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A violn cia exe rcida contra os anima is suscita u ma reprovao crescentena s opinies pb licas ocide ntais, um a reprovao que , freq en teme nte,
se torna ainda mais v ivaz med ida que diminui a fam iliar ida de com as
vtima s. Na scida da indigna o com os ma us-tratos infligidos aos a nima isdoms t icos e d e e s timao , em uma poca n a q ual bur ros e cavalos de
f iacre faziam par te do ambiente cot id iano, atualmente, a compaixo
nutre-se da crueldade a q ue estariam expostos seres com os qua is os am i-
gos dos animais, urbanos em sua ma ioria, no tm ne nhu ma proximida-de fsica: o gad o de corte, pe que nos e gra nd es an imais de caa, os touros
da s tourad as, as cobaias de lab oratrio e os a nimais fornecedores de pe le,as ba leias e as focas, as esp cies selvag en s ame aad as pe la caa p reda-
tria ou pe la d eteriorao de seu h ab itat etc. As atitude s de simp atia para
com os an imais tam b m variam, claro, seg un do as tradies culturaisnacionais1. O h orror leg timo a o sofr ime nto d esne cessr io , e m esmo aconscincia de uma responsabilidad e moral da espcie h uma na em asse-
gu rar o bem-e star dos seres com os qu ais ela p ar t ilha o planeta , so as
principa is motivaes d a sen sibilida de ecolgica n os pa ses latinos. Emcontrapa rtida , nos pa ses do norte da Europa e nos Estad os Unidos pare-
cem g an ha r terren o as teses ma is rad icais da dee p e cology , qu e conside -
ra todos os compon en tes do me io na tural como sujeitos de direitos hom-logos aos hum an os.
Todavia, na prtica, as ma nifestaes d e simpa tia p elos animais so
orde nad as em uma escala de valor geralmen te inconscien te, mas to-talmente e xplcita em algun s anim al philosophe rs (Singe r 1989; Re ga n
1983) cujo p ice ocupa do pe las e spcies pe rcebidas como as ma is
prxima s do home m e m fun o de se u comp ortam en to, fisiologia, facu l-dad es cognit ivas ou da capacidad e que lhes a t r ibu da d e sen t ir emo-
es . Na turalmen te, os ma mferos so os mais bem a quinh oados ne ssa
hierarquia do interesse, e isso inde pen de ntem en te do me io onde vivem .
ESTRUTURA OU SEN TIMEN TO :
A RELAO C OM O ANIMALNA AMAZNIA
Philipp e De scola
MAN A 4(1):23-45, 1998
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Ningu m, assim, parece se p reocupar com a sorte dos ha renq ue s ou dos
ba calha us, ma s os golfinh os, qu e com e les so p or vezes a rrastados pe las
redes de p esca, so estritame nte protegidos pelas convenes internacio-na is. Qua nto s me du sas ou s tnias, nem m esmo os mem bros mais mili-
tantes d os movime ntos de l ibe rao an ima l parecem concede r- lhe s umadignidade to conseqe nte q uan to a outorgada aos mamferos e aos ps-
saros.
O an tropocentrismo, ou seja, a cap acidade de se iden tificar com n o-hum anos em funo de seu suposto grau d e p roximidade com a espcie
hum ana , parece ass im cons titu ir a tend ncia espontne a d as d iver sas
sensibilida de s ecolgicas contemp orne as, inclusive en tre aqu eles queprofessam as teor ias mais radicalmente ant i -humanis tas . Tal at i tude
poder ia lemb rar a m ane ira como os povos p r-modernos r epresen tam
suas relaes com o amb iente: respe ito pela na tureza, ati tud e be n vola
pa ra com as plantas e os animais ou cuida do de no pr em p erigo o equi-lbrio dos ecossistema s foram erigidos e m atribu tos osten sivos das popu -
laes triba is, motivand o em gran de p arte a simpa tia qu e se lhes de dica.
Mu itas orga nizaes ecolgicas, alis, en contram u ma fonte d e inspira-
o na s vises de m un do dos nd ios da Ama znia ou d a Am rica do N or-te, convertidos pe la mdia e m smb olos da convivncia h armoniosa com
uma natureza cad a vez ma is amea ada. A me -terra ou a floresta sa-grada tornam-se conceitos gen ricos da sabe doria tnica, mas seria b em
difcil en contrar seu eq uivalente e xato na m aior pa rte dos povos a q ue m
se atr ibui esse t ipo de n oo, pois tais transp osies em m o du pla n oesto livres d e qiproqu: freq en teme nte, a retrica e colgica d e alguns
lde res ind gen as exp rime me nos as concep es cosmolgicas tradicio-
na is comp lexas e diversificada s, logo d ifceis de formu lar no cdigosimplificador de nossa economia poltica d a n atureza do qu e u m d ese-
jo de obter o a poio de orga nizaes in terna cionais inf lue ntes , graa s a
um discurso facilme nte re conhe cvel, e com a finalida de de condu zir luta s
de reivind icao te rr itor ial (Descola 1985; Albert 1993). De se lvag en s,espera-se qu e ten ham a l ingu age m d e f ilhos da na tureza; como eles dei-
xariam de faz -lo se, por a, pode m p recave r-se da espolia o fun diria?
Por outro lado, tais converg ncias rapidam en te en contram seu s limi-tes, especialme nte qu an do certas formas locais de caa ferem a sensibili-
da de de militantes e colgicos pouco inclina dos a en carar com indulgn -
cia os p ar t icular ismos cul turais que prejudicarem o be m-estar d os ani-mais. Ento, a ca a de focas en tre os Inuit ou aqu ela de grand es an ima is
en tre os Masai aparece como brba ra sobrevivncia que u ma b oa dose
de ed ucao e m p roteo do a mbiente pe rmitiria e rrad icar. Pior ainda , as
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tcnicas de subsistncia a dotada s por populaes tr iba is podem ser per-
ceb ida s por movime ntos in te gr istas de conserva o da na tureza como
pe r turbad oras do equ i lbr io de e spaos proteg idos , e n o so raros oscasos em que povos au tc tones se d efron tam com a in terd io de seu
acesso s fontes de reservas, erradam ente ditas na turais, j que forameles qu e, p or sua presen a m ultissecular, contriburam sut ilme nte pa ra
transformar sua ecologia. O a ntropocentr ismo m odern o, com efei to ,
am plamen te inconscien te e n o combina com a id ia de que nosso am-bien te e m gran de p ar te an t rp ico , me smo em reg ies do mun do que
pa recem, como a Amaznia, ter conservado su a virgind ad e (Bale 1993).
