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8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 8/7/2008 NA REAL Fraude manteve ditador Mugabe no poder e originou crise política Democracia roubada no Zimbábue Manifestantes protestam contra o regime de Robert Mugabe na África do Sul; país media negociações KIM LUDBROOK | EFE vencedor, passou a capitalizar apoio internacional com a fim de forçar o ditador a capitular. O caos no Zimbábue foi relatado pela organização internacional Human Rights Watch, que documentou casos de violência, intimidação e de manipulação antes, durante e depois da reeleição de Mugabe. “A onda de violência ainda está em curso. A estratégia do ZANU-PF parece ser eliminar toda e qualquer oposição ao governo”, disse por e-mail a A TARDE Georgette Gagnon, diretora da Human Rights Watch na África. Apesar da pressão, inclusive dos EUA e da ONU, que considerou a eleição ilegítima, Mugabe não parece pretender largar o osso. A solução previsível é a criação de um governo de coalizão, como o implantado no Quênia, onde Raila Odinga virou primeiro-ministro e balanceou o equilíbrio de poder com o presidente Mwai Kibaki. O pacto pela união nacional no Zimbábue foi recomendado pelos líderes continentais durante a cúplula da União Africana, semana passada, no Egito. Mas Mugabe passou o recado: qualquer acordo só será possível se a oposição não contestar seu cargo de presidente. VITOR PAMPLONA [email protected] O agente penitenciário zimbabuano Stephen Yuda impressionou o mundo neste final de semana. Com uma câmera escondida, fornecida pelo jornal britânico The Guardian, Yuda filmou os dias que antecederam o segundo-turno das eleições no Zimbábue, realizado em de 27 de junho, e capturou instantes que comprovam a intimidação política no país do ditador Robert Mugabe, 84, no poder há 28 anos. Divulgado no sábado, o vídeo foca o agente preenchendo abertamente uma cédula eleitoral sob vigilância de um oficial do governo, que o orienta a votar em Mugabe, e eleitores coagidos a se declararem analfabetos para suas cédulas serem preenchidas por funcionários do partido do governo. As cenas captadas por Yuma, que saiu do Zimbábue sexta-feira passada, são provas fortíssimas da fraude, amplamente denunciada nas últimas semanas, nas eleições que conduziram Robert Mugabe, para seu sexto mandato seguido. A crise política começou após as eleições de 29 de março, cujo resultado só foi divulgado no início de maio. A corte eleitoral deu a vitória ao oposicionista Morgan Tsvangirai, do MDC [Movimento para Mudança Democrática]. Mas declarou não ter havido margem para evitar um segundo turno – o que não era previsto pelas regras. “Havia esperança de finalmente nos livrarmos de Mugabe, a vitória [de Tsvangirai] estava nos lábios do povo”, lamenta o poeta e músico Comrade Fatso, um dos principais integrantes da barricada de artistas não-alinhados ao regime de Mugabe. “Mas a demora para divulgar os resultados transformou o sonho das ruas em pesadelo”. TERROR – Após forçar o segundo turno, o ZANU-PF, partido do governo, instalou com apoio do Exército e de milícias um regime de terror que incluiu ameaças, prisões e espancamentos de opositores e mesmo de jornalistas, como o repórter do New York Times Barry Bearak. Acusado de “cometer falso jornalismo”, Bearak passou cinco dias numa prisão em Harare, capital do Zimbábue. Com o clima de insegurança, Tsvangirai retirou sua candidatura, alegando falta de condições para uma disputa justa. O líder do MDC acusa o governo da morte de 103 partidários e, temendo por sua integridade física, chegou a se refugiar na embaixada da Holanda em Harare. Quando saiu, a poucos dias de Mugabe se declarar # 103 . pessoas morreram vítimas da violência eleitoral atribuída ao governo de Robert Mugabe segundo a oposição. Fonte MDC Impasse eleitoral i Notícia integrada:Veja o vídeo que comprova a fraude no blogdodez.atarde.com.br 29.03 O atraso na divulgação do resultado das eleições de março desencadeou a crise e aumentou o clima de insegurança no Zimbábue Os zimbabuanos vão às urnas para eleger o presidente. Liderada pelo MDC, a oposição declara vitória com base em resultados preliminares 02.05 Mais de um mês depois das eleições, Morgan Tsvangirai é declarado vencedor, mas sem votos suficientes para evitar o segundo turno TSVANGIRAYI MUKWAZHI | AP EFE

Democracia roubada no Zimbábue

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Matéria sobre a crise eleitoral de 2008 no Zimbábue

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Page 1: Democracia roubada no Zimbábue

8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 8/7/2008

NA REAL ❚ Fraude manteve ditadorMugabe no poder e originou crise política

Democraciaroubada noZimbábue

Manifestantes protestam contra o regime de Robert Mugabe na África do Sul; país media negociações

KIM LUDBROOK | EFE

vencedor, passou a capitalizarapoio internacional com a fim deforçar o ditador a capitular.

