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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que contribuem para a desestabilização
do caráter do trabalhador
Vanúzia Almeida Rodrigues
São Paulo 2005
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
Desemprego e crise de identidade do trabalhador: elementos que contribuem para a desestabilização
do caráter do trabalhador
Vanúzia Almeida Rodrigues
Orientadora – Profa Dra Maria Helena Oliva Augusto Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de Mestre em Sociologia
São Paulo Dezembro de 2005
AGRADECIMENTOS...........................................................................................................3
RESUMO............................................................................................................................5
ABSTRACT……...................................................................................................................6
INTRODUÇÃO..................................................................................... ................................7
CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS PARA O TRABALHO DE CAMPO................................15
A Petroquímica União................................................................................................................... 15
A reinvenção das relações de trabalho.......................................................................................... 25
Desemprego (s) e precarização das relações ................................................................................. 32
Desemprego à brasileira................................................................................................................ 34
Desestabilização do caráter e a reconfiguração das relações de trabalho............... 37
Novos contornos identitários na realidade operária.....................................................................44
Individualização e desemprego – elementos que alteram a identidade operária ......................... 47
Descrição da metodologia e procedimentos de pesquisa............................................................... 50
Procedimentos de campo............................................................................................................... 53
CAPÍTULO II - A DINÂMICA DAS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO ....................66
Efetivos da Petroquímica União ...................................................................................................66
Perfil – os escolhidos da “arca do emprego”................................................................................. 67
Análise das Entrevistas ................................................................................................................. 70 Fazendo e refazendo a permanência no emprego – o mito de Penélope ......................................... 70 O trabalho como sentido da vida..................................................................................................90 Considerações gerais sobre os efetivos....................................................................................... 112
TERCEIRIZADOS DA PETROQUÍMICA – ABRINDO DIÁLOGO.................................127
Perfil – conhecendo os terceirizados ........................................................................................... 128
Análise das entrevistas ................................................................................................................ 129 O trabalho como parte do ser ..................................................................................................... 129 Reinventando o trabalho............................................................................................................ 144 Considerações gerais sobre os terceirizados ............................................................................... 155
DESPEDIDOS DA PETROQUÍMICA – FALANDO SOBRE AS ENTREVISTAS.............165
Contextualizando a situação dos despedidos .............................................................................. 167
Perfil dos entrevistados ............................................................................................................... 168
2
Análise das Entrevistas ............................................................................................................... 169 O universo numa casca de noz................................................................................................... 169 Trabalho e status afinidades eletivas? ........................................................................................ 189 Considerações gerais sobre os despedidos da Petroquímica ........................................................ 210
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................234
A dinâmica das transformações do mercado de trabalho e a alteração do caráter ................... 234
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................243
ANEXOS.............. ..........................................................................................................247
Entrevista com Heli Vieira Alves................................................................................................ 247
Roteiro de perguntas - Trabalhadores da Petroquímica União ................................................. 249
Roteiro de perguntas – Trabalhadores terceiros ........................................................................ 255
Roteiros de Entrevistas – Desempregados .................................................................................. 261
Comentários preliminares sobre as impressões de campo ......................................................... 266
3
Agradecimentos
Em um trabalho longo e absorvente como uma dissertação de
mestrado, ainda que seja um esforço individual, necessariamente contamos
com uma rede de relações que inclui instituições, pessoas e entes, sem os
quais esse estudo não se realizaria ou, pelo menos, não chegaria ao fim.
Começo os agradecimentos pelas instituições que me apoiaram e que me
fizeram levar este projeto adiante. Ao Departamento de Pós-Graduação de
Sociologia da Universidade de São Paulo, que ofereceu e continua
oferecendo a estrutura necessária para que a imaginação sociológica de
tantos brasileiros e brasileiras permaneça viva. Sempre que precisei contei
com a solicitude dos funcionários, principalmente Irani e Izabel. Ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ, órgão de
fomento à pesquisa, que viabiliza o trabalho de milhões de cientistas nas
mais diversas áreas e que tornou possível minha pesquisa, incentivando-me
a levar a cabo este trabalho. Seria injusto esquecer o CEBRAP e o CEDEC,
que, embora não tenham relação direta com esta dissertação, foram
instituições importantes, durante a graduação para minha iniciação como
pesquisadora.
À Maria Helena Oliva Augusto, minha querida orientadora,
excepcionalmente atenta ao processo de pesquisa, além de dedicada e
questionadora, indicou caminhos valiosos na feitura do texto. Seu rigor e
atenção me fizeram aprender muito sobre o fazer sociólogo. Ao professor
José de Souza Martins, grande mestre, inspirador de toda uma geração de
sociólogos na “artesania” sociológica, conhecedor dos muitos Brasis e
brasileiros que povoam nossos rincões. Foram inúmeras e inesquecíveis as
lições sobre produzir sociologia, sobre o campo, sobre a maneira de
questionar, e sobre a infinitude do conhecimento em Ciências Humanas.
Entre outras coisas, nos ensinou o significado do “possível”, sob a ótica
Lefebvriana.
Não poderia deixar de agradecer aos amigos e colegas que foram
testemunhas do meu processo de aprendizagem, me acompanhando nessa
4
longa jornada. Pude contar com seres humanos preciosos. Enca, amiga de
coração, companheira tão importante para, nos momentos de apuro, não me
deixar desistir e para partilhar minhas descobertas como socióloga, na
graduação, e como pessoa, na vida. À Patrícia Rossi, Aninha Tomioca e Lilian
Alves, amigas presentes, com quem varei diversas noites para estudar textos
árduos, realizar trabalhos em grupo, discutir questões que nos pareciam
relevantes. A amizade foi o grande prêmio que recebemos por esta vivência
tão rica. À Monika Dowbor, com quem pude contar diversas vezes, com
quem trabalhei desde o início da graduação, e para quem o fascínio pelo
“outro” é um manancial de aprendizagem. Esta centelha foi despertada por
você.
Aos meus pais, que sempre me apoiaram, alimentando os meus
sonhos, ainda que não soubessem o significado preciso do que é Sociologia.
Minha mãe, um dos grandes presentes que eu recebi da vida, com quem
aprendi a “fé cega” e meu pai, com seus olhos verdes, me ensinou a
verdejar o sonho, mesmo quando só há aridez. O significado da palavra
“Luta” é um legado que herdei dele. Aos meus irmãos, Maria Rita, Rejania,
João Carlos, Sirlene e Lillian, com quem aprendi as primeiras lições de
sociabilidade, partilhando espaços, utopias, dificuldades, gostos e
descobertas, nas mais diversas fases de minha vida. Aos meus sobrinhos
queridos, Neto, João Antônio, Vida e Marquinho, a continuidade de nossa
linhagem. Estou com saudades de nossas oficinas de pintura e de nossas
incursões no mundo fantástico, que são seminais para mim.
Ao Edu, nem sei como seria todo esse processo sem seu amor e
compreensão. Nos momentos mais dramáticos, apaziguando meu desespero,
me fazendo enxergar com simplicidade os problemas e ajudando a resolvê-
los. Sua participação foi vital para eu concluir esta etapa de minha vida. Com
o calor dos teus braços, tive momentos doces e alentadores, que renovaram
minha alma, foram um bálsamo.
5
Resumo Esta dissertação tem como tema a “desestabilização do caráter dos
trabalhadores nas relações de trabalho”. Por meio da análise de entrevistas
com profissionais do setor petroquímico, discute e analisa os efeitos das
transformações do mundo do trabalho – como as alterações no sistema de
produção, a automação, a reestruturação produtiva, a flexibilização do
trabalho e a persistência do desemprego – sobre o caráter do homem nas
relações de trabalho. O caráter reflete a constituição de relações sociais que
se estabelecem a longo prazo, pressupõe a correspondência entre regras
sociais estabelecidas no âmbito das instituições e o comportamento dos
indivíduos. São analisadas três categorias: trabalhadores efetivos na
Petroquímica União, trabalhadores terceirizados que atuem nela e
trabalhadores que tenham sido despedidos. Foram realizadas quinze
entrevistas, sendo cinco para cada categoria em questão. A análise das
biografias permite compreender os elementos que influenciam a forma como
essas pessoas se comportam, como se vêem e como supõem que são vistas
pelos outros, a partir das transformações do mercado de trabalho. Estas
mudanças têm como efeito a flexibilização das relações de trabalho e a
precarização das relações sociais. Por fim, a desestabilização do caráter, no
contexto analisado, compreende o sentido oposto ao da condição que define
o caráter estável, ou seja, implica a existência de laços sociais vulneráveis,
pautados por interesses provisórios.
6
Abstract This subject of this monography is the “desestabilization of character in
workplace relationships”. By interviewing professionals from the
petrochemical sector, it discusses and analyses the effects of changes in
work environment – such as modifications in production patterns, increasing
levels of automation, reestruturing of manufacture models, flexibilization of
work procedures and unemployment resilience – on human character in
workplace relationships. The character reflects the development of social
relations in the long term, assuming the linkage between social rules
established inside organizations and individual behavior. Three categories are
studied: Petroquímica União’s own employees, contracted workers and lay-
off/resigned workers. Fifteen interviews were accomplished. Five for each
appointed category. The biography analysis allows the understanding of the
elements that have influence on personal behaviour, on the way each person
sees him/herself and the way he/she believes other people may see
him/herself, taking into account the continuous evolution on labor conditions
and the instability on social relations.In conclusion, the desestabilization of
the character in this context, reflects the opposite sense of the condition that
defines a stable character, it indicates the existence of vulnerable social links,
ruled by temporary interests.
Palavras-chave: Sociologia do trabalho, caráter, desestabilização do caráter, desemprego, flexibilização das relações de trabalho Key-words: Labor sociology, character, desestabilization of character, unemployment, flexibilization of relations in the workplace.
7
Introdução
O presente estudo discute e analisa os efeitos das transformações do
mundo do trabalho. Essas transformações incluem alterações no sistema de
produção, a automação, a reestruturação produtiva, a flexibilização do
trabalho e a persistência do desemprego – sobre o caráter do homem nas
relações de trabalho. O caráter reflete a constituição de relações sociais que
se estabelecem a longo prazo, pressupõe a correspondência entre regras
sociais estabelecidas no âmbito das instituições e o comportamento dos
indivíduos. “É o valor ético que atribuímos a nossos desejos e nossas
relações com os demais”, está vinculado a nossos laços duradouros e “se
expressa pela lealdade e o compromisso mútuo, por meio da busca de
objetivos de longo prazo” (Sennett, 2000: 10). Entendemos a
desestabilização do caráter no sentido oposto ao da condição que define o
caráter estável, trata-se d“a dissolução dos vínculos de confiança e
compromisso, constituídos no longo prazo”, que provoca a separação entre
“vontade e comportamento” (Sennet, 2000: 30). Nesse sentido, implica a
existência de laços sociais vulneráveis, pautados por interesses provisórios.
A nova fase de acumulação capitalista, cujas manifestações
características vieram à tona, com mais força, a partir da década de 1980,
provocou um conjunto de mudanças que vêm contribuindo para a
reconfiguração da esfera do trabalho. Os processos de reestruturação
produtiva e as mudanças nos padrões tecnológicos e de comunicação,
ligados à produção, estão no epicentro dessas transformações, e a
precarização das relações sociais, mediante a flexibilização dos contratos de
trabalho e do sistema de welfare é um dos seus efeitos (Guimarães, 2002a:
105).
As mudanças acima referidas tornaram-se, comumente, motivo de
insatisfação das pessoas no âmbito do trabalho. Excesso de atividades e
incumbências, insegurança em relação ao futuro, automatização de funções
– que, em muitos casos, implica redução da participação do trabalhador na
8
elaboração de sua tarefa1, limitando seu papel à execução de funções
relativas à vigilância sobre um processo do qual não tem total domínio –,
além do medo do desemprego e das mudanças frequentemente
implementadas no sistema de produção são alguns dos sintomas mais
recorrentes.
A ideia deste projeto nasceu do questionamento acerca das
conseqüências das transformações no mundo do trabalho, como decorrência
das mudanças sociais, em geral. Propus-me a compreender o novo tipo de
sociabilidade que se constitui nesse processo de mudanças nas relações
institucionais e de reorganização das relações de trabalho, em que a
insegurança e as instabilidades parecem ser a tônica.
Parti de impressões recolhidas no dia a dia, de depoimentos de pessoas
conhecidas, amigos, parentes, de debates na imprensa falada e escrita, e da
percepção de um mal estar geral nas relações sociais, que têm no âmbito do
trabalho uma de suas fontes. Ou seja, os problemas resultantes das
mudanças na esfera do trabalho ajudam a explicar a transformação no modo
das pessoas se relacionarem no momento atual. As duas esferas – a do
trabalho e a das relações cotidianas – influenciam-se mutuamente.
Entendo que as transformações às quais me referi delineiem a
reconfiguração das instituições2. De minha perspectiva, esse processo
consiste na reorganização das relações a elas subjacentes, ou seja, dá lugar
a outro tipo de sociabilidade nas referidas instituições, entre as quais se
enquadram as empresas.
Para analisar se a reconfiguração do mundo do trabalho poderia
provocar a desestabilização do caráter nas relações sociais nesse âmbito,
busquei descobrir o tipo de comportamento adotado pelos trabalhadores a
partir das novas regras nele introduzidas. Além disso, pretendia identificar
também os problemas surgidos no processo de constituição do novo modo 1 Em outras situações, o processo de automação pode exigir que sejam desenvolvidos raciocínios mais complexos por parte dos trabalhadores. Isso requer que as pessoas reorganizem seu tempo entre a execução de tarefas, no campo prático, e a atividade de reflexão, de cunho intelectual. Em muitos casos, isso exige a realização de cursos de aperfeiçoamento para a atualização de conhecimentos. 2 As instituições são vistas aqui como mediações entre as estruturas sociais e os comportamentos individuais (Théret, 2003: 225)
9
de ser operário, as tensões das relações entre os trabalhadores, como
conseqüência do aumento da competição, os mecanismos de negociação, os
artifícios para a adaptação aos novos papéis no campo de trabalho, e a
contínua presença do provisório no modo de ser e de pensar. Isso constituiu
a motivação de minha investigação sociológica.
Os rearranjos sociais poderiam ser vistos mediante os desencontros e
conflitos entre o que é desestruturante e o que é reorganizador. Nesse
sentido, vem a pergunta: “Como sustentar a lealdade e o compromisso em
instituições que estão em contínua desintegração e reorganização?”.
(Sennett, 2000: 10)
Presumia que a automação das fábricas e o processo de reestruturação,
que geraram historicamente a redução de cargos ou a readequação das
funções existentes, as fronteiras entre as situações de trabalho e de não-
trabalho, e as pressões por aumento de produtividade, vistos na indústria
entre a década de 80 e 903, poderiam provocar ajustes no comportamento
dos trabalhadores. Supunha que o conjunto de mudanças a que eles se
submetiam implicaria a reformulação de seus padrões de conduta.
Examinei em que medida, considerando um cenário de instabilidade
econômica e social, as referidas mudanças na esfera profissional, poderiam
alterar os padrões de comportamento das pessoas. Ao que me parece, as
relações sociais têm sido marcadas por vínculos momentâneos e pautadas
por interesses passageiros, conforme aborda Richard Sennet (2000) em sua
obra A Corrosão do Caráter. Nela são discutidos os efeitos do capitalismo,
competitivo ou flexível4, sobre o caráter do homem nas relações de trabalho.
Esse foi, em termos teóricos, o ponto de partida para o estudo em questão.
3 Para saber mais informações, consulte Castro, Cardoso e Caruso (1997); Cardoso (2000). 4 Segundo Sennett, “na atualidade, a expressão ‘capitalismo flexível’ descreve um sistema que é algo mais que uma variação sobre um velho tema. O acento se coloca na flexibilidade e se atacam as formas rígidas da burocracia e dos males da rotina cega. Aos trabalhadores pede-se um comportamento ágil; pede-se a eles também – com muito pouca antecedência – que estejam abertos à mudança, que assumam um risco atrás do outro, que dependam cada vez menos dos procedimentos formais.” [......] “o capitalismo flexível tem bloqueado o caminho reto da carreira, desviando os empregados, repentinamente, de um tipo de trabalho a outro. No inglês do século XIV, a palavra job (trabalho, emprego) designava um pedaço ou fragmento de algo que poderia encarrerar-se. Hoje, a flexibilidade devolve esse sentido desconhecido, pois ao longo de sua vida as pessoas fazem fragmentos de trabalho” (Sennett, 2000: 9)
10
Interessava-me saber se a mudança de conduta devida às
transformações no mundo do trabalho era capaz de provocar uma crise de
identidade operária, expressa na dificuldade em ajustar velhos padrões de
orientação social à nova situação de emprego, cuja tônica se apresentava
como instabilidade, insegurança e provisoriedade. Presumia assim, que tal
conflito de identidade5, isto é, a crise que ocorria no modo de ser operário
poderia indicar a formação de novos arranjos sociais.
É importante destacar que o termo identidade guarda uma certa
ambivalência e deve ser entendido em termos da singularidade e da
identidade ou semelhança a um grupo social, tal qual nos mostra Dubar
(2000)6. Discutimos esse conceito, de modo mais acurado, ao longo do
texto, tendo em vista as relações de trabalho como um lugar de pertença
social.
Nesta pesquisa, a transformação das relações de trabalho é vista num
contexto marcado pela reorganização das relações institucionais e das
estruturas sociais (Touraine, 1999; Beck e Beck-Gernsheim, 2002).
Touraine usa o termo desmodernização para indicar que, do seu ponto
de vista, há um processo de dessocialização e de desinstitucionalização do
modo de vida dos sujeitos. “Chamo dessocialização ao desaparecimento dos
papéis, normas e valores sociais pelos quais se construía o mundo vivido. A
5 Com conflito de identidade, quero dizer da crise no modo de ser dos indivíduos, em função da perda de balizas sociais e da fragmentação da experiência vivida, tal qual nos mostra Touraine (1999). No âmbito do trabalho, isso pode ser visto na precarização das relações, que acarreta, entre outras coisas, a perda do sentido de classe dos trabalhadores. 6 Sobre o termo identidade, Dubar explicita: “identidade não é o que resta de idêntico, mas o resultado de uma ‘identificação’ contingente. É o resultado de uma dupla operação linguística: diferenciação e generalização. A primeira é a que visa a diferença, isso que faz a singularidade de qualquer coisa ou de qualquer um em relação a qualquer outro ou a qualquer coisa do outro: identidade é a diferença. A segunda é essa que busca definir o ponto comum a uma classe de elementos todos diferentes entre si: identidade é a pertença comum. As duas operações são a origem do paradoxo de identidade: e o que há de único é o que é partilhado. Esse paradoxo não pode ser considerado sem que se leve em conta o elemento comum às duas operações: a identificação de e para o outro. Nessa perspectiva não há identidade sem alteridade. As identidades, como as alteridades, variam historicamente e dependem de seu contexto de definição.” (Dubar, 2000: 3)
11
dessocialização é a conseqüência direta da desinstitucionalização da
economia, da política e da religião” (Touraine, 1999: 53)7.
Com isso o autor quer dizer que, no mundo contemporâneo, há uma
cisão entre o sistema social e o mundo vivido pelas pessoas, que se expressa
na fragmentação da sociabilidade e na perda das identidades coletivas. A
esse processo Ulrich Beck refere-se como o da “descontinuidade das relações
institucionais” vistas na segunda modernidade8. Nesse estudo, suponho que,
em vez de uma ‘cisão’ entre mundo vivido e sistema social, as
transformações das relações de trabalho, no âmbito de trabalho, impliquem
uma reconfiguração das condutas.
Por se tratar de um estudo sobre processos sociais relativos a uma
situação de instabilidade, em que novas estruturas vão se formando, evitei
amarrar a investigação a conceitos. Utilizo o conceito de Sennet somente
como norteador da análise, para entender os novos arranjos sociais. Mas,
focada em sua experiência, analiso o comportamento do trabalhador,
7 Outros autores como Giddens já haviam se referido à questão da superação da modernidade. Diferente de Touraine, Giddens, não admite termos como desinstitucionalização. Segundo ele, para que se sustente a ideia de superação da modernidade não basta considerar a descontinuidade do tempo, a redução do espaço entre passado e futuro, a impossibilidade de nos situarmos em um tempo histórico definido. O ingresso numa nova era deveria implicar necessariamente que a trajetória do desenvolvimento social se fizesse no sentido de uma mudança das instituições da modernidade para um novo e diferente tipo de ordem social, algo que, do seu ponto de vista, não se verifica no plano concreto. Giddens entende as mudanças institucionais da atualidade e seus desdobramentos como a radicalização das conseqüências da modernidade. (Giddens, 1991). No caso estudado, suponho haver uma reconfiguração do tipo de relação no âmbito do trabalho. 8 Beck e Beck-Gernsheim (2002) usam o termo ‘segunda modernidade’ no mesmo sentido que empregam ‘modernidade tardia’. Ou seja, um processo de desenvolvimento das relações sociais em que, diferente do que se viu na fase inicial da modernidade, as instituições não são necessariamente capazes de produzir regras claras, que orientem o comportamento das pessoas. Pelo contrário, esse é um momento em que se assiste a um enfraquecimento de sua capacidade de regulação das ações e da conduta social. Tal contexto se combina à tendência de perda de identidade coletiva, ao mesmo tempo em que fortalece comportamentos individualistas. Não se quer com isso dizer que o funcionário de uma empresa deixe de cumprir as regras por ela estabelecidas, mas a forma de socialização dos padrões de conduta se ancora cada vez menos na identidade com o outro trabalhador, baseando-se mais no próprio indivíduo. No mercado de trabalho, é a disputa, aquisição, oferta e aplicação de uma diversidade de habilidades de trabalho, que tendem a moldar a conduta dos empregados. Nesse contexto, a individualização é a expressão de um modo particular de sociabilidade compartimentada, em que prevalecem sistemas não-lineares. Isso configura as condições que viabilizam mudanças contínuas nas relações de trabalho, sem o tempo necessário para a incorporação das mesmas, nas ações e condutas adotados pelas pessoas nesse âmbito.
12
observando de que modo as mudanças em sua conduta se efetivam e como
se apresentam em seu cotidiano. Meu esforço foi identificar os elementos
estáveis que surgiram num processo que gera insegurança e instabilidades
nas relações como as mudanças no padrão tecnológico, o aumento do
desemprego a flexibilização das relações de trabalho, entre outros.
Supunha que, às mudanças implementadas no sistema de produção de
uma empresa, como, por exemplo, a automação, a informatização e a
substituição de sistemas tecnológicos obsoletos por outros avançados,
corresponderiam mudanças nas relações sociais de trabalho. De minha
perspectiva, isso exigiria dos empregados um novo ritmo de trabalho, formas
diferenciadas de lidar com o espaço, diferentes habilidades profissionais,
entre outros, no sentido de conformarem sua conduta às mudanças do
sistema de produção.
Analisei as relações de trabalho dos funcionários (efetivos e terceiros)
da Petroquímica União – empresa do ramo petroquímico – e a forma como
pensam e se comportam as pessoas que atuaram ali e foram dispensadas. A
maneira como cada uma das categorias interpreta suas condições de
trabalho e de vida é matéria dessa pesquisa.
Minha expectativa era descobrir se, nesse contexto de reconfiguração
das relações institucionais e de transformações na estrutura de produção da
empresa, houve mudanças no padrão de conduta dos trabalhadores, de
modo a configurar o que chamo de desestabilização do caráter. Nesse
sentido, indagava se a crise de identidade dos trabalhadores poderia
gerar desestabilização do caráter. Uma de minhas hipóteses era de que
as ações do operário da Petroquímica passariam a ter como orientação
valores em contínua mudança, em vez de se pautarem somente por regras
consolidadas por longo período na instituição (empresa), configurando um
modo de ser descontínuo, fragmentário9 ou a “sensação” de se estar sempre
em processo de mudança, ainda que isso não ocorra – o que produz
insegurança.
9 É importante salientar que essa configuração em que se percebe mudança contínua de valores não se dá somente no âmbito do trabalho, mas em diversos campos da vida das pessoas. No entanto, me limitarei a analisar somente o contexto do trabalho.
13
Justifica-se a escolha por uma empresa desse ramo porque, juntamente
com o automobilístico, o setor petroquímico é um dos braços da indústria
que mais tem incorporado mudanças, tanto estruturais como no sistema de
produção10. O fato de ser uma empresa intensiva em capital e tecnologia faz
acelerar essas mudanças, que são condição sine qua non para as
transformações das relações sociais de trabalho.
Para discutir o processo de desestabilização do caráter, esta análise
fixou-se sobretudo nas mudanças efetuadas11: nas relações de trabalho e
nos processos de produção. O primeiro eixo de análise, o das relações de
trabalho, discute em que medida o aumento do processo de terceirização12,
resultante da flexibilização da regulação do trabalho e o desemprego, em
suas várias manifestações, têm marcado a subjetividade do trabalhador da
Petroquímica União e de que modo têm influenciado sua conduta no
trabalho. Supunha que a desregulação das relações de trabalho exigia uma
adaptação do trabalhador a relações instáveis a situações provisórias e que
denotem insegurança. Além disso, a incorporação de sistemas flexíveis
poderia reduzir as possibilidades de resistência desses trabalhadores às
mudanças (Guimarães, 2002a), alterando o modo como se sentem ao
assumirem papéis sociais no âmbito do trabalho.
Com relação ao segundo eixo, relativo aos processos de produção,
busquei perceber se as mudanças nos sistemas de produção – como os
avanços tecnológicos e a automatização, entre outros – contribuíram para
uma mudança de conduta dos trabalhadores.
10 Furtado mostra que “A indústria petroquímica representa um dos poucos setores industriais intensivos em capital e com perspectivas de crescimento elevadas em que a presença de empresas de capital nacional é predominante.” Sobre o perfil do setor, o autor também indica que as petroquímicas brasileiras, seguindo o modelo internacional, tanto geram quanto demandam grandes volumes de capital. Além disso, o setor petroquímico tem outra importante característica, qual seja, capacitação tecnológica, tanto própria quanto vinculada a terceiros. (Furtado, 2003: 59) 11 Os dois eixos influenciam-se de maneira dialética, e a sua separação é usada somente para efeito metodológico. 12 De acordo com Schutte, entre 1989 e 1999, o número de trabalhadores diretos no setor petroquímico no Brasil, caiu cerca de 52%, de 29.223 para 13.960. Apesar de considerar que houve terceirização de algumas áreas, mostra que é difícil computar o número total de trabalhadores terceiros em cargos antes ocupados por trabalhadores efetivos. (Schutte, 2003: 168-169)
14
Com as entrevistas, pretendia identificar de que modo o desemprego,
as mudanças no sistema de produção e a modernização tecnológica
influenciam o modo de ser dos trabalhadores. Por meio da análise das falas
dos trabalhadores (efetivos e terceiros), procurei identificar seus sentimentos
e sua percepção sobre as mudanças as quais me referi, sobre a forma como
são vistos e como imaginam serem vistos, suas expectativas, sua percepção
sobre o trabalho e sua conduta.
Entrevistei trabalhadores – do quadro de funcionários efetivos e
terceirizados – que atuavam na Petroquímica União há pelo menos 15 anos e
pessoas que tiveram longa experiência na empresa, mas foram desligadas13
dela (desempregados do setor petroquímico)14. Meu objetivo era traçar
comparações entre os depoimentos dos que permanecem na empresa e os
que foram despedidos, com o objetivo de compreender de que modo o
desemprego, as mudanças no sistema de produção e nas relações de
trabalho alteram ou alteraram sua conduta, a conformação do seu caráter e
se algum elemento sinalizava a tendência à desestabilização do caráter.
Para cada uma das três situações: efetivos, terceiros na PQU e
desempregados, egressos daquela empresa, supunha que se a tendência à
desestabilização do caráter se confirmasse, ela se manifestaria de um modo
específico para as diferentes categorias. Considerava também que, em vez
de desestabilização, as referidas transformações poderiam gerar
comportamentos mais individualistas, resultando no aumento da
competitividade ou na tendência à criação de um ambiente do tipo “salve-se
quem puder”.
13 Neste trabalho, a ideia inicial era entrevistar desempregados da Petroquímica União. Contudo, entre os entrevistados que foram desligados, somente um permanecia na situação de inativo. Muitos tinham sido dispensados mediante acordo entre as partes, e, ao saírem, já dispunham de nova oportunidade profissional. 14 Para efeito de análise, trabalhar com essas três categorias permitiu fazer comparações em dois sentidos: entre os entrevistados classificados na mesma categoria – por exemplo, desempregados comparados entre si – e entre as diferentes categorias como os ativos e não-ativos. Desse modo, os relatos dos entrevistados, de cada uma das categorias, servem como contraponto para o refinamento da análise. Para entender melhor, veja a metodologia do trabalho.
Capitulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
Capítulo I - Pressupostos para o trabalho de campo
A Petroquímica União
A Petroquímica União, primeira central de petroquímicos básicos do
Brasil, foi constituída em 1966, com o nome de Petroquímica União LTDA,
como parte do projeto de implantação do maior complexo petroquímico da
América Latina. Surgiu como resultado do acordo entre a Petróleo União S.
A., em Capuava, Santo André (hoje RECAP Petrobrás) e a americana Philips
Petroleum. (2004: www.pqu.com.br). Em 1972, tornou-se a central
produtora de matérias-primas do pólo petroquímico de São Paulo, com a
denominação de Petroquímica União S. A. Com isso, constituiu-se como a
primeira empresa produtora de matérias-primas petroquímicas no Brasil.
(Rizek, 1994)
Segundo Rizek, a Petroquímica União foi constituída a partir de uma
base técnica internacionalmente consolidada, conhecida como “eletrônica
analógica”. Desde a década de 1960 até meados de 1980, impunha-se à
empresa, como um imperativo, a necessidade de modernização do sistema,
própria do setor petroquímico. No entanto, as tentativas de modernização
desse modelo tecnológico esbarraram no fato de a empresa ser de controle
estatal. A substituição do princípio analógico pelo de sistemas digitais de
controle distribuído foi feita parcialmente, a partir de meados de 80. Após a
explosão da fábrica, em 1992, a empresa passou por processo de
reestruturação e foi privatizada, em 1994.
Segundo Rizek (1994), o uso de tecnologia de ponta na indústria
petroquímica não se justifica pela necessidade de aumentar a produtividade,
mas para dar conta de certas propriedades dos valores de uso produzidos.
Estes são obtidos em condições de temperatura e pressão específicas, que
inviabilizam o contato direto da mão-de-obra.
Nos últimos anos, a indústria brasileira sofreu uma redução do volume
de emprego (Guimarães, 2002b). No setor petroquímico, essa redução
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
16
deveu-se, fundamentalmente, à reestruturação produtiva e à terceirização da
mão-de-obra (Rizek, 1994; Guimarães, 2002b e Furtado, 2003).
Para entender de que modo os trabalhadores percebem essas
mudanças e como se sentem afetados por elas, realizei entrevistas prévias
com dirigentes sindicais e com funcionários da Petroquímica União. Com isso,
visava também saber se minhas premissas iniciais e questionamentos sobre
a realidade de trabalho da referida empresa eram coerentes. As primeiras
entrevistas foram importantes para eu elaborar questões sobre o problema
do desemprego na Petroquímica União.
Conforme Guimarães (1998, 2002b) destacou, havia indícios de
mudança do cenário de estabilidade desse setor, desde fins dos 80 e meados
de 90. Rizek indica que essa tendência se evidencia nos 5 primeiros anos de
1990.
O diretor do sindicato dos químicos (funcionário da Petroquímica
União, que se dedica exclusivamente às atividades sindicais) informou que,
atualmente, a flexibilização das relações de trabalho (mediante terceirização)
e a redução dos quadros funcionais, na empresa, via automação, são os
principais problemas ligados à questão do desemprego.
Para os trabalhadores petroquímicos, são perceptíveis os resultados e
implicações dos processos de reestruturação produtiva, para os quais
Guimarães(1998, 2002b) e Furtado (2003) chamam a atenção. De acordo
com Heli Alves, diretor do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos do Grande
ABC, nos últimos 20 anos, o setor petroquímico reduziu consideravelmente
seu quadro de pessoal. O sindicalista esclarece:
“Em 1989, o levantamento para a desestatização indicava que a
Petroquímica União possuía 1.200 trabalhadores diretos e 200 terceirizados.
Hoje contamos com cerca de 550 trabalhadores diretos e 600 terceirizados.
É possível constatar que houve uma diminuição dos postos de trabalho,
principalmente no setor produtivo, devido principalmente às melhorias nos
sistemas de controle. Mas, além disso, a quase totalidade dos trabalhadores
da área de manutenção e todos os da área de segurança e refeitório, foram
terceirizados.”
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
17
Alves indica que os processos de reestruturação produtiva e de fusões e
aquisições vem trazendo conseqüências para o setor como um todo.
Segundo ele, “Está em moda a integração das gerações da cadeia
termoplástico. Um dos objetivos do setor é redefinir a produção, integrando-
a desde o refino até a fabricação de polímeros. Para tanto, é necessária a
troca de ativos e aquisições de controles acionários. A Braskem (Odebrecht)
é a primeira a executar uma operação do gênero e os demais grupos
seguem o mesmo caminho. Portanto, é possível vislumbrar o desemprego
que tal tendência irá gerar.”
Nesse sentido, percebi que valia a pena investigar se os processos de
mudança de todo o sistema de produção e de organização do trabalho na
Petroquímica União induzem à expectativa de desemprego por parte dos
trabalhadores.
Segundo depoimentos de trabalhadores da Petroquímica União, “o
desemprego não apenas é uma ‘ameaça’ a sua situação social, como é um
instrumento de dominação.” Da perspectiva dos operários da Petroquímica
paulista, a ameaça do desemprego num setor fortemente concentrador (de
estrutura oligopolista, com número pequeno de firmas em atividade), no qual
as possibilidades de um trabalhador transitar entre firmas do setor são
pequenas, chega a ser “assustadora”.
Para uma parte do pessoal, nas petroquímicas, as relações de trabalho
seguem o padrão clássico de regulação e os salários ainda são altos, se
comparados à média nacional. Isso gera a divisão entre os assalariados bem
remunerados – regidos por relações estáveis – e os mal remunerados,
regidos por relações flexíveis. O capital cria diferenciações internas “entre
bons e maus empregos” (Guimarães, 2002a: 105) e desigualdades, mesmo
entre os “iguais”.
A lógica de concentração do capital leva à ampliação das chances de
flexibilização das relações, o que provoca um clima de insegurança na
empresa. Nesse sentido, conforme depoimento de um trabalhador da
Petroquímica União, o “desemprego passa a ser um fantasma na vida dos
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
18
trabalhadores”, e a fazer parte de sua realidade concreta, uma vez que está
presente em seu cotidiano.
No contexto de flexibilização das relações de trabalho, de minha
perspectiva, o estudo do comportamento dos trabalhadores se afigurou
matéria rica de investigação sociológica. Que desafios se impõem em função
da reestruturação do sistema de produção? As novas tecnologias
implementadas impõem ou impuseram uma mudança na forma desses
trabalhadores lidarem com o espaço e o tempo no trabalho?
A nova dinâmica da produção impõe a coexistência de formas de
trabalho regulado e flexível; provoca a extinção de setores da produção e a
automação de algumas áreas; propõe ao trabalhador novas formas de
atuação.
Em função desse processo, questiono-me se faz sentido pensar que o
tipo de mudança imposta ao modo de os trabalhadores desempenharem
papéis sociais possa produzir padrões de conduta desprovidos de
regularidade, fazendo com que ajam de acordo com interesses
momentâneos e alianças provisórias – configurando o que entendo por
desestabilização do caráter.
Cabe compreender se, de fato, os atores se pautam por regras e
valores que variam continuamente e, em que termos é possível a
rearticulação entre esses trabalhadores e a experiência social, num contexto
em que a categoria e a pertença à classe operária parecem perder força.
Nesse sentido, a permanência e a provisoriedade são critérios importantes
para avaliar a adaptação às regras ou novas normas estabelecidas. Por
exemplo, permanecer na empresa por longo período é uma qualidade – dado
que pressupõe envolvimento e compromisso com a corporação – ou um
problema do trabalhador, no sentido de que pode ser indicativo de
passividade, falta e iniciativa ou resistência a mudanças? Ser propenso a
mudanças é bom ou ruim?
Considerando que a queda na posição de status de uma pessoa – vista
na situação do desempregado ou do trabalhador terceirizado – determina
uma mudança da imagem que ela tem sobre si mesma, e,
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
19
conseqüentemente, na que os outros têm sobre ela, questiono o que a piora
da posição institucional – quando o empregado passa do trabalho regulado
para o terceirizado – acarreta à sua estrutura de caráter?
De que modo a perda de status e a falta de perspectiva de recuperá-lo,
por parte daqueles que se tornaram terceirizados, influenciam o seu
autoconceito15? Como os funcionários que permanecem na empresa, com
relações de trabalho protegidas, vêem essas mudanças de papéis de seus
cômpares? Sentem-se afetados ou ameaçados pelas instabilidades e
transformações do mercado? De que modo isso influencia a forma de os
trabalhadores se relacionarem entre eles, nesse momento em que o
“universo da economia, dos mercados e das técnicas separa-se do das
identidades coletivas e individuais” (Touraine, 1999: 65)?
É possível que se constitua um eixo comum, a partir dos fragmentos da
vida dos operários, que ajude a compreender esse processo como o da
experiência dos trabalhadores, vistos enquanto classe social?
Cabe descobrir se o operário da Petroquímica União se percebe como
um ator social fundamental na transformação da instituição em que trabalha;
se ele ainda se sente pertencente a classe de trabalhadores ou isolado na
responsabilização por seu destino profissional – um solitário cuja vida se
torna um peso a ser carregado o uma pessoa com autonomia para cuidar da
vida profissional individualmente? Busco descobrir os valores que orientam a
conduta dos trabalhadores, se existe uma ética que pauta seu
comportamento parcelar, seu modo de ser.
15 Por autoconceito entendo, conforme Gerth e Mills, a noção que uma pessoa tem de si mesma.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
20
Os desempregados da indústria petroquímica em São Paulo
Saltam aos olhos o modo e o ritmo com que a indústria brasileira
mudou, a partir dos anos 1990.
Adalberto Cardoso (2000) identifica uma mudança estrutural no
mercado de trabalho da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), nas
décadas de 80 e 90. Para ele, o avanço do desemprego na região
metropolitana de São Paulo estava associado à escassez de emprego na
indústria. Embora seu trabalho focalize os deserdados da indústria
automobilística, algumas de suas considerações podem ser aproveitadas para
outros setores da indústria, como o petroquímico. Entre 1989 e 1995, uma
parte dos trabalhadores liberados da indústria encontrava dificuldades para
empregar-se em qualquer outro setor de atividade (2000: 67).
A mudança no sistema de produção da indústria trouxe conseqüências
para o emprego naquele setor. Nadya Guimarães afirma que “o volume do
emprego industrial caiu, ao longo da década de 90, não importando o
momento do ciclo” (2002b: 208). Especificamente sobre a cadeia
petroquímica, ela explicita:
Incrementou-se de modo significativo, nos anos 90, a
terceirização de serviços operacionais, basicamente no
apoio à produção, em tarefas de manutenção corretiva (e
não apenas nas “paradas” de manutenção, como também já
era de hábito). Nesse caso, os postos de trabalho se
mantinham, o número de trabalhadores por posto por vezes
também, mas rompia-se a relação funcional, introduzindo-
se uma nova forma de contratação, a de serviços
externalizados, que permitia redução de gastos com
pessoal. (1998: 99)
A queda do número de postos na indústria em geral e a reestruturação
na produção no setor petroquímico impuseram alterações na composição do
emprego nesse setor. Entre as décadas de 80 e 90, os trabalhadores
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
21
petroquímicos gozavam de relativa estabilidade, se comparados aos da
indústria automobilística, também intensiva em capital. (Rizek, 1994: 24).
A partir da década de 90, esse quadro sofreu mudanças. A
terceirização, destacada por Guimarães (1998), era indicativa da piora nas
condições de trabalho e de vida dos profissionais daquela indústria. Mas,
além disso, a reestruturação na produção provocou a extinção de
determinadas áreas ocupacionais, implicando a “degradação do capital de
qualificação acumulado”, ou a “experiência subjetiva da redundância”
(Guimarães, 2002b).
É possível que tal desestruturação das relações tenha produzido forças
desestabilizadoras do caráter dos trabalhadores. Estarem submetidos à
precarização progressiva de relações contratuais trabalhistas, sob ameaça de
desemprego, ou mesmo sofrendo lenta piora das condições de vida,
configura o que se denomina ameaça à integridade do trabalhador, torna
vulneráveis os laços de confiança.
No caso das petroquímicas, a exigência de fidelidade do trabalhador
para com a corporação na qual ingressa torna ainda mais delicada a questão
do desemprego no setor. Isso porque, caso uma pessoa saia de determinada
empresa petroquímica, dificilmente será aceita em outra do ramo, dado o
“fator fidelidade / exclusividade”. Se já tiver consolidado uma carreira na
empresa o quadro se agrava. Isso coloca em risco o capital profissional
acumulado pelo trabalhador, que pode enfrentar resistências para ser
aproveitado em outro lugar, e favorece o fenômeno da redundância.
Em quase todas as entrevistas, os respondentes comentaram essa
característica de “especialização” do trabalho petroquímico, que torna muito
difícil a mudança para outra empresa do ramo e é um agravante para as
pessoas que temem o desemprego.
Além de levar em conta as especificidades do setor petroquímico,
acredito que a tensão pela expectativa do desemprego tenha um outro
agravante: o histórico em que o mercado de trabalho brasileiro se
estruturou. Conforme Guimarães,
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
22
Em países como o Brasil, a questão do desemprego se
coloca de maneira particularmente crítica. Ora, nesse
tipo de contexto, nem a estruturação do mercado de
trabalho generalizou a relação salarial estável como a
forma dominante de uso do trabalho, nem a produção
em massa se sustentou num movimento de extensão da
cidadania e proteção social na forma de um Welfare
público, socialmente eficaz na proteção do trabalho.
(2002a, 111)
Desde a década de 1960, quando foram fundadas as primeiras
empresas, até 1980, o setor petroquímico foi uma exceção no precário
mercado de trabalho brasileiro, uma vez que, historicamente, se serviu de
uma política de estabilização da força de trabalho, ancorada em salários
elevados e benefícios extra-salariais, que se distingue significativamente da
média brasileira.
No entanto, a dificuldade de manutenção do emprego e de sua
qualidade, vista entre as décadas de 1980 e 1990, ampliou-se até os anos
2000. Os crescentes ganhos de produtividade, propiciados pela intensiva
reestruturação produtiva entre 1990 e 2000, vêm refreando a manutenção
da empregabilidade no setor. Segundo João Furtado,
os avanços da produtividade petroquímica brasileira
nestes últimos dez anos são notáveis, às vezes próximos
do espetacular. Os dados do Ministério do Trabalho
(RAIS) indicam uma redução acentuada do emprego. As
empresas, por seu lado, estimam também esses avanços
numa proporção impressionante: aumentos de produção
física da ordem de 50%, com redução do emprego total
de 50%, o que resulta numa multiplicação dos
indicadores de produtividade do trabalho por um fator 3.
(2003: 65)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
23
Tendo em vista a realidade de não generalização da relação salarial
estável, no mercado de trabalho brasileiro e considerando as características
de empregabilidade do setor que me propus a estudar, em que se percebe:
média salarial alta – em comparação com outros segmentos da produção – e
piora das condições de trabalho, dada a tendência à terceirização de algumas
áreas, empenhei-me a tarefa de analisar de que modo as estratégias de
racionalização da produção, de redução dos custos e de “enxugamento” da
mão-de-obra (vistos, sobretudo, da década de 90 em diante) afetaram e vêm
afetando a situação de trabalho e de vida dos trabalhadores bem como seus
padrões de conduta na empresa.
Realizei análise das falas dos empregados efetivos e dos terceiros da
PQU, e dos desempregados do setor16, com o objetivo de perceber se, no
exercício de suas funções, as pessoas perdem os vínculos de confiança
consolidados ao longo de sua carreira, configurando o que se denomina de
desestabilização do caráter. Suponho que a vulnerabilização dos acordos e
alianças feitos na esfera do trabalho, tal qual mostra Beck (2002), impõe um
sentido de provisoriedade às relações sociais.
No caso estudado, aparentemente, os principais problemas
relacionados com o desemprego do setor petroquímico são: a perda de
status e a piora das condições de vida, devido à terceirização e à
redundância – presentes no setor, claramente desde a década de 90 do
século passado – e não o desemprego de longa duração. A automação de
áreas de produção e a mudança das técnicas de produção têm gerado, em
muitos casos, a redução e o empobrecimento de tarefas e funções na
fábrica. Em outros casos, a simplificação de tarefas resulta no aumento da
complexidade do raciocínio exigido para a compreensão dos processos
envolvidos – o que requer atualização dos conhecimentos do funcionário.
Mesmo assim, é possível pensar que, de modo geral, as pessoas são
afetadas pelo medo da perda, um ‘fantasma’ em sua realidade, o ‘fantasma
do desemprego’ e da precarização das condições de trabalho e de vida, uma
16 Com o objetivo de preservar a privacidade dos entrevistados, os nomes citados nessa dissertação são fictícios.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
24
vez que essas situações se ampliaram e se configuram como uma tendência
no mercado de trabalho brasileiro, em geral. No setor petroquímico, embora
tenha havido um relativo desgaste nas condições de vida dos trabalhadores
que ali atuam, – se compararmos os salários e benefícios praticados na
década de 80 com os do momento atual – há expectativas de expansão da
cadeia petroquímica17.
Se o status social dos indivíduos depende primeiramente de sua
participação nos sistemas econômicos de produção, uma pessoa
desempregada tende a conviver com o sentimento de falha e incapacidade
por sua condição em relação ao emprego. De acordo com Ledrut, o
desempregado pode sentir-se humilhado, sem necessariamente vivenciar
uma situação real de humilhação e inferioridade pessoal (1966). Isso porque
a perda do emprego – que se reflete em sua situação econômica e social –
se transforma na perda do status social e se enquadra entre as
representações que se relacionam à ideia de derrota.
Durante a pesquisa, o fato de alguns funcionários terceirizados serem
aposentados da petroquímica fez-me pensar também na condição dessa
categoria. É preciso considerar que sua situação é bastante diferente da de
uma pessoa desempregada, uma vez que ele dispõe de renda. No entanto,
pelo que pude observar, é difícil saber o momento ideal para se aposentar. A
pesquisa mostrou que esse processo mexe com a estrutura emocional e
altera comportamento, mesmo dos que se consideram prontos para
passaram por tal experiência. Isso foi visto nos relatos de pessoas que
vivenciaram a situação de aposentadoria18.
De maneira geral, o que se exige do trabalhador é que oriente sua vida
profissional com base em valores destoantes entre si: o da atividade, da
produção, da criação e o da ausência dela. Como se tivesse de viver
mergulhado em dois mundos que nada têm a ver um com o outro, mas que
17 Durante as entrevistas, alguns respondentes indicaram otimismo em relação ao setor petroquímico, uma vez que tanto a Petroquímica como outras empresas do setor estão em processo de expansão de sua planta e das atividades. 18 Veja a entrevista de Chico, que atua como terceirizado na Petroquímica União, mas viveu por um tempo somente como aposentado. Mesmo nessa condição, a ausência do emprego pode ser encarada como derrota e humilhação perante a família e outros núcleos sociais.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
25
atravessam sua existência. Ele é treinado e capacitado para ser competitivo,
para superar limitações e desafios, para receber troféus, ultrapassar metas,
crescer continuamente. O mundo do desemprego, das perdas, das
limitações, da precariedade, e das pessoas aposentadas, portanto, não tem a
ver com esse outro; está em confronto, mas estranhamente contido nele. O
contato com os problemas desses trabalhadores faz-me pensar no conflito
entre essas realidades citadas enquanto uma força desorganizadora do modo
de fazer e de pensar do operário, podendo produzir o efeito do
desenraizamento.
A reinvenção das relações de trabalho A crescente flexibilização e a reorganização da vida no trabalho, vista
nos processos de reestruturação produtiva, coadunam-se com a progressiva
individualização da sociedade. Beck (1992) considera que a distribuição do
desemprego temporário coincide com o número crescente de pessoas
desempregadas há muito tempo e com formas híbridas entre emprego e
desemprego. Além disso, a intensificação e a individualização da
desigualdade social são resultantes, entre outras coisas, do processo de
precarização que se encadeia na situação de trabalho. Os problemas do
sistema são deslocados do âmbito político, passando a ser vistos como
“fracassos individuais”.
Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim sustentam que, na
modernidade tardia19, a individualização é “um produto do mercado de
19 Conforme dito no começo desse trabalho, Beck e Beck-Gernsheim usam o termo ‘modernidade tardia’ no mesmo sentido que empregam ‘segunda modernidade’. Trata-se de um processo de desenvolvimento das relações sociais que difere do visto na fase inicial da modernidade. Os autores apontam, como principal característica das instituições, a falta de definição de regras claras que, pautadas em valores coletivos, orientem o comportamento das pessoas. Ou seja, tais instituições teriam perdido ou tenderiam a perder sua capacidade de regulação das ações coletivas e da conduta social. Nesse contexto, a individualização é a expressão de um modo particular de sociabilidade compartimentada, em que prevalecem sistemas não-lineares, aos quais já nos referimos anteriormente. Isso configura as condições para que sejam impostas mudanças contínuas nas relações de trabalho, nas ações e condutas adotados pelas pessoas nesse âmbito. A discussão desenvolvida por Beck e Beck-Gernsheim constitui um retorno ao debate acerca do antagonismo entre ‘coletivismo’, de um lado, e individualização, de outro, vistos nos estudos de Thompson sobre a classe operária do século XIX. Thompson
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
26
trabalho e se manifesta na aquisição, oferta e aplicação de uma diversidade
de habilidades de trabalho”, obtidas por meio de educação, mobilidade e
competição. (Beck e Beck-Gernsheim, 2002: 32). Argumentam que a
categoria trabalho é fundamental para o processo de individualização, mas já
não sustenta o significado de classe. Assim, esclarecem, “tanto a firma como
o lugar do trabalho perdem significação no conflito e na formação de
identidade”; perdem sentido como espaço de um coletivo, uma vez que este
se dissolveu (2002: 36).
As mudanças em torno do universo de trabalho podem ser vistas no
plano material, ou concreto, onde se inclui a precarização das condições de
vida – resultante da flexibilização das relações de produção – e a revolução
tecnológica, que implica mudanças nas relações sociais, principalmente no
que respeita à relação do empregado com o tempo e com o espaço de
trabalho.
Mas, além disso, há uma nova configuração no plano das
representações. Isso porque a presença do desemprego na vida das pessoas
vem se tornando mais duradoura e constante, o que aviva o sentimento de
perda e gera tensão contínua na vida do proletário.
A expansão generalizada do desemprego provoca deformações no
mundo do trabalho. O aumento do contingente de pessoas desempregadas
faz pensar na possibilidade do desenvolvimento de um outro tipo de
sociabilidade, não mais entre os trabalhadores, mas entre os
desempregados. Nesse contexto, a identidade se constituiria pelo
desenvolvimento do não-trabalho, isto é, em termos da ausência do fazer
operário, em função do desemprego. Mas, pensar a pertença coletiva
somente em termos das perdas e frustrações expõe-nos ao risco de olhar os
trabalhadores apenas como vítimas do processo e resvalar para posições
pouco realistas, distanciando-nos de acepções universalistas. Conforme nos
diz Touraine,
mostra o individualismo como um valor característico da classe média, enquanto o coletivismo se pauta em valores comuns. Já Beck e Beck-Gernsheim pensam a individualização como a experiência comum possível entre os trabalhadores do final do século XX e início do XXI.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
27
Assim como uma classe operária definida somente como
proletariado, e não como conjunto dos trabalhadores
assalariados manuais, definida, portanto, por aquilo de que
está privada e não por sua contribuição positiva, só pode
servir de recurso social para um poder autoritário, assim a
identidade comunitária, se ela é definida somente pela
discriminação sofrida, só é ativada por dirigentes
autoritários que a mobilizam ao seu serviço. (1999: 46)
Nas entrevistas realizadas, a tensão por causa do desemprego tornou-
se evidente. Apesar disso, embora os respondentes tenham expressado sua
angústia com relação à ameaça do desemprego, há um esforço no sentido
de pensar em soluções para o problema. Um aspecto curioso é que, em
muitos casos, o próprio trabalhador enxerga a perda do emprego como um
problema pessoal, decorrente de falhas em sua conduta na empresa.
Conforme nos indica o depoimento de “Cadu”: “ É preciso estar sempre
atento. Por isso que eu acho que sempre tem que procurar tá atualizado,
fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de mercado. Sempre tiveram
vantagem aquelas pessoas que se saíam melhor, as pessoas que procuravam
tá atualizadas. Mas, hoje a necessidade de atualização é ainda maior.”
De acordo com Dubar, na França, o aumento do desemprego provocou,
entre outras coisas, uma mudança na responsabilização pelas competências.
Cada pessoa deve cuidar da própria sorte, de seu destino profissional. Ao
mesmo tempo em que a situação de trabalho de cada um tende a ser
interpretada como o resultado de sua atuação na luta por um emprego.
Segundo o autor, ”a nova noção que se expande é a de empregabilidade20.
Ela implica uma mudança maior uma vez que a empresa não é mais
coletivamente responsável pelas competências dos trabalhadores, mas cada
20 Em Por uma Sociologia do Desemprego, Nadya Guimarães sublinha que, no Brasil, só muito recentemente a noção de empregabilidade foi tomada como central no discurso que informa as políticas sociais. No contexto internacional, pelo contrário, já vinha sendo utilizada pelas agências responsáveis pelas políticas públicas focadas no emprego e na diminuição do desemprego. (Guimarães, 2002a)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
28
trabalhador torna-se responsável pela aquisição e manutenção de suas
próprias competências”21. (Dubar, 2000: 112)
Nesse processo de individualização das perdas a competição do
mercado tem um papel determinante. Conforme Beck e Beck-Gernsheim
asseveram, ela causa o “isolamento dos indivíduos dentro de grupos sociais
homogêneos”, trocando em miúdos, torna pusilânimes valores coletivos –
formados a partir de uma experiência comum. Ou mesmo, altera a formação
de identidades coletivas nos moldes que se tinha antes. O operário
contemporâneo é altamente diferenciado, vivencia realidades sociais
diversas, porque está enredado num conjunto de situações complexas e
variadas. Nesse sentido,
A construção das identificações pessoais, subjetivas, plurais,
não significa a ausência ou a abolição de todo coletivo, mas
a construção de um outro tipo de coletivo, diferente do
precedente, mais “societário”, quer dizer ao mesmo tempo
livremente escolhido e voluntariamente regulado. (Dubar,
2000: 217)
Outra decorrência desse processo é a preponderância da identidade
pessoal em relação às demais formas identitárias. Ela tende a se consolidar
como a forma de os indivíduos se conceberem, num processo social
específico, em que o “para si” é preponderante sobre o “para o outro”,
configurando a formação do próprio sujeito. Ou seja, o foco da ação é o
21O autor explicita que “Saber, saber-fazer, e saber-estar tornaram-se os três pilares da competência, rapidamente ligados pelas qualidades a exigir e/ou desenvolver em todos os trabalhadores: iniciativa, responsabilidade e trabalho em equipe”. (Dubar, 2000: 111). Destaque-se que o termo ‘responsabilização das competências’ faz parte do jargão utilizado pelas empresas e parece adequado à ideologia de que a pessoa (empregada ou não) é responsável por sua situação social e sua condição de vida. Beck (2002) mostra que o acirramento da individualização resulta, entre outras coisas, na expectativa de que cada pessoa seja responsável por sua biografia, seu destino profissional. Essa ideia se ancora na legitimação da liberdade como um importante valor em nossa sociedade. No entanto, ainda que a autonomia seja considerada um bem na sociedade contemporânea, a valorização dela obscurece um fato concreto que é a desigualdade de oportunidades e condições no mercado. É nesse sentido que Beck sustenta que uma das faces da individualização é a das ‘liberdades precárias’.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
29
próprio indivíduo, com um modo de ser, pensar e fazer específicos, o que, no
plano social, resulta numa pluralidade de sujeitos. Sobre isso, Dubar explica,
Pode-se chamar de sujeito esse tipo de identidade pessoal
que não é outra coisa senão uma configuração de formas
identitárias construídas, por e num processo específico de
socialização que assegure em geral essa dupla
proeminência do “societário” sobre o “comunitário” e do
“para si” sobre o “para o outro. (2000: 175).
Esse arcabouço teórico permite repensar as relações de trabalho,
considerando o processo de individualização e a perda da importância da
experiência comum do viver operário como elementos chaves na constituição
do novo caráter do trabalhador. É possível pensar essas pertenças coletivas
como um mosaico, uma vez que as relações sociais são descontínuas,
regidas por valores que mudam continuamente e não por regras constituídas
a longo prazo.
Além disso, o fato de que é o emprego que dá valor social aos
indivíduos abre espaço para questionar como fica a situação dos que passam
pela experiência do desemprego e legitima o esforço de identificar como se
dá a construção do discurso sobre tal vivência. Que lugar ocupa o “não
fazer” operário na vida das pessoas que dependem de salário para viver?
Qual o espaço de representação social do desemprego?
As entrevistas com os terceiros22 introduziram um elemento com o
qual não contava na pesquisa. A situação das pessoas que ficaram
aposentadas por um período de tempo, suspensas de sua atividade de
trabalho. No depoimento de “Chico”, ficou evidente que, mesmo tendo
condições de manter seu padrão de vida com o que recebia pela condição de
aposentado, ele sentia certa frustração por ficar na situação de ‘ não-ativo’.
22 Trata-se de trabalhadores contratados de uma outra empresa, para atuarem na Petroquímica, organização que nos propomos a estudar. Eles são diferentes dos efetivos, que gozam de relação salarial estável, em regime CLT.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
30
Claramente ele sentiu a perda do status, quando assumiu a condição de
quem deixara de trabalhar:
O que aconteceu? Eu fui me enfiando dentro dessa casa, fui me
desanimando, já não ia mais nos lugares com ela (refere-se à esposa):
banco, shopping, até isso eu deixei de fazer com ela! Porque você passa a se
sentir meio ocioso, meio “vagabundo”, porque eu trabalhei a vida inteira, e
me sentia jovem. Deixei de freqüentar o clube, ao mesmo tempo eu me
sentia até envergonhado de tá na rua.”
Claus Offe (1995) fala de uma subjetividade perdida pelo trabalhador,
no que concerne ao sentimento de identidade, ou pertença de classe,
enquanto classe social ou trabalhadora. Essa situação seria decorrente do
processo de individualização, dos problemas, interesses, desejos e satisfação
dos sujeitos e, em última instância, do esvaziamento do sentido social do
trabalho, em um mundo extremamente individualizado.
Na visão de Beck (1992), com a complexificação da sociedade, que se
expressa na pluralização das formas de vida, os modelos de estratificação e
diferenciação de classe já não podem explicar as múltiplas variações do
tecido social que constitui as relações de trabalho. Do seu ponto de vista, a
cultura das classes sociais não é capaz de explicar situações híbridas entre
emprego e desemprego; o que ocorre, então, é que os problemas
relacionados à questão do emprego tendem a ser entendidos como
problemas individuais. Com isso, torna-se difícil a articulação entre
trabalhadores, em torno de interesses e problemas comuns do mundo do
trabalho.
Para os que permanecem trabalhando, manter-se no mercado de
trabalho parece tarefa cada vez mais árdua. As exigências feitas são
progressivamente mais intensas, não apenas no sentido de que os
trabalhadores devam ser produtivos, eficientes, ter boa formação, ser
criativos e superar as expectativas dos seus superiores, quanto ao
desempenho. Conforme explicita um dos entrevistados:
Não adianta uma pessoa recém formada correr atrás de emprego, se
a maioria das empresas pedem dois anos de experiência. Onde que a pessoa
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
31
recém formada, um universitário por exemplo, recém formado pronto pra um
trabalho né! Ele tem dois anos de experiência, nunca! Entende? Então por
isso, então a maioria das pessoas se acomodaram, estudam e procuram
fazer outra. Muitos se formam até e vão fazer outras coisas que está mais à
mão, fora daquela área de formado. (...) Por isso que eu digo aquela corrida
ao mercado de trabalho está bem devagar.” (...) “ Tem, tem a procura tem
muita tá? mas onde que...// É o que eu falei, onde que vai achar uma
pessoa, um profissional recém formado com 2, 3 anos de experiência? Tem
muitas empresas que pedem 5 anos de experiência.”
O excesso de exigências feitas aos que passam pela seletividade do
mercado produz uma espécie de colonização da existência das pessoas. Suas
vidas estão pautadas pelo trabalho, até porque o tempo envolvido nessa
atividade – não obstante todo o desenvolvimento tecnológico no sentido da
redução da jornada – se tem alargado.
Na linha de autores como Bila Sorj (2000) e Suzana Evelyn (1998),
supomos que o trabalho continue a ser um dos aspectos determinantes das
condições de vida das pessoas. Há um eixo comum que une todos os
trabalhadores, em geral, que é o fato de as pessoas partilharem dos mesmos
nexos, de viverem sob a mesma ótica de um tipo de capitalismo
desorganizador. A unidade comum do trabalho social concerne à
racionalidade dominante de um capitalismo sem freios.
De fato, pode-se dizer que se ampliou a importância do trabalho na
vida das pessoas, talvez na proporção inversa da evolução da oferta no
mercado de trabalho. A redução dos postos de trabalho no mundo fez
engrossar as filas dos desempregados, aumentando o valor relativo do
trabalho, por haver mais oferta do que procura por mão-de-obra.
A queda do número de empregos, associada à tendência à flexibilização
das relações de trabalho, diminui as chances de os trabalhadores
assalariados (regidos por relações estáveis e protegidas de trabalho)
resistirem às mudanças (Guimarães, 2002a: 105). A desregulação das
relações tem reforçado a precarização da situação de trabalho e gerado
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
32
formas diferenciadas de desemprego. A escassez de trabalho também faz
aumentar seu valor simbólico, tanto para os que estão empregados quanto
para os que buscam um novo posto, e a questão do trabalho ou a falta dele
ganha ainda mais importância, tornando-se pauta de discussão nos diversos
ambientes sociais.
Desemprego (s) e precarização das relações
Emprego e desemprego estão ligados dialeticamente. No sentido
sociológico, desemprego é o lugar de um indivíduo dentro de uma situação
social típica. Essa situação é própria de uma certa condição econômica e
social que é a do trabalhador assalariado. “Desempregado é o sujeito
impedido de trabalhar por certas condições sociais que superam outras
condições que lhe permitiriam ocupar um emprego” (Ledrut, 1966: 2). Essa é
a dialética social do desemprego, apontada por Ledrut, que tipifica a
condição do indivíduo desempregado, isto é, privado de emprego. Para
grande parte dos sociólogos atuais, o desemprego é resultante do modo de
configuração do emprego no mundo (Ledrut, 1966; Demazière, 1995a).
A multiplicação das formas de desemprego faz variar não apenas a
situação social das pessoas que necessitam de trabalho assalariado para
viver, mas a forma como vêem as situações de emprego e desemprego, nos
contextos nacional e internacional. Assim, poderíamos considerar
“desempregos plurais”, dada a diferenciação da forma como o fenômeno se
manifesta. Isso altera o modo como as pessoas se vêem e como são vistas
no trabalho; o significado do seu papel também sofre alteração, o que
necessariamente é indicativo de modificação de sua conduta social.
Em Sociologie du Chômage, Demazière (1995) aborda a questão do
desemprego, na França, pensando-o como um elemento que se coloca na
fronteira entre atividade, inatividade, subemprego, pauperização e emprego.
Situações de inatividade e desocupação qualificam, mas não revelam,
as especificidades e singularidades do desemprego, que pode ser, por
exemplo, de tipo estrutural, de curta duração (menos de um ano de
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
33
desemprego), de longa duração (mais de um ano de desemprego), e
desemprego por desalento (correspondente à situação do desempregado
que, por perdurar como desempregado de longa duração por muito tempo,
desistiu de procurar emprego). Nos países em que o emprego estável não se
generalizou, a vulnerabilidade da situação de trabalho também pode ser vista
na recorrência do desemprego.
Guimarães (2002a) considera que a invenção da categoria dos
‘desempregados de longa duração’ – nos países onde, tradicionalmente, as
relações de trabalho são reguladas e protegidas – produziu uma alteração
fundamental no nexo entre emprego e desemprego. Com isso, o tempo de
permanência na situação de desemprego passou a ser uma medida do tipo
de dificuldade que seria encontrada no processo de reinserção profissional.
Citando Demaziére, ela indica que ‘tudo se passa como se o desemprego
contribuísse para distribuir os empregos’. Para que o desemprego seja
discutido com propriedade, se faz mister atentar para suas especificidades,
nos contextos em que ocorrem.
O conhecimento das singularidades desse fenômeno torna possível
compreender os processos de transformação dos padrões sociais que ele
provoca, as mudanças de comportamento por ele produzidas. De minha
perspectiva, nos diferentes setores de atividade, o aumento do volume de
desemprego, a recorrência e o tempo de duração dessa situação reforçam o
sentimento de insegurança das pessoas que dependem de trabalho
assalariado para viver. A ampliação e diferenciação da textura do
desemprego gera deformações nas relações de trabalho e acelera o processo
de precarização da situação de emprego.
A terceirização de certas funções e o processo de flexibilização dos
contratos de trabalho expandem-se, alteram a configuração do emprego e as
condições de vida do trabalhador. Desemprego e precarização das relações
de trabalho são duas faces da mesma moeda: resultam na piora das
condições de vida das pessoas que precisam de trabalho para viver. O
acirramento desse processo abre a possibilidade de haver uma fronteira que
separa excluídos e incluídos na atividade de trabalho.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
34
O desemprego, as incertezas e a piora das condições de trabalho
alteram a identidade do operário, porque modificam seu modo de ‘fazer’,
‘julgar’ e ‘sentir’. Na esfera do trabalho, parece haver dissociação entre a
experiência individual do trabalhador e as relações sociais constituídas nesse
âmbito, podendo gerar atitudes pautadas em acordos e interesses
passageiros. Em outras palavras, as transformações sociais resultam na
desestabilização de valores, normas e condutas adotadas, o que configura
uma crise23 no modo de os trabalhadores se conceberem.
A pesquisa permitiu identificar a tendência à reconfiguração do mundo
vivido no campo de trabalho. Nesse processo, as relações de trabalho são
ressignificadas. Essa mudança de significação do emprego/trabalho motivou-
me a compreender em que bases as novas relações se formam, qual é a
configuração do novo caráter ou como se constitui a identidade do
trabalhador.
Desemprego à brasileira Em Trajetórias ocupacionais, desemprego e empregabilidade, Castro,
Cardoso e Caruso (1997), mostram que, no Brasil, a preocupação com o
desemprego estrutural passou a ser o grande tema dos sociólogos. A partir
da década de 1980, a reestruturação produtiva foi de tipo não-sistêmico, o
que significa que as políticas tecnológicas e de gestão de trabalho não
estavam integradas de modo horizontal. A reestruturação enfatizou a
mudança na gestão do trabalho, tendo sido pouco efetiva na renovação de
equipamentos.
