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DESAFIOS AO ENSINO DE BIOLOGIA NA INCLUSÃO DO SURDO
GOMES, Paulo César1
FRIGERO, Maria Luisa Passos2
Eixo Temático: Políticas Públicas de Inclusão Educacional.
RESUMO
Este texto busca relacionar e discutir diante do panorama atual da legislação de inclusão dos surdos, da valorização de uma cultura surda, do reconhecimento legal da LIBRAS como forma de expressão e da recente regulamentação da profissão do intérprete; com aspectos considerado relevantes na aprendizagem dos conteúdos biológicos pautados como relevantes para a construção de uma cidadania e inserção do surdo na cultura científica. São apresentados dois relatos de experiência da inclusão escolar de alunos surdos em turmas de ciências naturais nos anos finais do Ensino Fundamental em duas distintas cidades. Apesar das garantias legais, um tipo improvável e perverso de exclusão escolar continua a marginalizar e segregar alunos e alunos com necessidades educativas especiais. De outro lado, a participação ativa da comunidade escolar pode alterar significativamente os rumos da inclusão escolar do aluno surdo.
Palavras-Chave: Ensino de Biologia. Inclusão Escolar de Surdos. LIBRAS.
1 INTRODUÇÃO
Este texto trata do relato de experiência acerca da inclusão do aluno surdo em turmas
das disciplinas Biologia e Ciências. Primeiramente, são apresentadas visões de ciência
bastante difundidas e aceitas atualmente e que interferem diretamente nas escolhas que os
professores fazem em sua prática educativa. O texto buscar relacionar aspectos recentes
apontados para a construção de uma cidadania e sua relação com o ensino de ciências.
Primeiramente são apontados dados recentes sobre os aspectos legais e dados estatísticos
sobre a surdez no Brasil.
No ano de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que
5,1% ou, aproximadamente, dez milhões de pessoas no Brasil possuem alguma deficiência
auditiva. Deste número, 1,7 milhão possuem grande dificuldade para ouvir e outros 344.200
são surdos. As maiores densidades populacionais com alguma dificuldade auditiva
concentram-se nas regiões Nordeste e Centro-oeste, mas também nos estados do Rio Grande
do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais. Cerca de 1.000.000 de pessoas com este perfil
possuem até dezenove anos de idade e encontram-se, portanto, em idade escolar (BRASIL,
2013).
1 Universidade Estadual Paulista – UNESP, Instituto de Biociências de Botucatu – IBB, Departamento de Educação. Doutor em Educação para a Ciência. Contato: [email protected]. 2. Graduanda em Ciências Biológicas. Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista – UNESP.
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Existe amparo na legislação brasileira para a inclusão do estudante com as
Necessidades Educativas Especiais (NEE) em escolas públicas e privadas, dentre estas se
podem apontar: (1) Constituição Federal do Brasil, Art. 206, inciso I e Artigo 208; (2) Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDBEN, Lei 9394 de 1996, Artigo 59, incisos I e
III; (3) Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA, Lei 8069 de 1990, Art. 53, inciso I;
Artigo 54, Inciso III; (4) Decreto n.° 5.626, 22/12/2005 que propõe a inclusão da Língua
Brasileira de Sinais, doravante, LIBRAS como objeto de ensino, pesquisa e extensão; e (5)
Especificamente aos alunos deficientes auditivos — DA, cf. Lei n.° 10.436, 24/04/2002,
decorrente do Decreto n.° 5.626/2005, sobre o incentivo do uso e da difusão da LIBRAS. Em
nível mundial, vale destacar ainda a Declaração de Salamanca , adotada pela Organização das
Nações Unidas em evento na cidade espanhola de mesmo nome, ocorrido de 7 a 10 de junho
de 1994, a qual busca a equidade de oportunidades para pessoas com deficiência. Entretanto,
apesar de todo o aparato legal mencionado, há muito preconceito e restrição ao acesso e à
permanência do aluno deficiente em escolas públicas e privadas por parte de pais, professores,
gestores e alunos (GOMES, MINGUILI, 2014).
