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Gilles Deleuze

Cinema 1

A imagem-movimento

Traduo: Stella Senra Copyright 1983 Les Editions de Minuit. Ttulo original: Cinema 1 L'Image-Mouvement. Copyright da traduo: Editora Brasiliense S.A. Capa: Ettore Bottini Reviso: Jos W. S. Moraes Elvira da Rocha Consultor desta edio: Incio Arajo

ndicePrlogo.........................................................................................................7 Teses sobre o movimento Primeiro comentrio de Bergson..........................9 Quadro e plano, enquadramento e decupagem ............................................ 22 Montagem ................................................................................................ 44 A imagem-movimento e suas trs variedades Segundo comentrio de Bergson ............................................................ 76 A imagem-percepo.................................................................................. 95 A imagem-afeco: rosto e primeiro plano ................................................ 114 A imagem-afeco: qualidades, potncias, espaos quaisquer......................132 Do afeto ao: a imagem-pulso ........................................................... 157 A imagem-ao: a grande forma .............................................................. 178 A imagem-ao: a pequena forma ............................................................ 200 As figuras ou a transformao das formas ................................................. 221 A crise da imagem-ao ............................................................................ 242 Glossrio ................................................................................................. 265

Agradeo a gentileza com que atenderam minhas consultas no decorrer deste trabalho: Ana Maria Mariano, Andreas Hauser, Arlindo Machado, Elisa Kossovitch, Elza Mine, Evando M. de Paula e Silva, Franklin Leopoldo e Silva, Incio Arajo (que traduziu os ttulos dos filmes citados ao longo do livro), Laymert Garcia dos Santos, Lgia Zogbe, Maria Lcia Santaella Braga, Roberto Romano da Silva, Rodrigo Naves, Rubens Rodrigues Torres Filho, Vincius Dantas. ED. Helena e Tiago, pelo carinho com que me ajudaram a revisar as provas.

Stella Senra

Prlogo

Este estudo no uma histria do cinema. uma taxionomia, uma tentativa de classificao das imagens e dos signos. Mas este primeiro volume deve contentar-se em determinar os elementos, e apenas os elementos, de uma nica parte da classificao. Referimo-nos amide ao lgico americano Peirce (1839-1914), porque ele estabeleceu sem dvida a mais completa e a mais variada classificao geral das imagens e dos signos. Trata-se de uma classificao como a de Lineu em histria natural, ou, melhor ainda, como uma tabela de Mendeleiev em qumica. O cinema impe novos pontos de vista sobre este problema. Uma outra confrontao faz-se necessria. Em 1896 Bergson escrevia Matire et Mmoire: era o diagnstico de uma crise da psicologia. No se podia mais opor o movimento, como realidade fsica no mundo exterior, imagem, como realidade fsica no mundo exterior, imagem, como realidade psquica na conscincia. A descoberta bergsoniana de uma imagem-movimento, e, mais profundamente, de uma imagem-tempo, conserva ainda hoje tal riqueza que talvez dela no se tenham extrado todas as conseqncias. Apesar da crtica muito sumria que Bergson um pouco mais tarde far do cinema, nada pode impedir a conjuno da imagemmovimento, tal como ele a concebe, com a imagem cinematogrfica. Nesta primeira parte tratamos da imagem-movimento e de suas variedades. A imagem-tempo ser objeto de uma segunda parte. Os grandes autores de cinema nos pareceram confrontveis no apenas com pintores, arquitetos, msicos, mas tambm com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagenstempo, em vez de conceitos. A enorme proporo de nulidade na produo cinematogrfica no constitui uma objeo: ela no pior que em outros setores, embora tenha conseqncias econmicas e industriais incomparveis. Os grandes autores de cinema so, assim, apenas mais vulnerveis; infinitamente mais fcil impedi-los de realizar sua obra. A histria do cinema um vasto martirolgio. O cinema no deixa, por isso, de fazer parte da histria da arte e do pensamento, sob as formas autnomas insubstituveis que esses autores foram capazes de inventar e, apesar de tudo, de fazer passar. No apresentamos nenhuma reproduo que viria ilustrar nosso texto, pois nosso texto, ao contrrio, que gostaria de ser apenas uma ilustrao de grandes filmes de que cada um de ns guarda, em maior ou menor grau, a lembrana, a emoo ou a percepo.

Teses sobre o movimento Primeiro comentrio de Bergson

1Bergson no apresenta uma nica tese sobre o movimento mas trs. A primeira a mais clebre, e corre o risco de nos esconder as outras duas. Ela no passa, no entanto, de uma introduo as outras. De acordo com esta primeira tese, o movimento no se confunde com o espao percorrido. O espao percorrido passado, o movimento presente, o ato de percorrer. O espao percorrido divisvel, e at infinitamente divisvel, enquanto o movimento indivisvel, ou no se divide sem mudar de natureza a cada diviso. O que j supe uma idia mais complexa: os espaos percorridos pertencem todos a um nico e mesmo espao homogneo, enquanto os movimentos so heterogneos, irredutveis entre si. Mas, antes de se desenvolver, a primeira tese tem um outro enunciado: no se pode reconstituir o movimento atravs de posies no espao ou de instantes no tempo, isto , atravs de "cortes" imveis... Essa reconstituio s pode ser feita acrescentando-se as posies ou aos instantes a idia abstrata de uma sucesso, de um tempo mecnico, homogneo, universal e decalcado do espao, o mesmo para todos os movimentos. E ento, de ambas as maneiras, perde-se o movimento. De um lado, por mais infinitamente que se tente aproximar dois instantes ou duas posies, o movimento se far sempre no intervalo entre os dois, logo, s nossas costas. De outro, por mais que se tente dividir e subdividir o tempo, o movimento se far sempre numa durao concreta; cada movimento ter, portanto, sua prpria durao qualitativa. Opomos, por conseguinte, duas frmulas irredutveis: "movimento real durao concreta" e "cortes imveis + tempo abstrato". Em 1907, em A Evoluo Criadora, Bergson batiza a frmula injusta: a iluso cinematogrfica. Com efeito, o cinema opera com dois dados complementares: cortes instantneos, que chamamos imagens; um movimento ou um tempo impessoal, uniforme, abstrato, invisvel ou imperceptvel, que existe "no" aparelho e "com" o qual fazemos desfilarem

as imagens.1 O cinema nos oferece ento um movimento falso, ele o exemplo tpico do movimento falso. Mas curioso que Bergson d um ttulo to moderno e to recente ("cinematogrfico") a mais antiga iluso. Com efeito, diz Bergson, quando o cinema reconstitui o movimento por meio de cortes imveis, ele no faz nada alm do que j fazia o mais antigo pensamento (os paradoxos de Zeno), ou do que faz a percepo natural. A esse respeito Bergson se distingue da fenomenologia, para a qual o cinema antes romperia com as condies da percepo natural. "Temos vises quase instantneas da realidade que passa, e como elas so caractersticas desta realidade, basta-nos alinh-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisvel, situado no fundo do aparelho do conhecimento... Percepo, inteleco, linguagem procedem em geral assim. Quer se trata de pensar o devir, ou de o exprimir ou at de o percepcionar, o que fazemos apenas acionar uma espcie de cinematgrafo interior."(EC, pp. 298-299 (305).(N.T.)) Deve-se depreender da que, segundo Bergson, o cinema seria somente a projeo, a reproduo de uma iluso constante, universal? Como se tivssemos sempre feito cinema sem saber? Mas ento, muitos problemas se colocam. E, de incio, a reproduo da iluso no tambm, de certo modo, sua correo? A partir da artificialidade dos meios pode-se concluir a artificialidade do resultado? O cinema opera por meio de fotogramas, isto , de cortes imveis, vinte e quatro imagens/segundo (ou dezoito no incio). Mas o que ele nos oferece, como foi muitas vezes constatado, no o fotograma, mas uma imagem media a qual o movimento no se acrescenta, no se adiciona: ao contrrio, o movimento pertence a imagem-mdia enquanto dado imediato. Objetar-se- que o mesmo acontece no caso da percepo natural. Mas a a iluso corrigida antes da percepo pelas condies que a tornam possvel no sujeito. Enquanto no cinema ela corrigida ao mesmo tempo que a imagem aparece, para um espectador fora de condies (a esse respeito, como veremos, a fenomenologia tem razo em supor uma diferena de natureza entre a percepo natural e a percepo cinematogrfica). Em suma, o cinema oferece uma imagem a qual acrescentaria movimento, ele nos oferece imediatamente uma imagem-movimento. Oferece-nos um corte, mas um1 L'volution Cratrice, p. 753 (305). Citamos os textos de Bergson segundo a edio do Centenrio; e entre parnteses indicamos a paginao da edio corrente de cada livro (PUF). (N. T.: quando se tratar de A Evoluo Criadora, indicaremos, ao final da nota do autor, a pgina correspondente da edio brasileira. A Evoluo Criadora, trad. Adolfo Casais Monteiro, estudo introdutrio de Jean Guitton, Rio de Janeiro, Ed. Opera Mundi, 1971, p. 292. 0 cap. 2 do mesmo volume foi tambm traduzido por Nathanael Caxeiro, in Bergson, Col. "Os Pensadores", Ed. Abril, 1984.)

corte mvel e no um corte imvel + movimento abstrato. Ora, o que novamente curioso, que Bergson tinha descoberto perfeitamente a existncia dos cortes mveis ou das imagens-movimento. Isto se deu antes de A Evoluo Criadora e antes do nascimento oficial do cinema, em Matire et Mmoire, em 1896. A descoberta da imagem-movimento, para alm das condies da percepo natural, constitua a prodigiosa inveno do primeiro captulo de Matire et Mmoire. Devemos acreditar que Bergson a havia esquecido dez anos depois? Ou antes se deixava enredar por uma outra iluso que atinge toda coisa em seus primrdios? Sabemos que as coisas e as pessoas so sempre foradas, obrigadas a se esconder quando comeam. E no poderia deixar de ser diferente. Elas surgem num conjunto que ainda no as comportava, e devem pr em evidncia os caracteres comuns que conservam com esse conjunto para no serem rejeitadas. A essncia de uma coisa nunca aparece no princpio, mas no meio, no curso de seu desenvolvimento, quando suas foras se consolidaram. Isso Bergson sabia mais que qualquer outro, ele que havia transformado a filosofia ao colocar a questo do "novo" em vez da questo da eternidade (como a produo e a apario de algo novo so possveis?). Ele dizia, por exemplo, que a novidade da vida no podia aparecer em seus primrdios, porque no incio a vida era forada a imitar a matria... No a mesma coisa para o cinema? Em seus primrdios o cinema no forado a imitar a percepo natural? E, melhor ainda, qual era a situao do cinema no princpio? De um lado, a cmera era fixa, o plano era, portanto, espacial e formalmente imvel; de outro, o aparelho de filmagem era confundido com o aparelho de projeo, dotado de um tempo uniforme abstrato. A evoluo do cinema, a conquista de sua prpria essncia ou novidade se far pela montagem, pela cmera mvel e pela emancipao da filmagem, que se separa da projeo. O plano deixar ento de ser uma categoria espacial, para tornar-se temporal; e o corte ser um corte mvel e no mais imvel. O cinema reencontrar exatamente a imagem-movimento do primeiro captulo de Matire et Mmoire. Devemos concluir que a primeira tese de Bergson sobre o movimento mais complexa do que parecia inicialmente. Por um lado, h uma crtica contra todas as tentativas de reconstituir o movimento com o espao percorrido, isto , somando cortes imveis instantneos e tempo abstrato. Por outro lado, h a crtica do cinema, denunciado como uma dessas tentativas ilusrias, como a tentativa que faz culminar a iluso. Mas h tambm a tese de Matire et Mmoire, os cortes mveis, os planos temporais, e que pressentia de modo proftico o futuro ou a essncia do

cinema.