O caos no Zimbábue foirelatado pela organizaçãointernacional Human RightsWatch, que documentou casos deviolência, intimidação e demanipulação antes, durante edepois da reeleição de Mugabe.

“A onda de violência ainda estáem curso. A estratégia do ZANU-PFparece ser eliminar toda equalquer oposição ao governo”,disse por e-mail a A TARDEGeorgette Gagnon, diretora daHuman Rights Watch na África.

Apesar da pressão, inclusive dosEUA e da ONU, que considerou aeleição ilegítima, Mugabe não

parece pretender largar o osso. Asolução previsível é a criação deum governo de coalizão, como oimplantado no Quênia, onde RailaOdinga virou primeiro-ministro ebalanceou o equilíbrio de podercom o presidente Mwai Kibaki.

O pacto pela união nacional noZimbábue foi recomendado peloslíderes continentais durante acúplula da União Africana, semanapassada, no Egito. Mas Mugabepassou o recado: qualquer acordosó será possível se a oposição nãocontestar seu cargo de presidente.

VITOR PAMPLONAv p a m p l o n a @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

O agente penitenciáriozimbabuano Stephen Yudaimpressionou o mundo neste finalde semana. Com uma câmeraescondida, fornecida pelo jornalbritânico The Guardian, Yudafilmou os dias que antecederam osegundo-turno das eleições noZimbábue, realizado em de 27 dejunho, e capturou instantes quecomprovam a intimidação políticano país do ditador RobertMugabe, 84, no poder há 28 anos.

Divulgado no sábado, o vídeofoca o agente preenchendoabertamente uma cédula eleitoralsob vigilância de um oficial dogoverno, que o orienta a votar emMugabe, e eleitores coagidos a sedeclararem analfabetos para suascédulas serem preenchidas porfuncionários do partido dogoverno.

As cenas captadas por Yuma,que saiu do Zimbábue sexta-feirapassada, são provas fortíssimas dafraude, amplamente denunciadanas últimas semanas, nas eleiçõesque conduziram Robert Mugabe,para seu sexto mandato seguido.

A crise política começou após aseleições de 29 de março, cujoresultado só foi divulgado no iníciode maio. A corte eleitoral deu avitória ao oposicionista Morgan

Tsvangirai, do MDC [Movimentopara Mudança Democrática]. Masdeclarou não ter havido margempara evitar um segundo turno – oque não era previsto pelas regras.

“Havia esperança de finalmentenos livrarmos de Mugabe, a vitória[de Tsvangirai] estava nos lábios dopovo”, lamenta o poeta e músicoComrade Fatso, um dos principaisintegrantes da barricada deartistas não-alinhados ao regimede Mugabe. “Mas a demora paradivulgar os resultados transformouo sonho das ruas em pesadelo”.

TERROR – Após forçar o segundoturno, o ZANU-PF, partido dogoverno, instalou com apoio doExército e de milícias um regimede terror que incluiu ameaças,prisões e espancamentos deopositores e mesmo de jornalistas,como o repórter do New YorkTi m e s Barry Bearak. Acusado de“cometer falso jornalismo”, Bearakpassou cinco dias numa prisão emHarare, capital do Zimbábue.

Com o clima de insegurança,Tsvangirai retirou sua candidatura,alegando falta de condições parauma disputa justa. O líder do MDCacusa o governo da morte de 103partidários e, temendo por suaintegridade física, chegou a serefugiar na embaixada da Holandaem Harare. Quando saiu, a poucosdias de Mugabe se declarar

#103 .pessoasmorreram vítimas daviolência eleitoral atribuídaao governo de RobertMugabe segundo a oposição.

Fonte ❚ MDC

Impasseeleitoral

i Notícia integrada:Ve j a ovídeo que comprova a fraudeno blogdodez.atarde.com.br

29.03

O atraso na divulgação doresultado das eleições demarço desencadeou a crise eaumentou o clima deinsegurança no Zimbábue

Os zimbabuanos vãoàs urnas para eleger opresidente. Lideradapelo MDC, a oposiçãodeclara vitória combase em resultadosp re l i m i n a re s

02.05Mais de um mêsdepois das eleições,Morgan Tsvangirai édeclarado vencedor,mas sem votossuficientes para evitaro segundo turno

TSVANGIRAYI MUKWAZHI | AP EFE

Page 2: Democracia roubada no Zimbábue

9| CADERNO DEZ! |SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 8/7/2008

TSVANGIRAYI MUKWAZHI | AFP

O líder oposicionista Morgan Tsvangirai: ganhou, mas não levouALEXANDER JOE| AFP

Mugabe toma posse do sexto mandato: rumo às três décadas de poder

Oposiçãotambém é alvode críticas

O líder do MDC, MorganTsvangirai, havia há poucos diasdeixado a embaixada da Holandaem Harare quando recebeu umconvite. Mugabe o convocava àcerimônia de posse de seu sextomandato. De acordo com aimprensa britânica, que cobreamplamente a crise no Zimbábue,Tsvangirai considerou o conviteuma zombaria típica do ditador.