As transformações da indústria, na década de 1990, resultaram no
aumento da competitividade de alguns produtos e no aumento da
produtividade do trabalho, tendo por conseqüência a redução do nível de
23 “ ‘fase difícil atravessada por um grupo ou um indivíduo’. Mais precisamente, essa acepção da palavra crise faz-nos voltar à ideia de uma ‘ruptura de equilíbrio entre diversos componentes’. A exemplo das crises econômicas, as crises identitárias podem ser pensadas como perturbações em relações relativamente estáveis entre elementos que estruturam a atividade (produção e consumo, investimentos e resultados, etc.). A atividade da qual se trata é a da identificação, quer dizer, o fato de categorizar os outros e a si-mesmo” (Dubar, 2000: 9-10)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
35
emprego industrial. Os autores mostram-nos que, entre 1991 e 1995, o
aumento de 31% da produtividade na indústria teve como contraparte a
queda de 10% do nível de emprego.
Por efeito de processos de modernização, com ênfase na redução de
custos, a progressiva queda do nível emprego tornou ainda mais difícil a
reinserção dos trabalhadores no mercado de trabalho. A partir dos 90, o
desemprego24 no Brasil ampliou-se em todos os setores, mas,
principalmente, na indústria. A generalização do desemprego, o aumento do
número de pessoas sem ocupação, fez com que também houvesse variação
do ponto de vista qualitativo. Com isso, questões como ocupação25,
inatividade, desocupação, informalidade e redundância encorparam o debate
sobre esse tema. 24 O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – DIEESE, na Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED utiliza os seguintes conceitos para as categorias relacionadas ao desemprego: desempregados - São indivíduos que se encontram numa situação involuntária de não-trabalho, por falta de oportunidade de trabalho, ou que exercem trabalhos irregulares com desejo de mudança. Essas pessoas são desagregadas em três tipos de desemprego: desemprego aberto: pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos 30 dias anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum trabalho nos sete últimos dias; desemprego oculto pelo trabalho precário: pessoas que realizam trabalhos precários - algum trabalho remunerado ocasional de auto-ocupação - ou pessoas que realizam trabalho não-remunerado em ajuda a negócios de parentes e que procuraram mudar de trabalho nos 30 dias anteriores ao da entrevista ou que, não tendo procurado neste período, o fizeram sem êxito até 12 meses atrás; desemprego oculto pelo desalento: pessoas que não possuem trabalho e nem procuraram nos últimos 30 dias anteriores ao da entrevista, por desestímulos do mercado de trabalho ou por circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses. 25 Ocupados - São os indivíduos que, nos sete dias anteriores ao da entrevista, possuem trabalho remunerado exercido regularmente, com ou sem procura de trabalho; ou que, neste período, possuem trabalho remunerado exercido de forma irregular, desde que não tenham procurado trabalho diferente do atual; ou possuem trabalho não-remunerado de ajuda em negócios de parentes, ou remunerado em espécie/beneficio, sem procura de trabalho; Inativos (de dez anos e mais) - Parcela da PIA que não está ocupada ou desempregada. Incluem-se as pessoas sem procura de trabalho que, nos últimos 30 dias, realizaram algum trabalho de forma excepcional porque lhes sobrou tempo de seus afazeres principais; Procura de Trabalho - Corresponde à busca de um trabalho remunerado, expressa na realização, pelo indivíduo, de alguma ação ou providência concreta. A procura de trabalho inclui não apenas a busca por um trabalho assalariado como também de outros trabalhos, como a tomada de providências para abrir um negócio ou empresa e a procura por mais clientes por parte do trabalhador autônomo; Situação de Trabalho – É definida como aquela em que o indivíduo tem um trabalho remunerado ou não-remunerado no período de referência, excetuando o trabalho excepcional; Taxa de Desemprego – Indica a proporção da PEA que se encontra na situação de desemprego total (aberto mais oculto). A taxa de desemprego específica de determinado segmento populacional (homens, chefes de família, etc.) é a proporção da PEA desse segmento que se encontra na situação de desemprego. Taxa de Desemprego = Nº de Desempregados x100( http://dieese.org.br/ped) PEA
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
36
Nadya Guimarães (2002a) deixa claro que a forma como o desemprego
se manifesta em cada país é variável conforme sua realidade econômica e
cultural. No Brasil, não só variam as formas de ocupação e seus estatutos
(empregos com e sem registro, trabalhos regulares e bicos), como os
próprios trabalhadores transitam entre as diversas situações de atividade ou
ocupação para as de desemprego ou inatividade. No caso Brasileiro, a autora
sugere que, uma vez que o emprego estável e a institucionalização do
desemprego contrastam com nossa realidade, não se generalizaram, em
vez da preocupação em relação ao desemprego estrutural talvez fosse mais
coerente atentar ao fenômeno da recorrência do desemprego.
Quanto à construção social do desemprego, à diferença da França,
onde estar desempregado é estar privado de emprego, e a situação de
desemprego é a base de referência para a sustentação do sistema de
proteção social, no Brasil, a equivalência entre privação de emprego e
desemprego foi rompida. Segundo Guimarães (2002a) “onde a fronteira
entre o desemprego e o emprego se faz tão permeável, ganham força outras
categorias de identificação subjetiva e política (desabrigados, ‘sem-teto’ e os
‘sem-terra’, por exemplo) sendo tanto mais utilizados quanto mais eficazes
(que o desemprego) se mostrem para negociar a proteção social” (2002a:
50). A autora chama a atenção para a falta de institucionalização do
desemprego. De minha perspectiva, a escassez de trabalho regulamentado e
a falta de programas sociais de proteção ao desempregado, funcionando em
larga escala, fazem parte do mesmo processo.
Assim, parece-me que essa configuração decorre do fato de haver
falhas na estruturação do mercado e de a relação salarial estável não se ter
generalizado, o que mostra a fragilidade das relações institucionais de
trabalho. Entendo que a escassez de trabalho protegido e de investimentos
na formação do trabalhador e a carência de bases sólidas para a
institucionalização do desemprego refletem e expressam o modelo de
constituição do mercado de trabalho no Brasil e as deformações no sistema
de proteção aos desempregados.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
37
Desestabilização do caráter e a reconfiguração das
relações de trabalho
Toda a discussão desenvolvida neste trabalho, tomou por base a noção
de caráter adotada por Sennet, que abarca as ideias de provisoriedade,
descontinuidade e precarização dos vínculos sociais, bem como as
contradições oriundas do capitalismo flexível e as dualidades intrínsecas às
relações capitalistas, como a fragilização das relações que tinham como eixo
orientador a organicidade entre o sujeito e as instituições.
Para Sennet, “caráter é o valor ético que atribuímos aos nossos desejos
e às nossas relações com o mundo e com as pessoas” (2000:10). Com isso,
quer referir-se aos hábitos e padrões de comportamento que se cristalizam
no processo de formação de um indivíduo, mediante aprendizagem nos
grupos sociais de que faz parte. Nesse sentido, o termo caráter refere-se “ao
aspecto duradouro, ‘a longo prazo’, de nossa experiência emocional”
(2000:10).
Segundo Sennet, no atual estágio do capitalismo, valores como
lealdade, fidelidade, compromisso, e outros – por natureza de longo prazo –
dão lugar a interesses sociais provisórios, necessidades momentâneas.
O autor indica o que, de sua perspectiva, pode provocar a corrosão do
caráter. “Estar continuamente exposto ao risco26 pode desgastar nossa
26 Frequentemente a noção de risco carrega o sentido de “perda”. A perda é tomada como um resultado provável, imediato. No dicionário Houaiss, Risco significa: 1 –“probabilidade de perigo, ger. com ameaça física para o homem e/ou para o meio ambiente. (Ex.: risco de vida, risco de infecção, risco de contaminação)” ; 2 – “probabilidade de insucesso, de malogro de determinada coisa, em função de acontecimento eventual, incerto, cuja ocorrência não depende exclusivamente da vontade dos interessados. (Ex.: o projeto está em risco de perder seu patrocínio); 3 – “em contratos de seguro, incidente que acarreta indenização”, (Ex.: roubo, incêndio)”; 4 – “responsabilidade ou encargo acerca da perda ou do dano por situação de risco” (http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=risco). Para Sennett o capitalismo flexível gerou as condições para que o risco fosse introjetado nas relações, uma vez que, nesse caso, as pessoas são obrigadas a agir num contexto de insegurança, em que as oportunidades são fugazes e os acordos são provisórios. Isso implica conviver com a possibilidade de perder ou ganhar tudo aquilo em que se investe ou se aposta: o plano de vida, a carreira, um projeto de profissionalização, etc.. As pessoas são obrigadas a agir no dia-a-dia como se estivessem num jogo, e como se jogar com as oportunidades e possibilidades fosse natural, mesmo que se saiba que o sucesso ou o revés pode trazer implicações para a vida como um todo. “Grande parte da bibliografia sobre o risco analisa a estratégia e os planos do jogo, dos custos e dos benefícios, em uma espécie de sonho acadêmico. Na vida real, o risco avança de uma maneira mais elementar em função
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
38
sensação de caráter” (2000: 87), o que reflete uma situação de
desorganização ou desregulação de nossa experiência emocional e social.
Não se trata apenas de perceber que as relações sociais estão permeadas
pela condição do risco, mas de reconhecer que ele passou a ser um valor
entre nós. Como explica Sennet: “A cultura moderna do risco se caracteriza
pela ideia de que não se mover é sinônimo de fracasso, e a estabilidade é
quase um risco em vida” (2000: 91).
Sennet critica o fato de, no momento atual, as pessoas serem
estimuladas a se moverem em situação de incerteza, frequentemente, de
serem motivadas a mudarem de atitude constantemente. O comportamento
ao qual o autor se refere denota a propensão à assunção de acordos
provisórios. De qualquer modo, há uma certa naturalização do significado do
risco para as pessoas que lidam diretamente com áreas sujeitas a ameaça de
perdas ou prejuízos. Ainda que seja um risco de outra natureza.
Da perspectiva de Sennet, a valorização e a exposição frequente a
situações de incerteza, por parte de nossos contemporâneos, denotam a
propensão a mudanças sociais repentinas, que geram a precarização das
relações em diversos âmbitos da vida, inclusive o do trabalho.
O autor atualiza a noção de desestabilização, pensando em como esse
processo se dá nos ambientes de trabalho, e vincula o processo de
desestabilização a algumas características típicas do capitalismo flexível. No
âmbito das empresas, destaca que as pessoas são estimuladas a viverem
cotidianamente em situação de insegurança, expostas a expectativas
ambíguas de ‘êxito ou fracasso’. Lidar cotidianamente com o risco dificulta a
escolha de uma conduta apropriada e gera a “desorientação, que implica
mover-se face às incertezas”. (Sennet, 2000: 88). Esse é mais um
componente que se agrega à competitividade. do medo de deixar de atuar. Numa sociedade dinâmica, as pessoas passivas se enfraquecem. Poderia parecer, em conseqüência, que o risco seria menos desencorajador se fosse possível realizar o sonho do acadêmico estratégico, calcular as perdas e os danos de uma maneira racional, fazer o risco legível. Entretanto, o capitalismo moderno tem organizado certos tipos de risco de tal modo que essa clareza não é necessariamente mais estimulante. As novas condições do mercado obrigam um grande número de pessoas a assumir riscos muito pesados ainda que os jogadores saibam que as possibilidades de recompensa sejam escassas.” (Sennett, 2000: 91-92)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
39
Ele indica, ainda, que a habilidade de um indivíduo em lidar com
tempos fragmentados e provisórios é uma das características exigidas e
valorizadas nas instituições contemporâneas. Num ambiente de trabalho,
espera-se que as pessoas saibam tomar decisões e agir em situações de
riscos. Sobre o significado do papel do risco no mercado de trabalho, nos diz:
“Uma pessoa que se apresenta a um novo empregador ou grupo de trabalho
tem que ser atrativa e estar disponível; o risco implica algo mais que uma
simples oportunidade”. (2000: 88)
Entre as principais inquietações desse estudo estava a de compreender
o valor ético que os entrevistados atribuem às relações intrínsecas ao mundo
do trabalho, a forma como lidam com a alteração da cultura da empresa,
sobretudo quando isso exige uma conduta conflitante com a adotada ao
longo de determinado tempo de atuação na corporação; também me
preocupava em entender como se deu a adaptação às transformações. Por
exemplo, como manter o empenho em atingir as novas metas definidas pela
empresa, em um cenário de insegurança e incerteza que exige mudança de
atitude? Como assumir novas condutas, quando os empregados já têm um
comportamento enraizado em regras antigas? Como se manter motivado no
âmbito profissional e ao mesmo tempo se preparar emocionalmente para
enfrentar o desemprego ou a perda do status?
Este estudo buscou identificar, nas falas dos entrevistados, as
mudanças de conduta e de aspectos que eles próprios julgam importantes
para sua vida, ao longo de sua trajetória profissional, em conseqüência das
transformações do mercado. Talvez seja válido considerar situações que
supõem alterações na condução da empresa. Por exemplo, nos processos de
reestruturação da fábrica, que expõem o trabalhador ao risco da perda do
emprego. Esse pode ser considerado um importante elemento capaz de
provocar mudanças na conduta do trabalhador no ambiente de trabalho. Isso
foi visto no depoimento de Cadu, um dos entrevistados terceirizados. Por ter
sido funcionário efetivo da Petroquímica, ele apontou mudanças de
comportamento dos funcionários, à época, ocasionadas pelo processo de
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
40
reestruturação da empresa. Além disso, ele indicou diferenças entre a forma
de atuação de um efetivo e um terceiro.
Quando eu indaguei a respeito do processo de reestruturação na
empresa ele deu ilustrações. Ao perguntar se mudou a forma como ele
passou a se ver e a ser visto a partir dos cortes de funcionários e da
reestruturação ele explicitou:
“Ah, muda sim! Por exemplo, você tem sua rotina de trabalho, mas
quando se fala em corte de funcionários, em redução, você fica preocupado.
Com isso, talvez você queira fazer mais que aquilo que você faz, que eu
acho que talvez nem seja o correto. Mas, todo mundo sai correndo. A
expectativa é essa. E eu acho até errado, porque você começa a atropelar,
pode nem fazer sua função corretamente.”
Diante do julgamento moral que o entrevistado faz sobre as próprias
ações, eu perguntei porque ele considerava errado agir de maneira mais
competitiva. Em seu depoimento o respondente demonstra que a ansiedade
em superar as expectativas da empresa gera um modo de agir irracional.
“Por exemplo, você tem 20 anos numa empresa. Você tem uma rotina e um
comportamento. Se você vai mudar tem que ser num comportamento
normal, de acordo com o que você tem no dia a dia. Não é achar que em
um dia você pode fazer o trabalho de 20 anos em um mês. Então
gera uma certa ansiedade em todo mundo. Todo mundo fica querendo
fazer a mais, mas é loucura.”
A pesquisa abordou o modo como o “trabalho” ganhou significado na
vida dos entrevistados. Isso incluiu a prospecção de informações que
abarcaram desde as primeiras referências a respeito do sentido do trabalho,
no período da infância, até o ingresso da pessoa no mercado de trabalho,
passando pela forma como lidaram com as transformações desse mercado.
(veja roteiros de entrevistas anexos).
Durante o tempo em que realizei as entrevistas e a análise do material
de campo, busquei verificar em que medida havia indícios de ocorrer
desestabilização do caráter dos trabalhadores, em decorrência das
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
41
transformações das relações de produção27 e de trabalho e da presença do
desemprego no setor.
Busquei perceber se havia indícios de que os trabalhadores pautavam
seu comportamento em acordos provisórios ou passageiros. Além disso, era
importante perceber como se harmonizavam as relações entre essas
pessoas, no âmbito do trabalho.
A fala dos entrevistados permitiu-me indagar se, no caso dos
trabalhadores e desempregados do setor, a lógica capitalista de flexibilização
tende a produzir a dissolução dos vínculos de confiança e compromisso entre
as pessoas, bem como a provocar a individualização das perdas, conforme
nos dizem Beck e Beck-Gernsheim (2002)28.
Como dito antes, de minha perspectiva, a desestabilização do caráter
delineia uma situação em que a pessoa adota comportamentos sociais
calcados em interesses e acordos não duradouros. Nesse sentido, a conduta
guiada por valores provisórios resulta em ações sociais desempenhadas sem
regularidade. Ou seja, a pessoa orienta sua conduta em função de valores e
desejos que mudam continuamente, de modo que o risco funciona como um
catalisador para suas ações, que passam a estar vinculadas a necessidades
fugazes.
Para avaliar a forma de os trabalhadores petroquímicos se relacionarem
com essa questão, era necessário considerar também o risco inerente ao
funcionamento da Petroquímica e à realização de determinadas atividades,
que os expõe ao perigo iminente de acidentes, devido à periculosidade das
condições de trabalho. 27 O termo ‘relação de produção’ é aqui entendido, no sentido marxiano, como sistema de produção que implica um modo específico de organização das relações sociais. Ou seja, as forças produtivas implicam a produção de um modo de vida e estão relacionadas a um período histórico determinado. Elas resultam na transformação da natureza e da realidade social pela ação humana e também pela utilização de padrões tecnológicos específicos e métodos de trabalho determinados. Por exemplo, o trabalho assalariado está relacionado ao modo capitalista de produção, sobretudo com o advento da indústria. No presente estudo, refiro-me ao sistema de organização do trabalho, onde se incluem a tecnologia adotada – sistemas digitais de controle no setor de produção – a divisão em setores e a organização do trabalho. 28 Esses autores nos mostram que há uma tendência à individualização de situações de perda, que está em consonância com a expectativa das próprias pessoas no sentido de terem o controle sobre todos os âmbitos de sua vida. Isso contribui para que o desemprego seja visto como uma derrota, como um problema de quem o tem.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
42
A partir de alguns depoimentos, foi possível perceber que a empresa
prepara seus funcionários para conviverem com essas condições de trabalho,
de modo a fazer com que o risco, por ser dimensionado, “controlado”, seja
incorporado no dia-a-dia como natural. “Natural da profissão, do setor”.
Conforme mostra o depoimento de um ex funcionário, que atua agora como
terceirizado, no seguinte trecho:
“ (...) Sinceramente, toda essa a minha carreira, o que eu mais gostei de
fazer foi essa parte de logística, de treinamento. Ter na mão, assim..., toda
a fábrica. De você saber, a cada dia, quanto tempo tem de trocar um
equipamento.
Mesmo quando eu insisti se não dava receio ter controle sobre o
processo, sabendo que é uma empresa que trabalha sob algumas condições
de risco, ele corrobora a afirmação anterior:
“Não, eu sempre me senti muito mais seguro dentro da Petroquímica
do que fora dela. (...) Fora dela, eu corro um risco danado de morrer com
um tiro, atropelado. E lá dentro não. Lá dentro com certeza você entra e sai
à tarde. Agora, é lógico, do mesmo jeito que tô vivo aqui e à tarde eu posso
tá morto, também né! não sei. A gente pode tá trabalhando e de repente
estoura uma linha, uma turbina estoura, qualquer coisa. Mas pra isso, tem
todo um corpo técnico que tá continuamente observando equipamento por
equipamento.”
Pelo que o entrevistado deixa transparecer, o risco é encarado como
algo natural. Talvez, fosse conveniente para ele concordar com essa forma
de interpretação, uma vez que o perigo era condição e característica inerente
ao trabalho. Por isso, nem questiona a situação que vivenciava.
É importante explicitar que o risco ao qual ele se refere é o de
exposição a algum tipo de acidente no interior da fábrica, dado que algumas
áreas trabalham sob condições controladas de pressão e temperatura.
Essas situações de incerteza e vulnerabilidade podem resultar na
desestabilização do caráter das pessoas. No entanto, no meu entendimento
não há desestabilização ou corrosão do caráter sem que se dê, ao mesmo
tempo, a constituição de um novo caráter, a reconfiguração de arranjos
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
43
sociais específicos. Isto é, na dinâmica das transformações das relações, as
pessoas modificam o modo de estabelecer acordos, mas não deixam de
assumir novos laços sociais, mesmo que esses passem a ser provisórios. Os
desajustes dão lugar a rearranjos e à formação de novos laços sociais, tal
qual um pano que se faz a partir da lã restante de um outro tecido já
desfeito.
Com o processo de transformações do mundo do trabalho, o
trabalhador foi constantemente estimulado a se comportar de maneira
competitiva, preparado para o êxito, para a prosperidade, para a excelência
na realização de sua atividade, muito embora ele esteja exposto ao risco da
perda desse lugar de realização. Esse processo não se restringe apenas à
sua vida profissional, mas atravessa sua vida pessoal.
A fala do entrevistado indica a tendência à individualização, nas
situações em que a pessoa se sente ameaçada, de algum modo, como, por
exemplo, quando percebe que o desemprego está mais persistente, mais
presente no mercado de trabalho.
“Cada um individualmente pensa em mostrar mais trabalho.
Fica meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer um monte de
coisa que talvez não leve a nada. Isso por causa da insegurança de
perder o emprego. Hoje vive muito isso né! Qualquer coisa, a
pessoa pensa que pode perder o emprego. Já fica o comentário, ah,
não posso perder o emprego, coisa e tal. Mas, vai fazer o que né! você é
empregado e a empresa precisa mexer em alguma coisa pra diminuir,
porque de repente tem funcionário a mais. Então todo mundo tem que tá
preparado.”
Se a cada tipo de caráter corresponde uma estrutura social e
institucional específica, a desestabilização do caráter, dada a mudança
constante das condutas sociais, pressupõe ou deveria pressupor estruturas
institucionais em processo de mudança.
O que há de peculiar e que se deve considerar de antemão é que, no
panorama delineado por Sennet, a tendência à provisoriedade das relações e
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
44
dos acordos pouco duradouros entre os indivíduos estão em consonância
com as mudanças nas instituições. Nelas, o equilíbrio interno parece também
estar sempre mudando. Ou seja, as instituições exigem que mudanças sejam
implementadas continuamente, o que prefigura uma espécie de
descontinuidade nas relações.
No caso estudado, percebi que a percepção de que o desemprego está
mais persistente e que para alguns grupos ele é recorrente provoca uma
predisposição maior por parte dos trabalhadores em aceitar e implementar
as mudanças exigidas pela empresa. A escassez de postos disponíveis limita
as possibilidades de mudança para um outro emprego, no caso de estarem
insatisfeitos com suas condições de trabalho e faz com que o empregado
busque se adaptar facilmente às mudanças demandadas pela empresa,
evitando questioná-las ou manifestar qualquer tipo de resistência.
Novos contornos identitários na realidade operária Do meu ponto de vista, o processo de transformação das instituições e
do sentido que elas têm para as pessoas tende a gerar uma mudança na
identidade dos indivíduos. O conceito de identidade denota o sentido de
pertencimento a determinado grupo social. Conforme Dubar, para a
sociologia clássica,
a pertença ‘objetiva’ a uma categoria, dado que ela mede
os aspectos importantes da vida dos indivíduos nas
sociedades modernas (a renda, notadamente) determina,
de maneira mais ou menos forte, isso que Durkheim chama
de as ‘maneiras de fazer, de sentir e de julgar’ e que são
consideradas como ‘fatos sociais’ (2000: 7).
O desaparecimento ou a transformação dos papéis, normas e valores
sociais, aos quais me referi inicialmente, alteram a maneira de fazer, de
sentir e de julgar dos próprios indivíduos. Ou seja, a mutação das relações
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
45
sociais implica uma alteração nas pertenças e na maneira de os indivíduos se
conceberem. Isso porque, há uma relação de mutualidade entre identidade
coletiva e individual: a mudança de uma altera a outra. Nesse sentido
identidade e caráter parecem-nos correlatos. A transformação nas
concepções que ordenam a vida social reflete-se na conduta adotada pelos
operários.
Em alguns momentos, as menções que denotam sentimento de
pertença parecem ter na empresa sua principal referência. Como na fala: “Os
colaboradores da PQU têm um tipo de relação, quem é contratado tem outro
tipo.” Aqui, a identidade é a do efetivo na empresa, que se diferencia do
terceiro ali dentro.
Em outros momentos, nas falas dos trabalhadores, as organizações
coletivas aparecem pra indicar a falta de pertenças coletivas e a tendência à
individualização das perdas dos trabalhadores. Como segue: “Na verdade,
mesmo na condição de aposentado eu me sentia um desempregado, mesmo
sem faltar nada em casa. Não era uma questão monetária. Eu me sentia
vazio por não trabalhar e eu me sentia capacitado pra trabalhar.”
Ou seja, associamos uma pessoa a um certo grupo ou categoria,
mediante a identificação ou distinção entre seus hábitos, opiniões e
comportamentos. A identidade é portanto uma forma de reconhecimento das
pessoas em relação a si mesmas e às outras. Dubar considera que o
processo de identificação coletivo é anterior ao individual. Para ele, não se
pode identificar a si mesmo de outra forma que não seja referido aos outros.
Essa relação entre os dois processos de identificação é o fundamento das
formas identitárias29. (Dubar, 2000: 4). Essa formulação se assemelha à de
Gerth e Mills, que mostram que o conceito que as pessoas têm de si mesmas
29 As “formas identitárias são as maneiras de identificar os indivíduos; sua combinação pode teoricamente permitir caracterizar configurações históricas mais ou menos típicas. Mas elas coexistem na vida social. Cada um pode identificar os outros ou se identificar a si mesmo, seja por um nome próprio, que o liga a uma linhagem, uma etnia, ou um ‘grupo cultural’, seja pela denominação de um papel que depende das categorias oficiais dos ‘grupos estatutários’, seja por nomes íntimos que traduzem uma reflexividade subjetiva (‘si-mesmo’) seja por nomes designando enredos que resumem uma história, projetos, um percurso de vida, enfim, narração pessoal (‘si’)”. (Dubar, 2000: 53-54)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
46
se forma a partir das relações sociais30 nos diferentes âmbitos da vida. Nesse
sentido, a posição ocupada pela pessoa influencia a formação de sua
identidade e vice-versa.
Como mostra o autor, a configuração das formas identitárias, definidas
como modalidades de identificação, se modifica mediante processos
históricos, ao mesmo tempo coletivos e individuais.
Com base nesses processos históricos de mudanças sociais, Dubar
distingue dois tipos de formas identitárias: as formas comunitárias e as
societárias. De acordo com o autor, as primeiras, “supõem a crença na
existência de grupos chamados ‘comunidades’ consideradas como sistemas
de lugares e de nomes designados aos indivíduos e que se reproduzem de
maneira idêntica através das gerações”.
[.....]Essas formas são estreitamente dependentes das
crenças no caráter essencial das pertenças a certos grupos
considerados como primordiais, imutáveis ou simplesmente
vitais para a existência individual. Quer se tratem de
‘culturas’ ou de ‘nações’, de ‘etnias’ ou de ‘corporações’,
esses grupos de pertença são considerados, pelo poder e
pelas próprias pessoas, como fontes ‘essenciais’ de
identidades. (Dubar, 2000: 5).
No processo de expansão do capitalismo, a forma identitária societária
tende a predominar sobre a comunitária. Ela resulta de formas coletivas
diversas e provisórias e configura relações sociais pautadas por interesses
passageiros. Sobre as formas identitárias societárias, Dubar esclarece:
Elas supõem a existência de coletivos múltiplos, variáveis,
efêmeros, aos quais os indivíduos aderem em certos
períodos limitados e que lhes fornecem as fontes de
identificação que eles geram de maneira diversa e
provisória. Nessa perspectiva, cada um possui múltiplas
30 Veja mais detalhes sobre autoconceito, no item Desemprego e desestabilização do caráter.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
47
pertenças que podem mudar no curso da vida. Essas formas
estão ligadas a crenças diferentes das anteriores, em
particular, aquelas da primazia do sujeito individual sobre as
pertenças coletivas e da preponderância das identificações
‘para si’ sobre as identificações ‘para o outro’(2000: 5).
O acirramento do processo de individualização, a mudança do lugar do
trabalho na vida das pessoas, a perda do sentido de classe, a progressiva
precarização das relações de trabalho e o desemprego provocam uma
inflexão no princípio de unidade identitária do trabalhador.
Ao descrever o tipo de comportamento que o processo de
reestruturação na PQU provocou entre os trabalhadores, “Cadu” mostrou que
aquelas modificações implementadas alteraram também o modo de “fazer”,
“pensar”, “sentir” ou, pelo menos, tornaram difusa ou mais distante do
cotidiano laboral a pertença a um coletivo de trabalho.
Num contexto de fragmentação do sujeito operário, em que o ‘não
trabalho’ se faz presença marcante na vida das pessoas – tanto na das que
estão empregadas como na das desempregadas – percebi que a ameaça do
desemprego influencia e provoca alterações na forma de execução das
tarefas no trabalho e na forma como encaram o âmbito profissional.
Individualização e desemprego – elementos que
alteram a identidade operária O trabalho constitui uma importante dimensão da vida das pessoas e
das relações sociais, dado que é por meio dele que nos posicionamos na
sociedade. Nas palavras de Robert Cabanes (2002), ele constitui uma
referência essencial no que diz respeito à estruturação das pessoas e das
relações sociais. O status social de um indivíduo deriva de sua participação
no sistema de produção econômico. Assim, importa saber de que modo a
presença do desemprego na realidade social influencia a conduta das
pessoas e suas relações.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
48
Nesta seção, examinei alguns elementos que mostram as
transformações no mundo do trabalho31. Discuti a relação entre a
experiência subjetiva do desemprego e a situação de emprego, na indústria
petroquímica, ramo a que pertence a Petroquímica União – objeto empírico
de desse estudo.
Gerth e Mills afirmam que as pessoas buscam estabelecer relações
sociais que confirmem o conceito que elas possuem sobre si mesmas. O
autoconceito é um elemento essencial na constituição do caráter de uma
pessoa e “Para conhecer o autoconceito de um indivíduo devemos estudar os
Outros que são importantes para ele”. (1973: 108). Os autores mostram que
a carreira é fundamental na escolha dos Outros Importantes, e por
conseguinte, na estrutura do caráter de cada um. Sobre isso, explicitam: “A
seleção dos Outros Importantes é limitada pela posição institucional da
pessoa e pela passagem de sua carreira de uma posição institucional a
outra” (1973: 102).
Os Outros que servem de referência para a formação do caráter das
pessoas são selecionados nos grupos dos quais elas participam e o âmbito
profissional é determinante nesse processo. Na medida em que ocorre a
precarização das relações de trabalho e aumenta a insegurança do
trabalhador, os vínculos do empregado no âmbito profissional se tornam
mais frágeis. Por outro lado, a proeminência dos valores individuais sobre os
coletivos dá nova roupagem às formas identitárias, que tendem a ser mais
societais e não coletivas.
Nesse sentido, perguntamos: que conseqüências a passagem de uma
situação de emprego estável para a de desemprego ou de emprego
31 Conforme ilustra Dubar, “assiste-se a uma diversificação, a uma ruptura das formas de emprego, das organizações de trabalho, dos conteúdos de atividades. Assiste-se sobretudo a uma vasta recomposição dos ciclos de vida profissional: alongamento do período de inserção no mercado de trabalho e experimentação de atividades cada vez mais ligadas (formações, estágios, trabalhos voluntários, empregos temporários, desemprego e sub-emprego), precocidade das aposentadorias e multiplicação das atividades “fora do mercado de trabalho” durante o período de aposentadoria, mudança de posto, de estabelecimento, de ofício, de atividades no curso da vida ativa “ordinária” cuja duração tende a se reduzir e o estatuto a tornar-se mais indefinido, mais ambivalente. A questão mais delicada é a do sentido a dar a essa “vida de trabalho” na medida em que as carreiras do emprego se misturam, que as denominações se modificam e que a ‘flexibilidade temporal’ tende a ser erigida em nova norma” (2000: 193).
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
49
desprotegido – que significa perda de status no sistema de produção – pode
acarretar à conduta de uma pessoa? Talvez não chegue a se configurar um
processo de dessocialização das relações, conforme Touraine teoriza, mas
suponho que, no atual contexto, a tendência à individualização (que abordei
anteriormente) se manifeste como uma força oposta ao processo de
formação de valores coletivos. Isso torna difusa a formação da identidade
operária e pode dificultar a constituição unitária do sujeito que trabalha32,
sobretudo se se levar em conta que as formas híbridas entre emprego e
desemprego dificultam a articulação entre os trabalhadores, enquanto
coletividade.
A flexibilização das relações de trabalho, a tendência à individualização
nas formas de negociação das condições de trabalho e de salário, e o
enfraquecimento do sindicato como instituição mediadora da relação entre
empresário e empregados, são resultantes desse processo de perda da força
dos valores comuns, erigidos no seio de grupos sociais. Trocando em
miúdos, a individualização esvazia o sentido das formas de representação
coletiva de trabalho, muito embora categorias como os trabalhadores
petroquímicos permaneçam existindo. Mesmo que se admita que os
petroquímicos são uma coletividade, a realidade em que vivem favorece que
ajam orientados por princípios individualistas em detrimento dos
comunitários.
Conforme Dubar define, “As identidades profissionais são maneiras
socialmente reconhecidas, para os indivíduos, de se identificarem uns aos
outros, no campo do trabalho e do emprego” (2000: 95). Empenhei-me em
entender o funcionamento desse âmbito das relações, como as novas regras
32 É importante destacar que a tendência à dessocialização ou à fragilização de valores coletivos formados a partir de uma experiência comum se opõe radicalmente à situação da classe operária constituída a partir da formação da sociedade industrial inglesa, sobretudo no século XIX. A esse respeito, Thompson, citando Raymond Williams, mostra que “ ‘O principal elemento característico da vida inglesa, a partir da Revolução Industrial é a coexistência de ideias alternativas sobre a natureza das relações sociais’. Em contraste com as ideias da classe média sobre o individualismo ou (na melhor das hipóteses) sobre a assistência. ‘O que se entende propriamente por cultura da classe operária...é a ideia básica do coletivismo, e as instituições, maneiras, hábitos de pensamento e intenções que provêm dela. As sociedades de auxílio mútuo não ‘provêm’ de uma ideia: tanto as ideias quanto as instituições surgem em resposta a certas experiências comuns.” (Thompson, 1987: 316)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
50
do trabalho vêm alterando o modo de “fazer”, “julgar” e “sentir” do
trabalhador do setor petroquímico.
De minha perspectiva, nesse contexto de mutação das relações
empregatícias, é provável que os trabalhadores atuem pautados em coletivos
múltiplos ou baseados em relações societais, ainda que a individualização se
apresente prevalecente.
Descrição da metodologia e procedimentos de
pesquisa
No início do trabalho, havia definido somente os trabalhadores da
Petroquímica União como “universo de pesquisa”. Estava interessada em
saber sobre o modo como os trabalhadores dessa empresa, pertencente ao
setor petroquímico, lidavam com a insegurança do desemprego e se as
transformações no mundo do trabalho – entre as quais se incluem os
processos de reestruturação produtiva, as mudanças de padrão tecnológico –
poderiam gerar desestabilização do caráter.
O foco de minha questão era saber se as mudanças acima referidas
provocariam a tendência à desestabilização do caráter nas relações de
trabalho. Para isso, propus-me a investigar o modo como os trabalhadores
pensam, se sentem e se comportam em decorrência das mudanças da rotina
de trabalho, do sistema de produção, da tecnologia empregada na produção,
e do aumento do nível de desemprego no mercado de trabalho – elementos
que, em conjunto, delineiam um quadro de insegurança do trabalhador.
Ao enveredar no tema da desestabilização do caráter nas relações de
trabalho, deparei-me com o seguinte questionamento: Por que discutir a
presença ou a importância do desemprego na vida de pessoas que estão
empregadas? Essa indagação foi persistente durante toda a pesquisa e soava
como um contra-senso. Havia dúvidas sobre a validade de tal levantamento
acerca da desestabilização do caráter devida, entre outras causas, à
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
51
presença do desemprego na vida de pessoas empregadas. Isso persistiu até
o momento em que eu percebi que ter apenas os trabalhadores da
Petroquímica como objeto de investigação poderia produzir um resultado
insatisfatório, dado o tipo de inquietação e questionamento que motivaram
este trabalho.
As dúvidas conduziram para uma reformulação do método de pesquisa
e de análise. A partir de então, remontei a estratégia para o trabalho de
campo, ampliando o âmbito e as perspectivas que permitiriam desenvolver
uma discussão sociológica bem fundamentada.
Assim, decidi utilizar três categorias distintas: os trabalhadores da
Petroquímica, efetivos na empresa; os terceiros, que atuavam naquela
corporação; e os desempregados saídos dela. Fazendo isso eu adensava meu
campo de discussão. As novas definições impuseram-me travar um diálogo
com três realidades diferentes, o que, na prática, resultou em perguntas
específicas e distintas para cada uma delas33.
A extensão do campo para duas novas categorias me permitia traçar
comparações entre realidades específicas de pessoas com experiências
semelhantes em, pelo menos, um momento de sua vida. Elas teriam em
comum a vivência com o mundo do trabalho, a passagem pela Petroquímica
União e o fato de terem sido efetivos naquela empresa. Era necessário
matizar a discussão sobre a questão da desestabilização do caráter nas três
perspectivas que se abriam a partir de minha abordagem. Isso porque
supunha que, para cada uma das três categorias, a tendência à
desestabilização do caráter se manifestaria de um modo específico, uma vez 33 O trabalho de campo foi realizado concomitantemente com as três categorias definidas para a pesquisa. Entretanto, era necessário utilizar procedimentos específicos para cada uma delas, desde o roteiro de entrevistas até o modo como falava com as pessoas a serem entrevistadas. Havia a tensão de adotar procedimentos adequados a cada categoria entrevistada. O tipo de questionamento para cada um era específico, muito embora o objetivo da pesquisa tivesse um fio condutor comum: compreender como as transformações no processo de produção e nas relações de trabalho (sobretudo pela presença do desemprego no mundo do trabalho) alteravam as relações de trabalho e se a insegurança do mundo do trabalho era capaz de gerar desestabilização do caráter do trabalhador. No fim das contas, a metodologia escolhida me obrigava a fazer comparações entre as três situações, buscando semelhanças e diferenças: O que havia em comum na vida dos trabalhadores efetivos da Petroquímica, dos terceiros e dos desempregados, e o que era peculiar na situação de cada um que se inseria em uma das categorias definidas para a pesquisa em curso.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
52
que essas pessoas estavam inseridas em contextos determinados. Ou seja,
buscava compreender o que havia de singular no modo como os efetivos, os
profissionais terceirizados ou os desempregados lidavam com situações de
insegurança, mudança, risco e incerteza no campo profissional. Afinal,
pensar no desemprego na condição de trabalhador é diferente de estar
vivendo a situação de inatividade.
Em virtude dessas ponderações, optei por falar com pessoas que
tivessem vivenciado o processo de transformação do mercado de trabalho no
setor petroquímico, durante um período determinado. Escolhi pesquisar
aquelas que tivessem, pelo menos, 15 anos de experiência – estando em
atividade entre final da década de 1980 e meados de 90 –, fase em que o
setor petroquímico e o mercado de trabalho como um todo sofreram
importantes transformações. Esses requisitos foram utilizados como critérios
na escolha dos entrevistados (efetivos e terceiros na PQU). No caso dos
desempregados, a exigência era que tivessem tido longa experiência na
Petroquímica em, pelo menos, uma fase do período referido, e que,
posteriormente, tivessem vivido a situação de desemprego.
Propus-me a compreender a forma como os entrevistados as
interpretam e o modo como as mudanças no mundo do trabalho moldam seu
comportamento, com o intuito de investigar se essas transformações tendem
a gerar desestabilização do caráter, nas três categorias definidas: efetivos na
PQU, terceiros na PQU e desempregados, com experiência naquela empresa.
A reconfiguração do campo me permitiu traçar comparações entre os
depoimentos dos que permanecem na empresa e os que foram despedidos,
com o objetivo de entender de que modo o desemprego, as mudanças no
sistema de produção e nas relações de trabalho interferem em sua conduta e
na conformação do seu caráter.
A forma como o funcionário da empresa percebe a questão do
desemprego, as mudanças no mercado de trabalho e as mudanças no
sistema de produção, difere do modo como o empregado terceirizado encara
as mesmas situações. Este, por sua vez, se distingue do modo como os
desempregados encaram as condições de vida. Considero que a condição ou
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
53
a situação de cada um marca e influencia, de modo determinante, seu modo
de sentir, pensar e julgar o mundo34.
Procedimentos de campo Para realizar a pesquisa, inicialmente fiz contato com o Sindicato dos
Químicos do ABC35, com o objetivo de falar com os trabalhadores da PQU por
intermédio daquela organização. Pretendia obter uma lista de funcionários e
fazer a escolha dos entrevistados por sorteio, sem intervenção da direção
daquela corporação, evitando vieses. O primeiro passo foi realizar uma
entrevista com o diretor do sindicato, com o objetivo de perceber o modo
como a representação sindical daquela categoria entendia as transformações
do setor petroquímico, no período que eu pretendia estudar. Além disso,
buscava uma maneira de estabelecer contato com os funcionários da PQU.
Realizei entrevista com o diretor-presidente, Heli Vieira Alves, em 2002,
por email. As questões concerniam às transformações do setor nas décadas
de 80 e parte da de 90. (veja roteiros de entrevistas anexos). O fato de me
manter em contato com Alves abriu espaço para a primeira visita ao
sindicato.
Tive oportunidade, então, de aplicar um pré-teste do roteiro de
entrevistas, com perguntas básicas. Os entrevistados eram funcionários
efetivos da Petroquímica União. Nessa ocasião, tinha como finalidade
perceber se o tipo de questionamento que vinha fazendo sobre a realidade
do trabalhador petroquímico era coerente com o objetivo da pesquisa, se eu
estava sintonizada com a realidade dos trabalhadores. As entrevistas
apontaram que grande parte de minhas indagações era pertinente. Elas
34 De acordo com Dubar, a pertença objetiva a uma categoria determina os modos de pensar, sentir e julgar de um indivíduo. 35 Atualmente o Sindicato abrange as sete cidades da região do ABC paulista, a mais industrializada do país. A região possui uma população aproximada de 2.354.722 milhões de pessoas (IBGE-2000) e responde por quase 14% da atividade industrial do Estado de São Paulo. Na região do ABC estão instaladas cerca de 600 empresas do ramo químico, petroquímico, plástico, resinas sintéticas, tintas e vernizes, armas e munições e farmacêutico. Atualmente, há cerca de 32.000 trabalhadores nessas empresas, dos quais aproximadamente 12.000 são associados ao Sindicato dos Químicos do ABC, contribuindo mensalmente com 1,5% do seu salário para o Sindicato. (http://www.quimicosabc.org.br/)
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
54
também auxiliaram a elaboração de outras perguntas que abarcassem o
cotidiano do trabalhador: entre outros, seus dramas, os motivos de
insatisfação, as soluções encontradas.
No entanto, percebi, que acessar os trabalhadores da PQU pela
mediação do Sindicato, me expunha ao risco de encontrar um perfil
monocórdio de trabalhador. Provavelmente encontraria pessoas que
tivessem uma inserção muito específica na empresa, imbuídas da perspectiva
sindicalista. Considerava que entrevistar um trabalhador articulado com o
sindicato não era problema, desde que eu chegasse a ele sem intervenção
da própria corporação. A partir de então, decidi pela escolha aleatória dos
trabalhadores, o que me impunha uma mudança na forma de prospectar
informações. Era importante acessar um universo de pesquisa diverso, e que
se assemelhasse ao encontrado na empresa. Ou seja, as pessoas poderiam
ser ou não engajadas nas temáticas do organização sindical, assim como
poderiam ter interesses em outras áreas distintas da própria corporação.
Essas ponderações fizeram pensar que, talvez, o caminho mais
coerente fosse falar com os trabalhadores a partir de suas bases de trabalho,
na fábrica e na empresa terceira – contratada para agenciar trabalhadores
para a PQU -, e, o mais importante, falar com o desempregado sobre sua
condição de egresso do mercado petroquímico: seus dramas, a distância do
mercado petroquímico, a adaptação à nova realidade, a construção de uma
nova vida, fora do trabalho.
Com a pesquisa, busquei entender como esses trabalhadores ou
desempregados percebem as mudanças, em geral, e as transformações do
mercado petroquímico, bem como avaliar se elas têm provocado processo de
desestabilização no caráter desses trabalhadores. Para fazer essa análise
considerei as alterações no setor produtivo e os novos sistemas tecnológicos
e de informatização, entre outros. Mas não só: também considerei as
mudanças que concernem às relações de trabalho, vislumbrando o fato de
que o universo a ser pesquisado abarcava três categorias (empregados
efetivos, empregados terceiros e profissionais que tivessem vivido o
desemprego no setor petroquímico), organizadas em dois blocos: o dos que
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
55
trabalham e o dos que não trabalham. Além disso, era necessário fazer
distinções entre as pessoas inseridas no mercado de trabalho. Entre elas, um
grupo era o dos que tinham vínculo com a empresa e o outro era o dos
terceirizados.
De minha perspectiva, a compreensão de uma pessoa empregada
acerca do desemprego seria qualitativamente distinta daquela do
desempregado. Sua experiência de vida provavelmente marcaria seu modo
de pensar, sentir, julgar. Assim, na medida em que o desemprego era
considerado um dos fatores que poderiam gerar desestabilização do caráter,
ele se tornava uma categoria chave para analisar e dialogar com as outras
duas escolhidas. Supunha que esses critérios também me levariam às
percepções e modos de viver do empregado efetivo e do terceiro sobre
desemprego.
Assim, utilizei estratégias distintas para falar com os entrevistados.
Decidi falar com os efetivos, entrando pela “porta da frente” da corporação,
por intermédio da empresa; os empregados terceiros foram contatados
mediante a escolha de uma das empresas terceiras, cuja participação na
Petroquímica União é significativa; e os desempregados foram contatados
pelo Sindicato dos Químicos.
Dado isso, busquei estabelecer contato com a Petroquímica,
informando-a sobre o interesse em desenvolver a pesquisa com os
trabalhadores efetivos e com terceiros, que atuassem na empresa. Ao
mesmo tempo, voltei a falar com o Sindicato dos Químicos do ABC, agora
com um objetivo diferente daquele que me levou a contatá-lo em 2002.
Precisava ter acesso aos desempregados do Setor Petroquímico, de
preferência entrevistar aqueles que fossem ex-funcionários da Petroquímica
União.
O contato com a Petroquímica União Com a empresa, os primeiros contatos foram feitos por email, uma vez
que, por telefone, não conseguia acesso a nenhum dos diretores. As
tentativas de diálogo com a PQU iniciaram-se no final de 2003 e somente
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
56
entre o final de 2004 e início de 2005 começaram a surgir indícios de uma
comunicação mais efetiva.
Cheguei a falar com três funcionários: o supervisor de produção, a
diretora de comunicação e o diretor de RH, Maurício. Este viria a ser meu
principal contato, uma vez que avalizou a realização de entrevistas com os
trabalhadores efetivos. Após explicar-lhe o escopo da pesquisa, por exigência
dele, enviei, para sua apreciação, os roteiros das entrevistas dirigidas aos
efetivos, aos terceiros e aos desempregados do setor. Esses roteiros foram
avaliados durante cerca de um mês e meio. A espera deixou-me angustiada
e ansiosa, uma vez que, caso a empresa se recusasse a participar, eu corria
o risco de ter todo o projeto inviabilizado.
Maurício entrou em contato comigo somente no final de março de
2005. Na ocasião, pedi-lhe para fazer uma visita à empresa para tirar
eventuais dúvidas sobre o teor da pesquisa que vinha desenvolvendo.
Conforme combinado, fui à fábrica com o objetivo de conhecer a planta e
explicitar o objetivo da pesquisa e o método selecionado para realizá-la.
No primeiro contato, senti o estranhamento do diretor de RH e de seu
assistente, o que era natural, uma vez que não fazia parte da corporação.
Fizeram-me diversas perguntas sobre o escopo do meu trabalho, até que
demonstrei que, de fato, minha pesquisa não tinha como objetivo investigar
problemas ou particularidades da Petroquímica e sim mostrar as
transformações do mercado e suas conseqüências nas relações dos
trabalhadores.
Deixei claro que a empresa fora escolhida por ser a única em São
Paulo36. O setor petroquímico, juntamente com o automobilístico, é um dos
que mais se moderniza em toda cadeia industrial.
36 Até o primeiro semestre de 2005, existiam somente três centrais petroquímicas no Brasil: A Petroquímica União em São Paulo, a Refinaria Landulfo Alves em Camaçari e uma terceira no Rio Grande do Sul. Em 23 de junho de 2005, foi inaugurada uma central petroquímica, no Rio de Janeiro, a Riopol. De acordo com a Gasnet, na ocasião a Riopol era o maior complexo gás-químico da América Latina. “a empresa nasce(u) com uma capacidade inicial de produção de 540 mil toneladas, com uma carteira de 300 clientes (concentrados nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste) e com a expectativa de faturamento de cerca de US$ 650 milhões por ano. Nos primeiros dez anos de operação, a Riopol destinaria um total de 1,2 bilhão de toneladas de polietileno ao mercado externo. Garantidas por meio de um contrato de cerca de US$ 1 bilhão com a trade americana Vinmar International, as exportações
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
57
A segunda visita foi mais tranqüila, tornou-se uma ocasião para eu
conhecer um pouco mais da realidade da empresa. Mais uma oportunidade
para entender o sistema de trabalho, analisar as normas implantadas e os
procedimentos adotados internamente, e compreender o significado da
presença de um pesquisador de ciências humanas ali.
Metodologia de pesquisa e escolha dos pesquisados na PQU
Após a segunda visita à empresa, a partir do esclarecimento de que
tinha interesse em desenvolver pesquisa com os empregados do
estabelecimento e atendendo a um pedido meu, o diretor de Recursos
Humanos da Petroquímica forneceu-me a lista de funcionários, por tempo na
empresa. Com a lista em mãos, fiz o sorteio das pessoas que seriam
entrevistadas. Selecionei 15 empregados, com o intuito de prospectar
informações e analisar as entrevistas de 5 efetivos na Petroquímica União.37
Um dos critérios para a escolha foi o tempo do trabalhador como
funcionário na empresa: busquei pessoas que tivessem trabalhado na PQU,
entre a década de 80 e meados de 90. Além disso, porque um dos principais
questionamentos da pesquisa abordava a existência ou não de
transformações no sistema de produção, selecionei preferencialmente
trabalhadores diretamente ligados à produção.
O passo seguinte foi comunicar-me com os funcionários efetivos,
explicitar o objetivo do trabalho e solicitar sua participação na pesquisa. O
diretor de RH indicou-me também uma empresa terceirizada, a Platume, teriam início em agosto do mesmo ano [grifos meus]”. (http://www.gasnet.com.br/projetos). O principal negócio da Petroquímica União é a produção, venda e distribuição dos petroquímicos básicos – chamados produtos de primeira geração – fabricados a partir da nafta fornecida pela Petrobrás. A empresa vende os produtos de primeira geração para outras empresas do Pólo do Grande ABC e de regiões próximas como a Polietilenos União, Polibrasil, Solvay, Oxiteno, Cabot, Unipar, Rhodia, Basf, Bayer, Dow, Petroflex e outras. Essas empresas fabricam os produtos de segunda geração e vendem-nos para as indústrias de bens de consumo. Atualmente a PQU produz gasolina automotiva tipo “A” e está se preparando para vender também GLP, o Gás de cozinha. Além disso, é a única fabricante de resinas hidrocarbônicas de petróleo da América Latina. (Petroquímica União em comunidade, 2002). 37 Com as listas em mãos, o contato inicial e grande parte das entrevistas com os terceiros e com os efetivos se processaram mais ou menos no mesmo período: entre abril e setembro de 2005.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
58
para que eu a consultasse sobre a possibilidade de realizar as entrevistas
com seus trabalhadores – os que atuavam na PQU. As entrevistas com os
trabalhadores efetivos ocorreram logo depois que eu entrevistei os
trabalhadores da Platume, uma vez que a Petroquímica fez restrições ao fato
de eu mesma fazer o contato com seus funcionários, em vez de ela própria
fazê-lo. Cerca de um mês depois, consegui dar prosseguimento ao trabalho
de campo com os efetivos da empresa.
A visita à Platume
Com o auxílio da PQU, por meio de telefone, entrei em contato com o
diretor-presidente da Platume, empresa terceirizada que tem a Petroquímica
como uma de suas clientes. Após explicitar as razões que me levaram a
realizar a pesquisa e o escopo do trabalho, ele dispôs-se a conversar comigo
sobre a possibilidade de seus funcionários participarem de minha pesquisa.
Assim, marcamos a visita à Platume para a semana seguinte – início de
março.
Do mesmo modo que a PQU, a Platume localiza-se em Santo André, na
Grande São Paulo. O caminho até a empresa constitui uma jornada de quase
três horas para ir e o mesmo tempo para voltar, o que me dava uma ideia do
tempo que eu despenderia realizando a tarefa de entrevistar cada um dos
funcionários daquela empresa e os da PQU, dado que a maioria morava em
Santo André e em São Bernardo. Era necessário acordar às 4:30h, para
conseguir chegar na empresa às 8:30h, ou sair de São Paulo às 17h para
chegar na casa dos entrevistados entre 19:30h e 20h, o que retardava minha
chegada de volta – quase 1h da manhã, uma vez que as entrevistas eram
longas.
O fato de ter entrado em contato com a Platume pela intermediação da
Petroquímica tornou o diálogo mais fácil. O diretor da Platume era ex-
funcionário da Petroquímica e tem laços estreitos com a empresa. Já na
primeira visita, ele tornou disponível a lista de funcionários, indicou os que
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
59
atuavam na PQU e, com isso, pude realizar naquele mesmo dia o sorteio das
pessoas a serem entrevistadas na categoria – empregados terceiros.
Feita a seleção prévia dos trabalhadores da Platume – um total de 15
pessoas, com o objetivo de chegar às cinco entrevistas finais –, tive acesso a
seu endereço e telefone e, finalmente, entrei em contato com eles.38
A retomada do contato com o Sindicato
No Sindicato dos Químicos, retomei o contato com o diretor-presidente
da instituição que mostrou disposição para me ajudar indicando nomes de
empregados efetivos na PQU que pudessem participar da pesquisa.
Mais de um ano depois, havia reconfigurado todo o trabalho de campo.
Minha expectativa com o sindicato já não era a mesma de quando estabeleci
contato na primeira oportunidade. Dessa vez, buscava acessar
desempregados, preferencialmente que tivessem sido funcionários da
Petroquímica, e não mais funcionários dela. Entretanto, o mais importante
era que fossem pessoas do setor petroquímico que tivessem vivido a
experiência do desemprego.
Para escolher desempregados, usei procedimento semelhante ao que
empregara para selecionar os trabalhadores das empresas (Platume e
Petroquímica União).
A instituição transmitiu-me a lista de funcionários desligados desde
2000 por email. Com essa lista em mãos, selecionei os que haviam saído da
PQU. Desses, escolhi os que tinham tido mais tempo de casa, e os mais
velhos, com o objetivo de entrevistar pessoas que tivessem vivenciado as 38 A despeito de eu ter começado os contatos de campo com a Petoquímica União, as primeiras entrevistas foram realizadas com os empregados da Platume. Sendo a Petroquímica uma empresa mais fechada, com uma estrutura organizacional pautada no controle dos trabalhadores, o contato com os efetivos tornou-se mais difícil do que com os trabalhadores terceiros. O diretor de RH insistia em informar, ele mesmo, os trabalhadores a respeito de minha pesquisa sobre “relações de trabalho”. Somente depois de muita insistência e de mostrar que o contato com os trabalhadores era procedimento de método fundamental para preservar a isenção no processo de escolha dos entrevistados, consegui convencê-los de que era necessário que eu mesma fizesse esse contato. Caso os trabalhadores fossem informados sobre a pesquisa pela própria Petroquímica, isso daria margem a que pensassem que o trabalho era de iniciativa da PQU. Isso implicou a suspensão temporária do processo de prospecção de relatos com os efetivos da empresa.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
60
transformações do mercado entre as décadas de 80 e 90, e fiz uma lista de
10 pessoas. Em seguida, fiz os primeiros telefonemas. Alguns números
haviam mudado, o que exigia sua atualização por meio de serviço telefônico,
tarefa nem sempre possível; outros pediram-me um tempo para decidirem se
participariam ou não.
Enquanto isso, eu finalizava as entrevistas com pessoas terceirizadas.
Com o passar do tempo, fui percebendo que a lista fornecida pelo sindicato
não era totalmente aproveitável. Os poucos contatos que consegui por meio
dela, quase sempre, frustraram minhas expectativas. Muitas vezes, o que
aparecia no cadastro como dispensa da empresa era, na realidade, uma
pessoa aposentada – que não se enquadrava entre as categorias definidas
por mim.
A falta de atualização do cadastro do sindicato me obrigou a
desenvolver uma estratégia diferente da que havia definido inicialmente para
contatar as pessoas dispensadas pela Petroquímica União. Cheguei a pensar
que seria inviável falar com elas. Foi então que me ocorreu a ideia de pedir
que os trabalhadores efetivos indicassem pessoas que tivessem sido
desligadas. Por intermédio de alguns funcionários, tive acesso a uma
pequena rede de pessoas dispensadas pela PQU. Como elas já eram
informadas, previamente, por seus colegas, sobre o objetivo da pesquisa e
se tratava de uma indicação de amigos, tinham predisposição a participar da
pesquisa, contribuindo com seus depoimentos. O ‘plano B’ para contatar
essas pessoas deu certo.
A ida a campo O caminho até Santo André e suas imediações é longo e esse período
foi, de certo modo, atribulado. Eu tinha de ir até a estação Clínicas do metrô,
baldeava na estação Paraíso (no sentido da Estação da Luz) e lá fazia
conexão com a Estação de Trem (no sentido de Rio Grande da Serra).
Frequentemente meu destino era Santo André; no entanto, algumas vezes
fui para São Bernardo, São Caetano e a Ribeirão Pires. Chegando à estação
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
61
mais próxima de meu destino final, pegava um ônibus ou um táxi para o
endereço do entrevistado.
Muitas vezes, esse percurso durava quase três horas. Durante a
trajetória, ia refletindo sobre o que viria pela frente. Preocupava-me com o
tipo de abordagem das perguntas elaboradas, se elas interrogavam sobre o
que de fato representava a minha questão sociológica. Na base de meus
questionamentos estava a dúvida central: se a insegurança produzida a
partir da automatização, a percepção das mudanças no sistema de produção,
e também da persistência do aumento e da presença do desemprego no
mercado como um todo, era capaz de gerar a desestabilização do caráter do
trabalhador. De minha perspectiva, as variáveis em conjunto contribuíam
para a possível inflexão do sentido do trabalho na vida dos trabalhadores.
Sem perceber, a distância e o longo itinerário até o campo se
apresentavam como uma mediação entre a realidade em que eu estava
inserida e aquela em que os meus entrevistados se situavam. A linha de trem
constituía o caminho que separava e, ao mesmo tempo, ligava a estudante
de sociologia em São Paulo e o entrevistado na região fabril do ABC. Na
viagem a Santo André, a cada estação, eu ia me aproximando desse
universo operário sobre o qual me interrogava, até que de fato eu chegasse
ao destino certo.
Percebia em mim uma preocupação antecipada com relação aos
resultados das entrevistas. Se eles estariam em consonância com o objeto de
pesquisa. Isso remete à discussão sobre a preparação da pesquisa empírica.
Sobre essa questão, a primeira consideração importante é perceber que o
“campo” se faz com o “campo”. Ou seja, mesmo que haja uma preparação
do desenrolar da pesquisa, o trabalho empírico desenvolve-se no decorrer
das entrevistas, dos levantamentos sobre o universo da pesquisa.
Trocando em miúdos, o método da pesquisa empírica, não é outra
coisa se não a construção em que o saber se erige em conjunto com o fazer.
É justamente no campo que surgem novos e importantes questionamentos e
embates, não considerados no início da pesquisa teórica. E as novas
indagações dão corpo às investigações empírica e teórica.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
62
Durante essa pesquisa, imbui-me da ideia de que, em Ciências Sociais,
o trabalho de campo deve se processar como uma incursão na artesania do
pensamento sociológico, tal qual nos propõe Wright Mills. Nessa perspectiva,
a pesquisa empírica deve ser encarada como o espaço de investigação em
que o sociólogo pode exercitar sua “imaginação criadora”, deslindando fios,
tecendo e entretecendo seu trabalho de pesquisa.
O trabalho de campo torna-se um âmbito rico de aprendizado da
pesquisa social, se formos capazes de dar abertura aos embates que surgem
no fazer diário, e chance para que o nosso objeto de pesquisa nos interpele.
Com esse espírito, somos, a um só tempo, sujeito e objeto de investigação.
Chegando à casa do entrevistado, apresentava-me e explicava
novamente o objetivo da pesquisa. Frequentemente, o relato do entrevistado
tinha a esposa como testemunho, e admitia até “participação especial”39.
Ao longo das entrevistas, sempre me preocupava se, de fato, o
entrevistado respondia o que eu perguntava. As entrevistas eram longas,
embora o tempo com cada respondente fosse bastante variável: de 1,5 h
(uma hora e meia) a quase 3h (três horas). Por essa razão, tinha receio de
ter respostas evasivas, de esquecer perguntas importantes. Muitas vezes,
tinha a desconfiança de que as perguntas não haviam sido respondidas a
contento. Ficava tensa, inquieta.
Essa tensão revela um equívoco sobre o fazer sociológico. Era
necessário perceber a importância da reflexão sobre o material colhido. Para
que o trabalho empírico fosse bem aproveitado, a riqueza do campo, como
fonte de informação, tinha que ser atrelada à imaginação criadora do
sociólogo e à capacidade de ir além das ideias produzidas no senso comum,
tornando as impressões imediatas matéria-prima para a artesania sociológica
a que me propunha. 39Algumas entrevistas tiveram participação ativa das esposas dos pesquisados. Conforme se verá no capitulo seguinte, em que eu analiso o material recolhido, há relatos onde as mulheres opinam sobre o assunto abordado, dão seu testemunho ou fazem reivindicações, com ou sem consentimento de seus companheiros. Tanto assim, que considerei necessário situar a posição delas na realidade estudada, muito embora não houvesse nenhum entrevistado do gênero feminino e não fosse escopo da pesquisa interrogar sobre a questão de gênero. Pelo fato de perceber que tais relatos poderiam informar sobre aspectos que não se evidenciaram nas falas de meus entrevistados, deixei que tais questionamentos viessem à tona tentando avaliar os pontos de intersecção com o objeto estudado.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
63
Algumas questões me expunham ao risco de ferir suscetibilidades, dado
que interrogavam sobre a vida e o comportamento da pessoa em seu
trabalho e fora dele, com a família, abrangendo questões pessoais. As
perguntas abarcavam também o modo como essas pessoas enfrentavam os
problemas cotidianos e impunham que refletissem sobre situações ou
questões que talvez evitassem enfrentar.
De volta para casa, revia o material colhido, as anotações de campo,
impressões recolhidas, e antes de ouvir os registros gravados montei uma
tabela com as impressões preliminares de campo (ver anexo). Ali eram
registradas as questões sobressalentes, os detalhes do ambiente em casa e
minúcias capturadas no cotidiano dos entrevistados. Os ruídos que se faziam
presentes, os lapsos de memória, o badalar dos sinos, das campainhas, o
zunido do telefone, os momentos de pausa. Esses registros foram utilizados
na produção da análise mais acurada, feita a partir da transcrição das
entrevistas, dos tempos de fala e de silêncio.
Neste capítulo 1 reuni elementos que ajudam a construir um quadro
geral das transformações do mundo do trabalho e seus efeitos sobre a
situação das categorias que me propus a pesquisar: efetivos e terceirizados
na Petroquímica União e desempregados saídos dessa empresa. A partir de
então, faz-se necessária uma análise mais apurada sobre a questão que me
proponho a discutir, qual seja, se as mudanças das relações de trabalho
chegam a configurar a desestabilização do caráter das pessoas no âmbito
profissional. Avalio como se dá a inflexão de comportamento dos que atuam
nesse contexto de modificações na esfera do trabalho, no setor
petroquímico.
No capítulo 2, a seguir, são discutidas, de maneira aprofundada, as
biografias de seis entrevistados. Elas estão organizadas, duas a duas, em
três blocos: o dos efetivos na Petroquímica, o dos terceirizados, que atuam
nela e o dos desempregados. Assim foi possível estabelecer comparações
entre os que possuem características comuns e também entre as diferentes
categorias.
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
64
A experiência relatada pelos entrevistados ajuda a construir o quadro
de cada uma dessas realidades. Os pontos que se sobressaíram durante a
realização das entrevistas são esclarecedores da condição de trabalho e
situação de vida dos que se encaixam em cada uma das categorias.
No final de cada bloco de análise são reunidos outros relatos que
iluminam questões importantes, enfeixando uma análise mais detida sobre as
modificações da maneira de pensar, julgar e sentir dessas pessoas. Importa
saber a forma de manifestação dos novos padrões sociais no ambiente de
trabalho, diante de situações de risco e incerteza como a do desemprego
prolongado ou a reincidência desse fenômeno.
Uma de minhas hipóteses era de que, no momento atual, a expansão e
diferenciação das formas de desemprego como o desemprego de longa
duração, a recorrência ao desemprego, o desemprego por desalento, entre
outros, convivendo com formas de flexibilização do trabalho, influenciam e
moldam o comportamento de todos os que dependem de trabalho para
viver, mesmo dos empregados que gozam de relações de trabalho reguladas.
Esse quadro de incertezas tanto pode resultar em motivação para que
os indivíduos se adequem às novas demandas como em problemas nas
relações do trabalho e em outros campos como o da família. Suponho ainda
que a reação às situações de risco e insegurança pode se manifestar em
termos de uma desestabilização do caráter do trabalhador, o que se traduz
na ausência de regularidades de padrões de comportamento. Do meu ponto
de vista, não há desestabilização sem que se dê uma nova configuração dos
valores dessas pessoas, o estabelecimento de padrões de socialização em
moldes diferentes dos que se consolidaram em etapas anteriores. Isso
porque a crise de identidade de um sujeito já anuncia a formação de outra
referência identitária que oriente padrões de conduta. Por exemplo, o
enfraquecimento da identidade coletiva do operário deve indicar, no mínimo,
a mudança do sentido de coletividade desse sujeito.
Ainda que alguma das experiências relatadas afigure-se em
conformidade com o que denomino desestabilização, tal situação não deve
ser vista como um processo linear ou como determinação, na lógica de
Capítulo 1 – Pressupostos para o trabalho de campo
65
relação de causa e efeito, mas como uma possibilidade entre outras na
situação vivenciada. Deve ser vista como uma das configurações possíveis de
comportamento, em contextos específicos como aqueles em que se faz
presente o desemprego estrutural, a flexibilização das relações de trabalho, e
situações que geram insegurança às pessoas no ambiente de trabalho.
Ainda que se leve em conta a importância do âmbito profissional para a
formação do caráter de uma pessoa, há outros, como a família e a escola,
que contribuem significativamente para a assunção de comportamentos e
definição de identidade de uma pessoa. Daí a importância de discutir as
experiências desses indivíduos nos diversos campos de sua vida, mesmo que
a pesquisa tenha seu foco nas relações de trabalho. Por outro lado, a
ausência de indícios de que houve um processo de desestabilização do
caráter não anula a validade das investigações e da avaliação dos relatos a
esse respeito. Passemos ao capítulo II, onde situam-se o perfil e a análise
dos entrevistados.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
66
Capítulo II - A dinâmica das transformações do trabalho
Efetivos da Petroquímica União Fiz o sorteio das pessoas que seriam convidadas a participar da
pesquisa e tive um problema, logo que comecei a fazer contato com os
funcionários da empresa. Depois de concordar em participar, um funcionário
perguntou-me se a empresa havia dado o consentimento para a realização
do trabalho. Expliquei que obtivera permissão para realizar as entrevistas, o
que poderia ser confirmado com o RH. Em vez disso, ele falou com o chefe
de seção responsável por sua área de trabalho, o que causou uma série de
mals entendidos, antes de poder prosseguir.
