?], 29/02/1940, p. 64
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“chefe da casa”, o encarregado de prover o sustento dafamília; a mulher, a mãe, a dona de casa, a esposa.120
O quadro das sociabilidades brasileiras nos anos 40 ainda não
havia evidenciado a implosão dos antigos parâmetros, como o das
funções pré-estabelecidas entre o casal. No entanto, a mobilidade do
poder centrado no declínio da distância social entre o homem e a mulher
fez com que fossem insinuadas novas possibilidades de arranjos que
enfraqueceriam profundamente a tradição das relações familiares. Foi
sobre essa perigosa movimentação que foram estruturadas as relações
de poder na maioria das peças de Nelson Rodrigues: notadamente
voltadas para o desvendamento de tensões existentes nas famílias da
classe média carioca.
Por outro lado, o impacto das duas grandes guerras nas
mentalidades ocidentais ocasionou o recrudescimento do individualismo
por conta das contínuas falências das organizações de homogeneização,
tais quais os laços familiares, institucionais e religiosos impossíveis ou
muito precários diante da hecatombe dos conflitos. Após 45, essa forma
de rompimento das relações tradicionais tornou-se paulatinamente
visível, agora sob os auspícios do “american way of life” que – ainda que
inicialmente calcado e fundamentado num modelo familiar ideal – tendia
à reificação de um indivíduo paulatinamente dependente da promessa
120 NOVAIS, Fernando (Coord.ger.). História da vida privada do Brasil: contrastes daintimidade contemporânea. (vol.4) São Paulo: Companhia das Letras,1998.p.8
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do prazer individual: um proto-consumidor cada vez mais isolado de seu
contexto social.
A primeira metade do século XX foi marcada por dois fatores que
alteraram profundamente o quotidiano dos indivíduos. O primeiro foi a
introdução, no país, da cultura de massa através do rádio. Uma série de
posturas novas tiveram que ocorrer no seio da sociedade, cada vez mais
identificada com os usos e costumes urbanos. O rádio121 na capital da
República, desde cedo, tornou-se um laboratório de experimentações
voltadas paulatinamente para formatos cada vez mais populares, como
os programas de auditório e as novelas radiofônicas.
Essa situação começou a se afigurar definitivamente nos anos 30,
com a introdução dos aparelhos de válvula e a mudança da legislação
brasileira em relação à permissão da propaganda, fixando-a num limite
inicial de 10% para, em 1952, chegar aos 20%. Com isso, o número de
emissoras ao longo dos anos 40 e 50 aumentou consideravelmente. O
inelutável aparecimento de uma cultura radiofônica popular favorecia os
espetáculos, os programas de auditório e um tipo de música que se
121 Mesmo a Rádio Nacional, encampada pelo governo na década de 40, possuía umaprogramação eminentemente popular, como podemos ver no trecho a seguir deRenato Ortiz: “É sintomático que a Rádio Nacional, encampada pelo governo em 1940,pouco tivesse de porta-voz do Estado, pois funcionava nos moldes de uma empresaprivada.(...) O grosso da programação era voltado para o entretenimento, e a principalfonte de renda não eram as doações estatais, mas o faturamento garantido pelapublicidade.” Apud SACHS, Ignacy (org.) at all. Brasil: um século de transformações.São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.197
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identificava cada vez mais com os anseios da massa urbana: a música
popular notadamente sob os moldes do samba.
Outro fator importante no balanço cultural dos anos 30 e 40 foi o
aparecimento da indústria cultural americana no cenário nacional, com
as produções vindas de Hollywood. Essa política iniciou-se nos anos 30 e
foi detectada por artistas da época que, pautados no surgimento de uma
cultura urbana nacional enraizada em valores autóctones, não viam essa
invasão com bons olhos.
A gíria que o nosso morro criouBem cedo a cidade aceitou e usou.
Mais tarde o malandro deixou de sambarDando pinote
E só querendo dançar o fox-trot122!
Uma cultura voltada aos ditames da indústria veiculada através
dos meios de comunicação modernos foi tomando corpo na Capital da
República. Essa cultura de massa passou a valorizar ícones oriundos de
quadros comuns ao quotidiano citadino. A Capital Federal, como
também São Paulo formaram pólos de produção cinematográfica e
teatral voltados principalmente para chanchadas, dramas e aventuras.
Foi nesse contexto que o Estado desempenhou um considerável papel
na valorização de manifestações eminentemente populares e que foram
122 Fragmento do samba Não Tem Tradução, de Noel de Medeiros Rosa. Esse samba,de 1933, é um exemplo da resistência da intelligence brasileira a elementos vindos deculturas estrangeiras. In DIDIER, Carlos & MÁXIMO, João. Noel Rosa: uma biografia.Brasília , Editora Universidade de Brasília; Linha Gráfica Editora, 1990, p.243
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alçadas a novos ícones de brasilidade123, pois o que era exaltado na
maioria das produções cinematográficas era a realização de um
imaginário social voltado muito mais o ludismo e a carnavalização, que
passou a compor o cerne da identidade brasileira, em substituição a
uma real cidadania política124, na prática, inexistente.
Um breve passeio através das encenações no início dos anos 40125
nos mostrou que a dramaturgia da época estava voltada principalmente
para o teatro de revista, textos eminentemente populares, traduções de
123 Vejamos mais um fragmento do relato de Renato Ortiz: “A ginga, a musicalidadetornam-se, assim, símbolos nacionais, podendo inclusive ser exportados com oexotismo de Carmem Miranda, as disputas dos campeonatos de futebol, a sensualidadedas escolas de samba.”Apud SACHS, 2001, p.194124 A idéia do ludismo e da carnavalização nem sempre foram os ícones de nossaidentidade. No período da Belle Époque, havia uma vertente teórica que via o Brasilcomo um resultado do cruzamento de três povos tristes. Paulo Prado, intelectualimportante na primeira fase do Modernismo brasileiro explicita: “Numa terra radiosavive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram aomundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a doisgrandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foramgeradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, comoculto, a Renascença fizera ressuscitar.” Apud MOISES, Massaud. História da literaturabrasileira. Vol III. Modernismo. São Paulo: Cultrix, 2001, p.42125 No ano de 1942, quando estréia Mulher sem Pecado, vejamos algumas pelas quefiguravam nos palcos da Capital Federal:“ E, em 1942, ano em que A Mulher Sem Pecado subiu ao palco, o repertório cariocaestava assim constituído:• Cia. Procópio Ferreira, no Teatro Serrador e depois no Teatro Carlos Gomes: OBurguês Fidalgo, de Molière, em tradução de Bandeira Duarte; O Amigo da Onça, deJosé Wanderlei e Mário Lago; As Três Helenas, de Armando Moock, em tradução deHumberto Cunha; O Burro, de Joracy Camargo; O Rei de Papelão, de Viriato Correia; O"V" da Vitória, de J. Ruy; Bilu-Bilu, de Gabor Vaszany, em tradução de Paulo Barrabás;O Amigo da Paz, de Armando Gonzaga; O Vendedor de Ilusões, de Oduvaldo Vianna; ODemônio Familiar, de José de Alencar; 1830, de Paulo Gonçalves; Pé de Cabra, deAlfredo Dias Gomes; Nota Falsa, de Pereira Leite; O Inimigo das Mulheres, de Goldoni;A Cigana me Enganou, de Paulo Magalhães; Pão Duro, de Amaral Gurgel.• Cia. Jayme Costa, no Teatro Rival: A Família Lero-Lero, de Raymundo Magalhães Jr.;O Modesto Filomeno, de Gastão Tojeiro; A Barbada, de Armando Gonzaga; DuasMáscaras, de Jorge Maia; A Pensão de D. Stella, de Gastão Barroso; Eu Quero Ver é APé, de J. Ruy; Galinha Verde, de Pinto Leão; Emboscada Nazista, de J. Ribeiro.”Cf.MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo, EditoraPerspectiva, 1992, p.9
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comediógrafos canônicos, como Molière, e textos clássicos nacionais,
como o Demônio familiar, de José de Alencar.
A intenção de Nelson Rodrigues126, ao escrever a sua primeira
peça, Mulher sem pecado, em 1941, foi a de criar uma chanchada nos
moldes de A família Lero-lero, de Magalhães Jr. No entanto, essa
tragédia causou no público um impacto bem diverso. Foi o pintor e
cenógrafo Santa Rosa quem apontou as características modernas de seu
texto em um artigo cujo título é bem sugestivo: “Nelson Rodrigues
descobriu o Teatro Moderno”.
Desta luta assombrosa da imaginação, Nelson Rodriguestira uma peça viva, cuja realidade surpreende pelaverdade. É essa ligação mágica, atroz, com, a realidade ecom o perigo que Antonin Artaud requeria do novo teatro,renegando os textos considerados definitivos e sagradospara reencontrar a noção de uma espécie de linguagemúnica a meio caminho entre o gosto e o pensamento. 127
Por trás da linguagem direta, cortante, veloz e em consonância
aos anseios de expressividade moderna, uma série de resquícios
oriundos dos subterrâneos dos usos e costumes brasileiros iriam emergir
para se chocarem com um público que acabaria por rotular Nelson
Rodrigues de maldito, esquecendo-se, muitas vezes, de que os
demônios invocados em seus textos pertenciam aos usos e costumes
brasileiros.
126 MAGALDI, 1992, p.10127 Ibid., 1992, p.11
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137
Uma dessas figuras paradigmáticas foi a do malandro: fruto da
inexistência de uma política educacional de inserção das massas
populares no mercado cada vez mais especializado da modernidade.
Não foi de outro molde que saiu o paradigmático “Boca de Ouro”, que
apareceu no cenário da dramaturgia nacional no ano de 1959. Deixemos
que o próprio Nelson Rodrigues caracterize o personagem que deu nome
a essa tragédia carioca encenada do Teatro Nacional de Comédia em
1961.
Boca de Ouro, banqueiro de bicho, em Madureira, érelativamente moço e transmite uma sensação deplenitude vital. Homem astuto, sensual e cruel. Mas comoé figura que vai, aos poucos, entrando para a mitologiasuburbana, pode ser encarnado por dois ou trêsintérpretes, como se tivesse muitas caras e muitasalmas.(...)128
A sensibilidade de Nelson Rodrigues o fez, através da
possibilidade de vários intérpretes darem vida à “Boca de Ouro”,
sublinhar o dado de formação coletiva que essa figura “sensual e cruel”
possuía no imaginário social. Temendo que o seu florescimento e poder
se tornassem nocivos ao recente processo de engrandecimento de uma
ética do trabalho, o governo de Getúlio Vargas prontamente
desconsiderou o malandro em prol de um representante bem mais
condizente: o trabalhador.
128 RODRIGUES, 1993, p.881
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138
É essa figura que pulula em seu universo ficcional, posto que em
suas tramas há uma série de personagens que, vivendo nos “escritórios”
oriundos do aparecimento de novas empresas no cenário nacional,
compunha o perfil de cidadãos que se deparavam com a encruzilhada
existente entre os seus valores tradicionais e os desejos
paulatinamente insulados pela valorização do individualismo. Na baixa
classe de trabalhadores que geralmente eram humilhados por
empregarem sua força de trabalho em situações pouco confortáveis, o
“Seu’ Noronha” da peça Os Sete Gatinhos foi o exemplo mais lapidar.
ARLETE (em desafio) – Bate!“SEU” NORONHA (ofegante) - ... Mas eu não devobater...Não tenho esse direito...Preciso me controlar...(E, súbito, deflagra-se o impulso. Esbofeteiaviolentamente a filha. Arlete cambaleia.)ARLETE (como se cuspisse) – Contínuo!“SEU” NORONHA (atônito) – Repete!ARLETE (fremente) – Contínuo!(“Seu” Noronha dá-lhe nova bofetada.)ARLETE (estraçalhando as letras) – Contínuo, sim,contínuo! Eu disse contínuo!129
O xingamento de “Arlete” foi, na verdade, o eco da hierarquização
de valores comuns ao contexto social urbano carioca dos anos 50. Na
escala social das novas empresas, dos novos gabinetes particulares ou
públicos, o contínuo era aquele que exercia a função mais subalterna.
Numa ética que impunha ao chefe de família o sustento e a passagem
do status àqueles que estavam sob a sua liderança, a posição de “Seu’
129 RODRIGUES, 1993, p.841
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139
Noronha” não lhe conferia senão a vergonha, não só para si, como
também para seus familiares.
Portanto, a ética do trabalho não estava voltada somente para a
função “honesta” do sustento do lar, mas para o papel que o indivíduo
exercia na sociedade. Essa passagem de ausência de poder social se
refletiu no âmbito doméstico retratado nessa peça. Humilhadas, as
filhas do contínuo nada mais eram que prostitutas. Na verdade, o pai e
filhas estavam unidos pelo exercício de funções subalternas. Foram
vítimas da lógica capitalista e algozes deles mesmos.
O elemento que poderia retirá-los do seu lugar desonroso era a
pureza de “Silene”, alvo da esperança da redenção familiar. Eles se
miravam em sua virgindade, como se estivessem diante de uma
imagem para sempre perdida deles próprios: a pureza, a não
conspurcação no mundo dos interesses do capital e da submissão dos
corpos. Perdida a virgindade de “Silene”, nada mais restou àquela
família do que submergir em seu lago torpe.
“SEU” NORONHA (num falso e divertido espanto) –Canalha, eu? (incisivo) Eu só, não! Todos nós somoscanalhas! (rindo pesadamente) Também o senhor,também o senhor! (novamente sério e violento) Sabe porque esta família ainda não apodreceu no meio da rua?(num soluço) Porque havia uma virgem por nós! O senhornão entende, ninguém entende. Mas, Silene era virgempor nós, anjo por nós, menina por nós!(feroz)Mas, agoraque Silene está no quarto – esperando o senhor! (riso dedesespero) nós podemos finalmente cheirar mal eapodrecer...Quer ver uma coisa? Eu lhe mostro. (para as
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140
mulheres) Quem foi que escreveu nomes feios nobanheiro? (triunfante) Podem confessar porque jácomeçamos a apodrecer. (para o médico) Preste atenção,doutor! (para as mulheres) Quem foi?130
Portanto, Os sete gatinhos realizou a tragédia da submissão do
indivíduo aos ditames da nova ordem do capital. Nelson Rodrigues
mostrou que nem mesmo as tradições mais arraigadas em nosso
imaginário podiam se sustentar quando diante da força esmagadora do
poder econômico, da necessidade de obtenção de um bem que estaria
além da pura manutenção da vida. Lembremos que as irmãs de “Silene”
não se prostituíam para obter o seu sustento – isso elas conseguiam
sem seus empregos regulares – elas vendiam o próprio corpo para
cobrir uma demanda que seria da ordem do pai, do provedor daquela
família que, humilde, não podia arcar com tais despesas.
A perversão não nasceu, portanto, da luta pela sobrevivência, mas
da manutenção de um sonho impossível para aqueles que não possuíam
dinheiro o bastante para realizá-lo. O caráter ignominioso de “Seu’
Noronha” proveio certamente de sua contínua humilhação diante
daqueles mais afortunados na Câmara dos Deputados. O sonho de
grandeza confundiu-se com o de pureza e de perfeição: uma família
faustosa e perfeita deveria ser obtida a qualquer custo, iniciada por
aquela que escapara do pântano familiar, “Silene”. Para tanto, todos os
130 RODRIGUES, Nelson, 1993, p.860
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141
sacrifícios deveriam ser feitos: mesmo sob a degradação de suas outras
filhas, era necessário que houvesse uma que seria, ao mesmo tempo, o
anjo salvador e vingador de toda a família.
Na obra de Nelson Rodrigues, a malha intrincada de suas tramas
se fez transparente através de alguns artifícios que, vistos sob o âmbito
da superficialidade, poderiam nos levar a pensar que ele tratava de
jogos, cujo fim seria a vulgaridade, a obsessão ou a loucura sexual. No
entanto, se nos aprofundarmos um pouco mais na análise dessas
tramas, veremos que o que estava por detrás das insanidades
cometidas pelos seus personagens era a infinita busca do poder sobre o
outro.
De forma clara, vimos que essa relação de sujeição do outro se
fazia através da submissão dos corpos através do fascínio emocional e
sexual. Nelson Rodrigues usava todo o corolário resultante dos
construtos imaginários que havia em função do poder assegurado às
relações familiares: em suas peças “desagradáveis”, por exemplo, já
havia figuras que fascinavam por suas posições de poderio. Na verdade,
era um poder que se realizava através da transgressão sexual,
notadamente através do incesto. Mas, o incesto, ou a sua ameaça de
realização nada mais eram do que a realização de uma sedução que, na
maioria das vezes, reduzia o outro à loucura, à morte ou uma vida
inteira de escravidão. Por detrás do horror da transgressão sexual, havia
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142
um horror maior: que era o de os personagens serem títeres nas mãos
daquele que tradicionalmente existiam para proteger, cuidar, ensinar. O
efeito desagradável que permeava grande parte da obra de Nelson
Rodrigues passava a ser a relativização de um tradicional poderio
exercido por figuras até então insuspeitas, mas capazes de cometer as
piores atrocidades em nome de um poder que lhes foi assegurado por
uma tradição secular.
Lembremos, por exemplo, da peça Anjo negro, cujo centro da
trama permaneceu num homem que conseguiu ascender socialmente
graças à profissão liberal que possuía. Com isso, ele conseguiu obter o
objeto mais precioso dentro das relações patriarcais que
tradicionalmente lhe conferiam um lugar de desprezo, um lugar menor
na sociedade: uma mulher branca.
PRETO – Não tem como ele!PRETO – Viu? Doutor de mão cheia!PRETO – Mas tome um conselho; não fale em preto,
queele se dana!131
No imaginário social, a profissão de médico ocupava lugar de
destaque dentre todas as ocupações que possuíam um valor positivo,
meritório. Esse exemplo – que ainda se reflete na procura pelos
vestibulares mais concorridos na atualidade – era patente nos anos 40 e
131 RODRIGUES, Nelson, 1993, p.575
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143
50, como podemos ver na pesquisa feita por João Manuel Cardoso de
Mello de Fernando A. Novais.
Convidados a classificar essas trinta profissões, no finaldos anos 50, moradores da cidade de São Paulo chegaramà seguinte ordenação: 1. médico; 2. advogado; 3. diretorsuperintendente; 4. padre; 5. fazendeiro; 6. jornalista; 7.gerente comercial; 8. gerente de fábrica; 9. professorprimário; 10. contador; 11. dono de pequenoestabelecimento comercial; 12. funcionário público depadrão médio; 13. despachante; 14. empreiteiros; 15.viajante comercial; 16. sitiante; 17. escriturário; 18.guarda-civil; 19. mecânico; 20. balconista; 21. motorista;22. cozinheiro (restaurante de primeira classe); 23.tratorista; 24. carpinteiro; 25. condutor de trens; 26.garçom; 27. pedreiro; 28. trabalhador agrícola; 29.estivador; 30. lixeiro.132
Portanto, a profissão de médico estava em primeiro lugar no
patamar das profissões. “Ismael” partia de um lugar de poder conferido
pela cultura. As peças “desagradáveis” de Nelson Rodrigues partiam de
contextos familiares que eram absolutamente modelares, cujos
patriarcas ocupavam posicionamentos de destaque na sociedade. Assim
foi com o fazendeiro “Jonas”, de Álbum de família, e o juiz “Misael”, de
Senhora dos afogados.
Dessa forma, grande parte da dramaturgia de Nelson Rodrigues
estava a lidar a todo tempo com modelos pré-existentes, mesmo em
situação de um “status” estabelecido, como no caso dos patriarcas das
peças “desagradáveis”, ou com a ausência patética desse mesmo poder,
como vimos em “Seu’ Noronha” de Os sete gatinhos. Dessa forma, os
modelos que eram estabelecidos na cultura encontravam, em sua
132 NOVAIS, Fernando, 1998, p.587
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144
literatura, um ponto de esgotamento ou, no mínimo, de questionamento
de seus inabaláveis lugares na constituição da sociedade carioca de
meados do século XX.
O horizonte de expectativas dependeria, é claro, daposição inicial do pai, o “chefe da casa”, e de suacapacidade maior ou menor de colher as oportunidades devida que a industrialização e a urbanização rápidascriariam entre 1950 e o início dos anos 60.133
Aliás, a dramaturgia de Nelson Rodrigues trabalhava não só com
modelos masculinos. Os femininos foram, talvez, os mais bem
construídos e, posteriormente, melhor pulverizados. Em suas peças
“desagradáveis” as mulheres exerciam uma força destruidora de
paradigmas igual ou maior que os homens. Como vimos, “D.
Senhorinha” foi a responsável pela completa falência física e moral dos
seus rebentos homens. Em Senhora dos afogados, a dileta filha
“Moema” partiu para o primeiro plano em seu movimento obsessivo de
eliminar toda e qualquer mulher – incluindo a própria mãe e as irmãs –
que estivessem entre ela e o seu pai. Nessa peça, Nelson Rodrigues nos
apresentou uma importante pulverização dos lugares de poder na
família, visto que todos os personagens se perderam por conta de suas
obsessões amorosas. Ninguém foi poupado: “Moema” amarga uma
terrível solidão no fim da peça.
Dorotéia era uma peça eminentemente feminina, na qual as
personagens trafegavam em torno do poder que tradicionalmente
133 NOVAIS, 1998, p.589
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145
subjugava o feminino ao masculino: o desejo. Por conta de uma
hedionda herança, as mulheres da família não podiam senti-lo. A náusea
tomava conta de suas personagens desde a primeira noite da lua de
mel.
