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Desde que o samba é samba

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Trecho do livro "Desde que o samba é samba" do autor Paulo Lins.

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Luzes dos vermelhos, brancos e dourados, de toda a sor-te, rebrilham para a gente ampliar “a vitória dos nossos ancestrais”. Vocês são coroas de esplendores quando salvam a passagem dos nossos corpos-fantasia na ginga dessa música criada na permissi-vidade das esquinas, na embriaguez dos botequins, na fé do mais antigo dos terreiros de Candomblé da Cidade Maravilhosa. Fizemos do corpo a coisa mais bela que se tem na vida, pois ele é a sua única razão de ser. Então espalmem a mão e recebam a minha pele quen-te, estiquem a língua para lamber o meu suor-purpurina, abram os braços, as pernas para o nosso calor se fundir ao seu, já que o amor da criação artística não é somar, dar ou repartir. É doar.

Temos a grandeza de ser humanos, donos da poesia, uma das coisas capazes de nos fazer viver absolutamente no presente, assim como agora: a bateria está ensaiada como o resto da escola, o samba na ponta da língua dos componentes e da plateia. As fantasias são leves para não atrapalhar os movimentos; porta-bandeira e mestre--sala de passos dados no sapatinho.

Quero alegrar, encantar, para fazer qualquer boa emoção contida desabrochar pelo desempenho meu e de meu povo; mos-trar um mundo muito mais belo do que se imaginou vida afo-ra na infância; mundo que se quis quando havia “a possibilidade de se encontrar uma fada no caminho para pedir a ela milhões de estrelas cadentes, uma lua mágica que falasse com a gente” e o bem-querer de todo o mundo. Agora esses pedidos estão sendo

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atendidos pela arte, que também abençoa o desejo, “colorindo as-sim a sedução”.

O apresentador anuncia a nossa escola, os fogos explodem na Presidente Vargas, o puxador dá o grito de guerra e manda um samba de quadra para esquentar. A plateia se levanta em palmas, requebrando.

O enredo começa a ser desenvolvido na avenida Marquês de Sapucaí, nas alegorias, no ritmo das mãos, na ponta da língua e do pé.

O sonho mais lindo andado, cantado e dançado nessa avenida colorida. Tomem o meu beijo, o meu abraço e o meu aperto de mão para sempre.

Paulinho Naval

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Sodré parou, recuou dois passos, encafuou-se atrás de um pos-te ao notar que Valdemar vinha em sua direção na Rua do Estácio, altura do Bar do Apolo. Deu para sair na escama, dobrar a esquina sem que o outro o percebesse.

Caraminholou, iniciou a volta ao quarteirão para surpreen-dê-lo pelas costas.

Manhã deserta na zona do baixo meretrício. Se matasse esse rival, que era preto nesta vida, não teria pro-

blema com a polícia, já que era branco e funcionário do Banco do Brasil. Muito por esse motivo acatou a ideia de Valdirene. Nunca pensou em matar ninguém, nem mesmo Brancura. Não fosse o amor, não cometeria esse crime de morte.

Ia naquela hora tentar matar Valdemar à navalha. Se precisasse, pregaria chumbo nele, já que levava às costas, presa ao cós da cal-ça, uma pistola para qualquer eventualidade. Tentaria matar com arma branca porque chama menos a atenção. Tinha de acertar logo a jugular, num ataque único, sem produzir muita dor. Nada de um monte de golpes para uma morte só. Não queria jorramento de san-gue, não suportaria gente que demorasse a morrer em suas mãos.

A bem da verdade, Brancura era que tinha de ir primeiro. Era ele o cafetão dela, o perigoso, o malandro velho do Largo do Estácio, cobra de duas cabeças, faca de dois gumes. Valdemar era só um bobo apaixonado, moleque novo, sem real noção das desavenças da vida. No entanto, quando mulher cisma não tem jeito, ela não estava

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querendo mais Valdemar na face da terra. Tirá-lo de circulação era um modo de provar a ela seu amor e sua cumplicidade.

Valdemar entrou no Bar do Apolo, pegou um revólver da mão de Brancura, colocou-o na cinta, foi à esquina montar tocaia.

Brancura foi para o sobrado de uma de suas putas para assis-tir a tudo de camarote. Poderia ter largado mão desse negócio de vingança, já que pensava em deixar aquela vida para trás a fim de seguir sua sina de fazedor de versos bonitos, de criador de melodias intocáveis; sina de fazer samba que nem Bide, Silva, Bastos, Baiaco, Edgar e tantos outros ali de sua área que tinham a arte como reli-gião. Pra quê? Não ia casar com a virgem de seus sonhos? Então por que essa necessidade de vingança? O que nos leva a querer ser sempre o mais esperto? O maioral?