2Ora, A Evoluo Criadora apresenta justamente uma segunda tese que, em vez de reduzir tudo a uma mesma iluso sobre o movimento, distingue pelo menos duas iluses muito diferentes. O erro consiste sempre em reconstituir o movimento atravs de instantes ou posies, mas h duas maneiras de faz-lo: a antiga e a moderna. Para a antiguidade, o movimento remete a elementos inteligveis, Formas ou Idias que so, elas prprias, eternas e imveis. Evidentemente, para reconstituir o movimento, apreenderemos essas formas o mais prximo possvel de sua atualizao numa matria fluente. So potencialidades que s se realizam ao se encarnarem na matria. Mas, inversamente, o movimento limita-se a exprimir uma "dialtica" das formas, uma sntese ideal que lhe confere ordem e medida. O movimento assim concebido ser, portanto, a passagem regulada de uma forma a uma outra, isto , uma ordem de poses ou de instantes privilegiados, como uma dana. "Supe-se" que as formas ou idias "caracterizam um perodo cuja quintessncia exprimiriam, sendo todo o resto desse periodo preenchido pela passagem, em si mesma desprovida de interesse, de uma forma a uma outra forma... Isola-se o termo final, ou o ponto culminante (tlos, acm) que considerado como momento essencial, e este momento, que a linguagem fixou para exprimir o conjunto do fato, basta tambm para a cincia o caracterizar" .2 A revoluo cientfica moderna consistiu em referir o movimento no mais a instantes privilegiados, mas ao instante qualquer. Mesmo que o movimento fosse recomposto, ele no era mais recomposto a partir de elementos formais transcendentes (poses), mas a partir de elementos materiais imanentes (cortes). Em vez de fazer uma sntese inteligvel do movimento, empreendia-se uma anlise sensvel. Assim se constituram a astronomia moderna, ao determinar uma relao entre uma rbita e o tempo de seu percurso (Kepler); a fsica moderna, ao vincular o espao percorrido ao tempo da queda de um corpo (Galileu); a geometria moderna, ao destacar a equao de uma curva plana, isto , a posio de um ponto numa reta mvel em um momento qualquer do seu trajeto (Descartes); enfim, o clculo infinitesimal, a partir do momento em que se experimentou levar em conta cortes infinitamente aproximveis (Newton e2 EC, p. 774 (330); 320.

Leibniz). Em toda parte, a sucesso mecnica de instantes quaisquer substitua a ordem dialtica das poses: "A cincia moderna deve se definir sobretudo pela sua aspirao de considerar o tempo uma varivel independente".3 O cinema parece realmente o ltimo rebento desta linhagem destacada por Bergson. Poderamos conceber uma srie de meios de translao (trem, carro, avio...) e, paralelamente, uma srie de meios de expresso (grfico, foto, cinema): a cmera surgiria ento como um transdutor, ( *) ou melhor, como um equivalente generalizado dos movimentos de translao. assim que ela aparece nos filmes de Wenders. Quando nos indagamos sobre a pr-histria do cinema somos as vezes levados a consideraes confusas, porque no sabemos at onde remonta, nem como definir a linhagem tecnolgica que o caracteriza. sempre possvel, ento, invocar as sombras chinesas ou os mais arcaicos sistemas de projeo. Mas na verdade as condies determinantes do cinema so as seguintes: no apenas a foto, mas a foto instantnea (a fotografia posada pertence a uma outra linhagem); a eqidistncia dos instantneos; a transferncia dessa eqidistncia para um suporte que constitui o "filme" (Edison e Dickson perfuram a pelcula); um mecanismo que puxa as imagens (as garras de Lumire). neste sentido que o cinema o sistema que reproduz o movimento em funo do instante qualquer, isto , em funo de momentos eqidistantes, escolhidos de modo a dar a impresso de continuidade. estranho ao cinema qualquer outro sistema que porventura reproduza o movimento atravs de uma ordem de poses projetadas de modo a passarem umas atravs de outras, ou a "se transformarem". o que fica claro quando se tenta definir o desenho animado: se ele pertence inteiramente ao cinema porque aqui o desenho no constitui mais uma pose ou uma figura acabada, mas a descrio de uma figura que est sempre sendo feita ou desfeita, atravs do movimento de linhas e de pontos tomados em momentos quaisquer do seu trajeto. O desenho animado remete a uma geometria cartesiana e no a uma geometria euclidiana. Ele no nos apresenta uma figura descrita num momento nico, mas a continuidade do movimento que descreve a figura. No entanto, o cinema parece se nutrir de instantes privilegiados. Costuma-se dizer que Eisenstein extrai dos movimentos ou das evolues certos momentos de crise dos quais ele faz o objeto por excelncia do cinema. inclusive isto o que ele chamava de "pattico": ele seleciona3

EC, p. 779 (335); 325. * Transdutor: dispositivo que efetua a converso de energia de urna forma outra.(N.T.)

pices e gritos, leva as cenas ao seu paroxismo e as faz colidir uma com a outra. Mas no se trata em absoluto de uma objeo. Voltemos prhistria do cinema, e ao clebre exemplo do galope de cavalo: este s pode ser decomposto exatamente atravs dos registros grficos de Marey e dos instantneos equidistantes de Muybridge, que remetem o conjunto organizado da andadura a um ponto qualquer. Se escolhermos bem os equidistantes, cairemos forosamente nos tempos marcantes, isto , nos momentos em que o cavalo tem um p no cho, depois, trs, dois, trs, um. Podemos cham-los instantes privilegiados: mas no , absolutamente, no sentido das poses ou das posturas gerais que caracterizavam o galope nas formas antigas. Tais instantes no tm mais nada a ver com as poses, e seriam at formalmente impossveis como poses. Se so instantes privilegiados, a ttulo de pontos marcantes ou singulares que pertencem ao movimento, e no a ttulo de momentos de atualizao de uma forma transcendente. A noo mudou completamente de sentido. Os instantes privilegiados de Eisenstein ou de qualquer outro autor so ainda instantes quaisquer; simplesmente, o instante qualquer pode ser regular ou singular, ordinrio ou marcante. O fato de Eisenstein selecionar instantes marcantes no impede que ele os extraia de uma anlise imanente do movimento, de forma alguma de uma sntese transcendente. O instante marcante ou singular permanece um instante qualquer entre os outros. inclusive esta a diferena entre a dialtica moderna, que Eisenstein reivindica, e a dialtica antiga. Esta a ordem das formas transcendentes que se atualizam em um movimento, enquanto aquela a produo e a confrontao dos pontos singulares imanentes ao movimento. Ora, esta produo de singularidades (o salto qualitativo) se d por acumulao de ordinrios (processo quantitativo), de modo tal que o singular extrado do qualquer, ele prprio um qualquer simplesmente no ordinrio ou no-regular. O prprio Eisenstein precisava que o "pattico" supunha "o orgnico" enquanto conjunto organizado dos instantes quaisquer por onde os cortes devem passar.4 O instante qualquer o instante equidistante de um outro. Definimos assim o cinema como o sistema que reproduz o movimento reportando-o ao instante qualquer. Mas a que a dificuldade avulta. Qual o interesse de um tal sistema? Do ponto de vista da cincia, muito superficial. Pois a revoluo cientfica era de anlise. E se era necessrio reportar o movimento ao instante qualquer para poder analis-lo, no se percebia o interesse de uma sntese ou de uma reconstituio fundada no mesmo princpio, a no ser um vago interesse de confirmao. Esta a razo pela4

A propsito do orgnico e do pattico, cf. Eisentein, La Non-Indiffrente Nature, I, Coll. 10-18.

qual nem Marey nem Lumire confiavam muito na inveno do cinema. Teria ele pelo menos um interesse artstico? Aparentemente nem isso, pois a arte parecia preservar os direitos de uma sntese mais elevada do movimento, e continuar ligada as poses e formas que a cincia repudiara. Encontramo-nos no prprio corao da situao ambgua do cinema enquanto "arte industrial": no era nem uma arte nem uma cincia. Entretanto, os contemporneos podiam ser sensveis a uma evoluo que carregava consigo as artes e mudava o estatuto do movimento, at na pintura. Com mais razo ainda, a dana, o bal, a mmica abandonavam as figuras e as poses para liberar valores no-posados, no pulsados, que reportavam o movimento ao instante qualquer. Por isso a dana, o bal e a mmica tornavam-se aes capazes de responder aos acidentes do meio, isto , a repartio dos pontos de um espao ou dos momentos de um acontecimento. Tudo isso conspirava com o cinema. A partir do sonoro, o cinema ser capaz de fazer da comdia musical um de seus grandes gneros, com a "dana-ao" de Fred Astaire, que evolui em um lugar qualquer, na rua, entre os carros, ao longo de uma calada. 5 Mas j no mudo, Chaplin arrancara a mmica da arte das poses, para transform-la numa mmicaao. Aos que acusavam Carlitos de se servir do cinema e no de o servir, Mitry respondia que ele conferia a mmica um novo modelo, funo do espao e do tempo, continuidade construda a cada instante, que se deixava decompor apenas em seus elementos imanentes marcantes, em vez de se reportar a formas prvias a serem encarnadas.6 O cinema pertence inteiramente a essa concepo moderna do movimento eis o que Bergson demonstra com eloqncia. Mas, a partir da, ele parece hesitar entre dois caminhos, dos quais um o conduz a sua primeira tese e o outro abre, em contrapartida, uma nova questo. De acordo com o primeiro, as duas concepes podem ser muito diferentes do ponto de vista da cincia, sem deixarem de ser quase idnticas quanto a seu resultado. Na verdade, d no mesmo recompor o movimento atravs de poses eternas ou de cortes imveis: em ambos os casos perdese o movimento porque nos atribumos um Todo, supomos que "o todo dado", enquanto o movimento s se faz se o todo no dado nem pode vir a s-lo. A partir do momento em que nos atribumos o todo na ordem eterna das formas e das poses, ou no conjunto dos instantes quaisquer, ou o tempo apenas a imagem da eternidade, ou a conseqncia do conjunto; no h mais lugar para o movimento real. 7 No entanto, um5 6 7

Arthur Knight, Revue du Cinma, n 10. Jean Mitry, Histoire du Cinma Muet, III, Ed. Universitaires, pp. 49-51. EC, p. 794 (353); 339.

outro caminho parecia abrir-se para Bergson. Pois se a concepo antiga corresponde efetivamente a filosofia antiga que se prope a pensar o eterno, a concepo moderna, a cincia moderna, invocam uma outra filosofia. Quando reportamos o movimento a momentos quaisquer, devemos nos tornar capazes de pensar a produo do novo, isto , do notvel e do singular em qualquer um desses momentos: trata-se de uma converso total da filosofia; e o que Bergson se prope finalmente fazer: dar a cincia moderna a metafsica que lhe corresponde e que lhe est faltando como uma metade falta outra metade. 8 Mas possvel se deter nesse caminho? possvel negar que as artes tambm tenham de fazer tal converso? E que o cinema seja um fator essencial a esse respeito, e que ele tenha inclusive um papel no nascimento e na formao deste novo pensamento, deste novo modo de pensar? Eis que Bergson no se contenta mais em confirmar sua primeira tese sobre o movimento. Apesar de se deter em pleno curso, a segunda tese de Berson possibilita um outro ponto de vista sobre o cinema, que no seria mais o aparelho aperfeioado da mais velha iluso, mas, ao contrrio, o rgo da nova realidade a ser aperfeioado

