Desencaixes da modernidade

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    REVISTA USP, So Paulo, n.42, p. 20-33, junho/agosto 199920

    MU

    LTI

    JOS MAURCIO DOMINGUES

    JOS MAURCIODOMINGUESprofessor de Sociologia daUFRJ e autor de, entreoutros, Sociologia eModernidade(CivilizaoBrasileira).

    INTRODUOtema do multiculturalismo foi extre-

    mamente importante para o debate

    poltico norte-americano e canaden-

    se durante a dcada de 90. Na Europa

    povoada de imigrantes de suas antigas

    colnias ele pode vir a desempenhar um papel relevante, oque de fato acontece, em formas perversas em sua regio

    oriental, com o ressurgimento de vrios conflitos tnicos.

    Alm disso, Estados tnicos ou multinacionais se acham por

    todos os quadrantes do mundo. Entre ns, embora se in-

    sinue aqui e ali, de modo algum tem sido sua importncia

    comparvel. Sem dvida, o tema do multiculturalismo pode

    ter e tem tido impacto sobretudo sobre a questo do negro

    e do racismo. Creio, todavia, que por razes de constitui-

    o histrica, que discutirei nas consideraes finais deste

    1 Devo a articulao conceitualque realizo a seguir em parte ademandas de Srgio Costa eaos debates proporcionadospelo convite de Tamara Bena-kouche para expor algumas deminhas idias na ps-graduaode Sociologia da UniversidadeFederal de Santa Catarina, emdezembro de 1998.

    Desencaixes,abstraes

    e identidades

    OMO

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    TUR

    CUL

    artigo, tentar uma transladao direta da problemtica norte-

    americana e canadense para o Brasil resulta artificial.

    possvel entender a questo do multiculturalismo tambm

    de um outro ponto de vista, que remete a questes de

    estilo de vida, opes religiosas, sexuais, do comunitarismo,

    etc. e, nesse universo mais amplo, tnico-culturais, sem

    contudo a elas se restringir.

    Essa ser a embocadura deste artigo. No me fur-

    tarei a tocar em questes de ordem poltica e normativa, o

    que ser realizado em minhas consideraes finais, se bem

    que, em particular no que toca ao tema dos direitos coleti-

    vos, tenha de prometer para outra ocasio uma abordagem

    efetiva, que evitarei aqui (ver, contudo, Domingues, 1999c);

    viso no que se segue sobretudo sugerir alguns elementos

    explicativos para essa valorizao do pluralismo das identi-

    dades, naquelas mltiplas e variadas dimenses a que me

    referi. Retomo aqui reflexes que avancei em outros con-

    textos (Domingues, 1999a, sobretudo cap. 5, e 1999b), bus-cando articular o tema de um ponto de vista estritamente

    terico, o que aponta para desenvolvimentos que pretendo

    aprofundar em estudos posteriores. Minha argumentao

    girar em torno dos trs conceitos que servem de ttulo a

    este artigo: desencaixes, abstraes e identidades (1).

    MODERNIDADEEDESENCAIXE

    Recuperando implicitamente sugestes que pin-

    ou em diversos autores clssicos da sociologia, Giddens

    props como um dos temas fundamentais de sua inter-

    pretao da modernidade o conceito de desencaixe

    (disembedding) dos sujeitos de seus contextos especficos

    de existncia, mais localizados em termos espaciais e tem-

    porais. Reformulando o problema da ordem hobbesiano-

    AL

    IS

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    parsoniano em termo do que nomeia de

    nveis de distanciao do tempo-espao,

    Giddens observa que a produo de um tipo

    de tempo abstrato articulado ao relgio e

    ao calendrio e sua desconexo do espa-

    o proporcionaram novas formas de rela-

    cionamento social. O controle do espao

    crucial para as grandes organizaes que

    caracterizam a modernidade, mas ele foi

    separado do lugar, aqueles pontos fsi-

    cos onde a atividade social coordenada

    geograficamente. Em sociedades pr-mo-

    dernas, espao e lugar coincidiam em geral

    e a vida social era dominada por relaes

    de co-presena, por interaes face-a-face.

    A modernidade alterou profundamente esse

    panorama: com ela o lugar torna-secrescentemente fantasmagrico e pe-

    netrado por influncias muito distantes, que

    contribuem decisivamente para mold-lo

    (Giddens, 1990, pp. 18-9). Os processos de

    desencaixe derivam em grande medida

    dessas transformaes, uma vez que elas

    permitem que os sujeitos lidem de forma

    muito distinta com suas identidades.

    Para Giddens, so dois os mecanismos

    principais envolvidos com os desencaixesda modernidade (termo que ope, obscura-

    mente, idia de diferenciao funcional):

    fichas simblicas e sistemas de peritos.