O universo dos textos de Nelson Rodrigues trafegava livremente
dentre as forças moventes do imaginário social – estava sempre a lidar
com os fantasmas que ora pertenciam à modernidade, ora se debatiam
com construtos oriundos da tradição. Foi no jogo entre tradição e a
modernidade que seus personagens arriscaram-se em suas existências
efêmeras, mas voltadas fundamentalmente para íntima ligação com os
seus desejos. Numa época na qual o homem estava cada vez mais
liberto do peso cerceador das instituições, Nelson Rodrigues criou
personagens que incorporaram, moveram-se, amaram e morreram sob
a veloz motriz de suas paixões avassaladoras, obsessivas.
Sobre o desagradável.
Tudo começou quando? A partir de Álbum de família, continuando em Anjo negro,Senhora dos afogados, até meu texto mais recente, Toda nudez será castigada. Diziam
o diabo de mim. Lembro-me de uma senhora que afirmou o seguinte: - eu dormia,vejam vocês, eu fazia a sesta num caixão de defunto.E se o ouvinte fazia um esgar de
dúvida, logo a santa senhora jurava: - “Pela vida dos meus filhos!”.Uma outra descobriu que eu sou necrófilo.
Nelson Rodrigues
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146
Após o sucesso da montagem da peça Vestido de noiva134,
conhecida como o texto responsável pela entrada do Teatro brasileiro na
linguagem artística do Modernismo, Nelson Rodrigues resolveu
enveredar por uma seara das mais polêmicas. Iniciou a série de peças
que ele mesmo denominou pertencerem à categoria135 do Teatro
Desagradável.
No ano de 1949, quando apareceria a “farsa irresponsável” Dorotéia,
o autor foi solicitado a escrever sobre a sua dramaturgia na revista
Dyonysos, do Serviço Nacional de Teatro. Suas palavras no artigo
“Teatro desagradável” mostraram-se absolutamente conscientes do
resultado que seus textos suscitavam nos espectadores: a presença
inexorável de uma dramaturgia que estava destinada a incomodar, a
causar polêmicas e arrebatar opiniões acaloradamente a favor ou contra
as suas peças. Enfim, textos que carregavam a marca indelével do
desagradável.
134 A peça Vestido de noiva é conhecida como a obra que inaugurou a linguagemmoderna no Teatro brasileiro, ainda que nos anos quarenta do século XX, quando asoutras modalidades artísticas já passavam por fases posteriores do Modernismo,iniciado, no Brasil, tradicionalmente a partir da Semana de Arte Moderna ocorrida emSão Paulo no ano de 1922. Nelson chegou mesmo a ser aplaudido por autoresmodernistas consagrados, como podemos ver no fragmento assinado por ManuelBandeira: “Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu seifazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturasde minha imaginação. Vestido de noiva em um outro meio consagraria um autor. Queserá aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público.” In RODRIGUES, Nelson. Teatrocompleto: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993, p.182135 Entendemos que Nelson Rodrigues, ao tentar defender suas peças das acusaçõesque lhe foram feitas, conseguiu sintetizar um tipo de dramaturgia cujos traçosprimordiais lhe acompanharam através de grande parte de sua obra. O “teatrodesagradável” do autor adquiriu – no nosso entendimento – a dimensão de categoria.
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147
Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peçasseguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nestaobservação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade.Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e suaaceitação. Pois a partir de Álbum de família – drama quese seguiu a Vestido de noiva – enveredei por um caminhoque pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito.Que caminho será este? Respondo: de um teatro que sepoderia chamar assim – “desagradável”. Numa palavra,estou fazendo um “teatro desagradável”, “peçasdesagradáveis”. No gênero destas, inclui (sic, devendo-seler-se incluo ou incluí), desde logo, Álbum de família, Anjonegro e a recente Senhora dos afogados. E por que “peçasdesagradáveis”? Segundo já disse, porque são obraspestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifoe a malária na platéia.136
Nelson Rodrigues, em parte por conhecer os meandros da atração
que suas obras ocasionavam no público comum e, claro, por ser um
profissional que desde cedo trabalhou em jornais nos quais a notícia era
escolhida por seu caráter inusitado, extraordinário, contava com o valor
promocional do escândalo, da polêmica, embora, não poucas vezes se
ressentisse com a violência que era atacado, ora pelo público comum,
ora pelos seus desafetos ou críticos mais acirrados na intelectualidade.
No entanto, malgrado o valor promocional, havia a vontade de
instaurar uma dramaturgia que se aproximasse realmente dos
espectadores para, através dos dados do desagradável, provocar-lhes o
que o autor definiu como um “fluxo de consciência”, conforme
esclareceria muito mais tarde, no início dos anos 70, em uma das
136 RODRIGUES, 1993, p.37
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148
crônicas que fez para o jornal O Globo, intitulada “O Autor como um
Ladrão de Cavalos”.
Saí do Feydeau com todo um novo projeto dramático (digo“novo” para mim). O que teria eu que fazer, até o fim davida, era o “teatro desagradável”. Brecht inventou a“distância crítica” entre o espectador e a peça. Era umamaneira de isolar a emoção. Não me parece que tenhasido bem-sucedido em tal experiência. O que se verifica,inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões aopatético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia,queria anular qualquer distância. A platéia sofreria tantoquanto o personagem e como se fosse tambémpersonagem. A partir do momento em que a platéia deixade existir como platéia - está realizado o mistérioteatral.137
Nelson Rodrigues não destinou essas peças desagradáveis ao
simples entretenimento, a serem esquecidas pelo público em prol das
agruras quotidianas durante o seu breve caminho para casa. Ao
contrário, seus textos vêm a despertar reações de fascínio e, ao mesmo
tempo, adversas num público incomodado com seu microcosmo eivado
de transgressões, inversões de valores tradicionais – o amor a se tornar
obsessão e incesto, só para dar um exemplo – no cerne da célula
fundamental sobre a qual ainda pensamos as sociedades: os núcleos
familiares.
O “teatro desagradável” ofende e humilha e com osofrimento está criada a relação mágica. Não há distância.O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própriaidentidade. Está ali com o homem. E, depois, quandoacaba tudo, e só então é que se faz a “distância crítica”. A
137 RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhiadas Letras, 1995, p.286
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149
grande vida da boa peça só se desfaz quando baixa opano. É o momento de fazer nossa meditação sobre oamor e sobre a morte.138
A um público muitas vezes hipnotizado e horrorizado, ele
apresentou obras que certamente o caracterizaram como um escritor
maldito. Esses textos, ao longo de sua carreira, lhe renderam um
número considerável de proibições, apesar de ser tido como um homem
“reacionário”, notório defensor, por exemplo, da ditadura militar que
governou o país a partir do golpe de 1º de abril de 1964.
Pasmem para as ironias da vida literária e dramática.Durante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno doteatro brasileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjonegro, Senhora dos afogados foram interditadas. E nãotive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de queÁlvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou,por outras palavras, o seguinte: – eu saíra da literatura eagora era um “caso de polícia”. No mais, nem estudantes,nem escritores, quando passavam por mim, concediam agraça de um “oba”. O dr. Alceu, em declarações a OGlobo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referiaa mim dizia, enojado: – “As peças obscenas de NelsonRodrigues.”O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro,nem Senhora dos afogados tinham um único palavrão. Euviria usá-lo mais tarde. E, no entanto, montou-se a meurespeito, todo um folclore medonho.139
Não foram poucas vezes que os críticos o acusaram de estar
produzindo obras de duvidosa qualidade literária, eivadas de tal teor
desagradável que alguns defenderam mesmo a interdição de seus
textos. A crítica vociferou, exemplarmente nos anos 40, quando valores
138 RODRIGUES, 1995, p.286139 RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. São Paulo: Companhia dasLetras, 1995, p.29
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150
tradicionais tidos como positivos à moral e à ética da classe média eram
esperados nas obras de arte, principalmente naquelas que estavam em
contato mais íntimo com o público, como no caso das peças teatrais e
dos filmes caros à idéia do “entretenimento saudável”.
O que mais afligia a opinião pública não eram somente as
transgressões praticadas pelos personagens – desde o seu início, o
Teatro tem sido prodigioso em incestos, traições e perfídias –, mas o
fato de tais transgressores serem, tais quais imagens perversas,
espelhos obscenos dos próprios espectadores. Por isso, o tom da crítica
a seguir retrata muito bem o efeito do desagradável ao entrar em
contato com indivíduos cuja ligação com o mundo das artes estava
marcada por conceitos tidos como positivos à moral burguesa que,
nesse momento, estava a se construir face à dinamização que sofreu a
família brasileira no decorrer dos anos 40 e 50. O tom pessoal com que
Tristão de Athayde abomina Álbum de família denuncia uma
individualidade ferida, afrontada pelo verdadeiro jogo de espelhos
presente na dramaturgia de Nelson Rodrigues.
Quanto à interdição, me parece, no caso, perfeitamentelegítima. O guarda civil tem, não só o direito, mas o dever,de impedir que um louco se dispa em plena Avenida. Osloucos do Álbum de família, que se despem moralmenteno palco, também podem legitimamente ser convidados afazê-lo de modo mais discreto. A exibição de umapatacoada obscena não é menos nociva, ao grandepúblico, que o funcionamento de uma roleta. E todos
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151
aplaudimos o fechamento dos cassinos de jogo...(Athayde[1946] apud Programa de Álbum de família, 1967)140
No caso do crítico Tristão de Athayde, sua ligação com os
segmentos católicos realça um comportamento que acompanhou as
reações às obras de Nelson Rodrigues: não poucas vezes, os seus textos
suscitam um chamado à moral e aos bons costumes que certamente
coincidem com o ideário imposto pela Igreja Católica e que impregnou-
se no que era tido como certo ou errado ao considerar-se uma obra de
arte, especialmente as dramáticas e literárias.
Ora, é sabido que inúmeros estudiosos afirmaram, ao logoda história, que a Igreja Católica sempre considerou aleitura uma prática perigosa, e que um dosdesdobramentos deste pressuposto foi sua constanteadvertência aos católicos quanto às poucas chances desalvação de suas almas, caso não se acautelassem frenteàs armadilhas do texto escrito. E, como guardiã do dogmada fé, ela delegou aos seus representantes oficiais a tarefade arbitrar sobre as boas e más leituras.141
Os textos de Nelson Rodrigues nos colocam, através do absurdo
dos comportamentos dos personagens, diante da fragilidade de idéias e
costumes fixos em nosso imaginário. Sua ótica se transforma num
espelho perverso cuja função é nos apontar o constrangimento de
poderes e relações tidas como verdadeiras e legítimas quando dentro
dos parâmetros de medida e contenção.
140 FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de NelsonRodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p.48141 PAIVA, Aparecida. A voz do veto: a censura católica à leitura de romances. BeloHorizonte: Autêntica, 1997, p.57
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152
Apesar dos índices claros do desagradável, diríamos até mesmo
devido à profundidade eles penetram em nossa cultura, a permanência
do interesse na obra de Nelson Rodrigues é um fato. Mesmo quando sob
as sombras malditosas do horror ou da incompreensão, em parte pela
irresistível atração que o abominável tradicionalmente vem a causar em
nossos tempos, o autor de Dorotéia e Senhora dos afogados vem a
ocupar, nos dias de hoje, um lugar no cânone dos escritores brasileiros,
posto alcançado, malgrado seus detratores, defensores do bon gôut
literário ou dos “diálogos edificantes” e relegados hoje ao anedotário ou
às curiosidades sobre a sua obra.
A representação do “tifo” e da “malária” de tensões-limite em
famílias de classe média, como expusemos no capítulo anterior, é o
ponto modal de sua escritura não somente no âmbito das peças que
analisaremos mais detidamente, mas no que concerne ao caráter geral
de sua obra. Tal fato revela uma preocupação consciente em relatar os
desafios, constrangimentos e transgressões pelos quais essa classe
passa no decorrer dos anos quarenta durante o perene confronto entre a
modernidade no século XX e os usos e costumes oriundos do ideário
patriarcal em longa duração como modelo de família no Brasil.
O contexto dos valores éticos e morais dos anos quarenta, berço
de costumes e idéias como o valor positivo da virgindade enquanto
símbolo de pureza ou a fidelidade feminina no casamento como ponto
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153
fundamental da constituição das relações familiares, denuncia que a
aversão e o horror causados pelo impacto de sua dramaturgia foram
provocados pelo inevitável choque advindo entre o que o público
comum142 esperava de uma peça teatral143 e o que, na verdade, foi
apresentado no palco: textos com estruturas clássicas, como as das
peças em três atos, mas com uma profundidade dramática, com temas
polêmicos, no mínimo, assustadores.
No entanto, resta ainda a pergunta: - Por que, ainda hoje, os
textos de Nelson conseguem ter esse impacto que provoca, ao mesmo
tempo, repúdio e interesse? Se esse estranho efeito fosse provocado
somente pelos atos desmedidos nos quais os personagens dessas peças
estão imersos, eles já teriam, atualmente, perdido todo o seu interesse
para nós, que vivemos no tempo da banalização das atrocidades e
abominações morais e sexuais.
O enigma do desagradável em seus escritos permanece, apesar
das profundas transformações pelas quais a nossa cultura vem a passar
desde a quarta década do século XX, a nos fazer recuar e, ao mesmo
142 Nós estipulamos essa noção de “público comum” para que pudéssemos distingui-lada parte, ainda que mínima, mas influente, de intelectuais que, ao contrário dasopiniões institucionais, na maioria das vezes aplaudiram as peças de Nelson Rodrigues.Não esqueçamos que Nelson contava, no mínimo, com o sucesso intelectual de suaspeças, como podemos ver nesse depoimento sobre Vestido noiva: “o processo deações simultâneas, em tempos diferentes. Uma mulher assistia ao seu próprio velório edizia do próprio cadáver: “Gente morta como fica” morrera, assassinada, em 1905, econtracenava com a noiva de 1943. Eu acreditava muito no êxito intelectual da peça,mas acreditava ainda mais no fracasso de bilheteria.” In RODRIGUES, 1993, p.17143 A imobilidade na qual vivia o Teatro anterior à época de Nelson Rodrigues é patentenos textos dos autores que abordam a sua História. Cf. LINS, Ronaldo Lima. O teatrode Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
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154
tempo, a nos hipnotizar: atraídos que somos pelas referências às idéias
e costumes profundamente arraigados na memória coletiva e, ao
mesmo tempo, traídos pelos contrastes de personagens que são
verdadeiros escravos de suas paixões ilimitadas. Os textos de Nelson
Rodrigues conseguem alcançar planos profundos do nosso imaginário144
cultural. A leitura dessas peças faz-nos estar diante de espectros
certamente doentios, mas incontestavelmente nossos. Impossível
negar: portamo-los em nosso passado cultural e histórico. Encerrados
em nossa psique e sob nossa pele.
As interdições através das quais as pode-se rastrear o
desenvolvimento das linguagens impositivas e censórias não se
restringe aos comportamentos e usos aceitos ou não pelas sociedades.
Por trás dessas linguagens, que estão sempre a estipular o que é
proibido ou o que pode ser permitido, há a construção das identidades,
dos perfis eleitos como paradigmáticos e que internalizamos mesmo
sem nos darmos conta desse processo. Textos voltados para
interferências no corpo dos indivíduos são aspectos de um modus
faciendi que não se limita aos aspectos proibitivos. Sob esse aspecto, a
144 Entendemos essa denominação segundo Eveline Patlagean, que estipula: “Odomínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitamdo limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivosque estas autorizam. Isto é, cada cultura, portanto cada sociedade, e até mesmo cadanível de uma sociedade complexa tem o seu imaginário”. In LE GOFF, Jacques. Ahistória nova. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.291
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leitura que Michel Foucault fez de discursos sobre a sexualidade é
bastante reveladora.
145Il faut bien s’entendre; je ne prétends pás que lesexe n’a pás été prohibé ou barré ou masqué ouméconnu depuis l’âge classique; je n’affirme mêmepas qu’il l’a été de ce moment moins qu’aupavarant.Je ne dis pás que l’interdit du sexe est um leurre;mais que c’est um leurre d’en faire l’élémentfondamental et constituant à partir duquel on pourraitécrire l’histoire de ce que a été dit à propôs du sexe àpartir de l’époque moderne. Tous ces élémentsnégatifs – défenses, refus, censures, dénégations –que l’hypothèse répressive regroupe em un grandmécanisme central destine à dire non, ne sont sansdoute que des pièces qui ont un role local et tactiquede pouvoir, dans une volonté de savoir qui sont loinde se réduire à eux146.
Longe desses discursos permanecerem no índex de textos
proibidos, cujo acesso seria, cada vez mais restrito e escasso, o que
Foucault verificou foi uma verdadeira proliferação de práticas
discursivas sobre o sexo, principalmente durante o recrudescimento do
ideário relacionado ao modus vivendi burguês, a partir do século XVIII,
no Ocidente.
145 Tradução nossa: É preciso que se entenda: eu não pretendo que o sexo não tenhasido proibido, barrado ou mascarado, ou desconhecido desde a idade clássica; eu nemmesmo afirmo que a partir desse momento ele tenha sido menos do que antes. Eu nãodigo que o interdito do sexo é um engodo, mas é um engodo fazê-lo elementofundamental e constituinte a partir do qual pode-se escrever a história do que foi ditoa propósito do sexo a partir da época moderna. Todos esses elementos negativos –defesas, recusas, censuras, denegações – que a hipótese repressiva reagrupa em umgrande mecanismo central destinado a negar, são, sem dúvida, apenas peças quepossuem uma função local e tática numa ordenação discursiva numa tática de poder,numa vontade de saber que está longe de se reduzir a isso.146 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir. Paris: ÉditionsGallimard, 1976.p.20
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147En revanche, au niveau des discours et leurs domaines, lephénomène est presque inverse. Sur le sexe, les discourses – desdiscourses spécifiques, différents à la fois par leur forme et leur objet– n’ont pás cesse de proliférer: une fermentation discursive qui s’estaccélérée depuis le XVIIIe siècle.148
A obra de Nelson Rodrigues também enquadra no conjunto de
textos que versam sobre as práticas discursivas a respeito do sexo,
posto que fundamenta a contradição entre o desejo e o lugar social que
os personagens ocupam. Essa tensão nos oferece uma série de recursos
através dos quais os personagens reconstroem as suas identidades, ao
mesmo tempo que as destroem, num fluxo interrupto, qual se
estivessem diante de dois espelhos: uma imagem pulveriza a outra a
partir do momento no qual a reproduz.
Esse é um dos elementos profundos do desagradável em seus
textos. Por esse motivo, os paradigmas sociais, em vez de
permanecerem estáticos, assumem uma mobilidade que incomoda o
leitor, faz com que ele seja obrigado a redimensionar os seus conceitos
mais profundos sobre exemplários que antes permaneciam intocados,
imóveis e silenciados pela força das mentalidades.
147 Tradução nossa: Em contrapartida, no nível dos discursos e seus domínios, ofenômeno é quase inverso. Sobre o sexo, os discursos – os discursos específicos,diferentes por sua vez por sua forma e seu objeto – não cessa de se proliferar: umafermentação discursiva que é acelerada a partir do século XVIII.148 FOUCAULT, 1976, p.26
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O autor de a Histoire de la sexualité confirma que o que há por
trás da máscara de discursos que versam sobre interdições sexuais é a
busca de dominar, através de uma obsessiva “vontade de saber”, atos
que, por sua própria natureza imprevisível, tendem a escapar dos
arcabouços cerceadores e norteadores do comportamento. Para o
homem, saber significa controlar, posto que é através do conhecimento
que ele domina o objeto/sujeito ou qualquer, pelo menos
potencialmente, essencialidade que estiver em seu interior. Foucault fez
a clara ligação entre o desejo de conhecer, por meio de variadas
práticas discursivas, e o norteamento que é mais do que simplesmente
cercear possíveis comportamentos desviantes, mas compor os perfis
identitários através dos quais é criada a práxis dos saberes sobre o que
é denominado como “verdade”.
O que é aceito como tal constitui a essência da formação de uma
classe, como também dos indivíduos que a compõem. É nesse ponto
que as análises de Foucault se nos mostram importantes, posto que
realizam a ligação entre as narrativas sobre práticas sexuais, morais ou
éticas cerceadas ou passíveis de interdição – nesse ponto, inserimos a
dramaturgia de Nelson Rodrigues como pertencente ao escopo de textos
que buscam confrontar elementos do mosaico que compõe o modelo
subjetivo/familiar de classe média durante os anos 40 do século XX – e
os possíveis quadros do imaginário da época.
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158
O estudo das tensões possíveis entre esses elementos
provenientes do ideário moderno, eivado de concepções relativas tanto
às realidades do seu tempo, quanto às presentes na linha de longa
duração, e textos polêmicos – notadamente a série de peças
desagradáveis de Nelson Rodrigues – nos apresenta uma série de
índices não somente relativos ao que seria permitido ou cerceado em
nosso contexto social, mas a parâmetros caros às concepções e
conceitos sobre a constituição de traços das identidades brasileiras,
corporificadas pelos personagens de Nelson Rodrigues, impregnados
pelo conflito entre o discurso da modernidade e as tradicionais
mentalidades patriarcais que lhes norteiam e fustigam durante a
atividade cênica.
Fundamentada no predomínio da lei paterna, que abomina o
incesto e se sustenta a partir do controle da sexualidade, a lei patriarcal
estipula que seus ditames de cerceamento e manutenção de poder
devem ser mantidos a todo custo.