3E chegamos terceira tese de Bergson, sempre em A Evoluo Criadora. Se tentssemos oferecer dela uma frmula brutal diramos: no s o instante um corte imvel do movimento, mas o movimento um corte mvel da durao, isto , do Todo ou de um todo. O que implica que o movimento exprime algo mais profundo que a mudana na durao ou no todo. Que a durao seja mudana, faz parte da sua prpria definio: ela muda e no pra de mudar. Por exemplo, a matria se move mas no muda. Ora, o movimento exprime uma mudana na durao ou no todo. O que problemtico , por um lado, esta expresso e, por outro, esta identificao todo-durao. O movimento uma translao no espao. Ora, cada vez que h translao de partes no espao h tambm mudana qualitativa num todo. Bergson fornecia mltiplos exemplos em Matire et Mmoire. Um animal se move mas no a toa, para comer, para migrar, etc. Dir-se-ia que o movimento supe uma diferena de potencial e se prope a preench-la. Se considero partes ou lugares abstratamente, A e B, no compreendo o movimento que vai de um a outro. Mas estou em A,8

EC, p. 786 (343); 331.

faminto, e em B existe alimento. Quando atingi B e comi, o que mudou no foi apenas o meu estado, mas o estado do todo que compreendia B, A e tudo o que havia entre os dois. Quando Aquiles ultrapassa a tartaruga, o que muda o estado do todo que compreendia a tartaruga, Aquiles e a distncia entre os dois. O movimento remete sempre a uma mudana, migrao, a uma variao sazonal. a mesma coisa para os corpos: a queda de um corpo supe um outro que o atrai e exprime uma mudana no todo que os compreende a ambos. Se pensarmos em tomos puros, seus movimentos que testemunham uma ao recproca de todas as partes da matria exprimem necessariamente modificaes, perturbaes, mudanas de energia no todo. Nosso erro est em acreditar que o que se move so elementos quaisquer exteriores as qualidades. Mas as prprias qualidades so puras vibraes que mudam ao mesmo tempo que os pretensos elementos se movem. 9 Em A Evoluo Criadora, Bergson d um exemplo to clebre que no conseguimos mais ver o que tem de surpreendente. Ele diz que, ao colocar acar num copo com gua, "devo esperar que o acar se dissolva".10 curioso, apesar de tudo, pois Bergson parece esquecer que o movimento de uma colher pode apressar a dissoluo. Mas o que pretende ele dizer em primeiro lugar? que o prprio movimento de translao que desprende as partculas de acar e as coloca em suspenso na gua exprime uma mudana no todo, isto , no contedo do copo, uma passagem qualitativa da gua onde h acar ao estado de gua aucarada. Se eu agito com a colher, acelero o movimento, mas modifico tambm o todo que compreende agora a colher, e o movimento acelerado continua a exprimir a mudana no todo. "As deslocaes meramente superficiais de massas e de molculas e que a fsica e a qumica estudam" tornam-se, "em relao a este movimento vital que se produz em profundidade, que j no translao mas transformao, aquilo que a imobilidade dum mvel ao movimento deste mvel no espao". 11 Em sua terceira tese, Bergson apresenta, portanto, a seguinte analogia: cortes imveis movimento movimento como corte mvel mudana qualitativa

Com a nica diferena que a relao da esquerda exprime uma iluso, e a da direita uma realidade.9 10 11

A propsito de todos esses pontos, cf. Matire et Mmoire, cap. 4, pp. 332-340 (220230). EC, p. 502 (9-10); 48-49. EC, p. 521 (32); 67.

O que Bergson pretende dizer, sobretudo com o copo de gua aucarada, que minha espera, seja ela qual for, exprime uma durao enquanto realidade mental, espiritual. Mas por que esta dura-co espiritual testemunha no apenas para mim, que espero, mas para um todo que muda? Bergson dizia: o todo no dado nem pode vir a s-lo (e o erro da cincia moderna, como da cincia antiga, era de se atribuir o todo, de duas maneiras diferentes). Muitos filsofos j haviam dito que o todo no era dado nem passvel de ser dado; a nica concluso que tiravam disto era que o todo era uma noo desprovida de sentido. A concluso de Bergson muito diferente: se o todo no passvel de ser dado porque ele o Aberto e porque lhe cabe mudar incessantemente ou fazer surgir algo de novo; em suma: durar. "A durao do universo deve constituir uma unidade com a latitude de criao que nele pode haver." 12 De tal modo que toda vez que nos encontramos diante de uma durao, ou numa durao, poderemos concluir pela existncia de um todo que muda, e que aberto em alguma parte. Sabemos muito bem que Bergson descobriu inicialmente a durao como idntica a conscincia. Mas um estudo mais aprofundado da conscincia levou-o a mostrar que ela s existia abrindo-se para um todo, coincidindo com a abertura de um todo. Assim tambm para o vivente: quando Bergson compara o vivente a um todo, ou ao todo do universo, ele parece retomar a mais antiga comparao.13 E, no entanto, inverte completamente os termos. Pois se o vivente um todo, portanto assimilvel ao todo do universo, no tanto porque seria um microcosmo to fechado quanto o todo supostamente o , mas, ao contrrio, enquanto ele aberto para um mundo, e que o mundo, o prprio universo, o Aberto. "Em todo lugar onde alguma coisa vive, existe, aberto em alguma parte, um registro onde o tempo se inscreve." 14 Se fosse preciso definir o todo, ns o definaramos pela Relao. que a relao no uma propriedade dos objetos, ela sempre exterior a seus termos. Do mesmo modo, inseparvel do aberto e apresenta uma existncia espiritual ou mental. As relaaes no pertencem aos objetos mas ao todo, desde que no o confundamos com um conjunto fechado de objetos.15 Atravs do movimento no espao, os objetos de um grupo mudam suas respectivas posies. Mas, atravs das relaes, o todo se transforma ou muda de qualidade. Da prpria durao, ou do tempo, podemos afirmar que o todo das relaes.12 13 14

15

EC, p. 782 (339); 327. EC, p. 507(15); 53. EC, p. 508 (16); 54. A nica semelhana, mas considervel, entre Bergson e Heidegger justamente esta: ambos fundam a especificidade do tempo sobre uma concepo do aberto. Fazemos intervir aqui o problema das relaes, ainda que ele no seja explicitamente colocado por Bergson. Sabemos que a relao entre duas coisas no pode ser reduzida a um atributo de uma coisa ou da outra, e muito menos ainda a um atributo do conjunto. Em compensao, a possibilidade de reportar as relaes a um todo permanece indene se concebemos esse todo como um "contnuo" e no como um conjunto dado.

No se deve confundir o todo, os "todos", com os conjuntos. Os conjuntos so fechados, e tudo o que fechado artificialmente fechado. Os conjuntos so sempre conjuntos de partes. Mas um todo no fechado, aberto; e no tem partes, exceto num sentido muito especial, pois ele no se divide sem mudar de natureza a cada etapa da diviso. "O todo real poderia muito bem ser uma continuidade indivisvel."16 O todo no um conjunto fechado, mas, ao contrrio, aquilo pelo que o conjunto nunca absolutamente fechado, nunca est completamente isolado, aquilo que o mantm aberto em algum ponto, como se um fio tnue o ligasse ao resto do universo. O copo de gua exatamente um conjunto fechado que compreende partes, a gua, o acar, talvez a colher; mas isso no o todo. O todo se cria e no pra de se criar numa outra dimenso sem partes, como aquilo que leva o conjunto de um estado qualitativo a outro, como o puro devir incessante que passa por esses estados. nesse sentido que ele espiritual ou mental. "O copo de gua, o acar e o processo de dissoluo do acar na gua so, sem dvida, abstraes, e o Todo do qual eles foram recortados pelos meus sentidos talvez progrida a maneira de uma conscincia." 17 Mesmo assim este recorte artificial de um conjunto ou de um sistema fechado no uma pura iluso. Ele tem fundamento e, se o elo de cada coisa com o todo (este elo paradoxal que a liga ao aberto) impossvel de ser rompido, ele pode ao menos ser alongado, estirado ao infinito, tornar-se cada vez mais tnue. Pois a organizao da matria torna possveis os sistemas fechados ou os conjuntos determinados de partes; e o desdobramento do espao os torna necessrios. Porm, se os conjuntos esto no espao, o todo, os todos esto precisamente na durao, so a prpria durao na medida que ela no pra de mudar. De tal modo que as duas frmulas que correspondiam a primeira tese de Bergson adquirem agora um estatuto muito mais rigoroso: "cortes imveis + tempo abstrato" remete aos conjuntos fechados, cujas partes so na verdade cortes imveis, e cujos estados sucessivos so calculados sobre um tempo abstrato; enquanto "movimento real madurao concreta" remete a abertura de um todo que dura, cujos movimentos so os tantos cortes mveis que atravessam o sistema fechado. Ao fim desta terceira tese encontramo-nos na verdade em trs nveis: 1) os conjuntos ou sistemas fechados, que se definem atravs dos objetos discernveis ou das partes distintas; 2) o movimento de translao, que se estabelece entre esses objetos e modifica suas posies respectivas; 3) a durao ou o todo, realidade espiritual que no pra de mudar segundo16 17

EC, p. 520(31); 66. EC, pp. 502-503 (10-11); 49-50.

suas prprias relaes. O movimento tem assim, de certo modo, duas faces. Por um lado, ele o que se passa entre objetos ou partes; por outro, o que exprime a durao ou o todo. Ele faz com que a durao, ao mudar de natureza, se divida nos objetos, e que os objetos, ao se aprofundarem, perdendo seus contornos, renam-se na durao. Dir-se- ento que o movimento reporta os objetos de um sistema fechado a durao aberta e a durao aos objetos do sistema que ela fora a se abrirem. O movimento reporta os objetos, entre os quais se estabelece, ao todo cambiante que ele exprime, e vice-versa. Pelo movimento, o todo se divide nos objetos, e os objetos se renem no todo: e, justamente entre os dois, "tudo" muda. Podemos considerar os objetos ou partes de um conjunto como cortes imveis; mas o movimento se estabelece entre esses cortes e reporta os objetos ou partes a durao de um todo que muda, ele exprime portanto a mudana do todo com relao aos objetos e , ele mesmo, um corte mvel da durao. Somos agora capazes de compreender a tese to profunda do primeiro captulo de Matire et Mmoire: 1) no h apenas imagens instantneas, isto , cortes imveis do movimento; 2) h imagens-movimento que so cortes mveis da durao, imagensmudana, imagens-relao, imagens-volume, para alm do prprio movimento...