Seu Tranca-Rua da Calunga Grande lhe dissera que, se ele cumprisse a sua recomendação, sua vida caminharia no rumo que ele sempre quis: arrumaria emprego, seus sambas seriam compra-dos e moraria no mesmo cazuá que a mulher que lhe dava prazer de verdade. Então, pra que ver o português morto nessa trama que bolou? Só para provar a si e aos amigos que era o mais malandro dos malandros? Coisa feia! Coisa de bobo. Na verdade, no fundo, no fundo, tinha certa desconfiança de que Valdirene gozava com Sodré. Também nunca apostou tudo na macumba, apesar de ter experiên cia suficiente para saber que sua vida espiritual também iria cair para um patamar de padrão vibratório sem nenhuma for-ça para elevação de alma. Então, por que agia assim? Essa coisa de errar sabendo que está errando não é tolice de criança que não recebe corretivo de pai e mãe? De criança que faz esperneamento de raiva por qualquer coisa? O ser humano tem esses sentimentos de nada. Tem gente que se alegra com situações de força negativa. Um babaca de pouca fé.

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Valdirene chegava lentamente ao Bar do Apolo. Olhos baixos. Estava sem leveza de ideias sobre os acontecimentos. Tudo se devia à sua beleza, ao seu jeito de corpo, à sua maneira de meter gostoso. Era dessas que deixava qualquer um de pica em pé mesmo depois de ter gozado várias vezes. Com ela, todo homem virava grande fodedor. Sempre a queriam de novo. Gostava de ser assim, talvez por isso ela vivia comprando roupas, cremes, ba-tons, maquiagem, embora não precisasse: mulher que nasce pra ser gostosa não tem jeito.

Não foi uma nem duas vezes que Brancura precisou dar correti-vo de tapas e socos em caboclo que quis largar a família prometendo o que não podia pelo amor da negona.

Ela bem que pensou em abandonar seu cafetão por causa das trapalhadas dele com a polícia, pela mania de querer passar a to-dos para trás e por aquele ciúme assassino. Se ainda não o havia deixado era por causa da segurança que ele oferecia ali na zona e porque lhe tinha amor. Um amor já malhado, muito chorado, de lances terríveis, mas ainda amor.

Sentia pena de Valdemar, que a amava de verdade, só lhe queria bem. Não desgostava também de Sodré, e seu tesão por ele era gran-de: Sodré se parecia com Alves, o maior cantor de rádio da época, homem bonito, alinhado, cheiroso, que sempre transmitia sensação de limpeza. Pediu um copo de groselha, botou os olhos no movi-mento da rua. Viu Brancura butucolhando tudo através da janela.

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Antes de dobrar a esquina, a vontade de matar Brancura pe-gou grandeza em Sodré, com isso talvez nem precisasse matar Valdemar. Com medo, este fugiria, então não precisaria ficar com dois crimes nas costas. Outras vezes, movido pelos ciúmes, pensa-va em matar o garoto. Só não o fizera ainda por causa de Ernesto, a quem sempre teve consideração pelo fino trato que o homem dispensava a todo o mundo. Não sabia como ele podia ter um filho tão otário, tão metido a malandro.

No fundo, estava cabreiro do porquê de Valdirene ter lhe pedi-do que acabasse com Valdemar. Assim, do nada. Será que era uma forma de lhe dizer que ele era o homem dela? Ou seria um jeito de fazer ciúmes em seu cafetão por qualquer motivo de mulher que fos-se? Estava ele sendo usado? Se ela lhe pedira que matasse Valdemar, e ele acabasse com Brancura agora, ela ficaria com ele sem pestanejar? Era tarde para saber de tudo tim-tim por tim-tim: mataria Brancura logo depois que matasse Valdemar. Estava baratinado de bagaceira de orgulho ferido.

Avistou-o chegando à esquina, tirou a navalha do bolso, iniciou uma corrida de ponta de pé.