Há uma ligação entre as práticas sexuais transgressoras e seu elo
com as instâncias do poder no interior da família representada nas
peças de Nelson Rodrigues. As relações de poder, quando transgredidas,
resultam na morte ou no caos psicológico representado, por exemplo,
pela loucura em Álbum de família ou pelo degredo sexual em Dorotéia.
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As relações de poder no interior das tramas despertam a
desagradável sensação de que as ordens estabelecidas não mais estão
sob os pactos calmos das relações onde inexistem conflitos. É
justamente no momento em que há a possibilidade de distanciamento
entre o leitor e a peça que a cultura é questionada em seus
pressupostos mais básicos.
A ratificação ou o repúdio de uma obra ocorrem pelas relações
conflituosas entre as mentalidades de uma época e a forma singular que
os autores trabalham esses mesmos dados da cultura. Muitas vezes,
uma obra coincide com o ideário de sua época. Outras, malgrado o
ostracismo que a contemporaneidade lhas rende, a posteridade aplaude
valores estéticos que seriam rejeitados em tempos pretéritos.
Cada época tem o seu reinado de sombras e frestas do qual os
textos que são potencialmente conflituosos tentam ser exilados em
nome dos pressupostos ideológicos ou até mesmo dos interesses mais
proeminentes das classes dominantes com os quais há as tensões. Entre
a predileção e a aversão, textos que hoje em dia são reconhecidamente
canônicos passaram pelo crivo da censura: órgão importante, posto que
representa o perfil das idéias e conceitos tradicionais em cada época.
Textos que hoje nos parecem insuspeitos carregam o peso de terem
sido motivo de desconfiança e suspeição.
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Em 1584, a censura inquisitorial teve como vítima nadamais nada menos do que Os Lusíadas, de Camões, obraque havia escapado em 1572 - nesta data, o revedor daInquisição apenas mandou que no livro se advertisse aos“Lectores que o Author pera encarecer dificuldade denauegaçam & entrada dos Portugueses na India usa dehua fição dos Deoses dos Gentios”, com o fim de “ornar oestillo Poetico”, não devendo, pois, os leitores confundirdeuses falsos com verdadeiro. Algumas passagens desseclássico da literatura foram alteradas.”149
As peças desagradáveis de Nelson Rodrigues, escritas nos anos 40
do século XX, colidiram com o ideário instituído pela ditadura Vargas. O
Estado Novo, versão brasileira dos movimentos totalitários que
marcaram a Europa, primava por uma tentativa de controle das
atividades culturais e políticas. Os mecanismos de repressão atuaram no
sentido de proibir aquilo que mais poderia causar reações negativas às
instituições basilares da sociedade.
Assim, dos dispositivos da lei ordinária, incluídos emmatéria de direito civil ou criminal, correspondentes aossistemas liberalistas de governo, passou-se, em quasetoda parte, à legislação especial, na procura incessante denormas que facultassem ao Estado obter não sóassentimento, como também apoio das maiorias à tarefade intervir na vida social ou de dirigir as atividadesnacionais, hoje na ordem do dia. No curso dessaevolução, desde que se tornou um órgão ativo, passandoda mera fiscalização à superintendência da vida coletiva, oEstado sentiu necessidade de lançar mão dos recursos dapropaganda.150
149 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias silenciadas: história dacensura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficialdo Estado / Fapesp, 2002, p.51150 ACHILLES, Aristeu. Aspectos da ação do DIP. Rio de Janeiro. DIP, 1941, p.43
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A permanência de conceitos oriundos na construção de uma idéia
de família que paulatinamente perde o privilégio e a inviolabilidade de
sua clausura, que está irremediavelmente inserida no meio urbano e
percebe a ausência paulatina dos parâmetros coercitivos e norteadores
que direcionavam-na em tempos anteriores – no caso, a união dos
discursos religiosos oriundos da concepção de família segundo os
moldes românticos e os direcionamentos higienistas provenientes do
final do século XIX – mais tradicionais e ainda impregnados pela idéia de
um contexto familiar fundamentado em torno da figura paterna, da
indissolubilidade do casamento, do fator positivo da virgindade, da
obediência cega dos filhos aos ditames da família, faz com que a crise se
estabeleça sob a forma de uma reação a quaisquer relativizações que
poderiam atingir a sua precária estabilidade.
Do Teatro e Diversões Públicas
Art. 54
Será negada a autorização sempre que a apresentação,exibição ou transmissão:
a) contiver qualquer ofensa ao decoro público;b)contiver cenas de ferocidade ou for capaz de sugerir aprática de crimes;c)divulgar ou induzir aos maus costumes;151
As ofensas ao decoro público, como também os “maus costumes”
eram meios que o Estado usava para se proteger de discursos que, de
151 ANUÁRIO DA IMPRENSA BRASILEIRA. Departamento de Imprensa e Propaganda(D.I.P), 1942, p.12
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alguma forma, pudessem suscitar desconfianças em relação ao seu
projeto de modernização veiculada a valores de contenção e
manutenção do modelo tradicional da família brasileira, posto que era
fundamental que o indivíduo fosse encarado como uma peça importante
na grande máquina estatal: força motriz da ideologia trabalhista de
Getúlio Vargas. Para tanto, o indivíduo teria que contar com um suporte
familiar estável e multiplicador de novas peças para a engrenagem:
filhos saudáveis e cientes do valor de seu trabalho para a construção do
Brasil. No entanto, por mais que a ideologia varguista imprimisse um
perfil de homogeneidade ao ideário dos anos 40, a fresta sempre havia:
viés através do qual a subjetividade tinha que se expressar para
mostrar a complexidade do caráter humano.
152Le monde du travail et de la raison est la base de la viehumaine, mais le travail ne nous absorbe pas intièrement,et si la raison commande, jamais notre obéissance n’estsans limite. Par son activitè, l’homme édifia le monderationel, mais toujours subsiste en lui un fond deviolence.153
Por esse mesmo motivo é que a maioria das peças que Nelson
Rodrigues escreveu nos anos 40 foi censurada, quer sob o a ditadura
Vargas ou pela sua gestão posterior, que manteve os mesmos
152 Tradução nossa: O mundo do trabalho e da razão está na base da vida humana,mas o trabalho não nos absorve inteiramente, e se a razão comanda, nunca a nossaobediência é ilimitada. Por sua atividade, o homem edifica um mundo racional, ondesempre permanece um fundo de violência.153 BATAILLE, Georges. OEuvres complètes. Paris: Gallimard, 1987, p.43
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parâmetros de cerceamento, pelo menos no que concerne aos apelos à
moral e ao decoro público, do Estado Novo. Não havia espaço para
textos que apontavam a todo momento para a dissolução dos modelos
formais de família através da traição aos pactos de fidelidade, como
também para a confrontação de idéias e costumes tradicionais, tidos até
mesmo como inerentes à humanidade, como o tabu do incesto. Somado
a isso, os personagens que circulavam em cena estavam profundamente
ligados à cultura brasileira, eram ícones que a todo momento
confrontavam as idéias e tradições que ainda permanecem em nosso
ideário, como a mulher fria e honesta, em Dorotéia, o patriarca sensual,
em Álbum de família, a filha amorosa em Senhora dos afogados, a
mulher fiel em Anjo negro, etc.
A peça Álbum de família, escrita em 1945, foi interditada no ano
seguinte. Duas décadas depois, já em 1965, é que o texto foi encenado.
Anjo Negro, escrito em 1946, foi apresentado ao público, no Teatro
Fênix, após uma breve interdição datada de janeiro do mesmo ano. A
“Farsa irresponsável em três atos” Dorotéia, escrita em 1949, foi
apresentada no ano seguinte, em 7 de março de 1950. Finalmente,
Senhora dos afogados, de 1947, foi estreada somente e 1954, por
conta de uma interdição datada de janeiro de 1948.
A fase do Teatro Desagradável de Nelson Rodrigues é composta
por peças que vêm a público logo após o aplaudido Vestido de Noiva,
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164
quando o autor inicia a série de peças que Sábato Magaldi denomina
como míticas. Logo a seguir, é iniciada a fase que esse mesmo crítico
intitula de Tragédias Cariocas, onde a ambientação e tramas voltadas
para o mundo suburbano do Rio de Janeiro é a grande ênfase. No
entanto, como o próprio autor admitiu, as linhas principais
fundamentadas no Teatro Desagradável permanecem ao longo de sua
obra, seja em suas peças como em outros gêneros aos quais Nelson
Rodrigues se dedicou. Por esse mesmo motivo, Nelson Rodrigues teve
de conviver com os mecanismos da censura durante grande parte de
sua carreira, até que seus textos passassem a fazer parte do cânone da
literatura brasileira.
A lufada renovadora que Nelson Rodrigues trouxe aos palcos
estava impregnada da dupla estância entre a fascinação e o
desagradável. O que era estranho, passível de interdição realizava-se na
severidade de textos que não se rendiam às facilidades com as quais o
público comum estava acostumado a lidar: um texto moderno, com as
bordas duplas através das quais o fruidor navegava entre as margens da
aproximação e do horror.
154De là, peut-être, um moyen d’évaluer les oeuvres de lamodernité: leur valeur viendrait de leur duplicité. Il faut
154 Tradução nossa: Daí, talvez, uma forma de avaliar as obras da modernidade: seuvalor procederia de sua duplicidade. Necessário entender que elas possuem sempreduas bordas. A borda subversiva pode parecer privilegiada, visto que é a da violência;no entanto, não é a violência que impressiona o prazer, nem mesmo a destruição lheinteressa; o que ele deseja é o lugar da perda, a falha, o corte, a deflação, o fading
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entendre par là qu’elles ont toujours deux bords. Le bordsubversif peut paraître privilégié parce qu’il est celui de laviolence; mais ce n’est pas la violence qui impressionne leplaisir; la destruction de l’intéresse pas; ce qu’il veut, c’estle lieu d’une perte, c’est la faille, la coupure, la déflation,le fading qui saisit le sujet au coeur dela jouissance. Laculture revient donc comme bord: sous n’importe quelleforme.155
A obra de Nelson Rodrigues - notadamente o seu Teatro
Desagradável - se insere no que Roland Barthes caracterizou como um
texto de fruição156. A jouissance, o gozo obtido com os seus textos, é
proveniente de sua recusa a se instaurar entre os parâmetros estáveis
da cultura tradicional e a denunciar – malgrado os ícones que lhe negam
– o desejo subversivo por trás de interdições seculares que, mesmo
condenadas exemplarmente nas tragédias, se deixam mostrar no
decorrer dos enredos.
O seu texto desagrada a partir do momento no qual atrai o
espectador, hipnotizando-o com sua tessitura sedutora, repleta de
modelos com os quais esse último facilmente se identifica, com sua
linguagem direta e rica de imagens aparentemente verossimilhantes que
lhe convidam ao abismo: profundo fosso que há entre o desejo
obsessivo e a imagem idealizada. É através da identificação que o texto
seduz e, por esse mesmo motivo, causa o fator do desagradável: os
que prende o sujeito no coração (centro) do gozo. A cultura retorna, então, comomargem: não importa sob qual forma.155 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, 1977, p.15156 Preferimos essa palavra, derivada da tradução de “juissance” para “fruição” por jáestar ratificada nos estudos sobre a obra de Roland Barthes no Brasil, conforme textotraduzido por J. Guinsburg. Cf. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo:Editora Perspectiva, 2004.
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166
personagens estão sempre no limite entre um comportamento exemplar
e um desvario obsessivo, perene, que lhes arrebata aos seus destinos
trágicos.
O autor lida exemplarmente com quadros que se chocam e se
pulverizam no decorrer das tramas – tanto para o lado do positivo
quanto para o abismo das relações sociais proibidas. O que os seus
personagens mais fazem é caminhar entre blocos compactos formados
pela cultura. Aos poucos eles vão se fundindo e refundindo até o ponto
no qual os comportamentos pré-estabelecidos não mais se adéquam às
suas complexidades, sinal de que a infinita subjetividade humana jamais
há de ser subjugada a valores imutáveis corporificados nos quadros
comportamentais, mesmo que esses últimos sejam responsáveis por
uma conduta que lhes direciona ao longo de grande parte da existência.
O que ela queria dizer é que, há vinte anos, não tinha ummomento seu, um momento de vida própria. Suas oraçõescaíam num vazio implacável. Vivera um momento comSílvio, na biblioteca. E, agora, subitamente, tinha outromomento que ia passar também e que...Agarra-se a LuísCláudio:- Escuta! Estou aqui porque...Luis Cláudio bebia a chuva na sua pele. Engraçadinhacontinua, ofegante:- É um momento! Eu sei que depois, olha! Escuta!157
Em Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados,
a protagonista do romance dedica-se durante vinte anos a uma vida na
qual o amor não há em seu casamento, muito menos o desejo. Dessa
157 RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seuspecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.442
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forma, ela julga fugir de sua própria sexualidade – transgressora ao
amar, mesmo sem saber, o seu irmão Sílvio. É justamente um
momento, um acaso que a faz reencontrar a paixão na pele do jovem
Luis Cláudio. Nesse breve espaço, ela passa a viver e a dar-se conta de
sua individualidade.
Na peça Dorotéia, o caminho de sua protagonista é bem parecido
com o de “Engraçadinha”, no que tange à busca da recusa da
sexualidade em prol de um conforto que a cultura oferece, mas que é
impossível de ser atingido sem que a mesma negue a sua própria
essência. A troca da sexualidade pelo papel social da “mulher fria” é um
tema importante no universo de Nelson Rodrigues. Esse quadro imerso
decididamente em nosso inconsciente coletivo158 emerge quando nos
deparamos com a sua obra.
D. FLÁVIA – O que ias contar era tudo mentira, tudomentira....Isso aconteceu, não contigo, mas com as outrasmulheres da família...com a Dorotéia que morreu... comMaura e Carmelita... (grave e lenta) e comigo... Te conto aminha primeira noite e única... As mulheres de nossafamília têm um defeito visual que as impede de verhomem...(frenética) E aquela que não tiver esse defeitoserá para sempre maldita... e terá todas as insônias...(num novo tom) Nós nos casamos com um maridoinvisível... (violenta) Invisível ele, invisível o pijama, ospés, os chinelos... (apenas informativa) É assim desde que
158 Entendemos esse termo conforme a historiografia francesa, no sentido que PhilippeAriès o esclarece a seguir: “Mas o que é inconsciente coletivo? Sem dúvida seriamelhor dizer: não-consciente coletivo. Coletivo: comum a toda a sociedade emdeterminado momento. Não-consciente: mal percebido, ou totalmente despercebidopelos contempoâneos, porque, é óbvio, faz parte dos dados imutáveis da natureza,idéias recebidas ou idéias no ar, lugares-comuns, códigos de conveniência e de moral,conformismos ou proibições, expressões admitidas, impostas ou excluídas dossentimentos e dos fantasmas.” In LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo:Martins Fontes, 1988.p.p 174/175.
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nossa bisavó teve a sua indisposição na noite denúpcias....DOROTÉIA – Eu sei!159
Com isso, a dramaturgia de Nelson Rodrigues realmente se
distingue da de Bertold Brecht, cuja distância causada pelo
estranhamento de processos que se despem de sua verossimilhança em
prol do surgimento de um posicionamento que se deseja crítico por
parte do espectador e incorpora-se a um modus faciendi que valoriza o
olhar sobre a sociedade, enquanto a dramaturgia de Nelson Rodrigues
está voltada muito mais para o sujeito e a possibilidade da
transformação individual na sua relação com as idéias e os modelos
sociais que lhe cercam.
Chegamos assim a um dos elementos essenciais do teatroépico, àquilo que é costume chamar de efeito dedistanciação. Para ser breve, trata-se aqui de um técnicaque permite dar aos processos a serem apresentados opoder de colocar homens em conflito com outros homens,proporcionar o andamento de fatos insólitos, de fatos quenecessitam de uma explicação, que não são evidentes,que não são simplesmente naturais. O objetivo desteefeito é fornecer ao espectador a possibilidade de exerceruma crítica fecunda, colocando-se do lado de fora da cenapara que adquira um ponto de vista social.[...]160
A dramaturgia de Nelson Rodrigues nos apresenta contornos
diversos. Pelo fato de ser-lhe apresentado quadros nos quais as relações
sociais são aceitáveis, até mesmo vistas como paradigmáticas,
159 RODRIGUES, 1993, p.630.160 BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral:textos de Platão a Brecht. fundação Caloustre Gulbenkian: Lisboa,1996, p.474
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solidificadas pela cultura e, no decorrer das tramas, potencializadas até
as margens da obsessão e da loucura. O espectador não tem outra saída
senão a do repúdio: a face inversa da identificação. A aversão ao
contato com o insuportável impõe-lhe a posterior busca de limites ou
pelo menos de margens através das quais haja um redimensionamento
a partir da fruição da obra. Nesse sentido, sua dramaturgia
desagradável cumpre os pressupostos clássicos da tragédia, a partir do
momento no qual força à construção de parâmetros que levam o
espectador a uma reflexão sobre os limites de sua própria existência.
Entre o fascínio e o repúdio, a falha é percebida, a fresta através
da qual o horror, a iconoclastia à qual o espectador é inopinadamente
levado, é instaurado dentro de um local tido como sagrado ou mesmo
insuspeito: as quatro paredes do lar. É nesse espaço que seus
habitantes podem retirar as suas máscaras de perfeição, apresentar
suas faces horrendas. Não é por outro motivo que Nelson Rodrigues usa
a imagem plástica do tifo e da malária a contaminar a platéia - e atuar
vorazmente na seara de seus desejos proibidos.
Não estarei insinuando nenhuma novidade se disser queem nossa época tudo se sabe. No passado, a nossa virtudeou nossa abjeção era enterrada no mistério das quatroparedes. Por exemplo: - a família. No bom tempo a famíliatinha intimidades invioláveis. Fazia-se o diabo dentro deum lar, com a prévia certeza de um sigilo total.161
161 RODRIGUES, 1995, p 266
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O que mais se torna perverso, e por que não dizer prazeroso, é
que as imagens criadas pelo autor são realmente sedutoras: partem de
ideários positivos em nossa cultura. É a desproporção de tais
sentimentos e paixões que os redimensiona à monstruosidade.
O amor entre filha e pai, lugar insuspeito da prática da harmonia
entre as gerações, por exemplo, é algo que se torna pernicioso quando
atinge os limites insuspeitáveis da paixão. A transgressão alcança a
realização da sexualidade proibida e se mostra tragicamente através do
desejo obsessivo pelo corpo proibido.
MOEMA – Chora as tuas filhas!...(gritando, debruçadasobre o rosto do pai) Chora....Desde menina, meu sonhoera ficar sozinha contigo nesta casa; queria ser a filhaúnica, a única mulher desta casa...(ciciando) E agora soua tua filha única...MISAEL – Minha filha única.MOEMA – ...e única mulher. (baixo) Estamos sozinhos,pai, na casa vazia...Entra nos quartos, nas salas, procuranos espelhos, ninguém...MISAEL – E tua avó?MOEMA – Eu lhe dava de comer e de beber, mas hámuitos dias que me esqueço... E, pouco a pouco, ela foiperdendo as forças... Hoje, de manhã, deixou derespirar...162
No romance O casamento, texto de 1966, censurado pelo governo
militar do General Castelo Branco, o incesto entre pai e filha é
protagonizado pelo progenitor. O tema da preferência obsessiva de um
pai por uma de suas filhas é tangível ao desejo sexual, fato que
162Fragmento da peça Senhora dos afogados In RODRIGUES, 1993, p.727
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transcende o simples gostar e consubstancia a transgressão à qual o
personagem é arrastado inexoravelmente.
Glorinha ajoelhou-se na areia. Apanhou entre as mãos orosto do pai:- O senhor sabe, não sabe? Hem, papai? Sabe quem é
essapessoa?Moveu a cabeça:- Não, não.- Olha para mim.E, então, tremendo de febre, ele foi dizendo:- Eu também gosto de alguém, gosto de uma pessoa quedevia ser sagrada para mim. Uma pessoa que...- Quem?Sabino desvia o rosto. Ela fala quase boca com boca (ohálito é do mar e não dela):Diz, diz.- Quer mesmo saber?Súbito, agarra a menina. Dá-lhe um violento beijo na
boca.Glorinha foge do novo beijo:- Não, não!
Ele está perdido:- Glorinha, Glorinha!Mas ela se desprende e está de pé. Aponta para o pai:- Beijo de língua como o de minha mãe!Recua. Desatinado, ele começa a dizer:- Glorinha, não! Vem cá! Você não me entendeu!A menina passa a mão na boca:- Não foi beijo de pai. 163
Ao retornar para casa, o espectador é convidado a fazer uma
meditação sobre os pressupostos morais e comportamentais que
fundamentalmente lhe formaram a partir dos embates entre a ficção e a
realidade. O resultado é a relativização de ícones e modelos
163 RODRIGUES, Nelson. O casamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.p.207/208
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comportamentais atingidos pelo efeito do desagradável: a
movimentação de algo que permanecia sepultado e harmonizado pela
sedimentação contínua nas mentalidades.
164Texte de plaisir: celui qui contente, emplit, donne del’emphorie, celui qui vient de la culture, ne rompt avecelle, est lié à une pratique confortable de la lecture. Textede jouissance: celui qui met en état de perte, celui quidéconforte (peut-être jusqu’à um certain ennui) faitvaciller les assises historiques, culturelles, psychologiques,du lecteur, la consistance de sés gôuts, de sés valeurs etde sés souvenirs, met en crise son rapport au langage.165
A fruição do Teatro Desagradável se encontra – numa medida
considerável – no limite entre a tradição e a transgressão. Esse
tensionamento, istmo que é intercomunicante a partir do momento em
que rompe as barreiras do que é ou não permitido, é um índice de sua
linguagem moderna. Horror e identificação acabam por compor uma
obra semeada de enigmas que perenemente nos apresentam
contradições inerentes à identidade cultural do homem moderno.