Especificamente no que se refere à situação dos surdos no Brasil, das suas inúmeras
conquistas e dos avanços legais que as possibilitaram, estes alunos e cidadãos continuam
segregados pelas barreiras linguísticas em aulas de Ciências e Biologia. Seja porque seus
professores nada sabem sobre LIBRAS e não preparam aulas com recursos visuais adequados
e suficientes ou, porque, apesar das garantias presentes na legislação, a presença do intérprete,
segundo relato de professores, não é constante em suas salas de aulas (GOMES, BASSO,
2014; QUADROS, 2007). Compreende-se que os alunos surdos devem desenvolver ao
máximo suas capacidades cognitivas, de compreensão e de raciocínio em distintas
possibilidades de aprendizagem no curso de biologia necessariamente mediada pela LIBRAS
e considerando, simultaneamente, quais concessões e adaptações curriculares deverão ser
adotadas pela escola e pelo professor no contexto da inclusão escolar. O desenvolvimento do
surdo se dá mediado pela aquisição da linguagem de sinais e a consequente inserção no
mundo da cultura (SACKS, 2010) (compreendendo também integrante deste mundo, a cultura
científica).
Considerando as diferenças existentes entre os termos Integração e Inclusão,
explicitados abaixo, acredita-se que a inclusão, que deve ocorrer de forma real e não
demagógica, contemple necessariamente a aquisição de novos repertórios linguísticos em
LIBRAS nos processos de ensino-aprendizagem de biologia possibilitando uma verdadeira
inserção social e cultural do surdo para o pleno exercício de sua cidadania.
3
Assim, o processo de Integração de pessoas com necessidades educativas especiais
consiste em “um processo de educar/ensinar crianças ditas normais junto com crianças
portadoras de deficiência, durante uma parte ou na totalidade do seu tempo de permanência na
escola” (CARVALHO, 1999, 36). De outro lado, a Inclusão escolar é entendida como
“processo de educar conjuntamente e de maneira incondicional, nas classes do ensino comum,
alunos ditos normais com alunos — portadores ou não de deficiências - que apresentem
necessidades educacionais especiais” (idem, 1999, p.38, grifo nosso).
A definição de inclusão, apresentada por Carvalho (1999) é coerente com a
apresentada na Declaração de Salamanca, na qual, advoga que “as escolas devem se ajustar a
todas as crianças, independentemente das suas condições físicas, sociais, lingüísticas e outras”
(ONU, 1994). Também coerente com Carvalho é o texto presente em documentos oficiais,
nos quais a inclusão escolar não se trata meramente da: “permanência física desses alunos
junto aos demais educandos, mas representa a ousadia de rever concepções e paradigmas,
bem como desenvolver o potencial dessas pessoas, respeitando suas diferenças e atendendo
suas necessidades” (BRASIL, 2001, p. 28, grifo nosso).
No mesmo documento e, num raciocínio que também se estende às aulas de biologia e
ciências, que “em vez de procurar, no aluno, a origem do problema, define-se pelo tipo de
resposta educativa e de recursos e apoios que a escola deve proporcionar-lhe para que obtenha
sucesso escolar” (idem, 2001, p. 33, grifo nosso).
De modo complementar, a Inclusão Escolar não pode tornar-se uma justificativa para
ampliar os cortes orçamentários nos parcos recursos destinados à Educação brasileira, pelo
contrário. Uma verdadeira e genuína inclusão escolar, não se trata de mera inserção de alunos
deficientes em classes regulares de ensino. Trata-se de processo que também prevê aporte
financeiro adequado para a formação de professores e garantia de melhores salários,
reestruturação profunda das escolas — que não se restringe unicamente a alterações no
mobiliário, na infraestrutura dos prédios e no material didático adaptado —; além de apoio
psicológico para alunos, familiares e suporte financeiro para a contratação permanente da
chamada rede de apoio (STAINBACK, STAINBACK, 1999; GOMES, MINGUILI, 2014).
Quaisquer propostas distantes das apresentadas por estes autores é apenas demagogia inócua
que certamente levará a Educação brasileira a um grau de calamidade ainda maior em relação
ao panorama atual.