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“É por causa das palhaçadas, da cabeça-dura, da burrice de certas pessoas, que Deus e os santos ficam donos de nossa vida na terra, no Céu e no Purgatório. Isso tudo pra gente ter loucura, força, correria, juízo, inteligência, respeito próprio e peito aberto pra ga-nhar a vida… Pra ser normal, ser feliz com os filhos, com os netos e os bisnetos, na hora da morte por velhice. Essa é que é a morte de gente séria! E pra isso é só levar a vida certa, ter força pra tra-balhar, se instruir… Sempre em frente pra ter luz, sorte, redenção dos deuses… Senão a gente fica parado na vida, que nem Ernesto e Valdemar. Parados na vida, metidos com sinuca, bebida, jogo de chapinha, roda de capoeira. Não tomam prumo de vivência por causa desse troço de mulher com vida fácil na zona do baixo me-retrício. Valdemar passa anos sem entrar numa igreja pra rezar um pai-nosso, uma ave-maria ou um credo. Na macumba, só vai no dia de Exu pra pedir a Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas prote-ção na rua, harmonia com as negas e segurança no lar. Besteira… Eu é que não passo um domingo sequer sem igreja e uma quinta sem macumba, porque, se Deus não me der ouvido, Oxalá escuta. É melhor ter dois pais do que um só. E somente no Inferno é que eles não podem fazer mais nada… Se o cabra foi parar lá é porque ele mesmo quis assim”, pensava Tia Amélia, sentada num toco, perto do fogão de lenha.

Escutava meio quilo de peito de vaca rechinar na panela de fer-ro. Tinha acabado de jogar mais um pouquinho de água, colocado

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as rodelas de batata; ia dar mais uma horinha de nada, tirar do fogo, deixar a panela do lado do fogão para se manter quente até a hora de Valdemar almoçar. Era necessário dar a ele uma comida forte, já que desde a sexta-feira ficara só por conta de torresmo e outras besteiras de botequim. O máximo que bebera de bom fora um caldo de cana no Largo do Estácio, mas às vezes virava na Paraty direto. Um sacana.

Não se passou muito tempo até Tia Amélia ter de descer o morro mentalizando Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas e Seu Tranca- -Rua da Calunga Grande. É que uma vizinha chegara assustada, di-zendo que Valdemar estava metido numa briga de navalha na zona.

Tia Amélia agora seguia pela Maia Lacerda tentando manter a calma, com o espírito também voltado para Oxalá.

Valdemar tinha saído na sexta-feira. Já era domingo, e nada de ele voltar até aquela hora da tarde. Bem que algumas vezes o seguira pelas entranhas do morro, pelo Largo do Estácio, chamando-o para casa. O infeliz dizia sempre a mesma coisa:

— Pode ir, mãe, que eu já tô indo.E nada de arredar o pé da rua.Ela estava indo buscar o filho numa briga, coisa que nunca ti-

vera de fazer por Ernesto, que morreu de tanto comer tira-gosto e beber Paraty nos seus últimos dez anos de vida.

Tia Amélia não sabia que Ernesto só gostava da música tocada e cantada na zona do baixo meretrício, na Praça Onze, no Kananga do Japão, na casa de Tia Almeida, enfim, da música da Pequena África de João. As más-línguas falavam de Ernesto para perturbar Tia Amélia, que, na verdade, nunca soube ao certo por que Ernesto se enfurnava na zona. O pes soal da fofoca aproveitava para enervá--la. E não era porque ela fosse bonita, não, ou má pessoa. O povo tinha era inveja da inteligência dela, que cursara até a segunda série

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do curso normal na escola de professores, ali mesmo no Estácio. Era uma pessoa letrada, até dava aula para a criançada que ia mal na escola primária e ginasial, lia jornais, revistas, livros; não era de ficar de andança de fofoca à porta dos outros, ou mesmo se des-gastando em prosa que não tivesse troca de conhecimento. Pra ela, brincadeira sempre teve hora. Só não terminou os estudos porque precisou trabalhar. Mas Valdemar era um caso sério. É que quando a lua apita o primeiro lance de sua luz lá no céu, às sextas-feiras, o cabra fica doido. Mistura o dia com a noite durante todo o final de semana com a alma largada na rua, o que não faz gosto de mãe al-guma. Troço de vagabundo.

Agora, Tia Amélia ameaçava pequenas corridas, suplicava a Nosso Senhor Jesus Cristo que parasse com a briga. Que mandasse Exu dar rapidez de raciocínio a seu filho ou a Sodré, para um não machucar o outro. Uma palavra, um gesto, uma atitude que cortas-se danação, vencesse a demanda de ódio, otarice de homem bobo. Sabia que podia confiar nos deuses.

Brigava-se por qualquer coisa na zona, mas as desavenças mais frequentes tinham a ver com mulher. Era a primeira vez que Tia Amélia ia àquele lugar tirar Valdemar de confusão, porque, quan-do vivo, Ernesto dizia que mulher de família não podia entrar na zona, inventando as mais carecas desculpas. Mas ela bem sabia das mulheres vadias, capazes de fazer de tudo com um homem por di-nheiro. E os veados? Era isso que a machucava mais: as vizinhas diziam que o marido dela já tinha andado até com travesti da Lapa. “Homem, quando não presta, não presta mesmo.”