Quadro e plano, enquadramento e decupagem

1Partamos de definies muito simples, sob pena de corrigi-las mais tarde. Chamamos enquadramento a determinao de um sistema fechado, relativamente fechado, que compreende tudo o que est presente na imagem, cenrios, personagens, acessrios. O quadro constitui, portanto, um conjunto que tem um grande nmero de partes, isto , de elementos que entram, eles prprios, em subconjuntos. Podemos operar nele uma reduo. Evidentemente, as prprias partes so tambm imagem. O que leva Jakobson a dizer que so objetos-signos, enquanto para Pasolini so "cinememas". Entretanto, tal terminologia sugere aproximaes com a linguagem (os cinememas seriam como fonemas e o plano como um monema) que no parecem necessrias. 1 Pois se o quadro tem um anlogo, mais do lado de um sistema informtico do que lingstico. Os elementos constituem dados, ora muito numerosos, ora em nmero reduzido. O quadro , portanto, inseparvel de duas tendncias a saturao ou a rarefao. Particularmente a tela larga e a profundidade de campo permitiram a tal ponto a multiplicao dos dados independentes, que uma cena secundria aparece na frente enquanto o principal se passa ao fundo (Wyler), ou que nem se pode mais fazer diferena entre o principal e o secundrio (Altman). Em contrapartida, imagens rarefeitas so produzidas ou quando a tnica colocada sobre um nico objeto (em Hitchcock, o copo de leite iluminado do interior, em Suspeita; a brasa do cigarro no retngulo negro da janela

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Para distinguir da palavra "cinema", traduzi por "cinemema" o termo que Pasolini utiliza, por analogia com os fonemas, para designar, na relao criativa entre o plano e seus objetos, as unidades lingsticas mnimas no cinema; os "cinememas" seriam "os objetos (objetivamente em nmero infinito) que pertencem realidade e que esto compreendidos no plano". Note-se ainda que, para Pasolini, a dupla articulao no cinema no consistiria nessa relao entre o plano e seus objetos, mas na relao criativa entre toda a ordem dos planos e toda a ordem dos objetos dos quais eles so compostos. Ver a esse respeito o cap. "Thorie des raccords", in Pasolini, P. P., L'Exprience Hrtique Langue et Cinma, Prefcio de Maria Antonietta Macciochi, Paris, Payot, 1976. (N. T.) Cf. Pasolini, L'Exprience Hrtique, Paris, Payot, pp. 263-265.

em Janela Indiscreta), ou quando o conjunto esvaziado de certos subconjuntos (as paisagens desertas de Antonioni, os interiores evacuados de Ozu). O mximo de rarefao pode ser atingido com o conjunto vazio, quando a tela fica inteiramente negra ou branca. Hitchcock d um exemplo disso em Quando Fala o Corao, quando um copo de leite invade a tela, deixando apenas uma imagem branca vazia. Mas em ambos os extremos, rarefao ou saturao, o quadro nos ensina desse modo que a imagem no se d apenas a ver. Ela to legvel quanto visvel. O quadro tem essa funo implcita de registrar informaes no apenas sonoras, mas visuais. Se vemos muito poucas coisas numa imagem porque no sabemos l-la bem, avaliamos mal tanto a sua rarefao quanto a sua saturao. Haver uma pedagogia da imagem, especialmente com Godard, quando esta funo for levada a se explicitar, quando o quadro passar a valer enquanto superfcie opaca de informao, ora perturbada pela saturao, bra reduzida ao conjunto vazio, a tela branca ou negra.2 Em segundo lugar, o quadro sempre foi geomtrico ou fsico, se constitui o sistema fechado em relao a coordenadas escolhidas ou em relao a variveis selecionadas. Assim, ora o quadro concebido como uma composio de espao em paralelas e diagonais, constituindo um receptculo de modo tal que as massas e linhas da imagem que vm ocup-lo encontraro um equilbrio, e seus movimentos, uma invariante. o que freqentemente acontece com Dreyer; Antonioni parece chegar ao limite dessa concepo geomtrica do quadro, que preexiste ao que nele vem se inscrever (O Eclipse 3). Ora o quadro concebido como uma construo dinmica em ao, que depende estreitamente da cena, da imagem, dos personagens e dos objetos que o preenchem. O procedimento da ris em Griffith, que primeiro isola um rosto, depois abrese e mostra as suas imediaes; as pesquisas de Eisenstein, inspiradas no desenho japons, que adaptam o quadro ao tema; a tela varivel de Gance, que se abre e fecha "segundo as necessidades dramatrgicas", como um "acordeom visual": desde o incio houve essa tentativa de variaes dinmicas do quadro. De qualquer modo, o enquadramento limitao. 4 Mas, de acordo com, o prprlo conceito, os limites podem ser2 Noel Burch, Praxis du Cinema, p. 86: a propsito da tela negra ou branca, quando ela no serve mais simplesmente de "pontuao", mas assume um "valor estrutural". 3 Claude Oilier, Souvenirs cran, Cahiers du Cinma-Gallimard, p. 88. o que Pasolini analisava como "enquadramento obsedante" em Antonioni (L'Exprience Hrtique, p. 148). (Os filmes so citados pelo seu ttulo brasileiro. Quando no foram exibidos entre ns, procurou-se, sempre que possvel, citar o seu ttulo original. Alguns filmes russos e japoneses no exibidos no Brasil ficaram com seus ttulos franceses. N. T.) 4 Num trabalho indito que compreende entrevistas com camera-men, Dominique Villain analisa estas duas concepes do enquadramento: Le cadrage cinmatographique. (O termo cadreur, que

concebidos de dois modos, matemtico ou dinmico: ou como condies para a existncia dos corpos cuja essncia os limites vo fixar, ou como algo que se estende precisamente at onde vai a potncia do corpo existente. Desde a filosofia antiga, este era um dos principais aspectos da oposio entre platnicos e esticos. De uma outra maneira, o quadro ainda geomtrico ou fsico em relao as partes do sistema que ele ao mesmo tempo separa e rene. No primeiro caso, o quadro inseparvel de acentuadas distines geomtricas. Uma belissima imagem de Intolerncia, de Griffith, corta a tela segundo uma vertical que corresponde a muralha de Babilnia, enquanto v-se, direita, o rei avanar numa horizontal superior, adarve no alto da muralha, e a esquerda, os carros entrando e saindo numa horizontal inferior, as portas da cidade. Eisenstein estuda os efeitos da seco urea na imagem cinematogrfica; Dreyer explora as horizontais e as verticais, as simetrias, o alto e o baixo, as alternncias de preto e branco; os expressionistas desenvolvem diagonais e contradiagonais, figuras piramidais ou triangulares, o choque dessas massas, toda uma pavimentao do quadro "onde se desenham como que quadrados negros e brancos de um tabuleiro de xadrez" (Os Nibelungos e Metrpolis, de Lang5). At a luz objeto de uma tica geomtrica, quando se organiza com as trevas em duas metades, ou em riscas alternantes, segundo uma tendncia do expressionismo (Wiene, Lang). As linhas de separao dos grandes elementos da Natureza desempenham, evidentemente, um papel fundamental como nos cus de Ford: a separao entre o cu e a terra, a terra reconduzida para a parte inferior da tela. Mas h tambm a gua e a terra, ou a linha fina e alongada que separa o ar da gua, quando a gua esconde um fugitivo no fundo, ou quando asfixia uma vtima no limite da superfcie (O Fugitivo, de Roy, e Uma Lio para no Esquecer, de Newman). Em geral as potncias da Natureza no so enquadradas da mesma maneira que as pessoas ou as coisas, nem os indivduos do mesmo modo que as multides, nem os subelementos do mesmo modo que os termos. Tanto assim que h no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os guichs, as lucarnas, as janelas dos carros, os espelhos so outros tantos quadros dentro do quadro. Os grandes autores tm afinidades particulares com um ou outro desses quadros segundos, terceiros, etc. E atravs desses encaixes de quadros que as partes do conjunto ou do sistema fechado se separam, mas tambm conspiram e se renem.traduzi por camera-man, define aquele que enquadra a imagem. Essa funo exercida pelo diretor ou pelo camera-man. N. T.) 5 Lotte Eisner, L'Ecran Dmoniaque, Encyclopdie du Cinma, p. 124.

Por outro lado, a concepo fsica ou dinmica do quadro induz a conjuntos vagos que passam a se dividir somente em zonas ou discos. O quadro no mais o objeto de divises geomtricas, mas de graduaes fsicas. Ento, as partes do conjunto valem como partes intensivas e o prprio conjunto uma mistura que passa por todas as partes, por todos os graus de sombra e luz, por toda a escala do claro-escuro (Wegener, Murnau). Trata-se da outra tendncia da tica expressionista, embora certos autores participem das duas, dentro ou fora do expressionismo. a hora em que no se pode mais distinguir a aurora do crepsculo, nem o ar da terra ou a gua da terra, no grande misto de um pntano ou de uma tempestade6. Aqui, atravs dos graus da mistura que as partes se distinguem ou se confundem, numa transformao contnua dos valores. O conjunto no se divide em partes sem mudar a cada vez de natureza: no se trata nem do divisvel nem do indivisvel, mas do "dividual". verdade que j era esse o caso da concepo geomtrica: era o encaixe dos quadros que indicava ento as mudanas de natureza. A imagem cinematogrfica sempre dividual. A razo ltima disso que a tela, enquanto quadro dos quadros, confere uma medida comum aquilo que no a tem, plano distante de paisagem e primeiro plano de rosto, sistema astronmico e gota de gua, partes que no apresentam um mesmo denominador de distncia, de relevo, de luz. Em todos esses sentidos, o quadro assegura uma desterritorializao da imagem. Em quarto lugar, o quadro se reporta a um ngulo de enquadramento. que o prprio conjunto fechado um sistema tico que remete a um ponto de vista sobre o conjunto das partes. Evidentemente, o ponto de vista pode ser ou parecer inslito, paradoxal: o cinema mostra pontos de vista extraordinrios, rente ao cho, de cima para baixo, de baixo para cima, etc. Mas eles parecem submetidos a uma regra pragmtica que no vale apenas no cinema de narrao: para no carem num esteticismo vazio, eles devem se explicar, devem se revelar normais ou regulares, seja do ponto de vista de um conjunto mais amplo que compreende o primeiro, seja do ponto de vista de um elemento inicialmente despercebido, no dado, do primeiro conjunto. Em Jean Mitry encontramos a descrio de uma seqncia exemplar a esse respeito (No

Disco luminoso: termo de tica. Zonas de Fresnel so regies imaginrias em que se divide uma abertura num anteparo para analisar a difrao de uma onda eletromagntica. A difrao o desvio sofrido pela luz ao passar por um obstculo tal como as bordas de uma fenda em um anteparo. Ao passar pela fenda, a luz sofre uma difrao; o feixe luminoso vai aparecer sobre o anteparo como decomposto em um disco luminoso central rodeado por anis concntricos cada vez menos luminosos. Entre o disco central e o primeiro anel, e depois entre os anis sucessivamente, h regies de sombra chamadas zonas. (N. T.) 6 Cf. Bouvier e Leutrat, Nosferatu, Cahiers du Cinma-Gallimard, pp. 75-76.