Dois importantes fatos ocorreram nos últimos dez anos. O primeiro deles foi a
regulamentação da profissão de intérprete de LIBRAS é recente no Brasil, ocorreu em 1.° de
setembro de 2010, com a promulgação da Lei Federal n° 12.319 que estabeleceu as
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atribuições do tradutor e intérprete para o exercício de suas competências. Outro aspecto bem
recente é o reconhecimento oficial pelo poder público da LIBRAS como meio legal de
comunicação e expressão (cf. Lei Federal n° 10.436, de 24 de abril de 2002). Aliás, esta
mesma Lei define LIBRAS como “forma de comunicação e expressão, em que o sistema
lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um
sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas
surdas do Brasil” (BRASIL, 2002). Muitas pesquisas e estudos em nível de mestrado e
doutorado têm contribuído consistentemente com a cultura surda, entre eles, pode-se citar
brevemente o trabalho da lingüista Margot Latt Marinho (2007), Skliar (2005; 2004) e os
inúmeros trabalhos de Ronice Müller Quadros e seus colaboradores (2007; 2004; 2003). O
segundo fato é que no ano de 2012 venceu o prazo de dez anos para que as Instituições de
Ensino Superior (IES) atendam à Lei n.° 10.436, de 24 de abril de 2002 regulamentada pelo
Decreto n° 5.626, de 2005, para que incorporem a LIBRAS como componente curricular em
seus cursos de Licenciaturas (inclusive as Ciências Biológicas), Fonoaudiologia, Normal
Superior, Educação Especial e Pedagogia.
Neste sentido e apesar de a inclusão escolar do aluno com surdez estar na pauta dos
educadores desde a década de 1990, há especificidades para o ensino de biologia que
infelizmente ainda mantêm o aluno alijado dos processos de ensino e de aprendizagem.
Marinho (2007) destacou que isto se dá, em parte, por alguns aspectos principais: (a) pela
falta de classificadores ou de sinais suficientes (e necessários) acerca da interpretação seja do
texto escrito de biologia, seja da explicação oral do professor deste curso; (b) apesar da
fluência em LIBRAS, a enorme dificuldade que os alunos surdos têm diante do texto escrito,
inclusive o texto biológico, com seus termos e vocabulário da área; (c) da dependência que o
aluno surdo tem de um mediador (do professor ou do intérprete) para a compreensão da
biologia, já que os dicionários de LIBRAS invariavelmente são muito básicos e, porque o
dicionário em língua portuguesa possui enunciado incompreensível para os surdos; (d) do
empobrecimento do material de apoio e visual das salas de aulas e da (e) forma como
professores planejam e estruturam suas aulas. De outro lado, existem iniciativas que buscam
divulgar o trabalho com pessoas surdas no Ensino de Biologia para alunos surdos como os
divulgados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Um dos principais
problemas enfrentados é a ausência de sinais ou classificadores para termos e nomes de uso
corrente no curso de Biologia (ROSA et al, 2014; GOMES, BASSO, 2014; MARINHO,
2007). A seguir serão apresentados alguns aspectos do ensino de ciências e biologia.
2. CIÊNCIA E ENSINO DE CIÊNCIAS
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O ensino de ciências e biologia remete diretamente à compreensão de Ciência, que
seus professores têm, dos valores conferidos a ela e os seus muitos atributos. Bizzo (2012a)
divide as visões de Ciência em diferentes pontos de vistas de grandes grupos distintos: (a)
visão de ciência eficiente: o primeiro grupo acredita que a ciência é uma maneira
privilegiada, preditiva e eficiente de ver e conhecer o mundo, percebendo como ele é e
funciona; (b) visão de ciência universal: o segundo, percebe a ciência como um
conhecimento consensualmente confiável, que é chancelado pelos pares e pelo crivo da
comunidade científica; (c) visão de ciência subjetiva: o terceiro e último ponto de vista
percebe e acredita na ciência como um ou muitos discursos construídos pelas diferentes
sociedades em seu tempo histórico, cumpre um papel principal, o de reproduzir (o autor diz
refletir) valores sociais (BIZZO, 2012a). Este autor percebe maior relação entre a primeira e a
segunda visão de Ciência e que tais visões de ciência refletem diretamente nas escolhas que
professores de ciências e biologia fazem em suas salas de aula, em suas estratégias de ensino,
na forma como percebem as aprendizagens e como as avaliam.