Os m al-en ten didos alis, por veze s, produ tivos en tre minoriastriba is e m ovime ntos ecologistas de vem -se ao fato de q ue , a d esp eito de
similitud es su pe rficiais e interesses tticos comun s, suas re spe ctivas a ti-
tude s com relao na tureza so totalme nte diferen tes. Proteg er os an i-
ma is outorgan do-lhe s direitos ou impondo a os huma nos deve res pa racom eles a pen as es ten der a uma nova classe de seres os pr incpios
jurdicos que rege m a s pessoas, sem colocar em cau sa de ma ne ira fund a-
men tal a sepa rao moderna entre na tureza e socieda de. A socieda de
fonte do direito, os homens o ad ministram , e p orque so conde na da s asvioln cias pa ra com os hum an os que as violn cias com relao aos an i-
ma is se tornam conde n veis. N o nad a d isso para nu me rosas socied a-de s pr-moderna s, que , encaran do os animais no como sujeitos de direi-
to tute lad o, ma s como pe ssoas morais e sociais plen am en te au tnomas,
se em pe nha m to pouco em e stende r- lhe s sua proteo, quan to ju lgamde sne cessrio velar pe lo be m-e star de vizinh os distante s. Decidir tratar a
na tureza com respei to e be ne voln cia supe que a n atureza e xis ta e
tamb m, sem dvida, que tenha sido primeirame nte ma ltratada . Quand oa n atureza n o existe sob a forma de uma esfera a utnoma, a relao com
os an imais s pode ser d i feren te da nossa , e a que s to sobre m atar um
an imal s pode se colocar em te rmos muito dis tin tos daq ue les que n os
so fam iliares. isso qu e u m d esvio pe la Amaznia pod eria pe rmitir esta -belecer.
Diferen teme nte d o du alismo modern o qu e distribu i hu ma nos e no-
hu ma nos em d ois domnios ontolgicos mais ou men os estanq ue s, as cos-mologias am aznicas es tabelecem u ma diferena d e g rau, no de natu-
reza, entre os homen s, as planta s e os an imais. Os Achua r da Ama znia
eq ua toriana , por exem plo, dizem q ue a m aioria d as plantas e dos animaispossu i uma a lma (wakan ) s imilar q ue la dos huma nos, um a faculdade
qu e, ao a ssegura r- lhe s a conscin cia reflexiva e a in ten cional ida de , os
inclui en tre as p essoas (aents), torna-os capa zes de expe rime ntar em o-
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es e permite-lhe s trocar men sage ns com seus pa res e com me mb ros de
outras e sp cies, e, assim, com os hom en s (Descola 1986; 1993a). Essa
comun icao e xtral ing s tica possibi li tad a p ela a pt ido a tr ibu da wakan de tran smitir, sem me diao sonora, pen same ntos e de sejos a lma
de um de stina trio, modificand o assim, por vezes sua revelia, seu esta-do de e sprito e seu comportam en to. Para e sse fim, os huma nos dispe m
de uma vas ta gama de encan tamentos mgicos , os a n en t , graas aos
qu ais pode m ag ir distncia sobre seus cong n eres, e tam b m sobre asplanta s , os animais , ass im como sobre os seres sobren atu rais e a lgu ns
ar tefatos . A harmonia conjug al , um b om ente nd ime nto com pa rente s e
vizinhos, o sucesso na caa, a fab ricao de um a ce rmica bonita ou umcurare e ficaz, uma roa com p lantas variada s e viosas, tudo isso dep en -
de d as relaes de conivncia que os Achua r consegu irem e stabe lecer
com um a var ieda de g rande de in ter locutores hum anos e n o-hum an os,
suscitando-lhes disposies favorveis por intermdio dos anent .Os Achuar es tabe lecem cer tas d is t ines en t re a s en t idade s que
povoam o mu nd o. A decorrente h ierarqu ia d os objetos an ima dos e inani-
ma dos no , contud o, fun da da sobre grau s de pe rfeio do ser , sobre
diferenas d e apa rncia, ou sobre uma acumu lao p rogress iva de pro-priedad es intrnseca s. Ela se b aseia na variao dos modos de comunica-
o , a q ual au torizada pe la a pree nso de q ua lida de s sen s ve is des i -gu almen te distribudas. Na me dida em q ue a cate goria da s pessoas en-
globa espritos, plantas e an ima is, todos dotados de uma alma, essa cos-
mologia n o diferen cia os huma nos e os n o-hu ma nos; ela somen te intro-duz u ma escala d e ordena o segund o os nveis de t roca d e informao
tidos como possveis. Os Achu ar ocup am , como se pode ria pre ver, o p i-
ce da pirmide: eles se vem e se falam na me sma lng ua . O dilogo ain-da p ossvel com os mem bros das outras tr ibos Jvaro que os cercam, e
cujos dialetos so ma is ou me nos mutu am en te inteligveis, sem q ue , toda-
via, se possam excluir os ma l-en ten didos fortuitos ou d elibe rad os. Com
os brancos hispan fonos e as popu laes vizinh as de lngu a q u chua , e oan troplogo tamb m , v-se e fala-se s imu ltane am en te, por me nos que
exista uma lngu a e m comum; mas o domnio de sta ge ralmen te impe r-
feito para aqu ele dos inter locutores qu e no a tem como lngu a materna ,in troduzindo-se ass im a p ossibi lida de de um a d iscordn cia sem n tica
qu e tornar du vidosa a correspondn cia d as faculdad es qu e cer t i fica a
exis tn cia d e d ois seres sobre um me smo plano do re al . As dis t inesacen tuam -se med ida q ue se d istancia do domnio das pe ssoas comple-
tas,penk e aen ts , de finida s, an tes de tud o, por sua a ptido l ing stica.
Assim, os hu ma nos podem ver as plantas e os animais que, qu an do pos-
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suem uma alma, so sup ostos pe rcebere m os huma nos; ma s se os Achua r
fa lam com eles g raas aos en can tame ntos a n en t , no obtm re sposta
sen o por ocasio d os sonh os. Suced e o me smo com os espr itos e comalgun s heris da mitologia: atentos ao qu e lhe s dizem , e g eralmen te invi-
s veis em sua forma p r ime ira, s podem ser apre en didos em toda a suaplenitude no curso dos sonhos e tran ses induzidos pelos alucinge nos.
As pessoas a ptas a se comunicarem so igualmente hierarquizada s
em funo d o grau d e p erfeio da s normas sociais supostas de re gere mas diferen tes comunidad es na s qua is elas se acha m d istribu da s. Algu ns
no-hum anos so mu ito p rx imos dos Achua r por serem repu tad os de
respe itar re gra s ma trimoniais id nticas: e sse o caso dos Tsun ki, espri-tos do rio; de vrias esp cies d e ca a (maca cos bar rigu dos, tucan os...); e
de plan tas cultivad as (a ma nd ioca e o am en doim...). Em contrapa rtida, h
seres que se comprazem n a p romiscuidad e sexua l e assim, constanteme n-
te, violam o princpio da exogam ia; este o caso do gu ariba ou do co. Onvel ma is baixo da integra o social ocupa do p elos solitrios: os esp-
ritos iwianch, encarna es das almas dos mortos que vaga m ab and onada s
na flores ta , ou ent o os gran de s preda dores como o jag ua r ou a sucur i.
Entreta nto, por ma is distanciad os das leis da civilida de qu e p ossam e star,todos esses seres solitr ios so auxiliares dos xam s, qu e os em pre ga m
pa ra d isseminar o infortnio ou comba ter seu s inimigos. Situad os nas m ar-ge ns da cultura, esses seres nocivos no so de modo algum selvagen s,
um a vez qu e os senhores aos quais servem n o esto fora d a socied ade .