Essa capacidade de nos apresentar uma literatura166 que vem a
nos convidar a lidar com a tensão constante entre crenças e costumes
arraigados em nossa cultura e em confronto com transgressões, por
164 Tradução nossa: Texto de prazer: aquele que contenta, preenche, causa euforia,aquele que é proveniente da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma práticaconfortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, quedesconforta (pode causar até um aborrecimento) faz vacilar os patamares históricos,culturais, psicológicos, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e desuas lembranças, põe em crise a sua relação com a linguagem.165 BARTHES, 1973, p.26166 Entendemos esse termo como o próprio discurso artístico e presente tanto nadramaturgia de Nelson Rodrigues, como em outros gêneros – a saber: o romance, oconto, a crônica, dentre outros aos quais o autor se dedicou.
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176
exclusiva do autor de Álbum de família, mas que – ao instituir-se
literariamente no veio da desagradabilidade – ele se inseriu entre os
grandes autores malditos da literatura ocidental. As obras de Nelson
Rodrigues, há muito, estão a ser divulgadas no exterior167 e cada vez
mais esse autor está a encontrar o seu lugar não somente no seio da
literatura nacional, mas também no quadro da literatura no Ocidente.
Dotados de uma racionalidade sui generis, a herança dos textos
tanto de Nelson Rodrigues, como os que analisaremos a seguir, estão
além da náusea ou do estranhamento inerentes às escrituras de ritmo
próprio, original168. Mais do que isso, eles fundaram tipos e tipologias
de discursos que foram responsáveis por abrir ao leitor um escopo
variado de novas possibilidades de negociação ou espelhamento das
máscaras sociais tanto no passado ou enquanto as suas obras se
sustentarem no índice das obras canônicas.
Encontramos no livro o que colocamos nele e não sabemosdizê-lo. Sem recair na mitologia da criação, do criadorúnico, não se pode esquecer que os profissionais daprodução são pessoas que têm um verdadeiro monopóliode trazer ao explícito, de trazer à ordem do dizer coisasque os outros não podem dizer, não sabem dizer, uma vezque, como se diz, eles não encontram palavras.169
167 É importante asseverar que o esforço de Jofre Rodrigues, ao traduzir as peças deNelson Rodrigues, para o inglês é de fundamental importância para a divulgação desua dramaturgia no exterior, conforme podemos ver in RODRIGUES, Nelson. Thetheater of Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Funarte, 2001.168 As considerações que teceremos a seguir foram feitas a partir da leitura do clássicoA literatura e o mal de Georges Bataille. Cf. BATAILLE, Geoges. A literatura e o mal.Porto Alegre: L&PM, 1989.169 Pierre Bourdieu apud. CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo:Estação Liberdade, 2001, p.246
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177
Esse efeito é conseguido graças à capacidade desses autores de
mergulhar e perceber, na calmaria das relações sociais embasadas em
contratos sociais aparentemente fixos, as falhas, as frestas através das
quais eles conseguem inserir os seus discursos e problematizar questões
que experimentam uma necessidade de se atualizar permanentemente.
Tal fato não se daria por completo, não fosse pela especificidade do
texto literário. São as possibilidades abertas pela plurissignificação que
fazem com que o texto transcenda a imediatização de sua contingência
histórica e, por isso, sobreviva, eminentemente atual, ao passar do
tempo.
Há muito, textos consideravelmente importantes atuam contra ou
em posicionamento crítico em relação ao padrão de poderes que se
subtraem e são substituídos por outros cada vez mais sutis e mais
eficazes. Dessa forma, esse movimento da literatura é uma marca
importante do fluxo crítico que os textos modernos vêm a apresentar
em sua relação com a cultura ocidental desde longa data. Na verdade, o
traço que une essas obras é bastante similar ao que até agora vemos a
presenciar nos textos de Nelson Rodrigues: uma postura crítica voraz,
uma constante vontade de desconstruir os padrões e imagens pré-
estabelecidos pela cultura formal e, claro, a desagradável sensação de
que – por trás dos pactos comumente condicionados, da certeza das
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178
relações sociais estabelecidas em suas formalidades – há um rio
subterrâneo onde outras lógicas, outras linguagens estão a se
engendrar, a se formar a distorcer e retorcer o que as instituições têm
se esforçado para manter.
Por outro lado, se tais obras desagradáveis permanecem
canonizadas no escopo da literatura ocidental, temos que nos convencer
de que – apesar da postura de censores que normalmente tentam exilá-
las ao esquecimento – há uma necessidade que se consubstancia a cada
geração que pratica a leitura: estar diante daquilo que não é
normalmente expresso por meio dos pactos sociais.
O fato de que uma coisa que era oculta, secreta, íntima ousimplesmente indizível, mesmo que não recalcada,ignorada, impensada, impensável, o fato de que essa coisase torne dita, e dita por alguém que tem autoridade, que éreconhecido por todo mundo, não somente por umindivíduo singular, privado, tem um efeito formidável.Evidentemente, esse feito só se exerce se houverpredisposição. 170
Se há a pré-disposição, num determinado momento, de aceitar
determinados conteúdos que são proibidos pela ideologia dominante de
cada época é porque houve um conjunto de fatores históricos que
propiciaram essa mudança. Por esse motivo, certamente haverá a
possibilidade da existência de linhas muito mais tênues em volta da
representação do poder tradicional, o que reforça a existência de outras
170 Pierre Bourdieu apud. CHARTIER, 2001, p. 246
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179
instâncias de poderio, outras camadas de interesses nem sempre em
harmonia com o estrato cultural dominante.
O autor é a autoridade que possui o mérito de engendrar
processos e tramas que, de alguma maneira, tornar-se-ão
desagradáveis ou agradáveis ao público. Ele, algumas vezes, é visto
como o mensageiro do absurdo. No entanto, em outras, é entendido
como aquele que consegue alcançar camadas da cultura que seriam
inacessíveis, a não ser através do seu intermédio. Dessa forma,
consegue comunicar-se com o invisível, com o não-dito que permanece
nas relações e pactos sociais.
É nesse sentido que autores aparentemente distantes no tempo e
que viveram sob a égide de culturas diferentes possuem caminhos,
análises, óticas comuns, posto que as relações culturais não se dão
somente no nível imediato das trocas entre o indivíduo e o seu tempo,
entre a obra e o seu momento de formação, mas entre os vários
interditos, entre as várias proibições e manipulações que são usadas
mormente para a domesticação dos comportamentos.
A literatura maldita, desagradável, que agencia posicionamentos
críticos ou de resistência aos pactos sociais há muito tem lugar no
Ocidente. É preciso dizer que não podemos perder de vista que não há o
proibido que, em algum momento, não se apresente desejável. Por
conta disso, a literatura desagradável é instaurada na sociedade por
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180
conta de sua necessidade no mercado de bens simbólicos, posto que, de
alguma forma, representa aquilo que a sua fruição dá àquele que a
manipula: a possibilidade de “falar” sobre conteúdos que são “tabu”
para a sociedade.
Isso confere a esse leitor específico um insofismável conhecimento
sobre conteúdos interditos ou reservados somente aos iniciados. Essa
comunhão efêmera - que se realiza no momento da leitura - personaliza
o leitor, retira-o do senso comum, daqueles que consomem textos que
simplesmente reduplicam pacificamente a cultura.
De outra forma, isso também os marginaliza, visto que passam a
deter conhecimentos os quais o meio social não quer ver ou com os
quais não está preparado para lidar. A herança do desagradável
encarna-lhes na pele e o que resta é aceitá-la ou negá-la, posto que não
poderão honestamente negar a sua existência. A literatura desagradável
faz dos seus leitores cúmplices.
Nesse sentido é que se abre a perspectiva da representatividade
histórica – tanto no nível das relações sociais imediatas, como entre
culturas: da literatura voltada para a descontinuação dos discursos
homogeneizadores. Na verdade, não é o texto que se atualiza – esse
último é, claro, fixo; é a “letra dura”-, mas a cultura é que está
aparentemente a (re)atualizar conflitos que são aparentemente
insolúveis. O resultado desse diálogo mais ou menos conflituoso é que
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geralmente o leitor se depara com questionamentos que permanecem
através do avançar do tempo.
A cultura, embora esteja em permanente mutação, vê-se
confrontada com essas questões, esses impedimentos que estão, a todo
momento, a apontar para a revelada ilogicidade de tensões, malgrado o
aparente “avançar” histórico dos povos. Essa estagnação é,
notadamente para os leitores modernos, imersos na idéia salvacionista
de um avançar histórico cada vez mais civilizador e ausente de antigos
conflitos, desagradável.
Ainda convivemos com a idéia de um direcionamento histórico que
encontrará, no curso de um tempo imerso em provações mais ou menos
extensas, a realização de utopias fundamentais para os sonhos
presentes no mundo moderno. Embora a pós-modernidade assuma o
desvanecimento dessas utopias, não quer dizer que elas não deixem de
existir, mesmo sob a forma de ausência, de uma teleologia
desveladamente fantasiosa onde o homem não mais se encontra, mas
com a qual, apesar da perda da inocência, sonha secretamente alcançar
ou lamenta porque nunca alcançará.
O efeito da literatura, principalmente dos textos desagradáveis,
malditos é rir dessas pretensões idílicas e apontar para tensões que,
apesar da mutante superfície que lhes encobre no avançar dos séculos,
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182
estão presentes enquanto as relações de poder permanecerem como
mediadora entre os homens: para sempre e em todas as culturas.
A selvagem paixão em Emily Brontë e em Nelson Rodrigues.
C'est la vie passée en courses sauvages sur la lande, dans l'abandon des deux enfants,qu'alors ne gênait nulle contrainte, nulle convention (sinon celle qui s'oppose aux jeux
de la sensualité; mais dans leur innocence, l'amour indestructible des deux enfantsse plaçait sur un autre plan). Peut-être même cet amour est-il réductible au
refus de renoncer à la liberté d'une enfance sauvage, que n'avaient pas amendée leslois de la sociabilité et de la politesse conventionnelle.
Georges Bataille
As paixões mais sérias do homem são dos seis aos dez anos.Nelson Rodrigues.
Emily Brontë, que se notabilizou por escrever o clássico Morro dos
ventos uivantes, inseriu em seu livro a existência da paixão perversa,
que não se deixa dominar pelo mundo esquematizado da longevidade e
das conveniências sociais. Bem e Mal se digladiam porque enquanto o
primeiro espera a realização do amor, a transmissão do segredo da
permanência às gerações, o outro quer apenas satisfazer a sua gana e,
ao sentir-se preterido, somente sacia a sua vontade ao destruir
apaixonadamente. E assim faz, até que nada mais reste do objeto da
paixão.
[...]Desejei ardentemente que algo afastasse Heathcliff doMorro dos Ventos Uivantes e da Granja dos Tordos. Suapresença enchia-me de angústia. Parecia que Deusabandonara a ovelha desgarrada, e que uma fera
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183
rastejava entre ela e o rebanho, à espera para saltar edestruí-la.171
Esse sentimento que não admite fronteiras, que não se extingue
nem mesmo diante da morte daquele que é alvo da obsessão amorosa é
encontrado no Teatro Desagradável de Nelson Rodrigues. Na peça Anjo
negro, o protagonista do enredo, “Ismael” transcende todas as
convenções e escrúpulos por conta de seu desejo obsessivo por
“Virgínia”.
Elias - ... e eu jurei que viria dizer apenas estas palavras:“Ismael, tua mãe manda sua maldição!”172
“Virgínia” é obsessiva por sua vingança a “Ismael”, o que limita o
casal à impossibilidade de filhos, tornados anjos, mortos.173Na verdade,
essa peça trata fundamentalmente da aridez desagradável que
caracteriza a paixão que não admite quaisquer deslocamentos de seu
objeto: nem mesmo por conta da manutenção da vida através da
existência saudável da prole.
ISMAEL - Você me esperava, Virgínia.VIRGÍNIA (com espanto) - Esperava você! Só possoesperar você, sempre. Só você chega, só você parte. O
171 BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. São Paulo: Scipione, 1993, p.36172 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1993, p.577173 No caso de “Ana Maria”, filha do casal – apesar de sobreviver à ânsia assassina desua mãe, seu destino, do fim da peça, é ocupar um esquife de vidro – bela imagemque Nelson Rodrigues cria, como uma alegoria da morte.
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184
mundo está reduzido a nós dois - eu e você. Agora queTEU filho morreu.174
Tal qual o amor de Headcliff, a obsessão que une “Ismael” e
“Virgínia” transborda o limite convencional da manutenção da vida e se
coloca na margem da perenidade possível somente na criação artística.
Esse, na verdade, é o espaço destinado aos sentimentos imutáveis, aos
desejos que não se esgotam nem mesmo com a posse do outro e, claro,
às vinganças que não se detêm após a morte daquele que é, ao mesmo
tempo, odiado e amado. Ódio e amor não têm fim, são eternos porque
estão eternizados no único universo que pode lhes conferir esse
estatuto: o seleto espaço da arte.
SENHORA (com voz de contralto) - Vosso amor, vossoódio não têm fim neste mundo!175
Da mesma forma, o selvagem amor que não se esgota diante das
transgressões, do crime passional é marca indelével no universo trágico
de Senhora dos afogados. Nessa trama, um assassinato inicial
desencadeia uma série de atos apaixonados, obsessivos e que possuem
como fim único a posse voraz do objeto de desejo almejado.
O assassinato de uma prostituta é a semente do mal que se
alastrará por toda a família Drummond, cujo patriarca é “Misael”, autor
do ato hediondo: no dia de seu casamento, a presença insidiosa de uma
174 RODRIGUES, op. cit., p.578175 Ibid., p. 423.
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185
“perdida” apaixonada por ele poderia jogar por terra todas as benesses
que uma união sacramental confere àqueles que almejam prestígio
social. Entre o mundo da ratificação social e o do relacionamento
proibido, ele escolhe o caminho da negação do amor através da
violência.
Com isso, uma transgressão inicial será passada para a geração
posterior, como uma herança maligna que unirá os personagens sob o
estigma de atos hediondos. A geração que “Misael” iniciará com sua
esposa “D. Eduarda” irá realizar a próxima assassina: “Moema”. Ela é
ainda mais fria e obsessiva do que seu pai e atravessa o enredo da peça
a livrar-se de qualquer mulher que se interponha entre ela e a sua
incestuosa paixão por “Misael”.
Enquanto os atos hediondos são cometidos, como o homicídio das
outras filhas do casal Drummond – jogadas no mar que espera
pacientemente todos aqueles que carregam esse nome de família – a
lembrança do assassinato primordial permeia a peça através de um
insidioso coro de prostitutas que, no cais, choram e rezam pela morta.
PAULO (fora de si) - ...Essas vozes? Esses gemidos? Sãoas mulheres do cais... Choram e rezam pela que mataramhá dezenove anos...Ouves agora?176
A paixão incestuosa de “Moema” por “Misael” faz dela uma
assassina. Os atos hediondos que ela comete possui dois pontos
176 RODRIGUES, 1993, p.681
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186
importantes: por um lado, a aproxima de seu pai e, por outro, a afasta
de “D. Eduarda”. Nelson Rodrigues – para realçar essa característica –
cria o plástico efeito das “mãos gêmeas” de “D. Eduarda” e de “Moema”,
o que acaba por se tornar o vaticínio da desgraça dessa última.
MOEMA – É mentira! Eu e ela não somos uma mesmapessoa...Só as nossas mãos são parecidas! Se parecemtanto, tanto! Não queria ter essas mãos, não queria queelas fossem minhas...(estende as mãos e olha-as comprofundo rancor) (brusca, violenta) São elas que me ligamà minha mãe...Enquanto elas existirem, serei filha de suacarne...177
Aos poucos, todos os personagens da família Drummond vão
imergindo sob o estigma do assassínio e da obsessão. Mesmo “Paulo”,
irmão de “Moema” é obcecado por D. Eduarda o bastante para matar o
seu amante – o filho da prostituta que adentra a casa de “Misael” com o
objetivo único de se vingar pela morte de sua mãe.
Finalmente, tal como o espectro da peça “Macbeth”, de
Shakespeare, a prostituta morta aparece em um jantar social diante de
“Misael”. O efeito dessa aparição toma de horror esse personagem da
mesma maneira que o próprio “Macbeth” é tomado de pânico diante do
espectro de “Banquo”.
MISAEL – Convidada? (numa tensão inexplicável) Não, nãopodia ser convidada... (vira-se para a mulher, pousa amão no braço da mulher). Eduarda, eu vi essa mulher otempo todo. (grita) Mas eu sabia que ela tinha morrido há
177 RODRIGUES, 1993, p.682
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muitos anos...(lento, sem excitação) Não podia estar ali,mas estava; ninguém a via, só eu...Então, não pudecontinuar; parei meu discurso no meio...Fugi...Ela tambémsaiu, veio comigo... (com medo, mas sem rancor) Deveestar aqui me acompanhando...178
De forma semelhante, em Macbeth, o espectro daquele que fora
assassinado retorna em um banquete presidido pelo assassino.
MACBETH – Rogo-te, olha lá!Contempla! espia! vê! que é que dizeis?Bem, que me importa? Acenas com a cabeça,fala também portanto. – Se os ossuáriose as nossas tumbas têm de devolveros que enterramos, nossos monumentosvão ser então o ventre dos milhafres.179
“Moema” é duplamente incestuosa. Nesse caso, a trama da peça
faz com que ela tome por noivo o seu meio-irmão, fruto da união entre
“Misael” e a prostituta. Sedento por vingança, o “Noivo” é um homem
do mar e que vive entre mulheres “perdidas”, como fora a sua mãe. Seu
caminho na peça é desencaminhar “D. Eduarda”, que se apaixona por
ele e completa o círculo de obsessão amorosa que tão bem caracteriza
essa tragédia.
No fim da peça, “Moema” é condenada a conviver com o espectro
de sua mãe, assassinada por “Misael”. Nelson Rodrigues priva “D.
Eduarda” de suas mãos, decepadas por seu marido. Por esse motivo,
“Moema” perde a possibilidade de se enxergar nos espelhos – quando o
178 Ibid.,p.686.179 SHAKESPEARE, Willian. Macbeth. (trad. Péricles Eugênio)São Paulo: Círculo doLivro, 1983, p.77
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faz, é o espectro de sua mãe que se encontra lá a lembrá-la dos crimes
cometidos no seio da família Drummond.
No entanto, “Moema” é forte o bastante para espantar o espectro
de sua mãe, posto que lhe resta o objetivo que a guiou durante todo o
seu percurso ao longo da trama: permanecer com o seu pai, ser a única
mulher da família. Nelson Rodrigues lhe reserva – apesar disso – um
destino pior que o da morte. Ao perceber que perdera o objeto de sua
obsessão, com o falecimento de “Misael”, vê-se condenada a uma
solidão atroz onde nem mesmo os espectros vêm lhe fazer companhia –
a sua única lembrança serão as suas mãos, veículos da sua paixão, mas
também de seus atos hediondos. Na ausência de todos, privada de sua
própria imagem, ela está condenada a permanecer semi-existente. À
espera da morte, condenada por suas próprias mãos.
VENDEDOR DE PENTES E OUTROS (gritando) – Viveráscom elas...E elas dormirão contigo...E não estarás sozinhanunca.... Sempre com tuas mãos... Quando morreres, elasserão enterradas contigo...180
Não é somente no Teatro Desagradável que encontramos a paixão
selvagem entre personagens. No romance Asfalto selvagem:
Engraçadinha, seus amores e seus pecados, o leitor se depara com uma
trama na qual o cerne é a voracidade dos sentimentos. Essa é uma
característica importante de sua obra e que se insere num dos muitos
índices do desagradável em seus textos, posto que esses sentimentos
180 RODRIGUES, 1993, p.728.
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escapam das normas impostas à manutenção da sociedade e tornam-se
perigosos às medidas de contenção tão caras à permanência das
instituições e das relações que se pretendem duradouras. Sua obra
revela o impacto dessas transgressões nos meios sociais mais
tradicionais.
Havia, porém, um perigo óbvio. A notícia de um incestonão pode andar em todas as mãos. Cada família tem suastrevas, que é preciso não provocar. De mais a mais, oamor abjeto atrai os espíritos fracos, as mentes nãoformadas. Por enquanto, havia uma só Engraçadinha. Ese, de repente, por um impulso de imitação, começassema aparecer outras, e mais outras, muitas Engraçadinhas?Coincidiu que, naquela altura, um funcionário do Tesouro,senhor já dos seus quarenta e poucos, metesse uma balana cabeça. Vejam bem: - uma bala na cabeça! Era paitambém de uma filha única, cuja idade regulava com a deEngraçadinha. Houve uma relação entre os dois suicidas eas duas adolescentes? Quem poderá dizê-lo?181
Diante de seus olhos, o leitor assiste diversas transgressões que,
por conta da complexidade do enredo, tornam-se verossímeis, possíveis
de acontecer. O perigo, isolado através dos modos de cerceamento
moral e ético, passa a cada vez mais avizinhar-se, a conferir
possibilidades até então impensadas. O efeito desagradável está
inexoravelmente instaurado.
O sentimento de amor obsessivo, por ser selvagem, impõe aos
personagens não mais a preservação da vida, mas o seu contrário: a
181 RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seuspecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.18
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ânsia de anulação do outro, seja através da morte real ou de uma
alegoria que lhe transfigure e lhe retire da convivência com os vivos.