O que é consensual entre todas estas visões de ciência, no contexto deste trabalho, é
que a Ciência foi feita por e para uma sociedade de ouvintes. A inserção docente em uma ou
outra visão modifica a forma como o profissional da Educação que atua no ensino de ciências
percebe o Homo sapiens sapiens enquanto ser humano e histórico, sobre os processos de
construção desta humanidade e identidade, sua inserção e a relação com a sociedade e mesmo
na relação homem-natureza. Uma visão que contempla o ensino de ciências para todos
também contempla a inclusão de alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE)
dentro dos limites de suas especificidades e possibilidades.
Neste contexto de difusão do conhecimento científico [realmente para todos], a
Declaração de Budapeste (UNESCO, 1999) destacou que,
A educação em ciência em sentido amplo, sem discriminação e abrangendo todos os níveis e modalidades, é um requisito fundamental da democracia e também do desenvolvimento sustentável. Nos últimos anos, medidas de abrangência mundial foram adotadas, visando promover a educação fundamental para todos (idem, p34).
No mesmo sentido do documento da UNESCO, os autores Krasilchik e Marandino
(2004) e Delizoicov et al (2002) também alertaram sobre a importância da apropriação dos
conhecimentos oriundos da ciência pelos diferentes segmentos da população, classes sociais e
culturas além da transição de um ensino pautado na transmissão e de um saber enciclopedista
para a aquisição de um saber escolar contextualizado, que pautado em pesquisas no ensino de
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ciências e biologia, possibilitasse que os alunos relacionassem também aspectos históricos e
culturais na apreensão de conhecimentos desta natureza.
Processos de ensino-aprendizagem de conhecimentos biológicos devem minimamente
considerar que os alunos possam: (i) se apropriar da lógica interna da biologia enquanto
ciência, seus códigos intrínsecos, (ii) se instrumentalizar na compreensão de problemas
contemporâneos; (iii) questionar verdades sedimentadas na explicação de fenômenos naturais;
(iv) se posicionar diante de questões provenientes de crenças pessoais, seus aspectos místicos,
míticos e religiosos; (v) compreender historicamente o papel da necessidade e da curiosidade
na busca do conhecimento; (vi) entender as manifestações de diferentes formas de vidas, as
interações e modificações ao longo do tempo e espaço; além de (vii) discutir, de modo
fundamentado, questões polêmicas de nossa história recente. (SONCINI, CASTILHO
JÚNIOR, 1992, p. 21). No âmbito deste trabalho, é questionado se estes aspectos das
aprendizagens dos conteúdos biológicos poderiam ser estendidos verdadeiramente [e em igual
teor] aos alunos surdos?
Krasilchik (2008) salientou que os professores que ensinam a Biologia falam, sem
dialogar, em 85% do tempo de suas aulas. Aulas desta natureza, isto é, uma quase palestra
unidirecional e centrada no professor ou como prefere a autora, um “ensino informativo”;
caminham no sentido contrário dos recentes resultados de pesquisas em ensino de ciências,
pois seus professores não tomam conhecimento sobre o que pensam e como pensam seus
alunos e tampouco possibilitam aos estudantes o desenvolvimento de sua capacidade de
expressão. É consenso entre diferentes autores que o ensino de biologia não pode se restringir
a conteúdos fragmentários, pouco significativos, enciclopédicos, episódicos ou anistóricos e,
até mesmo apresentados na forma de curiosidades, regrinhas e definições a serem
memorizadas (MARANDINO et al, 2009; KRASILCHIK, 2008; LEVINAS, 2007;
DELIZOICOV et al, 2002; SONCINI; CASTILHO JÚNIOR, 1992). Aliás, as escolhas de
professores acerca da forma como ensinam biologia podem
Privilegiar um ensino que valoriza apenas a acuidade dos conhecimentos de referência, em detrimento da importância destes para o desenvolvimento cognitivo dos estudantes e/ou para a vida prática. Se, de modo distinto, nos afastamos demasiadamente do universo acadêmico, corremos o risco de descaracterizar os conhecimentos que pretendemos socializar, a tal ponto que deixamos de ensinar as Ciências Biológicas (MARANDINO et al, 2009, p. 87/88).