— E não é prosa de pau e cu só, não! Tem beijo na boca e o ca-ralho! — dizia o povo ruim.

Tia Amélia entrou na zona, viu o filho abaixado, olhando para o lado oposto ao que ela estava.

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A questão era que Valdemar punha todo o seu dinheiro na bolsa de Valdirene pra poder ficar com ela horas e horas, até por dias se-guidos. Exímio jogador, ia para o bilhar da Rua Machado Coelho, ganhava bastante dinheiro, voltava para o quarto de Valdirene, que agora dera para rejeitar Sodré, que fazia a mesma coisa nos finais de semana, só que com o seu salário de funcionário público.

Brancura, cafetão de Valdirene, agia como se nada estivesse acontecendo, mas se mantinha informado. Tanto é que Zilda, a se-gunda mais bonita da zona, eleita pelo povo, confessou-lhe que um dia ouviu Valdirene dizer a Sodré:

— Tarado, me fode, mete, mete gostoso, põe a mão na minha boca senão eu vou gritar: Aiii! Eu vou gozar, não para, não para, não para! Eu tô gozando!

— Foi assim mesmo como eu te falei — disse-lhe Zilda, fazen-do gestos eróticos, numa dessas noites de conversas reveladoras entre amigos.

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Ao dobrar a esquina, Sodré observou Tia Amélia chegar, ir direto à cintura do filho, pegar a arma e atirá-la longe. Valdemar correu para perto do revólver, abaixou-se, pegou-o e colocou-o outra vez na cintura. Tia Amélia partiu para cima dele, tirou-lhe a arma, colocou-a por dentro do sutiã.

— Vamos, meu filho, esse não é seu lugar, você é gente de famí-lia, vem com sua mãe…

Ao ouvir a súplica de Tia Amélia, o pessoal do Bar do Apolo foi para a calçada. Quando Valdemar notou que Valdirene fazia ajun-tamento com todo o pessoal para observar a mãe lhe passar pito, o sangue subiu-lhe à cabeça e ele tentou tirar a arma de Tia Amélia.

Sodré sacou a pistola.— É melhor não pegar de volta, não!Aproximou-se. — Deixa o revólver com tua mãe, senão tu morre agora. Você

não sabe em que chão tu tá pisando. Eu ainda não te matei por causa do teu pai, que todo o mundo respeitava aqui dentro. Ele nunca quis mulher nenhuma aqui, nunca quis nada de cafetinagem. O negó-cio dele era a música, gostava de farra, nunca deu uma de valente, nunca ficou de fanfarronagem com mulher aqui de dentro, porque a vida dele era outra. A tua vida é outra, e você quer mudar, né? Então, se tu quer correr risco, vai ficar riscado.

Tia Amélia entrou na frente.— Se você vai matar ele, me mata primeiro.

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— Vão morrer os dois! — ele falou da boca para fora.Ouviu-se um tiro. Silêncio total. Instantes depois, Brancura saiu

de trás da cortina do sobradinho com a arma apontada.— Valdemar e Tia Amélia, deixem a arma no chão e não voltem

mais aqui. Nunca mais! E, você, peraí que eu quero falar com você. Deixa o otário ir embora com a mãe dele. Não se ameaça uma se-nhora de respeito. Sua conversa agora vai ser comigo.

— Eu não ia fazer nada com ela.— Mas falou que ia, palavra e vida são a mesma coisa.

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Tia Amélia pisava de leve no chão de volta para casa, o peso que carregara durante anos se destroçava nas ruas. Queria encon-trar o pessoal da fofoca para rir, gargalhar na cara deles, botar para fora toda a toxicidade da injúria, da inveja.

O ar mais fresco, o dia se abria para outra vida de olhos erguidos. No céu sem nuvens, imaginava o rosto de Ernesto, rindo para ela.

No canto da calçada, Seu Antônio das Cabras passou parecendo adivinhar as coisas:

— Tudo um dia se acerta se a gente tiver Deus no coração!Tia Amélia abanou o braço, dando crédito às palavras de Seu

Antônio, se lembrou do que Sodré tinha dito sobre o seu marido. Não a incomodava a torrência do sol na calçada. Ernesto lhe era fiel.

Valdemar seguia cabisbaixo, andando reto a passos rápidos. Não notava a alegria da mãe, caraminholava um jeito de matar Sodré e Brancura para ter Valdirene ao seu lado o tempo todo, como esposa. Chegaria em casa, descansaria, iria à casa de Bartolo, o espanhol da loja de tecidos da Haddock Lobo, apanharia com ele uma arma. Mataria os dois no mesmo dia.