Por não se enquadrar nos princípios básicos de sociabilidade, tais
quais o da contenção dos impulsos, a renúncia aos desejos mais
sórdidos, o amor selvagem não há de conhecer barreiras ou convenções
para o principal objetivo desse especial tipo de amante: ter o outro, até
o fim de sua essência, como em Anjo Negro; possuir o objeto da
obsessão amorosa apesar de qualquer vínculo familiar, como em
Senhora dos afogados; ou da manutenção da vida do ser amado, como
em o Morro dos ventos uivantes.
Charles Baudelaire e Nelson Rodrigues: da brevidade dogrotesco à perenidade do sublime.
Mois, Je dis: la volupté unique et suprême de l’amour gît dans la certitude defaire le mal. Et l’homme et la femme savent de naissance que dans le mal se
trouve toute volupté.Charles Baudelaire
Para mim, qualquer morta tem mais densidade do que qualquer morto.Nelson Rodrigues
A literatura de Charles Baudelaire está eivada de índices que
apontam para o desagradável: fruto do embate da prática do mal
quando em confronto com as sublimes formas de beleza, no qual o
desagradável é inserido sob a forma de sentimento oriundo do resultado
do embate entre o grotesco e o sublime.
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191
Portanto, o que nos incomoda ao nos depararmos com a presença
do Mal182 é o que esse nos revela, a insuportabilidade inexorável de sua
existência, sem a qual o Bem não existiria. Uma face necessita da outra:
o Bem ou Mal absolutos não podem existir senão sob a forma de utopia.
No poema a seguir, vemos a ação do grotesco representado pelo
apodrecimento da carne comparada à beleza, clássico índice de
sublimidade, da mulher amada. Tais fatos apontam para a brevidade da
vida e também para a realidade da morte: responsável pela deturpação
da carne e, em decorrência, pelo festim da decomposição. É justamente
do interstício desses parâmetros que a poesia emerge.
Une Charogne183
182 Geoges Bataille, ao comentar a poesia de Baudelaire desenvolve a interessantereflexão: “Notemos aqui a relação entre mal e poesia: quando, acima do mercado, apoesia toma o Mal por objeto, as duas espécies de criações de responsabilidadelimitada se reúnem e se fundem, imediatamente, uma flor do Mal. Mas a criaçãodeliberada do Mal, isto é, a falta, é aceitação e reconhecimento do Bem; ela ohomenageia e, batizando-se a si mesma como má, confessa que é relativa e derivada,que, sem o Bem, ela não existiria.” In BATAILLE, Geoges. A literatura e o mal. PortoAlegre: L&PM, 1989, p. 30183Uma Carniça//Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos/Numa belamanhã radiante:/Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,/Uma carniçarepugnante.//As pernas para cima, qual mulher lasciva,/A transpirar miasmas ehumores,/Eis que as abria desleixada e repulsiva,/O ventre prenhe de livores.//Ardia osol naquela pútrida torpeza,/Como a cozê-la em rubra pira/E para ao cêntuplo volver àNatureza/Tudo o que ali ela reunira.//E o céu olhava do alto a esplêndidacarcaça/Como uma flor a se entreabrir./O fedor era tal que sobre a relvaescassa/Chegaste quase a sucumbir.//Zumbiam moscas sobre o ventre e, emalvoroço,/Dali saíam negros bandos/De larvas, a escorrer como um líquido grosso/Porentre esses trapos nefandos.//E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,/Ouesguichava a borbulhar,/Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,/Vivesse a semultiplicar.//E esse mundo emitia uma bulha esquisita,/Como vento ou águacorrente,/Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita/E à joeira deitanovamente.//As formas fluíam como um sonho além da vista,/Um frouxo esboço emagonia,/Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista/Apenas de memória umdia.//Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela/Em nós fixava o olhozangado,/Aguardando o momento de reaver àquela/Carniça abjeta o seu bocado.//-Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,/Essa medonha corrupção,/Estrela demeus olhos, sol de minha vida,/Tu, meu anjo e minha paixão!//Sim! tal serás um dia,
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192
Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,Ce beau matin d'été si doux:
Au détour d'un sentier une charogne infameSur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l'air,comme une femme lubrique,Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cyniqueSon ventre plein d'exalaisons.
Le solei rayonnait sur cette pourriture,Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande NatureTout ce qu'esemble elle avait joint;
Et le ciel regardait la carcasse superbeComme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbeVous crûtes vous évanouir.
Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquideLe long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,Ou s'élançaint en pétillant;
On eût dit que le corps, enfié d'un souffle vague,Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique,Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmiqueAgite et tourne dans son van.
Les formes s'effaçaient et n'ettaient plus qu'un rêve,Une ébauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achèveSeulement par le souvenir.
ó deusa da beleza,/Após a bênção derradeira,/Quando, sob a erva e as florações danatureza,/Tornares afinal à poeira.//Então, querida, dize à carne que se arruína,/Aoverme que te beija o rosto,/Que eu preservei a forma e a substância divina/De meuamor já decomposto! Tradução de Ivo Barroso In BAUDELAIRE, Charles. Poesia eprosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p.127.
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193
Derrière les rochers une chienne inquieteNous regardait d'un oeil fâché,
Epiant le moment de reprendre au squeletteLe morceau qu'elle avait lâché.
Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,Vous, mon ange et ma passion!
Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,Après les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,Moisir parmi les ossements.
Alors, ô ma beautê! dites à la vermineQui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divineDe mes amours décomposés!”.184
O efeito produzido pela fixidez do belo na poesia em detrimento da
brevidade da vida e da implacabilidade da morte insere a literatura no
espaço da perenidade. A beleza da musa - desvinculada da morbidez
luxuriante que a atingirá inexoravelmente - permanece intacta,
cristalizada na esfera poética da linguagem. Por esse motivo é que o “eu
lírico” busca a preservação da essência, no espaço da literatura, daquilo
que há de se deteriorar.
O esforço da escritura é aquele que transforma a morte, o “não-
ser”, em vida, em imagem que passa a figurar no espaço da literatura. É
por esse motivo que algo que está adormecido no inconsciente e que
passa a ser evocado pelo “eu lírico” pode reviver na escrita: “[...] Um
184 BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Éditions du Seuil, 1968, p.p.58/59.
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194
frouxo esboço em agonia, / Sobre a tela esquecida, e que conclui o
artista/ Apenas de memória um dia.”
Se a beleza presume o implacável caminho para a morte, para a
degradação, o movimento da criação literária é exatamente o oposto:
desenhar a imagem a partir do esboço, do fragmento que surge na
mente do criador. À vida natural, opõe-se o movimento criador. Nesse
último, a criatura é destinada à eternidade. As criações naturais estão
condenadas ao apodrecimento, como tudo o que é belo no espaço
mutável da realidade. Por esse motivo, o artista e o próprio Criador se
interpõem: aquele que realiza a obra destina as suas criaturas ao
espaço da perenidade, enquanto que as criaturas de Deus estão
destinadas à inexorável passagem da vida.
A inserção do grotesco, em oposição ao sublime, balizou a
literatura romântica e a revelou como um ponto de resistência à
solidificação dos valores burgueses cristalizados no belo e,
conseqüentemente, na sujeição à ordem. O corpo, a beleza da amada é
paulatinamente aproximada do grotesco cadáver que, flor obscena, se
decompõe – “qual mulher lasciva” – a céu aberto. Nesse ponto, temos
um breve, ainda que veemente, índice sobre a força negativa da
lascívia, fator que insere o lado negativo, desagradável da sexualidade.
A poesia de Baudelaire marca a procura de liberdade da literatura
em relação à sociedade de acumulação de capital. Seus textos primam
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195
pela recusa da redução do homem aos valores de utilidade que, nesse
momento, estão a se construir na Europa. O espaço da eternização do
belo em detrimento do patético movimento da vida ocorre por conta da
tentativa de fixação de um espaço que, há muito, fora maculado pela
sujeição do indivíduo à lógica reduplicadora do mercado.
A imagem grotesca da carne a se decompor está presente no
universo ficcional de Nelson Rodrigues. Vejamos essa imagem retirada
de um dos muitos contos no qual um dos amantes, logo após uma
esfuziante lua de mel, falece inopinadamente. A decrepitude da carne da
amada – antes, em vida, era considerado como um objeto de desejo –
passa a ser de uma adoração que desconhece o desagradável
apodrecimento, conforme veremos no fragmento a seguir.
Cinco dias depois, os vizinhos começaram a sentir umcheiro horrível.Investiga daqui, dali, acabaram desconfiando.Entraram no quarto e encontraram a esposa morta e omarido, sentado no chão, de barba crescida, quase àMonte Cristo.Os mais sensíveis levaram o lenço no nariz. Alberto, quasesem voz, explicou que a mulher pedira para não serenterrada. Levaram-no, do quarto, moribundo e variando.Sua última pergunta foi esta:- Não estão ouvindo um soluço?185
Na peça Dorotéia, encontramos a mesma imagem do cadáver
amado a se decompor, sem que aquele que permanece vivo possa ter a
185 RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é: O homem fiel e outros contos. São Paulo:Companhia das Letras, 1992, p.95.
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196
coragem de lhe enterrar. É importante notar que há uma inteligente
inversão: a obsessão amorosa impede os personagens de realizar os
rituais fúnebres em troca de permanecer a velar - se possível,
infinitamente - o cadáver daquele que foi amado.
DOROTÉIA (de um lado para o outro) – Estavamorto...(feroz) Meu filho estava morto!D.FLÁVIA (exultante) – E tu o enterraste!DOROTÉIA (feroz) – Nunca!...(crispando as mãos, naaltura do peito) Eu não enterraria um filho meu...Um filhonascido de mim...(doce) Enterrar, só porquemorreu?...Não, isso não...(muda de tom) Vesti nele umacamisolinha de seda, toda bordada a mão, comprei trêsmaços de vela....quando acabava uma vela, acendiaoutra....antes, tinha fechado tudo...Fiquei velando, não seiquantos dias, não sei quantas noites...Até que bateram naporta...tinham feito reclamação, porque não se podiasuportar o cheiro que havia na casa....(feroz) Mas eu juro,dou minha palavra de mãe, que o cheiro vinha de outroquarto, não sei. De lá, não...(muda de tom) E sabe quemfoi fazer a denúncia? Uma vizinha, que não se davacomigo....(doce) levaram o anjinho. (agressiva) Mastiveram que me amarrar, se não eu não deixava....186
A inserção do grotesco, sob a forma do cadáver, causa o efeito
desagradável a partir do momento no qual há o embate com o aspecto
positivo, o amor que transpassa a barreira da vida do amado. Esse
sentimento transcende quaisquer convenções e chega mesmo a
transpassar o nojo pela decomposição. Sem dúvida, notamos que aí se
insere uma notável marca da influência da escritura romântica em sua
obra. Essa comparação foi abordada no ensaio de Adriana Facina.
186 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1993, p.633.
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197
A crítica ao processo histórico de modernização capitalistapelo qual passou a sociedade brasileira une asperspectivas de Nelson Rodrigues e de Gilberto Freyre. Hános dois uma certa nostalgia de um passado portador devalores humanos essenciais, que se perdeu namodernidade. O desafio, portanto, da sociedade brasileira,na impossibilidade de um retorno ao passado, seria oresgate de alguns desses valores por meio da valorizaçãode sua cultura. Nesse ponto, creio que se pode estabelecerum vínculo bastante elucidativo entre essa visão e umamatriz de pensamento de inspiração romântica – emespecial no que toca à tradição alemã, com a qual GilbertoFreyre teve um contato mais direto devido à sua formaçãona Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos.187
Vejamos agora o clássico poema de Charles Baudelaire, onde a
breve observação de uma “passante” se transforma em um momento
epífano que transborda e submete o alarido da rua. A mulher não é mais
uma anônima, mas uma imagem construída a partir do desejo amoroso
e cuja perfeição transparece através de suas “penas de estátua”. A
voluptuosidade despertada por esse ícone - signo positivo e que
mobiliza grande parte do poema - está impregnada pelo fator
desagradável da morte revelada através do luto da mulher e do prazer
assassino que enleia o “eu lírico”. A inserção de fatores conflitantes,
relativos à densidade e à natureza do desejo pela mulher anônima,
ajudam a compor um quadro que se notabiliza por sua efemeridade: o
instante em que a mulher permanece ao alcance da visão no espaço na
ars poetica.
187 FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de NelsonRodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 310
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198
A Une Passante188
La rue assourdissante autour de moi hurlait.Longue, mince, en grand deuil,
douleur majestueuse,Une femme passa, d'une main fastueuse,Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair...puis la nuit! - Fugitive beautéDont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?
Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!”189
À imobilidade passiva das multidões, a resposta romântica de
Baudelaire realiza-se através da individualização da imagem – única –
da mulher desejada: utopia desagradável aos valores capitalistas em
franco desenvolvimento numa França oitocentista cada vez mais
industrializada e já sensível às multidões que viriam se aglomerar nas
188 A Uma Passante//A rua em torno era um frenético alarido./Toda de luto,/ alta esutil, dor majestosa,/Uma mulher passou, com a mão suntuosa/Erguendo e sacudindoa barra do vestido.//Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina./Qual bizarrobasbaque, afoito eu lhe bebia/No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,/A doçura queenvolve e o prazer que assassina.//Que luz...e a noite após! Efêmera beldade/Cujosolhos me fazem nascer outra vez,/Não mais hei de te ver senão na eternidade?//Longedaqui! tarde demais! nunca talvez!/Pois de ti já me fui, de mim já fugiste,/Tu que euteria amado, ó tu que bem o viste! Tradução de Ivo Barroso in BAUDELAIRE, 1995,179.
189 . In BAUDELAIRE, 1968, p.101
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metrópoles ocidentais do século XX. Por esse motivo, o momento de
encontro com a beleza feminina retirada e restituída à amorfia da massa
é único e impossível de ser reconstruído: “Pois de ti já me fui, de mim já
fugiste.”
A epifania proclama a irrestritabilidade da imagem poética que não
há que se ater aos pressupostos de uma sociedade que cada vez mais
está a se voltar para o que se repete, para aquilo que está
irremediavelmente inserido na lógica da indústria, onde a
despersonalização transforma o indivíduo num número descartável nas
engrenagens que movem a produção e alimentam o consumo.
O caminho da arte é o oposto: vale-se de sua singularidade, em
detrimento da pluralidade característica da amorfia do indivíduo nas
multidões. Esse é um fenômeno que transborda o restrito momento da
consciência romântica e atravessa o século XX, cujo início é bem
marcado, nas obras da Belle Èpoque, pela influência de escritores como
Edgard Allan Poe190 e do próprio Charles Baudelaire.
191He notice me not, but resumed his solemn walk, while I,ceasing to follow, remaided absorbed in contemplation.
190 Certamente estamos a falar sobre o clássico “The man of the crowd” traduzido parao francês por Charles Baudelaire como “L’homme des Foules” e que aborda o tema dadespersonalização do indivíduo diante do fenômeno das massas. Esse fato, visto comoestranho à época de Poe, tornou-se marcante no decorrer do século XX. In POE,Edgard Allan. OEuvres en prose. Paris: Gallimard, 1951, p.311191 Ele não me deu atenção, mas continuou seu solene passeio, enquanto eu, cessandode acompanhá-lo, permanecia absorto em contemplação. – Este velho – disse eu porfim – é o tipo de gênio do crime profundo. Recusa estar só. É o homem das multidões.Tradução de Oscar Mendes in POE, Edgard Allan. Ficção completa, poesia & ensaios.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p.400
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200
“This old man,” I said at lenght, “is the type and thegenious of deep crime. He refuses to be alone. He is theman of the crowd.192
A crítica aos valores iconoclásticos da modernidade, conforme
explicitou-nos o fragmento retirado do livro de Adriana Facina, é uma
marca considerável no pensamento de Nelson Rodrigues. O valor de
suas memórias, ponto de convergência entre a reminiscência e a criação
da narrativa, apresenta-se, em vários momentos, como um espaço onde
- malgrado a tendência intrínseca de alguns homens à prática do mal -
há a preservação de costumes e valores ainda não corrompidos pela
civilização.
No entanto, é importante notar que as reminiscências do autor, se
não atuaram de forma a narrar os fatos tais quais eles foram, criaram
um locus onde o valor emocional nas imagens está mais em evidência
do que o da simples narração de um fato histórico. Por esse mesmo
motivo, certamente é comum encontrarmos a tendência à valorização
de um passado “construído” pela narrativa e que se rebaterá com um
presente cada vez menos tradicional e mais voltado para os valores
passageiros, aliados ao consumo imediato. Certamente há que se notar
a influência do pensamento romântico nas obras de Nelson Rodrigues.
Mas a belle époque não é a defunta que, no momento, meinteressa. Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro
192 POE, Edgard Allan. The complete tales and poems. London: Penguin Books, 1982,p.481
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201
lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordemcronológica. Hoje, posso falar do kaiser, amanhã do OttoLara Resende, depois de amanhã do czar, domingo doRoberto Campos. E por que não do Schmidt? Como nãofalar do Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tema atualidade, a tensão, a magia da presença física.Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu querodizer é que estas são memórias do passado, do presente,do futuro e de várias alucinações193.
Por outro lado, a análise de influências de estéticas pretéritas nas
obras literárias vem corroborar com a tese de que a presença de
elementos culturais pertencentes a outros tempos estão presentes
nesses textos por conta da remanescência desses mesmos conteúdos no
ambiente cultural que serve de berço à criação da obra. Portanto, a
postura crítica, irônica de Nelson Rodrigues em relação ao movimento
alucinante da modernidade também deve ser visto como a permanência
desse antagonismo que sobrevive desde o século XIX e que alcança a
centúria posterior.
Marquês de Sade e Nelson Rodrigues: o poder do gozo e o
gozo do poder.
En soi-même, en vérité, parler de Sade est de toute façon paradoxal. Il n’importe pasde savoir si nous faisons ou non, tacitement ou pleinement, oeuvre de prosélyte: le
paradoxe est-il moins grand de louer l’apologiste du crime, que, directement, le crime?L’inconséquence est même accrue dans le plus haut la victime, qu’il fait passer du
monde de l’horreur sensible à un ordre d’idées folles, irréelles et purement brillantes.Georges Bataille
193 RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela: memórias. São Paulo: Companhia dasLetras, 1993, p.11
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202
O sexo é uma selva de epiléticos. O sexo nunca fez um santo. O sexo só faz canalhas.Nelson Rodrigues
A relação da literatura com o desagradável que ela nos
proporciona ficou profundamente marcada por outro ícone da literatura
francesa: Donatien-Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade.
No cadinho fumegante da Revolução Francesa, sob as hostes
seguras do Iluminismo, a sua obra marca não somente a transgressão,
mas o prazer advindo da prática e da disseminação do desagradável –
apresentado de forma exaustiva, quase um manual -, onde as
perversões ocorrem em microcosmos, palcos seletos nos quais
sentimentos e atos positivos como a virtude, a decência e a contenção
sexual são metódico e implacavelmente violados e constrangidos por um
poder inquestionável que pune exemplarmente qualquer desobediência
às suas vontades mais secretas.
Urdindo a partir de seu método, que chega a parecer, de acordo
com uma vertente bastante presente na literatura iluminista,
enciclopédico, Sade teceu a sua obra com tanta pertinência e acuidade
que chega a convencer o leitor de que a lógica da destruição é tão
palpável, verossímil e – por que não? – praticável quanto a da
manutenção dos critérios e valores positivos de preservação da
sociedade.
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203
Tais bizarrices não aconteceriam ou não seriam, pelo menos,
possíveis se não estivessem enraizadas numa estrutura que conferisse
aos seus protagonistas uma total liberdade para exercerem o que
verdadeiramente lhes causa prazer: a imposição de um poder que se
realiza através da submissão do outro até o seu esgotamento, o que
algumas vezes chega às margens de sua extinção. Esse exercício é
realizado através de um modus faciendi que não encontra barreiras, que
é soberano e que se realiza inexoravelmente através do ato de subjugar
sexualmente aqueles que lhes são subordinados.
Esgotadas ao máximo em suas subjetividades, as vítimas são
reduzidas a corpos, títeres que estão dispostos ao prazer e que são
valorados apenas de acordo com a possibilidade de sujeição e com a
antevisão do gozo advindo da conspurcação de suas eventuais purezas
ou pudores, como podemos ver em Les cent vingt journées de Sodome.
194La première se nommait Augustine: elle avait quinzeans, elle était fille d’um Baron de Languedoc et avait étéenlevée dans um couvent de Montpellier.La seconde se nommait Fanny: elle était fille d’unconseiller au parlement de Bretagne et enlevée dans lechâteau même de son père.La troisième se nommait Zelmire: elle avait quinze ans,elle était fille du comte de Terville que l’idolâtrait.[...]195
194 Tradução nossa: A primeira se chamava Augustine: ela tinha quinze anos, era filha de um Barão deLanguedoc e foi raptada num convento de Montpellier.A segunda se chamava Fanny: ela era filha de um conselheiro do parlamento da Bretanha e foi raptada da casade seu pai.A terceira se chamava Zelmire: ela tinha quinze anos, era filha de um conde de Terville que a idolatrava.[...]195 SADE, Donatien Alphonse de. OEuvres. Paris: Gallimard, 1990, p.46
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204
Nesse verdadeiro catálogo de bestialidades, um seleto grupo de
celerados realiza inimagináveis atrocidades através da sujeição sexual
de quem está sob as hostes do seu jugo. O valor dos que serão
sacrificados no altar do gozo do poder está intimamente ligado à
possibilidade de degredo de sua condição social, à miserabilidade da
subserviência e, por isso, ao dano que essa seleta sociedade pode
causar àqueles que hão de corromper ou conspurcar. O exercício de
subjugar o outro não se dá sem que esse mesmo seja submetido ao
terror, à total ausência de possibilidade de escape aos sortilégios que
lhes são reservados.