Este dualismo presentes no interior dos componentes curriculares Ciências e Biologia
contemplam a ideia inicial ou as visões de ciência apresentadas por Bizzo (2012a), ora mais
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academicista, como nas duas primeiras visões, ora mais subjetiva, utilitarista e com cunho
social, como na última visão de ciência apresentada. Marandino et al (2009) sustentam que a
caracterização de um ensino de ciências e biologia “exclusivamente” com cunho social atende
objetivos curriculares específicos e que muito pouco tem, em matéria de pertencimento, à área
de referência originária. São exemplos destes os projetos acerca de “gravidez e aborto,
sexualidade e homossexualismo, racismo, drogas, fome, de questões ambientais e religiosas;
de aspectos relativos à biotecnologia, tais como transgênicos, clonagem e células tronco”.
(idem, p. 51).
3. PARA QUÊ AFINAL ENSINAR CIÊNCIAS PARA SURDOS?
O texto científico é repleto de conceitos interligados, tão imbricados, que dependem
uns dos outros para a sua compreensão (MARANDINO, 2002, LEMKE, 1997). A forma
como o professor traduz e transpõe estes conceitos para seus alunos pode, e muito,
comprometer os significados efetivamente elaborados [ou construídos] pelos alunos. Certa
vez, um professor de física ensinava os conceitos de energia cinética e potencial a seus alunos
e percebeu que não sabiam o que era a energia; e que eles entendiam que potencial e potência
eram a “mesma coisa”. Uma alternativa e estratégia de ensino utilizada por muitos professores
é a busca num dicionário pela definição da palavra. No caso da energia, a palavra remete a
muitos significados. Na Física é entendida como a “capacidade que um corpo ou sistema
físico tem de produzir trabalho (símbolo: E)”3, mas há outras definições como: vigor,
firmeza, segurança, energia elétrica e fonte energética. Quando se restringe à definição física
e, especialmente quando se ensina alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, eles
passam a questionar o que é “capacidade”, “corpo”, “sistema físico” e “trabalho”. Cada um
destes descritores possui significados próprios e que, se considerados separadamente, podem
se afastar do conceito de energia. Quando se pensa em valorização da cultura surda e da
educação de surdos por meio da Linguagem Brasileira de Sinais – LIBRAS se almeja que os
surdos tenham acesso ao saber sistematizado e historicamente acumulado assim como ocorre
com alunos ouvintes. Um aspecto garantido por Lei, mas que poderia ser inibido e repelido
por mitos e crenças docentes sobre a aprendizagem de surdos acerca do texto escrito. Farias
(2006) relata a existência de mitos acerca da aprendizagem de alunos surdos. O primeiro mito
reflete a crença que a aprendizagem da língua escrita se dá pela simples inserção do surdo no
contexto de alfabetização das salas de aulas regulares de ouvintes. O segundo, que os surdos
não aprendem porque têm restrições e limitações cognitivas de aprendizagem e, por último,
3 Em web: <http://www.priberam.pt/dlpo/energia>
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que suas interpretações não são capazes de relacionar e interpretar aspectos polissêmicos4 da
linguagem.
4. RELATO DE EXPERIENCIAS COM ALUNOS SURDOS
A seguir foram apresentados dois relatos de experiências em duas diferentes turmas do
6.º ano do Ensino Fundamental em duas diferentes escolas públicas de cidades distintas.