Nem sempre consegui encontrar as pessoas na empresa. Muitas vezes,
elas estavam escaladas pra trabalhar em outro período: ou em outro horário,
ou em outro dia da semana – no caso das pessoas que estavam de folga.
Além disso, algumas estavam em férias. Como dispunha também do telefone
residencial, arrisquei contatá-las em sua casa. Isso aconteceu somente uma
vez.
Apesar de ter conseguido realizar essa entrevista, depois dessa
experiência, decidi não entrevistar pessoas que estivessem em seu período
de descanso – férias ou folgas. Meu entrevistado parecia estar
desconfortável; tive a impressão de que ele supunha que a Petroquímica
União encomendara a entrevista. Por isso, busquei falar com as pessoas
somente pelo telefone do trabalho, o que tornou o processo mais demorado
devido aos freqüentes desencontros.
Com essa categoria de pesquisados, todas as entrevistas ocorreram
na residência dos participantes. A maioria na região do ABCD,
prioritariamente em Santo André ou em regiões vizinhas, como São Bernardo
e Ribeirão Pires.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
67
Perfil – os escolhidos da “arca do emprego” Antes de mostrar o perfil dos entrevistados da categoria dos efetivos da
Petroquímica União, gostaria de dar algumas características da mão-de-obra
do setor químico-petroquímico, entre a década de 80 e meados de 90,
quando ocorreu o processo de reestruturação.
O gênero é tido como um critério constitutivo da mão-de-obra do
complexo-químico petroquímico, desde a origem de formação desse setor,
cuja mão-de-obra é predominantemente masculina.
De acordo com Guimarães, mesmo no período de enxugamento do
pessoal, os homens representaram continuamente de 80% a 90% da mão-
de-obra. Baseada nesse fato ela conclui que,
se a condição de gênero não funcionou como elemento de
seletividade ex-post, funcionou de forma decisiva como
elemento de seletividade ex-ante, barrando, pura e
simplesmente, o ingresso de mulheres num mundo
ocupacional que se constituiu como marcadamente
masculino, por estar fundado seja em constrangimentos
simbólicos (posto representar-se como um “trabalho de
homem”, por seus requerimentos de “coragem”, pelo risco a
que expõe os que nele se engajam), seja em
constrangimentos legais (como o impedimento de
incorporação feminina em jornadas de turno contínuo,
regime de trabalho característico do core da força-de-
trabalho no eixo petróleo-petroquímica) (Guimarães, 1998:
42)
Como dito antes, a idade é outro elemento que constitui fator de
seleção da mão-de-obra nesse setor. Apesar de, hoje em dia, as empresas
preferirem mão-de-obra mais jovem, entre 80 e 90, houve um aumento da
faixa-etária dos empregados no setor químico-petroquímico40. Um terceiro
40 Sobre isso, Guimarães mostra que “No que tange à composição do emprego por idade houve, entre 1986 e 1994, um aumento significativo da idade dos ocupados, tanto no parque químico paulista, quanto no baiano. E, ao que parece, este aumento significativo
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
68
fator fundamental na seletividade dos trabalhadores do setor é a
escolaridade, utilizada como critério, durante o processo de
reestruturação.41 No período estudado, houve um aumento significativo do
nível de escolaridade. No entanto, importa destacar que esse fator não teve
correlação com o “redução da mão-de-obra”, dado que o nível educacional já
funcionava como um critério de inclusão. Ademais, com o passar do tempo,
a escolaridade continuou sendo, cada vez mais exigida. Isso posto, passemos
ao perfil dos entrevistados.
Perfil dos entrevistados
Foram realizadas sete entrevistas, e desse total, considerei as cinco
mais importantes, no sentido de serem mais ricas em informações e me
oferecerem mais subsídios para a realização das análises.
Todos os entrevistados efetivos na Petroquímica União eram homens,
casados e, com exceção de um deles, todos os outros têm filhos. Grande
parte tem mais de 15 anos de empresa. O menor tempo na companhia é de
14 anos e o maior é 30 anos. Todos estavam na empresa na década de 90,
durante o processo de reestruturação.
Os respondentes têm, no mínimo, o segundo grau completo. Quatro
deles têm curso técnico e somente um tem curso universitário concluído. De
certa forma, essas pessoas sentem-se valorizadas, pelo fato de terem
permanecido na empresa após o processo de reestruturação e privatização.
Afinal, depois da drástica redução do quadro de funcionários42, os que fazem
parte do grupo selecionado para continuar na empresa tendem a perceber
sua permanência como um sinal de distinção.
esteve, em qualquer das situações, correlacionado com a massiva dispensa de empregados. Em São Paulo, a participação das faixas até 29 anos caiu (de 45,5% para 37,1%), enquanto a participação das faixas acima de 30 anos variou no sentido oposto. E, vale notar, estas mudanças se concentraram nos mesmos anos em que o parque paulista eliminou boa parte de seus postos de trabalho.” (Guimarães, 1998: 43). Mais adiante, veremos como isso se aplica ao caso estudado. 41 Para saber mais sobre esse processo, veja (Guimarães, 1998). 42 Conforme Schutte (2003), entre 1989 e 1999, o total de funcionários do parque petroquímico brasileiro passou de 29.223 para 13.960, uma queda de 52%. No caso da Petroquímica União, o quadro é semelhante. De acordo com o diretor do Sindicato dos Químicos do ABC, o total de funcionários diretos passou de 1.200, em 1989, para cerca de 550, em 2000, uma redução de 54% do quadro de efetivos.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
69
Todos, sem exceção, encaram o trabalho feminino como suplementar
ao masculino. Talvez o fato de a maioria se ocupar de atividade de turno
faça com que o papel das mulheres em casa pareça mais importante. A
intermitência da participação do provedor da família torna necessária a
permanência regular da mulher em casa, não só para organizar o âmbito
doméstico como para assegurar boa educação aos filhos.
Nas entrevistas a seguir busquei lançar luz sobre as questões que cada
respondente destaca. O roteiro utilizado para prospectar informações foi o
mesmo (para detalhes, veja o roteiro em anexo). No entanto, a forma de
responder é peculiar a cada trabalhador. Sem querer, eles acabam dando o
tom das entrevistas e elucidando as questões que surgem de sua situação de
trabalho. Teoricamente, se a realidade é a mesma. Todos trabalham na
Petroquímica; no entanto, para além do fato de atuarem em áreas distintas,
cada um interage com o contexto de trabalho de uma forma peculiar.
Procurei identificar aquilo que dá notícia dessa singularidade, ao mesmo
tempo que busquei encontrar um eixo comum, no qual gravitassem todos os
trabalhadores.
As questões que aparecem interrogam sobre o cotidiano dessas
pessoas, seu modo de agir e pensar o trabalho. Apesar da singularidade de
cada um em responder, há aspectos mais importantes para uns do que para
outros. Adiante será fácil perceber como alguns temas são mais longos em
uma entrevista do que em outras. São as questões levantadas por mim, mas
salientadas por eles que ajudam a realçar o desenho dessas trajetórias
profissionais.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
70
Análise das Entrevistas
Fazendo e refazendo a permanência no emprego – o
mito de Penélope “Eu vejo aquele rio a deslizar
O tempo a atravessar meu vilarejo
E às vezes largo o afazer
Me pego em sonho a navegar
Com o nome paciência
Vai a minha embarcação
Pendulando com o tempo
E tendo igual destinação
Para quem anda na barcaça
Tudo, tudo passa
Só o tempo não...”
Chico Buarque,
Xote de navegação/ As cidades
Bira: 46 anos, casado, dois filhos. Tem curso técnico na área química e
atua na Petroquímica União há 16 anos, onde exerce a função de operador
petroquímico. Antes, trabalhava em uma empresa metalúrgica, onde
conheceu o trabalho de turno. Ao ingressar na PQU, realizou o grande sonho
de atuar no setor petroquímico. Mora em Ribeirão Pires, no alto de um
monte, de onde vê parte da cidade, com tranqüilidade.
Bira é um homem de estatura alta, ombros largos, corpo robusto. Tem
cabelos levemente enrolados e ralos, que prenunciam a calvície. Os olhos
vivos e escuros expressam a firmeza de seu pensamento. É com voz pausada
e tranqüila que discorre sobre sua trajetória pessoal e esboça suas
impressões, ideias e opiniões sobre o mercado de trabalho.
O entrevistado nasceu em uma família numerosa, tem 9 irmãos. A
perda do pai, aos 9 anos de idade, e o fato de sua família contar com parcos
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
71
recursos, obrigaram-no a trabalhar muito cedo. Como diz: “Não podia
ultrapassar, não tinha aquela disposição "ah mãe, me dá o dinheiro". E meu
pai morreu eu tinha 9 anos, então eu estudava. Em época de férias de escola
arrumava algum biquinho para ter algum dinheiro...não ficava com dinheiro
da minha mãe.”
Coerência e equilíbrio marcam essa entrevista em que o respondente
avalia as limitações a que um trabalhador de turno está sujeito, no setor
petroquímico.
Trajetória de trabalho
Bira atuou fundamentalmente no ramo industrial. Passou do ramo
metalúrgico para o químico e depois para o petroquímico. Demonstra que a
ida para o mercado petroquímico foi a realização de um sonho. O campo da
química é interessante para ele, que demonstra satisfação em atuar nessa
área.
“(...) Eu ouvia falar na Petroquímica, 'eu tenho que entrar nessa
empresa', prestei concurso na época, em 88, tive que fazer cursinho
preparatório. Depois, foi na época...// como era estatal, dependia do
governo para liberar as admissões. Ai fiquei um ano esperando a admissão, e
quando entrei o serviço...// é gostoso você trabalhar na área química, é
interessante devido aos processos, reações químicas. Se bem que eu já tinha
trabalhado antes na Brasifil, que também era do ramo químico, fazendo a
mesma coisa.”
Mesmo assim, sabe que o trabalho em turno limita sua vida social,
tanto com a família quanto com os amigos. Contudo, considera que essa é
uma característica intrínseca ao trabalho, assim como o são os riscos a que
se expõe no exercício da função. Apesar desses inconvenientes, não reclama
da profissão.
Demonstra segurança na atividade que desenvolve e confiança no
futuro, embora pondere que a questão do desemprego é um risco a que está
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
72
exposto todo trabalhador. É um dos poucos entrevistados que valorizam,
com veemência, o papel do sindicato na luta pelos direitos trabalhistas.
Mesmo estando conciliado com sua escolha profissional, consegue
analisar o processo de reestruturação e o de privatização com crítica e
lucidez, e reflete sobre o desemprego e outras questões que interpelam a
vida do trabalhador. Ainda que não tenha vivido a experiência do
desemprego, esforça-se para falar dessa realidade, no contexto atual,
olhando-a como situação que desorganiza a vida das pessoas que dependem
de salário pra sobreviver.
Competitividade no mercado de trabalho
Bira faz observações preciosas sobre a realidade de trabalho no
mercado competitivo. Com suas ponderações, dá-nos matizes que permitem
entender como as transformações no mercado de trabalho podem gerar
competição, em diferentes contextos.
Essas questões aparecem a partir do momento em que questiono se
houve mudanças no espaço de trabalho. O que busco saber é se houve
mudança de layout, ou qualquer tipo de alteração no espaço físico, que
exigisse ou induzisse a mudança de procedimentos. O que está por traz de
minha interrogação? Quero saber como se comporta e como se sente meu
entrevistado em meio a essas transformações.
O respondente disse-me ter mudado de cargo e transitado entre
diferentes áreas, duas vezes: Passou de operador estagiário a operador 1 e
depois a operador 2. Perguntei como havia sentido a transição e se tinha
surgido insegurança. Sua resposta:
“Bom, insegurança nem tanto, aumentou a responsabilidade. Já é um
outro serviço, você comanda pessoas, você já tem equipamentos caros que
ficam sob seu controle, e alguma coisa errada que você faz você gera
prejuízo. Não sei se quando você passou com o trem e viu um lugar saindo
um foguinho, então aquilo lá quando tá queimando é sinal de prejuízo,
porque a gente tem que manter a fábrica. Se tá queimando a matéria prima
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
73
e não está gerando lucro, então a responsabilidade aumenta muito quando
você vai para operador 2. E o impacto de segurança, não tive tanto porque
ao longo desses anos eu pegava interinidade, e mesmo como operador 1 eu
trabalhei muito no painel como interno, na função de 1 fazendo a função de
2. Então quando eu fui assumir a função 'não agora eu sou 2' não teve
aquele impacto de insegurança de estar na função porque já tinha passado
pelo processo.”
Bira contou sobre sua rotina de trabalho, o que ela exige e acarreta, e
como se sente. Revelou que a atividade que exerce, embora lhe propicie
satisfação, requer controle contínuo sobre o processo e, por isso, limita sua
liberdade. Deixa implícito que haver certa tensão intrínseca à natureza do
trabalho.
“Para quem trabalha na área é gostoso, você sente o sentimento de
estar assim, a gente sai na área não pode estar, porque para eu sair da
minha função pra ir na área ver como está as coisas, tem que ter uma
pessoa no lugar, não posso abandonar o serviço, então eu sinto uma
limitação de liberdade.
Você não pode circular, tem que estar de olho no painel, às 8:00 horas
a gente tá lá. Tomar um café, você vai e volta é coisa rápida. Agora pra você
ir almoçar, jantar ou ir para a área você tem que ter uma pessoa pra te
substituir então você fica com limitação da liberdade sua de tá controlando.
Se eu vou lá fora e voltar você tem que estar sempre avisando pra estar te
substituindo no painel.”
É importante ressalvar que ele fala da tensão, própria do tipo de função
que executa, sem dar a isso uma conotação de queixa ou reclamação. Até
porque Bira trata como “natural”tal situação.
A partir da discussão sobre as mudanças provocadas pela alteração de
funções, enveredamos pelo tema da reestruturação. Puxando pela memória,
meu entrevistado indicou que, na Petroquímica, esse processo teve início em
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
74
1990, mais especificamente em 1992, e que ele se desdobrou em várias
etapas. Sobre isso, disse o seguinte:
“Toda mudança sempre gera insegurança, porque as empresas elas,
esses processos que elas adotam, claro, é para se perpetuar, visa lucros,
porque ninguém...// o investimento vai tá melhorando a qualidade do
trabalho, sim, mas se não gerar lucro ela não faz esse investimento, e
quanto a esse investimento sempre reduz pessoas. Então sempre gera
insegurança com relação a todos, há esse comentário entre as pessoas.”
O primeiro aspecto que chama atenção é a afirmação de que toda
mudança gera insegurança ao trabalhador. E dou destaque a isso, por ser
uma ideia expressa por um empregado que demonstra estar adaptado às
dificuldades e desafios impostos pela gestão da empresa e pelo mercado de
trabalho. Além disso, está o fato de essa mudança ser motivada pela
necessidade de a empresa perpetuar-se, o que somente se realiza mediante
a ampliação dos lucros.
De sua perspectiva, os investimentos das empresas não têm o objetivo
primordial de garantir a qualidade do trabalho, mas o lucro. Esse
privilegiamento do material sobre o humano gera um certo estranhamento,
talvez porque meu entrevistado esteja comparando o volume de
investimento realizado com o tanto de gente que permanece, ou com o valor
dado às pessoas na empresa. Por isso ele diz: “se não gerar lucro ela não faz
esse investimento, e quanto a esse investimento sempre reduz pessoas”.
Fala isso como quem diz, após o enxugamento, a equipe de trabalho
ficou reduzida, “diminuída” em tamanho e importância. Bira parece reclamar
da condição do trabalhador, talvez pudesse dizer da “classe trabalhadora”?43,
43 Marx e Engels, com base na sociedade capitalista do século XIX, definem classe por “um tipo crítico de relações que une os aspectos material, ideológico e político de uma sociedade”. As classes sociais são formadas no interior de uma determinada estrutura social, dizem respeito a uma realidade social e econômica específica e, têm como base o antagonismo entre proprietários e não proprietários dos meios de produção (apud Collins, 1994: 62-64). Tal condição, combinada com as experiências comuns de um determinado grupo, pode resultar numa ação organizada que, enquanto tal, estará respaldada em posicionamentos políticos e ideológicos específicos. A consciência de classe pressupõe a pertença a um determinado grupo social, que se consolida por meio de experiência comum e torna viável a ação organizada. Nesse sentido, enquanto categoria de classe, o proletário é determinado por suas condições sociais, econômicas, materiais gerais e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
75
em tempos anteriores. Hoje em dia, a realidade de trabalho é tão complexa
que deixa pouco espaço para a criação de uma identidade de classe. Em
Mundos do trabalho, Eric Hobsbowm condiciona a existência de classes
sociais à de consciência de classe:
Uma classe, em sua acepção plena, só vem a existir
no momento histórico em que as classes começam a
adquirir consciência de si próprias como tal.” (...), no
entanto pondera que a “ausência de consciência de classe
no sentido moderno não implica a ausência de classes e de
conflitos de classe (2000:41).
Para explicitar sua tese, o autor baseia-se na experiência de países
desenvolvidos como Inglaterra, França e EUA, argumentando que há uma
consciência de classe de cunho nacional cujas raízes se ancoram no controle
crescente da economia e dos assuntos sociais pelas nações. Não chega a
considerar que: 1 – a primeira fase da industrialização daqueles países
coincide com o período de afirmação das identidades nacionais (sobretudo
na Europa), que baseou-se, entre outras coisas na solidariedade e
reciprocidade dos trabalhadores industriais, propiciado a formação de
consciência de classe. Não por acaso, é naqueles países que se vê o controle
sobre os interesses nacionais; 2 – o processo de industrialização nos países
periféricos difere substancialmente do ocorrido nos países / nações
desenvolvidos. Sobre o desenvolvimento das economias industriais ideológicas. Suas ações refletem as determinações econômicas e podem estar pautadas pela consciência de classe (In Fernandes (org.), 1989). Conforme mostram alguns autores, o conceito marxiano de classe sozinho é insuficiente para explicar, compreender e interpretar as diversas configurações sociais da atualidade, “as novas maneiras de viver revelam possibilidades dinâmicas para uma reorganização das relações sociais, que podem não ser adequadamente compreendidas por Marx e Weber” (Beck & Beck-Gernsheim, 2002: 36). A divisão de classes entre proprietários e não proprietários, presente no modelo marxiano, não explica conflitos importantes fundados nas diferenciações sociais e devidos à pluralidade de sujeitos que convivem com interesses, opiniões e ideologias próprios, nas diversas instituições sociais, entre as quais, as empresas. Assim, parece arriscado o uso do termo “classe trabalhadora”, no sentido de que não é possível falar de uma experiência única do trabalhador. Pelo contrário, faz-se necessário considerar que o mundo do emprego e do trabalho se configura a partir de realidades complexas, que fazem surgir formas identitárias específicas, e que tendem a mudar continuamente.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
76
periféricas, téoricos como Giovanni Arrighi (1997), Celso Furtado (1992),
Fernando Henrique Cardoso (1993), Chico de Oliveira (1988), entre outros,
erigiram um arcabouço teórico específico com o objetivo de explicar aspectos
determinantes da estrutura do capitalismo nos países em desenvolvimento; e
ligado a esse fator, 3 – a influência dos conglomerados, das transnacionais e
das grandes empresas sobre o processo de modernização e sobre a política
econômica dos Estados-nação e sua atuação, enquanto agentes políticos,
sobre os interesses desses países, em âmbito macro, e sobre os interesses
dos diferentes atores econômicos, entre os quais estão os empregadores e
os trabalhadores (em escala menor). A esse respeito devem-se destacar os
processos de abertura comercial, privatização e desregulamentação
econômica, que resultaram na expansão da participação do capital externo
nas empresas instaladas naqueles países entre os quais o Brasil e,
consequentemente na limitação, ainda maior do controle do Estado sobre os
assuntos nacionais (Schutte, 2003). Nesse sentido, a tese de Hobsbowm
deixa de explicitar importantes fenômenos sobre as transformações do
capital e as mudanças de trabalho nos países em desenvolvimento. Bira faz
crítica sem a consciência de fazê-la. Ele busca nos tempos d’outrora a
lembrança de quando a equipe de trabalho era maior e com isso vêm à tona
os sentimentos que o afligiam, durante a reestruturação:
“'Automatizando como é que vai ser, será que vão manter a gente?' E
houve, de fato houve, porque quando eu entrei lá, a gente tinha 18 pessoas
no turno; hoje a gente tem 13 pessoas, isso graças à automatização. E
houve época que chegou a ter mais pessoal, antes de 88 chegou a trabalhar
com 24 pessoas noturno, isso na olefinas44 no meu turno.”
44Trata-se de uma das quatro divisões do setor de produção da empresa. Na PQU elas são denominadas como segue: Olefinas, Aromáticos, Resinas / PIB (Polibuteno) e Utilidades – Ligado ao sistema de produção de energia. Esses núcleos fabricam Etileno, Polibuteno, Propileno – G . Polímero, Propileno – G . Químico (Benzeno) e Resíduos Aromáticos, entre outros. Os produtos são vendidos à indústria de transformação (de segunda geração), que produzem matérias-primas para a indústria de terceira geração, onde se incluem as fabricante de embalagens, Cadeia Plástica, Pneus, Artefatos, Indústria textil, etc. (Petroquímica União em Comunidade/edução dez/2002 e http://www.pqu.com.br).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
77
Depois, dá exemplos de como a mudança do sistema de produção, de
pneumático para analógico, gerou tensões e insegurança aos trabalhadores,
uma vez que ocasionaram redução do quadro de funcionários:
“Todas as mudanças de reengenharia, a automatização, quando se
efetivou mesmo houve uma redução de pessoas. Essa mudança foi depois de
uma parada para manutenção, aí foi quando o pessoal foi tudo, porque antes
o controle era na área, tudo pneumático, aí quando passou para analógico,
eletrônico, o pessoal de 96 foi tudo para a sala de controle, o CCO, que é
tudo digital. Calhou também que quando houve uma mudança de diretoria,
porque a petroquímica também estava mal das pernas, gastou-se muito na
parada de manutenção e aproveitou também para ter um enxugamento.”
Ainda, mostra que a insegurança desse período - “ah, todo dia uma
expectativa” – exigia mais empenho e dedicação dos funcionários na
execução de tarefas e em superar seus limites. Trocando em miúdos, o
resultado foi a mudança de comportamento: “Sim a gente tenta tá
procurando uma outra instrução, tá preparando e formando, pra estar
prestando um melhor serviço, e aí você faz esse curso a pessoa já te vê de
uma outra forma.”
Essa insegurança também decorre da consciência do excesso de mão-
de-obra no mercado de trabalho. Ele fala com clareza dos impactos da
realidade do mercado de trabalho, “o mundo lá fora”, que tem como uma
característica central a escassez de emprego e a perda da qualificação dos
empregos. Nesse contexto:
“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo
desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de
desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa
insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as
exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.” (Mais
adiante, voltaremos a falar a respeito da influência do desemprego sobre o
comportamento das pessoas no exercício de suas funções).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
78
O respondente também indica que o empenho dos funcionários em
melhorar a qualidade de seus serviços traz implicações para a relação de
trabalho: “Você tem que estar integrado, realmente, serviço pra todo mundo,
você tem que estar lendo, fazendo procedimento, e tá sempre dependendo
de outras pessoas, que às vezes você não conhece o serviço de outra área,
tem que estar integrando, exatamente estar fazendo procedimento, tem que
estar buscando informações então há uma integração maior entre as
pessoas, entre pessoas e setores.”
No entanto, essa integração entre os trabalhadores de diferentes áreas
parece contradizer o processo competitivo que a expectativa do desemprego
gera. Por isso, questiono como é possível que essas duas situações se
harmonizem. Ele responde fazendo distinções entre o que cada processo de
mudança gera. Há as que ele considera mudanças estruturais e aquelas
decorrentes da necessidade de certificação da empresa; cada uma exige do
trabalhador maneiras bem distintas:
“Com relação às mudanças estruturais que houve, de reestruturação,
reengenharia, aí é uma competição individual entre as pessoas; agora, com
relação à certificação, que eles queriam ganhar o prêmio da qualidade, então
aí há uma integração, porque todos estão buscando o mesmo objetivo, então
não há competição, há uma integração. Agora quando há uma
reestruturação, aí sim há uma competição porque...// 'deixa eu fazer a minha
parte' pra mostrar que.”.
Nesse contexto, meu interlocutor dá exemplos que ilustram bem o
comportamento competitivo entre os colegas de trabalho. E não esquece de
destacar que, na avaliação profissional, nem sempre a eficiência do
empregado no exercício da função é o que mais conta. O contato pessoal
com a chefia conta como um aspecto importante. Por isso, às vezes os que
não “fazem tanto são mais valorizados” :
“Há comportamentos assim, pessoas que faz um negocinho e quer que
todo mundo note. E às vezes você faz alguma coisa, a pessoa viu que você
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
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fez, então não há necessidade de você querendo mostrar tudo aquilo que
você faz. Pelo menos os supervisores, a chefia, tem essa sensibilidade de
estar vendo. É claro que em toda empresa tem um supervisor, uma chefia
que tem uma maior afinidade com o outro, aquele que não faz tanto é mais
valorizado do que aqueles que fazem.”
De acordo com o entrevistado, numa situação de competição, ter bom
conceito não adianta; às vezes, as amizades com pessoas influentes definem
a permanência no emprego. Entretanto, faz questão de destacar ser
fundamental preservar certos “limites morais” de respeito aos colegas nessa
seara de competições. Conforme diz: “(...) É bom você ter as amizades, e
sempre entre eles mesmo, 'você é um bom operador', o ideal é você estar
sempre bem com as chefias e até mesmo junto, mesmo que tá havendo
competição, procurar fazer a parte, não querer subir nas costas dos outros
para se destacar.”
Quando perguntei se ele já havia vivenciado situações em que as
pessoas “passam por cima das outras”, para permanecerem na empresa,
falou: “E isso sempre acontece, pessoas que querem pisar nos outros, ou
então, faz um serviço, não foi bem ele que fez e assume que foi ele; então,
sempre, isso existe, até hoje sempre existiu e sempre vai existir.”
O entrevistado demonstra capacidade para adaptar-se a situações de
alta competitividade, que, em parte, justifica sua permanência na empresa.
Para ele, as dificuldades aparecem como desafios a enfrentar, como
acicate, estímulo, e, ao mesmo tempo, são uma forma de crescimento e
aprendizado profissional e pessoal. Diz também que mudou a forma de se
ver depois de ocorridas as transformações na empresa:
“Sim eu comecei ...// Mesmo essas cobranças você vai crescendo, vai
superando, independentemente se você está mudando de cargos ou não,
está aprendendo e depois faz uma análise. Toda reestruturação é até bom
para a gente mesmo com relação a estar aprendendo mais, a estar buscando
informações.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
80
No entanto, é fundamental compreender que os graus de
adaptabilidade, em ambientes onde há alta competição, são variáveis de
acordo com os recursos de que as pessoas dispõem. Também é importante
considerar que, como dito antes, no processo de seletividade nas empresas
petroquímicas, durante a década de 90, conforme Guimarães (1998),
características adscritivas como idade e sexo, juntamente com grau de
escolaridade, contaram como critérios fundamentais para a definição dos que
permaneceriam nas empresas, durante o processo de enxugamento. Além
disso, é essencial levar em conta que as habilidades profissionais e
competências de Bira certamente constituíram um fator de escolha para que
ele continuasse na empresa.
Privatização e corte de funcionários
Durante todo o relato, Bira demonstrou conhecer e ter domínio do que
falava. Os temas do roteiro, foram aos poucos sendo dissecados, mediante o
relato de quem sabe do assunto. Conhece bem a realidade petroquímica, sua
escolha profissional, por paixão. Fala com clareza do processo de
privatização, da forma como se processou e de suas conseqüências, para a
empresa e para os trabalhadores.
Ele se antecipa em informar que antes havia muitos funcionários e
depois segue dando outras informações que respeitam à própria empresa;
num plano macro, fala sobre o modo como o processo de privatização se deu
no Brasil:
“Sim, quando do processo de privatização tinha muitos funcionários e
foi essa reestruturação depois daí, veio uma pessoa na época do Collor em
90, ele veio mesmo para privatizar, enxugar, fazer investimentos para
depois tá entregando a empresa. Os investimentos, eu vejo assim, nas
privatizações brasileiras, eles falam que os investimentos que depois que
privatizou que as empresas dão lucro. Dava lucro antes, como ia tudo para o
Estado, não se dava muito prestação de conta do lucro, e muitos
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
81
investimentos são feitos antes, prepara-se as empresas para
privatizar, equipamentos novos já são comprados antes, daí quando
entra o capital privado ele não tem que arcar, então eles...”
Reparo de perto sua assertiva: “privatizar, enxugar, fazer investimentos
para depois tá entregando a empresa”. Aqui meu interlocutor tece, de
uma só vez, algumas críticas à privatização. Quando emprega o termo
entregar ele fala como se se tratasse da venda de um objeto ou mercadoria
que se pode ter nas mãos, e quase confere a esse objeto a qualidade de ser
móvel. Como um pacote de embrulho: Um livro, um pacote de produtos de
beleza. Parece não se tratar de uma empresa, de capital fixo. Além disso,
também dá a conotação de algo que se está cedendo, sem que se reconheça
seu justo valor. Por último, seu tom de sugere que, do ponto de vista
político, a venda teve um caráter, de certa forma, entreguista: o Estado
perdeu seu patrimônio.
Em seguida, pôs-se a dar detalhes sobre a privatização brasileira, em
geral. Sublinha que, desde o início, antes de serem privatizadas, muitas
empresas, inclusive a Petroquímica, já eram lucrativas só que, “como os
recursos iam para o Estado”, não se fazia a prestação de contas do
montante. Seu argumento opõe-se à crença de que toda empresa estatal dá
prejuízo.
A antecipação dos investimentos seria um artifício utilizado para
valorizar a empresa a ser vendida. No entanto, como ele mesmo observa,
isso poupa o futuro comprador de fazer aportes vultosos de recursos quando
a empresa já está em suas mãos. Assim, o custo de manutenção da empresa
fica relativamente menor do que no período em que ainda era estatal. Com
essas asserções, ele revela seu ponto de vista. Dá a impressão de colocar na
balança implicações advindas do processo de privatização. De um lado, as
conseqüências para a vida do trabalhador – insegurança, medo, competição,
stress – e, de outro o impacto na empresa – os investimentos, a renovação
das máquinas, o enxugamento, o aporte tecnológico, o aumento em
competitividade, a expansão do lucro e a garantia de permanência no
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
82
mercado. Quem olha os pratos da balança tem a ideia de para onde ela
pende, qual o lado que desce. Outros exemplos sobre o processo de
privatização são pinçados num quadro geral do processo:
“minha posição geral, vai, das telefônicas; não é esse o número, mas
para dar o exemplo, ela gasta 10 milhões de dólares para comprar matéria,
insumo, para reposição, e antes da privatização ela gastou 30 milhões. Vai,
então ela comprou, fez aquele estoque, pra quando vir o capital privado não
teria que estar gastando. Então, são coisas, garantia de lucro, que nem a
gente vê aí das elétricas, das telefônicas, que quando foi privatizado o
governo deu uma garantia de lucro, isso daí não existe, se você vai....// e
mesmo se ela não dá lucro, a garantia de lucro é os aumentos. Quando
privatizou, foram privatizadas, foi contado para o povo que as tarifas iam
baixar, e não é verdade, as tarifas de telefônica, eletricidade, só pioraram,
aumentaram.”
Insisti para que ele desse mais detalhes de como a privatização
impactou as relações entre os trabalhadores. Explica que as principais
medidas resultaram em corte de funcionários:
“Sim, foi a mesma coisa, quando privatiza sempre 'vem aqui, tem muita
gente, vamos cortar pessoas'. E de fato houve...., a princípio, o corte foi na
própria, quando já era capital privado, a reestruturação que houve, que nem
eu falei, os investimentos para a reestruturação os investimentos para
automatização sempre....”
Destaca mais uma vez que o grosso do investimento foi feito
previamente e que esses recursos foram direcionados para a modernização
de tecnologia e automação. Além disso, indica que investimento em
produção não significa, necessariamente, aumento do pessoal:
“É na prévia, e sempre se investe para automatizar, aí sobre pessoas,
então corta. Se bem que agora, chega em um estágio de automatização que
não tem como estar cortando mais, então, você melhora a produção, você
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
83
produz mais com o mesmo número de pessoas, fazer um analogia, igual é
feito nas automobilísticas como na petroquímica: investe para você produzir
mais e com o mesmo número de pessoas. Investimento em produção, você
aumenta produção, mas não significa um aumento em postos de trabalho.”
Mas não foi só durante a privatização, ele informa que as paradas45 da
empresa se dão em meio a um processo de muita tensão, envolvem muita
responsabilidade e que, com o excesso de cobranças, muitas pessoas
perdem o equilíbrio, não suportam as pressões e, devido a atritos com a
chefia, acabam sendo dispensadas:
“Sempre depois das paradas é sempre quando ocorre os cortes, mesmo
independente, que a gente tem essa experiência, independente se era
previsto uma redução, isso não é redução, depois dessas paradas tem uns
cortes, é redução de pessoas, que é devido a esses atritos que tem em
época de parada.”
Embora demonstre sua adaptabilidade ao clima de tensão no trabalho,
tanto no que se refere à realização das atividades de alto risco, quanto no
que se relaciona à experiência de trabalho em períodos onde a
competitividade se acirra, como durante a privatização, a reestruturação e
nas paradas, ele deixa claro que é difícil superar essas situações. Elas exigem
mais empenho dos trabalhadores, uma habilidade a mais em lidar com o
stress, além do fato de ser necessário exercer bem sua função.
Depois do processo de enxugamento, mesmo com a longa experiência
de Bira, e considerando que ele deseja continuar desenvolvendo sua carreira
no setor petroquímico, as perspectivas não são promissoras. A automação da
fábrica deu-se tendo por base uma estrutura de produção bastante reduzida:
7 operadores de campo, 4 operadores de painel, um operador 3 e 1
supervisor. Com isso, mesmo que ele tencione subir de cargo, as chances
são limitadas, se levarmos em conta que a rotatividade do setor é baixa e
45 Como a empresa trabalha com o sistema de produção contínuo, depois de um período de funcionamento, o sistema de produção de toda fábrica é interrompido para realizar a manutenção. Esse processo é denominado parada de manutenção. Para mais informações, consultar Guimarães (1998) e Rizek (1994).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
84
que as pessoas permanecem durante muitos anos exercendo a mesma
função. Conforme ele mesmo diz:
“Metas dentro da empresa sim , porque tem outros cargos, como
operador 3 e supervisor. Só que é difícil, porque principalmente hoje nós
somos 7 operadores de campo, 4 de painel, um operador 3 e um supervisor;
então, vai afunilando, geralmente os cargos, às vezes, leva muito tempo
para aparecer a possibilidade de uma outra mudança. Às vezes, você pode
estar até preparado, mas não tem a vaga; você fica lá, naquela mesa.”
Além disso, o fato de só existirem mais três empresas petroquímicas
limita suas chances de assumir uma vaga, com cargo superior, em outra
empresa do ramo. Conforme ele diz, raramente aparece uma vaga:
“Lá dentro mesmo, é porque o próprio mercado de trabalho hoje, na
nossa função, o mercado de trabalho aí fora não tem opção, não aparece
vagas, teria que ter outras petroquímicas, ou outras refinarias, para você ter
opção de trabalho, então a opção de mudança é interna.”
Significado do trabalho e influência do desemprego no
cotidiano Um dos momentos mais tocantes dessa entrevista foi quando
começamos a abordar a questão do significado do trabalho. Pergunto a Bira
sobre o assunto, que responde:
“Hoje a pessoa que não tem trabalho é marginalizada perante a
sociedade. Eu acho que o trabalho é tudo, com relação até mesmo à
estrutura familiar. Se a pessoa ficar sem trabalho hoje, as separações,
porque o dia-a-dia que a gente, até a experiência mesmo de pessoas que
perdem o emprego, fica marginalizada na sociedade, há separações, porque
começa a faltar coisas, então, acho que o trabalho hoje nas pessoas acho
que é tudo.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
85
Salta aos olhos o fato de que a primeira explicação que lhe ocorre
sobre o significado do trabalho baseia-se na ausência do trabalho. Por isso,
busca no exemplo de quem não tem emprego o substrato fundamental para
falar do significado do trabalho. É assim que mostra como o trabalho é
importante. Se “a pessoa que não tem trabalho é marginalizada
perante a sociedade”, logo “o trabalho é tudo”! Perguntei sobre
trabalho e ele fala sobre desemprego.
A partir dessa ideia, Bira cita as conseqüências que o desemprego traz
à vida de uma pessoa: na família, separações; a falta de emprego implica
também a impossibilidade da subsistência – “começam a faltar coisas”. Por
isso, a ausência de emprego deixa a pessoa à margem da sociedade”. É
nesse sentido que o trabalho é tudo! De certa forma, com essa assertiva, ele
abona o argumento de Cabannes (2002) que vê no trabalho uma forma
essencial de estruturação de pessoas e das relações sociais. Outro aspecto
importante é que, conforme Ledrut (1966) e Guimarães (2002a) a expansão
do desemprego acaba por imprimir mecanismos regulatórios sobre o
ingresso das pessoas no mercado de trabalho.
Durante a conversa, aqui e ali, fui percebendo como desemprego e
trabalho aparecem juntos em vários momentos de sua fala. Talvez a
percepção de que o alto nível de desemprego implique maior exigência dos
empregadores em relação ao desempenho de seus empregados o tenha
tornado mais resistente às pressões, mais bem preparado para o cotidiano
do trabalho na empresa, e, por conseguinte, mais competitivo. Isso fica claro
na já citada frase:
“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo
desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de
desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa
insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as
exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.”
Como uma sombra, o desemprego faz-se presente, no âmbito das
relações sociais de trabalho. Por isso, provoca insegurança no cotidiano de
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
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trabalho, e isso independe do fato de o empregado executar bem a tarefa
que lhe cabe.
Nesse sentido, o desemprego tem um papel funcional na estrutura do
emprego. A percepção de que, lá fora, as chances de trabalho remunerado
estão mais escassas altera o comportamento dos trabalhadores. Eles
empenham-se para cumprir as exigências a mais, feitas pelos empregadores.
Perguntei se o fato de perceber que o emprego está mais escasso altera a
situação do trabalhador petroquímico e Bira responde o seguinte:
“Muda, muda, faz mudar, você tem que ser um bom funcionário para
você se manter empregado, vai, tá fazendo um bom trabalho. Você se
mantém empregado porque você sabe que se você sair da empresa hoje,...
se eu sair da Petroquímica, você não tem perspectiva de arrumar um outro
emprego no ramo petroquímico e até mesmo com o mesmo salário. Então,
hoje o emprego em si é escasso.”
O stress que provém do excesso de cobrança no trabalho, muitas
vezes, interfere na relação familiar. Segundo meu interlocutor, mesmo que
se esforce pra não deixar transparecer os conflitos e problemas no âmbito do
trabalho, às vezes, escapa. Isso se estampa nas atitudes cotidianas. Como
ele diz:
“Ah, a impaciência, assim, de alguma coisa, não fez isso, não fez
aquilo...”. E continua exemplificando, “A gente fica mais exigente, até
mesmo para...// com relação a roncar, essa é mais a parte de intimidade.
Tem vezes que você tá no serviço, que foi um dia bem atribulado, a mulher
reclama, 'você roncou essa noite prá caramba, né?', então...”.
Bira mostra que esse sintoma de que a rotina de trabalho influencia o
cotidiano em casa é partilhado por outros colegas do trabalho: “Tá
associado, até hoje mesmo eu tava conversando com um amigo sobre isso
ai, ele falou: “tem mesmo, tem dia que você cai na cama, você tem isso”. É
o dia que a esposa reclama que você roncou, e tem dias que você dorme
que você tá tranqüilo.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
87
Essa fala revela que os conflitos e dilemas, próprios da relação de
trabalho, não se limitam ao âmbito do trabalho. Eles ampliam-se para o
campo das relações familiares e, muitas vezes, interferem nas relações de
amizade também. No caso estudado, por ser organizado em turnos, o
trabalho parece influenciar ainda mais os outros âmbitos sociais, moldando o
comportamento das pessoas nas relações sociais. Da perspectiva de Bira, o
trabalho “amarra a vida social”. A respeito disso, ele dá exemplos: “Sim, a
vida social, por ser trabalho noturno você fica meio limitado. Aí uma festa,
você tem que se programar em função do trabalho noturno.”
Meu interlocutor mostra como a realidade do trabalho de turno molda
seu cotidiano:
“É, você acaba se adaptando porque, vai, tem esse caso do turno,
então, quando tem alguma coisa assim você olha 'bom, tal dia eu tô
trabalhando'. Você acaba se conformando, porque se você fosse estar se
frustrando fica difícil, então, você acaba se habituando, sabe que no Ano
Novo você vai estar trabalhando, no Natal... Então, no meu caso, eu acabo
encarando de uma forma normal. Você sabe que a função, o horário do
turno exige isso, então você não pode estar se, pô.. tentando....// tem
muitas pessoas, a gente vê no próprio turno que fica tentando arrumar uma
troca de horário com uma outra pessoa, quer privar uma outra pessoa pra
ele estar...”
Bira entende que o tipo de trabalho que realiza restringe sua vida social
e aceita essa realidade com resignação. Isso porque foi uma escolha pessoal
atuar no setor petroquímico e, por conhecer bem a natureza da atividade
que exerce, ele dá a entender que encara com “naturalidade” os prós e
contras de seu ofício. O trabalho de turno também limita o círculo de
amizades. Conforme ele mesmo assevera:
“É, você acaba tendo um vínculo, a gente não tem muitos amigos,
porque, veja bem, você procura ter amizade com as pessoas do seu turno,
ou turnos que coincidem, folgas. Lá no clube mesmo, no clube que eu vou
geralmente tem muitos amigos que trabalham comigo, então, o vínculo,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
88
você começa a moldar sua vida ao horários de turno ou também as
pessoas que trabalham com você no turno ou no turno que coincide as
folgas, então saiu disso já...”
Além de dar contornos ao comportamento das pessoas no exercício de
sua atividade, o trabalho molda também a forma de agir das pessoas em
outros âmbitos. Molda a vida como um todo.
Mudança da atuação do Sindicato em função do aumento do
desemprego
Como a maioria de seus colegas, que participaram da pesquisa, Bira
não tem nenhum tipo de vínculo com o sindicato. Entretanto, ao contrário da
maioria, considera que a organização sindical tem papel importante na luta
pelos direitos dos trabalhadores e discorre sobre sua participação nas
atividades sindicais: “A gente participa não ligado, tendo alguma função no
sindicato. Isso aí eu nunca tive participação sindicato, uma função interna no
sindicato, a gente participa assim na época de dissídio, essas coisas, é que a
gente freqüenta o sindicato pra ter assembléia, essas coisas, pra haver a
negociação.”
Bira entende que, hoje em dia, o principal papel do sindicato na vida
dos trabalhadores é o de viabilizar a negociação com a empresa. Conforme
diz: “Eu acho que pra negociação, porque se não houvesse o sindicato eu
acho que a gente não teria muito, eu acho que os benefícios que a gente
tem hoje acho que não teria.”
Ele atribui ao sindicato um papel estratégico na conquista de ganhos
salariais e benefícios sociais para a categoria dos petroquímicos. No entanto,
percebe que o amplo contingente de desempregados limita as possibilidades
de ganhos ou conquistas dos trabalhadores: “ (...) hoje em dia a gente não
se tá, muitas vezes não se negocia salário e sim benefícios porque até
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
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mesmo com a oferta de mão-de-obra, os empresários eles andam
anos na nossa frente, então hoje em dia...”
Aqui também há uma referência ao fato de que, depois da década de
1990, em termos de renda, houve ganhos via salário indireto46, como, por
exemplo, mediante o PLR – Participação nos Lucros e Resultados. Nesse
sentido, afirma que, nas negociações relativas às condições de salário e
trabalho, os empresários sempre têm uma posição mais favorável devido ao
alto nível de desemprego, no mercado em geral:
“Mais favorável pra eles. E talvez você coloca 'vamos te dar um
benefício aqui'. Na época da negociação salarial a gente negocia beneficio e
não salário, porque hoje ter ganho real de salário agente não tem. É sempre
reposição da inflação do período, hoje há muito negociação de benefício e aí
sim, até mesmo do emprego, que é negociado hoje na época do dissídio.”
Bira compara o papel do sindicato nos diferentes períodos de sua
história na empresa: quando ingressou e hoje em dia. Percebe que, antes, o
sindicato era mais combativo. Hoje em dia, isso não é mais possível devido à
escassez de emprego. Sobre isso ele diz: “Ah, houve mudanças; naquela
época o sindicato era mais radical, né? Tinha muito radicalismo então
pra luta pra briga. Hoje não, hoje tá fazendo uma melhor negociação
[entre o sindicato], o sindicato não é tão mal visto como era na época”.
A mudança de postura do sindicato, no sentido de ser mais mediador
do que combativo, é bem vista por Bira. Isso pode apontar uma inflexão na
forma como a categoria à qual pertence – empregados do setor petroquímico
– vê o sindicato. Quer dizer, provavelmente, ele expresse a forma como os
trabalhadores desse setor, ou alguns deles, vêem as negociações trabalhistas
na nova conjuntura. De sua perspectiva, a postura mais mediadora dos
representantes dos trabalhadores propicia uma aproximação maior com a
empresa: “Antes as pessoas do sindicato nem, não participavam
internamente da empresa. Hoje, a gente tem negociações de PLR –
46 Guimarães (1998) traz informações mais precisas sobre a variação dos salários dos trabalhadores petroquímicos.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
90
Participação nos Lucros e Resultados e tudo e tem a participação mais
atuante dos sindicatos.” [Do seu ponto de vista] “isso é um ganho para os
trabalhadores.”
Essa seria para meu interlocutor uma forma de defender os empregos,
uma vez que, adotando a postura negociadora, os dirigentes sindicais evitam
atritos com a empresa e evitam as demissões. Tal posicionamento contrasta
com o antagonismo que orientava a tomada de posição das lideranças
sindicais desde o surgimento da classe operária até pouco tempo atrás.
“Ao próprio mercado de trabalho, aquela transição que houve,
que antes tinha mais emprego, as pessoas já ia mais, 'então eu saio
daqui..' ultimamente essa mudança é devida à falta de opções da pessoa ter
outro emprego; então, procura-se mais pra, na época de dissídio..evitar
atrito... e pra evitar demissões.”
Com essa perspectiva, meu interlocutor demonstra uma inflexão
recomendável de escopo do sindicato. É como se tivesse dizendo que não
existe mais espaço para haver uma postura defensiva de direitos, no sentido
de lutar pelos direitos ou reivindicações dos trabalhadores. Quando muito,
deve-se buscar manter os empregos, mesmo que a situação seja
relativamente mais precária que antes.
O trabalho como sentido da vida
“O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcinário ela é dançarina
Quando pego o ponto ela termina
Ou quando abro o guichê
É quando ela abaixa a cortina
Eu sou funcinário, ela é dançarina
Abro meu armário salta serpentina
Nas questões de casal não se fala mal da rotina
Eu sou funcinário ela é dançarina
O seu planetário
Minha lamparina
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
91
Ou quando tchum no colchão
É quando ela tchan no cenário
Eu sou funcinário ela é dançarina
No ano dois mil e um se juntar algum
Eu peço uma licença e
E a dançarina enfim já me jurou
Que faz um show pra mim...”
Chico Buarque,
Ela é dançarina / Almanaque
Beto: 50 anos, casado, vive com a mulher e seus três filhos em São Paulo.
Tem segundo grau completo e atua na Petroquímica União, onde exerce a
função de operador petroquímico, desde 1982. Começou a trabalhar cedo,
fazendo pequenos bicos, em atividades diversas. Depois, aos 14 anos,
ingressou como Office-boy no setor bancário, onde atuou por 12 anos, foi
proprietário de um bar, prestou concurso pra escrivão da polícia e trabalhou
como auxiliar de carga na Receita Federal. Quando ingressou na PQU,
conseguiu obter retorno satisfatório de seu empenho no âmbito do trabalho.
Beto é um homem de estatura alta, de tipo magro. Tem cabelos
levemente enrolados que já vão rareando em sua cabeça, avisando de ante-
mão a calvície. Os olhos vivos e escuros escondem-se atrás dos óculos que
lhe conferem um ar severo, meditativo e curioso. Durante a entrevista, fez as
vezes de um de contador de história. Minhas perguntas eram motes para o
almanaque que se abria mediante sua paciente explanação.
Como no caso de alguns colegas, Beto nasceu em uma família
numerosa de sete irmãos. O derrame que acometeu seu pai, ainda no
período de sua infância, obrigou-o a ingressar muito cedo no mercado de
trabalho. Conforme ilustra, mesmo tendo sido precoce, o trabalho era tudo!:
“Ah, isso é tudo né!, uma pela necessidade, porque meu pai teve
derrame muito cedo. Eram sete irmãos: o meu irmão mais velho e eu e mais cinco irmãs. Meu pai teve derrame novo e minha mãe foi trabalhar, foi trabalhar de costureira lá na Augusta. Então, era minha mãe trabalhando e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
92
nós tudo em casa, aí era aquela dificuldade, e meu pai doente ainda. Então, qualquer coisinha que aparecia já ia eu e meu irmão pra dar conta do sustento da casa. Tínhamos uma casa própria, que meu pai já tinha comprado; mais tarde fomos desapropriados pra fazer a Bandeirantes (Ele fala da situação rindo...) .”
Beto destacou-se entre os entrevistados por sua leveza e minudência
no falar. É assim, com ilustrações, às vezes trágicas, outras cômicas, que ele
vai deslindando o fio de sua trajetória de trabalho. Talvez por ter sido
temporão nesse campo e por seu estilo reflexivo expresse com tanta clareza
sua crítica ao mundo do trabalho. Antes de ingressar na PQU, passou pelo
setor bancário, onde percebeu que as escassas oportunidades de crescer em
sua carreira – apesar da dedicação a seu ofício – poderiam ter correlação
com o fato de ser negro. Desde 1982 na PQU, atualmente no setor de
Utilidades, ele também passou por outras funções. Permanece no cargo de
operador I desde quando ingressou na empresa.
Embora se considere um funcionário dedicado, indica que não expandiu
seus estudos pelo fato de a vida em família não admitir mais ausências além
das que o trabalho de turno lhe impõe.
O trabalho como forma de aprender o mundo
Segundo Beto a experiência do trabalho implica várias formas de
aprendizado. Proporciona conhecer pessoas, mas não só, ensina também a
importância de “ser útil”. A utilidade do trabalho a qual ele se refere tem
sentido semelhante a “importância social”. “Ser útil “ é como se fosse “dizer
a que veio”. Ou seja, a realização de uma atividade permite a assunção de
um ofício, de um lugar social e isso dá sentido á vida. “O crescimento tem
que vir com o tempo. Não precisa começar cedo, mas você tem que ser útil.
A utilidade de você tá vivo é que vale a pena”.
Ele pondera que, ao contrário do ócio, o aprendizado /exercício de uma
tarefa exige esforço, e essa dedicação resulta numa espécie de realização
pessoal devida a aquisição do conhecimento de um ofício. Explicita o
significado do ingresso no mercado de trabalho:
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
93
“– É, de aprendizado, conhecer pessoas....//. Eu acho que muito jovem
não tem //, tá perdido aí. Mas, eu acho que eles nunca tiveram contato com
um emprego pra conhecer realmente o sentido de ser útil. Por isso que eles
ficam vagabundando. Acho que nunca tiveram oportunidade de pegar um
serviçinho, pra aprender a resolver os problemas. Entendeu? tem aquela
preocupação. É o tal negócio, pra ser vagabundo não precisa aprender,
porque não tem o que aprender pra ser vagabundo. Pra você trabalhar você
tem que aprender a trabalhar, você tem que saber a necessidade de
trabalhar, o porquê daquilo. A relação entre você fazer alguma coisa, aquilo
servir pra alguém, que te paga por isso, o patrão exigir que você trabalhe
mais pra ele ganhar mais, pra poder ganhar mais também”.
Por outro lado, o trabalho é visto como atividade disciplinadora, uma
vez que exige certo adestramento “tem que aprender a trabalhar”. Mas além
disso, é fundamental saber para que serve aquela atividade, sua utilidade e
importância. Isso informa o sentido social do fazer. É assim que se torna
possível mensurar o valor da tarefa que se executa em termos de uma
remuneração, algo palpável, que se transforma em meio de troca.
Por fim, ele mostrou o trabalho como forma de mediação com o
mundo, um meio que permite o acesso a relações de outra circunscrição que
não a profissional, como por exemplo as afetivas de amizade e amor. E, além
disso, a atividade laboral viabiliza um ganho financeiro que garante a
subsistência:(...) E também você se relacionar com o mundo. Você pega o
dinheiro, você sai com os amigos, aí você conhece uma namorada, quer
dizer, tem todo um sistema que vai organizando.”
À semelhança de outros entrevistados, ele se aproxima da formulação
de Cabanes (2002) que entende o trabalho como uma referência
fundamental na estruturação das pessoas e das relações sociais. O
depoimento de Beto faz pensar que, de seu ponto de vista, as identidades
profissionais são formas de reconhecimento que não se limitam ao âmbito do
trabalho, servem como parâmetro para formulações identitárias no campo
social, de maneira ampla. Isso porque, além de constituir um modo de
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
94
definir a posição das pessoas na sociedade, a situação de emprego pode
informar sobre comportamentos, hábitos, maneira de pensar, sentir e julgar
dos indivíduos, moldados a partir de sua vivência com os diversos grupos.
Ela pode também dar sentido à vida das pessoas.
O respondente busca na experiência dos colegas aposentados o
exemplo vivo de que uma vida sem emprego pode ficar desprovida de
significado:
“Pra mim é isso aí. Eu penso assim. Talvez, todo mundo que queria
ficar rico e não fazer nada, ou então quem pensou em se aposentar e ficar
só pescando, não vivesse feliz. Meus colegas que aposentaram, faz mais de
dez anos, voltam tudo na firma pra pedir serviço, trabalham nas firmas
contratadas, eles não guentam ficar em casa. Eles viajam durante um ano.
No dia seguinte eles tão lá: “e aí, não tem nada pra fazer?”. Geralmente
quando tem parada, a firma recebe muita mão-de-obra. Aí a firma recruta
todos os aposentados. Quando tem parada você vê todos os aposentados.
Os caras voltam todos a trabalhar, você acredita? Então, eles sentem falta.”
A formulação de Beto, efetivo da Petroquímica, sobre o significado do
trabalho para os indivíduos se assemelha à de Chico, que atua na mesma
empresa como terceirizado. Este chegou a se afastar da atividade
profissional, e agiu exatamente do modo como Beto descreveu acima.
Decidiu voltar à ativa na empresa, mesmo não sendo mais efetivo. Com isso,
recuperou o estímulo pela vida que havia perdido quando se aposentou.
A experiência do trabalho como reveladora da realidade
Ao iniciar a discussão sobre a importância do trabalho em sua vida,
percebi como para Beto, a incursão no campo profissional lhe abriu
horizontes. O trabalho resultou em aprendizado. Mas ele se refere a
aprendizagem que se adquire mediante o conhecimento aprofundado das
relações humanas e das pessoas, e não se limita a falar da aquisição de
conhecimento profissional. Conforme se vê: “Primeira coisa: conhecimento,
conhecimento das pessoas. Você em casa não conhece as pessoas. Você
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
95
conhece seu pai, sua mãe, seus irmãos, tem um relacionamento. Mas,
pessoas mesmo, política... Quando você sai, você conhece política, racismo,
um monte de coisa!”
É interessante notar que, de sua perspectiva, o trabalho e as
adversidades que dele decorrem estão para a vida pública assim como a
família está para a vida privada. Entende que o âmbito familiar é o lugar do
aconchego e da harmonia enquanto que “a rua”, onde o trabalho se sucede,
é o das adversidades, das coisas erradas e certas, talvez pudesse dizer, da
insegurança. “O que você sente no trabalho você não sente em casa. Em
casa é um aconchego! Na rua você aprende como o povo reage a certas
atitudes, no serviço você vê as falsidades, você vê as coisas certas, as coisas
erradas, você tem toda uma linha de pensamento das pessoas.”
Nesse trecho da fala de Beto surgem elementos que indicam a distinção
entre o que seria “moralmente” aceitável, ou seja aquilo que ele julga certo,
e o que é errado. O trabalho seria, portanto, o lugar das coisas chãs, e a
casa, o da harmonia e do que é certo.
Mais do que viabilizar a diferenciação entre os meios onde as pessoas
atuam, lutam, vivem, a separação entre as esferas pública e privada,
consiste em um sistema criado para dar ordem a um mundo que parece
estar em pura desordem. O mundo fora de casa se apresenta como o da
desorganização, das incongruências, das injustiças e da insegurança:
“As pessoas prejudicam as outras pra obter cargos, obter vantagens e,
mesmo o próprio sistema, ele é assim cruel mesmo! Principalmente nós
né, pobres, negros, sempre foi muito difícil conseguir,
principalmente promoções. Eu lembro que em minha época eu já tinha
colegial e tudo, mas não conseguia ser promovido, isso dentro do Banco.
Todos eram promovidos, quando chegava na última chance, pra promover,
falava da escolaridade. Aí eu falava ”já tenho o colegial”, O Rh dizia: “ah!,
mas é que é necessário o ginásio.” Na verdade isso era preferência da
pessoa que tava lá escolhendo, então muito tempo foi assim. Um dia eu me
rebelei, fui mandado lá pra matriz.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
96
Refere-se ao sistema [capitalista] como sendo injusto, “cruel”, e, nele,
as pessoas tenderiam a se comportar despidas de valores morais, para
obterem “vantagens” em proveito próprio. Mesmo não se referindo, de
maneira direta, ao termo caráter, Beto introduz a discussão sobre o tema,
sutilmente. Dá a entender que a competição intrínseca a esse sistema de
produção leva as pessoas a se comportarem de maneira semelhante.
Imbuídas de espírito competitivo, agem distanciadas dos valores que se
baseiam na lealdade e na confiança – que se consolidam ao longo de um
tempo. Assim, pautadas por interesses provisórios, para conquistarem seus
objetivos, mostram-se capazes de prejudicar as outras. “As pessoas
prejudicam as outras pra obter cargos”.
No entanto, Beto atenta para o fato de que as condições são desiguais,
entre os que atuam no mercado de trabalho, o que favorece alguns em
detrimento de outros. Sua experiência pessoal demonstra isso:
“Principalmente nós né, pobres, negros, sempre foi muito difícil
conseguir, principalmente promoções”. Por essa razão, alguns levam
mais vantagens que os outros na construção da carreira. A descrição que faz
sobre sua experiência mostra que, mesmo tendo a qualificação necessária
para receber promoção, suas chances eram sempre postergadas.
A crítica de meu interlocutor acerca de suas chances profissionais
corrobora a tese de que não apenas os critérios aquisitivos como educação
e formação profissional são empregados pelo mercado na seleção de
pessoas. Características adscritivas, não passíveis de escolha, como cor da
pele e etnia também são utilizadas nos procedimentos seletivos. Nesse
sentido, a desproporcionalidade de oportunidades entre os que concorrem a
uma vaga no mercado não resulta apenas das assimetrias nas condições de
competição, mas de um sistema de desigualdades que se erige no processo
de definição de parâmetros de escolha, coligidos em termos de
representações e que está na base da distribuição de empregos. Ou seja,
são criadas por quem faz essas escolhas47.
47 Ainda que seja possível admitir a existência de desigualdade de oportunidade associada à questão racial na experiência acima relatada, esse tema é complexo e para discutí-lo com acuidade seria necessário um estudo específico, levando em consideração o contexto em
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
97
Racismo e desigualdade de oportunidades – quem pensou
nisso antes?
Ao discorrer sobre a importância do trabalho em sua vida, Beto mostra
sua crítica às desigualdades de oportunidades entre as pessoas que
concorrem a uma vaga de emprego. Com isso, meu interlocutor envereda no
tema da discriminação racial. Foi quando ainda estava no Banco que, sentiu
na pele a questão da discriminação:
“É, eu trabalhava na agência Vila Mariana, aí o gerente começou a
‘criar caso’, porque ele não tinha motivo. Eu fazia o serviço direitinho, não
tinha motivo, entendeu! Pegou um arquivo de lá do banco, falou que tava
que ocorre. Tal procedimento evita que se incorra no erro de fazer conclusões infundadas ou simplistas. Sobre esse tema um importante estudo desenvolvido é “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan Fernandes. O autor mostra o desajustamento estrutural dos negros em relação aos novos arranjos sociais do final do século XIX, no regime competitivo de classes determinados pela indústria em formação em São Paulo. Talvez se pudesse inferir que aquele contexto tenha influenciado a configuração atual sobre o mercado de trabalho, mas seria necessário estudo detido a esse respeito. Na atualidade, em “Classes, raças e democracia”, Antonio Sérgio Guimarães discute questões importantes dos conflitos originados na problemática da raça. Ele aponta o insulto racial como um dos rituais mais perversos do nosso cotidiano, presente nas relações entre os grupos sociais no Brasil, e que o sofrimento individual gerado pela inferirorização, embora revele uma dimensão determinante na criação de subjetividades, nem sempre foi abordado de maneira adequada pelas ciências sociais. (GUIMARÃES, A. S., 2002). É nos diversos ambientes sociais, entre os quais o do trabalho, que se criam as condições para o que ele denomina institucionalização da inferiorização e a desigualdade de oportunidades relacionada à questão racial viabiliza esse processo. Isso é visto na experiência de Beto, o entrevistado. Alguns dados recentes relacionados à questão do emprego e desemprego podem ser reveladores das desigualdades de oportunidades relacionas aos problemas raciais. O “Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho”, realizado pelo Dieese, revela que a discriminação racial é um fato cotidiano que interfere em todos os espaços do mercado de trabalho brasileiro. Diagnostica que os indicadores relativos à questão do emprego são sistematicamente desfavoráveis aos trabalhadores negros, seja qual for o aspecto considerado, o que indica a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos. O estudo feito nas regiões metropolitanas do Brasil, com dados válidos para o ano de 1998, indicou que no total das regiões, 50% dos desempregados eram negros, o que corresponde a 1.479.000 pessoas, naquele ano. Em São Paulo os negros desempregados eram 650 mil pessoas e representavam 40% dos desempregados desta região metropolitana. Além de as taxas de desemprego serem maiores para os negros (negros e pardos) do que para os não-negros (brancos e amarelos), segundo o mapa, a desigualdade que caracteriza a situação dos negros se evidencia quando comparados os rendimentos entre as duas raças, pois os dos negros equivalem, em média, a cerca de 60% dos auferidos pelos não-negros (http://www.dieese.org.br). Estudos do Dieese e Seade, em 2000, a PEA - População Economicamente Ativa totalizava 9,21 milhões de pessoas, das quais, 1,61 milhões estavam desempregadas. No mesmo ano, a taxa de desemprego era 20,9% para não brancos e 15,9% para brancos. (http://www.seade.gov.br).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
98
bagunçado e jogou no chão pra mim arrumar. Aí eu falei “não vou arrumar
isso aí, você que se vire e arrume!”. Ele achava que era insubordinação, eu
falei “não vou mesmo”! Eu não dei mole. Eu fazia meu serviço certo, o
gerente tinha acabado de chegar, aí me chamaram na matriz. Lá, os caras
falaram: “mande ele pra cá, que a gente conversa com ele”. Mas eu acho
que era tudo combinado né? Ai eu fui pra lá pra trabalhar.”
Meu entrevistado mostrou que, os princípios de escolha profissionais se
unem aos de cunho pessoal para nortear a conduta das pessoas no cotidiano
de trabalho. O comportamento discriminatório da chefia na repartição onde
atuava revela também que os fundamentos dessa escolha nem sempre são
explícitos e estão impregnados de valores que se consolidam ao longo da
vida em âmbitos como o da família e o da escola, fora do escopo
profissional. De sua perspectiva, seu chefe agiu motivado pela ideia de
mudar a “aparência” do departamento em que atuava, queria trazer
mulheres para trabalhar ali. Com essa justificativa, Beto maquia o problema
principal da atitude de seu chefe – racismo no âmbito do trabalho – evitando
discuti-lo a fundo.
“Aí também eu desenvolvi meu serviço normal, não tive nenhuma
reclamação, como sempre, não tinha motivo né?, não tinha nenhuma razão.
Acho que ele queria mudar a cara da repartição, inclusive naquela
época não entrava mulher no banco. Aí começou a entrar mulheres,
então acho que eles queriam mudar o visual.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
99
Apesar das controvérsias no primeiro departamento em que trabalhava,
Beto teve outra chance de crescer profissionalmente quando foi transferido
para a matriz da empresa, onde pôde exercer seu ofício de maneira
satisfatória, tendo seu empenho reconhecido profissionalmente. Estava
equivocado quando pensou que a transferência para a matriz era uma forma
de represália (o passo inicial para seu desligamento), pois foi lá que recebeu
sua promoção – tornou-se chefe – e permaneceu por muito tempo naquela
seção. Fala disso com certo orgulho:
“Naquela época eu era escriturário. Aí eu fui pra matriz. Aí passou um
ano e me promoveram a chefe de seção. Mas, é uma coisa que você nem
espera né?. Eu achei que eles tinham me mandado ir pra lá pra me
encostarem, ou então me mandarem ir embora, aí fiquei de chefe de seção,
aí fiquei um tempão, fiquei até o fim lá, como chefe de setor de ordem de
pagamento! A minha mãe sempre falava: “há males que vêm pra bem”, “o
que é do homem o bicho não come.”, “vai, segue o seu caminho e pronto”.
Aí fiquei e só saí em 81, que teve aquela recessão. Eu achei até justo, eles
optarem por deixar os caras casados. Eu tava solteiro né!”
Ao avaliar sua trajetória profissional, Beto demonstrou satisfação por
ter ingressado na Petroquímica. Foi lá que conquistou o retorno profissional
esperado, onde seu empenho e dedicação foram reconhecidos,
corresponderam a suas expectativas. Na comparação com as outras
experiências de trabalho, a incursão na empresa petroquímica ganha de
longe, significou o reconhecimento de sua atuação como empregado:
“A PQU foi muito melhor porque ela deu tudo que eu precisava. As
outras não deram. As outras, além de eu estar na fase de conhecer pessoas,
de conhecer tudo, eu nunca tive um retorno satisfatório. Você nunca tá por
cima, sempre tá por baixo, quando você consegue alguma coisa, você
empatou. É uma política de desqualificar. Tudo que você faz não tá bom,
não tá suficiente. É, tá bom, mas podia ser melhor.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
100
O tempo de atuação na empresa lhe deu segurança na carreira. Ele
superou da fase de “conhecer pessoas”, aprendeu a execução de sua tarefa,
passando a exercê-la com propriedade. Além disso, seu relato indica que a
avaliação do próprio trabalho por seus superiores é satisfatória, o que gera
certo contentamento. Tudo isso contrasta com o que vivenciou em outras
empresas, que não proporcionaram segurança em nenhum dos aspectos
relacionados aqui.