Foram d escritas em grande nm ero cosmolog ias an logas p ara a sreg ies d e floresta d as te rras ba ixas d a Am rica do Su l (ver Weiss 1975;
Viveiros de Ca stro 1992; van de r Ha mm en 1992; Ja ra 1991; rhem 1996;
Gre na nd 1980; Rena rd-C ase vitz 1991; Re iche l-Dolma toff 1976). Emb oradifiram e m sua a rquitetura intern a, a caracterstica comum a toda s essas
cosmologias no separar o universo da cul tura, que ser ia apangio
exclusivo dos hu ma nos, do universo da n atureza, n o qu al estaria includo
o restan te da s entidade s que constituem o mund o. Os anima is, e a s plan-tas e m me nor me dida, so a percebidos como sujei tos sociais , dotados
de ins t itu ies e d e comp or tam en tos pe r fei tame nte s imtr icos q ue les
dos home ns. Alm disso, os sere s do cosmos define m-se m en os por umaessncia a bstrata ou por uma faculdade particular (a p resena ou ausn -
cia d e l ing ua ge m, por exem plo, ou de conscin cia ref lexiva e em oes)
do qu e p e las posies que ocupa m u ns em re lao aos ou t ros , se ja e mfun o de ca racter st icas de se u me tab olismo e, pr incipalme nte , de seu
reg ime a l imen tar, se ja em nome d o t ipo de comunicao em que so
repu tados cap azes de se e nga jar. A ide nt ida de d e cada um e st , ent o,
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sujeita a mutaes ou me tamorfoses, j q ue fund ada em campos de rela-
es que variam segu nd o os tipos de percep o recproca ou n o recpro-
ca a tribu dos s en tida de s em jogo. Com efeito, cada esp cie, em sentidoamp lo, sup osta a preen de r as outras e spcies a par t ir de seus prpr ios
critr ios, de modo qu e e m condies normais um caa dor no ver , porexemp lo, que sua presa a nimal se v a si mesma como um h uma no, ne m
que ela o v como um jagu ar. Do me smo modo, o jag ua r v o sangu e q ue
est be be ndo como cauim; o macaco-aranha que o pssaro cassico acre-dita caar apen as um ga fanhoto para o homem ; e as an tas de que a ser-
pen te pe nsa fazer sua pre sa principal na rea lida de so hu man os. Graas
t roca pe rmanen te da s apa rncias ge rada p or esses des locame ntos depe rspect iva, de boa -f os animais se consideram d otados dos mesmos
atr ibu tos culturais que os hum an os: seus pe na chos so pa ra eles coroas
de p luma , sua pe lage m um a roupa , seu b ico uma lana ou suas gar ras
faca s. Cu ltivam roas, caa m, cozinh am e se d ed icam a r i tua is elab ora-dos sob a direo de seus chefes e xams.
O hipe r-relativismo pe rceptivo da s cosmologias am aznicas en ge n-
dra u ma ontologia s veze s bat izada de p erspe ct iv ismo (Viveiros de
Ca stro 1996), que ne ga aos hu ma nos o ponto de vista de Sirius, afirma n-do qu e m ltip las v ises de mu nd o podem conviver sem se contradize-
rem. Isso aca rreta um a conseq ncia tica imp ortan te: se os an ima is sevem a s i mesmos como pe ssoas emp enh ada s em a t iv idad es cu l tu ra i s,
ent o no possvel neg ar- lhe s a huma nidade q ue p retende m en carnar.
Ao contrrio do dua lismo mode rno, qu e d esdob ra um a m ultiplicida de dediferen as cul turais sobre o fun do de um a n atureza imu tvel , o pen sa-
me nto am erndio en cara o cosmos inteiro como an imado por um me smo
regime cul tural , d ivers i f icado no tanto por naturezas heterogneasqua nto por modos diferen tes de se a pree nd er u ns a os outros . Avalia-se
toda a diferena para com o antropocentr ismo ocidental , para quem
alguns an ima is so dignos de p roteo em nome d e supostas faculdade s
mu ito prxima s da qu elas dos hu ma nos: a se nsibilidade , o alt ru smo, oamor ma terno etc. No se acha na da disso na Amaznia, onde o referen-
te comum s en t idade s que povoam o mun do no o homem e nqua nto
espcie, mas a hum anidade enq uan to condio. Os an imais so com cer-teza d iferen tes de ns em sua morfologia e em seu comportamen to; con-
tudo, a existn cia social que eles tm nossa revelia id ntica nossa.
Alm disso, e como os mitos o atestam a bun da ntem en te, a cond io ini-cial de u ns e ou tros cu l tural , no na tural . Em um cont inuum original
onde os hum anos no se distingu em das plantas e d os animais, onde u ns
e outros falam , tocam m sica ou faze m cer mica, uma s rie de aconte ci-
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me ntos catastrficos vai introdu zir descontinuidad es de ap ar ncia e de
pontos de vista q ue conde na ro os sujeitos do cosmos a um a certa forma
de i lus o: dorava nte , salvo circunstn cias e xcepcionais, os homen s n opodero mais ver os animais como congneres l igados a um dest ino
comum , e en t o pe lo tr abalho da me mr ia , a l imen tado pe la t r ad iooral , que se pode r res tabelecer uma cont inuidad e q ue os sent idos no
pe rmitem ma is aver iguar . Por meio da a o r itual , pode-se a ind a ul tra-
pa ssar o solipsismo ind uzido pe la difere ncia o das facu ldad es sen sveis.Os ritos de caa e cultivo, a m ed ia o do xam na s relaes com os esp-
r itos que rege m o d estino dos an ima is de caa e dos peixes, a oniroma n-
cia, tud o isso ate sta no cotidian o que plan tas e a nima is so inte rlocutoresleg timos; a d espe ito das apa rncias enga na doras, eles no vivem e m u m
plano ontolgico distinto da qu ele d os hum an os.
Ora, os povos ama znicos tiram d a caa e da p esca um a pa rte d e sua
al imentao. Quase todo dia os homens se confrontam, ento, com ane cessida de d e fazer pe recerem seres cobertos de p en as, plos ou esca-
ma s, ma s que com eles se pa recem por vrios atribu tos. Todos conh ecem
as circunstncias dessa destruio. A morte d os animais e sua prepa ra-
o n o dissimu lad a em recintos afastad os da viso dos profan os, comoocorre entre n s atualmente, e todo mund o na Amaznia fam iliar izado
de sde a ma is tenra idade com aq ue les corpos ainda qu ente s que se voesfolar, estripa r e cortar p ara cozinh ar. Graas s intermin veis histrias
de caa que os homens gostam d e contar, todo mundo tamb m sabe qua l
foi o comportame nto do a nimal antes d e morrer , o me do, a ten tat iva defug a a bortad a, o sofrime nto, as man ifesta es de a flio dos seu s comp a-
nhe iros. Em suma , ningu m pode ignorar de que man eira u m ser vivo se
torna comida. Como e sses povos pode m e nt o conciliar a violn cia q ueexercem cotidianam en te contra os animais com a idia de qu e e sses seres
so, de a lgu m mod o, hu ma nos disfarad os? Como ma tar e alime nta r-se
de qu ase-sem elhan tes sem qu e tal incorpora o do vivo pe lo vivo apare -
a como u ma forma d e ca niba lismo? Tal contradio mu ito ma is forteque aq ue la qu e, eventua lme nte, ns prprios podem os expe rime ntar na
hora de consumir a carne . Os vege tarian os que se recusam cum plicida -
de da des t ru io de uma v ida , ne m p or is so se consideram cong nere sdos an ima is que se ab stm de comer . Os ma is de cididos par t id r ios da
l ibe rao an imal decer to reconhe cem d irei tos in trnse cos q ue les qu e
Michelet cham ava n ossos irmos inferiores, mas nen hu m de les ima gi-na que as vacas , os porcos ou as cobaias levem uma v ida dup la e que ,
sob a iluso de seu a vatar animal, se escondam seres dotados de u ma cul-
tura idn tica n ossa.