RELATO I Após concurso público, efetivei-me em dois cargos, um de biologia e outro de ciências na região
metropolitana da cidade de São Paulo. Tinha jornada de quarenta horas semanais. Estava lotado numa escola da periferia da cidade e que atendia quatro mil alunos em três turnos diferentes. Os colegas disseram que existira um quarto turno para atender toda a demanda de alunos. Todo o bairro localizava-se em área de proteção ambiental, ainda em situação irregular, invadida pelos moradores da comunidade. Era uma periferia violenta com homicídios, tráfico de drogas, roubo de veículos, estupros... Apesar da dura realidade, adaptei-me a situação de comecei a trabalhar em algumas manhãs e noites e todas as tardes. Nas manhãs e noites ministrava aulas de Biologia para turmas do Ensino Médio e lecionava para todas as sete turmas de sextos anos, no período da tarde (que ia da letra A à G). As turmas eram superlotadas, uma média de quarenta alunos por sala. A única exceção era o sexto ano G que tinha “apenas” doze alunos. O que inicialmente parecia estranho e contraditório, em relação às demais turmas, revelou-se de maneira bastante peculiar. O 6.º ano G era o que os colegas docentes chamavam de “classe montada”, isto é, uma turma repleta de alunos com toda a sorte de problemas. Eram alunos com problemas comportamentais, alunos com deficiências físicas e intelectuais, com atrasos na aprendizagem, repetentes ou que tinham abandonado a escola por um dado período e os alunos que eram LA ou liberdade assistida oriundos da Fundação Casa, um órgão público responsável pela educação, guarda e reabilitação de menores infratores. Os LA’s assistiam aulas e retornavam à referida fundação. Todos foram inseridos arbitrariamente numa mesma sala de aula: o 6.º ano G. A turma era difícil, pois os alunos perambulavam o tempo todo pela sala, saíam para o pátio e aprontavam traquinagens. Um mês após o início das aulas recebi nesta turma uma aluna completamente surda. Em conversa com a mãe, esta disse que ficaria muito feliz se a filha apenas socializasse com os outros alunos e com a rotina da escola. Não havia intérprete de LIBRAS na escola, material adaptado e nenhuma alternativa que pudesse auxiliar a aluna de alguma forma nas aulas de ciências. Além da surdez, a aluna apresentava uma conduta sexual socialmente inadequada para o contexto escolar: exibia frequentemente as mamas aos demais colegas da sala durante as aulas e apalpava o órgão genital dos meninos assim que tinha oportunidade. A turma, nestas condições, era um desafio e ao mesmo tempo uma ofensa aos demais educadores. Um desafio porque exigia uma ação educativa pautada em uma prática educativa diferenciada e fundamentada em conhecimentos não adquiridos nos cursos de formação inicial. Era também uma ofensa porque resultava em prejuízos aos próprios alunos, que poderiam estar distribuídos em todas as demais turmas, o que provavelmente facilitaria o trabalho educativo realizado com todos os alunos. Algumas escolas públicas infelizmente ainda adotam esta postura e lógica perversa da “classe montada” no sentido de poupar os professores efetivos ou mais antigos e que já conhecem as políticas segregacionistas da escola antes mesmo da atribuição oficial das turmas. A aluna surda era copista. Ela registrava os conteúdos da lousa e só. A comunicação com os outros alunos e com o professor era bastante limitada. Apesar de utilizar experimentos durantes as aulas (fizemos o “estragando o mingau” e outros) e partir de situações problemas para que os alunos resolvessem, o desempenho dos alunos era sempre aquém do esperado na turma dos excluídos. Tudo o que foi apresentado em ciências ao longo do ano letivo, para o contexto desta turma, era muito chato, entediante ou desinteressante na visão destes alunos “precocemente amadurecidos” pela vida.
RELATO II Logo no início do ano letivo, recebi em minhas aulas de ciências dois alunos surdos: Marcelo e João
(nomes fictícios). A turma era um 6.º ano do Ensino Fundamental. Era assustador porque eles não falavam absolutamente nada. Faziam ruídos e gritavam. Fiquei bastante apreensivo e temeroso com a notícia que eles seriam meus alunos em função da dificuldade de comunicação. Antes de as aulas começarem, a direção da escola entrou em contato com a Prefeitura Municipal da cidade e solicitou com urgência um intérprete da linguagem
4 Vale lembrar que há vertentes de estudos acadêmicos que tratam: (a) de processos de ensino-aprendizagem de ciências e biologia mediados pelo usos de analogias e metáforas; (b) uso da chamada transposição didática na produção do texto escolar de ciências para diferentes públicos e (c) uso de “elementos didatizantes” em textos de vulgarização científica e popularização da ciência.