Mas o bilhete, dizem analistas,teve outro significado. Mugabe,após semanas de negativas, davaenfim um sinal de que poderianegociar. Para o articulista doGuardian Chris McGreal, o líder doMDC considera as negociações umpasso em direção ao desmantelodo domínio do ZANU-PF por meioda divisão de poder. Já Mugabepretenderia cooptar e neutralizaro oponente a fim de evitar críticasda comunidade internacional.

”A fraqueza de Tsvangirai érefletida na inconsistência de suasposições. Há duas semanas eledeclarou que Mugabe tinha 48horas para negociar. Em seguida,mudou de posição e disse que iriainvestir nas negociações propondouma nova Constituição e novaseleições. E depois disse queconsideraria um acordo em queMugabe continuasse como chefede Estado”, escreveu McGrealsemana passada.

No New York Times, o analistaMark Y. Rosemberg, da ONGpró-democracia Freedom House,condenou a falta de pragmatismode Tsvangirai. Devido à maioria dascadeiras que o MDC obteve noParlamento, Rosemberg acreditaque o melhor caminho para aoposição seria limitar os poderespresidencias de Mugabe.

“Como primeiro-ministro,Tsvangirai poderia conseguir oapoio para as mudançasconstitucionais necessárias”.

Na luta pela liberdade, onascimento de um ditadorNos últimos 50 anos, o Zimbábueconviveu com o nacionalismoracista dos colonizadores brancos ea violência xenófoba de nativosnegros. Da autonomia concedidapela Grã-Bretanha em 1923 àindependência política em 1980, opaís viu a ascensão e queda de umgovernante branco, o inglês IanSmith, e posteriormente aconsolidação de Robert Mugabe,líder e herói da independência quese transformou em ditador.

“Mugabe é um típico autocratasurgido das guerras africanas deindependência”, diz o professorKabengele Munanga, do Centrode Estudos Africanos da USP. “Elemanipulou eleições, mudou aConstituição e elaborou leis queprimeiro protegiam as terras dosbrancos. Depois, as expropriavam”.

Até 1980, o Zimbábue era aRodésia do Sul. Ainda que em 1965tenha se proclamado República,nem a coroa britânica nem a ONUreconheceram a independência.Entre os motivos estava a intençãode impor a supremacia branca nomais puro estilo do apartheid.

Os movimentos anticolonialistascomeçaram antes da 1ª GuerraMundial. Seus artífices foram ospróprios colonizadores, quepassaram a administrar o governoe as terras após a autonomia.

“A luta dos brancos não teveparticipação dos negros, queficaram décadas alijados dasoportunidades econômicas e dopoder”, explica Munanga. Noentre-guerras, surgiu o movimentonacionalista negro, com doislíderes nativos: Robert Mugabe eJoshua Nkomo. A guerrilhainiciada pelos dois foi o germe daguerra de independência. O lancedecisivo veio em 1976, com a uniãode Mugabe e Nkomo para criar aFrente Patriótica, que derrubou ogoverno de Ian Smith.

Quatro anos depois, Mugabe

chegou ao poder, mudou o nomedo país para Zimbábue e instituiuum regime para converter domíniobranco em supremacia negra. “Seulema era ‘recuperar a África paraos africanos’. Mas, na prática, odiscurso não se traduziu natransferência da propriedade daterra, o principal fator de ordemeconômica a instigar as rivalidadesno continente africano”, diz oprofessor da USP. Em 1987 oditador ampliou seus poderes comuma reforma constitucional. Nadécada seguinte, anunciou aredistribuição das terras entre osnegros. De início, usou a lei parabarganhar mais apoio e beneficiaraliados e integrantes do governo.

Depois, realmente repartiuantigas propriedades de cidadãosbrancos entre camponeses negrossem-terra. Mas não ofereceucompensação aos proprietários, oque elevou as tensões no campo etransformou os novos ocupantesem alvo. Pelas arbitrariedades, oscríticos dizem que Mugabe nãoautoriza, mas legitima a violência.

❛“Robert Mugabe éum típico autocratasurgido das guerrasde independênciaafricanas”

Kabengele Munanga, do Centrode Estudos Africanos daUniversidade de São Paulo ❚

22.06Após ser preso cincovezes durante acampanha, Tsvangirairetira sua candidaturae se refugia naembaixada da Holanda

27.06O segundo turno érealizado. Dois diasdepois, Mugabe édeclarado eleito com85% dos votos e tomaposse de seu sextomandato

01.07Tsvangirai deixa aembaixada holandesa.Começa a cúpula daUnião Africana, quepede um governo deunião nacional, masnão condena Mugabe

TAURAI MADUNA | EFE TSVANGIRAYI MUKWAZHI | AP CRIS BOURONCLE | AFP