Apesar de não ter sido mencionado por ele, suponho que a satisfação
de Beto em relação ao emprego também passe pela questão dos processos
seletivos. Tanto que ele critica a falta de clareza nas seleções às quais se
submeteu. Talvez, o fato de ter passado por um concurso para ingressar na
empresa confira mais legitimidade à escolha de candidatos feita ali. A forma
severa e transparente de avaliar candidatos, adotada pela PQU, também
serve para corroborar sua “competência profissional”. Isso tudo contrasta
com a experiência que obteve ao se sujeitar a diversos exames de seleção.
Em muitos concursos e avaliações, os procedimentos não eram claros, o que
faz suspeitar dos resultados. Como exemplifica:
“Engraçado que eu fiz um curso na academia de polícia. Fiz pra
escrivão. Fui lá, eu trabalhei com banco 12 anos. Aí tinha aquelas máquinas
de bater (teclar), datilógrafo. Eu ganhava tudo! O cara podia dar o que ele
quisesse. “Dá esse texto aí, tem 20 páginas, vamos ver em quanto tempo
você vai fazer”. Eu ia lá e ninguém ganhava de mim. Aí fui lá e fiz o curso,
passei. A última prova era datilografia. Eu falei “beleza, eu tô dentro”. Mas
eu não sabia da política deles lá dentro. Cheguei na sala, a delegada falou
assim: “vocês fazem..//, o texto é esse. Vocês fazem o texto, preenchem
direitinho, não colocam nada: não coloca o nome, coloca o nome do lado ( o
entrevistado ri). Eu falei “o que?”. Ela disse: “se colocar um nome na folha,
ta anulada. Eu falei “não é possível, cara”. Você vê tanta coisa errada na
vida.”
Sua frustração devido à falta de transparência e ao freqüente uso de
formas duvidosas de avaliação de candidatos a vagas nas empresas é
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
101
patente: “Quer dizer, você vai lá, faz bonitinho, você entrega primeiro, aí sua
prova vai pra outro. Aí eu falei ”ah, não dá, deixa quieto”. Como eu to te
falando, você vai lá, faz um negócio direitinho, eles conseguem passar pra
outro, não pra você. O mérito não é seu. É fogo, é difícil!”
Apesar de afirmar que a Petroquímica avalia seus funcionários ou seus
candidatos de maneira clara e rígida, fala com reticência sobre o fato de
nunca ter mudado de cargo na empresa, depois de ter se submetido a
diversos concursos para funções superiores. Seu empenho foi em vão.
Mantem-se praticamente no mesmo posto desde que entrou lá:
“Operador estagiário, depois operador 1. Depois eu não fui mais
promovido. Eu fiz mais concursos, mas não fui promovido. Também achei
que era do sistema. A gente fica por décimos, mas já é considerável. Eu
fiquei três vezes por décimos, por décimos e uma vez fiquei por milésimos. Aí
eu resolvi não fazer mais.”
Se queixa pelo fato de ficar por décimos e até milésimos nos exames,
mas em seguida declina de sua ideia, reconhecendo que quase chegou lá!
Sabe que qualquer reivindicação nesse sentido seria em vão e valoriza o fato
de estar em uma empresa consolidada e que tem perspectivas de crescer.
“Não sei se trocaram minha prova também (risos...). Não é que eu
reclame não. Muita gente reclama e não adianta nada. Mesmo assim, ainda
vale a pena ficar. Petroquímica só tem uma aqui em São Paulo e é a melhor
ainda. Além de ser a pioneira, você vê, com toda a política que teve, depois
de ter sofrido sucateamento, ela saiu das cinzas, quer dizer, vai investir não
sei quantos R$ bilhões, quer dizer, agora vai crescer. Antes, não podia
crescer por causa do espaço, agora vai crescer mais. Então, o Lula foi lá, foi
um barato, tirou fotografia com os operadores, ele era alegre demais! Até o
meu chefe falou assim: “eu não gosto do PT, mas o Lula é uma figura
realmente carismática”. Ele chega, ele contagia as pessoas, é natural dele.
Por você saber que ele é uma pessoa de luta, que ele foi preso naquela
época, que ele sofreu aquela tensão violenta, você valoriza a pessoa. Porque
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
102
na época não tinha ninguém pra fazer isso. Os caras não tinham coragem, os
caras andavam na rua, faziam um grupinho e ficavam com medo. Os caras
tavam tudo dando risada num bar, aí passava aqueles camburão todo mundo
emudecia. Parecia que tinha passado uma coisa ruim. Uma pessoa que passa
por tudo isso e chegar a ser o presidente da república deve ser reconhecida.
Ele fez coisa boa, você vê qual o outro governo que se preocupou em fazer
bolsa, em fazer esse trabalho que eles tão fazendo? Ele foi atrás, foi no
campo pra ver o que era necessário. Quem pensou antes nisso? o Fernando
Henrique, não pensou nada! Ele pensou em ajudar os “irmãozinhos dele”,
cara de pau!”
Aqui vale fazer uma consideração. No início da análise, eu havia
decidido extrair parte da fala acima. Trata-se do momento em que ele
começa a falar do presidente Lula. A edição parecia adequada, dado que, em
princípio, eu não consegui estabelecer nexo com o início do que eu
perguntara e com a outra metade da fala. Tinha impressão de que ele
apenas fazia uma digressão, se evadia do objeto central da indagação. No
entanto, declinei da ideia inicial. Comparando as duas partes, percebi que
podia colher outros significados nesse relato. Citou a visita do Presidente da
República à empresa com deferência. Com isso, talvez buscasse dar status à
instituição e a seus funcionários.
Depois de informar sobre o entrosamento dos operadores com a
principal figura política do país, ele passou a avaliar sua biografia. Elogios
honrosos foram feitos. Coragem, simplicidade, audácia, capacidade de luta
são alguns citados. Isso me fez pensar que Beto se sentia identificado com o
Presidente. Ambos de origem humilde e batalhadores, mereciam respeito e
admiração.
Contudo, o mais importante está no final do relato. É exatamente na
figura de Lula que ele vê a possibilidade de que se faça justiça social, uma
chance de que as diferenças de oportunidades sejam diluídas. Afinal, quem
pensou nisso antes?
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
103
Processo de reestruturação e privatização
Ao discorrer sobre o processo de reestruturação, Beto mostrou que a
empresa sistematizou os procedimentos de modo a diminuir a dependência
em relação à experiência e ao conhecimento dos operadores. Fala que tudo
fico mais fácil. Agora, conforme assevera, tem tudo no computador e
“qualquer um pode fazer”, é só acessar e ele dá a instrução de como
proceder.
“Além de mudar a cabeça do pessoal, muda tudo que tem que fazer.
Antigamente você fazia uma tarefa, aí a gente ia lá no livro pra ver como
fazer. Às vezes a gente tinha que programar uma manobra que nunca tinha
sido feita. Hoje não, todas as instruções são renovadas todos os dias. Se um
setor faz uma manobra parecida, ele lança no computador, você vai lá,
acessa, programa pra fazer aquela manobra. O próprio computador te dá a
instrução de como fazer a manobra. Você vai operar um equipamento novo,
uma turbina, um equipamento novo, ele te dá todos os procedimentos que
você tem que fazer, desde segurança, até a conclusão do processo. Tem
toda uma lógica, então tem bastante treinamento com todo mundo. Eu tô
acostumado, se eu vou fazer um procedimento, eu olho como foi feito antes,
no relatório, ou então olhava numa apostila e via como fazer.”
Mesmo observando que hoje em dia os procedimentos de operação não
se baseiam mais na experiência dos funcionários, Beto não chega a
conjecturar as conseqüências disso para as relações entre os trabalhadores.
“Antes, a maioria se baseava na experiência. Hoje não, qualquer um
que entra lá, se não souber operar, pega a instrução, segue a instrução, e aí
fica mais fácil. Na firma acontece muito o seguinte: o cara sabia fazer uma
coisa, aí não passava pra ninguém. Aí dava aquela emergência e tinha que
chamar o encarregado. Assim não pode!”
A execução de tarefas ficou mais simplificada, mas se ela depende cada
vez menos da experiência e do fazer operário, provavelmente traz como
conseqüência a perda da capacidade de articulação dos trabalhadores, de
seu poder de barganha e resulta na desvalorização de sua mão-de-obra.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
104
Pode-se supor que esse contexto provoque insegurança aos empregados, o
que traz outras conseqüências como ansiedade, medo em relação ao futuro,
tornando mais vulneráveis as relações entre eles. No entanto, é preciso
considerar que, entre os operários, o modo de lidar com a insegurança é
variável e alguns podem até se sentir estimulados a exercer, com melhor
desempenho, suas funções ou buscar outras alternativas fora da empresa.
Quando perguntei a respeito das conseqüências do processo de
privatização, tive uma resposta intrigante. Parte dela eu já conhecia de
outros depoimentos, era a queixa devida à falta de informações e de clareza
do processo. No entanto, Beto trouxe à tona um outro elemento do qual, até
então, eu não tinha conhecimento. Tratava-se da venda de ações da
empresa aos empregados:
“Foi desgastante. O pessoal que dirigia não dava informação. A gente
mal sabia o que tava acontecendo. Foi incrível, que antes, eu tava numa boa
fase, o salário tava bom, o Banco do Brasil trouxe umas ações pra vender.
Aí, muita gente entrou né, aí acompanhando as ações, as ações sumiram,
foram pulverizadas.”
O entrevistado não tinha domínio sobre o processo em curso, contudo,
a partir das outras entrevistas descobri que a venda de cerca de 10% das
ações consistia em um mecanismo de capitalização, que antecedeu a
privatização da empresa. Por um lado, resultava em valorização da
corporação, pela negociação das ações em bolsa, e, por outro, produzia,
entre os empregados, a ideia de que passariam a ser proprietários de parte
da empresa. O entrevistado tenta explicitar:
“São aquelas ações de aumento de capital, sei lá, eu não entendo
muito bem. Então o pessoal ficou desgostoso. Logo em seguida veio a
privatização, então ninguém queria saber de ações. Ninguém procurou
saber. Só se sabia que aquilo lá eram ações patrimoniais, que, se fosse
vender a firma, eles tavam vendendo eles também, a mão de obra deles.
Não sabiam isso. Isso no geral da piãozada. Que acontece? ninguém se
interessou. O pessoal da administração, na época, guardou as
informações e procurou tirar proveito disso. Hoje, eles criaram uma
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
105
associação de empregados pra cuidar dessas ações. Ou os empregados
entravam nessa associação ou comprava as ações à vista. Só que quando foi
pra comprar à vista a firma tava em baixa, na recessão braba!, era no
Governo Collor. Então os caras tiveram que entrar nessa associação. Mas,
tinha que pagar ainda. Aí arrumaram um financiamento altíssimos, aquelas
contas impagáveis: Banespa e tinha outro banco de crédito, que eu não
consigo lembrar o nome. Aí esses dois bancos cobravam uns juros altos, aí
fizeram uma dívida pra pagar em quatro anos. Mesmo assim, o pessoal não
conseguia pagar, entendeu? [a esposa sugere que um dos bancos tinha sido
o BNDES], ele diz: BNDES não. São dois bancos grandes. O Banespa eu
lembro mais, o outro eu não lembro.”
Mesmo insistindo em esclarecer o trâmite da venda de ações aos
empregados, me pareceu confuso o modo como Beto explicava esse
processo. Ele lançava informações esparsas, que pareciam desconectas entre
si. “Então o pessoal ficou desgostoso. As ações evaporaram; Logo em
seguida veio a privatização, então ninguém queria saber de ações”...; “Só se
sabia que aquilo lá eram ações patrimoniais, que, se fosse vender a firma,
eles tavam vendendo eles também, a mão de obra deles”....; “O pessoal da
administração, na época, guardou as informações e procurou tirar proveito
disso”....
Na fala de meu interlocutor privatização, ações patrimoniais,
favorecimento em benefício de grupos restritos, evaporação das
ações, apareciam como se fossem peças de um quebra-cabeça, que não se
encaixavam. Nesse emaranhado de informações, chamou-me atenção um
fato: o tipo de negociação feito pela empresa, uma vez que assim ela
produzia a ideia de que seus funcionários poderiam também ser proprietários
da corporação48. Esse mecanismo introduziu uma mudança na forma de os
48 O artifício em questão faz com que os papéis de empregado e empresário pareçam idênticos. É provável que tal confusão tenha dificultado a articulação dos trabalhadores enquanto classe, dado que, ao se apropriarem das ações podiam assumir formas identitárias de proprietários e de empregados, ao mesmo tempo. Além de ter cunho excludente, a medida adotada pela empresa cria diferenciações entre os trabalhadores, uma vez que nem todos compraram ações e isso reforça ainda mais a desarticulação entre eles. Essa situação
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
106
empregados se relacionarem com a empresa. É provável que a perspectiva
de se tornarem donos da Petroquímica tenha alterado seu comportamento
no exercício das atividades que exerciam e na relação com os outros. Na
análise da fala dos desempregados, Dida fala sobre esse tema de forma mais
clara.
Busquei saber a opinião de Beto sobre o processo de privatização,
queria entender os efeitos sobre a relação entre os trabalhadores. A forma
como esse interlocutor interpretava o comportamento dos trabalhadores
podia apontar novas questões, era mais um elemento que, agregado aos das
outras entrevistas, enfeixava a maneira de pensar dos efetivos na
Petroquímica:
“O processo de privatização não foi claro, não foi transparente,
e outra, não te deu oportunidade. Dois anos antes a pessoa podia ter
feito uma poupança, ter comprado suas ações, suas, a que você tem direito,
à vista. Eu peguei meu lote, continuei pagando, pagando até onde deu,
quando eu vi, eu fiquei com metade do lote ainda. De um lote de 7.500
ações eu fiquei com um lote de 3.000. Mas por que? Com dificuldade
imposta pelo pessoal que criou a SEP (Sociedade dos Empregados da
Petroquímica), que era da administração.”
Os efetivos não tinham muitas opções de escolha, era ficar ou sair.
Quem permanecesse tinha que aceitar as regras impostas pela instituição e
saber conviver com o clima de insegurança. Mas, para além da descoberta
de que houve um processo de venda e compra das ações das empresas, e
de que ele tinha decorrido de forma suspeita, de fato, outras dúvidas me
inquietavam. Meu maior interesse era entender os desdobramentos da
privatização sobre as relações entre os funcionários. Como se sentiam
sabendo que ia ter a privatização? A resposta que eu obtive: confirma a ideia partilhada por Beck e Beck-Gernsheime de que, no contexto atual, as relações sociais se organizam fora do modelo marxiano de divisão de classes entre proprietários e não proprietários. Ou seja, a teoria de Marx não explica sozinha conflitos ancorados nas diferenciações sociais e devidos à pluralidade de sujeitos, que possuem interesses, opiniões e ideologia próprios. No exemplo em questão, o operário da fábrica passou a acumular interesses de empresário e trabalhador, podendo agir conforme os princípios de um ou outro. No bloco de análise das falas dos desempregados, esse processo é esclarecido por Dida, que chegou a participar das reuniões entre as pessoas responsáveis por ele na empresa.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
107
“Eles aceitavam. Ninguém queria, ninguém da parte da produção
concordava com isso. Mas, entre concordar, se manifestar, e perder o
emprego, o que você faria? Porque é o seguinte, nós ficamos reféns
do sistema. O Sobreiro49 que entrou lá, ele foi colocado pelo Collor lá. Foi
quando a empresa foi sucateada e que teve os acidentes graves50. A hora
que teve o maior corte foi essa época.”
É assim que Beto entende a situação dos trabalhadores, eles ficaram na
posição de ‘reféns’. A perda do emprego era o que de pior podia acontecer.
E, para evitar tal situação, era melhor se esforçar para preservar o emprego.
Mas, havia certa ambivalência nessa posição, já que eles permaneciam lá,
porém, em situação de insegurança. Ele disse também que houve clima de
terror: “Era o seguinte, tinha gente que aceitava. Na verdade, antes de ser
privatizada, teve esse clima de terror né! Um papo de que ‘eu vou mandar
embora’.” Ele detalhou o que considera ser aterrorizante “Toda hora o chefe
te chama e diz “é o seguinte: vai ter privatização”, e coisa e tal.”
Segundo a descrição feita, a insegurança e a ameaça de desemprego
se acirraram durante o processo de privatização, configurando um quadro
‘de terror’. Isso fez com que Beto buscasse alternativas. Afinal, não queria
vivenciar o desemprego novamente. “Ah, sim. Eu mesmo pensei que poderia
ser mandado embora – uma situação que eu tive e não queria ter de novo –,
e o que é que eu fiz?, eu fiz um curso de taxi.”
Mesmo percebendo que a tensão e a angústia devidas à ameaça de que
podia perder o emprego eram generalizadas, Beto encontrou sozinho, novas
alternativas de trabalho. Não aventou a possibilidade de se articular com os
colegas, em busca de uma alternativa para o problema comum à sua
categoria: “Cheguei a comprar o táxi e fiquei 8 anos trabalhando com táxi e
na firma ao mesmo tempo.(...) “Fique durante 8 anos. Quer dizer, agora eu
sou taxista. Foi em 93, em 94 eu fiz o curso de Táxi, e até 4 anos atrás eu
49 Júlio Régis Sobreiro, assumiu a presidência da Petroquímica em 1990, com o propósito de privatiza-la. (Rizek, 1994). 50 Refere-se ao acidente ocorrido em 1992, que provocou a morte de um trabalhador e a desativação parcial da empresa. Para mais detalhes, ver Rizek (1994)
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
108
era taxista também. Então, você via que as pessoas tavam mais preocupadas
em se manter do que em discutir.”
Embora a ameaça do desemprego se configurasse como uma questão
coletiva, dado que afetava os interesses de todos os funcionários, o
comportamento de Beto refletia o isolamento em torno da problemática do
desemprego. Mesmo em casa, ele evitava tocar no assunto, limitava-se a
falar o necessário. Seu comportamento confirma a ideia de Beck de que, no
momento atual, há uma tendência à individualização das perdas sociais.
Desemprego: peça-chave do sistema capitalista?
De acordo com o respondente, o desemprego deve ser visto como uma
peça de engrenagem do sistema capitalista. Ele serve como um mecanismo
de renovação dos empregos, de redução dos salários e como forma de
expansão do lucro das empresas51. Nesse sentido, é produzido pelo próprio
sistema, não é uma conseqüência de determinado contexto econômico. Beto
também assevera que a tecnologia gera desemprego. Por outro lado,
educação e qualificação provocam efeito inverso, podem ajudar uma pessoa
a se manter empregada ou faze-la crescer na carreira. Conforme segue:
“O desemprego sempre houve. No nosso sistema capitalista tem que
ter esse rodízio de emprego pra girar. Então você gera desemprego. O
pessoal novo entra e começa a trabalhar ganhando menos, e aí eles crescem
até um patamar. Aí ele é mandado embora. Aí aquela pessoa entra em outro
lugar, ganhando menos. Essa diferença faz aumentar o lucro. Isso aconteceu
comigo, quando eu tava no banco. Quando eu cheguei num patamar no
banco eu comecei tudo de novo em outra área. Isso vale também para a
tecnologia. A tecnologia desemprega. O estudo hoje é que empurra pra
cima.”
51 O fato de que o excedente de mão-de-obra provoca uma redução de seu valor e um aumento do lucro do empresário remete a um argumento utilizado por David Ricardo, quando discute que o emprego de máquinas produz excedente de mão-de-obra, e usado por Marx quando fala do prolongamento da jornada do trabalho. Marx afirma que a mão-de-obra excedente torna-se compelida a submeter-se à lei do capital. (Karl Marx, 1994). No exemplo acima, quem ingressa na empresa, para substituir a mão-de-obra dispensada, aceita uma remuneração inferior à que se pagava antes.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
109
Com base nas observações acima, meu interlocutor concluiu que o fato
de ter interrompido os estudos impediu seu progresso no campo profissional.
Mesmo assim, avalia que a distância entre o local de moradia, de trabalho e
a escola fora um empecilho para que levasse adiante os estudos. Era um
embuste.
“O mal da gente é que quando você tava crescendo no estudo você
parava, interrompia. Por que? Uma, é a própria idade que influencia. Seus
colegas chamam pra ir no bar, você sai, etc. Se quando eu tava no banco, eu
tivesse feito economia (o curso) eu teria ido para outro patamar. Parou de
estudar, aí caiu [ele se refere a si mesmo]. Fiz dois anos de um curso de
contabilidade e parei pela dificuldade. Eu trabalhava na Leopoldina, estudava
no Ipiranga e morava no Jabaquara. Não dava pra fazer, eu tava cansado.”
O entrevistado entende o desemprego como um problema natural, uma
vez que o considera peça de engrenagem do sistema capitalista. Quando
estimulado a avaliar as conseqüências do desemprego para a vida de uma
pessoa, ele destaca que atualmente o tempo foram da ativa se tem
alongado, podendo chegar a 3 anos, enquanto que o tempo que uma pessoa
desempregada tem de seguridade é muito curto (segundo afirma, é de
somente três meses)52. Essa discrepância entre o tempo de desemprego e o
de seguridade social, observada pelo entrevistado, está em consonância com
a tese, defendida por Guimarães (2002a), de que o aumento do tempo do
desemprego influencia a redistribuição dos empregos. Segundo a autora, no
contexto atual de flexibilidade das relações de trabalho, o surgimento da
categoria dos desempregados de longa duração indica mudança na forma de
conexão entre emprego e desemprego. Em países como o Brasil, a
recorrência do desemprego se apresenta como um dos principais problemas
que resulta, entre outras coisas, da escassez de empregos regulados, da
52 É importante destacar que as estimativas do entrevistado baseiam-se apenas em conclusões extraídas daquilo que observa da realidade cotidiana e não de estudos especializados. Ainda que seja impreciso, seu parecer informa sobre as evidências existentes, ou sobre o que se apresenta como real, a partir de notícias veiculadas sobre o assunto e da experiência do desemprego vivida por vizinhos, colegas e pessoas conhecidas.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
110
baixa formação dos profissionais e das novas figurações assumidas pelo
desemprego.
“Além de ser um problema natural do sistema né!, hoje em dia a
pessoa pode ficar 2, 3 anos desempregada e o seguro desemprego só
funciona por três meses. Aí é que tá o problema, isso é muito pouco! Às
vezes, você fica 30 anos trabalhando e aí o desemprego chega antes de se
aposentar. E aí você fica no vácuo. Você vai conseguir emprego onde? Então
aqui no Brasil você deixa de realimentar. Aí a pessoa não fica desempregada,
ela fica ociosa. É como se perdesse o sentido. Mesmo que você tenha
previdência privada, tudo pode mudar. Pra você ter uma aposentadoria de
R$ 10.000, você tem que poupar R$ 1.000,00 durante não sei quanto
tempo.”
Com base no exposto acima, talvez fosse possível substituir o que o
entrevistado entende como ‘natural’ por ‘estrutural’. Da perspectiva de Beto,
as principais vítimas do problema são as que, após longo tempo de
dedicação a uma empresa, ficam desempregadas. Isso porque, uma pessoa
que perde o emprego depois de incorporar hábitos culturais de uma
corporação, e já com idade superior à 40 anos (no auge de carreira),
provavelmente tem mais dificuldade de se recolocar do que outras mais
jovens e com tempo de empresa relativamente menor. Nesse sentido, são
eles fortes candidatos ao desemprego de longa duração.
Mostra que a perda do emprego, por um funcionário que tenha
dedicado boa parte de sua vida à uma empresa, resulta na perda de sentido
de sua existência. Não se trata apenas das dificuldades financeiras
decorrentes da falta do emprego, mas da ideia de que uma vida sem
trabalho fica desprovida de significado. É importante considerar que os
salários pagos aos trabalhadores da categoria petroquímica, frequentemente
permitem que mantenham um padrão de vida relativamente alto, se
comparado à média nacional. Esse fato também viabiliza que eles
redirecionem sua carreira, mediante o ingresso em outra profissão ou o
investimento em um negócio próprio.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
111
Assim, ocorreu-me discutir mais a fundo nas observações de Beto sobre
as conseqüências do desemprego para a vida de uma pessoa. Ele expõe sua
opinião a respeito:
“É, eu já vi pessoas saírem e arrumar emprego melhor. Mas, eu
também vi pessoas até morrerem, por causa de tarem desempregadas, ficar
depressivas. Mas não só porque ficaram ociosas, mas porque precisam. Uma
coisa é ficar desempregada quando tem vinte, vinte e poucos anos. Outra é
quando tem 40 anos. Pelo menos 10% de chance ele tem a menos. Além de
ser uma ingratidão do mercado, ele vai ter que começar tudo de novo, então
é muito mais difícil! A pessoa, às vezes não se prepara. Você se acomoda
num serviço porque acha que é bom. Mas, não tem garantia nenhuma,
porque o sistema capitalista precisa gerar lucro. O acionista pensa assim, ele
olha o gráfico. Se puder mandar 100, dos 500 que trabalham com ele,
embora, ele corta para aumentar o lucro.”
Ele percebe que as perspectivas de trabalho são menores para os que
passam dos 40 anos. O desemprego e a dificuldade de se recolocar são, aos
seus olhos, uma injustiça diante dos anos de dedicação à empresa, uma
“ingratidão!”.
Mas, para quem o desemprego é de fato um problema? Essa dúvida
persistia, queria saber seu ponto de vista, por isso interroguei meu
interlocutor sobre esse fato. A resposta:
“O desemprego é um problema para a família. Uma criança que tá
chorando em casa por leite, ela não quer saber se você tá desempregada,
ela quer o leite dela. Para um pai de família é problema! Aí o cara vai pra
bebida, e fica tudo perdido. O cara que ganha menos é mais prejudicado. Ele
não poupa, não tem um bem para vender. O cara que ganha bem tem uma
poupança, e quando sai de um emprego já tem outro.”
A explanação de Beto indica a percepção de que o desemprego afeta os
indivíduos de maneira desigual53. Ele aponta a renda como um diferencial
53 Conforme dito antes, Guimarães (2002a) argumenta que o desemprego atinge desigualmente os indivíduos segundo suas características de sexo, idade categoria sócio-profissional e escolaridade.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
112
importante entre os mais e menos vulneráveis ao desemprego, mas não
chega a indicar que os rendimentos superiores também podem estar
associados a uma melhor condição sócio-profissional e escolar.
Considerações gerais sobre os efetivos
Ao longo desse trabalho, algumas semelhanças entre as biografias dos
efetivos da Petroquímica se evidenciaram. A conformidade não se dá apenas
em determinadas fases da carreira deles, como por exemplo, a estréia no
âmbito do trabalho, mas em pontos de vista esboçados a respeito de
diferentes temas. Entre eles os mais freqüentes são: relações de trabalho,
importância da vida profissional, figurações do desemprego em seu
imaginário, papel do sindicato, mudanças do mercado de trabalho.
Trajetória de trabalho
Muitos dos entrevistados começarem a trabalhar cedo, ainda na
infância, mas o fato de serem temporãos nesse quesito não tornou negativa
a forma de verem o trabalho. Pelo contrário, muitos deles demonstraram
satisfação e orgulho ao falar de sua trajetória profissional e frequentemente
falam da carreira com positividade.
Vlad é um dos que começou a trabalhar ainda criança. Diz que tinha
apenas 9 anos quando inseriu-se numa atividade informal. No entanto, aos 7
já ganhava algum trocado, fazendo as camas e pequenas compras para a
pensão de dona Eulália, sua vizinha. O dinheiro adquirido servia para
comprar o pão de cada dia. Sua longa trajetória de trabalho é motivo de
orgulho, mesmo quando relata os sacrifícios que viveu. Fala abertamente
sobre isso:
“Isso, mas antes de vender essas cocadas, quando eu tinha 7 anos eu
trabalhava numa pensão. Então eu arrumava cama e ia no supermercado pra
ela. Então eu ganhava, naquela época, eu não lembro do dinheiro, mas era
tipo R$ 1 por dia, pra fazer esse serviço. Com esse dinheiro, a minha mãe já
ia na padaria e já contratava aqueles 10 pãezinhos por dia e 1 litro de leite,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
113
pra todo mundo. Então já ficava pago. Já servia pra ajudar, e isso foi antes
de vender essas cocadas. Inclusive, se você perguntasse pra uma irmã
minha, essa dona Eulália não conseguia segurar um quilo de qualquer
produto. Dava um cansaço incrível nela. Só que eu não ficava direto com ela.
Cedo eu ia, arrumava as camas, depois quando ela precisava de mim –,
como a pensão era bem perto da minha casa, era um espaço de dois
terrenos entre a pensão e a minha casa, e era aberto – então ela só gritava:
“Vlad, ô Vlad”, parecia um miado, era tipo um código. Eu ficava sempre
atento. Aí, o meu pai conseguiu trabalho na prefeitura, nessa época. Aí, tipo
assim, em 75 eu tinha 12 anos. Aí meu pai conseguiu o emprego na
prefeitura e duas bolsas de estudos. Então, eu fui estudar na Continental.
Chama Instituto de Tecnologia Continental.”
Em quase todos os relatos dos efetivos, o trabalho figura como sendo
de grande importância, meio através do qual se relaciona com o mundo,
meio de realização profissional e pessoal, fonte de saber – já que
proporciona o conhecimento do mundo – e o aprendizado de uma profissão.
Ito indicou a percepção de que o trabalho proporcionou a estruturação
de sua vida, a aquisição de uma profissão e a constituição da própria família.
Mas mostrou também que sua família de origem também teve papel
importante nessa estruturação, influenciando gostos e escolhas pessoais.
Assim, os primos e o irmãos deram o caminho das pedras da escolha por um
curso técnico. Sobre isso ele fala:
“Seguir um caminho, escolher, sem pensar muito. Ai eu fiz um curso
gratuito, estadual, o curso da [ não compreensível ] em técnico
[laboratoristico] industrial. É um curso que mistura um pouco de química
com metalurgia. Ai depois eu acabei me virando sozinho, não precisei da
ajuda do meu primo. Ai eu acabei eu mesmo arrumando um estágio,
efetivação, depois entrei na petroquímica. Foi mais ou menos essa trajetória.
Ai quando eu entrei na PQU a gente tinha intenção de fazer faculdade aqui
na Oswaldo Cruz, um curso noturno ...//... que eu escolhi ...//... o curso de
química industrial. Eu me formei, continuei lá e esse ano eu resolvi voltar. Ai
nesse intervalo eu fiz o curso de pós-graduação, pra poder me aprimorar e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
114
atualizar. E agora eu voltei esse ano pra fazer engenharia química, a
trajetória foi mais ou menos essa aí. Não sei se respondeu a sua pergunta
sobre o que significou, significou assim: eu preciso ter uma casa, uma família
bem, eu preciso ...//... ter uma profissão e estruturar a minha vida.”
Em outros momentos chega a reafirmar que o trabalho tem o papel de
estruturar a vida e de mostrar a importância (utilidade) de uma pessoa para
a sociedade. Nesse quesito, sua opinião conflui com a de Beto: “O trabalho
era estrutura de tudo isso, não só a estrutura financeira, não é só dinheiro,
como de organização. De organização de vida, de você fazer parte da
sociedade e você ser produtivo e falar “eu sou útil”.
A concepção de Ito sobre trabalho está em consonância a ideia de que ele
define a posição social das pessoas na sociedade. Nesse sentido determina
seu status. Conforme dito:
“(...) significa uma série de coisas. Não posso descartar o lado
financeiro que você precisa de dinheiro, você acaba se acostumando com
determinadas comodidades que o dinheiro te proporciona como automóveis,
viagens, passeios, restaurantes, investimento na carreira, estudar e se
aperfeiçoar. O lado disso que eu falei pra você de ser útil, de se realizar e de
você se sentir uma pessoa realizada, alguém olhar para você e falar “olha
que bacana” as pessoas te pedirem conselhos, venham conversar com você,
saber de você. É útil né? É uma referência. Concluiu (...) É, status. Isso.”
Alguns respondentes, como Vlad e Beto vêem no trabalho o sentido da
vida, disseram literalmente: O trabalho é tudo!
Vlad afirmou que o ingresso no mercado de trabalho proporcionou
mudanças positivas, significou tudo né! significou minha liberdade. Essa frase
me deixou inquieta. Liberdade em que sentido? Eis a resposta: “Eu acho que
a primeira coisa que o trabalho proporcionou foi liberdade em todos os
aspectos. Liberdade de consumo, liberdade de pensamento, liberdade de
angariar oportunidades, coisa desse tipo. Fora disso o mundinho era limitado
ao que o meu pai decidia.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
115
O trabalho aparece na fala de Vlad como meio de garantir liberdade de
pensamento, uma forma de competir no mercado de trabalho e de obtenção
de novas oportunidades. Quando se refere à liberdade de consumo faz
pensar que o trabalho lastreia sua inserção no mundo social, constituindo-se
em uma forma de mediação com outras esferas sociais. Mas quando passa a
consumir coisas que antes não lhes eram acessíveis ele se sente livre, livre
do mundo dos ‘excluídos’ do consumo, livre da insatisfação de querer o que
não pode possuir. O trabalho o retira da exclusão à qual estava confinado,
viabiliza seu ingresso ao mundo do consumo. Nesse sentido, consumir
ultrapassa o sentido de mera fruição da coisa, podendo ser entendido como
aquilo que viabiliza a existência social, a conexão com o mundo exterior.
Para Beto o ingresso no mundo do trabalho não significou apenas um
meio de satisfazer suas necessidades básicas. Passou a assumir
responsabilidades precocemente. A doença que acometeu seu pai durante a
infância o obrigou a, junto com a mãe, assumir a responsabilidade sobre a
família muito cedo. Como dito antes, da análise de sua entrevista percebi
que, para ele, o trabalho confere sentido à vida das pessoas, sobretudo
porque mostra a elas sua ‘utilidade’, ou seja, sua importância e lugar social.
Mas, além disso, o trabalho foi para ele um meio de conhecer o mundo:
as pessoas, o preconceito racial, a política – “Mas, pessoas mesmo, política...
Quando você sai, você conhece política, racismo, um monte de coisa!”
Foi na labuta diária pelo ganha pão que ele conheceu o mundo
concreto das relações sociais, aprendeu maneiras de lidar com os jogos de
interesses entre as pessoas, com a competição do mercado de trabalho e
compreendeu que nem sempre esses interesses resguardam valores morais
de justiça e igualdade social. Conforme relatou:
“(...) no serviço você vê as falsidades, você vê as coisas certas, as
coisas erradas, você tem toda uma linha de pensamento das pessoas. As
pessoas prejudicam as outras pra obter cargos, obter vantagens e, mesmo o
próprio sistema, ele é assim cruel mesmo! Principalmente nós né, pobres,
negros, sempre foi muito difícil conseguir, principalmente promoções.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
116
Beto indicou que a lógica de competitividade no mercado de trabalho
produz e reproduz desigualdades entre os que lutam por oportunidades para
crescer na carreira. Nesses termos a concorrência é predatória, uma vez que
os menos qualificados e com formação educacional precária têm
paulatinamente menos chances. Sua biografia é reveladora da existência
dessas desigualdades, que são reforçadas pela questão racial. De acordo
com o quadro por ele delineado, não teve as mesmas chances que outros
profissionais com formação semelhante ou inferior à sua. Por isso diz que
pobres, negros têm menos chances de serem promovidos.
Competição e as novas orientações de conduta
Entre os efetivos, uma das respostas consensuais foi a que concernia às
mudanças do mercado de trabalho. Todos afirmaram que desde quando
ingressaram até o momento atual, uma das principais mudanças é o
aumento significativo do grau de exigência dos empresários em relação aos
empregados. Cada um justifica esse fato de modo particular, no entanto a
percepção sobre o aumento do desemprego apareceu reiteradas vezes como
uma das importantes razões do aumento das expectativas e demandas no
âmbito profissional.
“O que mudou é ...//... o nível de exigência, de concorrência. Então
hoje você tem que ter o que? Empregabilidade. Você tem que ser uma
pessoa empregável, que que você tem para oferecer? “Você quer trabalhar
comigo?”, “sim eu quero” então que você tem para oferecer? Então hoje
você chega a um extremo “ah, eu quero ser analista químico, fazer analise
química. Eu sou formado em técnica com química, eu fiz faculdade, fiz pós-
graduação e estou fazendo mestrado”. Entenderam? É um extremo.
Neguinho pra fazer uma atividade que antes uma pessoa que às vezes sem
formação fazia, só com a prática, hoje se exige nível universitário.”
É interessante notar que Ito defende a ideia de que hoje em dia o
sujeito tem que ser ‘empregável’. Ou seja, é ele o responsável pelo próprio
destino profissional. Isso quer dizer que o trabalhador da atualidade tem que
se manter antenado às novas demandas do mercado, e ter condições para
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
117
zelar por seu aperfeiçoamento. Em nenhum momento de sua fala o
empresário aparece como co-responsável pela capacitação de pessoal. Outra
mudança percebida por eles, que está implícita no excerto acima, e que
apareceu em diversos relatos é que, devido à escassez de vagas, o
empregado deve se esforçar mais do que antes, para conquistar um
emprego; as empresas, pelo contrário, têm à sua mão um farto leque de
opções para encontrar profissionais, dado o excesso de oferta de mão-de-
obra. Tal disparidade entre as condições das partes (empregado e
empresário) também provoca o crescimento das exigências.
A partir da análise dos relatos percebi que ser empregável quer
dizer mais do que competência profissional. Isso porque a capacidade de
conquistar um emprego ou se manter nele está também em se fazer
parecer competente e saber procurar por oportunidades onde elas
estiverem54. O fato de que a responsabilização sobre o destino profissional
recai sobre o próprio trabalhador é um dos aspectos que evidenciam a
individualização no mercado de trabalho.
No entanto, me surpreendi quando Ito associou o refinamento dos
critérios de seleção e as expectativas sobre o perfil dos profissionais de hoje
em dia ao avanço tecnológico e modernização dos sistemas de trabalho.
Sobre o grau de exigências ele asseverou:
“Está muito maior, muito maior. Tanto é que os jovens hoje eles tem
que se dedicar mais para poder ter alguma coisa, do que antes. Eles têm que
estudar muito mais, se preparar muito mais. Por quê? Porque a evolução
tecnológica é muito rápida. Antes pra mudar de A para B levava 50
(cinqüenta) anos hoje muda de B para C em 10 (dez) anos e lá na frente de
C pra D em 5 (cinco). A velocidade com que as coisas tão mudando “são
muito rápido” e você passa a ficar dependente de determinadas mudanças
como telefone celular por exemplo, aposto que quando você perguntou meu
54 Tal configuração conflui com a ideia de Dubar, já citada no Capítulo I, de que “Saber, saber-fazer, e saber-estar tornaram-se os três pilares da competência, rapidamente ligados pelas qualidades a exigir e/ou desenvolver em todos os trabalhadores: iniciativa, responsabilidade e trabalho em equipe”.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
118
número, que eu falei pra você que eu não tinha você estranhou. “Como você
não tem celular?”.
Esse quadro mostra a tendência de que o homem moderno está
condenado à viver eternamente insatisfeito, uma vez que, sob a lógica da
competição, há sempre novas metas a alcançar. Por essa razão ele está
sempre distante da plenitude e deve se adaptar às mudanças que lhe são
demandadas. É como estivesse sempre devendo, porque as possibilidades de
aperfeiçoamento não têm fim, o que lhe impõe o aprimoramento contínuo.
Essa expectativa de que deve estar disposto a acompanhar as
transformações próprias das relações competitivas pode gerar ansiedade,
stress, insegurança.
Ao perguntar sobre o efeito da contínua modificação de parâmetros sobre as
competências profissionais, Ito respondeu: “Gera um stress. Que não
necessariamente é negativo e vai dar úlcera no estomago, nada disso. Pode
ser positivo e esse stress vai deixar a pessoa cada vez mais motivada, né?
Mas que gera um stress, gera.”
Diferente da maioria dos entrevistados, ele aponta para o fato de que
essas exigências e a concorrência do mercado de trabalho podem ser vistas
com positividade, mesmo considerando que a competição gera desemprego.
“Como as exigências são maiores, você tem que se preparar mais para poder
exercer determinadas funções que antes você não precisava se preparar
tanto.” Mas o que explica o crescimento das expectativas? Sua justificativa:
“Porque a tecnologia mudou, porque o mercado está mais competitivo,
tem mais gente querendo fazer a mesma coisa que antes tinha poucas
pessoas. Então a concorrência aumentou e você tem que ter um diferencial.
Então, tem pessoas que elas falam assim “eu estou desempregado”
[correção], você não está desempregado você é desempregado você não
consegue mais se colocar, ou você muda de profissão ou você não volta.”
Ito não chegou a aventar a possibilidade de que a responsabilização
pelos resultados profissionais poderia ser atribuída às empresas. Nas
relações do mercado de trabalho “cada um trata de si”.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
119
Aliás, nenhum dos entrevistados considerou que os organismos sociais
de solidariedade poderiam ter um papel na preparação dos trabalhadores
para essas exigências, ou na utilização de mecanismos que atenuassem o
efeito do contínuo aumento delas sobre seu desempenho no exercício de
suas funções. O que pode ser revelador de que as formas associativas têm
perdido força e legitimidade em sua atuação no campo de trabalho. Sobre
isso, falarei mais adiante quando será discutida a forma como os efetivos
vêem o papel do sindicato nas novas relações de trabalho.
Diferente dos demais entrevistados, Ito refere-se ao desemprego como
mais uma variável do mercado de trabalho e não como um problema grave
que pode afetar a vida de quem depende de trabalho para viver. Sua
experiência pessoal relativa ao desemprego durou pouco, não alterou seu
modo de viver, não foi propriamente um drama.
“(...) Bom, eu fui mandado embora em novembro de 88 (oitenta e oito)
e eu sou tão azarado que em janeiro de 89 (oitenta e nove) a PQU me
mandou uma carta me convidando pra participar do processo de seleção
(risos), ou seja, eu não procurei emprego, não deu tempo. Ai em janeiro eu
me inscrevi e em fevereiro eu comecei ...//... prestei o vestibular, um exame
de seleção. Passei, fiz o curso de operador por 3 (três) meses e em junho de
89 (oitenta e nove) eu já tava registrado de novo em carteira.”
Talvez, seu modo de pensar resulte do fato de ele não ter tido
obstáculos semelhantes em sua trajetória. Mesmo a longa experiência de
desemprego do irmão tendo sido marcante, ele vê tal controversa com certa
indiferença e não dimensiona as conseqüências para a vida dos
trabalhadores em geral. Ainda assim, considera que depois de ficar
desempregado, muitas vezes, a reconversão de um profissional ao mesmo
ramo em que atuava torna-se difícil, fazendo-se necessário, muitas vezes,
buscar novas oportunidades em outras carreiras. Vai dando sua receita,
como a tirar de um bloco de notas, os ingredientes dos ‘bem sucedidos’
nesse âmbito.
O ponto de vista acima delineado evidencia bem os resultados do
processo de individualização no campo profissional. O perfil do entrevistado é
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
120
um espelho de como, nas relações empregatícias, a compleição aos valores
individualistas pode moldar a identidade de um trabalhador. Ao longo de
toda entrevista, Ito dá indícios de sua tendência à adaptação às mudanças
implementadas pela empresa e à individualização. Não a individualização das
perdas, mas a dos ganhos, a das vitórias a dos que conquistam ‘liberdade’ de
escolher suas opções profissionais. De qualquer modo, esses resultados não
refletem a realidade da maioria dos empregados porque seguem a lógica
excludente da competitividade.
Sua maneira de se portar e de pensar as relações de trabalho reflete
apenas um modo de conformidade da índole dos empregados da
Petroquímica. Ele contrasta com perspectivas como a de Bira, que revela
uma preocupação maior com o desemprego, um problema que aflige a
categoria “trabalhadores”, em geral. Ele observa: “No mercado antes você
tinha mais emprego, hoje o emprego está escasso...” Mas, o que
exatamente isso tem a ver com a realidade de quem tem emprego fixo, faz
mudar as relações dentro da empresa? A resposta categórica do
entrevistado:
“Muda, muda, faz mudar, você tem que ser um bom funcionário para
você se manter empregado, vai, tá fazendo um bom trabalho você se
mantém empregado porque você sabe que se você sair da empresa hoje, se
eu sair da Petroquímica você não tem perspectiva de arrumar um outro
emprego no ramo petroquímico e até mesmo com o mesmo salário, então
hoje o emprego em si é escasso.” Mas minha suspeita de que a existência
do desemprego estrutural altera as relações dentro do trabalho e pode
moldar comportamentos parecia se confirmar. Conforme o relato de Bira: “as
empresas exigem hoje mais dos funcionários exatamente pela escassez.”
Entretanto, eu apenas suspeitava sobre o tipo de impacto dessa configuração
em relação ao emprego / desemprego podia gerar sobre os sentimentos e
comportamentos de pessoas que gozam de uma relação trabalhista estável.
Ele ilustra:
“Os impactos... é essa insegurança do dia-a-dia, a pessoa mesmo
desempenhando bem a sua função você tem aquela insegurança de
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
121
desemprego e até em relação com as outras pessoas a gente nota essa
insegurança, do stress no dia-a-dia com relação ao trabalho, com as
exigências de você estar desempenhando o dia-a-dia seu trabalho.”
Beto concorda com a opinião de Bira de que os empregos estão
escassos, mas assevera que desemprego sempre houve e que ele tem o
papel de fazer expandir os lucros no sistema capitalista. Diz que quando uma
pessoa é mandada embora, provavelmente seu substituto terá uma
remuneração remuneração menor. A partir da dissecação de sua biografia de
trabalho, mostra modificação do nexo entre emprego e desemprego:
“O desemprego sempre houve. No nosso sistema capitalista tem que
ter esse rodízio de emprego pra girar. Então você gera desemprego. O
pessoal novo entra e começa a trabalhar ganhando menos, e aí eles crescem
até um patamar. Aí ele é mandado embora. Aí aquela pessoa entra em outro
lugar, ganhando menos. Essa diferença faz aumentar o lucro. Isso aconteceu
comigo, quando eu tava no banco. Quando eu cheguei num patamar no
banco eu comecei tudo de novo em outra área. Isso vale também para a
tecnologia.
Mesmo assim, observa que houve uma mudança. Antes se sabia onde
procurar trabalho, hoje em dia não mais, as oportunidades rareiam. Além
disso, vê na tecnologia uma das causas do desemprego. Conforme se vê no
relato abaixo:
“A tecnologia desemprega. O estudo hoje é que empurra pra
cima.” (...) “Antes, no meu caso, você precisava de um emprego. Você
precisava, abria o jornal, você escolhia onde ia trabalhar. Tinha teste
vocacional e você via várias profissões que você nem sabia que existiam.
“Pizzaiolo, o que é isso?, ah, é de fazer pizza?”, então você decidia por isso.
Hoje você Não procura emprego, você manda currículo e aí, eles escolhem
ou não. Hoje a CUT – Central Única dos Trabalhadores dá uns cursos e eles
encaminham. O Estadão, antes, tinha 4, 5 páginas só de emprego. Hoje não
existe mais isso não. Hoje você tem que saber se existe o cargo, se informar,
saber que a empresa tá procurando e mandar currículo [quase adivinhar].
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
122
Antes, você tava andando na rua, tinha uma placa na firma, e você entrava,
fazia uma ficha e, lá mesmo, você ficava”.
Por outro lado, em alguns aspectos, os entrevistados demonstram
opiniões díspares. Os efeitos da reestruturação e da privatização sobre o
modo de viver e o quotidiano no trabalho são exemplos disso. Quando os
respondentes assumiam cargos de chefia, foi comum perceber uma
aceitação maior das regras e das mudanças estabelecidas pelos superiores
da empresa. Essa adaptabilidade explica, em parte, a posição que elas
ocupam, uma vez que o pessoal do comando deve fazer ressoar as decisões
da empresa, e buscar a inculcação, pelos empregados, de regras e
hábitosque reflitam a cultura da corporação.
De acordo com Ito, a privatização afetou de maneira contundente as
áreas administrativa e de manutenção e não o setor de produção. Alí houve
substituição do pessoal efetivo por terceirizados, o que, de sua perspectiva
era plenamente justificável. Fez questão de mostrar que o processo de
reestruturação não implica apenas tirar emprego, mas pode ser símbolo de
novas chances, oportunidades. Isso se evidenciou na seguinte fala:
“Não, nesse sentido não. Por outro lado na área administrativa e
manutenção foi um choque maior, eu não vou entrar nesse mérito porque eu
acho que você vai conversar com alguém de manutenção, mas foi um
choque maior na minha visão. Porque? Porque houve terceirização então
muitas atividades de caldeiraria, de instrumentação, de mecanização foram
terceirizadas. Muitos aposentados até abriram empreiteiras nessa época e
hoje estão lá como donos das empreiteiras, estão muito bem lá ganhando
não só lá dentro como em outras empresas químicas. Outros saíram foram
para outros ramos. Houve uma redução grande dentro da área de
manutenção e administrativa também: tinham muitos gerentes, muito chefe,
chefe do chefe, secretária do chefe e o setor de empilhar cadeira “pra que
que serve?”, “ah não sei, vamos inventar esse setor de por uma cadeira em
cima da outra a gente dá uma secretaria para o cara e ele faz isso daí”. Isso
tudo foi acabando, então acho que essa parte executiva tal isso ...//... foi um
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
123
choque muito maior do que pra nós da operação, porque eles estavam
sobrando.”
Não apenas para os empreiteiros, mas para alguns profissionais
efetivos, a privatização e a reestruturação tornaram-se oportunidades para a
conquista de avanço profissional. Ele é exemplo vivo disso, uma vez que foi
nessa fase que foi promovido.
“Era, era comentado: mudanças, “olha reestruturação”. Por exemplo,
operador 3 (três) tinham 4 (quatro) por turno e hoje só tem um. Inclusive
quando eu fui promovido de operador 2 (dois) para operador 3 (três) foi
quando ocorreu essa mudança, ou seja, antes eu era promovido para
operador 3 (três) para cuidar de uma unidade de processo, quando eu fui
promovido eu fui cuidar de ...//... 6 (seis) unidades de processo. É diferente.
Isso tudo foi mudando e ela deu uma estagnada no investimento em
tecnologia, não foi uma época boa para a empresa nem em resultado
financeiro nem em imagem.”
No entanto, o ponto de vista acima exposto se distancia de outras
interpretações acerca do processo de privatização. Muitos efetivos destacam
as tensões provocadas pela incerteza do destino profissional, devida às
mudanças. Reclamam que não houve clareza na condução dessas alterações.
Isso pode ser visto no relato de Beto, a seguir:
“Foi desgastante. O pessoal que dirigia não dava informação. A gente
mal sabia o que tava acontecendo. Foi incrível, que antes, eu tava numa boa
fase, o salário tava bom, o Banco do Brasil trouxe umas ações pra vender.
Aí, muita gente entrou né, aí acompanhando as ações, as ações sumiram,
foram pulverizadas.”
Além da falta de transparência do processo, Bira também falou da
insegurança que tais transformações geraram, uma vez que havia
expectativa de que provocariam desemprego. Sobre isso ele falou:
“Toda mudança sempre gera insegurança, porque as empresas elas,
esses processos que elas adotam, claro, é para se perpetuar, visa lucros,
porque ninguém...// o investimento vai tá melhorando a qualidade do
trabalho, sim, mas se não gerar lucro ela não faz esse investimento, e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
124
quanto a esse investimento sempre reduz pessoas. Então sempre gera
insegurança com relação a todos, há esse comentário entre as pessoas..”
De maneira geral, a partir da análise das entrevistas, tudo leva a crer
que as transformações do trabalho que provocam desemprego tendem a
causar uma alteração no comportamento dos operários, segundo os relatos
dos entrevistados. É possível que o acirramento da concorrência, sobretudo
por efeito da escassez de emprego – no mercado em geral –, da
automatização de funções, entre outros tenha produzido esse resultado.
De fato, os relatos sobre as transformações de trabalho, entre meados
de 85 e fim dos 90, dão indicações de que há uma tendência ao
fortalecimento de comportamentos individualistas em detrimento dos valores
coletivos. Entretanto, não se deve com isso inferir que tenham sucumbido as
manifestações de comportamentos pautados na reciprocidade, apenas deve-
se ter claro o enfraquecimento desses valores. Parte dos entrevistados
conheceu de perto relações de trabalho baseadas em valores comuns,
percebiam semelhanças entre seus ideais e o dos outros trabalhadores. Isso
os unia e viabilizava a luta em prol de sua categoria.
Entretanto, valores individualistas, antes menos importantes, parecem
ter ganhado força. Isso talvez explique o fato de que, para a maioria dos
respondentes, as vitórias ou os problemas que obtiveram em sua carreira
são decorrentes de sua forma de agir, de sua postura. Dificilmente os
respondentes recorreram a alguma figura coletiva para justificarem a
situação em que se encontram no trabalho.
Isso confirma a tese de Beck e Beck-Gernsheime de que a
individualização é resultado da configuração do mercado do trabalho e que a
firma perde significação na formação da identidade coletiva.
Com base nessa ideia, algumas considerações parecem pertinentes.
Sobre a história do operariado55, alguns autores mostram que as
55 As lutas operárias germinaram com base em sentimentos de comunidade entre trabalhadores, que professavam a igualdade de condições entre todos, mediante a promoção da justiça social. Opunham-se radicalmente às ideias de concorrência e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
125
representações coletivas ganharam espaço num contexto em que os
trabalhadores guiavam sua forma de julgar, pensar e sentir por meio de
valores de igualdade. Isso permitiu a constituição de uma identidade
comunitária, da identificação com o outro e da consolidação de um
pensamento comum entre trabalhadores.
É preciso atentar para a mudança de valores que se operou desde a
formação da classe operária até os dias de hoje. No contexto atual de
acirramento da competitividade, o anseio por autonomia, ou melhor, por
liberdade, parece orientar a conduta dos trabalhadores. Com isso,
comportamentos individualistas passam a prevalecer sobre os coletivos56 e
dão lugar a formação de identidades societárias que se configuram
mediante interesses provisórios e podem basear-se na formação de coletivos
múltiplos, que se alteram conforme o surgimento de novos interesses.
Nesse estudo sobre os trabalhadores do setor petroquímico, raramente
os entrevistados fazem menção a referências coletivas. O sindicato, que é a
principal organização coletiva de empregados, perdeu espaço como
representação da classe que trabalha. Grande parte dos entrevistados fala da
atuação dessa corporação com desconfiança. Mesmo assim, alguns deles
reconhecem que o sindicato tem o papel de defender os interesses dos
trabalhadores. Isso permite fazer uma digressão. Trata-se da análise do
evento da venda de 10% das ações da empresa aos empregados.
competição. Para mais detalhes, ver “A Formação da Classe Operária” (Thompson, 1987). Na medida em que a competição firmou-se como um valor entre os operários da atualidade, dá-se lugar aos valores individualistas. Com essa observação, não pretendo fazer parecer idênticas as histórias da classe operária inglesa e da brasileira, muito embora a primeira tenha influenciado a outra em sua constiruição. Em seu artigo “Por uma sociologia do desemprego”, Guimarães dá lições valiosas sobre a importância de se levar em consideração o contexto em que um fenômeno social se constitui. Ela refere-se à produção de informações e dados sobre o tema do desemprego, mas essas considerações são válidas para qualquer estudo sociológico. É necessário destacar as diferenças culturais, econômicas e sociais, e outros aspectos como base de dados e critérios utilizados na prospecção de informações, em determinado estudo. Como foi dito no Capítulo I, um dos problemas enfrentados pelo trabalhador brasileiro é a escassez de trabalho regulamentado e a ausência de programas sociais de proteção ao desempregado. Tais situações contrastam com as dos trabalhadores europeus, por exemplo. 56 Em A Formação da classe Operária Inglesa, Thompson mostra que “havia uma consciência da identidade de interesses entre os trabalhadores das diversas profissões e níveis de realização, encarnada em muitas formas institucionais e expressa numa escala sem precedentes, no sindicalismo geral de 1830-34,” (Thompson, 1987: )
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho – Efetivos
126
A forma como decorreu – com pouca transparência (segundo os
relatos) – o estilo de negociação – excludente para algumas categorias,
podem ser indicativos de que, a complexificação das relações de trabalho
tornam difícil a organização em torno de um interesse comum. Alia-se a isso
o fato de que, com a compra das ações, os empregados estavam motivados
a tornarem-se donos de parte da empresa (10%), o que os distanciava da
posição de empregados, podendo ter causado uma confusão na identidade
operária [trabalhador ou proprietário?]
Como se verá na avaliação sobre a situação dos desligados, os
trabalhadores não conseguiram se unir em torno de um objetivo que
expressasse a vontade de todos. Por isso mesmo, perderam a condução do
processo e , mesmo os que permaneceram com as ações, correm atualmente
o risco de perder todo seu investimento.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
Terceirizados da Petroquímica – abrindo diálogo
No primeiro momento, quando falava com os trabalhadores e os
convidava a contribuírem com depoimentos sobre sua experiência de
trabalho, frequentemente estranhavam o objetivo de investigação. Busquei
deixar claro que se tratava de um trabalho de pesquisa científica na área de
sociologia do trabalho, e que essa pesquisa não tinha nenhum vínculo com a
Platume, nem com a Petroquímica União.
Os trabalhadores queriam entender o que me motivava a fazer o
trabalho. Buscavam conhecer o meu interesse em compreender sua
percepção sobre as mudanças do mercado e em saber qual o porquê do
comportamento adotado a partir delas.
Muitos me perguntavam quem havia fornecido seus dados e, quando
eu esclarecia que havia entrado em contato com a Petroquímica e com a
Platume, muitas vezes ficavam ainda mais desconfiados de que eu poderia
ter vínculo com uma dessas empresas. A dúvida só se desfazia quando as
entrevistas aconteciam. O teor autobiográfico e a diversidade das perguntas
– que abordavam seu histórico de trabalho, as relações com familiares e
amigos, as mudanças no sistema de trabalho, a importância da religiosidade,
entre outros – dava indicações de que não se tratava de pesquisa para
qualquer das empresas (PQU ou Platume).
Após conversarmos por telefone, agendava as entrevistas com as
pessoas que se mostraram interessadas, nos lugares que lhes eram
convenientes. Em todos os casos, as entrevistas aconteceram na casa dos
entrevistados, preferencialmente à noite, período em que eles estavam fora
do trabalho.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
128
Perfil – conhecendo os terceirizados Como havia definido previamente, busquei entrevistar pessoas que
tivessem iniciado sua vida na empresa, pelo menos, a partir da década de
80. Isso me garantia que suas experiências pudessem dar testemunho sobre
as transformações do mercado petroquímico e do mercado de trabalho em
geral, dos últimos 15 anos.
Os entrevistados da Platume eram homens em sua totalidade e tinham
ingressado na empresa há mais de 15 anos. O fato de não ter mão-de-obra
feminina na Platume poderia ser indicativo de um perfil determinado de
trabalhadores. Não raro, esses homens – responsáveis sozinhos pelo
sustento da família – esboçaram pontos de vistas que refletem restrições ao
trabalho feminino. A argumentação se ancorava na defesa de uma educação
mais segura para os filhos, uma estrutura familiar mais sólida e o equilíbrio
no âmbito doméstico.
Quanto às funções que exerciam, quando eram efetivos na
Petroquímica, dois deles haviam trabalhado diretamente na produção, um
tinha a função de almoxarife, outro, de chefe de caldeiraria e o outro havia
atuado no setor de segurança do trabalho.
A ideia inicial era fazer entrevistas com pessoas cuja experiência
estivesse focada na área de produção. Como dito antes, a escolha
justificava-se por ser essa a área que sofria mais transformações na
empresa, em decorrência dos processos de modernização, automação e
redução do quadro de funcionários, entre outros.
No caso dos trabalhadores terceiros, tivemos de adequar-nos à
realidade da Platume. A maior parte dos funcionários não atuava na área de
produção, sem contar que muitos estavam em outra empresa, que não a
Petroquímica União, e algumas pessoas encontravam-se em período de
férias.
Assim, depois do sorteio tive de consultar a diretoria da empresa sobre
a validade de minha escolha, o que impôs, em alguns casos, a seleção de
outra pessoa para a entrevista.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
129
A pesquisa de campo abriu novas perspectivas, deu lugar a
interrogações diferentes das que tinha no começo da pesquisa. Desse modo,
foi a partir da prospecção dos relatos, que os fios do trabalho de campo
foram se deslindando. Passemos às entrevistas.
Análise das entrevistas
O trabalho como parte do ser
Chico: 53 anos, casado, aposentado, trabalha como empregado
terceiro na PQU
Chico é um dos entrevistados que mais se destacou no processo de
coleta das entrevistas. Cursou até o segundo grau na escola. Fala com
objetividade, clareza de ideias, além de ter uma excelente memória! É
sergipano, nascido em Salgado. Veio para São Paulo com a mãe. Fala
dramaticamente de seu passado e das influências do pai sobre sua vida
como pessoa e como trabalhador.
Seu pai nasceu em Frei Paulo (Se), em 1908. Era semi-analfabeto,
aprendeu a ler sozinho. Em termos profissionais, fazia peças e carroçaria de
caminhão. Chegou em São Paulo sozinho, em 1955, um ano antes da família,
em busca de oportunidades de emprego; em seguida trouxe a esposa e os
filhos. Nessa ocasião, Chico tinha apenas 3 anos. Antes de vir, o pai já não
morava junto com a família. Vivia em Aracaju, capital de seu estado natal,
pra garantir o sustento de todos. A ausência da figura paterna marca esse
depoimento. É uma ausência que se fez presente na reconstituição de sua
trajetória no trabalho. Durante sua fala, Chico refire-se a ele em momentos
diferentes.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
130
Mesmo em São Paulo, via seu pai raramente, uma vez que ele ficava
interno no trabalho, devido à distância de casa. Apesar da falta paterna,
guarda admiração pelo pai, por levar em consideração a causa de seu
esforço: tinha como objetivo proporcionar conforto à família. “Até os 18 anos
não trabalhava, porque a meta do meu pai era dar uma boa formação para
os filhos. Muitas vezes, os amigos dele falavam que ele era um louco. Como
ele podia, na idade que tinha (60 anos), sustentar a família inteira sozinho,
sem nenhum dos filhos trabalhando? Isso aí é uma coisa que me marcou!”
A despeito da ausência em seu cotidiano, seu pai parece ter sido a
medida exemplar que lhe serviu de parâmetro, tanto para a constituição da
figura paterna ideal como também para definir estratégias para sua carreira
profissional. Ele leva em conta o sofrimento e o esforço do pai para propiciar
conforto à família: “A única ambição que eu tinha era uma vida menos
sofrida do que meu pai. Eu pensava que eu ia lutar para dar condições para
meus filhos, sem precisar chegar à idade que meu pai chegou ........ Apesar
de que, eu acredito que meu pai era mais aguerrido que eu. Na idade que eu
tô foi praticamente a idade que meu pai tinha quando eu o conheci. Foi
quando eu comecei a reconhecer ele como meu pai. Até quando eu tinha
mais ou menos uns 8 anos, meu pai vinha em casa uma vez por semana.”
Trajetória de trabalho
Devido ao zelo paterna, buscando encaminhar o filho para boas
oportunidades profissionais, se considerarmos tratar-se de uma família
pobre, Chico ingressou tardiamente no mercado de trabalho já com 19 anos,
após prestar o serviço militar. Ao discorrer sobre o processo de escolha pela
carreira de técnico no setor químico, o entrevistado mostrou que sua escolha
tinha tido influência do pai. Além disso, deixou claro que, em sua época, era
relativamente fácil para um jovem conquistar uma vaga no mercado de
trabalho. “Meu pai trabalhava na Elcloro, aposentou por idade em setembro
de 1970, e no ano seguinte, em fevereiro de 1971, eu fui com meu primo lá.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
131
(...) eu tava na casa desse meu primo e eu falei: - Pedro, vamos lá na
Elcloro. E aí ele falou: - Vamos sim.
No meio disso ocorreu um fato curioso! Uns quatro cinco anos antes,
a Elcloro patrocinou uma banda de música na gravação de um LP. Aí aquilo
ficou na minha cabeça. Quando eu fui à empresa preencher a ficha, a pessoa
de RH nos deu um teste.
Na ficha nós poderíamos escolher a vaga para operador e a vaga para
instrumentista. Veja só como eu escolhi a vaga. A primeira coisa que me veio
à cabeça foi o seguinte: instrumentista? Deve ser pra tocar na banda de
música. Aí eu pensei, eu não sei tocar nada e não tem como eu concorrer a
essa vaga. Outra coisa, eu tinha os requisitos pra ser instrumentista, que era
ter o segundo grau completo. Enquanto para operador era necessário apenas
ter primeiro grau completo. Aí eu comecei a trabalhar como operador de
processo, não era nem operador de máquina. Aí trabalhei durante dois anos
e meio. Quando foi em 1974, teve um concurso para operador na
Petroquímica. Aí um colega que trabalhava lá me deu a dica, eu prestei o
concurso e passei. Eu tive até um probleminha lá na Elcloro. O pessoal
apostava muito em mim, eu já tinha sido promovido várias vezes, eu tive
destaque lá. Ficou um clima chato! Tanto é que quando eu saí de lá teve
gente que tomou um susto, não esperava a minha saída tão rápida assim.”
De fato, quem ingressa no mercado de trabalho hoje em dia, depara-se
com um sem-fim de exigências, difíceis de serem cumpridas por um
iniciante. A começar pela procura por jovens com experiência, o que parece
um contra-senso para quem faz sua primeira incursão no mercado de
trabalho, sem falar nas qualificações exigidas. Hoje, os critérios de escolha
diferem significativamente dos de 30 anos atrás.
Chico descreve com propriedade sua trajetória de trabalho, valorizando
cada momento de sua carreira no setor petroquímico. Demonstra que, antes,
era mais fácil tomar decisões “ousadas”, como, por exemplo, sair de um
emprego formal numa empresa para ser estagiário em outra do ramo, pelo
fato de ser de maior porte. Atualmente, antes da tomada de decisões, o
mercado de trabalho requer que se façam ponderações.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
132
“Na Elcloro foi a origem de tudo. Foi onde eu encontrei pessoas que fizeram
com que eu gostasse da profissão que eu escolhi e que eu exerci durante
tanto tempo. Lá, em menos de dois anos, eu tive quatro promoções porque
as pessoas apostaram em mim. Eu entrei como auxiliar de fabricação, depois
era operador de galeria, depois operador....... (esqueceu). Eu só sei que eu
saí de lá
como operador de fabricação; acima de mim era cargo de chefia, era meu
encarregado. Foi quando eu saí.
As variáveis e critérios utilizados para tomar a decisão de mudar de trabalho,
“trocando o certo pelo duvidoso”, foram, para ele, o porte da empresa, que
implica mais benefícios proporcionados aos empregados, e a menor distância
da empresa (e tempo de deslocamento) até sua casa.
“Monetariamente, não [não foi compensador]. Eu entrei ganhando metade
do que eu recebia no outro. Vamos supor, pra você ter uma ideia, em
moedas de hoje, na minha carteira eu era registrado com R$ 2.200,00 e eu
entrei na PQU ganhando R$ 1.400,00.