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brasileira de sinais (LIBRAS) para atuar de forma permanente na escola, pois era a primeira vez que a situação de incluir alunos surdos ocorria. A turma era composta por vinte e cinco alunos, todos frequentes, doze meninas e treze meninos. A escola era numa área central de uma cidade de pouco mais de 150.000 habitantes localizada no interior do Estado de São Paulo. No geral era uma turminha boa. Eram bons alunos, pois participavam ativamente das aulas, faziam perguntas bem pertinentes ao conteúdo ministrado com frequência e eram disciplinados. Os colegas de sala receberam bem Marcelo e João. Em pouco tempo estes dois alunos fizeram várias amizades e até arranjaram namoradas. No que se refere às aulas de ciências, eu, enquanto professor tinha sérias dúvidas se Marcelo e João estavam realmente aprendendo ciências. Eu não sabia nada de LIBRAS. Sabia um pouco do alfabeto e recebi um DVD com distribuição gratuita pelo Governo Estadual. As aulas contavam com a participação ativa e efetiva da intérprete que fazia a tradução em LIBRAS dos conteúdos ministrados. A intérprete tinha experiência e sempre me dava bronca nas ocasiões que falei, explicando o conteúdo, mas sem olhar para o rosto dos alunos. Algumas vezes falei olhando para a lousa porque explicava meus esquemas e desenhos. Ela explicitou a importância do contato visual com os alunos surdos. O grande nó na sala teve início com uma unidade didática que tratava de conhecimentos físicos acerca de pressão, densidade, massa, volume, força e peso. O material adotado trazia um questionamento que foi apresentado aos alunos. Era mais ou menos assim: “Por que um bloco maciço de 10T afunda no oceano e um barco de massa equivalente e sem defeitos flutua?” As dúvida começaram de Marcelo, de João e da própria intérprete. As dúvidas eram tantas que passei a duvidar se o que eu de fato o que eu queria ensinar estava sendo aprendido. A intérprete admitiu que não sabia muita coisa de ciências e que estava aprendendo muitas coisas durante a aula mesmo. Quando os alunos surdos não sabiam o significado de alguma coisa, a intérprete utilizava de maneiras diversas para explicar os sentidos da explicação dada. Ela utilizava bastante o “português sinalizado”, soletrava a palavra desconhecida com o uso do alfabeto em LIBRAS, por exemplo, D-E-N-S-I-D-A-D-E e fazia uso de classificadores para ensinar os conceitos científicos e amenizar as dúvidas. Uma situação bastante difícil era quando ela faltava. João e Marcelo se dirigiam ao professor e gesticulavam “dizendo” coisas sobre os outros alunos, para perguntar suas dúvidas e pediam para ir ao banheiro: era quase tudo incompreensível. Os outros alunos, os ouvintes tiveram uma participação fundamental no processo de inclusão de João e Marcelo, não apenas em ciências, mas em todos os outros componentes curriculares, pois mais da metade da turma empenhou-se em aprender LIBRAS e a utilizar os classificadores para se comunicar com os surdos. Este “pequeno” grande gesto fez toda a diferença quando se pensa em inclusão do surdo no contexto escolar. Depois do meio do ano letivo, mesmo se a intérprete faltava ou se ausentava da sala, os colegas auxiliavam durante todo o tempo. Foi um passo certo no processo de inclusão de ambos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática de justaposicionar alunos em “classes montadas” é inclusão excludente,
como descrito no Relato I. Infelizmente é prática que existe apenas para legitimar o discurso
oficial da inclusão escolar de alunos deficientes, mas que na prática não ocorre. Os alunos da
turma no relato II revelaram que incluir o surdo em aulas de ciências é possível, no entanto,
há de se considerar o seguinte questionamento: a educação científica do surdo só um
problema de adequação da linguagem, tradução ou de transposição didática?
6. REFERÊNCIAS
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