Matars, de Lubitsch): num travelling lateral a meia altura, a cmera mostra um muro de espectadores vistos de costas e tenta se insinuar at a primeira fila; e ento se detm sobre um perneta cuja perna ausente propicia uma mirada no espetculo, o desfile militar que passa. Ela enquadra, portanto, a perna vlida, a muleta, e, sob o coto, o desfile. Eis um ngulo de enquadramento eminentemente inslito. Mas um novo plano mostra um outro invlido atrs do primeiro, um homem-tronco que v precisamente deste modo o desfile, e que atualiza ou efetua o ponto de vista precedente.7 Dir-se- ento que o ngulo de enquadramento era justificado. Entretanto esta regra pragmtica no vale sempre, ou, pelo menos, quando vale, no esgota o caso. Bonitzer elaborou o conceito muito interessante de "desenquadra-mento" para designar estes pontos de vista anormais que no se confundem com uma perspectiva oblqua ou um ngulo paradoxal, e remetem a uma outra dimenso da imagem8. Deles encontraramos exemplos nos quadros cortantes de Dreyer, os rostos cortados pela borda da tela em A Paixo de Joana d'Arc. Mas, mais ainda, como veremos, os espaos vazios a maneira de Ozu, que enquadram uma zona morta, ou ento os espaos desconectados a maneira de Bresson, cujas partes no se juntam, excedem qualquer justificao narrativa ou, mais geralmente, pragmtica, e vm talvez confirmar que a imagem visual tem uma funo legvel, para alm de sua funo visvel. Resta o extracampo. No se trata de uma negao; tambm no basta defini-lo pela no-coincidncia entre dois quadros, dos quais um seria visual e o outro, sonoro (em Bresson, por exemplo, quando o som testemunha pelo que no se v e "reveza" com o visual em vez de reiterlo 9). O extracampo remete ao que, embora perfeitamente presente, no 7 8

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O uso tem consagrado entre ns o termo ingls travelling, em vez da sua traduo "carrinho".(NT) Jean Mitry, Esthtique et Psychologie du Cinma, II, Ed. Universitaires, pp. 78-79. Pascal Bonitzer, "Dcadrages", Cahiers du Cinema, n 284, jan. 1978. Esse termo tem sido traduzido entre ns por espao fora do campo, espao em off ou ainda, menos correntemente, por extracampo. Optamos pelo ltimo termo, tendo em vista justamente a particularidade da anlise do autor, que vai distinguir nesta noo dois aspectos, um dos quais como se ver no se refere presena virtual do espao. H para Deleuze, de um lado, um aspecto relativo no extracampo, atravs do qual um sistema fechado remete no espao a um conjunto que no se v, e que pode por sua vez vir a ser visto, sob pena de suscitar um novo conjunto no visto; h, de outro lado, um aspecto absoluto, atravs do qual o sistema fechado se abre para uma durao imanente ao todo do universo, que no mais um conjunto e no pertence ordem do visual. Aqui sua juno seria introduzir o trans-espacial e o espiritual no sistema constitudo pelo quadro. Em razo da distino desse segundo aspecto, que para Deleuze sempre acompanha o primeiro, e cuja anlise confere a nosso ver uma nova dimenso prpria noo de extracampo, preferimos adotar um termos que no se limitasse referncia ao espao. (N. T.) Bresson, Notes sur le Cinmatographe, Gallimard, pp. 61-62: "Um som nunca deve vir em socorro de uma imagem, nem uma imagem em socorro de um som (...). Som e imagem no devem se ajudar mutuamente, mas trabalhar cada um por sua vez numa espcie de revezamento".

se ouve nem se v. verdade que esta presena problemtica, e remete por sua vez a duas novas concepes do enquadramento. Se retomarmos a alternativa de Bazin, mscara ou quadro, ora o quadro opera um recorte mvel, segundo o qual todo conjunto se prolonga num conjunto homogneo mais vasto com o qual ele comunica, ora como um quadro pictural que isola um sistema e neutraliza seu contexto. Esta dualidade se exprime de modo exemplar entre Renoir e Hitchcock; para o primeiro, o espao e a ao sempre excedem os limites do quadro, que opera apenas uma extrao em uma rea; no segundo, o quadro opera um "aprisionamento de todos os componentes", e age muito mais como uma armao de tapearia do que como quadro pictural ou teatral. Mas, se um conjunto parcial s se comunica formalmente com o seu extracampo atravs das caractersticas positivas do quadro e do reenquadramento, por sua vez um sistema fechado, mesmo muito fechado, s aparentemente suprime o extracampo, e tambm lhe atribui, a seu modo, uma importncia decisiva, mais decisiva ainda. 10 Todo enquadramento determinar um extracampo. No h dois tipos de quadro, dos quais apenas um remeteria ao extracampo, mas sim dois aspectos muito diferentes do extracampo, remetendo cada um a um modo de enquadrar. A divisibilidade da matria significa que as partes entram em conjuntos variados, que no param de se subdividir em subconjuntos ou so, eles prprios, o subconjunto de um conjunto mais vasto, ao infinito. por isto que a matria se define ao mesmo tempo pela tendncia em constituir sistemas fechados e pelo inacabamento dessa tendncia. Todo sistema

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A conhecida oposio de Bazin quadro ou mscara extrada da comparao que o crtico faz entre a tela de cinema e o quadro pictural perde, na traduo, o realce que o idioma francs lhe confere. Pata Bazin, o quadro pictural abre o espao contemplativo apenas para o interior, enquanto a tela de cinema, ao contrrio, sugere o prolongamento para o exterior daquilo que mostrado. Para sustentar a sua comparao, Bazin recorre ao termo mascara (cache; de cachei, esconder), usado em fotografia e em cinema para designar o papel negro ou o filtro que esconde parte da pelcula a ser impressionada. Esta tcnica tem por efeito, ao esconder parte da cena ou objeto fotografado ou filmado, mostrar apenas "uma parte da realidade". Ao invocar a tcnica da mscara em relao ao quadro cinematogrfico, a tela constituiria para Bazin justamente esta superfcie que a mscara teria deixado visvel, e que seria, ela prpria parte de uma superfcie ainda maior. Por isto a tela cinematogrfica teria para Bazin esse poder de sugerir a existncia de um prolongamento daquilo que se v: ela seria "centrfuga', ao contrrio do quadro, que seria "centrpeto". Qu est-ce que le Cinma, Ed. du Cerf, 1958. (N. T.) O estudo mais sistemtico do extracampo foi realizado por Noel Burch, justamente a propsito de Nana, de Renoir (Praxis du Cinma, pp. 30-51). E desse ponto de vista que Jean Narboni ope Hitchcock a Renoir (Hitchcock, Cahiers du Cinma, "Visages d'Hitchcock", p. 37). Mas, como lembra Narboni, o quadro cinematogrfico sempre uma mscara, como o entendia Bazin: por isto que o enquadramento fechado de Hitchcock tambm tem seu extra-campo, ainda que de um modo completamente diferente do que em Renoir (no mais "um espao contnuo e homogneo ao espao da tela", mas um "espao em off descontnuo e heterogneo ao da tela", que define virtualidades).

fechado tambm comunicante. H sempre um fio para ligar o copo de gua aucarada ao sistema solar, e qualquer conjunto a um conjunto mais vasto. Este o primeiro sentido do que chamamos extracampo: se um conjunto enquadrado, logo visto, h sempre um conjunto maior ou um outro com o qual o primeiro forma um maior, que por sua vez, pode ser visto desde que suscite um novo extracampo, etc. O conjunto de todos esses conjuntos forma uma continuidade homognea, um universo ou um plano de matria propriamente ilimitado. Mas certamente no se trata de um "todo", apesar de este plano ou estes conjuntos cada vez maiores guardarem necessariamente uma relao indireta com o todo. So bem conhecidas as contradies insolveis em que camos quando tratamos o conjunto de todos os conjuntos como um todo. No que a noo de todo seja desprovida de sentido; mas ela no um conjunto e no tem partes. A noo de todo antes o que impede cada conjunto, por maior que seja, de se fechar sobre si prprio, e o que o fora a se prolongar num conjunto maior. O todo , pois, como o fio que atravessa os conjuntos e confere a cada um a possibilidade necessariamente realizada de comunicar um com o outro, ao infinito. O todo tambm o Aberto, e remete mais ao tempo ou at ao esprito do que matria e ao espao. Qualquer que seja a relao entre os dois, no confundiremos, portanto, o prolongamento dos conjuntos uns atravs dos outros, e a abertura do todo que passa em cada um. Um sistema fechado nunca absolutamente fechado; mas, por um lado, ele ligado no espao a outros sistemas por um fio mais ou menos "tnue", e por outro integrado ou reintegrado a um todo que lhe transmite uma durao ao longo desse fio.11 Por conseguinte, talvez no baste distinguir, com Burch, um espao concreto e um espao imaginrio do extracampo, o imaginrio tornando-se concreto quando entra por sua vez num campo portanto, quando deixa de ser extracampo. Pois em si mesmo, ou enquanto tal, que o extracampo j contm dois aspectos que diferem por natureza: um aspecto relativo, atravs do qual um sistema fechado remete no espao a um conjunto que no se v e que pode, por sua vez, ser visto, com o risco de suscitar um novo conjunto no visto, ao infinito; um aspecto absoluto, atravs do qual o sistema fechado se abre para uma durao imanente ao todo do universo, que no mais um conjunto e no pertence ordem do visvel.12 Os11 Bergson desenvolveu todos esses pontos em L'volution Cratrice, cap. I. Sobre o "fio tnue", cf. p. 503 (10); 49. 12 Bonitzer objetava a Burch que no existe "devir-campo do extracampo" e que o extracampo continua imaginrio, mesmo quando se atualizou sob efeito de um raccord: alguma coisa sempre fica fora do campo, e, segundo Bonitzer, a prpria cmera, que pode aparecer a seu modo, mas introduzindo uma nova dualidade na imagem. (Le Regard et la Voix, 10-18, p. 17.) Estas observaes de Bonitzer nos parecem inteiramente fundadas. Mas acreditamos que existe no prprio extracampo uma dualidade interna, que no remete apenas ao instrumento de trabalho.

desenquadramentos que no se justificam `pragmaticamente" remetem precisamente a este segundo aspecto como sua razo de ser. Num caso, o extracampo designa o que existe alhures, ao lado ou em volta; noutro caso, atesta uma presena mais inquietante, da qual nem se pode mais dizer que existe mas antes que "insiste" ou "subsiste", um Alhures mais radical, fora do espao e do tempo homogneos. Sem dvida, esses dois aspectos do extracampo se misturam constantemente. Mas quando consideramos uma imagem enquadrada como um sistema fechado, podemos dizer que um aspecto se sobrepe ao outro segundo a natureza do "fio". Quanto mais grosso for o fio que liga o conjunto visto a outros conjuntos no vistos, melhor o extracampo cumpre sua primeira funo, que de acrescentar espao ao espao. Mas, quando o fio muito tnue, ele no se contenta em reforar o fechamento do quadro, ou em eliminar a relao com o exterior. Ele no garante, evidentemente, uma isolao completa do sistema relativamente fechado, o que seria impossvel. Mas quanto mais tnue for, mais a durao desce no sistema como uma aranha, melhor o extracampo realiza sua outra funo, que a de introduzir o transespacial e o espiritual no sistema que nunca perfeitamente fechado. Dreyer havia feito disto um mtodo asctico: quanto mais a imagem espacialmente fechada, reduzida at a duas dimenses, mais ela est apta a se abrir para uma quarta dimenso, que o tempo, e para uma quinta, que o , Esprito, a deciso espiritual de Joana ou de Gertrud.13 Quando Claude Ollier define o quadro geomtrico de Antonioni, no diz apenas que o personagem esperado ainda no est visvel (primeira funo do extra-campo), mas tambm que ele se encontra momentaneamente numa zona de vazio, "branco sobre o branco impossvel de filmar", propriamente invisvel (segunda funo). E, de uma outra maneira, os quadros de Hitchcock no se contentam em neutralizar as imediaes, em levar to longe quanto possvel o sistema fechado e em aprisionar na imagem o mximo de componentes; ao mesmo tempo faro da imagem uma imagem mental, aberta (como veremos) para um jogo de relaes puramente pensadas, que tecem um todo. por isso que dizamos: h sempre um extracampo, mesmo na imagem mais fechada. E h sempre, simultaneamente, dois aspectos do extracampo: a relao atualizvel com outros conjuntos, a relao virtual com o todo. Mas num caso a segunda relao, a mais misteriosa, ser atingida indiretamente, no infinito, por intermdio e extenso da primeira, na sucesso das imagens; no outro caso ela ser atingida mais diretamente, na prpria imagem, atravs da limitao e neutralizao da primeira.13 Dreyer, citado por Maurice Drouzy, Carl Th. Dreyer n Nilsson, Ed. du Cerf, p. 353.