Um outro grupo seleto de ricos celerados que se divertem, sob os
auspícios do tédio e da obtenção do prazer através da sujeição sexual e
destruição moral, podemos encontrar na peça Otto Lara Resende ou
Bonitinha, mas ordinária, de Nelson Rodrigues. Moças virgens196 são
violadas por seus namorados, em plena sala de estar, como
divertimento para ricos e entediados que, por não mais estarem sob os
parâmetros cerceadores de manutenção e contenção sociais que dirigem
o resto da sociedade, divertem-se com o sofrimento alheio.
WERNECK – Vocês vão ver um show. É um crime sexual.PRIMEIRO GRÃ-FINO – O quê? O quê?WERNECK – Eu mandei apanhar três meninas. Uns anjos,mocinhas, de família. Garotas que não sabem nada.
196 É importante que notemos o extremo valor dado à virgindade da mulher,principalmente durante a primeira metade do século XX no Brasil.
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205
Purinhas. Vêm com os namorados. Estão estourando aí. Eos namorados vão fazer tudo, aqui, tudo.TERCEIRO GRÃ-FINO – Eu quero uma!WERNECK – Não te mete, Bingo!PRIMEIRO GRÃ-FINO – Mas é curra de verdade?WERNECK – O negócio é assim. Vamos preparar osnamorados. Vamos entupir os namorados de maconha. E,aqui, dentro desta sala, eles vão caçar as pequenas.SEGUNDO GRÃ-FINO – Mas isso é crime!WERNECK – Sua besta! Ou vocês não acreditam no PoderEconômico? Vou indenizar, compreendeu, pai, mãe, aspequenas. Tapo a boca da família, rapaz. O negócio dá emnada.197
O exercício do poder através do jugo sexual está presente de
forma bastante clara também nas peças compreendidas em seu Teatro
Desagradável. Encontramos essa atuação no patriarca “Jonas”, que
satisfaz a sua ânsia de dominação através da defloração de adolescentes
entre as paredes sagradas de seu próprio lar.
JONAS (taciturno) – Que é que há?TIA RUTE – É o avô, Jonas. O avô da menina. A que eu lhefalei.AVÔ – Vim só cumprimentar o senhor, “seu” Jonas. Apostoque nem se lembra de mim; também era tão novinho! Osenhor, “seu” Jonas, fez muito xixi, em cima de mim,muito! Também montou na minha corcunda. Cadajudiaria! Pois o senhor querendo, não faça cerimônia –disponha! Quando quiser!TIA RUTE – Chega, Tenório.(Tia Rute quer puxar o patriarca.)AVÔ – Trouxe minha neta. Sou homem de uma palavra só.Faz bem, “seu” Jonas, em não querer nada com o pessoalda Mariazinha Bexiga. Umas mulheres perebentas! Agora,minha neta – duvido! Me arresponsabilizo, tão limpinha,não tem uma ferida. A não ser uma vez que o calcanharpostemou, mas faz tempo.
197 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1993, p.577Nelson, 1993, p.1039.
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206
(O patriarca não quer sair de jeito nenhum.)AVÔ – Deus Nosso Senhor lhe dê muita saúde. Para d.Senhorinha, também. Se minha neta perder o respeito, osenhor não se avexe de me chamar. Dou de cinto!198
Índice importante, que faz com que o círculo da dominação
masculina se feche, como um aro de aço, a manter a neta do patriarca
sob inexorável jugo, é o fato de o próprio avô da adolescente ir levá-la
aos braços de “Jonas” em troca de proteção para a família. O avô
também deixa que percebamos a relação de dominação que ele mesmo
sofreu quando da época em que Jonas era uma criança, o que nos
mostra um exercício que se dá não só por atuação de um indivíduo, mas
que se perpetua como uma prática entre uma família mais poderosa e
aquelas que, submetidas, gravitam ao seu redor e ao dispor de seus
desejos.
Esse quadro nos sugere uma clássica composição da família
patriarcal, aos moldes como a encontramos nos clássicos de Gilberto
Freyre: principalmente quando esse autor considera a exacerbada
sexualidade dos senhores de engenho. Com isso, Nelson Rodrigues
ajuda, com a sua dramaturgia, a compor, a partir de uma idéia corrente
na época, um quadro no imaginário brasileiro sobre o seu próprio
passado. É fundamental notarmos que, apesar das críticas feitas por
historiadores atuais, o modelo construído por Gilberto Freyre serviu
198 Nelson, 1993, p.527
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207
como fonte para a fundamentação da moderna identidade brasileira, tal
qual como a conhecemos hoje e que está consagrada em obras
fundadoras, como Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos.
E então apareceu Casa-grande & senzala. Saíamos doterreno da ficção, da pura criação literária, agora abria-seum novo caminho para o estudo, para a ciência. Foi umaexplosão, um fato novo, alguma coisa como ainda nãopossuíamos e houve de imediato uma consciência de quecrescêramos e estávamos mais capazes. Quem não viveuaquele tempo não pode realmente imaginar sua beleza.Como um deslumbramento. Assisti e participei dessesacontecimentos. Posso dar testemunho. O livro de Gilbertofoi fundamental para toda a transformação sofrida no país,verdadeira alavanca. O abalo produzido na opinião públicapor Casa-grande & senzala foi decisivo. Uma épocacomeçava no Brasil, o aparecimento de tal livro era amelhor das provas.199
A obra de Nelson Rodrigues, principalmente as peças que
compõem o seu Teatro Desagradável, faz parte do conjunto de textos
fundamentais para a construção de nossa identidade cultural
contemporânea, onde as raízes não mais se estendem a um passado
totalmente idealizado, como indianismo romântico, mas parte de um
modelo fundamentado num modo de vida e de produção que, por
muitos anos, consagrou-se como gerador de riqueza e costumes sociais
singulares para o Brasil, o da família sob os moldes organizacionais do
patriarcalismo colonial.
199 Depoimento de Jorge Amado apud. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala.(Edição Crítica). Paris: Coleção Archivos, 2002, p.994
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208
O modelo de família fundamentado por Gilberto Freyre e
sacralizado por Nelson Rodrigues em obras como Álbum de família
serviu de cenário sobre o que se imaginava como modelo de família
patriarcal no Brasil. Essas obras, mais do que revelarem uma forma de
vida que esteve escondida no passado, em grande parte fomentou a
criação de um imaginário onde o poder do macho, do pater era sagrado
e inquestionável entre as quatro paredes do lar. Esse tipo de
pensamento tem servido como parâmetro de comparação entre um
passado de poder absoluto e inquestionável e momentos nos quais as
reestruturações no interior da família apontam para a decadência desse
poder, principalmente durante a primeira metade do século XX.
Por esse mesmo motivo, as análises sobre sexualidade brasileira
não deixam de estar ligadas aos instrumentos de manutenção e de
direcionamento sociais, quer no âmbito dos textos científicos ou em
obras artísticas. Ao relacionarem sexualidade e poder, autores como
Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues ajudaram a compor um quadro que
nos explicaria a nossa própria identidade, quer nos parâmetros
fundamentadores, como em Casa-grande & senzala ou no contexto do
desagradável olhar crítico sobre idéias e costumes de longa duração em
nossa cultura e que nos são expostas na obra de Nelson Rodrigues.
A sexualidade é, pois, pensada no âmbito do poder, sejacomo instrumento de poder no âmbito da famíliapatriarcal, seja como território de negociações eamortecimento de contradições no seio da escravidão edas hierarquias coloniais. Afinal, o conceito de família
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209
patriarcal é chave no livro de Freyre, pois é nela e atravésdela que, segundo o autor, se pode perceber a formaçãodo Brasil, entre os encontros amorosos e os conflitosfrontais entre autores sociais que são a um só tempoinimigos e amantes200.
Dessa forma, no Teatro Desagradável de Nelson Rodrigues, a peça
Álbum de família explicita uma característica importante para que o
poder ser realize, além de sua imposição como conteúdo simbólico: o
fato de que esse se dá através do domínio sobre os corpos daqueles que
devem ser submetidos ao seu jugo, característica que vem a ser
denunciada sob diversas formas de atuação em obras que colocam sob
visibilidade o ridículo desses mesmos privilégios.
JONAS (gritando) – Mas eles estão enganados comigo. Eusou o PAI! O pai é sagrado, o pai é o SENHOR! (fora de si)Agora eu vou ler a Bíblia, todos os dias, antes de jantar,principalmente os versículos que falam da família!201
O exercício do poder voltado para a dominação dos copos não se
dá somente no âmbito da imposição irresistível do prestígio e dos
privilégios financeiros ou familiares, conforme vimos até agora. Muitas
vezes, aquele que se impõe é um membro da sociedade que, por sua
aparente ou esperada austeridade, se oculta sob a máscara da
insuspeição para realizar os seus intentos.
200 Esse fragmento é parte da análise de Casa-grande & senzala feita pelo historiadorRonaldo Vainfas apud. FREYRE, Gilberto, 2002, p.781201 RODRIGUES, Nelson, 1993, p.529
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210
No conto provençal “O padre amante”, Sade realiza uma
inteligente inversão de posicionamento de poder, o que nos mostra que
não é somente o dinheiro ou o jugo familiar que são responsáveis pela
conspurcação daqueles que deverão ser submetidos.
Um padre, que deseja sexualmente a mulher de um burguês
notadamente imbecil e ambicioso, lhe cede a possibilidade de celebrar
uma missa. O burguês, sem saber que, enquanto reza a missa, é traído
pelo insuspeito religioso em seu próprio lar, aceita a missão que lhe é
oferecida, posto que esse ato lhe dá o prazer de exercer uma atividade
proibida, reservada a uma classe à qual ele não pertence. Esses são os
ingredientes que, somados, criam a ambiência de uma narrativa onde o
gosto pela transgressão ultrapassa os limites das classes e
perversamente alcança espaços tradicionalmente sagrados.
Da mesma forma que em Les cent vingt journées de Sodome,
temos na caracterização isolada do local onde acontecerão os eventos
da trama, um microcosmo onde a transgressão é realizada a partir de
um desejo que, favorecido pelas predisposições locais, não se rende a
barreiras sagradas ou sociais.
202Entre la ville de Menerbe au comtat d'Avignon et celled'Apt en Provence, est un petit couvent de carmes, isolé,
202Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há umpequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint Hilaire, assentado no cimode uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio éaproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali,cada uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve sero grupo de pessoas que freqüenta essa casa. Tradução de Plínio Augusto Coelho e
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qu'on appelle Saint-Hilaire, assis sur la croupe d'unemontagne où les chèvres mêmes ont de la peine àbrouter; ce petit local est à peu près comme l' égout detoutes les communautés voisines de carmes, chacune yrelègue ce qui la déshonore, d'où il est aisé de jugercombien doit se trouver pure la société d'une telle maison:ivrognes, coureur de filles, sodomites, joueurs, telle est àpeu près la noble composition, des reclus qui dans cescandaleux asile, offrent à Dieu comme ils le peuvent descoeurs dont le monde ne veut plus.203
Um gosto claro pela transgressão vai semeando todo conto, que
não se limita à destruição da fidelidade matrimonial, mas se estende à
prática religiosa, conspurcada em suas peculiaridades mais básicas pelo
“padre” e pelo “burguês”, o que nos mostra uma especial predileção de
Sade pela degradação de atos sagrados.
204- Jerenidieu, dit Rodin, c' est que j'ai un appétitdévorant, encore deux heures sans déjeuner!-Et qui vous empêche de manger un morceau, tenez,voilà, de quoi.- Et cette messe qu'il faut dire?- Eh ventrebleu, qu'est-ce que ça fait, croyez-vous queDieu soit plus suillé en tombant dans un estomac plein quedans un ventre vide? Que la nourriture soit dessus ou
Alípio Correia de França Neto in SADE, Donatien. Contos libertinos. São Paulo: EditoraImaginário, 1992, p. 7203 Id. Historiettes, contes et fabliaux. Paris: Union Générale D'Éditions,1968, p.283
204- Pelos céus, - diz Rodin – é que tenho uma fome devoradora! ainda faltam duashoras para o almoço!- E o que vos impede de comer um pouco? Aqui tendes alguma coisa.- E a tal missa que é preciso celebrar?- Por Deus! o que há de mal nisso? Acreditais que Deus se há de macular mais caindonuma barriga cheia em vez de numa vazia? O diabo me carregue se não é a mesmacoisa a comida estar em cima ou embaixo! meu caro, se eu dissesse em Roma todasas vezes que almoço antes de celebrar minha missa, passaria minha vida na estrada.Além disso, não sois padre, nossas regras não vos podem constranger; ireis tão-somente dar certa imagem da missa, não ireis celebrá-la; conseqüentemente, podereisfazer tudo o que quiserdes antes ou depois, inclusive beijar vossa mulher, caso elaaqui estivesse; não se trata de agir como eu; não é celebrar, nem consumar osacrifício. SADE, 1992, p.14
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212
qu'elle soit dessous, que le diable m'emporte si ça n'estpas égal; allez, mon cher, si j'allais dire à Rome toutes lesfois que je déjeune avant que de dire ma messe, jepasserais me vie dans les chamins. Et puis vous asservir,vous n'allez donner qu'une image de la messe, vous n'allezpas la dire; par conséquent vous pouvez faire tout ce quevous voudrez avant ou après, baiser votre femme même sielle était là, il ne s'agit que de faire comme moi, il nes'agit pas de célébrer, ni de consommer le sacrifice. 205
A profanação geral das regras faz com que, no fim das contas, não
haja ofensor e ofendido, traidor ou traído, posto que ambos estão
totalmente imersos nas sombras prazerosas da transgressão. Se o
“burguês” é traído em sua confiança pelo “padre”, ele mesmo transgride
as regras da religião: ambiência que norteia tanto a fidelidade conjugal,
como a inalienação dos atos sacerdotais. Na verdade, o “padre”,
personagem mentor da inteligente inversão de poderes, soube criar uma
armadilha através da qual qualquer possibilidade de interdição aos
desejos pela esposa do “burguês” é desfeita.
O que lhes dá prazer, certamente, é a experimentação de algo
que lhes é tido como interdito. Ao toque irresistível do desejo, as
barreiras são acintosamente transpassadas. O padre experimenta a
conspurcação de seu próprio celibato, faz com que seus votos e
obrigações sacerdotais sejam apenas artifícios para atrair a curiosidade
do “burguês” e, por fim, rompe os laços de fidelidade matrimonial,
quando o seu dever seria o de aconselhar o casal a mantê-los
205 SADE, 1968, p.p 289/290
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firmemente. O “burguês”, por seu turno, ávido por experimentar
qualquer possibilidade de fruir de privilégios de outras classes – não é à
toa que o nobre Sade o retrata como inescrupulosamente ambicioso e
imbecil – não perde a oportunidade que lhe é oferecida: seu desejo é
gozar do prestígio, ainda que fugaz, da classe sacerdotal. Com isso, sua
ânsia por mobilidade social é inteligentemente ridicularizada.
206- Eh bien morbleu, eh oui, mignonne, répond le carme,en culbutant Mme Rodin sur son lit, oui, chère âme, j'aifait un prêtre de votre mari et pendant que le coquincélèbre un mystère divin, hâtons-nous d'en consommer unprofane.207
Dessa forma, podemos ver claramente equiparação das
conspurcações: a sensação desagradável do rompimento do tabu
religioso é paralela ao conluio sexual entre o padre e sua amante. Com
isso, o desagradável aflora a partir da constatação de que as
transgressões, a da fidelidade do padre aos seus votos e aos atos
sagrados da missa; a do compromisso da esposa com o casamento, que
se entrega alegremente aos desejos do padre, não tiveram nenhum
outro motivo senão o de atender a desejos sexuais que, na sociedade
ocidental, são tidos como baixos, animalescos. Tradição e transgressão,
pureza e concupiscência são confrontados e questionados – malgrado os
206 - Pelo sangue de Cristo, sim, mimosa – responde o carmelita, atirando a Sra. Rodinao leito – sim, alma pura! fiz de seu marido um padre, e, enquanto o farsante celebraum mistério divino, apressemo-nos em levar a cabo um profano... SADE, 1992, p.15207 Id., 1968, p.291
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214
valores tidos como socialmente positivos, que não admitem qualquer
relativização em seus conteúdos de verdade.
No fim do conto, Sade põe em xeque magistralmente o mistério da
concepção do próprio Cristo, através da comparação subliminar que a
mulher do burguês fez entre ela e a Virgem Maria, que recebeu a visita
do Anjo Gabriel (esse último é o nome do padre fornicador) que lhe
disse que estava a trazer em seu ventre o Salvador. Uma curiosa
relativização do dogma de que a Virgem Maria engravidou por obra do
Espírito Santo é insinuada e faz com que um espaço sobre o qual a
ideologia cristã vem, há muito, lutando para permanecer no âmbito do
espírito, contamine-se com o gosto pela transgressão através do desejo
carnal.
As “boas ações” que, aparentemente, são alardeadas expressam
máscaras de atos inconfessáveis. Por trás da pureza aparente há a
inegável realização da transgressão na realização do ato sexual e da
conspurcação do espaço destinado à celebração do sagrado.
208-Ah, mon ami, répond la viguère, il semblait que le cielnous inspirât, regarde comme les choses célestes nousremplissaient l'un et l'autre sans nous en douter: pendantque tu disais la messe, moi je récitais cette belle prière
208- Ah! meu amigo – responde a mulher – parecia inspiração dos céus! Observai deque modo nos ocupavam de todo, a um e a outro, as coisas do céu, sem que dissosuspeitássemos! Enquanto celebráveis a missa, eu entoava essa bela oração que aVirgem dirige a Gabriel quando este fora anunciar-lhe que ela ficaria grávida pelaintervenção do Espírito Santo. Assim seja, meu amigo! Seremos salvos, com todacerteza, enquanto ações tão boas nos ocuparem a ambos ao mesmo tempo.SADE,1992, p.16
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215
que la Vierge répond à Gabriel quand celui-ci vient luiannoncer qu'elle sera grosse par l'intervention du Saint-Esprit. Va, mon ami, nous serons sauvés à coup sûr, tantque d'aussi bonnes actions nous occuperont à la fois tousles deux.209
Na obra de Nelson Rodrigues, encontramos a possibilidade de
dessacralização e de conspurcação do ambiente religioso. Em Álbum de
família, a imagem do patriarca “Jonas” é confundida com a de Jesus,
onde alucinação, autoridade e desejo se misturam nesse caldo de
relativização de ícones sociais, como no caso da figura paterna e do
Salvador.
[...]Ilumina-se uma nova cena: interior da igrejinha local.Altar todo enfeitado. Retrato imenso de Nosso Senhor,inteiramente desproporcionado – que vai do teto ao chão.NOTA IMPORTANTE: em vez do rosto do Senhor, o que sevê é o rosto cruel e bestial de Jonas. É evidente que oquadro, assim grande, corresponde às condiçõespsicológicas de Glória, que vem entrando com Guilherme.Primeira providência de Glória: olhar para a falsafisionomia de Jesus. Caiu uma tempestade. Glória estáensopada e Guilherme também.) (Glória é umaadolescente linda.)GLÓRIA (com surpresa e certo medo – “Que dê” papai?Você não disse que ele estava esperando – aqui?GUILHERME – Vem já! Não demora!(Glória está diante do quadro, deslumbrada. Ajoelha-se ereza. Durante a reza, Guilherme, com a mão, esboça umacarícia sobre a cabeça da irmã, mas desiste em tempo.)210
Na verdade, a relativização de conteúdos sagrados através da
profana sexualização é um índice consideravelmente desagradável,
209 SADE, 1968, p.293210 RODRIGUES, 1993, p.545
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posto que é apresentado ao leitor através de imagens, cujos signos se
apresentam eminentemente conflitantes: seus significantes apontam
para conteúdos sagrados enquanto os seus significados estão, a todo
momento, denunciando sua formação basicamente desejante,
sexualmente ativa. Esse efeito é obtido de forma primorosa na inserção
da imagem de “Jonas” dentro de uma igreja e sob as hostes da
iconografia de Jesus. Com isso, sagrado e profano se encontram e se
entrechocam dentro do mesmo signo, da mesma imagem cuja
autoridade é inquestionável, a do pai e a de Jesus. Com isso, ambas são
postas em xeque, são reveladas em sua faces mais hediondas e não
menos poderosas, as que submetem o outro através do poder de
intervenção e sujeição.
Certamente, ícones sociais submetidos à revelação de seus
conteúdos de sexualidade imanentes demonstram a possibilidade de
conspurcação de espaços ou figuras que, dentro dos parâmetros da
cultura dominante, até então haviam se mantido longe que quaisquer
conspurcações.
No entanto, se buscarmos as relações de longa duração entre a
religiosidade e a sexualidade, veremos que, em nosso passado, essa
linha não estava tão delimitada como poderíamos imaginar. O
historiador Ronaldo Vainfas denuncia que o espaço da religiosidade
sempre esteve permeado pela sexualização de imagens sagradas,
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217
elemento constante em nossa cultura e que reaparece nessa peça de
Nelson Rodrigues sob a forma de ficção profundamente enraizada em
nosso imaginário cultural.