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A soluo desse di lema foi formulada muitas vezes em termos
morais: consciente d o dano qu e obrigado a cau sar a um d e seus seme -
lhan tes , o caador se em pen har ia em todos os tipos de compensaessimb licas pa ra aliviar sua m conscin cia e preca ver-se da s conseq n-
cias qu e seu a to n o poderia deixar de acarretar. A antiguidade o m ri-to dessa e xplicao funcional. Frazer a prope d esde o comeo do sculo
pa ra da r conta d o que cham ava r i tos expiatrios em relao aos animais
caa dos (Frazer 1922: cap s. 53 e 54). A etnogra fia russa do p r-gu erra in-vocou-a igua lme nte pa ra e xplicar os ritos de caa siberian os, em pa rticu-
lar a obr igao d os homens d e al imen tar os ongon , aque la categ oria d e
entidad es que eng loba tanto figuras em forma animal ou h uma na qua ntoan imais selvage ns de es t imao: al ime nta nd o tais subst itu tos de caa
acolhidos no lar, o caador a ssim de sviaria a ving an a q ue est conscien-
te de me recer pe las violn cias qu e e xerce contra a ca a (Zelenin 1952).
Em um tom similar, em bora se m m en o e xplcita Sib ria, Philippe Erik-son (1984) props considerar a cr iao de an imais selvage ns n a Amaz-
nia como um a p rtica comp en satria, rep ara o simb lica d o dan o infli-
g ido aos gen i tores por meio da ad oo e sustento dos fi lhotes da caa.
Cer tame nte os povos da r eg io obedece m de a n tem o a um a t ica dacaa no m atar m ais anima is alm do ne cessr io , compor tar-se com
respe ito para com a caa, n o faz -la sofrer toa e tc. Vrios deles ofere -cem ainda contrapar t idas r i tuais aos animais ou aos espr i tos que os
represen tam na fo rma de o fer tas de tab aco , comida ou me smo a lma s .
Entretan to , em u m un iverso cul tural em q ue a reciprocida de se r ia umvalor card inal, tais dispositivos no che ga riam a sup rimir comp letam en te
o ma l-estar conceitua l q ue o caador experimentaria diante da retira-
da unilatera l de um a vida. Da a fun o de justificao da cria o de an i-ma is: acolhen do os rfos, no p oupa nd o esforos para ga rantir- lhe s os
cuidad os nece ssrios sobrevivn cia, os nd ios anu lariam o ato de vio-
ln cia qu e essa ad oo torna ne cessrio.
Do me smo modo, a m conscin cia do caador que Step he n Hu gh-Jone s invoca pa ra interpretar a ati tud e a mb ivalente d os nd ios da Ama-
znia em re lao carne d e caa : a carne d ese jvel, mas p er igosa
qua ndo consumida e m e xcesso ou de modo indiscriminado. Uma de nsarede de inte rdies e pre scries alime nta res, de p rocedimen tos r itua is
de d escontam inao e de d ispositivos sem n ticos de ocultao de ve ate-
nua r, ento, as conseq ncias da t ris te obr iga o em que se en contramos homens de de s tru ir v idas a n imais para r eproduzir a sua . Segu ndo
Hu gh -Jones, essa mistura d e reconcilia o e dup licidade com rela o ao
ma tar e consum ir o an imal no ser ia p rpr ia a os nd ios da Ama znia;
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refletiria um trao un iversal da natu reza hu ma na e, ne sse sentido, o com-
por tame nto dos am er ndios nad a te r ia d e e xtico ou arcaico, mas ser ia
inteiram en te h omlogo m conscin cia que os ocide ntais exper imen -tam a tualmente d iante da carne d os aougu es (Hug h-Jones 1996).
No ne go absolutame nte que a ne cessidad e de matar animais parase a lime nta r possa suscitar sen time ntos am bivalen tes. Bem no incio de
minha estada en tre os Achua r, eu m esmo tive um a e xperin cia m uito viva
qu an do atirei em u m a nimal pela primeira vez na vida , instado por me ucompa nhe iro desarma do que n o via razo verdad eira pa ra que a espin-
ga rda de que tive a idia ridcula d e me prover a fim de completar a p an -
plia d e a ntroplogo no pu desse servir para m atar o macaco que zomba -va de ns em u m g alho baixo. mesmo m uito provve l qu e tal amb iva-
lncia se ja un iversal, se levarmos em conta os estud os de psicologia cog-
nitiva sobre a construo ontoge n tica d as ca teg orias d o vivo. Com efei-
to, pa rece qu e a s cr ian as desen volvem mu ito cedo uma esp cie de teo-r ia ing nua dos estados me ntais, isto , um sab er implcito que lhe s pe r-
mite in terpre tar os atos e as a t itude s dos sere s animad os em funo de
certos atr ibutos que impu tam a eles, como a intencionalidad e ou a cap a -
cida de de se nt i r em oes. Os traba lhos de Susa n Ca rey (Ca rey 1985;Ca rey e Spe lke 1994), em pa rticular, ind icam q ue a p rpria a nima o
pe rcebida como der ivada de sses at r ibutos , de tal modo que as cr ian asmuito pequ ena s concebe m os hum anos e os animais como pertencen do a
uma me sma categ oria ontolgica, formalmen te homloga ao qu e p ode-
r am os de finir como uma p essoa. S mais tard e em erge a cate gor ia dean imal , o rgan izada em grande med ida a p ar t ir das p roprieda des qu e a
cr ian a a ssocia s at ivida de s hu ma na s. O l timo e stgio da construo
do conce ito de objeto vivo ocorre com a jun o do dom nio da s planta sq ue le dos an ima is, no qua dro do de senvolvime nto de um a teoria ing -
nu a da s fun es biolgicas.