Mas, o que acontece. Eu era solteiro, eu tava trocando uma empresa menor
por uma empresa de ponta, era mais perto de casa, o horário de turno era
menos sacrificante porque lá eu trabalhava: de 2 às 10, de 10 às 6 e das 6
às 2 e isso era muito sacrificante pra mim. Quando entrava 6h, tinha que sair
de casa 4:15h. Acordava 4h da manhã, ia até a estação de Santo André,
pegava o fretado da empresa às 5h pra chegar 5:45h lá na PQU. Se eu tava
à noite eu saía 8 e pouco da noite. Então era sacrificante pra namorar, pra
passear, ...nossa, era difícil!
Então a troca valia a pena por causa do porte da empresa e das outras
vantagens. Por exemplo, era mais perto. E o destino da gente traça tantas
coisas... Eu entrei em 74, a empresa ainda não era estatal. Quando foi em
75, ela passou a ser estatal. Aliado a isso, a gente passou a ter a associação
da Petros que me permitiu ter aposentadoria com um bom salário. Ao passo
que lá na Solvey (antiga Elcloro) isso não aconteceria. Teve um final de ano
na década de 90, que coincidiu de, no mesmo restaurante, eu encontrar com
um grupo de pessoas da outra empresa. Quando eu cheguei encontrei
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
133
velhos amigos, que eu não via fazia 15 anos ou mais. Na hora que eles me
viram eles me perguntaram: - quem te convidou a vir aqui? E aí eles tavam
tudo reclamando porque já tavam na hora de aposentar, o salário de ativos
era x e eles iam se aposentar com 1/3 daquele salário x. Então a redução do
padrão de vida era considerável. Aí muitos deles lembraram: - Chico, na
época que você saiu de lá todo mundo pensou: Chico é louco, saiu daqui,
tava bem, tava na boca pra pegar um cargo de supervisão, roeu o osso e na
hora de pegar o filé mignon sai daqui, vai embora. Teve redução de função,
redução de salário. Pô rapaz, tanta gente queria estar no seu lugar, e você
foi embora.
Mas aí eles reconheceram: - hoje eu vejo que você estava certo. Deu
um passo atrás para dar um salto bem maior pra frente.”
Quando perguntado se ficou satisfeito com os resultados conquistados
na PQU, Chico avaliou positivamente sua trajetória de trabalho (carreira) e
tem convicção de que obteve bons frutos.
“Dentro das minhas limitações eu fui ao topo da minha carreira. Eu
entrei como operador 1 e cheguei à supervisão, enquanto eu tive colegas
que entraram como operador 1 e se aposentaram como operador 1. Eu
particularmente soube aproveitar as oportunidades que surgiram na época
certa.” As mudanças de função são esclarecedoras desse quadro. “Lá na
Solvey foram três ou quatro e aqui na PQU eu entrei como estagiário, depois
fui para operador 1, operador 2, operador 3 e supervisão.”
Transformações do mercado de trabalho
Uma das hipóteses deste trabalho era a de que o processo de
reestruturação produtiva e a automação do sistema de produção alteram e
conformam o modo dos trabalhadores se comportarem, podendo até gerar
desestabilização do caráter dos trabalhadores.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
134
Quando perguntado sobre o processo de reestruturação na PQU, esse
entrevistado fala de dois aspectos importantes na vida da empresa que
alteraram seu quadro de funcionários efetivos e as condições de trabalho:
“Com certeza! Lá nós passamos por um período crucial na época da
privatização (década de 90). Teve o fato desse pessoal, desse boom da
aposentadoria, motivada pelas mudanças nas leis trabalhistas. Teve o fato da
privatização, que [provocou] um enxugamento. Na fase áurea, na década de
80, a PQU tinha 1.600 funcionários. Hoje a Petroquímica tá com 500
(quinhentos e poucos funcionários) – uma diferença de 1.000 –, mas além
desses há os 1.000 que trabalham como terceiros (contratados). Antes,
desde a pessoa que fazia o cafezinho era funcionário. O quadro, em termos
numéricos, é parecido, mas o salário mudou muito né e o uniforme
também!”.
Chico avalia que a estrutura, em termos do pessoal da empresa, mudou
significativamente, uma vez que hoje em dia há mais terceiros do que
efetivos – o contrário de antes. Além disso, aborda a distinção entre o
uniforme dos efetivos e dos terceiros. Já na roupa se evidencia a diferença
de tratamento entre quem tem e quem não tem vínculo empregatício. O
uniforme simboliza a distinção entre os que pertencem e os que não
pertencem à empresa. Mais do que um modo de classificar trabalhadores, a
roupa utilizada pelos funcionários separa efetivos e terceiros, em termos de
funções e do valor de cada um na execução de tarefas. Por isso ela informa
sobre a posição de cada um na empresa e reflete um sistema de relações.
Conforme nos diz Chico:
“(..) tem pessoas lá que, vamos supor..., sem saber que você já foi
funcionário, mas só o fato de saber que você usa outro uniforme, a pessoa
te ignora. Até entre aqueles mais jovens. Eu não tenho tanto isso porque
80% dos funcionários da PQU me conheceram como funcionário da PQU.
Então não vai falar: - é o Chico da Platume. Não. É o Chico que trabalhou
aqui. Mas, a maioria das pessoas lhe ignoram. Mas não são todos.”
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
135
Sabe que há um tratamento distinto para cada uma dessas categorias,
muito embora pondere que, “no seu caso seja diferente” devido ao fato de
que seu longo período de experiência fez com que ele estabelecesse uma
boa rede de relações com os efetivos atualmente presentes no quadro da
PQU. Mesmo assim, avalia que, no geral, “Os colaboradores da PQU têm um
tipo de relação, quem é contratado tem outro tipo.”
Entretanto, Chico mostra que, quando era efetivo, sua percepção
sobre as coisas era diferente. Ele não notava o tratamento diferenciado para
os funcionários do quadro da empresa. Mesmo assim, evita se aprofundar no
assunto. Seu laconismo pode ser interpretado como certa dificuldade de
aceitar essa situação, uma crítica à diferença de status entre quem tem
vínculo empregatício e quem não tem, que aparece nas entrelinhas de seu
relato. Aparece no silêncio de seu depoimento.
“Quando eu era funcionário eu não percebia isso não. Primeiro, as
contratadas eram uma mixaria (poucas), eram temporárias. Não tinha uma
temporária que ficava com escritório lá dentro. Quando a empresa faz
paradas pra limpar todos os tubos é normal contratar mais gente. Ela tinha
lá, 2.000 ou 2.500 homens trabalhando e depois esse pessoal ia embora.
Quando eu entrei como terceiro, há quatro anos atrás, eu tomei um susto.
Não comigo pessoalmente, porque eu tinha um ciclo de amizade, eu conheço
a grande maioria.....Apesar de que, eu saí e fiquei dois anos fora dela. Eu saí
de lá no final de 97 e voltei praticamente em 2000.”
Ele reconhece que o trabalho significa mais do que um modo de
sustento. É uma forma de representação social, de estruturação das pessoas.
Isso talvez explique porque retardou ao máximo seu pedido de
aposentadoria, considerando, inclusive, que ainda se sentia capaz de
desempenhar sua função a contento. Aposentar-se era perder a importância
como chefe de família, como alguém que pode dar exemplo aos filhos. Nesse
sentido, se o trabalho dá significação social, a ausência de ocupação ou o
“não trabalho” produz a degradação do status. Isso aparece quando, em seu
relato sobre um dos momentos em que a empresa o incentivou a se
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
136
aposentar, ele emprega o termo “vagal” para referir-se a uma pessoa sem
trabalho:
“Naquela época, eu tinha 42 anos e meu filho mais velho tinha 14
anos. Que exemplo é que eu poderia dar para meu filho, se meu próprio pai
se aposentou com 65 anos? Com 42 anos meu pai não era nem casado, nem
pensava em se aposentar e como é que eu poderia me aposentar? Isso não
entrava na minha cabeça. Eu achava que ia me tornar um “vagal”. Eu ia
fazer o que? Ia jogar dominó no bar da esquina? Assinar a aposentadoria era
assinar uma carta em branco. Eu tava falando pra Petroquímica: - me mande
embora a hora que você quiser. Eu pensei não, não vou entrar com isso aí.
Mas, ao mesmo tempo, em Brasília tavam querendo acabar com a
aposentadoria especial. E aí o pessoal me pressionava, dizia: - olha, você tá
querendo muito, vai ficar sem nada. Você vai perder a aposentadoria
especial. E eu fiquei amarrando, amarrando, até que eu vi que o negócio ia
acabar, que o negócio ia estourar, então, quando foi em maio eu entrei com
o pedido porque eu vi que ia acabar.”
Depois de longos 26 anos de carreira, Chico teve de deparar-se com
uma nova realidade. Chegara o momento de desvincular-se da empresa, de
aposentar-se e interromper suas atividades. Nesse ponto, ele demonstra
claramente ter vivido um período dramático. A perda do trabalho como
referência identitária, a ausência dos laços sociais de trabalho e a falta de
função social causaram-lhe desânimo, desestímulo e vergonha. Foi assim que
ele descreveu o interregno, antes de voltar à PQU como terceiro:
“(...) O primeiro ano foi uma maravilha! Era 98, eu tava construindo
uma casinha na praia. Depois veio 99, que era curtição, ia pra praia, levava
um, levava outro. Virada do século, 2000, o mundo não acabou. Aí passou o
ano 2000. Não caiu nenhum cometa, a criançada voltou para a escola, e eu
fiquei aqui (momento de introspecção) aí eu falei: - e agora!.
Eu olhava pra ela (refere-se à esposa). O que aconteceu? Eu fui me enfiando
dentro dessa casa, fui me desanimando, já não ia mais nos lugares com ela:
banco, shopping, até isso eu deixei de fazer com ela! Porque você passa a se
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
137
sentir meio ocioso, meio “vagabundo”, porque eu trabalhei a vida inteira, e
me sentia jovem. Deixei de freqüentar o clube; ao mesmo tempo eu me
sentia até envergonhado de tá na rua.”
A saída da Petroquímica havia deixado um vazio e Chico sentia-se
desvalorizado, sem função social. Todo o processo mexeu com sua auto-
estima e fez com que revisse seu papel em casa, buscando assumir
atividades domésticas. Conforme descreveu: “Eu me fechava, ficava meio
isolado. Procurava ajudá-la nas tarefas de casa (refere-se à esposa. Ela faz
que sim com a cabeça), tentava compensar ajudando nos afazeres de casa.
Na limpeza de casa, muitas vezes até avançava o sinal e atrapalhava um
pouco.”
Sua tentativa de ocupar novo papel esbarrou no fato de, antes, nunca
ter assumido função nos afazeres domésticos, âmbito estritamente feminino
durante toda sua vida de casado. Era necessário, portanto, o aval de quem,
até então, assumira a responsabilidade pelas tarefas de casa: sua esposa.
Chico descreveu as dificuldades e conflitos que a mudança de seu
comportamento doméstico havia gerado.
“ Entrava em choque, em conflito (fala isso, olhando para a esposa e
rindo). Ela falava assim: - você era supervisor lá na PQU. Aqui sou eu. Aqui
quem manda sou eu!
Aí eu deixava um pouco de fazer. Eu dizia que não ia fazer mais nada,
depois voltava atrás. Aí passava um tempo e logo a gente tava em conflito
de novo.”
Como dito antes, a mudança na situação de trabalho de Chico alterou
seu comportamento em casa [que se abria como um novo espaço de
atuação, onde talvez pudesse desenvolver atividades de trabalho e sentir-se
útil]. Isso decorria do fato de sentir-se “manco”, “vazio”, sem função social.
A descrição feita pelo entrevistado revela a angústia que sentiu quando
estava aposentado e sem atividade fora de casa.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
138
“Na verdade, mesmo na condição de aposentado eu me sentia um
desempregado, mesmo sem faltar nada em casa. Não era uma questão
monetária. Eu me sentia vazio por não trabalhar e eu me sentia capacitado
pra trabalhar.”
Esse sentimento somente viria a mudar quando recebeu o convite
para retornar à Petroquímica como terceiro.
(..) “um dia, era umas 10h da manhã, eu recebi um telefonema do
meu chefe me perguntando se eu não tinha interesse em trabalhar. Aí eu
perguntei: - quando você quer que eu vá? É pra já!.
Ele falou: – dá pra você vir aqui às duas da tarde?
Eu respondi: – Claro que sim!
Parecia que eu tinha uns 18 anos e era meu primeiro emprego. Eu tremia.
Quando eu entrei na portaria daquela fábrica eu dizia: – não acredito que eu
tô aqui de volta!”
A euforia de Chico após o convite para retornar à PQU contrasta com
seu comportamento quando estava aposentado e afastado do trabalho.
Naquela fase sentia-se desanimado, tinha vergonha de estar aposentado
porque isso significava estar sem função, sem atividade (‘não tá fazendo
nada?’). As brincadeiras e piadas dos amigos sobre sua situação ocupacional
incomodavam-no, soavam discriminatórias. Elas eram o testemunho de sua
perda de status. Tanto assim que, quando indaguei se havia percebido
alguma mudança no comportamento dos vizinhos e amigos em conseqüência
das alterações em sua situação de trabalho, ele trouxe à baila justamente a
lembrança que tinha do tempo em que estava aposentado. Os amigos
interrogavam-no:
“- E aí, como é que tá a vida, não tá fazendo nada? Aquilo ali mexia
com a gente. Eu ia no clube, aí você tava lá jogando e aí passava uma
pessoa e dizia: - ê como é bom ser funcionário de estatal! Dava vontade de
pegar a raquete e as bolinhas e ir embora pra casa. Então, isso aí fez eu me
afastar. Antes mesmo de voltar a trabalhar eu já tinha deixado de ir para o
clube. Depois que comecei a trabalhar, dificilmente eu freqüentava o clube
no final de semana, mas meu prazer maior era ir durante a semana porque
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
139
eu já tinha um grupo com quem eu praticava esporte. Quando eu me
aposentei eu continuei tendo essas atividades, e o pessoal sabia que eu tinha
me aposentado e ficava com essas brincadeiras. Aí eu já tava com aquele
negócio, as brincadeiras me feriam (fala emocionado) aí eu me afastei. Hoje,
às vezes, eu até penso em ir. Mas à noite eu prefiro ficar em casa, final de
semana é muito cheio (o comentário denota afastamento da vida social no
clube)
O trabalho aparece aqui como uma importante dimensão na vida de
nosso entrevistado, sendo visto como uma referência social para a
estruturação das pessoas e de suas relações sociais. Chico chega a dizer que
voltaria a trabalhar até de graça, caso não tivesse outra proposta, tal é a
importância do trabalho pra ele. “Engraçado, quando a gente tá trabalhando
a gente fala assim: Não vejo a hora de aposentar, passear... Aí quando
chega o momento, quando acontece antes da hora, você toma um choque.
Você pensa: - não era isso que eu queria.Tudo tem sua hora. Eu voltaria a
trabalhar até de graça!”
Exatamente por julgar que o trabalho representa uma dimensão
importante na vida das pessoas, Chico parece entender que a saída do
mercado de trabalho exige cautela. O empregado deve passar por um
período de “preparação emocional” e esse processo de saída do mercado de
trabalho precisa ser feito no tempo certo. Alem do mais, Chico considera
que, quando uma pessoa se torna egressa do mercado de trabalho, não
apenas sua vida, mas a de seus familiares e pessoas próximas são
impactadas. Por conseguinte, as relações com essas pessoas ficam abaladas.
Isso ficou claro quando falou do período em que os pedidos de
aposentadoria antecipada passaram a ser freqüentes, por sugestão e
incentivo da própria empresa, na década de 90.
“Teve muita gente que saiu na emoção e depois se arrependeu.
Primeiro porque não tava preparada pra aposentar. Teve pessoas que
chegaram às 8h na fábrica e às 17h já tavam aposentadas. A família nem
sabia. Então, quer dizer, não teve preparação emocional. Porque antes, a
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
140
PQU fazia um trabalho de preparação com psicólogos. Mas como o grupo foi
muito grande e ela tava incentivando de qualquer modo, isso foi muito
traumático”.
Novos significados do trabalho
Quanto ao significado do ingresso no mercado de trabalho, nosso
entrevistado afirmou:
“– Era tudo! era uma realização! Primeiro porque, por exemplo, eu
conquistei muita coisa no trabalho, em função de um salário que era acima
da média dos meus amigos. Quem ganhava mais entre meus amigos,
ganhava metade do meu salário. Eu até os dezoito anos não trabalhava,
porque a meta do meu pai era dar uma boa formação. Muitas vezes os
amigos dele falavam que ele era um louco. Como podia, na idade que tinha
(60 anos), sustentar a família inteira sozinho, sem nenhum dos filhos
trabalhando? Isso aí é uma coisa que me marcou muito. Quando ele se
aposentou, eu tinha 19 anos e só então comecei a trabalhar.”
Seu relato evidencia certo “orgulho” pela oportunidade inicial de um
trabalho bem remunerado, razão pela qual julga ter tido um destino
diferente do dos seus colegas. A boa remuneração seria resultado da “boa
formação” proporcionada por seu pai. De sua experiência no mercado de
trabalho e da oportunidade que o berço familiar lhe proporcionara, Chico
extraiu duas lições: a educação / formação seria o passo inicial para uma
trajetória bem sucedida no mercado de trabalho e, por isso mesmo, o
estudo, a melhor herança que um pai pode legar a um filho. Conforme seu
relato:“ eu trago isso aí até hoje e passo para os meus filhos. O estudo é a
maior herança que um pai pode oferecer para um filho. Não tem bem
material, dinheiro que supere isso.”
Sua análise sobre o mercado de trabalho enquadra-se no que Beck e Beck-
Gernsheim identificam como resultante do processo de individualização. Para
esses autores, a individualização é um produto do mercado de trabalho e
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
141
manifesta-se na aquisição, oferta e aplicação de determinadas habilidades de
trabalho, obtidas por meio de educação, mobilidade e competição. Segundo
o relato de Chico, seu destino profissional não foi outra coisa senão o
resultado de oportunidades individuais. Elas não se enquadram num
contexto de lutas operárias, não representam as conquistas, dificuldades, e
descobertas dos trabalhadores petroquímicos – em sua coletividade, mas,
sim, de uma pessoa, especificamente.
Com relação ao significado da atividade de trabalho, comentou: “Pra
mim, hoje, o trabalho é uma realização. Às vezes, nem sempre. Mas, na
maioria dos dias, a gente enfrenta desafios. Em compensação, são esses
desafios que me levam a incentivar os meus filhos, fazer com que eles
continuem, continuem sua trajetória na faculdade.. etc.”
O aprendizado, conhecimento e atualização contínuos são apontados pelo
entrevistado como estratégias para uma pessoa se manter no mercado de
trabalho. Esse processo de aprendizagem termina no âmbito profissional,
não se limita aos conhecimentos da escola / universidade. Suas
recomendações para a permanência no mercado de trabalho são: “Ética e
respeito pessoal, independente do nível, são importantes. Mesmo eles saindo
de uma faculdade não podem achar que sabem tudo. Eles não sabem nada.
A estratégia, em primeiro lugar, é o conhecimento, o conhecimento de várias
funções.”
Talvez quisesse referir-se à experiência profissional quando usa o termo
‘conhecimento de várias funções’. Além disso, a continuidade dos estudos é
importante. Chico chama atenção para a efemeridade de algumas profissões,
dada a mutabilidade do mercado, que produz novas demandas. Isso reforça
a necessidade de que os profissionais estejam atentos às transformações do
mercado.
“Hoje uma profissão é a mais solicitada no mercado, amanhã muda.
Tem tantas profissões que surgiram e acabaram. São efêmeras. Então tem
que ta sempre com a visão no futuro, porque se achar que já é suficiente....
Ninguém tem bola de cristal. Você faz um curso superior... aí tudo muda. Há
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
142
uns tempos atrás essa parte de computação, quem dominasse... se dava
bem. Hoje não é nada. Tem dez profissionais da área disputando uma
mesma vaga. A concorrência é bem maior. Nós temos lá três escriturários.
Um deles é formado em informática e tava lá como digitador, ganhando R$
800.”
Crítica sobre as mudanças do mundo do trabalho
A competitividade é o que define o mercado de trabalho hoje em dia. “A
competitividade tá em tudo. A qualificação também. Você tem que se
preparar porque antigamente você saía da escola com um diploma e o
emprego tava garantido no dia seguinte. Hoje você tem que oferecer
conhecimento, qualidade do seu serviço. Hoje em dia não é assim, um
diploma não quer dizer nada.”
Ao dar sua definição sobre o mercado de trabalho, Chico faz a crítica:
“A palavra principal é competitividade. Isso acarreta stress, insegurança, fica
difícil você planejar a vida profissional, dar continuidade. Antigamente você
tinha um emprego, se fizesse o seu papel você não era mandado embora.”
Mesmo tendo uma história de mais de 25 anos na PQU, como efetivo,
ele percebe que os tempos são outros e as exigências do mercado também
se modificaram. “Antigamente o bom empregado era aquele que entrava e
se aposentava. Hoje em dia, a política de emprego diz o seguinte: o mau
empregado é aquele que quer se aposentar na mesma empresa.”
De seu ponto de vista, a mobilidade é, um dos aspectos fundamentais para o
crescimento de um profissional hoje em dia. Ela é também uma medida para
avaliar o ‘bom profissional’. Aqui, é como se nosso entrevistado tivesse
apontando um desencontro entre o seu perfil profissional e aquilo que o
mercado de trabalho espera dos profissionais. “aquele que quer crescer, ele
entra numa empresa, aprende e vai pra outra empresa. São quatro, cinco
anos, ele muda de empresa. É assim que ele cresce. Se ele ficar no mesmo
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
143
emprego, ele fica estagnado, chega um outro de outra empresa, vem outro
de outra empresa, tem mais conhecimento, tem mais valor do que ele.”
A avaliação sobre as mudanças do mercado foi concluída quando
Chico comparou o modo como ingressou no mercado de trabalho com o dos
filhos. “Meu primeiro emprego eu praticamente cai de para-quedas e voltei
empregado. Hoje em dia, primeiro, você não arranja um emprego, você
arranja um estágio. E depois ninguém sabe como vai ficar.” De sua
perspectiva, tal quadro “se deve às conjunturas do mercado, à abertura do
mercado, às importações”.
Em outras palavras, a competitividade reforça a dificuldade de arranjar
um emprego. Não é preciso ir longe para chegar a essa conclusão. O
exemplo vem de sua própria casa.
“Hoje em dia a concorrência é muito maior. Meu filho participou de uma
seleção para estágio onde tinha 3.400 pessoas. Desse total, selecionaram 20.
Isso porque era pra estágio, imagine um emprego. O anseio é começar a
trabalhar numa empresa grande, que dê perspectivas de crescimento
profissional.”
Ao fazer comparações entre seu modo de encarar o mercado de
trabalho e a vigente, o entrevistado cruzou três perspectivas: a sua, a de seu
pai e a de seus filhos. Para dar um retrato dos tempos atuais, recorreu a
comparações entre as três gerações. “Eles (os filhos) já têm uma visão
diferenciada em relação à minha época. O meu pai, por exemplo, dizia que,
além do conhecimento, quanto mais a pessoa estudasse, maiores as chances
de conquistar um trabalho.”
Chico indica que, o excesso de competitividade deixa poucas
possibilidades de escolha para quem quer fazer parte do mercado de
trabalho. Assim conclui: “Hoje, com bastante empenho você poderá ser
escolhido e não escolher”.
A experiência de seus filhos contribui para que Chico refine sua
interpretação sobre a situação do mercado de trabalho. Ele destaca as
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
144
angústias de quem procura uma vaga de emprego. “Eu vejo uma coisa muito
estressante porque tem muita incerteza no futuro. Eles se perguntam: ‘Eu tô
estudando pra que?’ É tudo muito incerto e difícil, e, além disso, o
investimento tem que ser grande, sem garantia nenhuma.”
Chico completa o panorama: “Eu, na minha época, pra escolher um
emprego usei como critério o fator distância (escolhi a empresa mais
próxima). Hoje, meu filho pega 4 ônibus pra se manter em um estágio.”
Reinventando o trabalho
“Eu vejo aquele rio a deslizar
O tempo a atravessar meu vilarejo
E às vezes largo o afazer
Me pego em sonho a navegar
Com o nome paciência
Vai a minha embarcação
Pendulando com o tempo
E tendo igual destinação
Para quem anda na barcaça
Tudo, tudo passa
Só o tempo não...”
Chico Buarque,
Xote de navegação/ As cidades
Cadu: 50 anos, casado, vive em Santo André com a mulher e seus três
filhos. Tem segundo grau completo e curso técnico, chancelado pelo Senai e
em diversas áreas: caldeiraria, encanador, curso de mecânica geral. É
aposentado da Petroquímica União e como terceirizado, atua na Platume na
função de encarregado de manutenção.
Cadu é um homem de estatura média, pele clara e tipo magro. Tem
cabelos levemente enrolados, olhos amendoados e sobre seus lábios cai um
bigode fino, que encobre um pouco o movimento da boca. Fala com sotaque
que às vezes parece paulista e às vezes mineiro. Filho de pai baiano e mãe
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
145
mineira, Cadu nasceu em Santo André e tem mais dois irmãos. De seus pais
recebeu a influência do trabalho em fábrica.
Do mesmo modo que para grande parte dos entrevistados, sua
incursão no mundo do trabalho realizou-se bem cedo, aos 13 anos, motivada
pela necessidade de ajudar seus familiares. Mesmo assim, considera que o
ingresso no mundo do trabalho representou uma mudança pra melhor:
“ Eu acho que teve mudança pra melhor. Porque eu comecei a
aprender o porque de trabalhar, a necessidade de trabalhar. Na época era
pra ajudar os pais. Eu estudava à noite e, ao mesmo tempo, trabalhava de
dia. Comecei fazendo meio período em farmácia. Nessa época eu estudava
de dia. Mas trabalhava meio período. Aí com 15 anos eu comecei a trabalhar
em loja, em Santo André, registrado em carteira e, deu seqüência, aí
começou minha vida profissional.”
Foi em 1979 que Cadu entrou na Petroquímica União, como
auxiliar de almoxarifado. Saiu dessa área para atuar como encarregado
de tubulação e montagem, de onde saiu como mestre de tubulação e
manutenção. Conforme diz:
“Eu comecei a trabalhar como auxiliar de almoxarifado, aí passei
pra manutenção como encanador industrial. Aí eu fui fazendo os cursos
e tal, aí passei pra encarregado de tubulação e montagem e saí como
mestre de tubulação e montagem. Essa função eles extinguiram, mas
seria como um técnico em manutenção.
Ele explicitou a divisão de funções no setor em que trabalhava:
É assim, vem os engenheiros, depois os técnicos, o mestre e depois os
encarregados. Depois vêm os oficiais. Os oficiais, o mestre e depois os
ajudantes.
Depois, em 92, eu saí da PQU e fui trabalhar pra Rhodia, em Santo
André. Lá eu fiquei contratado pela Montecalme, como terceiro, prestando
serviço. Fiquei dois anos como encarregado de tubulação e montagem. Aí eu
saí e mandei currículo para a Fundação Antonio Prudente, não sei se você
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
146
conhece o Hospital do Câncer. Lá eu fiquei oito anos. Lá eu era supervisor de
tubulação e montagem. Era mecânica hidráulica. O nome muda porque cada
empresa classifica duma forma.”
Como dito antes, o setor de manutenção foi um dos que mais sofreu
com a reestruturação, uma vez que foi lá que os cortes se concentraram.
Ali os funcionários trabalhavam cotidianamente na expectativa de que
podiam ser desligados. Daí a tensão e o stress diários. Cadu fala sobre a
forma como se sentiu durante o processo de reestruturação.
“Você balança né, quer queira ou não você fica balançado! Eu ficava
inseguro né! É bem difícil, porque você precisa do emprego. Então, de
repente você acha que tá bem empregado, aí de repente começa a surgir
boatos: Vai reestruturar, vai ampliar, vai ter uma mudança. Aí você
não sabe se, nessa mudança, eles tão contando com aquele total de
funcionários ou não. Então você fica naquela expectativa né! Não tão boa
né. Depois que passa, aí você já percebe alguma coisa de melhora, mas às
vezes não. É bem complicado, principalmente quando tem uma redução de
quadro. Quando aparece um processo de redução, o clima de expectativa e
tensão é geral e é ruim pra o trabalhador.
A anisedade e insegurança devido à reestruturação acirram a
competitividade no ambiente de trabalho, resultando em maior exigência
por parte da empresa e empenho dos funcionários. Assim, eles buscam se
aperfeiçoar e implementar melhorias em seu trabalho, na esperança de se
manterem na empresa. Na corrida pela manutenção de uma vaga ganha
quem se mostrar mais preparado, do ponto de vista técnico. O relato de
Cadu indicou isso:
Então, sempre há aquele clima de..., por exemplo, vão reestruturar, vão
mexer com alguma coisa, todo mundo comenta sobre o assunto. As
pessoas falam, todo mundo comenta sobre a grande dúvida: se vai diminuir
o número de funcionários, se vai aumentar, então gera aquele clima de
insegurança né! Vc não sabe se vai continuar com os mesmos funcionários,
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
147
se eles vão querer continuar com os mesmos funcionários, se eles vão
querer trocar.. Por exemplo, o funcionário hoje tem que tá qualificado, tem
que tá procurando o aperfeiçoamento, melhorias contínuas, se não ele tá
fora do mercado. Então, a preocupação é essa. O pessoal que não se
prepara acaba ficando preocupado, aí saem aqueles comentários: será que
fulano vai ser cortado?
Mas eu acho que quem procura tá sempre melhorando, fazendo
cursos específicos da função. Esse tá mais sossegado. A empresa hoje quer
isso né!
Nesse quesito, ele discorda de Bira, entrevistado da categoria dos
efetivos, que aponta que além da qualificação e do aperfeiçoamento,
muitas vezes ter bom relacionamento com o chefe torna as coisas mais
fáceis.
Cadu explicou em detalhes como era trabalhar, no período de cortes,
no setor de manutenção, onde atuava. Diferente de parte dos operadores,
que afirmaram que em seu setor o enxugamento funcionou mediante o
Plano de Demissão Voluntária e de aposentadoria, ele deixou claro que na
manutenção houve um processo de terceirização. Por isso, ele percebeu
que o comportamento dos funcionários mudou, a relação entre eles tornou-
se mais competitiva. Conforme a fala a seguir:
“Ah, muda sim! Por exemplo, você tem sua rotina de trabalho, mas
quando se fala em corte de funcionários, em redução, você fica
preocupado. Com isso, talvez você queira fazer mais que aquilo que
você faz, que eu acho que talvez nem seja o correto. Mas, todo
mundo sai correndo. A expectativa é essa. E eu acho até errado, porque
você começa a atropelar, pode nem fazer sua função corretamente.”
Meu interlocutor deu indicações de que a competitividade favorece
comportamentos mais individualistas, criando-se um clima de “salve-se
quem puder”. Evidenciou que não havia espaço para a condução de
propósitos comunitários. Pelo contrário, a concorrência entre trabalhadores,
motivada pelo medo do desemprego, coibia condutas tradicionais
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
148
ancoradas na reciprocidade entre eles. Cadu revelou como a reestruturação
influenciou a conduta incorporada pelos trabalhadores, ao longo de anos de
carreira:
“Por exemplo, você tem 20 anos numa empresa. Você tem uma rotina
e um comportamento. Se você vai mudar tem que ser num comportamento
normal, de acordo com o que você tem no dia-a-dia. Não é achar que em
um dia você pode fazer o trabalho de 20 anos em um mês. Então gera uma
certa ansiedade em todo mundo. Todo mundo fica querendo fazer a mais,
mas é loucura. Cada um individualmente pensa em mostrar mais
trabalho. Fica meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer
um monte de coisa que talvez não leve a nada. Isso por causa da
insegurança de perder o emprego. Hoje vive muito isso né! Qualquer
coisa, a pessoa pensa que pode perder o emprego. Já fica o comentário,
ah, não posso perder o emprego, coisa e tal. Mas, vai fazer o que né? você
é empregado e a empresa precisa mexer em alguma coisa pra diminuir,
porque de repente tem funcionário a mais. Então todo mundo tem que tá
preparado.”
Contudo, é curioso que, conforme o relato acima, a ameaça do
desemprego induza a comportamentos mais competitivos e individualistas e
não resulte na agregação dos trabalhadores em torno de ideais comuns e
em defesa de causas como maior segurança nas relações trabalhistas57,
57 Em A Formação da classe operária, Thompson mostra que “Os valores coletivistas eram defendidos conscientemente, sendo propagados na teoria política, no cerimonial dos sindicatos e na retórica moral. Esta autoconsciência coletiva, associada a teorias, instituições, normas disciplinares e valores comunitários correspondentes, é o que distingue a classe operária do século 19 da plebe do século 18.”(Thomson, 1987:317). Ou seja, no século XIX, a precedência dos valores coletivos sobre os individuais se deu em um contexto que favorecia ações comunitárias e rituais de reciprocidade, ao contrário do que ocorreu no século anterior, quando ainda não tinham adquirido consciência coletiva. No XIX, os operários agiam conscientemente em defesa de interesses comuns e as corporações de ofício, os sindicatos, entre outros, eram os organismos em que esses valores se propagavam. Naquele momento agiam motivados pelo ideal de igualdade entre trabalhadores. No período atual, o excesso de competitividade, as configurações sociais que provocam insegurança, como desemprego, a recomposição dos ciclos de vida profissional ou crises econômicas, combinados com a luta por autonomia, propiciam a adoção de comportamentos individualistas. As pessoas agem tendo como motivação não mais os princípios de igualdade, mas tudo leva a crer que a liberdade é por elas tida como um valor máximo. Por essa razão atualmente, torna-se difícil discernir uma ética operária
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
149
que com pouco esforço poderiam ser partilhadas, se não por todos, pela
maioria.
Na Inglaterra do século XIX, o desemprego também se constituía em
ameaça aos trabalhadores, no entanto o contexto social de formação da
classe operária favorecia a incorporação de hábitos baseados em regras de
comportamento que tinham como orientação a força da tradição. A
disciplina e o atocontrole moldavam a conduta dos trabalhadores e os
valores formados eram transmitidos mediante a atuação dos organismos
sociais como as sociedades de auxílio mútuo, que posteriormente
transformaram-se nos sindicatos. Propósitos comunitários floresciam em
contraposição à racionalidade capitalista do puro lucro.
Na conjuntura atual, em que grassam os interesses do capital sobre os
da vida social, a competitividade direciona o comportamento dos indivíduos.
A busca por espaço no mercado de trabalho e o aumento do volume de
desempregados reforçam a tendência à individualização ao mesmo tempo
em que inviabilizam a propagação de condutas corporativas, baseadas em
valores coletivos. Ademais, a redução progressiva de postos de trabalho e a
precarização das condições de trabalho limitam o espectro de atuação do
sindicato em defesa dos interesses dos empregados. Até porque esses
interesses tornam-se diversos entre eles.
Nesse contexto, em vez de lutarem pela igualdade de condições, os
trabalhadores lutam para garantirem sua autonomia, ou seja, lutam pela
liberdade de ação e escolha de uma carreira satisfatória, e essa luta é cada
vez mais individualizada, uma vez que delineia a consecução da biografia, e
destino profissional de cada um. A fala de Cadu expressa bem essa situação
“Cada um individualmente pensa em mostrar mais trabalho. Fica
meio corrida, uma loucura! O funcionário querendo fazer um monte de
coisa que talvez não leve a nada.”
Uma hipótese levantada nesse trabalho é de que a ampliação e
diversificação do desemprego tornaram a categoria dos desempregados
que discipline suas ações, uma vez que os trabalhadores agem movidos por interesses provisórios.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
150
determinante na adoção de condutas dos trabalhadores nos ambientes de
trabalho. Ou seja, mesmo que estejam trabalhando as pessoas são
influenciadas pela presença do desemprego. Tornam-se mais competitivos,
mais individualistas simplesmente pela expectativa de que o desemprego
tende a crescer continuamente. Muitas vezes, a experiêcia de desemprego
de amigos, parentes, colegas e vizinhos são determinantes para esta
configuração.
Quando estimulado a refletir e dar sua opinião sobre a situação do
mercado de trabalho, meu interlocutor indicou como a experiência de
desemprego vivida por colegas e conhecidos marcou sua forma de pensar o
trabalho. “Eu acho que hoje tá muito difícil né. Hoje a gente encontra
colegas que ficam muitos tempos, anos e anos sem trabalhar, parado.
Em geral isso traz um monte de coisa negativa.”
Interessante notar que a falta de emprego indique para ele o
engessamento da vida, a falta de movimento, por isso a imagem que ele
constrói do colega desempregado é de alguém que está “parado”. Ao
discorrer sobre a experiência de seu colega dispensado por uma empresa
automobilística, mostrou como a crise em um setor da economia pode
causar insegurança nos demais, de maneira generalizada. Os cortes no
setor automobilístico, que nada tinha a ver com aquele em que atuava,
provocaram-lhe insegurança, devido a ameaça do desemprego.
“Eu acho que em 2002 teve uma crise das empresas automobilísticas
como a Wolksvagen, GM, Fiat, elas demitiam até pelo correio, por
carta. Acho que foi em 2000, um amigo meu, que trabalhava na
Wolksvagen, foi demitido assim. Ele recebeu uma cartinha dizendo que ele
tava desligado da empresa. Então foi um negócio estranho, brusco. Isso
mudou o pensamento do trabalhador, em geral. Aquilo mexeu com
todo mundo! Quando tem uma crise num setor, não é só naquele
setor, é geral, é uma cadeia, uma corrente. Então começa a pesar pra
todo mundo. Quando você ouve falar que a Fiat, a Wolksvagen, que essas
grandes empresas multinacionais tão demitindo, tão em crise, começa a
pesar pra todo mundo, todo mundo sofre com isso porque é geral.”
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
151
Outro aspecto curioso é a percepção, por parte dos trabalhadores, de
que há um elo entre todos os setores de atividade. Por isso, a atenção se
volta para o desempenho da economia, como um todo. A crise em um
ramo, os cortes de emprego, podem ser o prenúncio de problemas nos
demais. A decorrência de um quadro assim é a insegurança em relação ao
futuro. Mesmo as pessoas ocupadas, vivem em estado de tensão, atentas
para a dinâmica da economia. No trecho abaixo, meu interlocutor deixa isso
evidente:
“Isso gera insegurança pra todos. Mesmo pra quem tá trabalhando. Se
você ouve falar que um setor não tá bem, isso altera de algum modo o
desempenho das outras empresas, e é preocupante pra todos. Qualquer
coisinha você já fica assustado. Sempre o funcionário é o que fica mais
preocupado né! Hoje quem tá empregado, qualquer coisinha fica
preocupado. Então, o desemprego deixa você com uma “má
impressão né!”. Hoje você tá empregado, amanhã você não sabe se você
vai ta empregado ou não. Você pode ser um desses que pode ficar
desempregado.”
Cadu observa que o mercado de trabalho mudou muito. Isso fica claro
pela dificuldade de se encontrar emprego, ainda que seja em empresas de
pequeno porte. É como se o fato da expansão e diversificação do
desemprego transformasse a paisagem, demarcando o lugar dos “com
emprego” e do “sem emprego”. No dia-a-dia é com essa imagem, com as
impressões que ela produz, que as pessoas – mesmo que tenham uma
ocupação – dialogam. As impressões sobre o desemprego marcam o
imaginário de quem depende de salário para viver e moldam seu
comportamento.
A insegurança e o medo do desemprego são a conseqüência desse
quadro, por isso, confessou buscar recursos fora do ambiente de trabalho
para reaver a confiança. Nesse caso, em um cenário de mudanças, a
religião cumpre o papel de aliviar as tensões, propicia mais auto-confiança.
“É, nas horas mais difíceis do trabalho a igreja te alivia, ajuda
bastante. Já aconteceu de eu buscar apoio na religião. Foi mais quando
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
152
teve as mudanças. Quando teve a reestruturação, que ninguém sabia o que
ia acontecer, nessa hora foi importante. Sempre nessa hora é importante
buscar o apoio da igreja.”
Revelou também que, na dinâmica das transformações do mercado de
trabalho, a diversificação das opções de carreira dificulta a escolha por uma
profissão. Em pouco tempo, uma ocupação valorizada, em alta, deixa de
existir. Segundo ele, quanto mais possibilidades mais confuso é escolher
um ofício. Apesar de dispor de menos opções quando ingressou no
mercado, acha que era mais fácil. Talvez tenha a ver com o fato de
perceber a recomposição dos ciclos de vida profissional e tendência de
indefinição do statuto de trabalho. Tudo isso torna obscuros os
mecanismos de escolha. Por isso, não arrisca dar conselhos aos filhos,
preferindo deixá-los livres para que utilizem os próprios critérios de seleção.
Ele asseverou:
“Na minha época eu acho que tinha menos profissões, mas você
conseguia se sair melhor. Hoje não, hoje você tem muito mais funções,
profissões, mas eles têm dificuldades. Mesmo tendo conhecimento dentro
das exigências do mercado, é diferente. É muito difícil fazer uma escolha
porque tem mais profissões e funções. Parece que fica confuso porque tem
mais funções. Por exemplo, hoje tem uma função que é a que remunera
melhor, daqui a pouco é outra, e isso não para. Tem muita mudança e isso
dificulta que o jovem faça uma escolha. Eu prefiro não interferir na escolha
deles, mas eu fico preocupado com a escolha deles.”
Exigências do mercado e individualização de
responsabilidades
Cadu, conforme a maioria dos entrevistados, considera o nível de
escolaridade um critério importante na seleção de profissionais, além disso,
pode ser determinante para a manutenção ou a dispensa de pessoal, hoje
em dia. Sua explicação mostra que, de certo modo, os trabalhadores
perfilham a ideia de que eles próprios são os responsáveis por sua
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
153
empregabilidade no mercado de trabalho. Eles introjetam essa
responsabilização, como se estivessem em estado de vigília, atentos para
as exigências de quem lhes contratou. É sua incumbência ter escolaridade e
qualificação compatíveis com as expectativas da empresa. Por esse
raciocínio, uma pessoa somente é dispensada quando não se empenha o
suficiente no desempenho de sua função. É curioso notar como quase não
aparecem referências de reciprocidade com os colegas.
Em meio a diversificação das formas de emprego, cada um está
sozinho em defesa de seu lugar no trabalho, e a escolaridade e a
qualificação são como escudos contra o desemprego. Tal configuração
indica a mudança das fontes identitárias, conforme Dubar teoriza, havendo
predominância das identificações ‘para si’ em detrimento das identificações
‘para o outro´. É o que se evidenciou no excerto abaixo:
“ (...) na PQU mesmo eu sei todas as normas e procedimentos de
trabalho, quero ver as rotinas estabelecidas pra aquele tipo de serviço que
eu vou fazer através de papel impresso. O que eu preciso fazer, qual o
procedimento correto. Então, se você não tem escolaridade você não
tem acesso a nada hoje. Mesmo você sendo um bom profissional, mas
se você não tem nível de escolaridade, você fica de lado. Não é porque a
empresa não dá oportunidade à pessoa, mas é porque a pessoa não se
esforça, não procura acompanhar as exigências da empresa. Você não
consegue interpretar um desenho, e não sabe outras coisas.”
Contudo, após argumentar que as oportunidades são para poucos, o
entrevistado pontuou que a escassez é tanta que até os jovens e quem tem
alta escolaridade podem ficar sem trabalho. Ou seja, o âmbito profissional é
o das incertezas, não há mais balizas em que se aprumar e aquilo que
antes garantia ao ingresso ou a manutenção no mercado de trabalho, hoje
não é mais. Depois de delinear esse quadro, ele arrematou com o
diagnóstico de que o país passa por uma crise de emprego. Conforme o
trecho a seguir:
“Hoje em dia é bem mais difícil. Antes, você ia em qualquer esquina
e conseguia um trabalho. Nem que não fosse um bom emprego, mesmo
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
154
que fosse numa empresa fundo de quintal. Mas, hoje, nem isso você
consegue. Hoje você vê muito jovem parado, com nível superior já, e
desempregado. Tá cada vez mais difícil. O país passa por uma crise
de emprego. A gente vê falar em investimento, mas é um processo lento.
É a longo prazo, não é imediato.”
Além da escolaridade e qualificação, o acirramento da
competitividade no mercado exige mais autonomia dos profissionais. Depois
de criticar os empregados que demonstram menos diligência no exercício
de suas atividades, o entrevistado fez ponderações ao considerar que a
empresa poderia investir mais nos funcionários. Destaca que as
oportunidades são desiguais também dentro das corporações, nem todos
desfrutam do benefício dos investimentos da empresa em sua carreira. Por
fim, concluiu que, muitas vezes, os funcionários não investem mais em sua
carreira devido a restrições de renda.
(...) “A pessoa sabe fazer, mas hoje você percebe que muita gente
só consegue trabalhar se você chegar e passar pra ele a atividade que tem
que fazer, se você disser: Faz isso! Se não tiver a pessoa pra fazer a função
de dar as ordens, as rotinas, ele fica parado, não consegue sair dali e fazer
o que tem que fazer. Então, falta o que? Falta investir no funcionário,
eu acho. Eles fazem isso, mas eu acho que é limitado. Nem toda
empresa tem condição de pegar cem funcionários, que seja até menos que
isso: vinte, trinta funcionários e oferecer curso pra eles. E, por outro lado,
às vezes o funcionário também tem vontade, mas ele tem uma
família pra sustentar, um monte de coisa pra pagar, e às vezes, ele
só não tem condições de pagar, não tem condições de patrocinar
isso né! Por isso, a minha escolaridade influencia minha situação de
trabalho.”
Outro tema que se destacou nessa entrevista foi o das relações
associativas. O aumento da responsabilização dos indivíduos por seu
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
155
destino profissional e do desemprego tendem a limitar o espectro de
atuação do sindicato, dado que a lógica que permeia os comportamentos é
a da individualização. Antes, as organizações tinham o papel claro na luta
pelos direitos do trabalhador. Segundo Cadu, era:
“Mostrar pra o funcionário o que ele tem de direito, como funcionário.
Esclarecer os interesses de cada um: a empresa é isso, o patrão é isso e o
empregado é isso. Cada um defende um interesse.”
E hoje em dia, coom isso se dá? Qual o principal papel do sindicato na vida
dos trabalhadores? Em outras entrevistas, alguns respondentes sugeriram
que em de vez oposição o sindicato deve adotar uma postura conciliadora
com os empresários. Cadu limitou-se a falar que, de sua perspectiva, houve
uma diminuição da participação do sindicato no cotidiano do trabalhador.
“ Eu acho que o sindicato deixou de participar mais. Antes, o sindicato
dava muitas palestras, hoje eles deixaram de fazer, a participação é menor.
Na verdade eu não sou sindicalizado, então eu não sei direito, eu posso ter
uma impressão errada, como eu não acompanho passo a passo, né. Mas,
eu vejo dessa forma.”
Considerações gerais sobre os terceirizados
Coforme dito antes, entre as três categorias, as primeiras entrevistas
ocorreram com os terceirizados. Ao longo do processo de coleta de
informações percebi que a maioria dos funcionários era egressa da
Petroquímica. Frequentemente, tinham tido uma longa experiência como
funcionários da empresa, retornando a ela, numa condição diferente,
mudara portanto o estatuto. A maioria voltou depois de se aposentar, outro
depois de ser dispensado, e de atuar em outras empresas. Esse aspecto
propiciou que as pessoas falassem da carreira considerando as
transformações porque passaram, inclusive o fato de atuarem na mesma
empresa em condições diferentes; Sua condição de ex-efetivos também
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
156
permitia discutir os processos de mudança como reestruturação,
privatização de maneira acurada.
Dois dos respondentes atuavam na área de produção, dois na
manutenção e um na de segurança do trabalho. Essas pessoas estão na
faixa dos 50 anos, ficaram entre 13 e 25 anos na empresa como efetivas e
todas elas estavam lá quando do processo de privatização.
Mesmo atuando em àreas diferentes, há semelhanças entre seus
pontos de vista, sobre diversos aspectos relativos à recomposição das
relações de trabalho. O fato de terem cerca de 50 anos de vida e longa
experiência profissional permitiu uma discussão mais madura, baseada em
comparações entre as diferentes fases de mudança do mercado de
trabalho.
Eles falam dos temas propostos, sobre o mercado de trabalho, em
geral, e também especificamente sobre o setor petroquímico, de maneira
aprofundada. A conformação de opiniões se dá na discussão a respeito de
diferentes assuntos. Entre eles os mais freqüentes são: novos sentidos do
trabalho, figurações do desemprego, recomposição dos ciclos profissionais,
conseqüências da privatização, papel do sindicato, entre outros. Há outras
questões em que discordam, como na forma de discutir a autonomia.
Recomposição dos ciclos profissionais
Um dos temas caros, que motivaram esse estudo é como se dá e
como é vista a transformação das formas de emprego e a recomposição
dos ciclos de vida profissional. Como foi argumentado, o desemprego e
formas híbridas entre ele e o emprego tiveram papel fundamental na
reorganização do campo de trabalho. Por isso, a longa experiência dos
entrevistados no mercado de emprego confere respaldo à consecução
dessa pesquisa. Foi com base na visão constituída ao longo dos mais de 15
anos de vivência no mercado de trabalho que essas pessoas foram
estimuladas a refletir sobre a recomposição dos ciclos profissionais. Elas
puxam da memória o que viveram nas relações de trabalho e fazem uma
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
157
retrospectiva de como essas relações foram se modificando ao longo do
tempo. Sobre isso, Cadu dá o quadro geral, destacando a diferença entre
como era antes e como ficou:
“Ah tem. Eu acho que antes era mais fácil pra você escolher, definir a
empresa em que você iria trabalhar. Hoje é muito competitivo o
mercado. Então, você sabe que tem uma empresa que é boa, tem porte, te
dá condições de trabalho e tudo que você precisa, mas entrar numa
empresa assim é muito difícil. Antes era mais fácil entrar e tinha mais, se
você não tivesse contente com a função você ia pra outra função.
Hoje já não é assim. Hoje você define a sua função, e, de repente,
aquela função não tá bem. Aí você entra em crise, fica
desempregado porque a função ou área já não é mais necessária. É
preciso estar sempre atento. Por isso que eu acho que sempre tem que
procurar tá atualizado, fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de
mercado. Sempre tiveram vantagem aquelas pessoas que se saiam melhor,
as pessoas que procuravam ta atualizadas. Mas, hoje a necessidade de
atualização é ainda maior.”
Já de início ele apontou a competitividade como um importante
catalisador dessas inflexões. É isso que explica a dificuldade de ingressar e
se manter em uma empresa de porte, hoje em dia. Além do mais, a
complexificação do mercado e o aumento das exigências profissionais
obstaculizam a mobilidade de carreira e de funções. Ele diz isso claramente
“Hoje você define a sua função, e, de repente, aquela função não tá bem.
Aí você entra em crise, fica desempregado porque a função ou área já não
é mais necessária”. Além do mais, a dinâmica do mercado pode provocar
extinção de funções, gerando a redundância58.
O entrevistado percebe essa mudança no dia-a-dia dentro e fora da
empresa. Conforme explicitou:
58 Guimarães (1998) afirma que, a modificação do setor petroquímico resultou entre outras coisas, no enxugamento de funções, e conseqüente desvalorização do capital profissional de parte dos empregados.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
158
“Por exemplo. Hoje a procura por trabalho é muito grande né!. Então
no Pólo Petroquímico é a mesma coisa que acontece com as outras
empresas. Então tem muita competitividade. Você sai de um setor e depois
pra retornar pra mesma função fica muito difícil! Tem muita gente
procurando vaga. Então quando surge vaga, você percebe que tem muita
gente. Eu mesmo, quando saio à trabalho, ou mesmo no sábado ou
domingo, você encontra uma pessoa na rua, que trabalhou comigo lá, às
vezes ta desempregado ou ta em outro lugar, e ele ta, às vezes querendo
voltar ou ganhar um pouco mais, sei lá. Mas, a procura é muito grande.”
Uma vez desempregada, o reingresso de uma pessoa ao mercado fica
mais difícil. Os complicadores são de natureza diversa. Hoje, quem sai da
situação de emprego regulado, pode encontrar dificuldade de reingressar
ao mercado, mantendo o mesmo padrão de antes. Guimarães (2002a)
considera a tendência de haver degradação das condições contratuais para
quem passa pela situação de desemprego. Alguns respondentes concordam
com essa perspectiva, indicando como se dá anova configuração. Segundo
Cadu:
“Não, não é fácil! São poucas empresas aqui no ABC que faz o que faz
o Pólo Petroquímico. Então, se você tem carteira assinada numa
empresa do pólo, ganha um salário, talvez se você chegar em
outra empresa, talvez ela não queira pagar o mesmo salário. Hoje,
ninguém quer rebaixar, e nem a empresa quer rebaixar também.”
Esse quadro se completa com otros aspectos apontados por Nuno. Ele
explicita, pontuando os períodos em que percebeu as principais inflexões na
qualidade do emprego:
“É tinha bastante emprego, aí depois caiu, acho que durante uns 10
anos. (...) acho que ficou difícil pro pessoal que dependia de trabalho né.
Tanto é que começou a ter muito emprego sem registro. Faltou trabalho e
as pessoas aceitavam fazer bicos. (...) Eu acho que até 78 era bom. O que
salta aos olhos entre aquele período e o momento atual é que antes a
ampla oferta de vagas viabilizava a mudança de um emprego para o outro.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
159
Hoje, isso não ocorre mais. “Ah, então, antigamente você saia de uma firma
e entrava na outra com tranquilidade. Eu por exemplo saí da Ford e fui para
a Wolks sem nenhuma dificuldade. Dessa época até 96 ficou muito difícil,
muito difícil. Nessa época, se você saía de uma firma era muito difícil achar
outro emprego. Mesmo o salário ruim você tinha que aceitar, tinha que se
sujeitar a ficar lá.”
Repensando o papel do Sindicato como espaço de
representação
A forma como vêem o papel do sindicato é um dos aspectos em que
os terceirizados concordam. De maneira geral, embora reconheçam que
este organismo social tem a função de representar os trabalhadores,
entendem que mudou a forma de atuação e isso trouxe perdas para os
empregados. Para Cadu, o sindicato tinha um papel de “Mostrar pra o
funcionário o que ele tem de direito, como funcionário. Esclarecer os
interesses de cada um: a empresa é isso, o patrão é isso e o empregado é
isso. Cada um defende um interesse.”
No entanto, considera que a participação está mais tímida, notou uma
redução de atividades promovidas como as de orientação: palestras,
seminários, etc. “Eu acho que o sindicato deixou de participar mais. Antes,
o sindicato dava muitas palestras, hoje eles deixaram de fazer, a
participação é menor. Na verdade eu não sou sindicalizado, então eu não
sei direito, eu posso ter uma impressão errada, como eu não acompanho
passo a passo, né. Mas, eu vejo dessa forma.”
Ainda que ele esteja equivocado em relação à atuação do sindicato,
sua opinião retrata a imagem que se cristalizou sobre o modo de
desempenhar seu papel.
Zeca também indicou que não aprova o modo de atuação do sindicato,
sua relação com as empresas. Ele separa em três momentos a forma de
inserção da organização. O primeiro em que predominava a preocupação
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
160
com os benefícios como “colônia de férias”, serviços odontológicos, etc, que
ele parece julgar periféricos; depois o momento em que era mais combativo
em relação aos empresários e o terceiro de esvaziamento dessa estrutura
de representação devido à perda de credibilidade junto aos trabalhadores,
devida, entre outras coisas, ao aumento do desemprego.
“(...) E depois justamente daquele período de 83 pra cá, mudou muita
a ação de sindicato e empresa. Ah! sim antigamente tinha colônia de férias
né? Venha a colônia de férias, ainda hoje tem a colônia de férias. Mas
antigamente o que o sindicato ia oferecer era isso, era esse serviço, não
tinha aquelas brigas que tem hoje, ou tiveram a um tempo atrás.”
“(...) Houve, justamente porque, eu não sei se o povo trabalhador né?
Trabalhador abriu os olhos e não procura mais o sindicato. Ou se
desvinculou do sindicato tá? Então o próprio sindicato dos trabalhadores, o
que é.”
Ele chegou a atribuir às greves a causa do desemprego de alguns
profissionais. “Porque eu escuto varias pessoas, ‘Ah! eu to assim eu to aqui
nessa empresa, fazendo um bico aqui, por causa que eu fui demitido por
causa do sindicato daquela greve que teve, lembra?’ É comum ouvir isso.”
Por outro lado, Tico adota uma posição que se alinha à concepção que
a empresa tem sobre as formas de representação do trabalhador. O
sindicato está muito político e pouco atento a realidade do custo da mão-
de-obra, fator essencial a ser levado em conta no custo da propdução.
Como pode se ver no trecho abaixo:
“Eu acho que ele tá muito político hoje e cuidando muito pouco do
próprio trabalhador. Acho que não é exigindo muito por exemplo, onerando
a indústria ou onerando o empresário que eles vão chegar em algum lugar.
Por exemplo, eu sou bastante relutante quando tem que colocar uma
pessoa pra dentro pra trabalhar na minha equipe . São tamanhas as taxas
cobradas, as exigências cobradas, e na realidade o empresário brasileiro
hoje é tratado como bandido. Ele já entra numa pendência judicial como
culpado. Ele nunca entra pra tentar ganhar uma solução e infelizmente essa
é a verdade. E em função disso tem menos gente empregando.”
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
161
Ele explicita melhor seu ponto de vista. Para se discutir a relação de
trabalho traz à tona a competitividade do mercado. Assim, reúne os
elementos essenciais para a composiçãop do custo de produção – a carga
tributária, o custo da mão-de-obra (taxas e direiros sociais), mostrando que
tudo isso inviabiliza a contratação de empregados:
“Eu acho que o sindicato, ele deveria pensar bem, que nós estamos
sendo engolidos aí pela China e tudo mais. Por outros países por aí, que
tem uma carga tributária, muito menor e o governo [brasileiro] onera muito
com carga tributária. Onera as industrias e as empresas com carga
tributária enorme. Exige mil e uma coisa, para o funcionário, e o funcionário
mesmo não recebe nada de volta. Você paga aí sobre o salário 120% de
taxa e tudo mais. O quê que esse funcionário recebe sobre isso? Era melhor
que ele não onerasse 120% do empresário e o empresário pudesse dar
50% de salário á mais pra ele.”
Na argumentação de Tico, a mão-de-obra aparece como simples custo
de produção. Sua abordagem não traz nem resquícios da ideia de que o
trabalho tem significação social e que o sindicato surgiu como resultado da
cristalização dos valores de reciprocidade germinados nas relações entre
trabalhadores. Pelo contrário, está distante de qualquer tipo de raciocínio
que tenha como orientação outra coisa que não o lucro.
Vale a pena o esforço de elencar os aspectos que contribuiram para a
construção dessa imagem. Conforme dito na análise da fala de Cadu, a
expansão e a diversificação do desemprego influenciam o modo de encarar
a recomposição das profissões e outros elementos que se relacionam ao
mundo do trabalho. Se o sindicato é um organismo de representação dos
trabalhadores, é natural que a modificação das organizações de trabalho a
diversificação e ruptura das formas de emprego alterem seu papel. No
entanto, as formas de interpretação dessa mudança são as mais variadas.
Alguns respondentes consideram que a diminuição do número de
vagas disponíveis exige uma alteração no modo de o sindicato se inserir.
Entre os desligados, alguns entendem que agora as organizações sindicais
devem adotar uma postura mais conciliadora do que de oposição.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
162
Consideram sem sentido o antagonismo de classes que motivavam parte
das discussões entre sindicato e patrão no passado recente.
Autonomia x Insegurança
Os pontos de vista esboçados por Tico, muitas vezes, pareceram mais
com os dos empresários do que aos interesses precípuos dos empregados.
Isso ficou claro quando relatou sua opinião a respeito das medidas de
reestruturação e sobre o grau de competição dentro das empresas no
contexto atual. Uma das observações de Tico a esse respeito é que ele
considera que o cenário de incertezas e competitividade no mercado de
trabalho gera pessoas mais adaptadas a essas situações. Por isso, ele não
vê de forma negativa tal contexto. Ele compara seu perfil com o dos filhos:
“ Olha a mudança que houve. Eu nunca tive como meta minha
alguma coisa que não fosse tá trabalhando em alguma empresa. Eles,
nenhum deles tem como meta trabalhar em nenhuma empresa. Todos eles
querem ser empresários. Entendeu a modificação? Enquanto eu me
sujeitava a entrar nessa empresa com melhor segurança. Eles, nenhum
deles pensaram nisso. Então, Betinho já partiu pra ter a empresa dele. A
Judy já quer ser autônoma, é, como juiz, promotor. E o Peter tá
caminhando pra isso.” (...).
Continuou suas comparações, pontuando a diferença de
comportamento entre seus contemporâneos e a geração seguinte. A
autonomia, segundo o quadro que ele esboça, é um valor entre os que ele
destaca na geração de seus filhos. Nesse sentido, a segurança não lhe
parece um quesito tão importante para os profissionais que estão surgindo:
“A filosofia deles é diferente. Eu acho que eles estão muito
mais ajustados nos tempos de hoje do que.....// Eles já foram
criados nesse ambiente né! Que seria um negócio conflitante pra
mim. Eu não saberia....//Não vale pra todos, tanto que você vê que o
Helio [refere-se ao diretor da Platume] é empresário né! Ele já partiu
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
163
naquela, eu não vou fazer, eu posso aplicar, eu posso ser um
empresário, eu posso montar e ele é capaz, e ele montou. È uma
coisa particular minha, eu não tô preparado pra ser autônomo
assim.... ter uma empresa, pensava de forma diferente. (... )
O depoimento de Tico me surpreendeu. Com muita freqüência, a
literatura que versa sobre as mudanças nas relações de trabalho aponta
para os problemas que o acirramento da competitividade, a flexibilização
das relações empregatícias, a falta de segurança e a dificuldade de traçar
perspectivas futuras geram ao trabalhador. Bem assim foi a maioria dos
relatos recolhidos. Eles refletem certa dificuldade de adaptação e
sofrimento, por parte dos que dependem de salário para viver devido às
mudanças no contexto profissional. Alguns podem até mostrar-se mais
aptos aos ajustes, mais competitivos. Contudo não estão nesse contexto
por escolha, apenas adaptam-se às circunstâncias59.
É plausível supor que, provavelmente, as gerações futuras se
ajustarão a essas transformações com mais facilidade do que as que
experimentaram relações de trabalho regulamentadas, porque já
conviveram com valores diferentes daqueles, durante sua formação.
Entretanto, algumas observações se fazem necessárias.
Quando Tico discutiu o tema da insegurança das pessoas em relação
às novas configurações do emprego, à ausência de seguridade e ao
desemprego, fez menção ao comportamento de apenas parte da geração
posterior à sua. Restringiu-se a tratar da situação de profissionais que
tiveram acesso à educação, que possuem alto grau de qualificação, além do
fato de já terem crescido num contexto de flexibilização das relações, em
59 No início desse trabalho, defini como um dos critérios importantes para a escolha do objeto de pesquisa entrevistar pessoas que tivessem vivenciado mudanças nas relações de trabalho. Preocupei-me em estudar os que tinham cerca de 15 anos no setor petroquímico, sobretudo que tivessem atuado entre meados dos anos 80 e fim dos 90. Como eu queria compreender de que modo se processava e como era vista pelos trabalhadores a inflexão de seus padrões de comportamento, pareceu-me essencial analisar um período definido, entender o presente à luz do passado. Pensar como as gerações subseqüentes vêem essas mudanças é outro aspecto importante, que decorre do anterior, mas não pretendo me deter a ele, ainda que o considere importante.
Capitulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Terceirizados
164
que a recorrência ao desemprego ou aos momentos de interrupção da
atividade tornou-se relativamente comum. No entanto, ele não faz menção
aos trabalhadores de baixa escolaridade / qualificação. Com isso ignora dois
aspectos fundamentais presentes no debate de Beck e Beck-Gernsheim
sobre as transformações nas condições de emprego: a desigualdade de
oportunidades no processo de aquisição de educação e qualificação e no
mercado de trabalho e o fato de que o contexto em que se dá a primeira
influencia o decurso da segunda.
O fato de Tico referir-se às gerações posteriores à sua, em vez de
discutir sua realidade faz suspeitar de que tenta esconder algo. Essa
digressão pode ser interpretada como uma crítica à forma como seus
comparsas lidam com o novo. Ou seja, ela contrasta com a dos
profissionais atuais. Provavelmente a alteração de hábitos nas relações de
trabalho de seus contemporâneos teve por base a transformação de seus
valores, embora nem sempre os trabalhadores tenham consciência disso.
Por outro lado, é possível inferir que as dificuldades de adaptação ao novo
contexto de trabalho podem significar resistência ao ajuste de valores,
consolidados ao longo de anos, às demandas de comportamentos
diferenciados dos das novas gerações60. 60 Nesse sentido, muitas das críticas feitas pelos entrevistados ao novo contexto se devem ao fato de haver dissonância entre as concepções que ordenaram sua vida no trabalho, durante a consecução de sua carreira, e as exigências que lhe são feitas no presente.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
Despedidos da Petroquímica – falando sobre
as entrevistas
Entre as categorias escolhidas, foi mais difícil estabelecer o primeiro
contato com os desligados pela empresa. A ideia preliminar era entrevistar
pessoas desempregadas, que tivessem saído da Petroquímica. Como me
interessava falar com as que tivessem atuado na empresa entre a década
de 80 e meados de 90, o pessoal que eu contatei, ainda que tivesse
permanecido sem emprego por um certo período, tinha tido oportunidade
de reprogramar sua vida profissional. Algumas pessoas conseguiram fazer
isso antes de sair da PQU, de modo a atenuar sua situação de insegurança.
Ter alguma ocupação, mesmo que em situação mais precária do que a
anterior, era melhor do que não ter nenhuma. Assim, sua saída não fora
tão traumática. Isso não impediu que eu recolhesse as impressões dessas
pessoas sobre os processos de transformação por que passou a empresa,
um dos aspectos fundamentais da pesquisa.
No contato inicial, mesmo sendo indicado por colegas que
permaneceram na Petroquímica, era comum eles fazerem uma avalanche
de perguntas. “Como você encontrou meu telefone, foi ‘fulano de tal’ que te
passou?”, “pra que vai servir a pesquisa?”, “foi o pessoal da Petroquímica
que me indicou?”, “quem está por trás da pesquisa?”. Depois dos
esclarecimentos e justificativas preliminares, da explicação de que se
tratava de uma pesquisa de mestrado de sociologia da USP, a maioria
concordou em participar da pesquisa, ficou mais fácil conseguir o aceite
deles, sobretudo porque eu tentava dirimir, de pronto, as suspeitas de que
se tratava de uma pesquisa encomendada pela Petroquímica União.
As entrevistas aconteceram ou na casa ou no ambiente de trabalho
dos entrevistados. Durante o processo de prospecção de informações com
esse grupo, deparei-me com realidades muito diversas. Em alguns
momentos, isso provocou-me certo estranhamento, pelo tipo de resposta
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
166
que vinha recolhendo. Minha resistência parecia indicar que eu talvez
tivesse noções preconcebidas em relação à realidade de pessoas
dispensadas de suas funções em uma empresa.