Resumamos os resultados desta anlise do quadro. O enquadramento a arte de escolher as partes de todos os tipos que entram num conjunto. Tal conjunto um sistema fechado, relativa e artificialmente fechado. O sistema fechado determinado pelo quadro pode ser considerado em relao aos dados que ele comunica aos espectadores: ele informtico, e saturado ou rarefeito. Considerado em si mesmo e como limitao, geomtrico ou fsico-dinmico. Considerado na natureza de suas partes, ainda geomtrico ou, ento, fsico e dinmico. um sistema tico, quando o consideramos em relao ao ponto de vista, ao ngulo de enquadramento: ento ele pragmaticamente justificado, ou exige uma justificao mais elevada. Enfim, determina um extracampo, seja sob a forma de um conjunto mais vasto que o prolonga, seja sob a forma de um todo que o integra.

2A decupagem a determinao do plano, e o plano a determinao do movimento que se estabelece no sistema fechado, entre elementos ou partes do conjunto. Mas, como j observamos, o movimento diz respeito tambm a um todo, que difere em natureza do conjunto. O todo o que muda, o aberto ou a durao. O movimento exprime, portanto, uma mudana do todo, ou uma etapa, um aspecto dessa mudana, uma durao ou uma articulao de durao. Assim, o movimento tem duas faces, to inseparveis quanto o direito e o avesso, o recto e o verso: ele relao entre partes, e afeco do todo. Por um lado, modifica as posies respectivas das partes de um conjunto, que so como seus cortes, cada uma imvel em si mesma; por outro lado, ele prprio o corte mvel de um todo, cuja mudana exprime. Sob um aspecto dito relativo; sob o outro, dito absoluto. Consideremos um plano fixo onde personagens se movimentam: eles modificam suas posies respectivas num conjunto enquadrado; mas esta modificao seria totalmente arbitrria se no exprimisse tambm algo que est mudando, uma alterao qualitativa mesmo nfima no todo que passa por este conjunto. Consideremos um plano onde a cmera se movimenta: ela pode ir de um conjunto a outro, modificar a posio respectiva dos conjuntos tudo isso s necessrio se a modificao relativa exprime uma mudana absoluta do todo que passa por estes conjuntos. Por exemplo: a cmera segue um homem e uma mulher que sobem uma escada e chegam a uma porta, que o homem abre; em seguida a cmera os deixa e retrocede num nico plano, contorna a parede exterior do apartamento, atinge a escada

descendo-a de costas, desemboca na calada e se ergue pelo exterior at a janela opaca do apartamento visto de fora. Tal movimento, que modifica a posio relativa de conjuntos imveis, s necessrio se exprime algo que est acontecendo, uma mudana num todo que passa, ele mesmo, por estas modificaes: a mulher est sendo assassinada, ela entrara livre e no pode mais esperar socorro algum, o assassinato inexorvel. Argumentar-se- que este exemplo (Frenesi, de Hitchcock) um caso de elipse na narrao. Mas, que haja elipse ou no, ou mesmo que haja narrao ou no, no importa por enquanto. O que conta nesses exemplos que o plano, seja ele qual for, tem como que dois plos: em relao aos conjuntos no espao, onde ele introduz modificaes relativas entre elementos ou subconjuntos; em relao a um todo, do qual exprime uma mudana absoluta na durao. Este todo nunca se contenta em ser elptico, nem narrativo, embora possa s-lo. Mas qualquer que seja, o plano tem sempre dois aspectos: por um lado, apresenta modificaes de posio relativa num conjunto ou conjuntos, por outro, exprime mudanas absolutas num todo ou no todo. Em geral, o plano tem uma face voltada para o conjunto, do qual traduz as modificaes entre as partes, e uma outra voltada para o todo, do qual exprime a mudana ou, pelo menos, uma mudana. Disto decorre a situao do plano, que pode ser definido abstratamente como intermedirio entre o enquadramento do conjunto e a montagem do todo. Ora voltado para o plo do enquadramento, ora para o plo da montagem. O plano o movimento considerado em seu duplo aspecto: translao das partes de um conjunto que se estende no espao, mudana de um todo que se transforma na durao. No se trata apenas de uma determinao abstrata do plano. Pois o plano encontra sua determinao concreta na medida que est sempre garantindo a passagem de um aspecto ao outro, a ventilao ou a distribuio dos dois aspectos, sua perptua converso. Retomemos os trs nveis bergsonianos: os conjuntos e suas partes; o todo que se confunde com o Aberto ou a mudana na durao; o movimento que se instaura entre as partes ou os conjuntos, mas que tambm exprime a durao, isto , a mudana do todo. O plano como o movimento que est sempre assegurando a converso, a circulao. Ele divide e subdivide a durao segundo os objetos que compem o conjunto, ele rene os objetos e os conjuntos em uma nica e mesma durao. Est sempre dividindo a durao em sub-duraes, elas prprias heterogneas, e reunindo-as numa durao imanente ao todo do universo. Posto que uma conscincia que opera tais divises e reunies, dir-se- do plano que ele age como uma conscincia. Mas a nica conscincia cinematogrfica

no somos ns, o espectador, nem o heri a cmera, ora humana, ora inumana ou sobre-humana. Que se considere o movimento da gua, o de um pssaro ao longe e o de um personagem num barco: eles se confundem em uma percepo nica, um todo tranqilo da natureza humanizada. Mas eis que o pssaro, uma gaivota comum, avana e vem ferir a pessoa: os trs fluxos se dividem e tornam-se exteriores uns aos outros. O todo se formar de novo, mas ter mudado: ter se tornado a conscincia nica ou a percepo de um todo dos pssaros, afirmando uma natureza inteiramente passarificada, voltada contra o homem, numa espera infinita. E se redividir novamente quando os pssaros atacarem, de acordo com os modos, os lugares, as vtimas de seu ataque. E se constituir de novo graas a uma trgua, quando o humano e o inumano entrarem numa relao indecisa (Os Pssaros, de Hitchcock). Tanto poderemos dizer que a diviso est entre dois todos, quanto que o todo est entre duas divises.14 O plano, isto , a conscincia, traa um movimento que faz com que as coisas entre as quais se estabelece no parem de se reunir em um todo, e o todo de se dividir entre as coisas (o Dividual). o prprio movimento que se decompe e se recompe. Decompe-se segundo os elementos entre os quais joga num conjunto: os que permanecem fixos, aqueles aos quais o movimento atribudo, os que fazem ou sofrem tal movimento simples ou divisvel... Mas tambm se recompe em um grande movimento complexo indivisvel segundo o todo cuja mudana exprime. Podemos considerar certos grandes movimentos como a assinatura prpria de um autor, a caracterizar o todo de um filme ou at o todo de uma obra, mas que ressoam com o movimento relativo de tal imagem assinada, ou de tal detalhe na imagem. Num estudo exemplar sobre o Fausto, de Murnau, Eric Rohmer mostrava como os movimentos de expanso e de contrao se distribuam entre as pessoas e os objetos num "espao pictural", mas tambm exprimiam verdadeiras Idias no "espao flmico", o Bem e o Mal, Deus e Sat.15 Orson Welles descreve muitas vezes dois movimentos que se compem, dos quais um como uma fuga horizontal linear numa espcie de jaula alongada e estriada, com abertura, e o outro como um traado circular cujo eixo vertical opera, no sentido da altura, uma plonge ou contraplonge:* se esses movimentos j so aqueles que animam a obra literria de Kafka,14

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Sobre a separao e a reunio dos fluxos, cf. Bergson, Dure et Simultanit, cap. 3 (Bergson toma por modelo os trs fluxos: de uma conscincia, de uma gua que escoa e de um pssaro que voa). Eric Rohmer, L'Organisation de !'Espace dam le Faust de Murnau, Col. 10-18. (*) Usa-se mais comumente a forma francesa do que a sua traduo "cmera alta" e "cmera baxa". (N. T.)

concluiremos que existe uma afinidade entre Welles e Kafka que no se reduz ao filme O Processo, mas antes explica por que Welles precisou confrontar-se diretamente com Kafka; se tais movimentos aparecem de novo e se combinam profundamente em O Terceiro Homem de Reed, concluiremos que Welles foi mais que um ator nesse filme, e participou intimamente da sua construo, ou que Reed foi um discpulo in spirado de Welles. Em muitos de seus filmes, Kurosawa tem uma assinatura que parece um ideograma japons fictcio: um grosso trao vertical desce de alto a baixo da tela, enquanto dois movimentos laterais mais finos a atravessam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita; um movimento complexo desse tipo, como veremos, tem relao com o todo do filme, com uma maneira de conceber o todo de um filme. Ao analisar certos filmes de Hitchcock, Franois Regnault distinguia para cada um deles um movimento global ou uma "forma principal, geomtrica ou dinmica", que poderiam aparecer em estado puro nos crditos: "as espirais de Um Corpo que Cai, as linhas quebradas e a estrutura contrastada por alternncia em preto e branco de Psicose, as coordenadas cartesianas em flecha de Intriga Internacional. E talvez os grandes movimentos desse filme sejam, por sua vez, componentes de um movimento ainda maior, que exprimiria o todo da obra de Hitchcock, e a maneira segundo a qual esta obra evoluiu, se transformou. Mas no menos interessante a outra direo, segundo a qual um grande movimento, voltado para um todo que muda, se decompe em movimentos relativos, em formas locais voltadas para as posies respectivas das partes de um conjunto, para as atribuies as pessoas e objetos, para as reparties entre elementos. o que Regnault estuda em Hitchcock (assim, em Um Corpo que Cai, a grande espiral pode tornar-se a vertigem do heri, mas tambm o circuito que ele traa com seu carro, ou ento o anel nos cabelos da herona16 ). Esse tipo de anlise desejvel para todo autor, o programa de pesquisa necessrio para toda anlise de autor, o que se poderia chamar de estilstica: o movimento que se instaura entre as partes de um conjunto num quadro, ou de um conjunto a outro num reenquadramento; o movimento que exprime um todo num filme ou numa obra; a correspondncia entre os dois, a maneira segundo a qual eles se respondem mutuamente, passam de um a outro. Pois tratase do mesmo movimento, ora compondo, ora decompondo, so os dois aspectos do mesmo movimento. E esse movimento o plano, o intermedirio concreto entre um todo que apresenta mudanas e um conjunto que tem partes, e que no pra de converter um no outro16

Franois Regnault, "Systme Formei d'Hitchcock", in Hitchcock, Cahiers du Cinma. Sobre a composio de um movimento que exprimiria o todo da obra, cf. p. 27.