Provavelmen te, na ida de adu lta, preservamos os traos de ssa indis-
t in o conce itua l or igin ria e ntre o home m e o anima l. Como n o reco-nhe cer o es ta tu to amb guo d os an imais, especia lmen te d os mamferos
sup eriores, to prximos de ns sob tantos aspe ctos e contu do to dife-
rentes? Que m nu nca a tribu iu, ainda qu e de ma ne ira fug az, emoes, um asensibi lidad e, uma inten cional ida de a u m a nimal de es t ima o? O p r-
prio sofrime nto infligido s veze s aos an imais no seria um sina l de qu e
pe rcebe mos sua n atureza como essencialmente eq uvoca, a meio cami-nh o da hu ma nidad e e dos outros objetos do mun do, vivos ou n o-vivos?
isso qu e Luc Ferry (1992:90-91) observa mu ito justa me nte , come nta nd o
Ma up ertius: que r se tenh a p razer ou n o, o espet culo do sofr ime nto de
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um an ima l no p ode nos de ixar indiferen tes pois, evocan do o n osso, lem -
bra-nos uma an alogia fund am enta l que as plantas so incapa zes de sus-
citar, mesmo com um gran de esforo de imag ina o.Na prpria Ama znia m uitos sina is atestam u ma a titude am bivalen-
te pa ra com os animais caados. Por exemplo, o emp rego ba stante comumde e ufemismos que d issimu lam ou aten ua m a violn cia qu e se faz a caa
sofrer. raro falar-se de ma tar an ima is, e exp rime -se a ao d e caar p or
metforas que no e vocam o ma tar de m ane ira direta. Sucede muito fre-qe n teme nte n o se d es igna r os an imais por seu n ome no con tex to de
um a ba tida d e caa , preferind o-se sub stitutos estere otipa dos. Semp re no
plano terminolgico, a ca a com zarab atan a claram en te diferen ciad ada caa com lana ou com borduna (e atualmen te com e spinga rda): fala-
se em soprar pssaros e ntre os Achua r, soprar a caa en tre os Tuka -
no, ou m esmo ir soprar e ntre os Hua orani, aten ua nd o, assim, por essas
meton mias ins trumen ta is a l iga o de causa e e fe i to en t re a ao docaa dor e seu resu ltad o (Hu gh -Jon es 1996:137; Rival 1996:155). Enfim, o
tema da vinga na dos animais caados muito comum , embora a a mpli-
tude d as represlias a eles impu tadas e a s medidas de p recau o variem
conside ravelme nte seg und o as culturas. Se o animal de caa se nte a lgu mmotivo pa ra se ving ar, en to os am erndios tm u ma conscincia ba stan-
te clara de que a sorte que lhe impem no inteiramen te normal.Incontestavelme nte, todas essas razes ad vogam pe la conside rao
da a mb ivaln cia d as atitud es do caador ama znico ao ma tar um an ima l.
Mas da a lhe imputar um sentimen to de m conscincia e a derivar de s-ta os compor tame ntos na rea lidade mu ito diversos que ca racter izam o
tratam en to da caa na regio, h u m pa sso que me recuso a dar . Ainda
que formu lad a com m uitas nu an as, a te se da m conscin cia, com efei-to, ofere ce ma is inconve niente s que van tag en s. Prime iram en te, porqu e
isso imp lica projeta r sobre culturas m uito difere ntes d a nossa u ma forma
de sens ib i lidad e com re lao aos an imais que ta lvez expe r imen temos
espontane ame nte, mas que sabemos ser o produto de uma evoluo espe-cfica da s prticas e da s men talida de s, traada em toda a su a comp lexi-
da de por h istoriadore s como Robe rt Delort (1984) ou Keith Thoma s (1983).
N o tivem os sem pre m conscincia em face d o sofrime nto dos anima is,e m uitos turistas ing leses que ficam indign ad os com a b arb rie d a toura -
da p rovavelmente ignoram q ue o ata qu e de molossos a um touro preso
(bull-baiting) era um espe tculo apreciado p or toda s as classes sociais naInglaterra do sculo XVIII.
Alm disso, a m conscin cia implica u m d ilem a m oral, e p ortanto
um qua dro t ico em cujo seio se d esenvolve u m sistema mais ou me nos
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exp lcito de direitos, obrigaes e valores. Seria pre ciso en to sup or que
esse qu ad ro tico seja un iversal e qu e se coloque , semp re e em toda p ar-
te , o mesmo t ipo de d i lema qua ndo se m ata u m a n imal . esque cer -sequ e nossa prpria concep o sobre o que funda me nta a d istino en tre o
home m e o an ima l sofreu um a p rofun da mu tao a o fim d o sculo XVIII,qua ndo pe nsadores como Roussea u e Kant de finiram a h uma nidade pela
libe rdad e, ou seja, pe la faculdad e de subtrair-se s d etermina es instin-
tivas. Ora, o hu ma nismo mode rno baseia-se exatam en te ne ssa id ia pa rade finir nossos deve res para com os animais: p orque alguns d en tre eles
so dotados da capa cida de de ag ir com vistas a u m f im conscien te
diferen a da s plan tas ou das ba ctrias e p orqu e e ssa atitude ap resentaan alogias com o livre-arb trio que nos sing ulariza, qu e n s nos deve mos
o respeito a eles, ou se ja, de vemos respe itar ne les a qu ilo qu e n os leva a
nos respei tar a ns mesmos2. O sent imen to de culpa g erad o pela mor te
de um a nimal ento al ime ntado aq ui pela conscincia de u ma p er tur-bad ora p roximidade e ntre a neg ao de um direito vida e a nega o de
um direito libe rdad e. Parece-me du vidoso que os ndios da Ama znia
tenh am um raciocnio moral id ntico.