Foi, então, inevitável rever o método de produção do estudo a que me
propus. As questões com as quais eu não contava nesse processo, o
contingencial, os diferentes pontos de vistas e percepções dos
entrevistados sobre sua realidade abriam novas possibilidades de
interpretação e de construção do conhecimento sobre a questão do
emprego, do desemprego e suas conseqüências. O que me impunha fazer e
refazer continuamente o trabalho de pesquisa.
Diferente do que acontecia com as outras categorias, que falavam do
desemprego como hipótese, o trabalho com esse grupo impunha discutir a
condição de desemprego vivida no momento ou no passado, o que exigia
lembrar ou reviver situações desagradáveis, incômodas e desconfortos da
vida profissional que conheceram de perto. Nesse caso, esforcei-me para
compreender os tempos de silêncio e as falas lacônicas, tentando reunir os
diferentes depoimentos e dar sentido ao material que recolhera61.
Talvez esperasse ver um quadro geral crônico, de pessoas fortemente
afetadas pelo desemprego, frágeis do ponto de vista emocional, vitimizadas
por sua situação de desemprego. No entanto, as entrevistas exigiram que
eu buscasse compreender o processo que me propus a analisar, despida de
noções preconcebidas.
Era importante olhar a fundo a crise porque cada um tinha passado
devido a situações de insegurança no emprego e ao desemprego, mas
também considerar sua capacidade de reagir às dificuldades e obstáculos e
de encontrar soluções para seus problemas, ainda que fossem soluções
provisórias, como empregos temporários, “bicos”, ou arranjos provisórios.
61 Aqui é importante destacar a delicada e ambígua relação entre pesquisador e objeto de pesquisa no campo das ciências humanas. É necessário que se estabeleçam vínculos de confiança entre ambos, no entanto, o esforço do pesquisador de se aproximar do pesquisado deve ser acompanhado de cautela e distância em relação ao objeto de pesquisado. A identificação com o outro, com seus dilemas e dramas deve ser combinada com um olhar de estranhamento em relação ao que se estuda, como um escafandrista a descobrir novos tesouros.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
167
Foi necessário compreender que, apesar das dificuldades de encontrar
emprego, depois de atuarem em um setor restrito como o petroquímico,
essas pessoas continuavam sua vida, lutando por novas oportunidades,
com a ajuda ou não de centros de solidariedade, sindicatos e entidades
afins. Ou seja, a situação em que essas pessoas se encontravam era
resultado da sua luta e das circunstâncias em que se encontravam.
As biografias aqui relatadas descrevem o percurso singular de cada
um na luta diária pela sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, elas se
entrelaçam num eixo comum qual seja, o de pessoas que conhecem de
perto o trabalho no setor petroquímico e sua transformação.
Meu estranhamento com relação a certos tipos de resposta obrigou-
me a repensar o meu papel de maneira crítica, fez-me entender que as
biografias contavam sua história, por si mesmas, a partir de um contexto
específico, e que minha tarefa era interpretá-las. O fato de surpreender-me
com algumas respostas inesperadas exigia um esforço maior para desnudar
o contingencial, trazendo à tona resultados não esperados.
Os questionamentos em relação aos trabalhadores despedidos, após
uma longa experiência na Petroquímica União, baseavam-se em três
pilares: o impacto do desemprego na vida dessas pessoas, considerando os
âmbitos profissional e pessoal; a capacidade de adaptação à situação de
instabilidade devida às transformações do mercado de trabalho, nelas
incluídas a deterioração salarial e das condições de trabalho e o
comportamento diante do aumento da concorrência e das exigências
profissionais.
Contextualizando a situação dos despedidos
À semelhança da Indústria Química, sobretudo entre o final de 80 e
meados de 1990, a Petroquímica renovou seu quadro de funcionários,
motivada, entre outras coisas, pela contratação de jovens operadores com
níveis mais altos de instrução.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
168
Conforme Guimarães, o processo de enxugamento promovido não
afetou igualmente todas as áreas. “Enquanto alguns setores, como os
departamentos Contábil/Fiscal e de Relações Industriais e a Brigada de
Combate a Incêndios foram reduzidos praticamente a um terço do que
eram, outros” (...) “Aliás, as diferenças em termos de enxugamento entre
os departamentos industriais são notáveis e estão ligadas à diferença dos
processos de reorganização do trabalho.” (Guimarães, 1998: 146)
O Programa de Demissões Voluntárias – PDV foi um outro instrumento
utilizado para a renovação do quadro e, posteriormente, o Programa de
Demissões Orientadas – PDO voltado para aqueles trabalhadores cujo
desempenho era considerado insatisfatório62.
Perfil dos entrevistados Foram feitas sete entrevistas, sendo cinco consideradas válidas, uma
vez que dois dos entrevistados haviam sido readmitidos pela empresa
depois de se aposentarem. Tal circunstância colocava-os numa condição
diferente da das pessoas que viveram o desemprego ou as instabilidades de
mercado sem dispor de outra fonte de renda ou de quaisquer garantias.
Do mesmo modo que os terceirizados, os entrevistados dessa
categoria eram todos homens, casados e tinham filhos, com apenas uma
exceção. Três respondentes têm curso universitário completo, um possui
curso superior incompleto, outro tem curso de tecnólogo e um não tem o
segundo grau completo.
Essas pessoas trabalharam como efetivas na Petroquímica União por
períodos que variam de 7 a 20 anos. Todas estavam lá no processo de
privatização e puderam discorrer sobre esse período de transição da
empresa. Considerei essa uma fase importante para efeito de análise, uma
vez que mostra bem o processo de reestruturação no interior da
62 Esses programas de desligamento, desenvolvidos entre 1991 e 1992, produziram a redução de mais de 36% no total de empregados em relação a 1989. (Guimarães, 1998: 150)
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
169
corporação, de mudança do modo de gestão e transformação da
cultura da empresa.
Se considerarmos a relação desses trabalhadores com a empresa,
podemos dividi-los em dois grupos. O dos que não tinham o objetivo de
permanecer na empresa e planejavam uma vida profissional fora dela, e os
que pretendiam manter-se e desenvolver um plano de carreira lá dentro. É
possível também pontuar aspectos que favorecem ou desfavorecem a
reinserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Passemos às
entrevistas.
Análise das Entrevistas
O universo numa casca de noz
“Eu poderia viver recluso numa casca
de noz e me considerar rei do espaço
infinito...”
Shakespeare,
Hamlet, Ato 2, Cena 2
Pepeu: 47 anos, casado, sem filhos. Dos 14 aos 27 anos, o histórico
profissional de Pepeu ajuda a compor a realidade amargada por boa parte
dos brasileiros, que exercem atividades intermitentes, sem dispor de salário
estável. Depois de longo período inserido em atividade de economia familiar
e de trabalhar em atividades informais, viveu a situação do desemprego por
desalento, num interregno de dois anos. Aos 29 anos, deu os primeiros
passos para voltar à atividade, germinando a ideia de montar o próprio
negócio. No mesmo período ingressou na Petroquímica, onde atuou por
quase nove anos, quando saiu para assumir seu empreendimento.
Atualmente é proprietário de uma loja de molduras e objetos de decoração.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
170
A autonomia e realização do ser
Pepeu é o primeiro entrevistado que apresento neste bloco. Antes de
mostrar seu rosto, é preciso falar de sua voz. Sussurrante, macia, plácida,
preguiçosa de sair. Ela é pensativa, se é que se pode dar essa qualidade à
voz de alguém. O “Dono da Voz” é elegante, tem estatura média e silhueta
fina. Os cabelos grisalhos enfeitam o rosto bem cortado, coberto com pele
clara e barba por fazer. Seus olhos esverdeados são duas lanternas
alumiantes. Um deles, levemente baixo, como quem olha pra dentro de si,
parece buscar a fonte de suas riquezas. Pepeu, com olhar profundo e seus
lábios finos, diz aquilo que pretende que seja a verdade das coisas, da vida
e do mundo. É um homem de convicções.
Seu depoimento foi o tempo inteiro inquietante. Se, por um lado,
elucidou muitas dúvidas, por outro, acarretou diversas interrogações. É um
dos poucos entrevistados que discute a questão do caráter, sem que eu
faça, sequer, menção ao tema. Tem concepções próprias sobre o assunto.
Um dos aspectos mais importantes dessa biografia é que ela conta a
trajetória profissional de uma pessoa que vivenciou diversas situações de
trabalho. Desde as mais precárias – onde se incluem atividade familiar sem
regras firmadas, subemprego, inatividade – até o emprego registrado, com
relações formais estabelecidas. Os quase 9 anos em um emprego formal na
Petroquímica viabilizaram seu projeto de ser dono do próprio negócio.
Durante a entrevista sua fala aparece como um sussurro. A voz quase
inaudível revela momentos difíceis de uma trajetória de trabalho turbulenta,
tortuosa, dramática. Atuou na cadeia da informalidade dos 14 aos 27 anos,
quando experimentou o jejum do mercado de trabalho e conheceu de
perto o degredo, a reclusão. Aos 29 anos, reencontrou a vontade de lutar e
voltou ao mundo do trabalho. Depois de iniciar uma atividade informal e
familiar nos porões de casa, ingressou na Petroquímica União. Só então
passou a desfrutar do trabalho formal, com direitos sociais assegurados.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
171
Filho de descendente italiano, 9 irmãos, sua história reproduz o
exemplo de diversas famílias dessa origem, que se abastecem da economia
familiar. No entanto, esse modelo de sobrevivência deixou cicatrizes fundas
em sua vida. Marcas que ele carrega consigo. Elas também contribuíram
para que Pepeu construísse sua forma particular de ver a vida, bem como
de ver o trabalho e o modo de as pessoas se comportarem.
Entre uma descoberta e outra, meu interlocutor avança pontuando o
itinerário surpreendente de alguém que afirma ter conhecido a escravidão
e, depois de superadas as mazelas desse período, construído o percurso de
uma pessoa que conquistou o que ele próprio denomina autonomia.
Trajetória profissional
Logo de início, quando perguntado sobre sua trajetória profissional, o
entrevistado afirma: “No meu primeiro trabalho eu fui escravo63”. Eu
continuo a entrevista. “Não, eu falo sério”. A resposta vem como um refrão:
“Mas, é verdade, se você trabalha e não tem remuneração, então você é
escravo. Meu pai era o senhor da senzala. É, são coisas que acontecem. Se
você trabalha, você tem só alimentação, você não tem roupa, não tem
nada, é escravidão, não é?”
Por insistência minha, aos poucos, ele explicou melhor sua situação.
Era ajudante de motorista do caminhão de seu pai. “Eu era. Então meu
início profissional foi esse. Com 14 anos comecei a trabalhar assim, fiquei
63 A escravidão, no sentido original, refere-se à situação de pessoas que, privadas da liberdade, estão submetidas à vontade absoluta de um senhor, a quem pertencem como propriedade. No entanto, a escravidão no mundo moderno adquire outros sentidos / O Relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho “Não ao Trabalho Forçado” – 89ª reunião/2001 condena categoricamente o trabalho forçado, mas revela que ele permanece sendo um problema difícil de ser enfrentado em diversas nações do mundo. “O trabalho forçado é universalmente condenado. A eliminação, porém, de suas múltiplas formas - das ancestrais até as mais recentes, que vão da escravidão e do trabalho em regime de servidão ao tráfico de seres humanos continua sendo um dos problemas mais complexos que enfrentam as comunidades locais, governos nacionais, organizações de empregadores e de trabalhadores e a comunidade internacional. Buscar uma forma de pôr fim a essa negação da liberdade humana supõe a aplicação de soluções multidimensionais para combater as diferentes formas que assume o trabalho forçado”. (O Relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho “Não ao Trabalho Forçado” – 89ª reunião/2001).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
172
oito anos nesse trabalho...”(...) “Burro de carga! Então foram oito anos
como escravo.”
Eu procurei esclarecer as dúvidas sobre sua condição de trabalho,
perguntando se de fato ele trabalhou sem ser remunerado durante os oito
anos: “Sem remuneração, só tinha comida.” Era natural meu
estranhamento diante de alguém que, no século XXI, afirma ter trabalhado
como escravo64 no negócio da família, durante tanto tempo de sua vida.
Mesmo quando eu argumentava que, muitas vezes, em atividades de
economia familiar as regras, nem sempre, são claras, Pepeu foi persistente
em sua afirmação. Ele explicou que não se trata do fato de nunca ter sido
remunerado durante esse período. O problema ganha outra dimensão na
medida em que um dos pares da relação – seu pai – incorporou a prática
de vilipendiá-lo, de rebaixá-lo reiteradamente, de tratá-lo como coisa, a
ponto de convencê-lo de que não seria capaz de fazer alguma atividade em
64 Martins (1996, 2000) discute e explicita, utilizando Lefebvre, que “a noção de formação econômico-social retomada e aprofundada por Lênin engloba a de desenvolvimento desigual, como engloba a de sobrevivências na estrutura capitalista de formações e estruturas anteriores”. Com isso, o autor mostra que o capitalismo produz e faz coabitar relações datadas em períodos diferentes, como a contraditória coexistência entre relações escravista e assalariada. Mesmo conhecendo esse aspecto do desenvolvimento do capital e sabendo que a escravidão foi incorporada como uma forma de produção em diferentes regiões do mundo, inclusive o Brasil, eu estranhava a afirmativa de meu interlocutor. Sobre a escravidão nos tempos atuais, Martins mostra que “a escravidão de que se fala é completamente diferente das duas modalidades de escravidão que já tivemos ao longo de nossa história, a escravidão indígena e a escravidão negra, cada qual regulada por um estatuto jurídico diferente. Raramente se trata do escravo-coisa, o escravo-mercadoria, como foi próprio da escravidão negra”. Trata-se, segundo o autor, de “servidão por dívida, na maioria dos casos, o trabalhador subjugado por um endividamento manipulado pelo traficante de mão-de-obra e pelo patrão. Uma dívida artificialmente acrescida para pagamento da alimentação de que o trabalhador precisa. Não se trata de uma sobrevivência do passado. Mas de uma invenção do moderno sistema econômico. Por isso mesmo, podemos encontrar trabalhadores em regime de servidão não só no campo, mas também nas grandes cidades. É o caso freqüente de imigrantes bolivianos clandestinos trabalhando na indústria de confecção em São Paulo. Ou, no limite, dos motoristas de táxi que trabalham em carro alheio, condenados a viver com o que sobra da renda e das despesas que pagam ao proprietário do veículo. Algo muito próximo da situação do chamado escravo de ganho que havia no século 19”. (Martins, Família Cristã, ano 70, nº 821, maio de 2004, p. 64-65). Ainda que a situação de Pepeu se aproximasse da situação denominada de ‘escravo de ganho’, é necessário considerar que ele não recebia por seu trabalho e que sua relação se estabelece no seio familiar, o que revela outras implicações, problemas na base da família.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
173
qualquer outro lugar. Foi nessa condição de humilhado que meu
interlocutor se colocou. Por isso ele ratificou sua afirmação.
Isso ficou claro quando eu pedi que ele explicasse como se sentia
quando ficou desempregado. Na Petroquímica, Pepeu não chegou a ficar
desempregado, porque pediu para ser desligado. Quando saiu da empresa,
já foi direto para seu estabelecimento. Perguntei se, em algum momento de
sua trajetória, ele se viu na situação de desempregado. Respondeu sim e
contou sua experiência de trabalho com o pai mostrando que as
humilhações que sofrera arrancaram-lhe a autoconfiança e a coragem de
lutar por um emprego: “A única coisa que eu lembro é que eu fui criado
como capacho, como um pedaço de lixo. Eu tive um pai que, durante toda
a vida, afirmou sempre que eu não prestava pra nada. Então, o fato de eu
tá desempregado....// eu nem tinha confiança em mim pra procurar alguma
coisa. Como é que eu posso oferecer algo a alguém se eu achava que eu
não tinha nada pra oferecer? (fala isso, com uma certa placidez, mas sua
voz declina).”
A descrição feita pelo entrevistado revela um problema familiar mais
grave. O alcoolismo do pai e as complicações no relacionamento entre eles
também deixaram marcas em sua trajetória de trabalho. “Eu sou filho de
um pai que era motorista de caminhão, alcoólatra, com 9 filhos. Quer
miséria maior, ou quer mais?”. Tudo isso fez com que Pepeu perdesse a
autoconfiança e a força para lutar pela própria sobrevivência. Como
explicou: “Eu ficava largado por aí, não conseguia encontrar o rumo de
onde conseguir emprego, de onde pedir emprego.”
Meu entrevistado mostra o quanto foi difícil superar essa situação e
recuperar a autoconfiança. Mas, nesse caso, não se tratava apenas de estar
sem emprego e dos problemas econômicos que dele decorrem, mas de
estar em posição social degradante, nos termos ditos por Ledrut, agravada
por problemas na relação familiar.
Pepeu permaneceu por dois anos sem procurar emprego, na condição
de desalento. Nesse sentido, quando lhe perguntei se no período que
estava sem ocupação ele tinha buscado fazer cursos de aperfeiçoamento,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
174
mostrou que o quadro em que se encontrava era muito grave. Parecia
sentir-se humilhado, sem necessariamente viver uma situação de
humilhação, tal qual define Ledrut. Procurei saber se durante o período em
que ficou sem trabalho remunerado, ele fez cursos, estudou. Sua resposta:
“Eu era um zero mesmo, eu já tinha largado o estudo. Como eu era um
nada mesmo, pra que eu ia estudar?” (...) “Eu já tinha abandonado os
estudos. Então, nós somos em nove irmãos, todos os irmãos têm curso
superior, o único que não tem sou eu.”
Sua fala está carregada de um tom queixoso. Não sabia como tinha
sido com os outros irmãos, e sobre isso ele falou: “Com todos nós, mas
como eu trabalhava, eu ajudei eles a fazerem faculdade. Todos se
formaram e eu acabei sempre ajudando um ou outro.”
Nesse momento, ele demonstrou assumir a postura de um pai de
família, provedor, e que encaminha seus filhos. Mesmo assim, eu perguntei
se os outros irmãos não trabalharam com ele: “Não, só um irmão, que é
esse que tá comigo na loja até hoje.” (...) “Os demais, cada um foi
seguindo seu rumo, se formaram. Tem dois engenheiros, tem um designer
na GM (General Motors), então cada um teve seu rumo.”
O fato de ele não ter feito curso universitário aparece como queixa e
como crítica. Faltara-lhe ocasião, o momento adequado? Ao trabalhar para
ajudar seus irmãos a concluírem o curso superior, Pepeu perdia a
oportunidade de seguir o mesmo caminho e se distanciava de cumprir o
perfil exigido pelo mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, criticou o fato
de as oportunidades de trabalho serem escassas para os que não dispõem
de curso superior.
Por ser um dos mais importantes, o tema do desemprego permeia
toda a entrevista. Era fundamental compreender o modo como nosso
entrevistado se sentiu na situação de desempregado e sua forma de
superar o problema. Estava interessada em conhecer o limite entre a
situação em que a pessoa se sente humilhada por sua condição de
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
175
desempregado65 e o momento em que consegue reagir e buscar soluções
para o desemprego. Sua resposta foi a seguinte: “Só que teve um momento
que eu pensei, ‘eu não posso ficar assim, eu tenho que fazer alguma
coisa!’. Eu procurei saber quanto tempo durou esse estado, em que ele não
conseguia reagir. “Durou uns dois anos66.”
Mesmo assim, a dúvida de como se deu o registro da mudança
permanecia. Passados os dois anos, o que aconteceu, para que ele
mudasse de atitude? Ele explicou como se deu o início da nova fase: “Aí
começamos a trabalhar aqui na loja, tinha um porãozinho, começamos a
cortar umas madeirinhas, uma coisa assim.”
A única resposta plausível para minha dúvida é que o fim da fase de
reclusão e desalento coincide com o início da descoberta do novo ofício. A
transição se dá em meio a uma crise e as duas situações se confundem.
Não há como usar precisão para tratar do assunto. Mas em sua
argumentação, ele escolheu discorrer sobre a oportunidade que se
apresentava, e abordou como se deu a retomada ao trabalho. Explicou que
um de seus irmãos tinha ganho o material, uns pedaços de barra de
moldura. “Aí, nós cortamos com um serrotinho, lixamos, pintamos, ele fazia
faculdade, e nós vendemos pra o pessoal que estudava com ele.”
Depois do trabalho feito em família, eles já dispunham de recursos pra
dar início ao seu negócio. “Aí depois daquilo, tínhamos algum dinheiro, eu
fui em São Paulo, numa distribuidora, comprei 3, 4 barras de moldura,
trouxe nas costas, aí nós cortamos, aí fizemos tudo de novo.”
Ainda que pareça ter sido fruto do acaso, algo mudou. Pepeu livrou-se
da compleição depressiva, recobrando a vontade de lutar. Aproveitou a
primeira ocasião que lhe apareceu para retomar a vida econômica ativa, por
meio de um trabalho que realizava com as próprias mãos: a confecção de
molduras para telas. Ao insistir em saber os momentos que ele julga os 65 Refiro-me ao conceito de Ledrut (1966) sobre desemprego. 66 Na realidade, dois anos sem procurar trabalho caracteriza a situação de pessoas desempregadas por desalento – que significa a suspensão da procura ativa de trabalho. Mesmo sem ter consciência disso, Pepeu se enquadrava na situação de pessoas que, cansadas de procurarem emprego sem sucesso, desistiram de faze-lo, desistiram da luta por emprego.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
176
mais difíceis do período em que ficou desempregado, ele falou o seguinte:
“Quando a pessoa tá deprimida ela não consegue ter momento bom, não
tem pior ou melhor. Você fica desmotivado, você não tem esperança.
Aliás, é uma coisa que afeta a maioria de nós hoje. Você pode tá
empregado ou não, a desesperança é o que afeta a maioria de nós,
humanos, hoje. Isso eu noto até na loja. Eu virei um terapeuta. As pessoas
choram aqui....”
Mesmo assim, eu interroguei sobre os momentos mas difíceis,
demandando que o meu interlocutor estabelecesse comparações entre as
diferentes fases de sua vida. Buscava entender o modo como ele se sentia
diante dos obstáculos no âmbito profissional e saber como usava os
recursos de que dispunha para resolver seus problemas. Conforme mostro
a seguir: “Não, você não liga né, você fica num estado de inércia. Você não
ta nem aí.”
Depois dessa resposta, busquei entender outras questões relacionadas
à trajetória profissional. Assim, pedi que comparasse o período em que
ficou desempregado com aquele em que tinha atividade remunerada. “Eu
não conseguiria fazer comparações porque os meus ganhos com trabalho,
antes de trabalhar na Petroquímica eram tão irrisórios que não tinha muito
o que comparar.” Nesse caso, resolvi pensar o contrário do que me propus
inicialmente. Me interessei por saber como se deu a adaptação ao trabalho
regular na Petroquímica, depois do interregno em que ele vivera recluso e
sem atividade. “Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, quando
eu ganhei o meu salário!”
A trajetória de Pepeu também aponta outras questões importantes.
Depois de ter trabalhado na informalidade, fazendo bicos, ele viveu a
experiência de atuar num trabalho formal, desfrutando de boa
remuneração, e tendo assegurados direitos básicos, como assistência
médica, FGTS etc. Pepeu viveu realidades contrastantes e conseguiu
distinguir as oportunidades que cada situação lhe proporcionou. Ele
afirmou: “Tudo muda, porque você tem dinheiro, você pode ter coisas que
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
177
nunca comprou na vida, você pode comprar roupas, você pode ter coisas
que não tinha antes.”
Diferente dos demais entrevistados dessa categoria, ele estava
desempregado antes de entrar na Petroquímica, o que me obrigou a
inverter as perguntas relativas ao desemprego. Isso porque a situação de
Pepeu me obrigava a questiona-lo, de maneira inversa, “de trás pra frente”,
em relação ao modelo de perguntas que eu tinha preparado. Em vez de
perguntar como se sentiu desempregado, depois de ter trabalhado na
Petroquímica, eu lhe perguntei o que significou ingressar na empresa após
anos de desemprego.
A distinção entre esses dois momentos contrastantes se evidenciou
quando lhe pedi para diferenciar o trabalho formal do informal. Como pode
ser visto a seguir: “Num trabalho registrado você tem uma retirada mensal,
e essa retirada permite que você compre uma casa, um carro, tudo que
você não obteve antes.” Na perspectiva do entrevistado o trabalho regulado
produz resultados materiais que a inserção na informalidade não permite,
uma vez que a remuneração regular possibilita que a pessoa planeje a vida,
já os os bicos, “Tem dias que você tem, tem dias que não. A não ser que
você monte uma estrutura como essa que a gente tem aqui hoje. Depois de
um tempo você já tem clientela, você sempre vai ter trabalho. Mas, pra
viver como pintor, pedreiro, não dá. Esses tão “arrombados!”. Eu não
entendi a expressão: “Porque não tem como organizar a vida. A própria
cabeça da pessoa é desorganizada!”
De seu ponto de vista, a situação de trabalho e de vida das pessoas
que trabalham de maneira informal expressa a desorganização de sua
cabeça. Ele confirmou essa ideia com uma assertiva: “Totalmente!”
Mesmo assim, resta a dúvida se ele considera que isso se aplica a
qualquer situação de trabalho. “Informal sim. Quando você consegue
alguma organização, você monta uma estrutura como a gente montou aqui.
Se eu fosse desorganizado, não conseguiria ter montado uma estrutura do
nada. Era um porão. De um porão se criou um meio de sobrevivência.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
178
Os argumentos de Pepeu indicam certa culpabilização dos que se
encontram em atividades intermitentes. Toda a desorganização presente na
vida das pessoas que se ocupam de bicos e trabalhos informais reflete a
própria desordem de ideias, do modo de condução de projetos pessoais.
Mais adiante, meu interlocutor matizou a discussão, quando mencionou a
ausência de políticas públicas voltadas para a orientação dessas pessoas.
As atividades informais que ele citou são as que teve oportunidade de
realizar, quando trabalhava fazendo bicos. Por isso, fala com conhecimento
de causa.
Mesmo depois de ter conquistado um trabalho formal, que lhe
proporcionou segurança e estabilidade, e uma remuneração constante, o
entrevistado olha o trabalho de maneira crítica. Segundo crê, no ambiente
profissional, cada pessoa adota um comportamento peculiar, calcado em
valores apreendidos ao longo da vida. As assimetrias entre esses valores
podem gerar conflitos nas relações sociais, que tornam a convivência difícil.
Interessante notar como ele atenta para o fato de que os valores que
norteiam as condutas das pessoas no ambiente de trabalho são recolhidos
ao longo de toda a vida e em outros campos sociais como a família e a
escola, por exemplo.
Comparando o período em que estava desempregado com o momento
em que ingressou na Petroquímica, disse: “Pelo lado financeiro é muito
legal, você ter um bom salário, todo mês aquele salário, aquela coisa toda.
Mas, aí eu comecei a esbarrar na convivência.” (...)“Primeiro, quando você
vai trabalhar num local, você não sabe o tipo de pessoa com quem você vai
conviver. Então, isso torna difícil a convivência. Tem jogo de egos, falha
de caráter”.
Meu interlocutor me surpreendeu ao enveredar para a discussão sobre
caráter, sem que eu mencionasse o assunto. Esforcei-me para compreender
em que sentido ele empregava o termo. Falando sobre o ambiente de
trabalho, ele disse que tinha briga de egos: “Ah, uma série de intrigas.
Aquelas intrigas....// entra ano, sai ano, pressões, são as falhas de caráter,
a coisa de passar a perna, ‘puxar o tapete’.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
179
Quando lhe pedi para explicar a que se deve a falha de caráter das
pessoas, ele afirmou o seguinte: “À falta de cultura, à falta de valores! Aí já
entra o Estado, a TV. Eu assisti uma propaganda na TV, onde o sujeito
pede pra o vizinho receber a encomenda que tá pra chegar. Aí esse vizinho
recebe a encomenda, abre o pacote, é uma TV de plasma, tela plana. Ele
abre o pacote, usa durante dias a TV do cara, aí quando o vizinho vai lá pra
ver se ele havia recebido um pacote, aí ele se pergunta “recebi?”. Quer
dizer, ele nem tá questionando se vai devolver o que é do outro. Olha só,
que propaganda canalha! Que valor que eles tão querendo passar, quando
tem milhões de pessoas assistindo? Então nosso sistema de vida é muito
canalha.”
A explicação dada por meu interlocutor deixou-me um pouco confusa,
o que fez com que eu questionasse a qual sistema ele estava se referindo.
Eis a resposta: “ Eu me refiro às empresas de propaganda. Eu também não
consigo avaliar tudo.” O simples raciocínio de que as empresas de
propaganda servem a quem lhes encomenda o serviço fez com que Pepeu
reformulasse sua crítica, agora conferindo valor moral às ações dos que
figuram no exemplo escolhido. Seu comentário trouxe à tona um outro
tema: o poder da televisão como formadora de opinião e indutora de
comportamentos. Também, tanto a empresa, quanto a contratada são
canalhas. Aquele que fez a propaganda e aquele que aceitou. Quer dizer, se
sou eu que to contratando a propaganda e o cara faz uma propaganda
canalha dessas, eu despeço ele na hora!”
Em sua fala o respondente também mostrou a importância que julga
que os valores têm na formação das pessoas e que eles são moldados por
meio da experiência de cada um nos diversos ambientes sociais em que
vive. Pepeu ratificou a ideia de que a conduta de uma pessoa no âmbito
profissional seria resultante da confluência de sua experiência nos
diferentes espaços sociais. “Você lembra de uma propaganda de uma
senhora varrendo a calçada, aí vem um moleque correndo e mete o pé na
lata de lixo. Olhe que propaganda canalha! Isso reflete no futuro, o valor do
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
180
trabalho. E outra coisa, vem o fator humano. Você só pode dar o que tem.
Se eu sou um canalha, o que eu posso passar pra você? Os valores que eu
tenho. Se eu tenho problemas familiares, formação, tudo vai refletir no
ambiente de trabalho.”
Ele tentou mostrar que a formação do caráter resulta da imbricação
de influências dos diversos âmbitos sociais na constituição de valores.
Família, escola e trabalho são os campos que julga importantes na
formação dos princípios. Conforme indicou: “O Estado deveria ensinar
caráter para as pessoas. A nossa mãe, que é responsável por nossa
educação, desde criança falava: “– viver na miséria é uma coisa, viver na
imundície é outra“. São esses valores que os pais não tentam passar pra
um filho porque o Estado também não passou pra os pais. A família foi
denegrida.”
Segundo o comentário de meu interlocutor, a formação de princípios
morais se daria por meio de relações estabelecidas no seio das instituições.
Caráter aparece aqui como algo que se ensina, a partir de critérios morais
determinados. Pepeu parece fazer distinções entre o grau de
responsabilidade que cada uma das instituições teria nesse processo de
estruturação dos princípios das pessoas. Por ordem de importância viria:
primeiro o Estado, depois a família (representada pelo papel da mãe) e
depois a escola. Por outro lado, ele desmonta a possibilidade de se fazer
associação entre pobreza falha de índole. O poder público teria o papel de
equalizar oportunidades e de inculcar os mesmos valores morais a todos.
Uma vez que o Estado não cumpre esse papel, põe-se a perder a
formação de toda uma geração.
Competição x Caráter
De acordo com o depoimento de meu interlocutor, a competição
acirrada no mercado de trabalho pode induzir uma pessoa a cometer erros
que denunciam ausência de princípios morais e defeito de índole;
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
181
entretanto, também afirma que “quando o caráter é bem formado” a
pessoa tende a preservar a relação de confiança com o outro. Desse modo,
dá uma conotação moral a esse conceito. Sua explicação parece estar em
consonância com a noção de Sennet sobre caráter. As falhas tornam-se
evidentes na medida em que as ações de uma pessoa ferem princípios
morais de lealdade e de confiança em relação às outras com quem convive.
Isso é o que ele revela quando discute o comportamento de pessoas que
trapaceiam as outras no trabalho. “Às vezes é o cargo que tá sendo
concorrido ali, mas pra ganhar porcaria de R$ 300,00 a mais no salário. É a
competição que impulsiona, mas se a pessoa tem caráter bem formado, ele
vai dizer: “certas coisas eu não faço pra atingir aquela pessoa”.
Mesmo aceitando a competição, própria do regime capitalista, Pepeu
considera essencial que se adotem ações que preservem a relação com o
outro. Fazendo isso, olha com desconfiança para a pressa e a voracidade
das relações capitalistas, reclamando que os limites sociais freiem a
imposição da racionalidade capitalista67. Tenta destacar a importância de
outros valores, moralmente louváveis, como ‘lealdade’, ‘compromisso’,
‘honestidade’, na composição do caráter. Isso é o que vemos nas próximas
falas: “Eu to num regime competitivo aqui, mas eu não dou propina pra
ninguém. Se vem uma empresa me contratar pra fazer os trabalhos, não
tem propina pra ninguém, eu prefiro nem pegar o trabalho. O que eu posso
fazer é, depois do trabalho concluído, eu posso dar um presente, e não
subornar essa pessoa.”
67 Em A Sociabilidade do homem simples, Martins comenta que “Thompson, na Inglaterra, chamou a atenção para a importância que tiveram as condutas corporativas e a economia moral, a tradição portanto, para pôr limites sociais à imposição da racionalidade capitalista e à precedência do lucro a todos os níveis da vida social. E mostrou que nessa resistência estava a origem dos direitos sociais e não na universalização e na imposição unilateral dos interesses do capital, sobrepostos aos interesses propriamente sociais. Essa imposição significava a conversão do ser humano de sujeito em objeto, em vítima da racionalidade modernizante.” (Martins, 2000: 23). De certo modo, a fala de Pepeu indica a falta de valores morais e da tradição nas relações que se guiam pela pura competitividade. Esta racionalidade, levada às últimas consequências, produz a subsunção do sujeito ao objeto, a suplantação do social pelo econômico. É ela que orquestra a reorganização do mundo do trabalho, viabilizando a coexistência entre formas híbridas de emprego, subemprego e outras figurações das relações precárias de emprego.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
182
Pedi-lhe pra dar exemplos do que considerava falha de índole no
comportamento de seus colegas na empresa. “Mas, eu não sei explicar
direito. Você quer esmiuçar a coisa?” (...) “Você tem o bajulador, você tem
o traiçoeiro. Eu cheguei a ver casos lá de caras que....//, não, porque tem
uma válvula que, se você abrir um pouquinho a válvula na reação, isso vai
dar reflexo no processo três horas após. (...) “É, ele mexeu ali uma micro-
volta, aumentou a vazão do produto, deu uma reação, que você fica horas
pra fazer uma manobra68.”
Tentei esclarecer se, de fato, ele testemunhou esse tipo de ação, que
um trabalhador efetua pra prejudicar o outro. E Pepeu me respondeu:
“Isso. Ele tinha birra do outro, que ia entrar e, aí, pra atingir o outro ele foi
lá e fez isso.”
Perguntei o que ele julgava ser um comportamento moralmente
adequado para uma pessoa que comete falhas técnicas no âmbito do
trabalho, a ponto de correr o risco de perder o emprego. Ele respondeu
mostrando que, mesmo quando cometeu falhas, teve a coragem de assumi-
las perante a chefia. Deu indicações de que certos comportamentos geram
insegurança para o grupo. Em suas palavras: “Sim. Qual é a falha de
caráter? Eu vi cara cometer um monte de erro lá, e morrer jurando que não
foi ele. Isso, eu sabendo quem tinha sido. Quer dizer, é o tipo de falha de
caráter que vai minando todo o grupo.”
Depois de me explicar que não achava o trabalho na Petroquímica
ruim, que o trabalho em turno não o incomodava, e que era bem avaliado
pelos chefes, perguntei se o fator que mais o estimulou a sair da empresa
tinha sido a competição entre as pessoas e ele me respondeu: “Não, o
problema maior era a falha de caráter.” “Uma vez nós pegamos um cara
lavando o carro de um chefe, do supervisor, na madrugada”(..) É, mas ele
já tinha fama de bajulador, aí quando pegamos fazendo aquilo...,// não é
assim que você conquista um cargo! Então eu acho que esse é um exemplo
de falha de caráter. Vou te dar outro exemplo. Um cara teve uma ideia e aí
68 Manobra é uma medida de urgência adotada em situações de risco. Elas são provocadas por procedimentos inadequados ou falhas no sistema de produção.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
183
ele queria opinar sobre mudança do processo. Tava sendo solicitada uma
mudança de projeto, que você bolasse uma tubulação instalada pra
melhorar o projeto, o processo. Então, você pedia a mudança do projeto,
fazia o fluxograma e mandava o projeto. Os engenheiros analisavam, se
fosse viável, aquilo era implantado.”
A chefia queria ideias pra serem incorporadas no processo da
Petroquímica. E ele explica que um dos funcionários se apropriou da ideia
do outro como se fosse sua: “Isso. Aí, o cara teve uma ideia, tava lá
fazendo o seu desenho, o outro viu, foi lá, desenhou primeiro e entregou
como se fosse dele. (risos..)”
Eu perguntei se ele tinha visto aquilo, se tinha sido testemunha de tal
situação e ele respondeu que sim. No final das contas revelou: “Fui eu que
tava fazendo o desenho.” (...) “O cara me viu desenhando, eu expliquei a
ideia e aí, ele apresentou primeiro!”. Ele faz uma assertiva sobre o tema: “É
isso que eu chamo de falha de caráter. Isso ocorre, em toda relação que
você viver vai ter isso.”
Aos poucos, meu entrevistado vai mostrando que, do seu ponto de
vista, as ‘falhas de índole’ minam os laços de confiança, tornando as
relações sociais vulneráveis, o que inviabiliza a convivência em grupo. “Ah,
você tá num ambiente que você não pode confiar em ninguém. Você pode
confiar em raras pessoas. Não é muito legal viver assim, onde você não
pode confiar em ninguém.”
Ao afirmar que quando as pessoas têm valores bem formados,
independente das circunstâncias, mesmo havendo competição, elas tendem
a preservar os laços de confiança nas relações, Pepeu colocou sobre o
indivíduo a responsabilidade pela preservação da relação social. Ele não pôs
em questão o fato de que as falhas de temperamento podem resultar de
circunstâncias, ou de situações de insegurança, em que as pessoas tendem
a preservar-se, e não às relações nas quais estão envolvidas.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
184
Processo de privatização e insegurança
De início, Pepeu diz que, em si, a privatização não gera insegurança e
competição. Apesar disso, quando discutimos mais a fundo esse tema,
admitiu, com certa resistência, que o clima de competição entre os
trabalhadores favorece a emergência das falhas de caráter.
No desenrolar da discussão, digo que ele chamou atenção para
comportamentos que denotam falha de caráter, acontecidos durante o
processo de privatização. Ele corrigiu minha interpretação: “Não, nós
estávamos falando de relacionamento nos ambientes de trabalho. Quanto à
privatização, não cabe isso. Aquilo é um processo acima de nosso controle”.
E completa falando que a insegurança é provocada pela mudança.
Perguntei então, se, ao sentirem-se inseguras, as pessoas mudavam seus
comportamentos. “Acho que não. Quem é bajulador, continua, quem é
canalha continua, e daí por diante.”
Questionei se esse quadro havia se acirrado quando aumentou a
competição: “Como eu não participava da competição, eu procurava me
manter na minha. Não era meu objetivo ficar ali.” Sua postura,
desinteressada da empresa, era diferente da de seus colegas. Sobre o
comportamento deles Pepeu afirmou: “Parecia um fosso de jacaré, eu até
usava esse termo.” Ele declinou de sua afirmativa inicial agora
corroborando a tese de que as falhas de caráter ficam mais presentes:
“Ficam.”
Autonomia e realização no trabalho
Um outro tema que apareceu na entrevista, sem que fosse buscado,
foi o da autonomia. O mais intrigante é que, justamente, o entrevistado
que diz ter conhecido a escravidão, foi quem introduziu o assunto. Para
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
185
discutir de maneira apropriada tal matéria é necessário considerar a
ambivalência que o termo autonomia69 carrega.
Por um lado, por oposição à escravidão, autonomia indica liberdade de
pensamento e de ação, capacidade que uma pessoa tem de fazer escolhas
e de guiar-se por sua vontade.
De outro modo, no contexto atual, é necessário pensar em outros
sentidos que o termo autonomia foi incorporando, sobretudo no âmbito
profissional. Embora o trabalho autônomo possa indicar um tipo de
atividade cujas regras são estabelecidas pelo própria pessoa, também pode
ser indicativo de condições precárias de trabalho e de oportunidades
limitadas. Essa limitação tem a ver com o capital intelectual e profissional
incorporados ao longo da carreira que cada pessoa constitui. A
desigualdade de oportunidades desfavorece os que dispõem de menos
recursos. Isso porque parte dos que se consideram autônomos são
trabalhadores que não dispõem de garantias e direitos sociais, e de
organismos coletivos que representem sua categoria de trabalho. Ou seja,
nesse caso não há instituição que defenda os direitos trabalhistas, como,
por exemplo, o sindicato ou o Estado, entre outros.
69De acordo com o dicionário Houaiss, Autonomia quer dizer: 1 – “capacidade de se autogovernar. 1.1 – Rubrica: termo jurídico. Direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; soberania. 1.2 – faculdade que possui determinada instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha. 1.3 – Rubrica: administração. Direito de se administrar livremente, dentro de uma organização mais vasta, regida por um poder central. 1.4 – direito de um indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou intelectual”; 2 – “Rubrica: filosofia. Segundo Kant (1724-1804), capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível Obs.: p.opos. a heteronomia” ;3 – “Rubrica: psicologia. Preservação da integridade do eu”; 4 – “distância máxima percorrível por um veículo, sem que haja necessidade de reabastecimento de combustível. 4.1 – Rubrica: termo aeronáutico. Espaço de tempo em que uma aeronave permanece no ar, em dada velocidade, até consumir quase todo o combustível [Uma parte pequena é deixada por segurança, para algum imprevisto.] 4.2 Rubrica: termo de marinha.
período em que um navio de guerra pode permanecer no mar, sem necessidade de ser abastecido [São levados em conta alguns fatores, como raio de ação, capacidade de transporte de suprimentos e aguada e capacidade das câmaras frigoríficas.]”; 5 – “Rubrica: tecnologia. período de tempo em que um equipamento ou sistema pode manter suas características de funcionamento, sem a ação de agentes externos.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
186
Para Pepeu, ser autônomo é “Você não tá enquadrado naquelas leis
trabalhistas, aquela coisa toda”. Perguntei-lhe se autonomia pressupunha
um modo singular e próprio de cada pessoa trabalhar, em que acordos
particulares são estabelecidos, sua resposta: “Eu até acho, hoje, que as leis
trabalhistas são maléficas pra quem trabalha empregado! Pense bem: pra o
patrão, um empregado... o custo dele é até muito pouco. Agora, o que
empregado tem de retorno dessa segunda metade, que o empregador
paga? Você concorda que se o empregador dobrasse o salário das pessoas,
automaticamente, isso dobraria o salário daquele indivíduo? Ele teria maior
poder de consumo, e isso iria ativar a economia e, tudo o mais. E se ele
fizesse um contrato particular, ele seria obrigado a pagar a assistência
médica dele, pagar previdência privada, porque se ele não fizesse, não ia
pagar imposto no futuro, então isso também é ser autônomo!”
Meu entrevistado pôs à mesa o modelo de autonomia que considerava
adequado. Nele, o trabalhador deve arcar com as custas de sua
sobrevivência e com o ‘vir a ser’, com o seu futuro, o que implica ter renda
que lhe permita assumir responsabilidades como assistência médica e
previdência privada, considerados direitos nos países em que o Estado de
Bem-Estar Social se consolidou. Mas também um modo de sobrevivência
que perdure no tempo.
Essa valorização do indivíduo autônomo, dono de si, que aparece no
discurso de Pepeu, resulta e é resultado do processo de individualização,
para o qual Beck e Beck-Gernsheim chamam atenção. Não se trata apenas
de um processo de individualização das perdas sociais, que inviabiliza ou
torna difusa a pertença a um coletivo de trabalho, mas de um contexto em
que a ideia de que cada um é dono de seu nariz, capaz de dar contar de
tudo que lhe diz respeito, sem interferência de outrem assume bastante
importância. No limite, essa ideia implica o isolamento das experiências
individuais e a concomitante perda ou o enfraquecimento do sentido das
lutas coletivas.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
187
Ele seguiu criticando a visão que as pessoas têm sobre o contrato de
trabalho. “Eu acho que as pessoas têm uma visão meio errada contra o
contrato de trabalho. O contrato de trabalho nada mais é do que a venda
de sua mão-de-obra. Você fez um contrato com o outro e você vai prestar
tal trabalho a ele, não é isso?”. E afirma que as pessoas têm uma maneira
emocional de encarar o contrato de trabalho “O patrão é canalha, ele tá me
explorando, e tal....Na verdade, você aceitou aquele contrato, as pessoas
são muito emocionais. Eu aceitei aquele tipo de contrato, o dia que eu
achei que não era mais conveniente aquele tipo de contrato eu pedi o
término do contrato. É uma relação perfeitamente normal”.
No entanto, essa forma de pensar contradiz a crítica que Pepeu fez à
atuação do Estado brasileiro no atendimento das necessidades básicas da
população. Ele critica o poder público por não garantir educação de
qualidade aos cidadãos, por não oferecer cursos profissionalizantes, e não
cumprir seu papel na equalização de oportunidades no mercado de
trabalho. Nesse caso, considerou a desigualdade de oportunidades entre os
trabalhadores, assunto que esquecera de abordar quando fez referência ao
contrato de trabalho. Mesmo porque, somente os trabalhadores bem
posicionados e bem remunerados dispõem de condições para enfrentar o
jejum da vida profissional. Os demais, submetem-se a atividades informais,
subemprego, bicos entre outros. Ou seja, não gozam de fato da liberdade
de escolha.
Durante toda a entrevista, nosso respondente falou, à farta, sobre as
falhas do Estado em seu papel de dar formação educacional e profissional
ao povo e a incapacidade de cumprir seu papel no suprimento do que julga
serem as garantias básicas aos cidadãos. Por essa razão, eu procurei
esclarecer.
O discurso de Pepeu transitava entre a ideia de que somos
autônomos, que cada um tem suas potencialidades e que nós não somos
iguais, e uma outra que assevera ser o Estado o responsável pelo bem-
estar dos cidadãos. Não conseguia entender como a autonomia, nos termos
que ele definia, se harmonizava com a ideia de que o Estado tinha
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
188
responsabilidade sobre o bem-estar dos cidadãos. Se as pessoas são livres,
gozam de liberdade de escolha, por que se faz necessária a atuação do
Estado? Em resposta à dúvida, falou: “O Estado é responsável pelas
premissas básicas. É necessário que desde a idade escolar, os pais passem
essa segurança pras crianças. Por na escola, incentivar a criação, procurar
as coisas por si próprias. Aqui a gente tem pessoas que são dependentes
do Estado. Você vê exemplo da pessoa pedir blocos de construção para os
políticos pra eles poderem construir os barracos deles. Como é que o
coronel manda no seu pequeno império, só manda porque encontra
pessoas dependentes.”
Em seguida, esclareceu o que quer dizer quando se refere a premissas
básicas: “Educação! Se você educar, sem ideologia, isenta. Porque esse pai
que já tá estourado, que é alcoólatra, ele não tem jeito. Você não vai
conseguir recuperar esse cara.”
A educação é vista por ele como um elemento fundamental para a
conquista de um espaço no mercado de trabalho70. Além disso, é um meio
mediante o qual garante dignidade aos cidadãos, e dá condições para que
lutem por condições de vida distintas.
Um dos aspectos marcantes da entrevista é que Pepeu viveu duas
experiências distintas do que denomina autonomia. Vivenciou o papel do
trabalhador que se enreda em condições precárias de trabalho e de vida,
durante um período, e o de uma pessoa que idealiza um projeto pessoal de
vida e realiza esse plano, tornando-se ‘dono do seu nariz’, quer dizer, do
próprio negócio. Mais do que isso, passou da condição que ele julga ser de
nulidade pessoal, para a de uma pessoa que comanda sua vida, vivendo
daquilo que ele próprio produz e cria. Está se preparando para lançar um
produto cuja patente está sendo licenciada.
70 Claramente, nesse ponto o discurso de Pepeu se afina com os principais argumentos que constituem o arcabouço teórico de Beck e Beck-Gernsheim sobre individualização: ‘produto do mercado de trabalho, que se manifesta na aquisição, oferta e aplicação de habilidades’. Os autores citados consideram educação, mobilidade e competição o tripé que dá sustentação à busca de oportunidades no mercado.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
189
Quando eu pedi para que avaliasse sua trajetória ele me respondeu o
seguinte: “Eu me vejo como um vencedor!......Porque um cara que
começou como, ponha aspas nisso, “escravo” e chega a ser dono de algo,
ter seu próprio negócio, isso é uma vitória! Não é fácil! A maior parte das
pessoas não tem determinação suficiente pra crescer. Não foi ensinado pra
essas pessoas... //, aí volta o Estado, o grande crime do Estado, o grande
crime dos pais. Não ensinam as crianças a ter determinação, a crerem em
si, e produzir a criatividade. Esse potencial ela tem, todos nós humanos
temos”.
Essa é, sem dúvida, a trajetória de um trabalhador que se colocou
como senhor de sua determinação. Sem contar com recursos de bases
societárias como sindicatos, ou agências de apoio a pessoas sem emprego,
Pepeu se amparou em outro tipo de apoio, de cunho pessoal – a ajuda de
um conhecido – para complementar seus estudos e entrar na Petroquímica.
Para conquistar mobilidade, saindo da condição de desempregado para a
de um empregado do setor petroquímico, ele delineou um percurso alçado
em valores que podem ser considerados mais individualistas do que
coletivistas.
Trabalho e status afinidades eletivas?
“Os Homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem e sim
sob as circunstâncias que encontram, legadas
e transmitidas pelo passado ...”
Karl Marx,
“O 18 Brumário de Luís
Bonaparte”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
190
Tião: 45 anos, casado, tem uma filha. Ingressou em um curso técnico na
área de análises patológicas, mas, por falta de recursos desistiu de atuar
nessa área. Lamenta a desistência. Após ser admitido no departamento de
contabilidade de uma metalúrgica, decidiu fazer contabilidade. Trabalhou
na Petroquímica por 15 anos consecutivos e atualmente trabalha como
analista contábil em uma indústria do ramo metalúrgico.
Tião atuou no administrativo da Petroquímica União e não no setor de
produção. Inicialmente ponderei se valia a pena realizar essa entrevista,
uma vez que ele desconhece o trabalho de produção do setor
petroquímico. No entanto, considerei que seria interessante ouvir seu
depoimento devido ao fato de ele ter permanecido na empresa por longo
período, por ser testemunha do processo de privatização na corporação e
por ter tido a vivência do desemprego71, ainda que por um período muito
curto – um mês e meio, quase dois.
Esse entrevistado faz afirmações muito claras sobre sua condição de
trabalhador e sobre a vivência do desemprego. Depois de passar 15 anos
na Petroquímica União, numa posição já consolidada, foi grande o susto de
ter sido dispensado pela empresa.
Adaptação ao desemprego – a reintegração ao novo mundo
do trabalho
Para Tião, fora da empresa, o mais difícil foi a adaptação ao novo
contexto, à rotina de permanecer em casa, sem ter alguma perspectiva de
71 Nadya Guimarães mostra que, as dispensas no setor petroquímico em São Paulo ocorreram entre o final da década de 80 e começo dos 90. “Numa primeira, entre 1986 e 1989, vemos uma razoável ampliação de quadros. Numa segunda, entre 1990 e 1991, assistimos a um grande e agudo enxugamento de pessoal. E, finalmente, numa terceira, entre 1992 e 1996, vemos uma lenta e persistente erosão dos empregos.” (Guimarães, 1998)
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
191
futuro. No início, a situação de não-ativo não o incomodou porque estava
confiante de que não iria demorar pra conseguir outro emprego.
No entanto, logo percebeu que as coisas eram diferentes do que
pensava. O estranhamento de Tião se evidencia, quando perguntei se ele
refletia sobre a situação de desemprego: “Sim, mas quando eu saí da
Petroquímica eu achei que ia arrumar emprego fácil, logo! Eu achei que
como eu tinha 15 anos de empresa, eu achei que ia ser mais fácil. Então,
realmente de início eu não me preocupei muito não. Tanto é que eu
arrumei esse emprego de autônomo, aí eu me programei pra pensar nisso
mais pra frente. Mas, aí, quando eu comecei a colocar currículo, a sair em
busca de emprego. Quer dizer, hoje você não tem mais onde é que tá, você
não sabe onde que ta o emprego! Eu não sei onde é que ta o emprego, eu
não sei em que porta eu posso bater.”
Tião comentou que o salário se desvalorizou no setor petroquímico72
durante o período em que atuou na empresa. Mesmo ciente disso, o
entrevistado supunha que um trabalhador petroquímico tinha salário
superior ao da média nacional.
Muita coisa havia mudado no mercado de trabalho desde quando
entrou na Petroquímica até o momento em que foi dispensado,. Os
mecanismos utilizados para ter acesso às vagas disponíveis no mercado, em
sua maioria, eram indiretos, seguiam o princípio da virtualidade: internet,
agências de recolocação, que cuidavam, elas próprias, do reecaminhamento
do profissional. Nesse processo, os rostos dos profissionais especializados
em contratar funcionários e, mesmo, as empresas para as quais o currículo
estava sendo encaminhado não eram conhecidos, o que contrastava com a
72 Em seu estudo comparativo do complexo químico brasileiro, Guimarães mostra que “Em toda a década de 80, os químicos assistiram à deterioração permanente de seu salário médio real. No início da década de 90, esta deterioração alcançou seu limite (em 1990, o valor recebido pela categoria química representava apenas 35% do valor recebido em dezembro de 1981). E, desde então, o salário médio real tem ensaiado uma lenta e parcial recuperação (em 1994, o valor recebido pela categoria química representava 53% do valor recebido em dezembro de 1981).”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
192
forma que Tião conhecera antes, quando o candidato à vaga interagia em
boa parte do processo e tinha contato, desde o início, com os atores em
jogo: a empresa que contratava, o profissional que preparava a seleção.
“É, eu não vou num lugar e pergunto: “olha, tão precisando de gente
aí?” Não existe mais isso. Aí eu comecei a me preocupar. Eu comecei a me
preocupar, porque eu comecei a jogar currículo na internet, deixar currículo
em um monte de agência, que também não te atende, que também não
fazem nada. Eles dizem: “– deixe o papel aí e vá embora.” Aí eu comecei a
ver que a coisa ia ficar complicada, mas não cheguei a me preocupar.”
No novo contexto, para participar de uma pré-seleção, era necessário
enviar currículo pela internet, para um especialista em RH cujo rosto era
desconhecido. Tudo isso o incomodava. Sempre havia conseguido trabalho
indo à própria empresa, “batendo à porta”, como ele mesmo diz,
identificando se desejava ou não atuar naquele ambiente.
A maneira de concorrer a uma vaga, a forma de procurar emprego, o
modo de preparar um currículo e de se portar nas entrevistas, enfim, tudo
era diferente. Tião teve de reaprender a busca por um emprego. Mais do
que isso, necessitava estar inteirado sobre a nova realidade e dialogar com
ela, em um mundo do trabalho mais complexo e diferenciado.
Nosso entrevistado passou a contar com os serviços de uma empresa
de recolocação. Mesmo assim, percebeu que as oportunidades estavam
escassas e que o salário da categoria à qual pertencia havia sofrido
desvalorização, o que o obrigava a rever suas expectativas de conquistar
um emprego que proporcionasse boa remuneração. Quando lhe perguntei
sobre os momentos mais difíceis do período em que ficou desempregado,
ele afirmou: “No final, eu fiquei pouco tempo, eu fiquei quase dois meses.
Um mês e meio. Eu comecei realmente a ficar preocupado porque
realmente eu vi que o emprego tava difícil, porque não tava me surgindo
nada mais.”
Mesmo usando a empresa de recolocação, percebeu que não havia
muitas propostas no mercado: (...) “Mas começou a não vir mais proposta
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
193
boa. Quando surgiam propostas não queriam....//, pagavam menos do que
eu ganhava e não queriam me contratar. Surgiu bastante emprego, mas
tudo nessa linha: “– oh, você quer R$ 3.000, mas não dá, tão pagando R$
1.500”. Eu decidi: “não quero”. Minha preocupação foi essa, “vou ter que
aceitar R$ 1.500, não tem jeito, vou pegar qualquer coisa”. “
A percepção de uma certa degradação das condições de trabalho
implicou a revisão de suas exigências e expectativas. Tinha que buscar o
que fosse alcançável.
“Exatamente! Eu já tava percebendo que não podia exigir mais. Já
não tava procurando mais em multinacionais, que, mesmo eu sabendo que
precisava do inglês, mas eu queria. Então eu pensava: “de repente eu dou
uma enrolada lá, a gente fazendo uma boa entrevista, um bom teste, eles
dão uma chance”. Mas aí eu vi que não, que não ia dar. Mas aí tive que
baixar a bola e aceitar o que me aparecesse. Eu já tava assim.”
Não se tratava apenas de rever expectativas, mas de renegociar com
o mercado de trabalho e, de certa forma, com sua família os critérios de
escolha para a nova oportunidade de emprego. Por isso, a preferência por
atividades bem remuneradas em multinacionais dava lugar a escolhas “mais
realistas”. Era necessário ceder e aceitar o que estivesse a seu alcance,
inclusive um emprego que propiciasse salário inferior ao que recebia na
Petroquímica, o que implicaria readequação do orçamento familiar.
Ao contrário do que ele pensava, os 15 anos que Tião permaneceu na
Petroquímica não serviram de lastro para a conquista de um emprego
seguro, com boa remuneração, nos moldes que imaginava. Era necessário
adaptar-se à nova forma de organização do mercado de trabalho73.
Tião também percebeu que, mesmo para quem se dispunha a fazer
concessões, o mercado de trabalho impunha restrições. O rebaixamento
73 Conforme Nadya Guimarães esclarece, já nos países capitalistas desenvolvidos, as evidências empíricas, sobretudo a partir dos 90, indicavam um aumento do fluxo de entrada concomitante à redução da saída das pessoas da condição de desempregadas, e, além disso, a tendência à fragilização dos vínculos subseqüentes de trabalho, tornando-os candidatos potenciais a novas situações de desemprego. (Guimarães, 2002a).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
194
salarial em carteira é um expediente que esbarra na proibição legal74. Por
esse mecanismo, não depende apenas do profissional que concorre a uma
vaga aceitar a redução da renda:
“(...) Ninguém quer rebaixar o salário, mas se for preciso, por que
não? Ela se recusa, ela não quer empregado pra pagar menos do que
pagavam em seu emprego anterior. Mesmo que você diga: “– não, sabe o
que é que é, eu tiro outra carteira... Com a carteira limpa, quem vai saber
que eu ganhava mais?” Mas, eu não sei porque eles não aceitam isso. Não
sei se elas acham o seguinte: ele vai ganhar R$ 2.000, de repente, daqui a
três meses vai achar um que pague R$ 5.000, e aí vai embora, porque se
ele ganhava R$ 5.000 ele tinha condição de ganhar R$ 5.000. Eu acho que
é mais ou menos assim que uma empresa pensa. “Eu vou pagar R$ 2.000,
mas ele não vai ficar contente, ele vai ficar insatisfeito e daqui a dois meses
vai procurar um outro emprego”. Então é um jogo. Então eu tava partindo
pra isso. Já tava na semana assim, a primeira coisa que aparecer eu vou
pegar.”
Veremos que, para reingressar no mercado de trabalho, Tião teve de
ser flexível em relação às suas exigências e expectativas iniciais, aceitando
um emprego abaixo do que estimava adequado.
A partir da própria experiência de trabalho, o entrevistado pontua
algumas transformações geradas pela flexibilização das relações de
trabalho, comparando diferentes situações que conheceu de perto. De um
lado, as incertezas do mundo das relações flexíveis – que ele chama de
trabalho – e, de outro, as do trabalho regulado – que, do seu ponto de
vista, é emprego:
74 O princípio da irredutibilidade de salário é garantido pelo artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal e pelo artigo 468 da CLT. Há que se levar em conta que, além de a redução salarial em carteira ser vedada, por lei, há um entendimento geral no mercado de trabalho de que tal rebaixamento gera desmotivação ao trabalhador. Trabalhar recebendo X, quando a remuneração deveria ser 2X é desestimulante. Por isso, se um profissional, experiente numa área de trabalho, aceitar remuneração inferior ao que seria o valor de mercado, ele provavelmente encontra resistência do próprio empregador. Isso não impede de haver casos em que esse expediente seja usado. Apesar disso, sabe-se que há pressões para que ocorra o achatamento salarial devido ao aumento do volume de desemprego .
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
195
Uma vez eu fui procurar trabalho, emprego, aí um rapaz perguntou:
“– você tá procurando emprego ou trabalho?”, aí eu respondi: “eu to
procurando emprego”. Ele falou: “– mas você não tem que procurar
emprego, você tem que procurar trabalho, porque emprego, esse emprego
que você tá acostumado aí vai acabar. Você quer estabilidade, cesta básica,
você quer dentista, isso aí é emprego. Não vai ter mais emprego, daqui a
algum tempo você tem que procurar trabalho”. Então, é isso, eu acho que
quando você é autônomo, que você tá fazendo bico, você tá trabalhando,
você não tem uma garantia de nada, né? E a gente é muito assim, gosta
desse sistema paternalista, que impõe essa situação de ficar muito
dependente. Porque você não ganha tão bem, você quer alguém que
te dê assistência médica, que te dê cesta básica, que te dê vale
transporte pra ir trabalhar, né? e, às vezes, como bico, você não
tem isso. Você praticamente trabalha, você é pago pelo seu
trabalho, só ali e acabou né? Você nem sabe se quando acabar seu
trabalho de um mês, dois, três, você vai tá empregado ou não. Eu acho isso
daí.”
O primeiro aspecto que chama atenção nesse depoimento é a
percepção de que a estabilidade no âmbito do trabalho tende a acabar. As
garantias sociais e direitos, próprios do trabalho regulado, dão lugar às
incertezas do trabalho flexível, visto em atividades de autônomos, ou de
pessoas que vivem de “bicos”. Mas, o que surpreende é que Tião reproduz
o discurso empresarial, ao considerar que essas garantias conformam um
sistema em que pessoas “dependentes” se apóiam em um sistema
“paternalista”. De sua perspectiva, esse sistema só existe porque os salários
são baixos.
Seu discurso transita entre o do trabalhador que, espera ter segurança
e garantias sociais num emprego, e o do empregador, que enseja aumentar
a margem de lucro mediante a redução dos custos com seguridade social75.
75 Conforme Thompson (1987) mostra, no século XIX, havia um forte antagonismo entre a posição de operários e empresários. Entre os primeiros, o anseio pelo controle social sobre as condições de vida do trabalhador se configurava numa posição política clara que,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
196
Quando eu pedi pra ele caracterizar a situação de quem faz bicos ele
respondeu:
“Você fica inseguro. Gera insegurança, você não sabe como é que vai
estar daqui a um mês, dois, três meses”. E a remuneração? “É, a
remuneração não é a mesma se você tivesse num emprego, não é
compensatória. Por que? Eu acho assim, existem os dois lados. A empresa
que emprega o bico, ela sabe que aquele profissional ali, ele não vai ficar
muito tempo na empresa. Porque a gente não quer isso”.
Mesmo fazendo essas observações, O entrevistado mostra que o que
o trabalhador almeja é outra coisa:
“A gente quer emprego mesmo, estabilidade, empresa que nos dê
toda aquela condição de trabalho. O bico não faz isso. O bico, você vai
fazer um bico, no meu caso, um bico de contabilidade. Você sabe que vai
fazer um bico de contabilidade, você vai fazer só aquilo, porque não tem
mais pra onde ir, porque ninguém vai te dar chance pra isso, porque você
foi contratado pra fazer só aquilo, ninguém vai te dar chance pra fazer mais
nada. Um empregado também pensa assim “eu trabalhando como bico,
bico eu faço em qualquer lugar”. Então, de repente eu to fazendo um bico
numa empresa aqui, não gostei da cara do chefe, aconteceu uma coisa que
eu não gostei, eu vou embora e arrumo um outro. Bico eu arrumo em
qualquer lugar.”
Tião identifica um sistema de reciprocidade na relação trabalhador-
empregado. Considera que a flexibilização das relações contratuais tanto
oferece insegurança para o trabalhador, que não dispõe de garantias
sociais e se insere precariamente ao mundo do trabalho, como para o
empregador, que não pode se acercar de um trabalho de qualidade e se baseada na viabilidade de uma experiência comum, norteava as ações operárias. A classe de empresários defendia interesses próprios e se opunha às mobilizações da classe laboral. Esses posicionamentos se alteraram ao longo dos séculos. No contexto atual de flexibilização da mão-de-obra, escassez de emprego, aumento do desemprego e forte tendência de afirmação das individualidades, o modo de pensar e o discurso dos trabalhadores se modifica. Eles tendem a adotar uma posição mais conciliadora do que antagônica em relação aos empresários, com o objetivo de preservar o número de empregos, a qualidade do emprego, ou mesmo as condições sociais em que se encontram.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
197
expõe mais à rotatividade, uma vez que o trabalhador sem vínculo
empregatício pode interromper sua atividade a qualquer momento.
Apesar de considerar que o “descompromisso” é de ambas as partes,
fica patente que nesse jogo, o trabalhador está em desvantagem. Mesmo
que tenha bom desempenho, que se esforce, o seu trabalho não é tão
valorizado como poderia ser se dispusesse de vínculo empregatício. Além
disso, a escassez de emprego faz com que a qualidade do serviço seja, ela
mesma, a moeda de troca para a manutenção do trabalho. Assim, todos os
trabalhadores esforçam-se para mostrar seu valor profissional, mesmo os
que atuam sob regime flexível. O depoimento dele indica isso:
“O empregador também vê assim, ele fala: “– por que que eu vou
pagar bem o funcionário, se amanhã ou depois ele vai embora? Um
funcionário desse eu encontro em qualquer lugar, qualquer hora”. Um
empregado também pensa assim: “bico eu faço em qualquer lugar”. Então
não há compromisso nem de uma parte nem de outra. A não ser assim,
quando eu fui trabalhar na Monsanto, eu tinha esperança. Eu vi o que? Eu
vi que a empresa era boa, eu vi o funcionário. A Monsanto é uma
multinacional de grande porte, no mundo, ela faz grãos e sementes. É um
dos maiores produtores de soja transgênica. Eu procurei fazer um trabalho
bom, eu deixei currículo lá, conversei com muita gente de lá. O trabalho é
diferente, mas o bico mesmo, trabalhar assim, o descompromisso é muito
grande”.
A seletividade das novas relações de trabalho
Sobre o que identifica como sendo as maiores dificuldades para quem
está sem emprego fala o seguinte: “Pra mim, o mais difícil é a qualificação.
Hoje tão exigindo //, ...um exemplo, hoje eu não tô num emprego melhor
porque não tenho um bom inglês. O meu inglês é fraco. Se eu tivesse um
bom inglês, com certeza, eu estaria em outro lugar. Eu não tive boas
oportunidades por falta do inglês.”
Com essa assertiva, mostra que há seletividade na reinserção dos
desempregados no mercado de trabalho. Ele próprio esbarra na questão da
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
198
formação para conquistar a vaga que deseja. Sua experiência indica que as
chances de emprego são desiguais entre os diferentes grupos sociais76:
“(...) Em uma multinacional eu vou ter que ter contato com pessoas
de outros países, entendeu? O balanço vai ter que ser em outra língua,
principalmente inglês. Hoje, do jeito que tá assim, com esse aporte de
investimento estrangeiro no país, é importante de fato! Já não é mais a
diferença. Ou melhor, hoje já é a diferença. Antes não, era uma opção.