Erotização de Cristo ou de Maria, mistura do profano como sagrado, dos sentidos e fluxos do corpo com as coisas doespírito, eis o terreno em que se moviam, por vezes, asdefesas da fornicação no trópico.211
A prática de conspurcação do ambiente sagrado também se repete
em outros textos, como na deliciosa “Farsa Irresponsável” Viúva, porém
honesta, na qual a figura do padre é ridicularizada pelo “Dr. Lambreta”,
cuja obsessão é diagnosticar gravidez em quem lhe passar pela
frente212.
(Dr. Lambreta está auscultando o padre.)DR. LAMBRETA – Diga trinta e três!PADRE – Trinta e três.DR. LAMBRETA – Vai ter neném!PADRE – Quem?DR. LAMBRETA – Você!PADRE – Eu?PADRE – Mentira!DR. LAMBRETA (espeta-lhe o dedo na barriga) –Barriguinha de seis meses!PADRE (aos berros) – Não acreditem! Eu nunca
prevariquei!213
211 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.68212 Esse tema, Nelson Rodrigues o desenvolve no curioso romance A mentira inRODRIGUES, Nelson. A mentira: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,cuja trama gira em torno da gravidez de uma adolescente que mobiliza a famíliainteira e acaba por ser descoberta como falsa por conta da insanidade do médico que adiagnosticou.213 RODRIGUES, 1993, p.456
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218
Portanto, notamos que há aspectos de dessacralização de
personagens vistos como fundamentalmente positivos e pertencentes ao
contexto religioso tanto na obra de Sade quanto na de Nelson
Rodrigues.
Tais fatos alçam as obras à insofismável categoria do
desagradável, posto que criticam e relativizam imagens e costumes que
tendem a ser homogêneos, sem frestas ou sem atos reprováveis. No
entanto, é justamente por detrás dos véus de personagens e costumes
exemplares que esses autores encontraram temas para criarem a crítica
aos costumes e às idéias que, sem as suas obras, permaneceriam
inalteradas durante o decorrer dos séculos.
Lidar com textos que fazem parte do que comumente chamamos
de “literatura maldita” é confrontar, a todo tempo, a transgressão, o
transpassar de barreiras morais ou de costumes e crenças arraigados
nas mentalidades. No entanto, suas obras se mostram como
possibilidades de fruição de determinados conteúdos que notadamente
são proibidos ou até mesmo são vistos com desconfiança pelos órgãos
cerceadores dos comportamentos. Muitas vezes, essa é a única
possibilidade de lidar com a parte maldita do pensamento ou dos
costumes reprováveis da sociedade, nem que seja a custo de lidar com
a inevitável sensação desagradável que tais aventuras nos
proporcionam.
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219
Nelson Rodrigues e Franz Kafka: o desagradável poder
decadente.
Quand j’etais ecorre satisfait, je voulais être insatisfait et par tous le moyensdu siècle et de la tradition qui m’étaient accessibles, je me poussais dansl’insatisfaction: à present je voudrais pouvoir revenir à mon état premier.
Franz Kafka
Não há ninguém mais vago, mais irrelevante, mais contínuo do que o ex-ministro.
Nelson Rodrigues
A obra de Franz Kafka se caracteriza por apresentar ao leitor uma
angustiante reação aos parâmetros coercitivos da cultura. Nos
cadafalsos dos microcosmos fundamentados nas relações burocráticas, o
confronto do homem com o construto de poder formado ora pelo
Estado, ora pela justiça ou até mesmo pela família reduz o indivíduo a
uma permanente impotência diante dessas instâncias que, em sua obra,
aparecem como cerceadoras e crudelíssimas. O resultado é uma
literatura que vai fornecer ao leitor uma série de índices do
desagradável, a partir do momento no qual a fruição da obra arremessa
o leitor, malgrado sua vontade, a um universo no qual a inexistência é a
recorrente possibilidade que resta aos protagonistas de sua nauseante
literatura.
Os mecanismos de poder – sejam aqueles constituídos por
aparelhos burocráticos ou até mesmo corporificados numa máquina de
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220
execução, como veremos na análise do conto a seguir –, quando
impostos ao indivíduo, geralmente não lhe deixa outra possibilidade que
não a da morte, posto que o sistema opressor é responsável não só pela
pedagogia que submete, mas por tornar qualquer singularidade frágil e
submissa aos trâmites de um poder inexorável e despótico.
Esse efeito sufocante que a cultura – revestida, nesse caso, de
todos os seus artifícios de dominação e sujeição – possui sobre os
indivíduos também não é, de todo, passível de apresentar as suas
falhas, suas frestas, o que redobra o poder de ser desagradável àqueles
que, normal e docilmente, costumam se submeter aos seus ditames. Ao
demonstrar a decadência do poder, o leitor vê-se diante da possibilidade
de relativizar os seus próprios constructos internos que estão, a todo
momento, a se conformar e a se readaptar às violências simbólicas que
norteiam e dirigem os comportamentos.
Por isso, mais do que simplesmente apresentarem instâncias
tradicionalmente vistas como positivas ou negativas, as obras de Franz
Kafka primam por semear o desagradável em seus textos ao colocar em
xeque a relação do indivíduo com seus próprios mecanismos de sujeição
a ditames que, não fosse a leitura dessas obras, permaneceriam
homogeneizados e insuspeitos. Por demonstrar essa possibilidade de
desvelamento, sua literatura revela as falhas onde a tradição quer
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221
representar a pantomima da legitimidade da imposição de uma
dominação perene e incontradita.
Sua literatura não está somente voltada para a denúncia de
potencialidades que consomem indivíduos e individualidades, mas para
o retrato dos conflitos que surgem do confronto entre seus personagens
e as diversas “máquinas” que compõem a burocracia estatal, cujos
meandros são tão complexos e inaccessíveis que repetidamente exilam
aqueles que, de alguma forma, não fazem parte de seu corpo.
Dessa feita, muitas vezes os seus personagens estão diante de
incognocíveis meandros, cujas aparentes soluções apresentam somente
um caminho a mais a ser percorrido inutilmente dentro dos labirintos
intestinos que usualmente compõem suas tramas, como podemos
perceber em romances como O castelo e O processo. Outras, Kafka cria
um personagem, como no caso da transformação grotesca do homem
em um inseto, que desvela a redução do indivíduo a níveis de sub-
humanidade por simplesmente não poder coadunar com os pactos
sociais de manutenção da célula mater das sociedades, a família.
Longe de suscitar na família os cuidados que somente a
compaixão poderia evocar, “Gregor Samsa” é vítima da indiferença e da
agressividade domésticas que tornam a sua vida impossível, seja entre
os seus ou em qualquer outro lugar. Esse conto nos mostra que a
família, ao mesmo tempo que garante a vida dos indivíduos, pode ser
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222
profundamente cerceadora quando o sujeito, de alguma forma, torna-se
diferente dos padrões esperados. A literatura de Kafka age de forma a
denunciar o lado obscuro dos pactos sociais, vistos normalmente como
mantenedores da vida.
No entanto quando a sua literatura denuncia que os artifícios de
submissão dos corpos e mentes, capazes de esmagar as subjetividades
desviantes, estão em decadência, máquina formidável e gasta pelo
tempo e pelo descaso de uma administração que não mais se preocupa
com a sua manutenção, mais uma face do desagradável é exposta. O
poder, que se reatualiza para otimizar sua eficácia, deixa para trás os
mecanismos que não mais possuem serventia. Com isso, o grotesco se
abre em formas estranhamente patéticas, autofágicas: em sua ânsia de
submeter, acaba por ser instrumento contra os seus próprios asseclas.
No conto “Na Colônia Penitenciária”, um surpreendente aparelho
de execução é exposto a um viajante: uma curiosidade a ser apreciada
por um olhar nem sempre atento ao que lhe é apresentado. O trabalho a
ser realizado pela máquina é escrever, com milhares de agulhas, na
carne do condenado, uma sentença que esse desconhece. Essa ação é
realizada com refinado aprofundamento na carne, durante horas,
através de uma inscrição cada vez mais funda, repetidamente, com os
floreios dignos dos labirintos kafkianos, até que a vítima – conhecedor,
em seu próprio corpo, da verdade de sua condenação e extinção –, no
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223
ápice de seu martírio, finalmente encontra a morte através das agulhas
do engenho.
Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a trêscritérios principais: em primeiro lugar, produzir umacerta quantidade de sofrimento que possa, se nãomedir exatamente, ao menos apreciar, comparar ehierarquizar; a morte é um suplício na medida emque ela não é simplesmente privação do direito deviver, mas a ocasião e o termo finas de umagraduação calculada de sofrimentos: desde adecapitação- que reduz todos os sofrimentos a um sógesto e num só instante: o grau zero do suplício - atéo esquartejamento que os leva quase ao infinito,através do enforcamento, da fogueira e da roda, naqual se agoniza muito tempo; a morte-suplício é aarte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em"mil mortes" e obtendo, antes de cessar a existência,“the most exquisite agonies."214
A descrição do aparelho é feita criteriosamente pelo oficial
encarregado da execução, com as minúcias e complexidades que tão
bem caracterizam o texto kafkiano.
- É, rastelo – disse o oficial. – O nome combina. Asagulhas estão dispostas como as grades de umrastelo e o conjunto é acionado como um rastelo,embora se limite a um mesmo lugar e exija muitomais perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo.Aqui sobre a cama coloca-se o condenado. Quero, noentanto, primeiro descrever o aparelho e só depoisfazê-lo funcionar eu mesmo. Aí o senhor poderáacompanhá-lo melhor. No desenhador há umaengrenagem muito gasta, ela range bastante quandoestá em movimento, nessa hora mal dá para
214 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p.31
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224
entender o que se fala; aqui infelizmente é muitodifícil obter peças de reposição.215
A máquina, outrora esplendorosa executora a serviço de um
sistema judiciário e penal implacável e soberano, é apresentada ao leitor
como um objeto decadente, superado pela gestão do novo
“comandante”. O “oficial” que é encarregado das execuções, como
também da manutenção do aparelho, é o último representante de uma
elite que desfrutara do poder quando da vigência do antigo regime. A
todo momento, a passagem e a decrepitude de um poder superado são
anunciadas.
A máquina, polida pouco antes, resplendia;praticamente a cada execução eu dispunha de peçasnovas. Diante de centenas de olhos – todos osespectadores nas pontas dos pés até aquela elevação– o condenado era posto sob o rastelo pelo própriocomandante. O que hoje um soldado raso pode fazer,era naquela época tarefa minha, presidente dotribunal, e ela me honrava. E então começava aexecução!216
No entanto, apesar de decadente, o sistema continuou a agir.
Nesse microcosmo onde o condenado não tem nem mesmo a ciência de
seus crimes, a sentença, revelação a ser conhecida em sua própria
carne, é o que caracteriza a pedagogia da punição e da execução, da
qual a máquina é o instrumento. Após inscrever-se na carne do
215 KAFKA, Franz. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.9216 KAFKA, 1996, p.28
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225
condenado, já não há mais possibilidade de existência para ele. O
indivíduo é a sentença, posto que a lei opressora está inexoravelmente
inscrita em seu corpo. Ao percebê-lo, não há mais possibilidade para a
vida: da mesma forma que a escrita da sentença conduz ao insight, ela
é a própria morte no aparelho de execução.
- Nossa sentença não soa severa. O mandamento queo condenado infringiu é escrito no seu corpo com orastelo. No corpo deste condenado, por exemplo – ooficial apontou para o homem – será gravado: Honrao teu superior!217
Por tentar se manter, o poder fará o que for necessário para que
continue a resistir à passagem de sua gestão. Na verdade, o que o
“oficial” deseja é fazer com que o “explorador” se pronuncie a favor de
um sistema penal que, incluindo a máquina, é absurdamente despótico,
mesmo em uma Colônia Penitenciária. O “explorador” se recusa a dizer
qualquer coisa a favor desse sistema e, com isso, nada mais resta ao
“oficial” do que imolar-se na máquina que ele mesmo defendeu e
manipulou. A lógica do poder à qual ele mesmo pertencia o empurra ao
mesmo tipo de execução que antes promovera aos condenados. Em sua
carne, a máquina escreverá mais uma sentença.
- Seja justo, é o que consta aqui. Agora o senhorcertamente consegue ler.
217 Ibid., p.13
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226
O explorador se inclinava tanto sobre o papel que ooficial o colocou mais à distância com medo docontato; o explorador na verdade não disse maisnada, mas era evidente que continuava nãoconseguindo ler.- Seja justo, é o que consta aqui – disse outra vez ooficial.- Pode ser – disse o explorador – acredito que sim.218
Na execução do “oficial”, a máquina curiosamente parece
obedecer-lhe as ordens. Ao fazer parte do corpo do condenado, a
sentença é inscrita pelo engenho no corpo do “oficial”. A fusão
completa-se: a máquina e o “oficial” tornam-se apenas um. Esse último,
despido totalmente de sua subjetividade, revela-se como mais um
mecanismo do aparelho. Por isso é que o seu fim marca também o fim
da máquina. Ao lidar com seu último condenado o engenho de execução
se autodestrói, negando ao “oficial” a revelação da lei através de sua
carne.
Ao não inscrever a sentença no corpo do “oficial”, a máquina, em
sua lógica retilínea, desvela o engodo que cobriu aquele sistema penal,
onde uma simples acusação implicava em condenação, sem passar por
nenhuma instância na qual o condenado poderia se defender. O “oficial”,
juiz e executor desse sistema, queria ter, inscrito em sua carne, a
sentença: “Seja justo!” Por esse mesmo motivo, ao não inscrever, a
máquina deixa subentendida a cruel injustiça daquele sistema despótico.
218 KAFKA, 1996, p. 41
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227
O explorador, ao contrário, estava muito inquieto;obviamente a máquina estava se destroçando; seuandamento tranqüilo era um engano; ele tinha osentimento de que agora precisava se ocupar dooficial, já que este não podia mais cuidar de simesmo. Mas enquanto a queda das engrenagensexigia toda a sua atenção, ele havia deixado deobservar o resto da máquina; entretanto, depois quea última engrenagem tinha saído do desenhador, elese inclinou sobre o restelo e teve uma nova surpresa,ainda pior. O restela não estava escrevendo, só davaestocadas, e a cama não rolava o corpo, apenas olevantava vibrando de encontro às agulhas. Oexplorador queria intervir, se possível fazendo oconjunto parar; já não era mais uma tortura, comopretendia o oficial, e sim um assassinato direto.219
Dessa forma, esse interessante conto nos revela uma série de
traços importantes sobre o que poderia ser chamado de um duplo do
desagradável: o primeiro sentimento reside no fato de ser mostrado o
despotismo de uma força que é exercida de forma brutal no homem,
bem à moda dos sistemas penais antigos na Europa, cujas sentenças
revelavam um poder que deveria ser exercido explicitamente no corpo
do condenado, para caracterizar o que denominamos de uma pedagogia
do sofrimento, na qual os crimes eram violentamente punidos através
da execução pública.
Por outro lado, esse conto nos mostra uma outra face, talvez até
mesmo mais perversa, do desagradável: através da fresta, da falha
revelada por um poder que retualiza seus mecanismos de sujeição dos
219 KAFKA, 1996, p.47.
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228
corpos, esse último revela a sua face mais hedionda, a perene e surda
manutenção de sua força, apesar da aparente mudança ou humanização
de seus meios.
Quando determinados mecanismos de sujeição são abandonados,
com eles vão todo o ideário que os acompanhava: subitamente despido
da capa de legalidade que possuíra. Com isso, o que passa a ser
questionado não é mais o modelo de sujeição, mas o construto
ideacional que, feitas algumas correções históricas, é mais ou menos
igual ao anterior: as formas de sujeição mudam, mas a vontade de
submeter permanece inabalável, malgrado o passar dos tempos. Esse é
o fundamento do duplo desagradável, posto que revela a obscura força
que permanece por detrás dos meios de sujeição, apesar da aparente
mudança dos meios de sua realização. Por isso, o efeito que há naqueles
que normalmente entendem as forças de sujeição e de norteamento
sociais como mantenedores dos laços de coesão entre os indivíduos é a
revelação de que somos expostos a instâncias aparentemente positivas,
mas que guardam intestinamente uma vontade de submissão que pouco
tem a ver com sua aparente legitimidade social e muito compactua com
a reafirmação, através da História, de poderes inexoravelmente
despóticos, cuja vontade de punir e de submeter permanece viva,
pulsante, bárbara em sua essência, apesar da capa de legitimidade e de
civilidade com a qual os novos tempos se apressam em cobri-la.
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229
Mas o corpo também está diretamente mergulhadonum campo político; as relações de poder têmalcance imediato sobre ele; elas o investem, omarcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no atrabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhesinais.220
Na obra de Nelson Rodrigues, o desagradável se dá - em
considerável parte - sob o estigma de um poder simbólico que se mostra
atuante, mas que se põe em rota direta à desaparição. Esse poder
apresenta-se relacionado geralmente a um modelo tradicional que não
mais se sustenta devido a fluidez das relações entre os personagens.
Por conta disso, o desagradável é inserido a partir da relativização de
conceitos e relações antes estabelecidas em seu conteúdo formalmente
tradicional.
A sua obra está a apontar recorrentemente que a subjetividade
de seus personagens é inimiga dos modelos que eles tentam
pateticamente seguir. Eles seguidamente fracassam, posto que não
conseguem sustentar a tensão que não admite a mínima flexão ou
reflexão sobre suas formas de imposição e cerceamento. Assistimos a
um jogo no qual o poder dos discursos totalitários, das idéias
cristalizadas é posto em xeque graças ao caminho conflituoso de seus
personagens.
220 FOUCAULT, 1987, p.25
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230
Em Dorotéia, temos a consciência de um poder simbólico que vai,
no decorrer dessa "farsa irresponsável", tornando-se insustentável. A lei
que se impõe às mulheres da família é a da "náusea" que lhas impede
de ver ou fruir a figura masculina. Esse verdadeiro estigma que se
configura como uma característica identitária nas mulheres desse clã
chamaremos de erotismo da negação do desejo, o que transforma suas
existências num deserto sem sonhos.
D. FLÁVIA (num crescendo) - Só falas em quarto! Emsala nunca! (aproxima-se de Dorotéia que recua) aquinão temos quartos!(a palavra quarto obriga as viúvas a cobrirem-se como leque, em defesa do próprio pudor.)D. FLÁVIA (dogmática) (sinistra e ameaçadora) -Porque é no quarto que a carne e a alma seperdem!...Esta casa só tem salas e nenhum quarto,nenhum leito...Só nos deitamos no chão frio doassoalho...CARMELITA (sob a proteção do leque) - E nemdormimos...MAURA (num lamento) - Nunca dormimos...D.FLÁVIA (dolorosa) - Velamos sempre...para que aalma e a carne não sonhem...221
Ao não mais poder sustentar a lei da náusea, resultado da herança
hedionda da traição ao amor cometida pela bisavó, as irmãs de “D.
Flávia” vão se deixando levar para a outra margem do desejo. Passam a
almejar a figura masculina, ainda que lutem desesperadamente por se
221 RODRIGUES, Nelson. Teatro completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1993, p.634
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231
manterem fiéis aos desígnios de horror e nojo da família. É esse fato
que as leva à morte.
A simples presença do noivo de “Das Dores” naquela casa, as
corrompe totalmente. “Eusébio da Abadia”, genialmente representado
apenas por um par de botas desabotoadas, deflagra um movimento que,
na verdade, terminará com toda a “farsa” da náusea até então
desesperadamente defendida. Elas passam a ver o objeto (as botinas)
que representa a figura masculina.
DAS DORES – Por que mentes, mamãe?D. FLÁVIA – Minto sim....eu vejo e não queria... sãomeus olhos que não me obedecem mais... vêemcontra a minha vontade...MAURA (sempre por detrás do leque) – Antes nãovíamos nada... coisa nenhuma...CARMELITA (sempre por detrás do leque) – Eu não vimeu marido... deitei-me e não o vi... tive a náuseasem vê-lo...222
A mulher que possui maior força naquela família é “D. Flávia”. É
através dela que as suas irmãs encontram a morte. Essa morte ocorre
porque a visão de qualquer objeto que se lhes afigure como índice de
masculinidade ocasiona-lhes o desejo com o qual verdadeiramente não
conseguirão existir, posto que se consideram fadadas à náusea: traço
identitário que as mantêm unidas e que, na verdade, alimenta as suas
vidas em comum.
222 RODRIGUES, 1993, p.649
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232
É conveniente notarmos que a casa de “D. Flávia” existe em torno
de um ideário construído a partir desse traço de identidade comum.
Quando esse pacto se torna impossível, quando a máscara desse poder
é revelada como inútil, o que se apresenta é o desmoronamento de toda
aquela estrutura, que foi cuidadosamente construída por todas as
mulheres “honestas” daquela família (a personagem “Dorotéia”, por sua
capacidade de reconhecer a figura masculina desde tenra infância, é
elemento destoante nesse clã. Seu destino é o da prostituição, pólo
oposto da negação obsessiva de qualquer sexualidade). “Maura” é a
primeira a cair sob as hostes do desejo representado pelas botinas de
Eusébio.
MAURA (soluçando) – Juro que queria odiá-las e nãoconsigo... ou esquecê-las...mas não posso... queriaestrangulá-las, assim , com as minhas própriasmãos...porém sinto o que nunca senti...ensina-meum meio de esquecê-las e para sempre... de nãopensar nelas... (lenta) E se, ao menos, eu não asvisse desabotoadas... (num lamento) como podereiviver depois que as vi desabotoadas?223
“D. Flávia” mata simbolicamente as duas irmãs, que deixam de
existir por conta da última promessa que a representante maior da
náusea lhes faz: a morte é a único lugar onde o desejo não alcança. É
esse o deserto em que “Carmelita” é exilada.