Parece -me d uvidoso, inclusive, que se possa dizer de um a d isposi-o t ica qu alque r que e la seja u niversal , tanto a norma tivida de ne sse
domnio de pe nd e d as escolha s culturais3. Pode r am os nos ind ag ar , porexemp lo, sobre a natureza d os precei tos fund ame ntais que uma m oral
ama znica compree nde ria, por vezes no sentido em qu e se fala d e u ma
m oral jud aico-crist . Vejo unicam en te dois preceitos qu e se riam incon-
tes tveis em toda a r eg io : a conden ao da avareza e a e x ign cia d ocontrole d e si. O p rime iro deriva me nos de um a obse sso pe la re ciproci-
da de que da obrigao de se r gene roso com o prximo e de um ce rto des-
d m com relao acumu lao de b ens ma ter iais . Qua nto ao segu ndo,cu ja mar ca pode se r v is ta e m toda pa r t e na s condu tas de au tocon ten -
o a ab stin ncia sexual, a valorizao da frugalida de , da ap tido p ara
a vig lia e da res is tncia fsica, a p rt ica d a f lag elao e de ba nh os emg ua ge lad a, ou o uso de pu rgantes e em ticos , ele m an ifes ta me nos
um a transfern cia pa ra s i do de sejo recalcado de exercer uma domina-
o sobre outrem que a n ecessidad e d e a firmar a todo momento a supe-riorida de de um a au todisciplina livrem en te consentida sobre um controle
social passivame nte sofrido. De re sto, existe u ma varia o mu ito gran de ,
segun do as culturas am aznicas, qua nto ao grau d e tolern cia d ian te dede terminad os comportame ntos individuais ou coletivos. O a rdil, a me nti-
ra e a dissimu la o pode m se r conside rados me ios leg t imos ou, ao con-
trrio, conde n veis pa ra se a ting ir os prprios fins; a ca pa cida de de exe r-
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cer violn cias fsicas pode ap arece r como um a d ime nso d a virt mascu-
lina ou, ao contrr io, susci tar u m ve rda de iro horror ; a crue ldade pode
despe rtar a reprovao ou constituir um elemen to julgado indispe nsveldos ritua is de iniciao ou d o tratam en to dos cativos (ver, p. ex., Clastres
1973). Em re sumo, seria b em difcil atribuir aos povos da reg io um con-junto de d isposies mora is pa rtilhad as. Seria e nt o leg timo afirma r que
a m con scin cia, isto , o produto d e u m conflito moral, seja a li de slan -
cha da como en tre ns pelas mesm as circunstn cias? Recu sar a un iversa-lidad e d a m conscincia em face do consumo de um a nimal apresenta,
certame nte, o inconven ien te de faze r os nd ios da Amaznia pa rece rem
muito diferen tes de ns . No , porm , ceder a um relat iv ismo cul turalde senfrea do pe nsar qu e e les o so de fato: afina l de contas, n o conside-
ram os os an imais como pe ssoas exce to como pe ssoas jur dicas, para
um a m inoria e n osso an tropocen trismo, conforme vimos, possu i razes
muito diferen tes do de les.Enfim, e como H ug h-Jone s (1996:147) observa mu ito jus tame nte,
me smo no seio das socied ad es triba is, h g rand e va riab ilida de individu al
de preferncias alimen tares e d e a t itudes p ara com os animais. O argu-
me nto da m conscin cia p ermitir ia a tr ibu ir essa d iversida de de condu-tas s morais que cada um forja p or conta prpria e m funo de sua sen -
sibilida de e temp eram en to. Se e ste fosse realmen te o caso, reina ria ne ssedomnio a m ais comp leta arbi t rar iedad e. Ora, a ine g vel var iabi lida de
ind ividual expr ime -se, contudo, no seio de u m esq ue ma g eral de com-
portame nto partilhado por todos os me mb ros de u ma cu ltura, e que dife-re de uma cultura pa ra outra. Acontece h oje, por exemp lo, de os Achua r
comerem an ima is tradicionalme nte p roibidos. Ma s tal relaxame nto tem
limites, e a idia de consum ir certas esp cies continua a suscitar uma sin-cera repug nn cia. Comprova-o a aven tura de um jovem Achua r em visi-
ta aos Quch ua : tend o comido com grand e praze r uma carne que lhe fize-
ram a cred itar ser uma cotia, ele foi tomado subitamen te de n usea e obri-
ga do a ir vomitar qu an do os an fi tr ies zombe teiros be m informad osace rca dos h bitos alime nta res de seu s vizinh os triba is reve laram-lhe
que , na verdade, se t ratava, que a bominao, de um gam b. A despei to
da s aparn cias, tamb m e ntre ns gran de a n orma tivida de . Decerto, eap esar d o atribu to totmico qu e os ingleses nos conferem, algun s france -
ses no come m r nun ca; porm, no conhe o ne nhu m qu e coma cobra
ordinar iame nte. Comer ou no comer rs depe nde da var iabi lidad e d asescolha s ind ividu ais no interior de um a n orma a ceita ou d a a cessibili-
da de d o animal; n o comer cobras de pe nd e de um interdito cultural, qu e
imp lcito ma s ne m p or isso deixa d e orienta r nossas de cises. Insist ir
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ma is, as relaes es tabe lecidas com eles so antes de tudo relaes de
pe ssoa a p essoa, ou seja , so relaes sociais , e me pa rece q ue esse
aspe cto social qu e d eve ser privilegiado na an lise 5. Ora, no inte rior deum qua dro geral relativam en te un iforme na escala da Amaznia, a socio-
logia da relao com os animais pode ser dita de vrios modos. Esse qua -dro gera l, como j foi observado h mu ito tem po, aq ue le d e u ma alian -
a contratual que vincula os hum an os aos anima is ou, s vezes , a seu s
represen tante s (Zerries 1954). Ma is recen teme nte, pe rcebeu -se que mu i-to freq en teme nte essa a lian a era conceitua da sob a forma de um a rela-
o en t re a f ins e que era ma rcada pe la mesma rede d e obr igaes que
aq ue la caracter s t ica da s relaes entre p are ntes por al ian a (Descola1983; Erikson 1984)6.Represen tar os an ima is caados como af ins n o tem n ada de sur -
preen de nte no contexto amaznico. A predominncia, a, do cognatismo
e d os sistemas de pare ntesco de t ipo dravidiano tem como efeito a re du-o do reg istro da s categorias sociais a u ma gran de dicotomia organiza-
da e m torno do eixo que sep ara a consang inida de d a a finidade . Dad a a
d iver s ida de da s situaes em que d evem ser emp rega da s , essas duas
categorias se torna m ope radores lgicos relativame nte ab stratos que pe r-mi tem den otar r e laes mais eng loban tes do qu e aqu elas que def inem
os laos de consang inida de e af inidad e e fetivam en te atestad os no seiodo grup o local. esse pa rticularmente o caso da afinidad e, relao inst-
vel e freqe ntem ente conflituosa, qu e oferece en to um suporte me taf-
r ico excelente pa ra q ua lificar a s relaes com o e xterior, espe cialmen tecom os inimigos prximos ou longnq uos. Alm disso, o dua lismo en ge n-
drado pe lo s is tema drav id iano tem perad o por uma tend ncia m ui to
gera l para ma nipu lar as a t itudes e as te rminolog ias de pa ren tesco, de
modo a minimizar os laos de af in idad e n o seio do grupo local em pro-vei to de u ma consang inida de ideal , e a subl inh - los , contrar iame nte,
na s relaes com o e xterior. A rela o de af inidad e torna -se, por conse-
gu in te , cad a vez mais ab s tra ta e esqu em t ica , medida q ue se a fas tado centro onde e fetivam en te ela orien ta a a liana d e casa me nto (Vivei-
ros de Ca stro 1993; pa ra o ca so j varo, Ta ylor 1983 e De scola 1993b).