segundo suas duas faces. O plano a imagem-movimento. Enquanto reporta o movimento a um todo que muda, o corte mvel de uma durao. Ao descrever a imagem de uma manifestao, Pudovkin diz: como se subssemos num telhado para v-la, depois descemos janela do primeiro andar para ler as faixas, depois misturamo-nos multido...17 apenas "como se"; porque a percepo natural introduz paradas, ancoragens, pontos fixos ou pontos de vista separados, mveis ou mesmo veculos distintos, enquanto a percepo cinematogrfica opera continuamente, num nico movimento cujas prprias paradas so parte integrante e no passam de uma vibrao sobre si mesmo. Consideremos o clebre plano de A Turba, de King Vidor, que Mitry denominava "um dos mais belos travellings de todo o cinema mudo": a cmera avana no meio da multido a contracorrente, dirige-se para um arranha-cu, sobe at o vigsimo andar, enquadra uma das janelas, descobre um hall cheio de escrivaninhas, entra, avana e chega at uma escrivaninha atrs da qual est o heri. Ou tambm o clebre plano de A Ultima Gargalhada, de Murnau: a cmera sobre uma bicicleta, inicialmente colocada num elevador, desce com ele e capta o hall do grande hotel atravs das vidraas, operando incessantes decomposies e recomposies, depois "corre atravs do vestbulo e dos enormes batentes da porta giratria num nico e perfeito travelling". A cmera, aqui, carrega consigo dois movimentos, dois mveis ou dois veculos, o elevador e a bicicleta. Ela pode mostrar um, que faz parte da imagem, e esconder o outro (pode tambm, em certos casos, mostrar na imagem a prpria cmera). Mas no isso que interessa. O que interessa que a cmera mvel como um equivalente geral de todos os meios de locomoo que ela mostra ou dos quais se serve (avio, carro, barco, bicicleta, marcha, metr...). Desta equivalncia Wenders far a alma de dois de seus filmes, No Correr do Tempo e Alice nas Cidades, introduzindo assim no cinema uma reflexo particularmente concreta sobre o cinema. Em outras palavras, o prprio da imagem-movimento cinematogrfica extrair dos veculos ou dos mveis o movimento que sua substncia comum, ou extrair dos movimentos a mobilidade que a sua essncia. Era a aspirao de Bergson: extrair, a partir do corpo ou do mvel ao qual nossa percepo natural vincula o movimento como a um veculo, uma simples "mancha" colorida, a imagem-movimento, que "em si mesma se reduz a uma srie de oscilaes extremamente rpidas" e "no passa, na17

Pudovkin, cit. por Lherminier, L Art du Cinma, Seghers, p. 192. Tambm conhecido por O Ultimo dos Homens ou O Ultimo Homem.

realidade, de um movimento de movimentos".18 Ora, aquilo de que Bergson considerava o cinema incapaz, porque levava em conta apenas o que se passava no aparelho (o movimento homogneo abstrato do desfilar das imagens), aquilo de que o aparelho o mais capaz, eminentemente capaz: a imagem-movimento, isto , o movimento puro extrado dos corpos ou dos mveis. No se trata de uma abstrao, mas de uma liberao. Trata-se sempre de um grande momento no cinema, como em Renoir, quando a cmera deixa um personagem e at lhe vira as costas, adquirindo um movimento prprio ao cabo do qual ela o reencontrar.19 Ao operar assim um corte mvel dos movimentos, o plano no se contenta em exprimir a durao de um todo que muda, mas faz incessantemente variarem os corpos, as partes, os aspectos, as dimenses, as distncias, as posies respectivas dos corpos que compem um conjunto na imagem. Um se faz atravs do outro. porque o movimento puro faz variar por fracionamento os elementos do conjunto segundo denominadores diferentes, porque decompe e recompe o conjunto, que ele tambm se reporta a um todo fundamentalmente aberto, cuja particularidade "se fazer" sem cessar, ou mudar, durar. E vice-versa. Foi Epstein quem mais profunda e mais poeticamente destacou essa natureza do plano como puro movimento, comparando-o a uma pintura cubista ou simultanesta: "Todas as superfcies se dividem, se truncam, se decompem, se quebram, como se imagina que acontece no olho de mil facetas do inseto. Geometria descritiva cuja tela o plano de topo. Em vez de se submeter a perspectiva, o pintor fende-a, entra nela (...). A perspectiva do exterior substituda, assim, pela perspectiva do interior, uma perspectiva mltipla, cambiante, ondulosa, varivel e contrctil como um higrmetro a cabelo. Ela no a mesma a direita que esquerda, nem no alto e embaixo. Vale dizer que as fraes que o pintor apresenta da realidade no tm os mesmos denominadores de distncia, nem de relevo, nem de luz". que o cinema, ainda mais diretamente que18

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Bergson, Matire et Mmoire, p. 331 (219); La Pense et le Mouvant, pp. 1382-1383 (164-165). Encontraremos freqentemente em Gance a mesma expresso "movimentos de movimentos". (A introduo a La Pense et le Mouvant est traduzida no volume Bergson, "Os Pensadores", Ed. Abril, 1984. Ver O Pensamento e o Movente, trad. Franklin Leopoldo da Silva, pp. 101-151. N. T.) Cf. a anlise de Andr Bazin que tornou clebre uma grande panormica de Renoi, em Le Crime de M. Lange: a cmera abandona um personagem numa extremidade do ptio, volta no sentido contrrio varrendo o lado vazio do cenrio, para atingir o personagem na outra extremidade do ptio, onde ele vai cometer seu crime (Jean Renoir, Champ Libre, p. 42: "este espantoso movimento de aparelho (...) a expresso espacial de toda a mire-en-scne"). Higrmetro a cabelo: os higrmetros so instrumentos da fsica que servem para medir o grau de umidade atmosfrica. O higrmetro a cabelo um modelo mais simples de higrmetro por absoro, que se baseia no fato de que algumas substncias orgnicas variam de volume quando recebem umidade. (N. T.)

a pintura, d um relevo no tempo, uma perspectiva no tempo: exprime o prprio tempo como perspectiva ou relevo.20 por isso que o tempo adquire essencialmente o poder de se contrair ou de se dilatar, assim como o movimento o de retardar ou acelerar. Epstein toca de perto o conceito de plano: um corte mvel, quer dizer, uma perspectiva temporal ou uma modulao. A diferena entre a imagem cinematogrfica e a imagem fotogrfica decorre disso. A fotografia uma espcie de "moldagem": o molde organiza as foras internas da coisa de tal modo que elas atingem um estado de equilbrio num certo instante (corte imvel). Enquanto a modulao no se detm quando o equilbrio atingido, e no pra de modificar o molde, de constituir um molde varivel, contnuo, temporal.21 Assim a imagem-movimento, que, deste ponto de vista, Bazin opunha fotografia: "O fotgrafo procede, por intermdio da objetiva; a uma verdadeira captao do registro luminoso, a uma moldagem (...) (Mas) o cinema realiza o paradoxo de moldar-se sobre o tempo do objeto e de captar, alm do mais, o registro de sua durao".22

3O que acontecia no tempo da cmera fixa? A situao foi muitas vezes descrita. Em primeiro lugar, o quadro definido por um ponto de vista nico e frontal, que o do espectador sobre um conjunto invarivel: no h, portanto, comunicao de conjuntos variveis remetendo-se uns aos outros. Em segundo lugar, o plano uma determinao unicamente espacial que indica uma "poro" de espao a esta ou aquela distncia da cmera, do primeiro plano ao plano distante (cortes imveis): o movimento no , assim, liberado por si mesmo e permanece preso aos elementos, personagens e coisas, que lhe servem de mvel ou de veculo. Finalmente, o todo se confunde com o conjunto em profundidade, de tal modo que o mvel o percorre passando de um plano espacial a outro, de uma poro paralela a uma outra, cada uma com sua independncia ou seu foco: portanto, no h propriamente nem mudana nem durao, na medida que a durao implica uma outra concepo da profundidade, que embaralha e desloca as zonas paralelas, em vez de superp-las. Podemos,20

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Epstein (crits, Seghers, p. 115) escreve esse texto a propsito de Fernand Lger, que foi sem dvida o pintor mais prximo do cinema. Mas ele retomar seus termos diretamente a propsito do cinema (pp. 138 e 178). A propsito desta diferena entre moldagem e modulao em geral, cf. Simondon, G., L' Individu et sa Gnse Physico-Biologique, PUF, pp. 40-42. Andr Bazin, Qu est-ce que le Cinma?, Ed. du Cerf, p. 151.

assim, definir um estado primitivo do cinema no qual a imagem est em movimento em vez de ser imagem-movimento; e com relao a este estado primitivo que se exerce a crtica bergsoniana. Mas, se perguntamos como se constituiu a imagem-movimento, ou como o movimento se liberou das pessoas e das coisas, constatamos que isto se deu sob duas formas diferentes, e, nos dois casos, de maneira imperceptvel: por um lado, evidentemente, atravs da mobilidade da cmera, quando o prprio plano torna-se mvel; mas por outro lado, tambm, atravs da montagem, isto , do raccord de planos, cada um ou a maioria dos quais podiam perfeitamente continuar fixos. Uma pura mobilidade podia ser atingida desse modo, extrada dos movimentos de personagens, com muito pouco movimento da cmera: era at o caso mais freqente, e especialmente ainda o do Fausto, de Murnau, ficando a cmera mvel reservada para cenas excepcionais ou momentos marcantes. Ora, ambos os meios se vero nos seus primrdios numa certa obrigao de se esconder: no s os raccords de montagem (por exemplo, raccords no eixo) deviam ser imperceptveis, como tambm os movimentos da cmera, na medida que se referiam a momentos ordinrios ou cenas banais (movimentos de uma lentido prxima do limite da percepo23). E que as duas formas ou meios s intervinham para realizar um potencial contido na imagem fixa primitiva, isto , no movimento enquanto ainda preso as pessoas e coisas. este movimento que j era prprio do cinema, e que reclamava uma espcie de liberao, no podendo se contentar com os limites em que o mantinham as condies primitivas. Tanto que a imagem dita primitiva, a imagem em movimento, definia-se menos por seu estado que por sua tendncia. O plano espacial ou fixo tendia a propiciar uma imagem-movimento pura, tendncia que passava a atuar insensivelmente atravs da mobilizao da