223 RODRIGUES, 1993, p.651
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233
D. FLÁVIA – Grava na tua agonia estas minhaspalavras...Estou apertando, mas não o bastante parperderes os sentidos... Tua morte será um deserto debotinas... Não verás um único par na eternidade... Eagora morre assim, morre...224
A responsável pela destruição desse clã é, na verdade, “Das
Dores”. É ela quem rompe com o pacto familiar e se nega
peremptoriamente a encenar a farsa da náusea, religiosamente
encenada por toda a sua família. Essa personagem, na verdade,
representa a esperança de continuação daquele poder de agregação e
identidade familiares, mas que não é mais possível. Ela é a marca da
impossibilidade desse poder, da decadência inexorável do elo que, por
gerações, unira as mulheres daquela família. Nelson Rodrigues, por isso
mesmo, a constrói como semi-existente. Natimorta, a única razão de
sua existência havia residido na possibilidade de manter o pacto
familiar.
Ao se recusar a cumprir a sina da família, “D. Flávia” revela à sua
filha que ela nascera morta e que, por esse motivo, não poderia
sustentar por mais tempo o seu amor por “Eusébio da Abadia”. Ao
revelar a sua condição, “D. Flávia” lhe explica.
D. FLÁVIA – Tu não podias ser enterrada antes danáusea, sem teres tido a náusea... A família esperava
224 Ibid., p. 652
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que, na noite de núpcias, tu a sentisses... Então,voltarias para o teu nada, satisfeita, feliz... Dirias:“Que bom eu ter nascido morta! Que bom eu ternascido de cinco meses... Antes assim!” Mas nãoaconteceu nada na tua noite de núpcias...[...]”225
Ao saber dessa estranha revelação, “Das Dores” retorna ao útero
materno, com a promessa (na verdade, uma maldição destinada à mãe)
de nascer e crescer como uma mulher. A maternidade representa o
último golpe para que “D. Flávia” caia no mundo da feminilidade ativa,
em seu desejo pela masculinidade representada pelo par de botinas
desabotoadas.
D. FLÁVIA – Minha filha é, de novo, minha carne eminha alma...Quer que eu tenha pensamentos... Eque tudo em mim sonhe...226
Está quebrada inevitavelmente a força de agregação desse poder,
o poder que constituía-se através da negação do desejo e, por isso
mesmo, acaba por decretar a morte daqueles que viviam sob essa
forma de identidade, quase que espelhos a repetirem infinitamente o
mesmo pacto através das gerações.
A decadência desse poder, que se configura como o lado positivo
da negação do desejo como exemplário da mulher honesta, duplo
oposto da prostituta representada por “Dorotéia”é o que aproxima essa
narrativa da que analisamos acima, a de Kafka.
225 RODRIGUES, 1993, p.661226 Ibid., p.665.
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Ambos textos abordam esquemas diversificados de configuração e
apresentação do poder: o primeiro, um poder decadente, que não mais
é exercido nos corpos passa revelar, com sua agonizante desaparição, o
perene ideário de submissão dos corpos que está por detrás dos
sistemas penais, sejam eles os antigos, cruéis e sofisticados em sua
pedagogia do sofrimento, ou os mais contemporâneos que, apesar de
toda a sua capa humanitária, continuam a manter a mesma forma
original de dominação do indivíduo através da dominação e submissão
dos corpos; o segundo, a representação de um poder identitário que,
laço organizador que configura o perfil das mulheres de uma família
como honestas, pudicas, exageradamente contra qualquer manifestação
do desejo, vai se desagregando a partir do momento no qual a figura
masculina, representada por um par de botinas, é inserida na trama
dessa farsa.
No entanto, o que une esses textos de forma indelével é o efeito
desagradável que eles propiciam através não só da apresentação e
representação de instâncias de poder esmagadoras e cerceantes dos
corpos e vontades, mas de justamente ambos os autores apresentarem
essas distintas formas de poder como apavorantemente decadentes,
provocando no leitor o efeito do duplo desagradável.
Se dele já o falamos quando concernente a “Na Colônia Penal”, em
Dorotéia, o duplo efeito desagradável está no fato de que existe, por
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detrás do pano angustiante da náusea, uma ideologia que aponta a face
positiva da negação da sexualidade pelo feminino. A mulher pura,
representada por “Das Dores”, a viúva corretíssima e assexuada,
representada por “D. Flávia” e suas irmãs e, finalmente, a prostituta que
deseja se redimir através da supressão e da negação de toda a sua
feminilidade transgressora fazem parte de um ideário que permanece
em nossas mentalidades ainda como positivos. A mulher ainda tem, em
sua sexualidade, malgrado os tempos que avançam inexoravelmente
no sentido de libertá-la, o cadinho de seus pecados, de sua queda.
“D. Flávia” e “Dorotéia”, a primeira condenada a desejar e a
segunda imersa em chagas destruidoras de qualquer traço de beleza, de
feminilidade – com a insidiosa presença o desejo – apodrecem. Juntas.
Conclusão
Amigos, eis uma verdade eterna:- o passado sempre tem razão.
Nelson Rodrigues.
Ao contrário do que normalmente se pensa, não visitamos o
passado somente para deixar de repetir os mesmos erros no futuro,
mas para que entendamos que os fios que nos atêm ao tempo não
podem ser desfeitos simplesmente quando viramos as costas para o
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pretérito e esperamos, no vazio do porvir, uma resposta que nunca virá.
O tempo decorrido, apesar de estar inexoravelmente afastado de nós
pelo movimento contínuo das horas e dos séculos, nos é distante
somente em sua perspectiva linear e acumulativa. Por mais que
tentemos nos desvencilhar do peso inexorável de sua órbita em espiral,
tornamo-nos quotidianamente cúmplices de suas artimanhas, vemo-nos
em situações nas quais somos títeres guiados por suas mãos invisíveis e
seguras.
Se tais forças não podem ser vistas a olho nu, seus efeitos são –
ao contrário – facilmente apreciáveis. A todo tempo, o drama humano
está a se repetir indefinidamente. Traições, sagrados enlaces, palavras
de fidelidade, rituais estranhos e admiráveis são usados – com a
roupagem que a contemporaneidade lhes confere – para entrecortar os
mesmos desejos, aplacar ódios e domesticar os amores de sempre. A
sensação que resta é que o que direciona os nossos desejos, nossos
impulsos mais íntimos possui uma tensão que consegue sobreviver ao
acúmulo das horas e à sucessão das gerações. As linhas responsáveis
pelas relações intermitentes de poderios seculares apresentam-se pouco
ou nada mudadas através de tradições similares, pouco ou nada
essencialmente modificadas no decorrer do tempo.
Quanto ao passado, da mesma forma que estamos usualmente a
tentar fechar os olhos às suas peripécias, buscamos os modelos que ele
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guarda com uma paixão que, se confessada, nos faria corar.
Tradicionalmente, o que ostentamos – orgulhosos – como novo, tem
sido um redimensionamento de tendências ou atitudes que pertenceram
às gerações anteriores e que trazemos ao presente com uma roupagem,
um adereço, uma linguagem singularmente trabalhada, mas, em sua
essência, antiga.
Apesar de nossa aparência contemporânea, de nossos brinquedos
tecnológicos, de nossa arrogância pós-moderna, agimos – em muitos
momentos – como nossos antepassados. Eis o paradoxo de nossa
civilização: quanto mais arremessamos as nossas esperanças ao futuro,
mais nos aprofundamos nos signos indeléveis de nossa barbárie
essencial. Esse aparente paroxismo tem sido essencialmente o nosso
caminhar desde o início da Era Moderna. A partir daí, assistimos a vários
“renascimentos” de culturas arcaicas, chafurdamos nos tomos
intermináveis, alimentamo-nos, ávidos, da poeira vinda de compêndios
antigos, disputamos – com os ratos e as traças – as fórmulas, os
vaticínios, as apologias que “deveriam” nos arrancar, de vez, de nosso
ninho de ignorância e escuridão e nos “arremessariam” às utópicas
paisagens de civilizações que, se fossem, por um passe de mágica,
totalmente recuperadas, jamais corresponderiam aos nossos sonhos.
Devemos entender o quanto o peso das tradições há em nossos
passos, o quanto repetimos as mesmas angústias e as mesmas
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miserabilidades daqueles que já se foram. Acaso em nosso tempo não
há moléstias que – como as dos antigos – assaltam o nosso sono? Acaso
esses inimigos invisíveis foram totalmente derrotados ou aqueles que se
submeteram à força destruidora do nosso intelecto foram substituídos
por outros muito mais capazes e mais malignos para o nosso corpo? Se
a peste deixou de ser uma sombra tão aterradora em nossas vidas – a
guerra foi, para sempre, destituída de nosso quotidiano? Por acaso, a
fome deixou de ceifar, com sua hedionda foice, todos aqueles que não
tiveram a sorte de nascer num país ou sob uma guarda que proteja os
seus cidadãos ou os seus filhos? Os quatro cavaleiros do apocalipse –
antes de serem inimigos – não são produzidos pelas mesmas civilizações
que eles têm incessantemente buscado destruir?
De forma certeira e implacável todas as promessas da civilização
foram caindo diante de nossos olhos, todas as esperanças foram
desfeitas nos nós do poderio, dos privilegiados, daqueles que possuem
uma força maior para submeter os homens. E, na verdade, se os
homens que se mantêm no poder têm perecido sob o peso das
sucessivas gerações, as forças que os sustentam através dos séculos
não têm sido efêmeras.
O movimento do passado que se refaz sob os adereços do
presente, de tradições que se escondem sob a capa do que é
aparentemente novo, é um dos pontos fundamentais sobre o qual a
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literatura atua, posto que ela não está voltada em sua essência para as
vestes, para a superfície, para as aparências que se vão com as modas,
mas para a ação dos homens. É nesse contexto, possuidor de um
desenvolvimento consideravelmente mais lento, que os homens vêm a
atuar de forma bastante semelhante, posto que os desejos –
basicamente os mesmos – têm estado presentes no cerne das tramas e
enredos literários e em nosso espírito desde os tempos imemoriais.
Por esse motivo, rever o passado é entender as relações dos
tempos pretéritos em contínua permanência ou ruptura com o presente.
Caminharemos cegos enquanto não entendermos a dimensão de nossa
própria desilusão, acreditaremos em fórmulas e conceitos salvadores
que nos levarão do êxtase ao mais profundo abismo do qual, cada vez
mais, custaremos a sair. Repetiremos as mesmas palavras,
condenaremos os mesmos réus e ajoelharemos diante dos mesmos
deuses enquanto não entendermos a permanência de conceitos e
conflitos essenciais que sobrevivem ao avançar dos séculos.
Seremos verdadeiramente melhores enquanto os desejos vis, a
carne fraca sob a tênue têmpera nos levar, qual diminuta nau em mar
bravio, através de todos os recantos nos quais jamais conheceremos
descanso – haverá um momento no qual o homem se comportará,
impassível, diante de um insidioso poder a lhe corromper um pouco
mais a cada dia, a se mostrar cada vez mais dócil aos seus desejos
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secretos, a lhe oferecer constantemente tudo aquilo que aos outros é
normalmente vedado?
Não fosse a literatura, a capacidade de reestruturar a perene
dialogia do signo lingüístico, essas e outras tantas perguntas restariam
sem resposta. Caminharíamos entre nossos pares a repetir
incessantemente a mesma história, os mesmos gestos e sinais. O
sentido que damos aos acordos e desacordos, aos conflitos com os quais
lidamos em nosso presente só é possível porque, de algum modo,
conhecemos as suas especificidades, intuímos que a tradição de seu
poderio é muito mais profunda do que poderíamos imaginar.
O signo lingüístico do texto literário possui a marca da
plurissignificação não somente porque o presente nos oferece os meios
para a compreensão dos símbolos e das alegorias que ele constrói, mas
porque, ao mesmo tempo, nos desperta para questionamentos e
tensões em diacronia que, sem o seu auxílio, permaneceriam totalmente
submersos entre as práticas quotidianas. Tais questionamentos nos
colocam diante dos enlaces, das perfídias, dos mascaramentos de
poderios que nos permeiam agora porque estiveram indelevelmente
incrustados nas relações sociais desde há muito.
A literatura não busca repetir, mas trabalhar incessantemente com
os paradigmas através dos quais nós revemos os percursos, os
interesses que se cruzam na existência de personagens que vêm a
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242
realizá-los de forma similar: eis aí o nosso horror, mas também o nosso
alumbramento. Pouco ou nada mudamos em nossa essência, apenas
nossas representações dos mesmos medos de sempre é que se
transformaram ao longo dos séculos.
Pensamos viver desvinculados de nossas tradições, de nossas
raízes, de nossos antepassados e, talvez, seja esse o motivo de nossa
tragédia cotidiana. O que nós não conseguimos esconder ou esquecer
tem voltado para nós sob a forma de espectro a nos perguntar, a nos
inquirir, a revelar traços de similitude de ações que, de tão óbvias,
tornam-se sumamente desagradáveis.
Suas marcas são parecidas conosco. Daqui a algum tempo,
seremos nós a assombrar os cegos do futuro. Assim, nada mais antigo
do que o novo, do que estar sempre à espera de alguma solução
miraculosa para os problemas de sempre.
O poder exige a submissão, exige a eternização, a teatralização de
atos, a sacralização das palavras, a ossificação de idéias. Talvez seja
esse o papel mais importante do estudioso: fazer com que essas linhas
meticulosamente escondidas por detrás das palavras e dos atos dos
homens se tornem aparentes, se movam de forma a revelar o quanto
somos condicionados por ecos, fragmentos de vozes, mandos, tensões
que acreditamos que foram para sempre esquecidas.
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243
Esses construtos nos levam, cegos, a um labirinto e sob constante
vigilância. À medida que nos aproximamos da saída, angustiados, somos
recolocados no centro. Infinitamente. À noite, rezamos para os deuses
que nos aprisionaram: à espera que eles nos libertem.
Por esse motivo é que devemos questionar o passado, sem que
pareça que os ecos do pretérito estejam para sempre distantes de nós.
Ao contrário, eles estão muito mais perto do que imaginamos. Basta
olhar, pensar, perceber o que a obra de arte está a todo tempo a nos
dizer: as estruturas fundamentais continuam as mesmas, as alegorias
somente escondem formas de poderio que lutam eternamente sob os
auspícios de nossos olhos complacentes.
A todo momento, a morfologia, a sintaxe, a estilística nos obrigam
a estruturar nosso pensamento através de fórmulas pré-estabelecidas,
elaborações que nasceram – além da vontade intrínseca de exprimir um
sentimento ou idéia – originalmente da apresentação de construtos nos
quais relações tradicionais de poder estão incrustadas de tal forma que
as repetimos inconscientes do quanto contribuímos para a manutenção
de controles que normalmente repudiaríamos.
Muitas vezes, a literatura nos mostra como escapar dos ditames
coercitivos da linguagem, instrumento de fórmulas tradicionalmente
repressoras e totalizantes e criar instrumentos de flexibilização e de
contestação desses tradicionais construtos.
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244
No movimento de leitura do texto literário, nos identificamos ou
repudiamos os conteúdos que estão no texto porque os pontos feridos
ou agraciados com o espelhamento simples ou com o deformador não
estão fora de nós, mas permanecem em nossas mentes, em nossas
emoções, despertam os nossos demônios ou açulam nossos anjos
interiores. Aí é que estão as raízes dos textos desagradáveis tanto de
Nelson Rodrigues, de Kafka, de Baudelaire, Emile Brontë e de tantos
outros autores considerados malditos. Através desse doloroso
movimento é que compreendemos as linhas de força que norteiam a
nossa cultura e que, sem os seus textos, seriam-nos totalmente
vedados.
A maioria de nós gosta ou desgosta de certas obras porque fomos
criados sob os ditames de uma estética e de uma ética nas quais o bem
e o mal, o bom e o ruim, o belo e o feio estão secularmente solidificados
em nós, a ponto de simplesmente nos escapar o crivo firme e
indiscutível entre a nossa vontade pessoal e as forças sociais que regem
os gostos e as escolhas.
É por esse motivo que necessitamos da força transformadora da
arte, posto que o objeto artístico possui o potencial de despertar em nós
o incômodo movimento da mudança de padrões, de gostos, de usos e
costumes. O espelho da arte invertido, transformador, sutilmente
rearranjado em seus mínimos detalhes dispõe figuras, revela forças que,
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245
antes, transitavam pacificamente em torno de nós. Agora, (re)dispostos,
nos causam asco; são desagradáveis e, por isso, repudiamos a nossa
cumplicidade com seus ditames, vemo-nos traídos por suas palavras
revolucionárias, brandimos diante deles nossas velhas bandeiras onde o
bem e o mal ocupam os seus lugares, comportados, sempre em
tranqüilizadora oposição.
O gênio criativo que usa a força transformadora da literatura deve
ser entendido em suas claras e devidas proporções. Sua obra é o
produto no qual a novidade é advinda da reconfiguração de construtos
presentes no tempo no qual o autor está a passar. No entanto, qualquer
momento histórico guarda, em seu interior, resquícios, pistas,
fragmentos do passado, de usos, costumes e idéias que – transformados
superficialmente pela contemporaneidade – sobreviveram até aquele
instante no qual o autor compôs o seu texto. O resultado de seu
trabalho, a obra literária é, em última instância, a representação de uma
série de elementos presentes em nossa cultura que, reconfigurados,
recolocados em posição de tensão ou de serena continuidade nos
apresentam a forma fresca e rejuvenescedora da novidade.
É por esse motivo que somos realmente transformados pela
fruição de determinados textos, de algumas imagens e objetos artísticos
que nos despertam para questões, perspectivas, insigths impensáveis
antes desses produtivos e quase sempre dolorosos contatos. Do abismo
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do indizível, poderes, tensões, nervuras são revelados e expostos,
tornados até mesmo caricatos. Quando voltamos os nossos olhos outra
vez para a cultura, somos levados a pensar que tais idéias e
perspectivas desconcertantes estavam lá, onde sempre estiveram,
diante de nós. Só que sem a ajuda da fruição do texto literário, jamais
os veríamos.
As revelações produzidas pela fruição do objeto artístico
despertam conteúdos latentes que – malgrado nossa vontade e por
diversos motivos pessoais – deixamos adormecer. O que vêm à tona são
nossos fantasmas interiores. Talvez esses sejam os que mais
detestamos e o que, secretamente, nos dão mais prazer. Os índices que
repudiamos estão nos conteúdos que a obra desperta em nós: é
desagradável o reflexo de nossa própria hediondez.
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Resumo
No início de sua produção dramática, nos idos anos 40 do século
XX, Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980) escreveu a série de peças que
ele denominou de “desagradáveis”: Album de família, Anjo negro,
Senhora dos afogados e Dorotéia. Esses textos criavam uma imediata
identificação dos leitores das tramas, pois os personagens habitavam os
paradigmas da cultura brasileira. Muitas vezes horrorizado, aquele que
assistia às encenações dessas peças, via esses personagens cometerem
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as mais sórdidas transgressões no palco, o que lhe causava o efeito
“desagradável” de estar diante de espelhos retorcidos que, no início,
foram límpidas identificações. Este ensaio procura desvendar os
meandros dessas peças ao compará-las a determinados dados culturais
de sua época de formação. Buscamos compreender que o desagradável
não foi uma premissa de Nelson Rodrigues, mas que esteve presente
em autores consagrados da literatura ocidental, como Emily Brontë,
Charles Baudelaire, Marquês de Sade e Franz Kafka.
BRANDÃO, Anderson Figueredo.O teatro desagradávelde Nelson Rodrigues. UFRJ. Faculdade de Letras, 2006.245 fl. Digitalizada. Tese de Doutorado em Literatura Comparada.
Abstract
In the beginnig of his dramatic production, at the middle of the
twenty century, Nelson Falcão Rodrigues (1912- 1980) has wrote the
series of playings that he has denominated “disgusting”: Album de
família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Dorotéia. Those texts had
created a immediate identification in the readers, because the players
had existed in the paradigms of the brazilian culture. Many times
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horrided, them had saw the players commiting the most sordid
transgressions, that had made in them the “disgusting” effect of being in
front of broken mirrors that had being cleans identifications. This text
looks for compreension about this “disgusting” plays and their historics
moments of formation. We try to have a compreension about the
“disgusting” litterature in others texts by comparing the Nelson
Rodrigues woks between fragments of works of Emily Brontë, Charles
Baudelaire, Marquês de Sade e Franz Kafka.
BRANDÃO, Anderson Figueredo.O teatro desagradávelde Nelson Rodrigues. UFRJ. Faculdade de Letras, 2006.245 fl.Digitalizada. Tese de Doutorado em Literatura Comparada.
Résumé
En leur début, en le quatrième décade du vingtième siècle, Nelson
Falcão Rodrigues (1912-1980) a écrit des pièces déplaisantes: Álbum de
família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Dorotéia. Ces textes
éveillaient une immédiate indentification en les lecteurs, parce que les
personnages habitaient les paradigmes de la culture brésilienne.
Toutefois, les lecteurs assistaient des personnages en transgressant
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morale, sexualité et société. Cette action faisait l’effect déplaisant pour
présenter immages efrayantes a les spectateurs. Ce ensai est sur l’effect
déplaisant des pièces de Nelson Rodrigues et la comparaison avec
quelques textes de Emily Brontë, Charles Baudelaire, Donatien Sade et
Franz Kafka.
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