Ser ia p rev is ve l que essa ca tegor ia ge n r ica d a af in idad e se rv isse demolde men ta l para a concei tuao da r e lao com a caa , ass im como
seria previsvel que os animais de estima o fossem conside rados an tes
como consang neos, a e xemp lo dos filhos dos in imigos rap tados p araserem integrad os fam lia d o homicida de seus pa is . O a nimal de ca a
ap resen ta-se assim n a Ama znia, seja como um alter eg o em posio de
exter ioridad e qua ndo caado, seja como dema siado idn t ico a s i para
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ser comido qua ndo d omesticado um a d istino d e e statuto que formu-
lei recen teme nte (Descola 1994) nos termos de um a h omologia estrutural
clssica:caa : anima is de estima o : : inimigos : cr ian as ca tivas : : af ins :
consangneosToda via, no m bito desse q ua dro mu ito ge ral, coexistem vrios sis-
tema s de relaes ma is particularizados. Posso discernir pe lo me nos trs,
que cham arei reciprocidad e, preda o e dd iva, e qu e correspondem atrs moda lida de s lgicas, e tamb m sociolgicas, de integ rar a oposio
un iversal en tre eu e outrem. A reciprocida de q ue r que toda vida an ima l
seja compe nsada (freqe nteme nte p or uma ou outra forma de vitalida dehum an a); a p reda o implica qu e n en hum a contrapartida seja oferecida
pe los hum an os contra um a vida a nimal; finalmen te, a d diva s ign ifica
que os animais oferecem sua vida a os human os de m ane ira delibe rada e
sem nad a espe rar em troca 7.Os Desana , grupo de lngu a tukan o do noroeste a ma znico, forne -
cem a ma is clss ica i lus trao e tnogrf ica d o mode lo da reciprocida de
(Reichel-Dolmatoff 1976). Esta aqui fundada sobre um princpio de
eq uivalncia en tre home ns e a nimais no seio de u m cosmos concebidocomo um c ircu ito fecha do home ost t ico . Na med ida em que a e nerg ia
vital gen rica presen te na biosfera e xiste em qu an tida de finita, as trocasin ternas de vem ser organ izadas de m odo a que a s r e t ir adas efe tuada s
pe los homens, especialme nte p or ocasio d a ca a, possam ser reinjeta-
da s no circuito. O feedbackene rgt ico assegurad o , p r inc ipa lmen te ,pe lo retorno das a lma s dos defuntos ao Senhor dos Anima is que as con-
ver te em caa. Entre os Desana , portanto , os hum an os e os animais so
substitutos un s dos outros e possuem u m e statuto equivalen te na comu-
nidad e de en ergia do mu nd o vivo; juntos, eles contribu em p ara ma nter oeq uilbrio dos fluxos, j q ue sua s fun es so re versveis nessa b usca d e
uma homestase perfeita.
O mode lo da p reda o pa rticularme nte m an ifesto no caso das tr i-bos Jvaro, que n o oferecem n en hum a compen sao pela vida d a caa.
Ce rtamen te, s vezes acontece q ue os excessos sejam pu nidos: os Sen ho-
res dos Animais podem ap licar represlias sob a forma de picada s decobra ou a cide nte s provocad os na floresta q ue les que teriam violad o
as regras de respeito e m oderao relativas a tividad e d e caa; mas n o
se trata e m absoluto de um processo regu lar de troca voluntria fund adosobre u ma paridade dos parceiros. Diferen temen te d os Tuka no, aqui ne -
nhu ma id ia d e c ir cu lao de ene rg ia vem confer ir uma a parn cia d e
eq idade a e ssa atitude pred atria p ara com os animais de caa, dissimu -
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lad a se m p recaues excessivas por trs de uma simblica d a a liana na
qua l uma d as pa rtes jama is honra suas obrigaes.
Fina lmente , o mode lo da d d iva be m ilustrado pe las tr ibos Arua -que que hab itam o p iemonte am aznico dos Ande s cen t ra i s do Peru
(Weiss 1975; Ren ard -Ca sevitz 1972). As esp cies caa da s, particularme n-te os p ssaros, de pen de m, quan to ao essencial, de u ma raa d e bons esp-
r itos que os Aruaqu e cham am d e n ossa gen te , ou n ossos congn e -
res, e que so reputados de dem onstrarem boa disposio para com osndios . Matar pssaros ass imilado a uma metempsicose provocada:
de pois de o caad or ter -lhe pe dido sua roupa , o p ssaro volun tar ia-
me nte oferece seu invlucro carna l flecha , preservand o seu du plo ima-ter ia l que se r een carna imedia tame nte e m u m corpo idn t ico. No se
incorre ento em nenh um d ano, e este ato de be nevolncia n o pede con-
trapa rtida . Com e feito, no p lan o ontolgico, os bons e spritos e se us a va-
tares an ima is so idnticos aos hum an os: so conside rados como pa ren -tes mu ito prximos, consang ne os ou a fins seg un do as esp cies, de tal
modo que a d diva de seus despojos p ercebida como uma simples pro-
va do dever de g ene rosidad e qu e se impe en tre pe ssoas es treitame nte
prxima s pelo paren tesco.Em qu e e sses mode los de comportam ento diante d os anima is man i-
festam u ma dimen so sociolgica? Justame nte n o fato de revelarem um aatitud e ma is geral perante outrem, hum an os e n o-huma nos a confun di-
dos totalme nte, t p ica d e cad a u ma das cul turas em que sto. Admito de
bom grado que a prxis de um a socieda de no poderia ser reduzida a u mesquem a n ico e qu e pe rtence utopia uma comunidade na qual as con-
du tas fossem re gidas exclusivame nte p ela oblao ou captura. O obser-
vador que me rgulha por muito temp o em uma cultura no pode contudodeixar de pe rcebe r que seus mem bros orientam seus atos em funo de
um pe que no nmero de valores que m uito freqe nteme nte perman ecem
n o formulados. semp re ar r iscado colocar uma et ique ta sobre e sses
valores, mas esta a servid o de todo proced ime nto an alt ico e a condi-o pa ra e xpl icitar o qu e pode r ia ser cha ma do d e es t i lo dis tin t ivo, ou
ethos de um a socieda de.
Assim, a organ izao social dos Desa na , como da s outras t r ibosTuk an o do Vau p s, fund ad a sobre uma lgica da pa r ida de completa-
men te homloga que la q ue rege as relaes com os an imais . A exoga-
mia l ing stica e a red e d e circulao dos ar tefatos geram um a situa ona q ua l cada t r ibo, cad a g rupo local, se pe rcebe como um e lem en to no
se io de um metass is tem a reg ional, e leme nto que d eve sua p eren idad e
ma terial e idea l s trocas regrad as com as outras pa rtes do todo (Ja ckson
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1983; Hu gh -Jone s 1993). Inve rsame nte , nos gru pos Jvaro, o estad o de
gue r ra ge nera l izado expr ime a necess idad e de compe nsar cada mor te
pe la cap tura junto a outrem d e iden tida de s rea is o rap to de mu lhe rese criana s ou virtua is as cab ea s-trofu s, pe as cen trais de um dis-
positivo ritua l de prod u o de filhos (Taylor 1993; Descola 1993b ). Ce rta-men te , a obr iga o da v inga na acaba por r es taurar o equ ilb r io ; no
en tanto, compre en de r-se- sem d ificuldad e q ue as repre slias dos inimi-
gos sejam um a conseq n cia prevista , ma s no at ivame nte procurada ,dos atos de violn cia cometidos contra eles . A preda o m tua ass im
um resu ltado n o in tencional de uma re je io ge ra l da r ec ip rocida de ,
mais do que uma t roca de l iberada de v idas humanas a t r avs de umcom rcio be licoso. Por fim, emb ora a lgica d a d d iva seja m ais difcil de
se a plicar de mod o sistem tico nas pe rip cias cotidian as da vida social,
impressionante ver ificar a que ponto os grupos Arua que suban dinos se
esforam pa ra m inimizar e m se u seio as oposies en tre o e u e o outro. o que tes tem unh am de modo par t icularmen te claro os Amuesha , que, a
exe mp lo de Aristteles, conside ram q ue o am or constitui a fonte e o prin-
cpio de e xistncia de tudo o qu e h. Distingu em dois tipos de am or: m ue -
reets sign ifica a d diva de si na cr ia o da vida e caracter iza a ati tudedas divindades e dos l deres rel ig iosos em uma relao ass imtr ica;
enquan to morrenteets de nota o amor mtuo indispensvel a qua lque rsociabilida de e se e xprime por uma g ene rosidad e p erman en te, isenta de
clculo e pre viso d e ret r ibu io (San tos Grane ro 1994). Como n o se
imp ressionar a qui, tam b m, com a e streita correspond ncia en tre o trata-men to da caa e o tratame nto dos human os?