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O termo raccord no tem traduo entre ns. Usa-se a frmula francesa que, segundo o crtico Noel Burch, pode ter dois sentdos: o primeiro corresponde noo de "corte" ou "corte simples", e designa a mudana de plano: nesse sentido usa-se o termo "corte". No segundo est contida referncia maneira como se d a mudana de plano; usa-se o termo raccord, que se refere, ento, a qualquer elemento de continuidade entre dois ou vrios planos. Noel Burch distingue vrias modalidades de raccord: ao nvel dos objetos (um objeto que consta de um plano deve constar de outro com o qual ele faz raccord); ao nvel do espao (raccords de olhar, de direo, de posio seja de objetos, seja de pessoas); ao nvel do espao-tempo (envolvendo os diferentes tipos de relao que podem existir entre a decupagem no espao e a decupagem no tempo). Noel Burch, Praxis do Cinema, Lisboa, Editorial Estampa, 1973. (N. T.) Estes pontos essenciais foram analisados por Noel Burch: 1) o raccord de montagem e os movimentos de cmera tm origens muito diferentes; Griffith quem codifica os raccords, mas fazendo da cmera mvel um uso excepcional (Nascimento de Uma Nao); Pastrone quem faz da cmera mvel um uso ordinrio, mas negligenciando os raccords e situando-se "sob o signo exclusivo da frontalidade, caractersticos do primeiro cinema primitivo" (Cabria); 2) mas em Griffith e em Pastrone os dois procedimentos fazem face a uma mesma condio de imperceptibildade v oluntariamente procurada (Noel Burch, Marcel L'Herbier, Seghers, pp. 142-145):

cmera no espao, ou ento atravs da montagem de planos mveis ou simplesmente fixos no tempo. Como diz Bergson, apesar de no o ter visto para o cinema, as coisas nunca se definem pelo seu estado primitivo, mas pela tendncia oculta nesse estado. Podemos reservar a palavra "plano" para as determinaes espaciais fixas, pores de espao ou distncias em relao a cmera: como faz Jean Mitry, no apenas quando denuncia a expresso "plano-seqncia", segundo ele incoerente, mas com mais razo ainda quando v no travelling no um plano, mas uma seqncia de planos. ento a seqncia de planos que recebe movimento e durao. Mas como no se trata de uma noo suficientemente determinada, ser preciso criar conceitos mais precisos para distinguir as unidades de movimento e de durao: o que veremos com os "sintagmas" de Christian Metz e os "segmentos" de Raymond Bellour. No entanto, do nosso ponto de vista, por enquanto, a noo de plano pode ter unidade e extenso suficiente se lhe atribuirmos seu pleno sentido projetivo, perspectivo ou temporal. Com efeito, uma unidade sempre unidade de um ato que compreende, enquanto tal, uma multiplicidade de elementos passivos ou agidos. 24 Nesse sentido, os planos, enquanto determinaes espaciais imveis, podem perfeitamente ser a multiplicidade que corresponde unidade do plano, enquanto corte mvel ou perspectiva temporal. A unidade variar de acordo com a multiplicidade que ela contm, mas continuar sendo a unidade desta multiplicidade correlativa. Distinguiremos diversos casos a esse respeito. Num primeiro, o movimento contnuo da cmera definir o plano, sejam quais forem as mudanas de ngulo e de pontos de vista mltiplos (por exemplo, um travelling). Num segundo caso, a continuidade do raccord que constituir a unidade do plano, embora esta unidade tenha por "matria" dois ou vrios planos sucessivos que podem, alis, ser fixos. Do mesmo modo, certos planos mveis podem ter sua distino atribuda unicamente a limitaes materiais, e no entanto formar uma unidade perfeita em funo da natureza de seu raccord: como em Orson Welles, as duas plonges de Cidado Kane, onde a cmera atravessa literalmente uma vidraa e penetra dentro de um grande recinto, aproveitando-se da chuva que se abate contra a vidraa e a quebra. Num terceiro caso, nos encontramos diante de um plano de longa durao fixo ou mvel, "planoseqncia", com profundidade de campo: um plano desse tipo compreende em si mesmo todas as pores de espao simultaneamente, do primeiro plano ao plano afastado, mas no deixa de ter uma unidade24

Bergson, Essai sur les Donns Immdiates de la Conscience, p. 55 (60).

que permite defini-lo como um plano. que a profundidade no mais concebida a maneira do cinema "primitivo", como uma superposio de pores paralelas, em que cada uma diz respeito somente a si mesma, sendo apenas atravessadas por um nico mvel. Ao contrrio, em Renoir ou em Welles, o conjunto dos movimentos se distribui em profundidade de modo a estabelecer ligaes, aes e reaes, que nunca se desenvolvem uma ao lado da outra, num mesmo plano, mas se escalonam em distncias diferentes e de um plano a outro. A unidade do plano conferida aqui pela ligao direta entre elementos tomados na multiplicidade dos planos superpostos que deixam de ser isolveis: a relao das partes prximas e distantes que opera a unidade. A mesma evoluo aparece na histria da pintura, entre os sculos XVI e XVII: uma superposio de planos onde cada um preenchido por uma cena especfica, e onde os personagens se encontram lado a lado, substituda por uma viso completamente diferente. da profundidade, em que os personagens se encontram em linha oblqua e se interpelam de um plano ao outro, em que os elementos de um plano agem e reagem sobre os elementos de um outro plano, em que nenhuma forma, nenhuma cor se encerram num nico plano, em que as dimenses do primeiro plano acham-se anormalmente aumentadas para entrar diretamente em relao com o plano de fundo atravs da brusca reduo das grandezas.25 Num quarto caso, o plano-seqncia (pois h muitos tipos de plano-seqncia) no comporta mais nenhuma profundidade, nem de superposio nem de recuo: ao contrrio, ele rebate todos os planos espaciais sobre um nico primeiro plano que passa por diferentes quadros de tal modo que a unidade do plano remete a perfeita planura da imagem, enquanto a multiplicidade correlativa conferida pelos reenquadramentos. Era o caso

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Essas duas concepes da profundidade na pintura, nos sculos XVI e XVII, foram estudados por Wlfflin num belssimo captulo dos Principes Fondamentaux de l'Histoire de l'Art, Gallimard ("Plans et profondeurs"). O cinema apresenta exatamente a mesma evoluo, como dois aspectos muito diferentes da profundidade de campo que foram analisados por Bazin ("Pour en finir avec la profondeur de champ", Cahiers du Cinma, n 1, abril de 1951). Apesar de todas as suas reservas com relao tese de Bazin, Mitry concede-lhe o essencial: numa primeira forma, a profundidade recortada segundo pores superpostas isolveis, onde cada uma vale por si prpria (assim em Feuillade ou em Griffith); mas, em Renoir e em Welles, uma outra forma que substitui as pores por uma interao perptua, curto-circuitando o primeiro plano e o plano de fundo. Os personagens no se encontram mais num mesmo plano, eles se reportam uns aos outros e se interpelam de um plano ao outro. Os primeros exemplos dessa nova profundidade estariam talvez em Ouro e Maldio, de Stroheim, e corresponderiam perfeitamente anlise de Wlfflin: assim, a mulher se sobressalta num plano prximo, enquanto seu marido entra pela porta do fundo, e um raio de luz vai de um at o outro. (Conceitos Fundamentais da Histria da Arte, trad. Joo Azenha Jnior, Ed. Martins Fontes, 1984. Primeiro plano e plano de fundo so termos de perspectiva que indicam diferenas de profundidade. nesse sentido que sero usados tambm por Deleuze na anlise desenvolvida neste trecho. N. T.)

de Dreyer, nos seus planos-seqncia anlogos a superfcies chapadas, e que negam qualquer distino entre diferentes planos espaciais, fazendo o movimento passar por uma srie de reenquadramentos que se substituem a mudana de plano (Gertrud e A Palavra).26 As imagens sem profundidade ou com profundidade rasa formam um tipo de plano corredio e deslizante, que se ope ao volume das imagens profundas. Em todos esses sentidos, o plano tem realmente uma unidade. uma unidade de movimento, e como tal compreende uma multiplicidade correlativa que no o contradiz.27 No mximo pode-se dizer que essa unidade submete-se a uma dupla exigncia em relao ao todo, cuja mudana ela exprime ao longo do filme e em relao as partes, cujos deslocamentos em cada conjunto e de um conjunto ao outro ela determina. Pasolini exprimiu essa dupla exigncia de uma maneira muito clara. Por um lado, o todo cinematogrfico seria um nico e mesmo planoseqncia analtico, ilimitado por direito, e teoricamente contnuo; por outro, as partes do filme seriam de fato planos descontnuos, dispersos, disseminados, sem ligao imputvel. preciso, portanto, que o todo renuncie a sua idealidade e se torne o todo sinttico do filme que se realiza na montagem das partes; e, inversamente, que as partes se selecionem, se coordenem, entrem em raccords e ligaes que reconstituam pela montagem o plano-seqncia virtual ou o todo analtico do cinema. 28 Mas no existe essa diviso entre o que de fato e o que de direito (que implica em Pasolini uma grande repulsa pelo plano-seqncia, sempre mantido na virtualidade). H dois aspectos que so ao mesmo 26

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Em pintura, superfcie cochapada ou chapada a superfcie do quadro coberta de maneira uniforme pela mesma cor. (N. T.) A tentativa de Hitchcock em Festim Diablico, um nico plano-seqncia para todo o filme (interrompido unicamente para troca de bobina), corresponde ao mesmo caso. Bazin objetava que o plano-seqncia de Renoir, Welles e Wyler rompia com a decupagem ou com o plano tradicional, enquanto Hitchcock os conservava, contentando-se em operar "uma perptua sucesso de reenquadramentos". Rohmer e Chabrol respondem com razo que esta precisamente a novidade de Hitchcock, que transforma o quadro tradicional, enquanto Welles, inversamente, o conserva (Hitchcock, Ed. D'Aujourd'hui, pp. 98-99). Em oceanografia usa-se o termo "profundidade rasa", ou "plataforma", em oposio a "profundidades abissais". (N. T.) Bonitzer analisou todos esses tipos de plano, da profundidade de campo, planos sem p rofundidade, aos planos modernos que chama de "contraditrios" (em Godard, Syberberg) Marguerite Duras) em Le Champ Aveugle, Cahiers du Cinma-Gallimard. E, sem dvida, entre os crticos contemporneos, Bonitzer o que se interessou mais pela noo de plano e pela sua evoluo. Parece-nos que suas anlises muito rigorosas deveriam lev-lo a uma nova concepo do plano enquanto unidade consistente, a uma nova concepo das unidades (das quais encontraramos equivalentes na cincia). No entanto, ele antes delas extrai dvidas sobre a consistncia da noo de plano, cujo "carter mltiplo, ambguo e fundamentalmente falso' denuncia. com relao apenas a esse ponto que no podemos segui-lo. Pasolini, L'Exprience Hrtique, Paris, Payot, pp. 197-212.

tempo de fato e de direito, e que manifestam a tenso do plano como unidade. Por um lado, as partes e seus conjuntos entram em continuidades relativas, atravs de raccords imperceptveis, de movimentos de cmera, de planos-seqncia de fato, com ou sem profundidade de campo. Entretanto, sempre haver cortes e rupturas, ainda que a continuidade se restabelea a posteriori, a mostrar claramente que o todo no est desse lado. O todo intervm por outro lado e numa outra ordem, como aquilo que impede os conjuntos de se fecharem sobre si ou uns sobre os outros, o que atesta uma abertura irredutvel as continuidades, tanto quanto s suas rupturas. Ele surge na dimenso de uma durao que muda e no pra de mudar. Ele aparece nos falsos raccords enquanto plo essencial do cinema. O falso raccord pode atuar num conjunto (Eisenstein) ou na passagem de um conjunto a outro, entre dois planos-seqncia (Dreyer). Por isto mesmo no basta dizer que o plano-seqncia interioriza a montagem no ato de filmar; ao contrrio, ele coloca problemas especficos de montagem. Numa discusso sobre a montagem, Narboni, Sylvie Pierre e Rivette perguntam: para onde foi Gertrud, onde Dreyer a fez passar? E a resposta que propem : ela passou atravs da emenda. 29 O falsoraccord no nem um raccord de continuidade nem uma ruptura ou uma descontinuidade no raccord. O falso raccord por si mesmo uma dimenso do Aberto, que escapa aos conjuntos e as suas partes. Ele realiza outra potncia do extracampo, este alhures ou esta zona vazia, este "branco sobre branco impossvel de filmar". Gertrud passou atravs daquilo que Dreyer chamava de quarta e quinta dimenses. Longe de romper o todo, os falsos raccords