Hoje você tem que ter inglês bem fluente. Hoje a entrevista é em inglês.
Bons empregos em empresas multinacionais, o inglês é essencial mesmo.”
No entanto, se a exigência de inglês parece justificável em sua
profissão, em outras áreas de atuação, parte dos requisitos de qualificação
exigidos dos que concorrem a uma vaga no mercado operam dentro do
princípio de seletividade77. Importa notar que, na fala do entrevistado, o
trabalhador figura, sozinho, como o responsável por essa qualificação, que
é moeda de troca de empregabilidade78; em nenhum momento atribui às
empresas ou corporações a responsabilidade pelo treinamento e
profissionalização de seus empregados:
“Hoje pra ser um gari você já tem que ter um segundo grau, que é
uma qualificação que tem que ser fornecida pela rede pública. É uma coisa
que você tem que buscar sozinho. Fazer uma escola de segundo grau taí, é
só se matricular. Mas, é você tem que ter isso. Agora, fora isso, você tem
que fazer um cursinho, pra conhecer Recursos Humanos um pouco, um
76 Conforme Guimarães, citando Demazière, esclarece: ‘Tudo se passa como se o desemprego contribuísse para redistribuir os empregos’ (Demazière, 1995, p.52), na medida em que a degradação das condições contratuais revela-se uma característica comum a uma parte significativa dos desempregados que se reinseriam” (Guimarães, 2002a: 8). 77 Guimarães mostra que o desemprego afeta os indivíduos de maneira desigual, de acordo com suas características de sexo, idade, categoria socioprofissional e escolaridade. São essas características que determinam, em grande parte, as chances de uma pessoa ser selecionada ou não pelo mercado de trabalho. (Guimarães, 2002a). Nesse sentido, quanto mais recursos a pessoa tiver, principalmente em termos de qualificação e profissionalização, maiores as chances de se manter em um emprego ou de reingressar no mercado de trabalho em condições satisfatórias. 78 Conforme Ledrut, o termo empregabilidade indica as chances de um indivíduo conquistar um emprego ou se manter nele. (Ledrut, 1966)
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
199
curso de contabilidade, cursos rápidos de três, seis meses. São cursos
rápidos pra atualizar.”
Aqui há uma evidente responsabilização dos indivíduos por seu
destino profissional, por suas competências, tal qual Beck e Beck-
Gernsheim apontam. Um aspecto que já havia aparecido no primeiro
depoimento apresentado na categoria desempregados e que está na
maioria das falas dos entrevistados quando discutimos o tema do
desemprego. O excesso de mão-de-obra à procura de trabalho, a expansão
do desemprego e a ruptura das formas de emprego contribuem para que as
empresas se desincumbam da profissionalização de seus empregados.
O conhecimento sobre recursos humanos, junto com as qualificações
profissionais, aparece como uma competência individual e torna-se
requisito necessário para quem está concorrendo a uma vaga. Ou seja, não
basta “ser competente”, é essencial “parecer competente”, partilhar códigos
para concorrer a uma vaga no mercado.
Trabalho x status, duas faces de uma moeda
A reinserção de Tião no mercado de trabalho não se deu a contento. Ele
reclama, sobretudo, a perda do status. Importa destacar que o tema status
perpassa toda entrevista e é um aspecto fundamental para a compreensão
dessa trajetória de trabalho. O fato de ele abordar reiteradas vezes, e de
maneiras diferentes, a questão do status exigiu que eu me detivesse sobre
ela. Percebi que esse tema apareceu mais claramente quando abordei três
campos da vida de meu respondente: escolhas profissionais, trajetória e
origem social. Mais adiante, veremos como isso reaparece.
Tião passou do ramo petroquímico para o metalúrgico, onde, segundo
ele, o “pião” é o perfil de trabalhador característico. Um perfil com o qual
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
200
ele não se identifica79. Ou seja, a figura do metalúrgico não serve a ele
como referência coletiva para a construção de sua identidade:
“(...) metalúrgico é pião. A cabeça, o perfil dele é totalmente
diferente! São pessoas muito difíceis de trabalhar. Eles não vêem as coisas
de uma maneira muito profissional, apesar de que lá...//, isso não é
desmérito, eu não tô querendo diminuir ninguém! Tanto é que eu tô lá há
três, dois anos e meio e eu não faço isso com ninguém! Mas é difícil lidar.
São pessoas que, como eu te falei, ninguém tem nível superior, a maioria
trabalha, tá lá na empresa há muito tempo também. São pessoas que
servem pra alguma coisa, fazem alguma coisa. Tem gente que tá lá há 20
anos, 10 anos é porque elas servem pra alguma coisa. Mas, elas não têm
“nível”. É como eu costumo falar com elas, “Vocês só fazem as coisas,
vocês são fazedores de coisas, vocês precisam abrir um pouco mais a
cabeça”. Não podem ser só ‘fazedores de coisas’. Fazer as coisas
qualquer um faz. O que eu faço qualquer um pode fazer. Meu gerente tá
ali, quem falou que eu não posso fazer o que ele faz? Claro que eu posso!”
Aqui existe uma crítica à reprodução do trabalho, à automatização do
comportamento do trabalhador, que se apóia na ausência de criatividade.
Os “fazedores de coisas”, a que ele se refere, são os trabalhadores que
tendem a atuar como se apartados de sua capacidade de reflexão. No fazer
diário, suas ações estão desprovidas do sentido de realização, ou seja, o
trabalho não se apresenta como fonte de satisfação pessoal ou profissional.
A ausência de liames entre seu modo de ser e o de seus colegas na
empresa metalúrgica faz com que busque em sua experiência anterior, fora
da empresa e do setor em que atua, as referências identitárias que
ancoram o reconhecimento de si próprio. Por isso, é na memória do
79Sobre a questão de identidade, Dubar afirma que, no processo de expansão capitalista, formas coletivas diversas e provisórias influenciam a constituição de identidades individuais, o que resulta na proeminência da forma identitária societária sobre a comunitária. Nesse contexto, as identidades formam-se com base em múltiplas pertenças e refletem interesses passageiros e não formas comunitárias duradouras.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
201
trabalho na Petroquímica que encontra sua fonte de identificação, sua
identidade profissional:
“O ramo metalúrgico é complicado. Eu já tinha trabalhado em
metalúrgica e eu não gosto! No início eu fazia, ainda hoje eu faço, diminuiu
um pouco, mas faço comparação com a PQU. É tão bom trabalhar na PQU,
o ambiente é tão bom, as pessoas são tão legais! Claro que nem todos! Por
exemplo, com a chefia da PQU tinha um mal estar. Ele tinha comigo e eu
tinha com ele. E nessa empresa é assim, o relacionamento com as pessoas
é difícil! Metalúrgico é assim, ele entra naquela empresa, ele acha que vai
trabalhar só naquela empresa. Eu acho que você tem que ser profissional
em todas as empresas, tem que ta pronto pra trabalhar em todas as
empresas. Se você ficar muito ligado, ficar num lugar só, as pessoas vão te
dominar, você fica na mão de alguém. Eu sempre procuro passar pra eles,
porque eu trabalho lá e tem uma pessoa que tem 25 anos de empresa, mas
ela não tem cabeça de contador, ela não pensa como contador.”
Tião segue mostrando outros aspectos relacionados à questão do
status. Sua fala expressa bem a ideia de que o trabalho determina a
posição das pessoas na sociedade. Nesse sentido, trabalhar numa empresa
consolidada, competitiva, bem vista no mercado e que oferece boa
remuneração e benefícios sociais contribui para elevação do status social.
Por outro lado, ficar desempregado, depois de ter passado por uma
experiência de sucesso, pelo contrário. “A queda é mais impactante quanto
maior a altura de onde se cai”.
A perda do emprego, além de gerar insegurança e instabilidade para a
própria pessoa e para sua família, também afeta sua imagem diante dos
outros. A desvalorização de sua posição social fica evidente, uma vez que o
desemprego é visto como fracasso. Isso fica claro quando mostra o
comportamento dos vizinhos, ao saberem que ele havia perdido o emprego
e quando ele se põe a interpretar o modo como os “outros” o viam:
“Como eu te falei, eu acho que se surgir uma vaga na Petroquímica
União, eu acho que qualquer pessoa corre lá e vai querer trabalhar nela. É
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
202
uma empresa muito bem vista na região, todo mundo sabe dos benefícios,
de tudo que ela oferece né! Então, eu era uma pessoa que trabalhava lá e
não sei se existia inveja, não vou falar isso. Eu acho que as pessoas têm
uma visão diferente de você. Aí quando eu saí, que comecei a ficar mais
tempo aqui, eu sei que os vizinhos comentam “– o cara foi mandado
embora, o que é que o cara tá fazendo aí, ele tava trabalhando”. Aí eu tive
que vender o carro também, e eles vinham comentar “– tá com um carro
mais velho também”.”
Sentidos da vida sem emprego
Quando perguntado sobre o impacto do desemprego em sua vida,
Tião expressa bem sua opinião: a experiência do desemprego traz
conseqüências dramáticas para a vida das pessoas. Resulta na perda da
auto-estima e gera sentimento de inferioridade:
“A conseqüência é a baixa da auto-estima que você vê que não é
dono de seu destino. Igual a eu te falei, eu tava na Petroquímica União, eu
achava que tinha alguma coisa. Você, quando tem, você nunca pensa que
vai perder. Você pensa que pode conseguir mais, você nunca pensa que vai
perder alguma coisa. Eu pensava “se eu tiver que sair daqui eu vou
conseguir coisa melhor”. E no final eu tava sem PQU, e sem nada. Eu não
tinha conseguido nada. Então, sua auto-estima vai lá pra baixo! Você se
sente muito lá embaixo, você se senta no meio de pessoas que não têm o
mesmo nível que você, mas você é igual a elas. Você tá procurando
emprego do mesmo jeito, correndo de manhã, às vezes saindo de manhã
sem tomar café, correndo atrás disso, atrás daquilo, você é igualzinho a
elas. Igualzinho a qualquer pessoa que vai procurar emprego de ajudante,
de auxiliar, que não tenha qualificação, que não tenha escolaridade. Você
tá do mesmo jeito. Você não diz o que você quer, você não escolhe, vão te
dar o caminho pra você.”
Meu entrevistado demonstrou certo sentimento de frustração ao
relembrar a situação de insegurança provocada pelo desemprego. Nela, as
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
203
pessoas não têm domínio sobre seu destino “você vê que não é dono do
próprio destino”. Talvez porque seu empenho em se preparar para as
exigências do mercado de trabalho – estudar, se qualificar – não lhe tenha
dado a contrapartida esperada: manutenção do emprego e satisfação com
a situação profissional e as condições de vida.
Outro aspecto importante de sua fala é a percepção de que o
desemprego, embora seletivo, operando mediante princípios de
diferenciação, coloca os profissionais na mesma condição – a maratona de
procurar emprego.
“Você se sente muito lá embaixo, você se senta no meio de pessoas
que não têm o mesmo nível que você, mas você é igual a elas. Você tá
procurando emprego do mesmo jeito, correndo de manhã, às vezes saindo
de manhã sem tomar café, correndo atrás disso, atrás daquilo, você é
igualzinho a elas”.
Mais ainda, na medida em que o desemprego se expande e abarca
diferentes categorias de trabalho, as opções e possibilidades de escolha,
por parte dos que procuram um emprego, ficam mais restritas. Por isso ele
entende que os desempregados estão sujeitos às determinações do
mercado, não são donos de seu destino. “Você não escolhe, vão te dar o
caminho a você”. De sua perspectiva, o mundo dos desempregados é o das
vulnerabilidades num sentido amplo: a emocional, a que se relaciona à
saúde e a que diz respeito às relações sociais. Por isso, ele diz: “Eu achei
que a auto-estima vai lá embaixo, a saúde fica vulnerável, sua resistência
muda, a saúde muda, o relacionamento muda também, em casa ou com os
amigos também muda”.
O entrevistado mostra que, entre os diversos âmbitos da vida, o das
relações familiares é fortemente afetado pelo desemprego. A queda da
renda e de status social do “provedor” resulta em cobranças e pressões no
sentido de se restabelecer o equilíbrio, de encontrar uma solução para que
a vida seja retomada e de entender o que gerou a situação de fragilidade
econômica e social. Tião mostrou que o desemprego afeta a todos da
família:
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
204
“(...) Antes, a preocupação de trabalho é só sua. Você chega, aquilo
que acontece no trabalho é só seu, você administra o dinheiro das coisas
que tem pra pagar. Mas depois não, não é só isso mais. Não é só
simplesmente trazer o dinheiro pra casa, você não tem mais de onde trazer
o dinheiro. Aí vira uma preocupação de todo mundo! No meu caso, “será
que minha filha vai continuar estudando, “será que eu vou conseguir pagar
escola pra ela”, “vou ter que tirar do banco?”.
As ponderações sobre a família evidenciaram a abrangência dos
problemas provocados por sua posição de desempregado, uma vez que ele
não responde somente por si. A tomada de decisões no que se refere às
estratégias para retornar ao mercado de trabalho é feita com base não só
no bem-estar individual, mas no de toda a família. Além disso, a posição de
provedor torna-o mais vulnerável às cobranças e faz mais urgente ainda a
necessidade de encontrar emprego. Sobre isso ele falou:
“A família cobra porque, afinal de contas, ela não sabe o que está
acontecendo. Ela não sabe o que se passa no serviço. Se você trouxer
todos os problemas do serviço pra casa, você não vive em casa. Então, às
vezes, você toma certas decisões que a família não entende. “não dava pra
você ser mais tolerante, pensar assim, pensar assado?”. É como hoje, eu tô
numa empresa onde eu não me sinto bem. Mas eu tô há dois anos e meio
não me sentindo bem. Vamos ver até onde vai, uma hora eu vou ter que
tomar uma decisão, né! ‘Tá ruim, mas tá bom!’ (risos...).”
Aqui também apareceu a necessidade de distinção entre os diversos
âmbitos da vida. A vida no trabalho “idealmente” não deve se misturar com
o âmbito familiar. Em cada uma dessas esferas as relações sociais operam
por mecanismos identitários distintos: no trabalho, o funcionário
petroquímico, em casa, o provedor. E é exatamente em defesa de seu
papel de pai de família e provedor que Tião permanece em um trabalho
que não lhe propicia satisfação pessoal e profissional, numa posição de
status abaixo do que julga apropriado.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
205
Chances de emprego, realização no trabalho e status
Quando lhe perguntei a respeito de sua realização do ponto de vista
profissional, vieram à tona outros aspectos de sua trajetória de trabalho
que ainda não tinham sido abordados. Ele falou que, antes de iniciar sua
carreira, gostava do ramo de patologia, de biologia e química:“Eu gostava
do ramo de patologia. Eu queria ser médico, médico assim não né! Podia
até ser, mas eu queria biologia, química. Eu gostava de células, de falar do
sangue, dos órgãos, essas coisas.”
Justamente por eu ter estranhado sua afirmação, perguntei sobre
suas metas. Ele respondeu: “mudaram totalmente!”. Depois ele explicou de
que modo foi trabalhar no ramo de contabilidade. De fato, não era um
projeto seu ingressar na área de contabilidade. Foi resultado das
circunstâncias.
“Ah, as circunstâncias levam a isso. Você sabe, você tá numa situação,
que você tem que se agarrar à primeira chance que aparece. Uma porta se
abriu ali, você vai, tem que encarar! Quando eu voltei a trabalhar nessa
empresa aí, que eu me iniciei lá. Eu considero que foi na Limasa que eu
comecei minha carreira. Porque antes, com 17, 18 anos eu não sabia o que
queria, na verdade. Quer dizer, eu até sabia, mas era difícil. O ramo de
patologia, mas não deu certo! Aí eu pensei assim “vou começar a trabalhar
aqui, mas vou voltar pra fazer o meu curso lá. Começar a patologia de
novo!” Mas, aí não deu certo. Começaram a falar: “– você tá aqui na
contabilidade, faz contabilidade”. As pessoas começam a falar pra você. Aí
eu gostei né, se eu não tivesse gostado, aí tudo bem! Mas acontece que eu
gostei, me adaptei, aprendi fácil! Porque contabilidade todo mundo fala que
é difícil né!”
A rápida adaptação à área de contabilidade desestimulou-o a voltar
para o ramo que realmente queria, fez com que se distanciasse de seu
sonho profissional – atuar como especialista em patologia. “É, mesmo meus
amigos da época, falavam: “– pô, você parece que nasceu contador”. Mas,
hoje eu sei que não gosto tanto assim como devia gostar. Hoje eu sei que
eu não gosto como eu gostava de patologia, por exemplo.”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
206
Hoje, parece sentir uma certa frustração por ter escolhido sua
segunda opção. Mas não só porque teria mais satisfação realizando outro
tipo de atividade. De sua perspectiva, o meio de convivência seria outro, ele
conviveria com pessoas de “nível”:
“Eu acho que eu tô no lugar errado. Faço coisas que, às vezes, eu não
gosto. Ter que passar por essa situação, que nem hoje, que eu tô nessa
empresa. Eu acho que se eu tivesse feito o ramo de biomédicas talvez eu
tivesse trabalhando em um ramo diferente, pessoas diferentes. De repente,
eu tô nessa área aqui, eu vou ter que tá sempre nesse meio. Eu acho um
meio hostil, eu não concordo com esse modo, e isso me deixa bem
chateado.”
Como eu havia dito antes, o tema do status é recorrente. A frustração
de Tião por não ter seguido na área de patologia, naquela época, e por
trabalhar no setor de metalurgia, hoje em dia, contrasta com a satisfação
que experimentou quando ingressou no setor petroquímico, ramo bem visto
pelas pessoas. Ele supõe que seria melhor se tivesse seguido o ramo de
patologia “Melhor pra mim mesmo. Eu estaria fazendo o que eu gosto,
vendo um outro tipo de pessoa, estaria num outro ambiente.” Ou então se
tivesse permanecido no ramo petroquímico, uma vez que foi lá que ele
viveu seu melhor momento profissional: “Foi quando eu entrei na PQU, em
88”. (...) “Primeiro, aquilo que eu te falei né, meu salário praticamente
dobrou; segundo, você participava de um concurso pra entrar numa
empresa pública. Então, isso dá satisfação, você saber que tinha
participado de um concurso, ter passado, entrado na Petroquímica União.
Tanto é que quando eu entrei na Petroquímica as pessoas me olhavam de
forma diferente.”
No entanto, ainda não estava claro o porquê de ele se sentir tão
insatisfeito, por atuar no ramo de metalurgia. Quando falou da trajetória de
sua família, as peças se encaixaram. “É assim, eu vou contar a verdade pra
você: minha mãe é solteira né, então eu fui criado por meus avós. Então,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
207
quando eu chamo de irmãos, são meus tios que são meus irmãos. Mas, na
verdade eles são meus tios.”
Essa fala aparece depois que ele revela porque resolveu atuar na área
de contabilidade. Foi justamente a história profissional de seu “tio-irmão”
que influenciou sua escolha. Ele queria ter distinção, destacar-se. Assim,
adotou como referência o seu “Outro” importante, conforme nos falam
Gerth e Mills, para fazer sua escolha profissional.
“Quando eu resolvi partir mesmo pra contabilidade, eu lembrei de um
tio meu que sempre trabalhou nessa área. Eu gostava de ver ele falar sobre
como se trabalhava num escritório. Porque minha família é mais ou menos
grande né! Então, a maioria das pessoas eram metalúrgicos. Torneiro
mecânico, ajustador, essas áreas. E tinha um que foi pra essa área. E a
trinta anos atrás, falar que era contador, que trabalhava em escritório dava
status. Então ele fez curso superior, então ele era diferente. Eu achava isso
legal nele. Quando surgiu a oportunidade de ir pra contabilidade eu falei
“pôxa que legal, tô no mesmo ramo que esse meu tio!” Mas, como todo
mundo sempre trabalhou em casa...”
Apesar de não lhe trazer a satisfação profissional esperada, estar na
área de contabilidade significava estar em um nível melhor do que se
estivesse no ramo de metalurgia, onde grande parte de seus tios atuaram.
O mais curioso é que, para sair da situação de desemprego, ele aceitou
atuar em metalurgia, embora permanecesse na função de contador.
O trabalho dignifica o homem?
Depois de conversarmos sobre diversos temas relacionados à
trajetória de trabalho, escolha profissional, conseqüência do desemprego,
enveredamos pelo tema ‘significado do trabalho’. Tião tenta esboçar uma
ideia do que seria o valor moral do trabalho. Fez comparações, tentando
conciliar as ideias aprendidas na escola sobre o significado e importância
moral do trabalho, com o mundo do trabalho na cidade grande. “O trabalho
dignifica o homem?”.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
208
“Trabalho? Ah, uma coisa que eu achava, sempre falavam esse negócio: “o trabalho dignifica o homem” né! Eu não sei, porque tem muita gente que trabalha e não é digno não! Acho que não é bem por aí. Todo mundo trabalha. Político trabalha, ou diz que trabalha, e rouba, faz um monte de coisa; o empresário trabalha, vai saber como é que ele conseguiu ser empresário, como a empresa dele subsiste, às vezes não é de uma forma legal. Então só o fato de trabalhar não quer dizer muito. Hoje você trabalha porque você precisa trabalhar mesmo! Se não você morre de fome! O trabalho tá ligado à subsistência, sobrevivência. Por exemplo, lá em Pernambuco é pobre, não tem tanta indústria como aqui. Mas as pessoas se ajudam porque as pessoas têm terra, elas têm condições de plantar alguma coisa, então as pessoas não morrem de fome, porque plantam alguma coisa no quintal delas. Elas criam galinha, porco, então de fome elas não morrem. Aqui é diferente, se eu não tiver o que comer, quem vai me dar o que comer? Eu não tenho onde plantar, eu não tenho uma galinha pra matar. A gente não tem isso aqui.
O trabalho lá sim, é digno. Porque você não sai da sua casa pra ir trabalhar, você planta, tem galinha em casa. Que nem eu te falei, você sai dali vai pra uma empresa, pra um banco trabalhar, é um trabalho diferente. Aqui não, isso já tá na nossa vida. O trabalho aqui é pra você sobreviver, é como a comida, é como o ar. Você tem que trabalhar! Se não não sobrevive. Então, eu vejo o trabalho dessa forma”
É interessante notar que os exemplos utilizados para ilustrar a
realidade de trabalho na cidade grande, são moralmente duvidosos: O
político, que rouba; o empresário, que constrói um patrimônio lançando
mão de artimanhas, nem sempre aceitas no âmbito legal. Já o trabalho que
se desenvolve nas regiões mais simples, voltado para a sobrevivência, esse
sim é digno, sobretudo porque tem concretude e por se basear em laços de
confiança, lealdade e solidariedade.
Em seu imaginário, o tipo de trabalho que figura como digno é esse:
um trabalho, cujo resultado seja visível. O produto do trabalho realizado
pelo pequeno proprietário de terra está no plantio que cresce, nos animais
que se desenvolvem: é visível e o trabalhador é o proprietário da “coisa que
ele produz”. Muito diferente dos grandes centros industriais onde o
trabalhador não tem relação com a coisa produzida. Ele trabalha somente
para garantir sua subsistência.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
209
Apesar de sua crítica ao mundo do trabalho, é trabalhando que uma
pessoa obtém existência social. O desemprego, pelo contrário, é o mundo
dos invisíveis, dos que não têm existência social. É assim que ele diz: “O
desemprego, pra mim é, sei lá, é você tá fora da vida. Sabe, parece que
você não é ninguém mais. Você ta desempregado, você não é ninguém, né
verdade? Isso é bem complicado. Eu posso ter uma casa e, se tiver
desempregado, é como se ela não fosse minha.”
Peço que explicite suas ideias; para ele, o desemprego é uma situação
que embota a vida, impede as pessoas de terem acesso às coisas, impede
de terem suas necessidades básicas satisfeitas. Faltando trabalho, falta
tudo!
“Porque eu acho que eu vou tá aqui dentro, desempregado, e
precisando das coisas. Precisando de remédio, precisando comer,
precisando vestir, precisando ir ao médico. Não sei parece que falta tudo e
a casa não vai me completar. É como estar desempregado e ter um
guarda-roupa cheio de roupa bonita. Que que adianta? É como sair pelado.
Isso é ruim, eu penso assim, eu me sentia, me sinto assim.”
Diante das dificuldades e embaraços provocados pelo desemprego,
perguntei-lhe quais os mecanismos para evitar o desemprego e ele
respondeu: “É se qualificar sempre, tá sempre estudando. Esse é o
principal, se manter atualizado. Arrumar um jeito de não chegar nos
40.”
Tião indica que, a idade pode se tornar um embuste a quem busca
chances de reingressar no mercado80. “Não sei, arrumar um jeito de parar
80 Guimarães apontava, já em 1998, os principais critérios de seletividade utilizados no complexo químico-petroquímico que tendiam a “moldar a mão-de-obra dos anos subseqüentes”. Entre o final da década de 80 e começo dos 90, características adscritivas - como sexo e idade sobrepunham-se a outras, de natureza aquisitiva - como a escolaridade, muitas vezes com a clara prevalência das primeiras. Ou seja, atributos (como sexo e/ou idade), que são características sobre as quais a vontade e o desempenho individual não interferem, eram usados como critérios de escolha do perfil profissional naquele setor, em detrimento de características adquiridas, como a escolaridade ou a experiência de trabalho, ligadas ao esforço e ao desempenho dos indivíduos. (Guimarães, 1998: 48).
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
210
no tempo, porque se você chegou nos 35, 36 anos, ficou desempregado é
complicado. Eu fiquei desempregado, tô com 45. Eu fiquei desempregado
com 42 anos. É difícil!”
Considerações gerais sobre os despedidos da
Petroquímica
Como havia dito, antes de realizar as entrevistas, sem perceber tinha
formado, previamente, um perfil dos despedidos pela empresa. Supunha
que encontraria pessoas vitimizadas pelo fato de terem sido desligadas. Ao
longo do processo de prospecção de informações com essa categoria, as
pré-concepções foram, aos poucos, se desfazendo. Em alguns casos, a
forma como cada qual saiu da empresa se diferenciou. Há os que foram
dispensados, de fato; os que saíram mediante acordo com a empresa e
uma pessoa que saiu via PDV – Plano de Demissão de Voluntários.
As entrevistas revelaram semelhanças e distinções entre as biografias
aqui expostas. Dois dos respondentes atuavam na área administrativa e os
demais na produção. Parte deles planejava uma carreira fora da empresa e
a outra preferia permanecer nela. Após a saída, eles tiveram destinos
profissionais bastante diversos. Alguns buscaram montar o próprio negócio,
na área industrial ou comercial; um tornou-se vendedor; outro foi para o
ramo de metalurgia, permanecendo na área de cotabilidade, onde já atuava
na Petroquímica; e apenas um deles estava, de fato, desempregado quando
fiz a entrevista.
Essas pessoas têm faixa etária entre 40 a 50 anos, ficaram entre 7 e
20 anos na empresa e todas elas testemunharam o processo de
privatização – período fundamental, para efeito de análise, dado ser uma
das fases de maior instabilidade e transição na empresa.
Apesar de terem seguido carreiras diferentes, percebi semelhanças
entre os pontos de vista por ele esboçados, sobre diversos aspectos
relativos às mudanças das relações de trabalho. O fato de terem mais de 40
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
211
anos de vida e longa experiência de trabalho permitiu uma discussão mais
madura, ancorada em comparações entre as diferentes fases de mudança
do mercado de trabalho. Experiência e maturidade são as carcaterísticas
que chancelam as falas aqui analisadas. Eles discutem, com propriedade, os
temas propostos, tanto especificamente sobre o setor petroquímico, quanto
sobre o mercado de trabalho em geral. A conformação de opiniões se dá na
discussão a respeito de diferentes temas. Entre eles os mais freqüentes
são: figurações do desemprego em seu imaginário, novas exigências no
mercado de trabalho, conseqüências da privatização, papel do sindicato,
efeitos da perda do status, entre outros.
O desemprego como anulação do ser
Entre os entrevistados, foi consensual a opinião a respeito do
desemprego. Frequentemente eles argumentam que o desemprego resulta
na anulação do ser, uma vez que consideram que o trabalho é o que permite
a relação com outros campos sociais, e que dá às pessoas lugar social. A fala
de Tião evidenciou isso:
“O desemprego, pra mim é, sei lá, é você tá fora da vida. Sabe, parece
que você não é ninguém mais. Você tá desempregado, você não é ninguém.
Né verdade? Isso é bem complicado. Eu posso ter uma casa e tiver
desempregado é como se ela não fosse minha.”
Seu raciocínio se completa: o desemprego é o lugar do “reino das
necessidades”, enquanto o trabalho é o que viabiliza a satisfação, a
realização dos desejos do homem. Ele tentou explicar melhor sua afirmação.
“Porque eu acho que eu vou tá aqui dentro, desempregado, e precisando das
coisas. Precisando de remédio, precisando comer, precisando vestir,
precisando ir ao médico. Não sei parece que falta tudo e a casa não vai me
completar. É como estar desempregado e ter um guarda-roupa cheio de
roupa bonita. Que que adianta? É como sair pelado. Isso é ruim, eu penso
Assim, eu me sentia, me sinto assim”. Interessante perceber que a gravidade
do desemprego é sempre justificada pela importância do emprego na vidas
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
212
das pessoas, como numa relação entre côncavo e cônvexo, o que demonstra
a correlação entre ambos. Segundo ele, seu ponto de vista coincide com o
das pessoas com quem conviveu:
(...) “as pessoas com as quais eu convivi sempre, elas vêem o trabalho,
eu acho que quase da mesma forma que eu vejo. Precisa trabalhar, é
fundamental ter um trabalho, é o trabalho que vai alavancar todas as fontes
de meus desejos, você vai ter seus desejos realizados através do trabalho.”
No excerto acima, o que chancela e ancora a existência de uma pessoa
é o trabalho. A ausência de trabalho, pelo contrário indica a falta de prumo,
de balizas sociais. Essa ideia se alinha à tese de Cabanes de que o trabalho é
um elemento essencial na estruturação das pessoas, é o que define a
posição social delas, ou seja, determina seu status.
O relato de Pepeu a esse respeito também foi revelador de quão
importante é o trabalho na determinação do lugar social de uma pessoa. O
desemprego, pelo contrário, produz a perda do significado da vida. Tanto
que ele tornou-se recluso, por dois anos, em casa, restringindo suas relações
apenas ao seio familiar, devido à falta de chances de emprego. Havia
perdido a auto-confiança, o sentido de viver. “ (...) Então, o fato de eu tá
desempregado....// eu nem tinha confiança em mim pra procurar alguma
coisa. Como é que eu posso oferecer algo a alguém se eu achava que eu não
tinha nada pra oferecer? (fala isso, com uma certa placidez, mas sua voz
declina).”
Ele tenta dimensionar a gravidade do problema do desemprego, com
base na própria experiência. O alongamento do tempo em que permaneceu
desempregado gerou desestímulo. A falta de esperanças de encontrar
oportunidades de trabalho provocou certa compleição melancólica, e isso fez
com que se enredasse na condição dos desempregados por desalento. “Eu
ficava largado por aí, não conseguia encontrar o rumo de onde
conseguir emprego, de onde pedir emprego.”
Outro aspecto importante a esse respeito, que se destacou nas
entrevistas é que o desemprego – apesar de, em alguns casos converter-se
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
213
em oportunidade – via de regra, gera insegurança, incerteza em relação ao
futuro, falta de perspectivas. Sobre isso, Guga, um dos entrevistados do
grupo dos desligados pela PQU, falou:
“Eu te falei. Eu te dei duas vertentes. O desemprego, o lado ruim, e o
desemprego lado bom. Tem aquele camarada, que você fala assim: “–
aquele cara pediu a conta, foi mandado embora”. Mas pra ele até foi bom,
ele tem uma especialidade, o que não falta é serviço. Você pega um
eletricista, por exemplo, o cara não fica dois meses desempregado! Vive
mudando de emprego. Agora, na essência da palavra “desemprego”, ou seja,
o cara necessitado, eu nunca me senti assim, de fato. Eu tenho ameaça, mas
só pela ameaças, eu vou falar pra você: é um negócio terrível, a incerteza
que gera. Desempregado eu acho que o duro é a incerteza do amanhã.”
Guga saiu da Petroquímica através do Plano de Demissão Voluntária –
PDV, e, com o dinheiro da indenização montou o próprio negócio. Primeiro
atuou no Setor de Comércio, transitando posteriormente para o Industrial.
No momento em que a entrevista foi realizada, já tinham decorridos 9 anos
de desligado. De lá pra cá, viu seu padrão de vida decair paulatinamente. Ao
contrário do que se pode pensar, na condição de empresário, os recursos
ficaram progressivamente mais escassos, uma vez que seu negócio revelou-
se pouco rentável. Alguns benefícios de que dispunha quando empregado,
como plano de assistência médica e odontológica, tornaram-se despesas. Os
rendimentos inferiores aos ganhos mensais auferidos na PQU o obrigaram a
cortar gastos e reprogramar elementos do orçamento como os estudos de
um dos filhos. Atualmente vive angustiado devido às incertezas do futuro.
Sem contar com garantias sociais, sente-se em condição semelhante à de
uma pessoa que vive na informalidade.
Ao resumir sua condição sócio-econômica, deu indicações de ter
experimentado algo que Beck denomina como sendo situações híbridas entre
desemprego e emprego. No caso deste respondente seria entre a condição
de desempregado e a de empresário, mas nem por isso, deixou de vivenciar
a precarização das condições de vida. Conforme pode ser visto no relato que
segue:
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
214
“(...) acho que é complicado quando você passa momentos de escassez
de recursos. Você pergunta: “e agora, pra onde eu vou?” Desde Fernando
Henrique nós fomos cortando [os gastos]. Por exemplo, Plano de Saúde, a
gente cortou. A gente tinha Plano de Saúde Sul América, eu cheguei a pagar
R$ 700,00 (setescentos reais). Hoje a gente tem um que paga R$ 200,00
(duzentos reais). E só eu e minha esposa. Eu não posso pagar pra nenhum
de meus filhos, se pagar falta. Aí tem educação, você paga educação, eu to
andando com um carro já velhinho, porque eu não pegaria uma reserva pra
comprar carro. Pra mim o importante é ter liquidez. A gente não liga muito
pra status. As pessoas não se conformam em perder, e perder, nesse tipo de
situação faz parte. Uma coisa que eu falo pra você, eu tenho uma irmã que é
psicóloga e ela falou um negócio que eu concordei na hora, e penso assim
também: “– eu imagino o que você ta passando porque eu nunca tive o que
você teve”. Porque a minha irmã, embora psicóloga, sempre trabalhando em
empregos melhores, ela nunca conseguiu ter um salário de padrão bom,
como eu tive. Aí ela falou assim: “– perder é pior do que nunca ter
tido”. E é verdade, porque depois que você se acostuma com um padrão
alto, o medo de todo mundo é perder. Porque o pobre não tem muita coisa
além do máximo que ele conseguiu. Ou seja, ele não tem nada a perder. Aí é
que tá a diferença, porque eu não perdi isso numa queda só, aliás, perder
não é privilégio meu. A gente vem perdendo algumas conquistas que você
leva anos pra ter. E você vem perdendo devagarinho.”
A percepção de que o desemprego afeta a vida das pessoas de maneira
desigual, que situações prolongadas de desemprego interferem nas relações
sociais e podem provocar desestruturação da identidade da pessoa também
é partilhada por outros entevistados da categoria dos desligados e dos
efetivos da empresa. Segundo Guga, os profissionais de baixa qualificação
estão em desvantagem e podem permanecer mais tempo desempregados:
“Olha, as conseqüências são as piores possíveis. Se uma pessoa tá
preparada o desemprego é passageiro, é uma questão de tempo. Agora, pra
uma pessoa despreparada, quando eu falo despreparada é desqualificada,
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
215
não é questão de tempo não, é questão de realidade mesmo. O duro é
quando você não tem como enfrentar isso. Se você já não tem a
qualificação, não tá preparado, então fica difícil.”
O emprego e as situações estáveis de trabalho, pelo contrário,
contribuem para a estruturação das pessoas. Segundo Beto, do grupo dos
efetivos:“O trabalho ajuda a nortear, tirar da ociosidade, ocupar a mente da
pessoa.”
Outro assunto sobressalente nas entrevistas são as novas formas de
seleção para uma vaga de emprego. Quem foi dispensado, depois de ter
ficado por determinado período empregado, é obrigado a encarar de frente
as novas demandas do mercado. Normalmente, eles demonstraram um
estranhamento acerca da duração do período de procura, uma vez que, em
seu tempo, era comum o trabalho “cair do céu”, existia abundância de
oferta. Mas além disso, no momemto atual, as formas de procurar, seguem a
lógica da virtualidade.
Não se vê o rosto de quem procura um empregado, nem as antigas
placas de informações sobre vagas, nem mesmo os jornais anunciam a
existência do emprego. Do ponto de vista simbólico, a presença marcante
do desemprego, a diversificação de sua manifestação: desemprego de
longa duração, recorrência do desemprego e as formas precárias de
trabalho, como o subemprego denunciam um fato que é a escassez e, por
isso mesmo, indica a invisibilidade do trabalho. Isso torna-se patente na
procura por uma nova chance. Alguns relatos dão conta da falta de trabalho
exatamente pelo fato de que o método de procurar emprego mudou, está
cada vez menos paupável, tornou-se virtual. Não se vê o rosto de quem
escolhe e pouco se conhece da empresa contratante, até que se tenha a
sorte ou o revés de ser escolhido. Conforme destacou Tião:
“Sim, mas quando eu saí da Petroquímica eu achei que ia arrumar
emprego fácil, logo! Eu achei que como eu tinha 15 anos de empresa, eu
achei que ia ser mais fácil. Então, realmente de início eu não me preocupei
muito não. Tanto é que eu arrumei esse emprego de autônomo, aí eu me
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
216
programei pra pensar nisso mais pra frente. Mas, aí, quando eu comecei a
colocar currículo, a sair em busca de emprego....// Quer dizer, hoje você
não tem mais onde é que tá, você não sabe onde que tá o emprego!
Eu não sei onde é que tá o emprego, eu não sei em que porta eu
posso bater.” Ele percebe a escassez de emprego porque não sabe o lugar
onde estão as novas oportunidades. Sente falta da marcação espacial, de
procurar com as próprias pernas, tem a sensação de que está desterrado.
Como pode ser visto no relato abaixo:
“ É, eu não vou num lugar e pergunto: “olha, tão precisando de gente
aí?” Não existe mais isso. Aí eu comecei a me preocupar. Eu comecei a me
preocupar, porque eu comecei a jogar currículo na internet, deixar currículo
em um monte de agência, que também não te atende, que também não
fazem nada. Eles dizem: “– deixe o papel aí e vá embora.” Aí eu comecei a
ver que a coisa ia ficar complicada, mas não cheguei a me preocupar.” Seu
estranhamento decorria do fato de perceber que em 15 anos tudo mudou: o
volume de oferta de trabalho, o método de procurar, e também a presença
do desemprego ficou mais evidente.
“É, eu comecei a perceber que tava muito diferente de 15 anos atrás,
quando eu comecei era mais ou menos assim: A gente tava empregado,
passava numa firma e tinha a paca “precisa-se não sei do que”. Você ia lá,
conversava, de repente, eu tava saindo de uma empresa pra ir pra outra. Eu
sempre saí de uma empresa pra ir pra outra. Eu nunca fiquei desempregado!
Eu tive a profissão de técnico, quando eu me firmei mesmo eu nunca fiquei
desempregado. Eu sempre saí de um emprego pra ir pra outro. Aí dessa vez
eu também pensei que ia ser assim. Então eu não comecei a procurar antes.
Então eu achava que ia ser fácil. Eu acho que, igual eu falei pra você, mais
ou menos um mês e meio eu joguei os currículos, eu comecei a sair de
manhã, aí eu vi que a coisa ia ficar complicada. Eu percebi que não
adiantava bater de porta em porta que eu não ia conseguir emprego mesmo,
já não era esse o método.”
Essa reclamação se fez presente também na fala dos efetivos. Como
mostrei na análise dessa categoria, Beto é um dos que dão conta das
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
217
mudanças, da pouca oferta de vagas e do desparecimento do lugar do
emprego. Falta fixidez no processo de procura.
“Antes, no meu caso, você precisava de um emprego. Você precisava,
abria o jornal, você escolhia onde ia trabalhar. Tinha teste vocacional e você
via várias profissões que você nem sabia que existiam. “Pizzaiolo, o que é
isso?, ah, é de fazer pizza?”, então você decidia por isso. Hoje você não
procura emprego, você manda currículo e aí, eles escolhem ou não. Hoje a
CUT – Central Única dos Trabalhadores dá uns cursos e eles encaminham. O
Estadão, antes, tinha 4, 5 páginas só de emprego. Hoje não existe mais isso
não. Hoje você tem que saber se existe o cargo, se informar, saber que a
empresa tá procurando e mandar currículo [quase adivinhar]. Antes, você
tava andando na rua, tinha uma placa na firma, e você entrava, fazia uma
ficha e, lá mesmo, você ficava.”
Entre os terceirizados também apareceu essa reclamação. Chico
mostrou, que a experiência de seus filhos em relação a trabalho difere
claramente da sua. Ele entrou no ramo petroquímico com baixa escolaridade
e sem ter experiência ou preparação, enquanto que os filhos, mesmo com
curso universitário em andamento têm que concorrer com milhares de
pessoas e se deslocar longas distâncias por uma oportunidade de estágio.
Quando pedi para explicarem em que consistem as modificações do
mercado e o que as provoca, os respondentes frequentemente citaram o
aumento do desemprego como um aspecto que chama sua atenção e
associam esse fenômeno a outras alterações. Nas explicações dadas por
eles, entre as causas do desemprego, a modernização e a automação do
sistema de produção foram citadas reiteradas vezes. Como é sabido, a
tecnologia desemprega, o volume do desemprego faz variar a qualidade do
emprego e produz um crescimento das exigências no campo profissional.
Isso teve destaque nos relatos dos desligados, dos terceirizados e dos
efetivos. Como se pode ver a seguir:
Vlad observou que as exigências hoje são maiores no mercado de
trabalho. A escassez de oferta contrasta com o excesso de mão-de-obra
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
218
disponível e, muitas vezes, percebe-se que os critérios de escolha de
profissionais não são compatíveis com o exercício da função. O avanço da
tecnologia também contribuiu para a nova configuração do mercado. Isso
pode ser visto na seqüência de falas abaixo:
O mercado mudou bastante. Hoje o mercado é muito mais seletivo.
Hoje, uma pessoa no caixa do Carrefour com formação de terceiro grau.
Então, hoje se tem muita mão-de-obra e pouco emprego. Antigamente era
diferente, a demanda era ao contrário, você tinha muito emprego.”
O aumento da competitividade é apontado como um dos efeitos
decorrentes do avanço da tecnologia e do aumento do volume e diversidade
do desemprego. Por isso, na corrida por um emprego, as pessoas se
esforçam para se adequar às exigências do mercado, buscando melhor
qualificação profissional e escolar, embora, em muitos casos não se tenha
condições para isso. O relato de Vlad indica isso: “A conseqüência é o
seguinte, a pessoa tem que tá se atualizando pra não ficar atrás no tempo,
porque daquela época pra cá, o que o avanço tecnológico pôs de gente na
rua é muito.”
A percepção de que há excesso de exigências nos critérios de seleção
de candidatos ao ingresso no mercado de trabalho, por efeito do avanço do
uso de tecnologia, leva a crer na subversão da premissa de que o trabalho é
social, ou seja, de que é produto das relações sociais. Trocando em miúdos,
a lógica da racionalidade capitalista – da precedência do lucro sobre o bem-
estar social –, levada às últimas conseqüências, não só produz desemprego,
como tende a anular a participação do homem nas relações de trabalho. O
entrevistado chegou a afirmar que o trabalho é feito para a máquina e não
para os homens. A explanação de Vlad é reveladora:
“Sempre tem alguém que vai ficar na rua, porque tem-se a concepção
de que trabalho é pra máquina né! Máquina não cansa, não faz hora-
extra, não se acidenta, e o ser humano tem todos esses problemas.
Então cada vez mais vai entrar máquina. Só que se a pessoa tiver se
atualizando, com a visão lá na frente – do que possa tá acontecendo –, ela
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
219
já começa se preparar pra que sobre pelo menos alguma coisa pra ela; pra
que ela consiga ficar posicionada.”
A crítica às conseqüências da racionalidade capitalista sobre as relações
de trabalho também apareceu no relato dos desligados da Petroquímica.
Guga, que entrou na empresa na década de 70, falou a esse respeito:
“Olha tem um termo que antigamente se usava muito que era “empresa
paternalista”. Eu vim de uma empresa pública e o pessoal usava esse termo
pejorativamente. Agora, se você prestar atenção, no meu modo de pensar,
as empresas obrigatoriamente têm que ter cunho social. A empresa
Ela não está alí somente pra dar lucro. O lucro é uma conseqüência
de um trabalho maior, social. Ou seja, você tem que dar resultados
econômicos por causa do dono, que é o acionista. Você tem que ter
responsabilidade social não pela obrigação. Quando eu falo obrigação
através de lei, que obriga a ter um ou dois funcionários, a pagar imposto,
não é nada disso! Responsabilidade Social.”
Citou a privatização como um divisor de águas no processo de
modernização das empresas e na mudança da cultura empresarial. Segundo
ele, antes, as decisões não se baseavam apenas na obtenção de lucros, os
empresários tinham “Responsabilidade Social” no sentido de levar em
consideração a geração de empregos. A modernização é tida por ele como
um marco a partir do qual a lógica do puro lucro suplanta a importância da
preservação das relações sociais.
“O que eu quero dizer é o seguinte: até a época pré Collor, antes de se
falar em privatização, em queda de emprego, as empresas no Brasil, não só
estatais, como as multinacionais também, principalmente as alemãs, tinham
um caráter altamente paternalista. As empresas alemães não mandavam
ninguém embora. Até hoje, ainda tem isso aí. Então, essa parte que as
pessoas chamam paternalistas, relativamente, na verdade é a parte social.
Você tinha gente lá dentro que talvez não fosse o melhor operador de
telefone, talvez tivesse gente melhor! Mas, e socialmente, aquele indivíduo,
vale à pena você expô-lo ao mercado? Qual é o custo social disso? Quando
resolveram mudar esse estado de coisas, resolveram transferir pra iniciativa
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
220
privada um ônus de caráter social. Ou seja, tiraram essa parte social do
negócio e enxugaram, enxugaram, “vamos tirar o social, vamos pensar só o
econômico!”. Então, esse social foi tirado. Tiraram o social, focaram no
econômico, como é até hoje, e ta aí o resultado: o país cada vez recolhendo
mais impostos, tá cada vez mais rico e a população, o lado social, cada vez
mais necessitado.”
Ao descreverem o processo de Privatização os entrevistados expuseram
como o cenário de incertezas alterou o comportamento dos trabalhadores,
seu modo de trabalhar e mesmo sua forma de pensar. Conforme Guga
explicitou: “É um ambiente terrível a pré-privatização!”
Depois de resumir o clima dentro da empresa no período em que se
deu a privatização, deu a entender que havia jogo de interesses e que, no
período anterior à desestatização, houve um processo de desqualificação da
empresa para que fosse subavaliada. Segundo ele, tal desqualificação se
estendeu aos funcionários da empresa, o que mexeu com sua auto-estima,
sua auto-concepção. Sobre os petroquímicos sucedeu-se uma série de
pressões e demandas por mudanças que ele qualifica como perversas.
“Como eu tava te colocando o seguinte: primeiro houve uma fase de
desqualificação, desqualificação pública. Isso não aconteceu através de uma
chefe, até porque a PQU não é uma empresa muito conhecida. O Banco do
Brasil tem nome como banco, mas a PQU nunca teve. Hoje ela é a primeira
central de matérias-primas. O povo conhece mais uma Copene, uma Copesul
do que a PQU, embora a PQU seja suprimentos. Mas, a desqualificação do
funcionalismo público, em geral, embora a gente não fosse funcionário
público, foi evidente! Veio uma pressão interna de desqualificação.
Agora eu quero te dar um exemplo de um seminário do que vinha depois.”
Mesmo indicando que a mudança se deu de maneira gradual, afirmando
que houve um período pré-privatização, a alteração da cultura da empresa
causou-lhe estranhamento, instabilidade emocional, modificou o modo de
encarar o trabalho:
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
221
“A gente só sabe o que vai ser depois que foi. Então na fase preparativa
tinha um camarada que dizia o seguinte “– vocês precisam se preparar pra
ter valor como um jogador de futebol tem”. Começou aí o comparativo com
o seguinte significado “se segura porque você vai valer o que o mercado te
pagar!”. Isso foi antes da privatização, antes de 94. Era a preparação para
a privatização. Deve ter sido 91, 92. Então, você vê que é um esquema
perverso né! as mudanças vão sendo implantadas devagarinho, aí depois
começaram com a tal da reengenharia que ia culminar no processo de
privatização. Só que o processo de reengenharia, quem passou, tem várias
empresas que passaram por isso, é um processo de cunho dramático pra
algumas pessoas. É um processo onde alguns profissionais passam por
pressões terríveis!”
Além de abordar as conseqüências da privatização para as relações
entre os trabalhadores, citou o processo de venda de parte das ações aos
funcionários, afirmando que foi um engodo, conforme foi relatado por Beto e
exposto na análise dos efetivos. Também reclamou da falta de transparência
do processo. Sobre isso, falaremos mais adiante. Sentiu-se ludibriado:
“Ta cheirando a golpe, ta cheirando a um golpe de inteligência, é um
golpe intelectual. (...) Eu fico com pena desse país, por ter dado a
Petroquímica União e ter tirado o direito dos funcionários terem uma
partezinha dela, que não é muito. A mágoa não é pelas falta das ações,
tanto é que eu acho justo o seguinte: seguir as regras do jogo. A minha
inconformidade é com a mudança das regras do jogo.”
Asseverou que o tratamento dispensado aos empregados mudou da
água para o vinho e caracteriza aquelas ações como sendo “assédio moral81”.
Seu relato leva a crer que, por efeito da privatização, as relações entre os
empregados foram desfiguradas. Depois de lhe pedir mais detalhes tive a
seguinte resposta:
81 O primeiro trabalho acadêmico sobre o assunto no Brasil é de Margarida Barreto, que defendeu uma dissertação de Mestrado em Psicologia Social, em 22 de maio de 2000, na PUC/ SP, sob o título "Uma jornada de humilhações".
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
222
“São pressões, que, como eu falei por telefone quando você falou
comigo a primeira vez, podem ser qualificados como assédio moral. Hoje eu
considero como sendo assédio moral, na época não se falava nesse termo.
Mas, o negócio ficou tão evidente depois, tomou tanto corpo que aí criaram
esse termo.” De acordo com sua argumentação é possível inferir que as
mudanças causaram mal estar, as novas regras adotadas pela empresa não
se harmonizavam com os padrões de comportamento adotados por ele, ao
logo de seus 20 anos de carreira ali dentro. Falou que passou a ver
deformidade nas próprias ações, ou seja, um desajuste entre o modo de ser
apreendido por ele, na empresa, e as novas exigências trazidas pelo
processo de modernização. O excerto abaixo explicita a forma como se
sentiu com a mudança de contexto: “Eu acho que não são ideologias, acho que é uma forma ‘canalhesca’ de
tratar o ser humano! O gado! Então você conduz o gado de acordo
com suas conveniências. Com isso a nação fica a Deus dará. O Brasil
hoje, infelizmente...//, eu to com 50 anos, eu peguei uma fase, aquela fase
típica em que as pessoas respeitam o próximo, que pedem a benção ao pai e
à mãe. Não é a benção em si que é importante, mas o respeito à
família, à instituição família. Isso acabou!, mas voltando à questão
do assédio, então, isso pra mim, é uma forma de assédio, é uma
forma velada de assédio. Quando você começa a se sentir com
defeito, até propositalmente. O objetivo é te fazer sentir inadequado,
incompetente, “você não vai sobreviver aqui!”, “é melhor você pedir pra ir
embora ou aceitar um acordo!”. Então aquilo é conduzido de uma maneira
tão sutil, ou seja, você pode até sair. “Saia agora, numa boa”. Então, esse
tipo de condução, muito competente, muito hábil, você nunca vai encontrar,
com raríssimas exceções – e eu não conheço nenhuma –, alguém que meteu
o pé na porta, “não, não quero!” E se tiver, esse camarada vai ser crucificado
porque você, estatisticamente você vai pegar...// estatísticamente você pega
lá 300, 500, 800 que sairam com o Sopão, aí você pega um que reclamou.
Que moral vai ter aquele camarada pra combater estatisticamente um fato?”
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
223
Um dos aspectos que julgo importante no relato desse interlocutor foi a
forma como a implementação das modificações trazidas pela privatização e
pela reestruturação foram apresentadas. Chamou-me atenção o modo como
foram percebidas e a forma de os empregados lidarem com ela. Primeiro ele
mostrou que a empresa realizou seminários e programas que tinham o papel
de introduzir inflexões no modo de assimilação das mudanças. Isso revela
uma alteração da cultura da empresa. O passo seguinte foi a implantação
das novas regras, já nas seções da produção. Guga qualificou como ações
terroristas as mudanças implantadas repentinamente. Conforme se pode ver
na fala a seguir:
“Mudar de paradigma. Qualquer seminário que tivesse, a primeira
palavra que tinha lá era mudança. Como tá hoje na moda, você não viu
quando o Lula se elegeu? “Mudança”. A mudança é boa? Não
necessariamente, que mudança? Só que na época se vendia o seguinte:
“Mudança, temos que mudar!” Então tem funcionário que sai repetindo igual
a papagaio. Teve chefe que pegou o setor assim e pá! Mudança. Tinha
chefe que, de um dia, pra o outro fazia assim: pegava e tirava todas as
divisórias. Tinha chefe que botava a mesa pra fora, falava que o cara ia
trabalhar ali. Isso não é assédio moral? Houve isso, isso aconteceu. Esse
cara foi mandado embora depois, não por isso, por outros motivos, foi por
causa de briga com outro pessoal. Mas esse camarada fazia isso, isso é
terrorismo!”
Segundo seu depoimento, os valores aprendidos na educação, em
família, também são incorporados nas relações de trabalho. Depois de
formada a personalidade de uma pessoa, é difícil abrir mão desses valores.
“Isso aí faz parte da formação da personalidade ou do caráter.”
Ele deu as razões para o estranhamento e até mesmo para o sofrimento
que essas transformações, vistas da perspectiva de uma pessoa que
testemunhou a fundação da empresa, causaram. Para Guga, o trabalho era o
espaço em que prevaleciam aqueles valores ensinados por sua mãe, como o
respeito às hierarquias, a honradez, a honestidade. Também aqui a família
aparece como basilar na formação dos princípios e valores de caráter. Por
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
224
isso, as modificações foram um choque, contrastavam com tudo que
aprendera ao longo da vida. Conforme pode ser visto:
“Minha mãe sempre foi uma pessoa que dizia o seguinte: ‘respeitar,
olha a cultura, que tinha que trabalhar direitinho’. São valores dela, valores
de honestidade, essas coisas, sempre foi passado isso daí. Pra nós sempre
foi importante pra formar valores. Quando você forma valores é terrível
qualquer choque com qualquer um desses valores que você formou.”
Depois dessa declaração perguntei-lhe o que, de seu ponto de vista,
tais mudanças causavam aos empregados. Provocariamalgum tipo de
sofrimento? Sua resposta:
“Sofre e outra coisa, valor você não muda! Valor é valor, você vai
carregar pra o resto da vida. O que você pode fazer é minimizar o
sofrimento e aprender a conviver com isso. Então, quando você tá lá, você
aprende a conviver com isso. Porque não muda, não muda. Você pode
aceitar, enxergar a vida de forma diferente. Então quando você vem de uma
cultura daquela, o chefe é um Deus. Você respeita, porque na época que se
falava, eu acho que foi a época antes de tesourar mesmo, quem se dava
bem com o chefe subia. Era aquela cultura da década de 50 e 60. Então isso
é um choque, hoje não tem nada disso! Eu trabalhei....hoje é pouco, é bem
menos isso aí.”
O sofrimento e a angústia que viveu durante a implementação das
mudanças decorrentes das pressões sobre os empregados e da ameaça do
desemprego, do conflito entre as novas regras definidas pela empresa e seus
valores, impuseram que Guga buscasse solucionar seu problema. Todo esse
quadro alterou sua forma de se relacionar com o trabalho. Já não tinha mais
o mesmo comprometimento, dadas as ameaças que sofria e a angústia
cotidiana de ser dispensado. O acirramento da competição dentro da
empresa exigiu-lhe adaptabilidade às normas recém implantadas.
Finalmente, resolveu entrar na lista do Plano de Demissões Voluntárias,
famoso sopão e com isso estabeleceu novos planos profissionais. Foi ser
dono do próprio negócio.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
225
Retomo o tema da privatização, agora mais focada nos desdobramentos
da venda das ações da Petroquímica a seus empregados. Chamou-me
atenção o depoimento de Dida. Foi desligado por acordo de conveniência
entre ele e seu chefe, uma vez que, devido à exposição e aos conflitos de
interesses decorrentes do processo de priatização e venda das ações da
empresa, sua imagem estava desgastada. O primeiro aspecto a ser
destacado é a desilusão com o fato de que os empregados criam que seriam
“donos” da empresa. Não foi o que ocorreu, o resultado causou frustração e
ele deu a entender que a empresa usou esse ardil para criar a ilusão de que
a privatização não traria insegurança. Conforme a fala de Dida:
“Nós fomos iludidos. Primeiro, achando que íamos ser donos de 10%
da Petroquímica. Então, primeiro o pessoal não viu com maus olhos, a
gente ia ser dono, não vai mandar o dono embora. Então não
achamos que a estabilidade ia terminar nada. Ia comprar 10% das
ações, eu ia ser dono, está entendendo? eu ia trabalhar com mais vontade a
firma é minha. Na época da privatização, então os funcionários não viam a
hora de privatizar. Para você ter uma ideia, era a época em que eu estava
casando. Eu ia viajar em lua de mel eu adiei 10 dias por causa da merda da
privatização. Que iam sair as ações, eu tinha que pagar o lote. Eu casei não
fui viajar nada, só depois. A expectativa era muito grande. A gente ia ser
dono pô da PQU! Ainda aquele pessoal que mora lá perto, nossa que aquilo
para eles é o céu, “eu vou ser dono disso aqui!?””
Explicou como se deu o processo de venda das ações da empresa aos
empregados. As ações da PQU, que os funcionários compraram foram
transformadas em ações Sociedade dos Empregados da Petroquímica – SEP
– que não podiam ser negociadas em bolsa. Uma vez impedidos de negociar,
os empregados tinham em mãos papéis sem valor nominal.
“Na época da privatização era assim: 10% da privatização era pra os
empregados. A gente tinha que comprar.Só que ninguém comprou. Cada um
teve que arrumar US$ 1.500 pra pagar as ações. Eu arrumei o dinheiro
emprestado, e pagamos. Só que, eu vou ser meio grosso porque eu sou
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
226
assim. Os safados converteram a ação de PQU em ação de SEP, que é
Sociedade dos Empregados da Petroquímica. Existe até hoje. As ações da
SEP, não são negociadas em bolsa, não valem nada! Então, uma ação da
PQU valia uma ação da SEP, quer dizer, eu não tinha nada em mãos. Eu não
tinha absolutamente nada. Usaram meu nome pra comprar, usaram U$S
1.500 meus, porque eu paguei, e mais dinheiro que foi no meio do caminho.
Documento disso, o cacete, um monte! Hoje seria como uns cinco ou dez
paus, gastamos bem! E eu não tinha nada na mão. Então eu comecei a
bater de frente com a SEP. Arrumei uma firma que me bancou, cheguei lá e
comprei sei lá, 50 mil ações da PQU, quitei. Eu tinha que quitar a dívida.
Quitei a dívida de 50 mil [ações] e fui negociar as ações na bolsa. Só que os
sem vergonha da SEP entravam e brecavam minha negociação. Na época,
isso era uma jogada. Eu não entendia de ações, eu arrumei uma corretora, o
cara falou: “– vamos comprar!”. Eu disse: E tem como? . Ele falou: “– tem,
tem como comprar.” “
Dida contou em detalhes o conflito de interesses entre as partes:
empregados e empresa e o desgaste que sofreu devido ao confronto direto,
em defesa de seus interesses e do que julgava justo para a classe de
trabalhadores, agora com 10% das ações da empresa. A coragem de falar e
expor seu ponto de vista foi um chamariz para o sindicato, que passou a
convidá-lo para as reuniões com a empresa. Conforme discorreu:
“Nunca me arrependi. Na época que eu saí de lá, foi o seguinte: eu já
vinha muito desgastado com esse negócio de SEP, me expondo muito. Como
eu me expus muito, o sindicato começou a me rodear porque eu falava, eu
não queria saber. Aí começaram a me chamar pras reuniões de sindicato. Eu
acabei indo. Eu nunca fui ativo, mas acabei indo nas reuniões. Aí ia ter uma
reunião com a diretoria de Participação do lucros e Resultados – PLR. O que
era combinado na época? Fazer uma comissão de empregados pra se discutir
com a PQU quanto seria essa participação, em porcentagem, quanto seria
esse valor pra nós. Nós íamos votar em funcionários [empregado que
pudesse defender seus interesses, como parte dos acionistas da empresa],
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
227
eu acho que uma semana antes da votação veio uma circular dizendo que o
pessoal que era operador não podia votar. Só podia votar operador 3 e
supervisor. Aí eu meti a boca! “Eu voto em quem eu quero!””
As reuniões foram desgastantes e, segundo ele, não houve
transparência no processo decisório. A pauta das reuniões mudava,
conforme a conveniência dos outros participantes (empresa e sindicato) e ele
queria ir até as últimas conseqüências em defesa do que considerava ser
justo. Queria garantir que qualquer um pudesse ser candidato a
representante dos empregados e que não fosse uma decisão da empresa e
sim do conjunto. As evasivas dos participantes da mesa o irritaram e ele
ficou irredutível.
“Ninguém iria falar um ‘A’ para eles. Se 90% do pessoal de lá é “caxias”
é “pelegão”, se você pegar, operador 3 é 100%. É um pessoal que não tem
estudo, poucos fizeram faculdade, já estão há 20, 30 anos lá, mas não vão
falar um ‘A’ lá. Então eu não admiti isso e fui à reunião. O presidente da PQU
na época estava bem na minha frente. Daí o pessoal do sindicato começou a
falar de acordo coletivo, 1 hora de conversa que não tinha nada a ver, aí eu
interrompi. (...) Eu falei espera aí eu não vim aqui falar de final de ano de
acordo coletivo, estou aqui para falar da PLR, é para isso que nós viemos
aqui. Aí o diretor [PQU] começou a discussão e eu falei “Não, eu quero votar
em quem eu quiser”. Ele falou: “Você não entende, se eu abrir para votar em
qualquer um vocês mesmos vão votar em operador 3. Eu só estou poupando
vocês do trabalho.” Aí eu levantei e disse: “Será que está escrito besta aqui?
Não sou besta! Você está me chamando de besta de babaca. Não, eu voto
em quem eu quero! Pode ganhar operador 3, mas eu não vou votar. Eu vou
votar no operador 1. Eu quero ser livre para votar. Eu quero votar no
operador da China. Não interessa! Mas eu não vou votar em quem você
quer!” Aí o homem ficou louco, mudou o assunto, não discutiram mais, eu
voltei o assunto, o próprio sindicato não falou mais nada. Então eu fui
embora.”
Depois disso, sentiu que ficaria difícil se manter na empresa, dada a
divergência e o desgaste com o diretor-presidente durante a reunião. Supôs
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
228
que corria riscos de ser mandado embora por justa causa, podendo ser
vítima de uma silada. Conforme afirmou:
“Eu acho que uns dois dias depois o chefe do meu supervisor me
chamou e falou que minha cabeça estava a prêmio e que mais cedo ou mais
tarde eu ia ser demitido. Eles não demitiam operador 1 lá, muito difícil,
porque eles investem muito em operador 1, é um poço de conhecimento,
você conhece tudo, e eu, profissionalmente, não era um mau operador. Era
operador 1 de dois setores e operava tanto o painel quanto a área (quanto o
campo). Eu ultimamente só estava no painel. (...) Sempre reclamei, sempre
fui bocudo. Depois desta reunião, começaram a arrumar negócio do
sindicato, que eu era do sindicato e eu não era sindicalizado, nada! Não
queria nem saber do sindicato. E começou um ou dois supervisores a
arrumar a minha cama. Aí eu pensei, eu vou embora senão eles vão tipo
estourar um vaso aí fora e falar que fui eu. Ele vão arrumar para mim. Aí eu
conversei com o Joel, cara 10! [chefe de setor] ele foi conseguiu uma
transferência e o pacotão já no dia seguinte. Eu trabalhei no meu setor
normal. Fui transferido no dia seguinte e peguei todos os meus direitos.”
A descrição feita por Dida sobre o processo de privatização e a venda
das ações da empresa aos empregados mostra certo descrédito em relação a
atuação do sindicato. Um aspecto que deve ser levado em conta é que,
naquela situação, a posição dos trabalhadores foi dúbia, uma vez que sua
reivindicação não concernia a qualquer elemento da relação social de
trabalho em si e sim ao direito de serem proprietários de parte da
empresa.
Nesse sentido, embora na posição de empregados, eles reivindicavam o
direito de propriedade, tido historicamente como o direito da classe
burguesa. Esse exemplo remete à tese defendida por Beck sobre conflito de
classe e relações de trabalho. Segundo ele, o conflito de classe já não explica
situações híbridas vividas pelos empregados. Beck refere-se às condições
ambíguas de transitoriedade entre emprego, desemprego, subemprego e
atividades informais, em geral. No entanto, no exemplo aqui mencionado
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
229
trata-se de outro tipo de dubiedade, aquela entre trabalhadores e
proprietários.
Mesmo considerando-se que a venda das ações pode ter sido usada
pela empresa como artifício para desmobilizar os trabalhadores, deve-se
também admitir que os empregados, ainda que por meio de ação sindical,
não foram capazes de se articular em torno de uma posição que
representasse a vontade e o interesse comuns. Concretamente, não
souberam explicitar sob qual tutela ficaram as ações. Além disso, nos relatos
recolhidos, muitos entrevistados referem-se ao sindicato com desconfiança e
frequentemente fazem colocações dúbias em relação a essa organização
social. Ora se vêem ora não se vêem representados por ela. O próprio Dida
disse: “o sindicato eu acho age em proveito próprio. Ele não está preocupado
com o empregado. O meu sindicato de petroquímico, não ponho os outros.
Fazia assembléias, fazia aquele auê, de repente não falava mais nada.”
Ora, pensar que o sindicato age em proveito próprio é admitir que além
de empresários e empregados existe uma terceira força. Mas ela existe em
defesa de quem, de quais interesses? Essa ideia parece um contra-senso,
uma vez que o sindicato sempre atuou representando os trabalhadores.
De fato, Beck teria razão ao asseverar que a firma já não seria mais o
espaço do conflito entre proprietários e não proprietários?