— Vou descansar um pouco, depois vou voltar lá para acabar com a vida dele — disse para si mesmo.

Era assim que tratava a mãe, sem notá-la, sem perceber ou ligar para o seu sofrimento ou sua alegria. Ela era apenas alguém que cuidava dele quando ele bem quisesse. Alguém a quem ele amava, mas não tinha respeito.

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Tia Amélia o olhava sem perder a forma branda que seu rosto ganhara. Lembrou-se do dia mais feliz de sua vida, vinte e dois anos antes, quando, segundo as más-línguas, esse espírito que ocupava o corpo de seu filho estava em quarentena, preparando--se para a sua boa vontade ter mais dignidade ao encarnar de novo. Porém, num ímpeto de ansiedade e total desvario, saiu às escondidas do umbral do amadurecer, se mandou para a terra, onde montou guarda na boca da primeira boceta de grávida que viu, depois de botar para correr, na marra, outro espírito que era predestinado: já cumprira a sentença de aprendizado para gozar de tranquilidade numa nova passagem pela terra com a missão de ajudar o planeta a se fortalecer com ações de solidariedade, hones-tidade, justiça, caridade e estava ali aguardando para reencarnar. O espírito de Valdemar, sem nenhum grau de licença ou mere-cimento, apoderou-se da cabeça daquele corpo ainda sem alma quando ele coroou naquela vagina desavisada. Depois, conforme a matéria se libertava do ventre de Tia Amélia, foi tomando conta do resto do corpo, para ter a vida que levava no coração da zona… Quando a parteira o levantou pelos pés, ele já foi sentindo dores intensas, crescentes. A dor se amontoava ainda mais em seu corpo à medida que se esforçava para chorar e não conseguia. Foi pre-ciso levar dez palmadas para alcançar a redenção. Chorou. A dor passou quando foi para o colo de Tia Amélia, no qual devorou o colostro que brotava dos bicos de seus seios. A parteira, depois de amolar o canivete na pedra, lavou-o com água e sabão, banhou-o no álcool, deixou-o secar no ar, cortou o cordão umbilical, e o bru-to estava ali até aquela data aprontando na zona do baixo mere-trício. Precisava de reparo de conduta, correção de tino, sacolejo.

Tia Amélia chegou em casa, botou a comida no prato, esperou que o filho almoçasse, saiu assim que ele adormeceu. Depois de duas horas,

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voltou com seis homens que começaram a surrar o rapaz enquanto ele ainda dormia. Valdemar tentava se defender, perguntava à mãe o que estava acontecendo. Corria pelos cantos. Todas as vezes que tentou fu-gir pela porta onde ela estava, ganhava um direto que o jogava ao chão.

Era tudo o que tinha de ter feito quando Valdemar começou a bandear: agir de acordo com sua experiência de vida, de saber que o filho precisava de um corretivo de pai ou de pessoa de mesma repre-sentação. Isso mesmo. Pancada de homem mais velho que figurasse no papel de genitor para curar vagabundo. E só não procurara os pa-rentes do finado antes por ter a sensação de que seria desprezada pelo fato de ter brigado tanto com Ernesto no final da vida dele. E também por ela sempre os ter tratado com repugnância por frequentarem a zona com o marido. Torcimento de nariz, virada de cara, num despre-zo sem precisão. O pior nó da vida da gente é aquele que a gente dá à toa, só de imaginação. Um sofrer sem necessidade. Tolice.

Mas, no fundo, Tia Amélia queria mostrar que criaria seu fi-lho sem a ajuda dos outros. Nada de pedir socorro à família do falecido. Era mulher de brio, de vergonha na cara. Ainda bem que a Terra gira sempre para o mesmo lado e a gente acaba se reen-contrando nessa vida logo aqui na frente ou nos cruzamentos das paralelas ali no infinito.

Hoje a vida era boa, pois essa trama toda até aqui se deu a favor dela. É que tudo concorria pra mudar a trajetória de Tia Amélia para sempre, vida agora de arrependimento e um tantão de alegria. Ai, Ernesto! Quantas pragas rogadas em vão! Lágrimas à toa. Daí em diante foi ser esse sorriso assim, carregado de choro e de uma boa vontade de morrer, para quem sabe conseguir ficar perto dele e começar tudo de novo, mesmo que fosse só assim, na base das al-mas mesmo. Seria bem melhor tirar a danação do corpo pra serem apenas pingos de luz na imensidão.

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