Reciprocida de , preda o e d d iva constituem trs formas de relao
en t re os human os e os an imais que , ao men os em d uas de las , parecemdissimular, sob a ap arn cia d e u ma relao social livreme nte consentida,
a v iolncia efet iva exercida pelo caador contra a caa. Errar -se- ia ,
porm, vendo a uma astcia da razo selvage m de stina da a torna r supor-
tvel a id ia d e m atar seres dos quais tudo nos ap roxima , em suma , umaforma d e h ipocrisia coletiva e inconsciente qu e tran sformaria a n ece ssi-
da de de d estruir e incorporar o vivo em u ma me ntira pa rtilhad a p or aqu e-
les que a esto en red ad os e por suas vtima s. Errar-se-ia, prime iram en te,porque cer tas socied ad es a ma znicas , como os J varo , n o expe r ime n-
tam a bsolutame nte a nece ssidad e d e d issimular para s i mesmas a n atu-
reza a ssim tr ica de sua relao com a caa . A m-f qu e m an ifestam a ofing irem ter com ela u ma relao igu alitria de afinidad e sem contudo
jamais satisfaze rem a s obriga es de reciprocida de qu e u ma tal relao
imp lica coman da da pe lo med o de v-la d esap arecer, n o por um se n-
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t ime nto qualque r de culpa 8. A violn cia, a qu i, ma nifesta e livreme nte
assumida. Errar-se-ia ainda porque uma tal perspectiva coloca em dvi-
da que os amer nd ios possam acred i ta r su fic ien tem ente no qu e d izempara ag i r de a cordo com o q ue pen sam. Ora , levand o-se a sr io o que
enu nciam os Desana , os Ashan inka , os Mats igue nga ou os Amue sha ,deve-se adm it ir que ma tar um an imal que eu cre io que v r eencarna r
imed ia tame nte , no ma tar, ma s ser o agen te de u ma m etamor fose ;
igu almen te, mata r um a nimal que eu cre io pode r sub st itu ir ao fim pora lmas human as , me nos matar do que ace i ta r o ad ian tam ento de um a
vida . A violn cia d esap arece aq ui no porque seja reca lcada , mas por-
que n o pode r ia ser efet iva e m cosmologias conceb ida s como s is temasfecha dos nos qua is a conservao d o movime nto dos seres e da s coisas
exige que as pa rtes troque m constantem ente de posio.
Tradu o de Tnia Stolze Lima
Recebido em 19 de m aio de 1997
Aprovado em 16 de junho de 1997
Philippe Descola diretor de e studos da cole de s Hau tes tude s en Scien -ces Sociales e me mb ro do Laboratoire d Anthropologie Sociale, Paris. Rece n-teme nte, pu blicouLes Lances du Crp uscule (1994) e, com G . Plsson,Natu -re and Society (1996).
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Notas
1 Qu an to ao t ra tam en to do animal , ver, por exem plo , a d iferen a en tre acaa na Europa m er id iona l (Berna rd ina 1996) e a caa de t rad io ge rmn ica(Hell 1994).
2 Tomo de Luc Ferry (1992:100-101) esta a pre sen ta o da p osio hu ma nista.
3 claro que isso no que r dizer qu e u ma a ntropologia moral universal n oseja de se jvel : o re la t iv ismo qu e invoco aqu i provm da consta tao em pr ica ,
n o da afirmao d e u m valor positivo.
4 Ver, por exe mp lo, pa ra os Yan omam i (Albert 1985); para os Arawe t (Vivei-ros de Ca stro 1992); para os Krah (Carne iro da Cu nha 1978); para os Apinay(Da M atta 1976).
5 O fato de ser formulad a e m term os abstratos, no torna um a relao socialme nos i rr igad a p or um conjunto d e a fe tos , mas , se o p rocedime nto an al t ico oreconhece facilme nte, isso no implica qu e se seja obrigad o a da r a essa d imen-so u m pa pe l distintivo ou exp licativo.
6 Roberte Ha ma yon (1990) che gou a concluses similares para a Sibria.
7 Tam b m Erikson (1984:108-113) isola na Ama znia trs m an eiras d e re sol-ver o mal-es tar concei tual d o caador : pe la dd iva , pe la ne gociao e p elaaliana. Segu nd o ele, tais tentativas seriam pou co satisfatrias, por deixarem sub -s is t ir um a p ar te d e cu lpabi lidade; da a cr iao d e f ilhotes d a caa . Parece-me,contudo, que , diferen a das trs moda lidad es que eu p roponho, as solues deErikson n o se situam em u m m esmo plano an alt ico: a ne gociao e nglobad a
pe la reciprocidade , visto qu e esta q ue constitui sua condio prtica, en qu an toa aliana en globante, j qu e forma o qua dro geral da relao de afinidade [rela-tion affinale ] com o animal de ca a.
8 Poder-se-ia dizer o m esm o dos Yan omam i (Albe rt 1985:326-335), qu e ve ma caa de dup los animais dos huma nos como uma forma de p redao contra comu-nida de s long nqu as; ou dos Arawe t (Viveiros de C astro 1986:206-209), que colo-cam a ca a e a g uerra sob o mesm o registro de ativida des de sejveis.
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Resumo
Uma certa trad io an tropolgica ten dea interpreta r a simb lica da caa comouma man eira de exprimir a ambivaln-c ia , a t mesmo a m conscincia , quetodos os hum anos sent i r iam ao ma ta-rem an imais. Se essa interpre tao pa-rece legtima no q uad ro das socieda desmodernas , marcadas desde o sculo
XIX por uma evoluo profunda dassensibilidad es nesse d omnio, ela n oparece s- lo para as sociedades pr-modernas, sobre a s quais se pode duvi-dar que par t ilhem a m esma moral queos cidados euro-americanos do fim dosculo XX. O e xemp lo do tratam en to dacaa na Ama znia indgena mostra quea relao com o animal ali m enos de-terminada por uma gama de sentimen-
tos universa is que por esquemas decomportame nto en ra izados n os s is te-ma s cosmolgicos, ontolgicos e socio-lgicos caractersticos dessa re a cultu-ral.
Abstract
A certain anthropological traditiontends to interpret the symbolism ofhunting as a way of expressing the am-bivalence , or even the t roubled con-scien ce, tha t all hum an s are supp osedto fee l upon k illing an imals. While th isinterpretation appears legitimate in theframe work of modern societies, marked
since the 19th
century by a profoundevolution in th e se nsitivities pe rtainingto th is domain , the same does not ap-pear to be t rue for pre-modern soci-eties, wh o may very well not share th esame morals as late 20 th -century Euro-American citizens. The w ay indigen ouspeoples deal with hu nting in the Ama-zon illustrates how the relationship toanimals there is de termined less by a
rang e of universal fee lings tha n by be -ha vioral sche ma ta rooted in th is cultur-al areas characteristic cosmological,ontological, and sociological systems.