O exemplo acima exposto põe em questão a contradição básica do
capital, qual seja: de que nas relações capitalistas, embora o trabalho seja
social, a propriedade é privada. De fato, a complexidade das relações de
trabalho exige que sejam feitas outras considerações sobre a realidade dos
empregados. O excesso de competitividade provoca o enfraquecimento de
relações coletivas – pautadas na luta pela igualdade entre os trabalhadores –
e a tendência ao fortalecimento de atitudes individualistas. A diferenciação
das condições entre os trabalhadores dificulta pensá-los dentro de uma única
condição. Assim, cada vez mais as negociações entre empresa e empregado
tendem a se dar de maneira individualizada.
No caso estudado, provavelmente não chegue a se configurar a
dessocialização conforme Touraine prenuncia, mas se trata de uma situação
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
230
em que as ações dos trabalhadores tendem a ser pautadas em
comportamentos individualistas. Nesse sentido, há cada vez menos espaço
para a partilha de valores comuns. No entanto, nada impede que, de acordo
com interesses momentâneos, eles se orientem por meio de valores de
reciprocidade.
O papel do trabalho feminino
Antes de encerrar esta análise, gostaria de tecer breves comentários
sobre a forma como o trabalho feminino figura nas falas da maioria dos
entrevistados, e, de forma quase unânime, na dos efetivos da Petroquímica
União. O fato de os empregados terem uma remuneração82 média alta,
superior à média nacional, conforme já comentado, implica um modo
peculiar de os trabalhadores petroquímicos enxergarem a mão-de-obra
feminina.
É importante lembrar que o trabalho petroquímico é essencialmente
masculino e que a atividade de turno limita a participação dos homens na
organização do âmbito familiar-doméstico. Isso induz a uma divisão de
tarefas na família em que o homem é provedor e a mulher, a dona de casa.
Além disso, sobrecarrega a importância do papel das mulheres nas decisões
familiares. Nesse sentido, frequentemente, os efetivos da Petroquímica
referem-se à mão-de-obra feminina como suplementar à masculina, nos
rendimentos familiares. Isso também se repete, “como dobram os sinos”, em
quase todas as entrevistas feitas, considerando todas as categorias
pesquisadas.
No caso dos efetivos na petroquímica, a visão do trabalho feminino é
semelhante. Ele é complementar, variando em grau o peso dessa
complementaridade. Isso pode ser vista na fala de Bira: “Vai, até um tempo
atrás o homem, ele seria o que teria que manter a casa, hoje não, a mulher
ajuda muito.”
82 De acordo com Guimarães (1998), a remuneração no setor petroquímico se constitui de três segmentos: remuneração direta fixa, remuneração direta variável e remuneração indireta.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
231
Mesmo reconhecendo sua importância no rendimento doméstico, o
trabalho feminino, segundo o que ele indica, é menos importante no
orçamento familiar. Por isso afirma que, hoje em dia, o trabalho da mulher é
‘fundamental’’, mas como ‘ajuda’ e não como determinação: “Na renda
familiar a mulher trabalhando também. Então eu acho fundamental também
que hoje a mulher trabalhe para ajudar,....// até no relacionamento acho que
melhora.”
O trabalho feminino83 parece ser importante pelo fato de “E a mulher
fica com uma outra visão do mundo lá fora tando trabalhando.”
Bira encontra no trabalho de sua esposa uma importância maior do que
a maioria dos outros entrevistados da mesma categoria vê no das suas. Na
entrevista de Beto, o trabalho feminino figura como ainda menos importante,
se considerado o benefício da boa educação dos filhos conquistados pela
presença da mãe/mulher no lar. No entanto, esse sacrifício gera um outro
drama que é o da insatisfação da mulher no âmbito profissional, campo esse
que ganha cada vez mais importância nas relações e que dá visibilidade
social às pessoas.
Segundo Bira, o fato de sua esposa trabalhar torna mais rica a relação
do casal. No entanto, o trabalho de sua companheira tem importância
relativa menor que o seu, inclusive em termos de rendimento.
O contexto de trabalho de Bira, Beto e dos demais efetivos,
eminentemente masculino e organizado em turno, de certa forma, molda sua
percepção sobre o papel da mulher e do homem no mercado de trabalho. A
remuneração que recebem é superior à da média nacional, mais é ainda
83 Embora não seja esse meu escopo, é fundamental destacar que, diferentes situações de inatividade retiram as mulheres do mercado de trabalho. Frequentemente, as responsabilidades pela família motivam sua ausência: maternidade e outros fatores que decorrem dela. No entanto, nem sempre elas figuram na categoria dos desempregados. Isso faz com que, muitas vezes, o desemprego feminino seja invisível para as instituições que se responsabilizam pelo registro do desemprego. Para saber mais sobre os problemas decorrentes do desemprego feminino ver Hirata (2002) e Maruani (2002). Nesta pesquisa, quase todos os participantes da categoria efetivos da petroquímica identificam suas esposas como “do lar”, exceção feita à esposa de Donizete, que é professora do colegial e à de Rogério de Souza, que atua numa multinacional. Via de regra, elas estão envolvidas em trabalhos sem registro em carteira, figurando como autônomas, e seus rendimentos têm a função de complementar a renda familiar.
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
232
maior se comparada aos salários médios pagos às mulheres. Nessa
perspectiva, longe de se equivalerem, a mão-de-obra feminina e masculina
são tratadas de maneira distinta. O entendimento de que o trabalho feminino
é complementar ao do homem e não essencial para o mercado, faz com que
as oportunidades de galgar melhores posições na carreira sejam direcionadas
a eles. Conforme Hirata(2002) e Maruani (2002) as razões que retiram as
mulheres do mercado de trabalho são diversas, mas frequentemente, têm
origem nos problemas familiares. Além disso, no senso comum, é mais
aceitável que a mulher abra mão da vida profissional do que o homem.
A história de Beto é reveladora desse fato. Quando lhe perguntei qual
era a profissão de sua esposa, disse “do lar”. Nesse momento, ela
interrompe a entrevista e mostra sua frustração: “eu fiz técnico em
contabilidade, mas não exerci”. Ele completa, justificando a opção mais
conveniente para a “família”: “eu prefiro, eu falei pra ela que era melhor ela
ficar, porque se não você tem que pagar babá, cozinheira, e fica mais caro”.
Ela continua o diálogo: “então, mas só que agora eu sou frustrada por isso.
Ele sabe disso. Só isso!”
A dedicação de Rosa para garantir uma educação segura aos filhos e
dar aporte à família não a impediu de amargar a frustração de ter
interrompido seu desenvolvimento profissional.
De maneira geral, ainda que se considere que as mulheres avançaram
em sua luta por um lugar digno no mercado de trabalho, ainda há muito por
fazer. A maneira como o trabalho feminino é encarado, resulta em um
conjunto de controvérsias para homens e mulheres, podendo gerar
desconforto a toda uma estrutura familiar. O curioso é que a
profissionalização da mão-de-obra feminina esbarra em diversos embustes
que geram outros problemas, em cascata, e, quando nos detemos na análise
deles, vemos que se organizam de maneira circular.
No mercado de trabalho, a mão-de-obra da mulher não é vista com a
mesma importância que a do homem, isso faz com que, mais
frequentemente que eles, as mulheres abandonem sua carreira para cuidar
da vida doméstica, o que, paulatinamente, as distancia da vida profissional e
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
233
reduz suas chances de sucesso nesse âmbito. Muitas vezes, além de gerar
frustração à mulher, o sacrifício de abrir mão de uma carreira profissional
traz mais insegurança não só para ela, mas para seu companheiro, que se vê
sozinho com a responsabilidade pelo provimento das necessidades da
família. E a ciranda começa outra vez!
Nos casos em que o trabalho se apresenta como eminentemente
masculino esse quadro se reforça.
Entre os efetivos, quando argumenta que o trabalho dá sentido à vida
das pessoas, Ito também mostra que, de seu ponto de vista, os homens são
mais exigidos do que as mulheres. Mesmo tendo uma esposa que trabalha
fora, assevera que somos uma sociedade machista e que sobre as mulheres
não recai a cobrança de que o trabalho também é um dever e a ele cabe o
papel de garantir a subsistência da família. A fala a seguir é reveladora dessa
tese:
“Eu ainda sou da geração em que o papai trabalha fora para cuidar da
família e a mamãe fica em casa cuidando dos filhos. Se você fizer essa
pergunta hoje para um adolescente a resposta é completamente diferente,
né? Ele vive uma outra realidade. Até pro meu futuro filho, se a gente tiver,
vai ser uma reposta diferente.
O que que era? Você, no caso do homem, não era uma opção tipo:
“Ah, eu sou mulher eu quero trabalhar” ou “eu casei, vou parar de trabalhar
e vou cuidar dos filhos”. O mundo é machista, o Brasil principalmente, então
é lógico ninguém vai ver isso com maus olhos: ela parou de trabalhar e cuida
da casa. Agora como homem não, eu tenho que começar a trabalhar e tenho
que continuar até me aposentar e vou ter que cuidar de uma família, se eu
casar, da minha nova família e senão dos meus pais. Era isso que
representava; eu tenho que cuidar e não vou ter opção de falar assim: “eu
vou parar um dia, porque eu vou casar” não tinha isso, não tem como
pensar nisso. Até hoje não tem ...//... não tinha essa alternativa. Era uma
coisa ...//... uma conseqüência natural. Você tem que estudar, estudar bem,
não pode repetir de ano nem ficar de recuperação nem pegar DP na
Capítulo 2 – A dinâmica das transformações do trabalho - Despedidos da Petroquímica
234
faculdade. Você tem que arrumar um emprego, você tem que trabalhar, você
tem que montar uma família..”
Considerações finais
A dinâmica das transformações do mercado de
trabalho e a alteração do caráter
Antes de tecer as considerações finais, é necessário atentar para o fato
de que dar o último aceno é comumente muito difícil. É sempre assim, no
fim queremos dizer tudo, o que se torna tarefa impossível. O fim é quando
se encerra a porta, quando se fecha a cortina e quando se vira a derradeira
página de um livro. No entanto, também nos permite a conclusão de algo:
de um fato, de uma história, de um trabalho, de uma etapa da vida,
prenunciando o novo.
Aqui trata-se do fecho de um trabalho de dissertação. Por isso mesmo,
implica uma grande responsabilidade, qual seja, a de delinear um eixo
comum por onde perpassem os principais temas abordados em todo o
trabalho. Essa tarefa implica, portanto, a costura cuidadosa das partes que
compõem o todo, conferindo-lhe sentido. É necessário um olhar panorâmico
pelos temas abordados de modo que seja possível delinear um fio condutor,
em torno do qual esses assuntos gravitem.
Com base nos pressupostos teóricos, debrucei-me sobre o material de
campo. Após a colheita dos relatos, tinha em mãos 596 páginas de material
bruto. Via de regra, as entrevistas se estendiam e, ao longo do processo,
não havia me dado conta do volume desse instrumental. Sem muito esforço,
pode-se supor que a dimensão do material que eu recolhera causou um
certo medo pela tarefa que me propus a realizar e sabia que era impossível
explorar tudo. Aos poucos, consegui esquadrinhar as entrevistas, separando
Considerações finais
235
o joio do trigo, até que, de fato, se constituísse uma análise acurada das
falas recolhidas.
De antemão, é necessário dizer que as biografias aqui contadas, em
muitos aspectos, são singulares, o que, de certa forma quer dizer que podem
ser vistas como realidades distintas, particulares. No entanto, me interessava
compreender, sob que prisma, era possível enxergar suas semelhanças. Em
que pontos essas trajetórias se cruzam, onde se identificam.
Para analisar os efeitos das transformações do mundo do trabalho
sobre o caráter do homem nas relações de trabalho, propus-me a estudar a
realidade de três categorias distintas: os trabalhadores efetivos da
Petroquímica União, os trabalhadores terceirizados que atuam naquela
empresa e os trabalhadores dispensados por ela. Foi sobre essas três
realidades particulares que me debrucei, tentando compreender se a
reconfiguração da esfera do trabalho – onde se incluem processos de
reestruturação produtiva, transformações relativas a padrões tecnológicos –
poderia provocar uma tendência à desestabilização do caráter dos
trabalhadores. Isso porque, ordinariamente, essas alterações têm resultado
na flexibilização dos contratos de trabalho e na precarização das relações
sociais, entre outros, produzindo instabilidades e desconfortos na vida dessas
pessoas. Trocando em miúdos, busquei interpretar como essas pessoas
interagem com as mudanças, como se comportam e como as compreendem,
levando em conta a redefinição das regras anteriormente incorporadas ou as
novas regras introduzidas no contexto do trabalho.
A análise das falas dos entrevistados, constituiu-se numa das formas
possíveis de compreender sua realidade e a forma como a interpretam. Ou
seja, a maneira como se vêem e como pensam que são vistos pelos outros.
Nesse sentido, o modo como cada um vê o mercado de trabalho e o seu
papel nele está determinado pelas circunstâncias que encontram, tal qual
Marx afirma84. Por isso mesmo, o trabalhador efetivo, o terceirizado e o
pessoal desligado da Petroquímica União indicaram perspectivas próprias. No
84 “Os Homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem e sim sob as circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado.” ( Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte).
Considerações finais
236
entanto, eles também revelaram aspectos em que seus pontos de vistas
confluem.
Atenta para o impacto das referidas inflexões no modo de ser do
trabalhador, busquei compreender se havia uma nova identidade operária85,
que surge a partir das tensões entre os trabalhadores, devidas ao aumento
das exigências decorrentes do acirramento da competição. A esse respeito,
dois elementos, ligados entre si, apareceramm com mais freqüência na fala
dos entrevistados. Um é a percepção da mudança do papel e da perda de
espaço do sindicato nas lutas trabalhistas, ao longo dos últimos anos, e o
outro é a individualização como forma de assentamento no âmbito
profissional. Independente de aprovarem ou não a inflexão da posição do
sindicato – de combativo a mediador entre patrão e empregado – o
fundamental é que ela decorre da transfiguração do emprego e do aumento
do desemprego e reflete o enfraquecimento dos valores de reciprocidade e
concomitante fortalecimento da individualização ou de formas coletivas
provisórias.
Guga vê no papel do sindicato, algo mais do que a representação dos
trabalhadores. Seria um mecanismo de poder e controle dos empresários
sobre os operários e uma forma tangível de estabelecer diálogo com a massa
trabalhadora. O curioso é que ele entende que o sindicato tornou-se peça-
chave no sistema [capitalista].
“Você congregar a classe..// bom, se você pensar porque existe
sindicato e porque esses grupos foram formados, eles foram formados pra
85 Conforme apontado ao longo do texto, o termo identidade é tomado no sentido de pertença coletiva, ou pertença comum a um grupo social. Assim, entre outras coisas, examinei se havia indícios de valores coletivos, formados a partir da experiência comum dos operários petroquímicos ou se o aguçamento da competição entre os trabalhadores os impelia a comportamentos mais individualistas. A pergunta central aqui era se a realidade operária, vista nos dias de hoje, admite analisar o modo de ser coletivista – advindo da experiência comum dos operários – de maneira diametralmente oposta ao modo individualista da classe média, conforme visto por Thompson em sua discussão sobre o surgimento da classe operária inglesa. Admitir a tendência à adoção de comportamentos mais individualistas em detrimento dos coletivistas é, de certa forma, pensar que a individualização dá as bases para que se processe a mudança da cultura da classe operária na atualidade. Já Beck e Beck-Gernsheim pensam a individualização como a experiência comum possível entre os trabalhadores do final do século XX e início do XXI.
Considerações finais
237
que você tenha controle. A mesma coisa é a religião. Como é que você
controla 40 mil funcionários numa fábrica da Volkswagen? Não tem como! É
o caos total, ninguém se entende. Um fala que sim o outro que não, aí sai
briga e aí vai cada um pra um lado. Então, você elege um líder, o próprio
governo, a própria estrutura governamental criou um líder. “Vou conversar
com esse intermediário”. É muito mais fácil você cooptar esse intermediário,
fazendo o jogo que você quer. Então, a posição do sindicato, pra mim,
é essa. Ela é útil para o trabalhador e é útil para o sistema. (...) . Ele
dá seu diagnóstico a respeito da função do sindicato. “É bom pra os dois
lados. Ele é necessário ao sistema, e é necessário ou útil aos empregados.”
A foma como Guga e outros entrevistados, não só desligados, mas os
trabalhadores também, vêem as organizações sindicais indica como cada vez
se tem menos espaço para uma atuação combativa, de confronto entre as
partes. Ante a reconfiguração do campo do trabalho e do surgimento de
formas híbridas entre emprego e desemprego, há uma multiplicidade das
situações de trabalho e o que se busca são ações mais conciliadoras, e cada
vez mais distantes do antagonismo entre proprietários e não-proprietários.
As três categorias pesquisadas citam o desemprego como um elemento
que causa insegurança no âmbito do trabalho. O crescimento da massa
desempregada gera um aumento das exigências feitas aos que dependem de
salário para viver e quem trabalha convive com isso continuamente. Nem
mesmo a percepção de que o desemprego se ampliou a ponto de se tornar
um fenômeno que se generaliza, produz o sentimento de identidade entre
eles, por se sentirem em condições semelhantes. Faltaram menções a
sentimentos coletivos, ações de solidariedade entre mesmo quando
relatavam situações de trabalho semelhantes.
No contexto de escassez das oportunidades profissionais, conforme
Tião explicitou, os trabalhadores têm cada vez menos chances de escolher o
emprego que desejam. “Por mais que você se qualifique, como eu te falei, a
qualificação é importante, mas isso não te garante nada! Só te deixa mais à
mostra na vitrine, você sai mais à mostra do que outros, você sai um pouco
na frente! Só isso, mas não te dá garantia de nada.” Os empresários, pelo
Considerações finais
238
contrário, escolhem como querem seus empregados. Sobre isso, o mesmo
Tião afirmou: “há um rigor excessivo. Eu acho que como a demanda de
gente é muito grande, eles estão selecionando o que querem.” (...) “Eu acho
que hoje, a empresa, ela tem o empregado do jeito que ela quer. Uma loira
do olho azul, uma morena do olho verde, um cara alto. Ele seleciona a
pessoa do jeito que ele quer, até fisicamente. Então, do jeito que ele quer,
ele vai achar essa pessoa pra trabalhar.”
A percepção de que há excesso de exigências sobre as pessoas que
vivem de salário também é um elemento comum entre as três categorias que
participaram da pesquisa. Os respondentes do grupo dos terceirizados vão
além do fato de que as exigências são exageradas. Para eles, há
incongruências no rol dos critérios requeridos aos trabalhadores, por
exemplo, quando se exige anos de experiência a quem está ingressando pela
primeira vez no mercado de trabalho. Esse foi um aspecto salientado por
Chico e Cadu, ambos atuando como terceiros na Petroquímica União. Eles
mostraram também que o excesso de desempregados faz com que, mesmo
um profissional bastante competitivo fique à mercê dos critérios do mercado,
ele não tem condições de escolher. Chico explicitou seu ponto de vista: “O
meu pai, por exemplo, dizia que além do conhecimento, quanto mais a
pessoa estudasse, maiores as chances de conquistar um trabalho. Hoje em
dia, com bastante empenho, você poderá ser escolhido e não escolher.”
Cadu destacou como a competitividade limita as chances de ingressar
no mercado e gera insegurança ao trabalhador:
“Hoje é muito competitivo o mercado. Então, você sabe que tem uma
empresa que é boa, tem porte, te dá condições de trabalho e tudo que você
precisa, mas entrar numa empresa assim é muito difícil. Antes era mais fácil
entrar e tinha mais, se você não tivesse contente com a função você ia pra
outra função. Hoje já não é assim. Hoje você define a sua função, e, de
repente, aquela função não tá bem. Aí você entra em crise, fica
desempregado porque a função ou área já não é mais necessária. É preciso
Considerações finais
239
estar sempre atento. Por isso que eu acho que sempre tem que procurar tá
atualizado, fazer curso, estudar, tá atento às mudanças de mercado.”
Sempre tiveram vantagem aquelas pessoas que se saíam melhor, as
pessoas que procuravam tá atualizadas. Mas, hoje a necessidade de
atualização é ainda maior.”
O rigor dos critérios adotados para empregar as pessoas dificulta o
reingresso de certos grupos ao mercado de trabalho. Nesse sentido, os
menos abstados e menos escolarizados, segundo os pesquisados, têm menos
chances. A seletividade do mercado opera por diferenciação, mediante
princípios de exclusão, que acentuam as diferenças existentes entre as
pessoas que competem no mercado. Nesse processo, fatores como idade e
sexo (características sobre as quais o desempenho individual não interfere) e
escolaridade e qualificação determinam, de maneira variável e conforme o
contexto – cultura, região, nação – a permanência ou não de uma pessoa em
um emprego, ou definem limites ao seu reingresso ao mercado de trabalho.
Dado esse contexto, Tião deu sua receita para evitar o desemprego:
“É se qualificar sempre, tá sempre estudando. Esse é o principal, se
manter atualizado. Arrumar um jeito de não chegar nos 40.” Ele afirma
que a idade pode embotar as chances de reingresso ao mercado. “Não sei,
arrumar um jeito de parar no tempo, porque se você chegou nos 35, 36
anos, ficou desempregado é complicado. Eu fiquei desempregado, to com
45. Eu fiquei desempregado com 42 anos. É difícil!”
As garantias sociais e direitos, próprios do trabalho regulado, dão lugar
às incertezas do trabalho flexível, visto em atividades de autônomos, ou de
pessoas que vivem de “bicos”. Depois de passar por trabalhos precários, pela
experiência do desemprego por desalento, Pepeu traçou comparações entre
as diferentes realidades – o mundo das relações flexíveis de trabalho e o
trabalho formal:
“Num trabalho registrado você tem uma retirada mensal, e essa
retirada permite que você compre uma casa, um carro, tudo que você não
obteve antes.” Ele explicitou que a remuneração regular permite que a
Considerações finais
240
pessoa planeje a vida, já os os bicos, “Tem dias que você tem, tem dias que
não.
Ele também falou, com base na própria experiência, sobre as
conseqüências que a situação de desemprego acarreta: as instabilidades do
mercado, que geram insegurança à vida das pessoas que dependem de
salário para viver. O Desemprego afeta a vida das pessoas, de maneira
ampla:
“Quando a pessoa tá deprimida ela não consegue ter momento bom,
não tem pior ou melhor. Você fica desmotivado, você não tem esperança.
Aliás, é uma coisa que afeta a maioria de nós hoje. Você pode tá empregado
ou não, a desesperança é o que afeta a maioria de nós, humanos, hoje. Isso
eu noto até na loja. Eu virei um terapeuta. As pessoas choram aqui....”
No conjunto de entrevistas examinadas, percebi formas diferenciadas
de lidar com essa realidade de mutação das relações de trabalho e de novas
exigências do mercado, em que a insegurança e a ameaça do desemprego
estão sempre presentes. Alguns entrevistados, como Ito e Tico, se
mostraram mais em conformidade com elas. Se identificam com modelos
mais competitivos e com a ideia de que o trabalho regulado está destinado a
um grupo cada vez mais seleto. As exigências do mercado não são por eles
estranhadas e não lhes ocorre o fato da desigualdade de oportunidades
entre os que competem por trabalho.
Conforme dito antes, a idade tem sido um critério determinante na
seleção de pessoas ao ingresso ou permanência num posto de trabalho,
tanto no setor petroquímico como no mercado em geral. Isso é o que alguns
estudiosos que discutem o tema do trabalho apontam (Guimarães, 1998) e
que é percebido pela maioria dos respondentes, de todas as categorias,
nessa pesquisa.
No momento contemporâneo, é como se o trabalhador vivesse em um
estado de vigília constante, aprendendo a lidar com as novas demandas do
mercado, sempre buscando se adaptar às exigências e satisfazer às
necessidades de quem lhes emprega. Essas variam a cada dia conforme a
Considerações finais
241
conjuntura do mercado. No entanto, o fato de estarem empregados não
resulta em segurança e estabilidade, uma vez que manter-se no emprego
constitui uma luta diária. Tudo se passa como se fosse necessário “matar um
leão a cada dia”. Isso porque o desemprego se tornou forma de mediação
das relações entre quem trabalha e quem não trabalha. Está presente nas
negociações sindicais, condiciona a forma de pensar e de agir dos
trabalhadores e dos que pleiteiam uma chance de emprego.
A ameaça à integridade do caráter pode ser apontada como uma
experiência possível, entre os trabalhadores e não como determinação nos
padrões de comportamento. No âmbito profissional, é possível pensar a
desestabilização como resultado das mudanças de identidade dos que
dependem de trabalho para viver. Em vez de se pautarem por relações de
reciprocidade, lutando pela igualdade entre trabalhadores, como ocorreu
historicamente, parecem guiados pela competitividade do mercado,
competitividade essa que delineia suas trajetórias profissionais e condiciona
a busca por autonomia profissional. É assim que a liberdade se erige
como um valor máximo entre essas pessoas. Liberdade de pensamento, de
escolha por um destino profissional singular. Nesse sentido, os acordos
comuns se dissolvem com mais facilidade, em nome de interesses pessoais.
É preciso considerar que, assim como os recursos com que contam para
se manterem no mercado de trabalho, o modo de enfrentamento dos
problemas também é diferenciado. Alguns sentem-se mais estimulados em
ambientes mais competitivos e outros mais fragilizados. O conhecimento
dessa desigualdade reforça a necessidade do desenvolvimento de políticas
sociais equalizadoras no âmbito do trabalho e de um sistema que permita o
esquadrinhamento do fenômeno do desemprego nos lugares em que se
manifesta.
No caso estudado, se confirmaram as suspeitas de que as
metamorfoses do mundo do trabalho no setor petroquímico têm provocado,
mais frequentemente, perda de status e queda do padrão de vida do que
geram propriamente desemprego. Isso foi visto na experiência de
terceirizados como Tião, Nuno e Chico e de desligados como Guga e Jota.
Considerações finais
242
Esse quadro se deve ao fato de que o setor petroquímico ainda propicia
remuneração acima da média nacional, o que viabiliza o redirecionamento
dos profissionais, ainda que em carreiras diferentes ou fora do setor
petroquímico.
Talvez seja possível pensar o desemprego como um dos principais
elementos que definem padrões socializadores entre as pessoas que
dependem de trabalho para viver – tanto dentro como fora das empresas. É
como se desse a chave das novas concepções que ordenam a vida social no
trabalho, indicando as novas formas de pensar, sentir e julgar.
243
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http://www.quimicosabc.org.br/
http://www.seade.gov.br
Relatório da OIT – Organização Internacional do trabalho – “Não
ao trabalho forçado” – 89ª reunião / 2001.
Anexos
247
Anexos Entrevista com Heli Vieira Alves
Diretor do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos do ABCDM. 1 - De maneira geral, como você caracteriza as mudanças ocorridas no setor petroquímico entre as décadas de 90 a 2000? R. Houve grandes investimentos no setor principalmente, quanto a ampliação produtiva e melhorias nos sistemas de controle do processo, porém para os trabalhadores com a implantação do PND (Programa nacional de desestatização) houve vários retrocessos. No caso de São Paulo, houve diminuição dos postos de trabalho. Interessante constar que em 1.989 (Levantamento para a desestatização) a PETROQUÍMICA UNIÃO possuía cerca de 1200 trabalhadores diretos e cerca de 200 trabalhadores terceirizados, hoje contamos com cerca de 550 trabalhadores diretos e 600 terceirizados. É possível constatar que houve uma diminuição dos postos de trabalho, principalmente no setor produtivo devido a melhorias nos sistemas de controle, porém é também uma verdade que quase a totalidade dos trabalhadores de manutenção, o total da segurança e refeitório e outros foram terceirizados. 2 – Considerando os processos de reestruturação produtiva, de acirramento da tendência à internacionalização das estratégias de negócios das empresas, quais as principais tendências no sistema produtivo e nas relações de trabalho neste setor (Petroquímico)? Há um aumento da pressão sobre os trabalhadores? R. Está em moda a integração das gerações da cadeia termo-plástico, é uma vontade deste setor redefinir a produção, integrando-a desde o refino até a fabricação dos polímeros. Para tanto, estão em movimento constante na troca de ativos e aquisições de controles acionários, a primeira a obter sucesso no caso brasileiro é a BRASKEM (Odebrecht), mas os demais grupos seguem o mesmo caminho. Nesta conjuntura é possível vislumbrar o potencial de desemprego que isto gerará. Pois unificando os processos, seguem também as unificações administrativas e de apoios, e consequentemente desemprego. È óbvio que com a integração dos processos, os trabalhadores terão que assumir maiores responsabilidades e tarefas, com maior cobrança das responsabilidades. 3 – O aumento da tensão e da cobrança sobre resultados tem acarretado algum problema de saúde para os trabalhadores? Quais? R. Não possuímos nenhum estudo a respeito, mas há uma sensação de que todos estamos mais impacientes, mais tensos, dois trabalhadores de turno estão fazendo terapia pela pressão que sofrem com a chefia imediata (sei somente de dois casos, pois os trabalhadores tendem a envergonhar-se a tratar destes assuntos, ou acham que é um problema deles (síndrome de
Anexos
248
Gabriela)) e também é impressionante o número de separação de casais (não estou sendo puritano nesta observação), o nível de tensão é tamanho, que várias empresas tem adotado programas de ginástica laboral, palestras sobre stress, promovido atividades festivas com as famílias (também para a cooptação dos demais membros da família). 4 – Em termos salariais, houve mudanças significativas para os trabalhadores petroquímicos? R. Houve uma mudança significativa, no caso da PETROQUÍMICA UNIÃO, enquanto era uma empresa de economia mista com controle acionário majoritário pela Petroquisa, havia plano de cargos e salários, melhor tratamento social e benefícios, houve estamos em luta para recuperarmos os valores perdidos. 5 – O que a sobreposição de funções, apontada como uma das tendências às mudanças das relações de trabalho no chão de fábrica, acarreta em termos das condições de trabalho e em termos de articulação política para o trabalhador? R. Há um acúmulo de tarefas para os trabalhadores, antes éramos responsáveis por determinadas tarefas, hoje além destas passamos a assumir tarefas de outras atividades. Exemplo: Antes o operador de processo era responsável pela manutenção do processo (Temperatura, Pressão e Vazão) , hoje além destas variáveis ele ainda tem que fazer alguns serviços de manutenção e também da administração da produção, preenchendo relatórios (partes gerenciais) e participando muitas vezes de tarefas de planejamentos estratégicos de manutenção. Entendemos ser uma sobrecarga nas tarefas, que dificulta muitas vezes a articulação política com os trabalhadores, pois os dirigentes sindicais ficam desatualizados quanto ao mundo do dia-a-dia “chão de fábrica”. Melhor dizendo, os trabalhadores tem um linguajar próprio, baseado no seu dia-a-dia, se o dirigente sindical não está em sintonia com as transformações específicas é difícil acompanhar o raciocínio dos trabalhadores e estabelecer um diálogo construtivo. São Paulo, 08 de março de 2004
Anexos
249
Roteiro de perguntas - Trabalhadores da
Petroquímica União Data: _ / _ / 05 Perfil 1 – Nome, idade, local de nascimento, profissão, estado civil e local de residência, nº de filhos, religião 2 – Qual o seu nível de escolaridade? (Considere o curso de nível mais elevado que freqüentou ou está freqüentando, em que tenha concluído pelo menos uma série) 2.1 – Você conclui esse curso? a) � Sim b) � Não 2.2 – Concluiu algum curso técnico? (equivalente ao 2º grau) Sim. Qual? _____________________________________ Não 3 – Situação do cônjuge: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, religião. 4 – Dados dos pais: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, estado civil, nº de filhos, religião. Trajetória de trabalho 5 – Com quantos anos você começou a trabalhar? 6 – O que significou para sua vida ter começado a trabalhar? 7 – O que você esperava para sua vida profissional, o que sonhava ser? 8 – Suas expectativas profissionais, antes de ingressar no mercado de trabalho, correspondem aos resultados conquistados na PQU? 9 – Fale sobre sua trajetória no ramo petroquímico, mostrando as passagens por outras empresas e as mudanças de cargo dentro da PQU 10 – Ao longo de sua carreira, quantas vezes você mudou de função na empresa? Quantas vezes?
Anexos
250
11 – Houve alguma mudança no espaço de trabalho? Mudança de Lay out, de setor, de cidade, etc.? 12 – Em sua trajetória na empresa, você vivenciou a situação de reestruturação produtiva? Conte quantas vezes ocorreu e como foi o processo. 13 – Como você se sentiu com as mudanças implementadas na PQU, no campo profissional e pessoal? Mudou a forma como você passou a se ver ou como passou a ser visto na empresa e fora dela? 14 – Você assumiu um novo cargo, devido ao fato de sua função na empresa ser extinta? 15 – As mudanças de função pelas quais você passou se converteram em ganho ou em perda para sua carreira? 16 – O que essas mudanças significaram para as condições de trabalho na empresa, para a vida pessoal, nas relações de família e com amigos? 17 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, ou de parentes devido a alteração de cargo ou função pela qual você passou? 18 – Você se sente realizado profissionalmente, ou ainda há metas por alcançar (dentro ou fora do setor onde atua no momento)? Emprego na PQU 19 – Há quanto tempo você trabalha na Petroquímica União? _ anos e _ _ meses 20 – Quantas vezes você já foi demitido (a) e readimitido(a) pela PQU? 21 – Você trabalha em regime CLT, pela PQU? 22 – Qual o mês de sua última admissão na PQU? Ao retornar à empresa mudou a relação empregatícia? 23 – Qual o seu turno de trabalho? 24 – Seu salário mensal é de : 25 – Houve mudança de patamar salarial (valorização ou desvalorização salarial)? De quanto foi a valorização e desvalorização ao longo de sua carreira na empresa?
Anexos
251
26 – Quantas horas extras, remuneradas ou não, você trabalho no mês passado? (inclui compensação de horas e/ou banco de horas) 27 – Caso você tenha trabalhado horas extras, responda: 28 – As horas extras trabalhadas foram: Remuneradas Não remuneradas e não compensadas Não remuneradas, mas compensadas Valores e Percepção sobre o trabalho 29 – Está satisfeito com a profissão que exerce ou gostaria de exercer outra? O que faltou fazer? A que atribui o sucesso ou o insucesso na carreira, o que você mudaria em sua trajetória profissional? 30 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado para sua vida? 31 – Qual a importância de sua formação profissional para o trabalho que executa? Você considera que sua escolaridade influencia sua situação de trabalho, sua posição na empresa? 32 – Lembra-se do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 33 – E hoje em dia, o que o trabalho significa pra você? 34 – O que diria a seus filhos sobre o significado do trabalho?Que conselhos daria a eles sobre as estratégias importantes para ingressar no mercado de trabalho e para se manter nele? 35 – O que é trabalho e o que é emprego? Há diferenças entre um e outro? 36 – Há diferenças entre quando você ingressou no mercado de trabalho e o momento atual? O que mudou significativamente? 37 – Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar em relação à questão do emprego e desemprego? Acha que antigamente as coisas eram diferentes? 38 – Como você definiria o mercado de trabalho hoje? O que esse quadro acarreta para a vida do trabalhador? 39 – Sua rotina de vida é influenciada pela condição de trabalho? Como você organiza sua vida, a partir de sua situação de trabalho (em turnos)?
Anexos
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40 – Trabalhar é mais importante para o homem ou para a mulher? Por que? Relações com amigos 41 – Mantém um grupo de amigos no trabalho? 42 – Fora do trabalho, desenvolve atividades com essas pessoas? Que tipo de atividade? 43 – O que faz nas horas de descanso? Família 44 – A sua relação com a família (esposa, filhos, etc.) se altera em função de mudanças na realidade de trabalho? Como isso se evidencia? 45 – Quais são suas preocupações em relação ao futuro profissional de seus filhos? 46 – Em comparação com o momento em que você começou sua carreira, hoje em dia, para os jovens, é mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho? 47 – Há diferença no modo como você e seus filhos encaram o trabalho? A que isso se deve? 48 – Como a geração de seus filhos se relaciona (ou como acha que vai se relacionar com o trabalho)? 49 – O que é importante transmitir / ensinar a seus filhos, sobre a vida profissional? 50 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? 51 – Qual a idade ideal para ingressar no mercado de trabalho? 52 – Seu (sua) companheiro (a) trabalha atualmente? Já ficou sem trabalhar, o que muda na relação quando um dos parceiros não trabalha? Religião 53 – Você tem religião? Qual o papel dela na sua vida? Existe alguma relação entre a fé e a situação de vida e de trabalho das pessoas? 54 – Quando há o apoio da religião, é mais difícil ou mais fácil enfrentar as dificuldades no mundo do trabalho?
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55 – Houve mudança no papel da religião ao longo de sua vida? Como se deu essa mudança? 56 – Em algum momento do seu percurso na PQU, as dificuldades profissionais contribuíram para que você buscasse apoio na religião? RELAÇÕES ASSOCIATIVAS Sindicato 57 – Você é sindicalizado (a)? Participa de alguma atividade no sindicato? 58 – Se sim, de que tipo de atividade você participa? 59 – Se não, quais os motivos que o (a) levam a não participar das reuniões de sindicato? 60 – Em sua opinião, qual o principal papel do sindicato na vida dos trabalhadores? 61 – Qual era o papel do sindicato quando você entrou na empresa? Esse papel se mantém ainda hoje ou mudou? SIGNIFICADO DO DESEMPREGO 62 – Como vê a questão do desemprego? 63 – Acha possível solucionar a questão do desemprego? De que modo? 64 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego na vida das pessoas? 65 – O setor petroquímico sofre as mesmas influências do desemprego que os demais setores ou não? Destaque as diferenças 66 – Você identifica algum momento em que o desemprego passou a ser mais presente na vida das pessoas em geral? E na das que estão no setor petroquímico? 67 – Para quem o desemprego é um problema? (pessoas em geral, juventude, país, mundo?) O desemprego afeta todas as pessoas do mesmo modo ou existem certos segmentos ou grupos mais vulneráveis a ele (homens, das mulheres, dos jovens e adultos)? 68 – Quais as dificuldades típicas dos desempregados saídos do setor petroquímico? Quais os maiores desafios a enfrentar?Que estratégias uma
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pessoa do ramo petroquímico deve adotar pra sair da situação de desemprego? 69– Como seus colegas vêem o desemprego, já conversou sobre isso?
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Roteiro de perguntas – Trabalhadores terceiros Data: Entrevistado: Perfil
1 – Nome, idade, local de nascimento, profissão, estado civil e local de residência, nº de filhos, religião 2 – Qual o seu nível de escolaridade? (Considere o curso de nível mais elevado que freqüentou ou está freqüentando, em que tenha concluído pelo menos uma série) 2.1 – Você conclui esse curso? 2.2 – Concluiu algum curso técnico? (equivalente ao 2º grau)
3 – Situação do cônjuge: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, religião. 4 – Dados dos pais: idade, local de nascimento, escolaridade, profissão e ocupação, estado civil, nº de filhos, religião. Trajetória de trabalho 5 – Com quantos anos você começou a trabalhar? 6 – O que significou para sua vida ter começado a trabalhar? 7 – O que você esperava para sua vida profissional, o que sonhava ser? 8 – Suas expectativas profissionais antes de ingressar no mercado de trabalho correspondem aos resultados conquistados na PQU? 9 – Fale sobre sua trajetória no ramo petroquímico, mostrando as passagens por outras empresas e as mudanças de cargo dentro da PQU.
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10 – Ao longo de sua carreira, quantas vezes você mudou de função na empresa? Quantas vezes? 11 – Houve alguma mudança no espaço de trabalho? Mudança de Lay out, de setor, de cidade, etc.? 12 – Em sua trajetória na empresa, você vivenciou a situação de reestruturação produtiva? Conte quantas vezes ocorreu e como foi o processo. 13 – Como você se sentiu com as mudanças implementadas na PQU, no campo profissional e pessoal? Mudou a forma como você passou a se ver ou como passou a ser visto na empresa e fora dela? 14 – Você assumiu um novo cargo, devido ao fato de sua função na empresa ser extinta? 15 – As mudanças de função pelas quais você passou se converteram em ganho ou em perda para sua carreira? 16 – O que essas mudanças significaram para as condições de trabalho na empresa, para a vida pessoal, nas relações de família e com amigos? 17 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, ou de parentes devido a alteração de cargo ou função pela qual você passou? Nesse processo em que o senhor saiu (se aposentou) e ficou sem trabalhar, sentiu diferença no comportamento das pessoas? 18 – Você se sente realizado profissionalmente, ou ainda há metas por alcançar (dentro ou fora do setor onde atua no momento)? Emprego na PQU 19 – Há quanto tempo você trabalha na Petroquímica União? 20 – Quantas vezes você já foi demitido (a) e readimitido(a) pela PQU?
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21 – O Sr. trabalhava em regime CLT, pela PQU e agora como terceiro?Qual a diferença entre uma situação e outra, como o sr compara as duas situações que vivenciou na mesma empresa? 22 – Qual o seu turno de trabalho? 23 – Houve mudança de patamar salarial (valorização ou desvalorização salarial)? De quanto foi a valorização e desvalorização ao longo de sua carreira na empresa? 24 – Seu salário mensal é de : 25 – Quantas horas extras, remuneradas ou não, você trabalho no mês passado? (inclui compensação de horas e/ou banco de horas) 26 – Caso você tenha trabalhado horas extras, responda: 27 – As horas extras trabalhadas foram: Remuneradas Não remuneradas e não compensadas Não remuneradas, mas compensadas Valores e Percepção sobre o trabalho 28 – Está satisfeito com a profissão que exerce ou gostaria de exercer outra? O que faltou fazer? A que atribui o sucesso ou o insucesso na carreira, o que você mudaria em sua trajetória profissional? 29 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado para sua vida? 30 – Qual a importância de sua formação profissional para o trabalho que executa? Você considera que sua escolaridade influencia sua situação de trabalho, sua posição na empresa? 31 – Lembra-se do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 32 – E hoje em dia, o que o trabalho significa pra você?
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33 – O que é trabalho e o que é emprego? Há diferenças entre um e outro? 34 – O que diria a seus filhos sobre o significado do trabalho?Que conselhos daria a eles sobre as estratégias importantes para ingressar no mercado de trabalho e para se manter nele? 35 – Como você definiria o mercado de trabalho hoje? O que esse quadro acarreta para a vida do trabalhador? 36 – Há diferenças entre quando você ingressou no mercado de trabalho e o momento atual? O que mudou significativamente? 37 – Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar em relação à questão do emprego e desemprego? Acha que antigamente as coisas eram diferentes? 38 – Sua rotina de vida é influenciada pela condição de trabalho? Como você organiza sua vida, a partir de sua situação de trabalho (em turnos)? 39 – Trabalhar é mais importante para o homem ou para a mulher? Por que? Relações com amigos 40 – Mantém um grupo de amigos no trabalho? 41 – Fora do trabalho, desenvolve atividades com essas pessoas? Que tipo de atividade? O que faz nas horas de descanso? Família 42 – A sua relação com a família (esposa, filhos, etc.) se altera em função de mudanças na realidade de trabalho? Como isso se evidencia? 43 – Quais são suas preocupações em relação ao futuro profissional de seus filhos?
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44 – Em comparação com o momento em que você começou sua carreira, hoje em dia, para os jovens, é mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho? 45 – Há diferença no modo como você e seus filhos encaram o trabalho? A que isso se deve? 46 – Como a geração de seus filhos se relaciona (ou como acha que vai se relacionar com o trabalho)? 47 – O que é importante transmitir / ensinar a seus filhos, sobre a vida profissional? 48 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? 49 – Qual a idade ideal para ingressar no mercado de trabalho? 50 – Seu (sua) companheiro (a) trabalha atualmente? Já ficou sem trabalhar, o que muda na relação quando um dos parceiros não trabalha? Religião 51 – Você tem religião? Qual o papel dela na sua vida? Existe alguma relação entre a fé e a situação de vida e de trabalho das pessoas? 52 – Quando há o apoio da religião, é mais difícil ou mais fácil enfrentar as dificuldades no mundo do trabalho?
RELAÇÕES ASSOCIATIVAS Sindicato 54 – Você é sindicalizado (a)? Participa de alguma atividade no sindicato? 55 – Se sim, de que tipo de atividade você participa? 56 – Se não, quais os motivos que o (a) levam a não participar das reuniões de sindicato? 57 – Qual era o papel do sindicato quando você entrou na empresa? Esse papel se mantém ainda hoje ou mudou?
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58 – E hoje em dia, qual o principal papel do sindicato na vida dos trabalhadores? SIGNIFICADO DO DESEMPREGO 59 – Como vê a questão do desemprego? 60 – Para quem o desemprego é um problema? (pessoas em geral, juventude, país, mundo?) 61 – O desemprego afeta todas as pessoas do mesmo modo ou existem certos segmentos ou grupos mais vulneráveis a ele? 62 – Acha possível solucionar a questão do desemprego? De que modo? 63 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego na vida das pessoas? 64 – Você acha que o desemprego afeta de maneira diferente a vida dos homens, das mulheres, dos jovens e adultos? 65 – O setor petroquímico sofre as mesmas influências do desemprego que os demais setores ou não? Quais as dificuldades típicas dos desempregados saídos do setor petroquímico e quais os maiores desafios a enfrentar? 66 – Você identifica algum momento em que o desemprego passou a ser mais presente na vida das pessoas em geral? E na das que estão no setor petroquímico? 67 – Que estratégias uma pessoa do ramo petroquímico deve adotar pra sair da situação de desemprego? Um desempregado do setor petroquímico é diferente de uma pessoa egressa de outro setor da indústria? 68 – Como seus colegas vêem o desemprego?
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Roteiros de Entrevistas – Desempregados
Roteiro básico para a primeira entrevista Objetivo Geral: Identificar se o entrevistado tem disponibilidade para participar da pesquisa e se sua trajetória de trabalho se coaduna com os objetivos da mesma Objetivos específicos: •Identificar o tempo fora da PQU •Identificar o tempo de desemprego •Identificar profissão e formação (início da vida profissional, ocupações ao longo da vida, expectativas quando do início da vida profissional) •Identificar situação familiar (estado civil, número de filhos) •Identificar pretensões de recolocação •Descobrir as primeiras estratégias declaradas de desemprego •Identificar as representações sobre o contexto do próprio desemprego (como a pessoa se vê, como acha que os outros a vêem, etc, quais os fatores que interferem, quais as conseqüências sociais) •Saber se buscou apoio numa Instituição de apoio e Solidariedade e o caminho ou a rede de informações que o levou a essa Instituição ROTEIRO DE PERGUNTAS Identificação 1 – Nome, idade, profissão, estado civil e local de residência, religião escolaridade, local de nascimento, quanto tempo trabalho na PQU? Caracterização da situação de desemprego 2 – Como e porque decidiu trabalhar no setor petroquímico? Você sempre trabalhou registrado? Fale sobre sua trajetória profissional, desde o início até o momento atual. 3 – Há quanto tempo você está desempregado? 4 – A que atribui a situação do desemprego (condições da empresa, conjuntura econômica, situação do setor, etc.)? 5 – Descrever a situação de perda do emprego. Os fatos e situações que resultaram em desemprego, como se sentia, se houve pressão dos
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superiores ou algum tipo de mudança em relação à área em que atuava, ou mudança de função, antes de sair da empresa. 6 – Buscou suporte de Instituição de Apoio e Solidariedade? Como chegou a ela? 7 – Ingressou em outro emprego na área petroquímica? E em outra área? Quanto tempo permaneceu na função? 8 – Como se vê, como se sente na situação de desemprego? 9 – Faz ou fez bicos? Quais? 10 – Qual a diferença entre fazer bicos e ter um trabalho registrado em carteira? Como se sente numa situação e na outra? Percepção sobre a situação de desemprego e sobre a experiência pessoal 11– O que identifica como sendo as maiores dificuldades para quem está sem emprego? 12 – Você poderia descrever os momentos mais difíceis que enfrentou dentro da situação de desemprego? 13 – Quais as mudanças que sente em relação à época em que trabalhava? O que é mais difícil enfrentar atualmente? 14 – Percebeu alguma mudança na atitude dos vizinhos, a partir do momento em que ficou desempregado, sente-se mais observado? 15 – Quando alguém pergunta qual a sua atividade, o que responde e como se sente? 16 – Como acha que seria possível resolver a questão do desemprego? 17 – Pensando nos exemplos que você conhece, quais são as conseqüências do desemprego para a vida de uma pessoa? 18 – Com que idade começou a trabalhar? Alguma vez imaginou que ficaria desempregado? 19 – Antes de começar a trabalhar, o que sonhava fazer? Como avalia sua trajetória profissional? Você alcançou suas metas? Cometeu falhas? 20 – Gostaria de ter feito outras escolhas em sua trajetória profissional? Quais? O que isso teria acarretado à sua vida pessoal e profissional?
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21 – Qual o seu melhor momento profissional, aquele em que se sentiu realizado e porque? 22 – Qual é a profissão dos seus pais? 23 – Se lembra do que costumava ouvir sobre trabalho quando era criança? 24 – E hoje em dia, o que significa e qual sua percepção sobre o trabalho e sobre o desemprego? Qual a concepção das pessoas sobre trabalho? 25 – Acha que existem diferenças entre trabalho e emprego? 26 – Acha que antigamente as coisas eram diferentes? Identifica algum momento, na história recente, em que as coisas começaram a mudar com relação à questão do emprego e do desemprego, especialmente no setor petroquímico? 27 – Quais as especificidades do desemprego no setor petroquímico? O mercado petroquímico é mais fácil para trabalho ou mais difícil? 28 – O desemprego afeta homens e mulheres de maneira diferente? No que? 29 – Há grupos de pessoas ou setores mais afetados pelo desemprego do que outros? Quem são e porque? Planos e perspectivas futuras 30 – Quais os seus planos ou projetos profissionais de agora em diante? 31 – Já ficou desempregado (a) por um longo tempo antes? Como se sentiu? 32 – já pensou em se mudar de cidade, ir para outro município onde tem empresas do ramo petroquímico? 33 – Pretende se manter no mesmo setor de trabalho ou mudar? Quais suas perspectivas e porque? 34 – Já ficou mais de um mês sem procurar emprego? 35 – Se sim, quais foram os motivos que o (a) levaram a parar de procurar por um tempo? 36 – Após ficar desempregado você procurou fazer um curso de aperfeiçoamento, especialização ou algo semelhante? Como se sentiu, mudou a forma como se vê?
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37 – Após ficar desempregado, chegou a assumir provisoriamente funções diferentes ou exercer atividades distintas das que teve na PQU? Relação com a família e mudanças geracionais 38 – Mudou a relação com a família? Como está a relação com o (a) companheiro (a) e com os filhos? A situação de desemprego gerou algum desconforto, ou crise? 39 – Costumava passar bastante tempo em casa antes de sair do último emprego? Qual a relação com a casa (vida doméstica), suas obrigações e funções? O que é prazeroso em casa e o que é difícil ou delicado? 40 – Qual era sua rotina em casa, antes de sair da PQU? Como é sua rotina agora que está procurando emprego? Tem horários definidos para os compromissos que assume? 41 - Você conversa sobre as dificuldades com os familiares ou pessoas próximas? 42 – E hoje em dia? Qual sua rotina, como é sua vida em casa, como é sua relação com as pessoas? Seus hábitos mudaram? 43 – Identifica alguma diferença entre o modo como você encara o desemprego e o modo de seus filhos encararem? A que se deve isso? 44 – Como a geração de seus filhos se relaciona ou como acha que vai se relacionar com a questão do emprego? Você pretende que seus filhos atuem no setor petroquímico? Por quais razões?
45 – Tem parentes que moram na mesma cidade? Recorre a eles, conta com a ajuda de alguém pra enfrentar a situação de desemprego? 46 – O que é importante transmitir / ensinar para seus filhos, sobre a vida profissional e sobre a experiência do desemprego? Existem modos ou mecanismos para evitar o desemprego?
47 – É mais fácil ou mais difícil encontrar trabalho para os jovens hoje em dia em comparação com o momento em que você começou sua carreira? 48 – Se pudesse escolher ou influenciar a escolha, faria algo para que seus filhos ingressassem no mesmo setor profissional que você escolheu? Sociabilidade 49 – Quais as pessoas que mais encontra? Você participa de algum grupo de apoio, na igreja, no sindicato, ou rede social que auxilia a procura de emprego através de oportunidades e contatos?
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50 – Matem contato com as pessoas que continuaram trabalhando na PQU? Nota alguma diferença entre o comportamento delas e o seu? Com que freqüência fala com elas? Faz comparações com relação a sua situação agora e quando estava na PQU? 51 – Você tem religião? Isso ajuda a enfrentar a questão do desemprego? Você conversa sobre essa situação com as pessoas da igreja, ou templo? 52 – O que faz nas horas de lazer? Pratica esportes ou participa de alguma atividade em grupo
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Comentários preliminares sobre as impressões de campo Nereu– 05/08/05 Quando chegava à metade do questionário, Nereu contou que antes de ser
desligado da PQU já havia se aposentado, o que alterava consideravelmente sua condição de vida. Para a pesquisa, era necessário que o funcionário tivesse ficado sem trabalho, depois de ter sido desligado da empresa. É essa situação que caracteriza a situação de uma pessoa desempregada.
Tião – 06/08/05 45 anos, casado e tem uma filha. Ingressou em um curso técnico na área de análises patológicas, mas por falta de recursos desistiu. Após ser admitido no departamento de contabilidade de uma metalúrgica, decidiu fazer contabilidade. Trabalhou na Petroquímica por 15 anos consecutivos e atua como analista contábil. Atualmente é funcionário de uma indústria do ramo metalúrgico. A entrevista com Tião propiciou uma discussão mais aprofundada sobre o tema do desemprego. Isso porque, a maior dificuldade desse trabalho tem sido encontrar pessoas que foram desligadas da PQU. No entanto, Tião não trabalhava no setor de produção e sim no quadro administrativo da empresa. De qualquer modo, pôde falar o que a situação de desemprego significou para sua vida, considerando que vinha de uma experiência de cerca de 15 anos numa empresa que lhe proporcionava estabilidade financeira. Ele pontua bem as dificuldades de se adequar ao novo modo de procurar emprego – pelo meio virtual. Reclama que não há mais lugar onde se possa procurar emprego. Nesse caso, refere-se ao espaço, lugar de luta por oportunidade de trabalho, uma vez que as empresas utilizam mecanismos virtuais de recrutamento. Até determinada altura da seleção, os profissionais não conhecem de perto a empresa e as pessoas que organizam o processo seletivo, o que, de sua perspectiva, faz com que os candidatos às vagas se submetam a critérios de escolhas desconhecidos. Além disso, comenta sobre a tensão no ambiente de trabalho, o excesso de exigências e a mudança de comportamento dos colegas, no período dos cortes, em decorrência da privatização.
Jota – 19/08/05 Jota foi o entrevistado que se enquadrou perfeitamente na categoria dos desempregados. É ex-funcionário da PQU, e está desempregado desde janeiro de 2005. No entanto, sua entrevista foi bastante tensa. Pelo que percebi havia uma relutância em responder as perguntas e discutir abertamente as dificuldades de sua condição de desempregado. Parece ser uma pessoa fechada, mas tive a
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impressão de que, admitir a condição de desempregado era difícil, seria como admitir as fragilidades de sua situação de vida no momento atual. Por isso, evitou discutir profundamente o assunto, sobretudo quando me referia ao modo como se sentia na situação recente. Está buscando recolocação no mercado e, embora pareça um pouco desanimado, esforçou-se no sentido de transparecer confiança de que irá encontrar um novo espaço no mercado de trabalho. Em sua fala o desemprego não parece uma ameaça, mas algo com que temos que conviver com tranqüilidade.
Zinho –1/09/05 Zinho foi indicado por um funcionário efetivo da PQU. Já de cara, estava disponível pra falar. Assim, no primeiro contato, por telefone, marcamos a entrevista para o dia seguinte. Mora em Ribeirão Pires, cidade em que reside boa parte de seus parentes. Não demonstra pesar por ter saído da PQU. Pelo contrário, embora tenha saído de uma situação de estabilidade para outra que não lhe oferece garantias, sente-se feliz, confortável, e, em certa medida, realizado em termos pessoais e profissionais. A saída da PQU foi condição sine qua non, um importante impulso para que ele enveredasse no campo profissional em que desejava atuar. Conta que sua experiência na situação de desemprego foi extremamente difícil. Diz que foi como um abismo, como um “branco” que dá em nossa mente, ausência de soluções, de norte, de respostas. “Você não consegue imaginar nenhuma saída, não consegue traçar metas para enfrentar as dificuldades”. Ele diz que só sentia vontade de dormir. Mal conversava com sua esposa sobre assuntos ordinários. Encerrou-se em seu quarto por um pouco mais que quatro semanas. Depois disso, resolveu pedir uma oportunidade na vaga de vendedor, na concessionária de carros de seu primo em Ribeirão mesmo. Daí em diante, não deixou mais o ramo de vendas, de onde não pretende sair mais.
Dida – 2/09/05 Dida foi muito contundente em seu depoimento. Vê a Petroquímica de forma peculiar, da perspectiva de uma pessoa que tem mais autonomia pra pensar a empresa, tem seus próprios conceitos sobre o modo de funcionamento da PQU e, desde o começo, não reconhecia de boom status trabalhar lá. Descreve com desprendimento o cotidiano do trabalho na PQU e as relações de trabalho ali envolvidas. Avalia que o trabalho na empresa envolve responsabilidade e tensão, dados os riscos concernentes à atividade petroquímica. São reatores, sistemas de alta tensão, reações químicas em cadeia de toneladas de substâncias e o sistema de trabalho em turnos. Descreve os momentos de algazarra que os
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funcionários tinham, como uma forma de amenizar o clima de tensão. Afirma que foi literalmente ‘roubado’ pela empresa, uma vez que comprou ações da PQU, no período de privatização, e essas ações foram transformadas em ações sem valor nominal em bolsa – ou seja, não negociáveis em bolsa. Considera que o trabalho do sindicato beneficia alguns dirigentes e não a classe trabalhadora em geral. Tem capacidade empresarial, está despido da postura de um trabalhador, fala da perspectiva de um empresário, uma vez que atua no setor empresarial.
Pepeu – 21/09/05 A entrevista com Pepeu foi emblemática, talvez, pudesse dizer chocante mesmo. Sobretudo porque ele começa dizendo que trabalhou por 8 anos como escravo. Eu sinalizei pensar que era força de expressão, no entanto, Pepeu explicou que havia trabalhado dos 14 aos 22 anos com seu pai, numa condição que considera ser a de um escravo. Ele não recebia salário ou qualquer tipo de remuneração pelas horas trabalhadas, o pai o tratava como capacho e fazia com que se sentisse incapaz, incompetente. A partir dos 23 anos trabalhou fazendo bicos, trabalhos temporários, tendo ficado 2 anos sem ocupação alguma. Descreve esses dois anos como sendo extremamente difíceis para ele, “não tinha vontade de acordar, de levantar, muito menos sentia força pra buscar soluções”. O mais impressionante é entender como foi possível transitar da situação que caracteriza como sendo a de escravo, dependente, situação em que sua auto-estima estava ferida, para a de pessoa autônoma, capaz de encontrar seu próprio caminho, de ser senhor de seus desejos e de sua vontade. Aos 29 anos ele ingressou na Petroquímica, período em que foi possível estruturar sua vida, do ponto de vista material. Comprou casa, carro e começou a investir no sonho de ter seu próprio negócio. Outro aspecto curioso e que surgiu para mim como um desafio foi conciliar o que o entrevistado entende com autonomia com a situação de desemprego, desesperança e desesperança, condição pela qual passam diversos trabalhadores e assalariados no Brasil e no mundo. O mesmo sistema que gera desemprego, concentração de renda, desigualdade é o que permitiria a cada um uma vida livre e autônoma. Como conciliar esses dois universos que parecem tão díspares e que foi delineado pelo depoimento do entrevistado sobre sua experiência pessoal de trabalho e de vida?
Guga – 17/10/05 Guga foi indicado por outro colega dos tempos da PQU. Sua entrevista é pontuada por uma análise crítica ao processo de privatização feito no Brasil. Mas
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não só, ele fala também das exigências do mercado, que ora vão pra um lado ora vão pra outro diametralmente oposto. Discute a confusão que essas tendências diversas geram aos perfis de trabalhadores e trata da angústia que foi o processo imediatamente anterior à privatização. A dificuldade em jogar fora, em se despir da cultura adquiria na empresa ao longo de 20 anos e adotar a avalanche de novos códigos sociais que invadem a empresa. A cultura do funcionário MBA, fluente em inglês e francês não se coaduna com a do funcionário que dá a vida á empresa. Para ele, a princípio, parecem dois mundos inconciliáveis. Ele utiliza o termo ‘assédio moral’ pra explicar o trauma que as mudanças de condução, que exigem novos comportamentos, que obrigam as pessoas a se desimcumbirem de tudo o que aprenderam ao longo de anos, de uma hora pra outra como se fosse uma tarefa simples. A indenização que recebeu pelos tempos de casa não lhe garantiu tranqüilidade emocional. Vivendo como pequeno empresário, sem condições de capitalizar seu negócio, sofre com as incertezas e afirma que passa por momentos de insegurança que diz serem semelhantes às de uma pessoa desempregada ou que faz bicos. Sua renda caiu consideravelmente e não tira férias desde que saiu da PQU.
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Theo – 15/06/05.
Casado, tem uma filha e mora em São Bernardo Antes de ser entrevistado Theo entrou em contato com a PQU para ter
certeza se eu havia entrado em contato com a empresa antes de abordá-lo. O fato de eu ligar para ele durante o período de férias, em sua casa, levantava a suspeita de que eu poderia estar blefando. A entrevista decorreu com tranqüilidade, mas fiquei um pouco desconfiada pelo fato de Theo sempre se colocar com um otimismo inabalável, como se não corresse nenhum tipo de risco, como trabalhador. Suas colocações sobre o mercado de trabalho dão a ideia de pouca reflexão sobre a realidade do mercado de trabalho brasileiro: instável e inseguro. Em todas as colocações ele foi sempre otimista, tem uma visão ‘pouco realista’ sobre o desemprego.Talvez isso se explique pelo fato de o mercado petroquímico ser uma exceção, em comparação com os demais setores da indústria mas, de todo modo, as reflexões sobre o mercado de trabalho parecem superficiais. Não se sente pertencente à classe trabalhadora.
Beto – 28/07/05 Casado, tem 3 filhos, vive em São Paulo
Beto destacou-se entre os entrevistados que expressam com clareza sua crítica ao mundo do trabalho. Antes de ingressar na PQU tinha passado pelo setor bancário, onde percebeu que as escassas oportunidades de crescer em sua carreira - apesar da dedicação às atividades - poderiam ter correlação com o fato de ser negro. Desde 1988 na PQU, atua no setor de Utilidades depois de ter passado por outras funções, mas permanece no cargo de operador I desde quando ingressou na empresa. Embora se considere um funcionário dedicado, afirma que não expandiu seus estudos por causa que a vida em família não admite mais ausências além das que sua vida de trabalhador de turno lhe impõem.
Vlad –1/08/05 Casado, tem três filhos e vive em Santo André
Vlad começou a trabalhar muito cedo, aos 9 anos, e tem uma visão bastante otimista sobre o trabalho. Demonstra ter ideias próprias não somente em relação ao campo de trabalho, mas em relação à situação econômica do País. Faz análises peculiares sobre a conjuntura, com base no conhecimento que adquiriu por meio da experiência de vida. Antes de começarmos a entrevista ele já começou a discutir política e economia, lançando teses bem argumentadas. Sua fala mostra lucidez em relação ao mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que o entrevistado tem muita confiança em relação ao seu futuro. Confia que o trabalho que desenvolve seja bem avaliado pela empresa. De sua perspectiva, sua trajetória profissional se constitui a partir de diversas experiências bem
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sucedidas que teve. Bira – 04/08/05
Casado, tem dois filhos e vive em Ribeirão Pires Coerência e equilíbrio marcam essa entrevista em que o respondente avalia
as limitações que têm num trabalho de turno. João demonstra que sua ida para o mercado petroquímico foi a realização de um sonho. Mesmo assim, sabe que o trabalho em turno limita sua vida social, tanto com a família quanto com os amigos, mas considera que é uma característica intrínseca ao trabalho, por isso não reclama. Demonstra segurança na atividade que desenvolve e confiança no futuro. É um dos poucos entrevistados que tem uma visão de que o sindicato é importante na luta pelos direitos dos trabalhadores. Mesmo estando conciliado com sua escolha profissional, consegue analisar o processo de reestruturação e o de privatização com crítica e lucidez. Considera que o desemprego é uma variável que desorganiza a vida do trabalhador.
Ito – 13/08/05 Casado, não tem filhos, mora em São Bernardo
A única das entrevistas feita fora do ambiente doméstico – na Faculdade Osvaldo Cruz, onde Itoestuda engenharia química. Ele é, talvez, o mais bem sucedido entre os entrevistados efetivos na PQU. Galgou posições de comando na hierarquia da empresa, com relativa rapidez – média de três anos entre um posto e outro – e tem um discurso bem alinhado ao empresariado sobre o destino profissional dos trabalhadores. Atribui aos trabalhadores a responsabilidade sobre seu próprio destino – tanto o sucesso quanto o insucesso e não considera importante a atuação do sindicato na vida dos trabalhadores. Rogério, mais claramente que os demais, demonstra não se sentir pertencendo à classe trabalhadora, não demonstra se identificar com a classe.
Cacá – 26/08/05 Casado pela segunda vez, tem filhos e enteados, mora em Santo André
Embora não tenha se dedicado aos estudos formais, Roberto galgou posições de comando devido à sua dedicação e habilidade manual e atua como supervisor da manutenção – setor que mais sofreu com o processo de reestruturação da empresa. Apesar disso, defende os interesses da empresa e não tem uma visão crítica do processo de reestruturação. Considera tudo “natural” e conseqüência da conjuntura global. Em sua opinião, o desemprego é decorrência do comportamento de cada trabalhador, mesmo ponderando que não tem espaço pra todo mundo no mercado, garante a vaga quem trabalha conforme as regras da empresa. Não tem uma reflexão sobre as lutas dos trabalhadores e acha que o sindicato atrapalha a vida do trabalhador.
Doda – 20/08/05 Casado, tem dois filhos e mora entre Mauá, Santo André e São Paulo
Doda é funcionário da PQU há 30 anos. Sua história na empresa está marcada por uma atuação bem-sucedida como funcionário. Tem orgulho de estar na
Anexos - DESESTABILIZAÇÂO DO CARÁTER NAS RELAÇÕES DE TRABALHO - Comentários sobre as impressões da experiência de campo – entrevistas com os efetivos
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empresa por três décadas e sente-se colaborador. Acha que a empresa valoriza seu capital humano, pondera que a privatização e os processos de mudança eram necessários para que a empresa se mantivesse de pé. As crises pelas quais a empresa passou são lembradas como momentos difíceis, mas superáveis. Doda considera que faz parte de uma empresa de grande valor e, junto com sua esposa, afirma que a PQU foi pra ele uma mãe. Algumas razões citadas por ele são: boa remuneração, pelo fato de receber cursos de especialização e a outra por ter o direito de se aposentar por período indeterminado por problema de saúde, recebendo remuneração integral. “Que empresa é que hoje em dia faz isso?”. Ele se aposentou, mas continua no quadro da empresa como funcionário.
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