    Ambos levam a uma rearticulao das pr-

    ticas sociais no tempo e espao. O repre-

    sentante do primeiro , por antonomsia, o

    dinheiro, e Giddens aqui clara e explicita-

    mente faz recurso aos textos de Marx e,

    sobretudo, Simmel (1900), para dar conta

    de sua conceituao. Do primeiro toma a

    idia do dinheiro servindo como standard

    impessoal (prostituta universal), e do se-

    gundo a tese de sua instrumentalidade para

    a distanciao tempo-espacial. Sua tese reza,

    enfim, que o dinheiro no funciona como

    um meio de circulao, ao contrrio do que

    supunha Parsons, mas sim como [] um

    meio para pr o tempo-espao entre parn-

    teses ao juntar instantaneidade e adiamento,

    presena e ausncia (Giddens, 1990, pp.

    22-5). No caso dos sistemas de peritos, tra-ta-se de investigar as particularidades dos

    sistemas tcnicos ou profissionais que orga-

    nizam largas reas dos meios material e social

    do mundo contemporneo. Todas as nossas

    atividades so organizadas por processos dos

    quais temos pouco conhecimento (como, de

    resto, Weber (1919) notara com sua tese

    sobre a racionalizao como, em parte, um

    acmulo de conhecimento disponvel para

    qualquer um, mas no possudo inteiramen-

    te por ningum individualmente), sejam elas

    aquelas relacionadas construo de auto-

    mveis ou estradas, como sinais de trnsito,

    sejam as atinentes a profisses como a psi-

    cologia, a medicina ou a sociologia. Esses

    sistemas de peritos constituem mecanismos

    de desencaixe, segundo ele, porque as fi-

    chas simblicas [] removem as relaes

    sociais das imediaticidades de seus contex-

    tos (Giddens, 1990, pp. 27-8) (2).Mais uma vez referindo-se a Simmel,

    Giddens introduz a questo da confiana

    como central para o funcionamento dos sis-

    temas abstratos, pois a crena em desdo-

    bramentos tranqilos e previsveis em nos-

    sas relaes com eles fundamental para

    sua vigncia social. Aquela crena se ba-

    seia, por outro lado, em um fraco conhe-

    cimento indutivo, no terico, que basta,

    todavia, para nossa vida cotidiana (Giddens,1990, pp. 26-34, 83 e segs.). Ele argumen-

    ta, criticando subseqentemente Habermas

    de forma direta, que se trata de um equvo-

    co opor a impessoalidade dos sistemas

    abstratos s intimidades da vida pessoal,

    porquanto se acham esses dois universos

    enlaados de variadas maneiras. Conheci-

    mentos profissional e leigo se influenciam

    mutuamente atravs do que anteriormente

    denominara de processos de dupla

    hermenutica, isto , a reapropriao con-

    tnua dos conceitos produzidos por esses

    dois grupos de agentes, um pelo outro

    (Giddens, 1990, pp. 120 e 144).

    Giddens vai adiante e introduz um con-

    ceito complementar em seu raciocnio:

    reencaixe. Com ele quer se referir []

    reapropriao ou relanamento de rela-

    es sociais desencaixadas de modo a

    amarr-las (conquanto parcial e transitoria-

    mente) a condies locais de tempo e lu-gar, o que implica compromissos com

    um trabalho com face que conjura con-

    fiana em relaes de co-presena , junta-

    2 Ele refere-se adiante ao traba-lho abstrato teorizado porMarx (ao qual voltarei em bre-ve), mas no o articula aos te-mas do desencaixe e sim sinstituies capitalistas da mo-dernidade (Giddens, 1990,pp. 61-2), cujas relaes comaquele conceito no sotampouco exploradas.

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    mente com compromissos sem face, es-

    tes sendo de cunho altamente abstrato

    (Giddens, 1990, pp. 79-80). Giddens de-

    senvolve sua interessante discusso medi-

    ante uma anlise fina de noes como risco

    e perigo, as quais no caberia aprofundar

    neste contexto, bem como de indicaes

    que retomam discusses anteriores sobre o

    conceito de reflexividade, ao qual volta-

    rei mais adiante.

    Cumpre agora observar uma certa in-

    consistncia na discusso de Giddens. Qual

    a relao de fato entre fichas simblicas

    e sistemas de peritos? Por que possuem

    ambos carter abstrato? Ser isso uma co-

    incidncia ou derivar esse trao comum

    de processos subjacentes os quais, estes sim,deveriam ser melhor teorizados, no

    obstante pistas interessantes serem

    fornecidas pela idia de distanciao espa-

    o-temporal? Creio que, de fato, embora

    sejam muitas as idias que se podem extra-

    ir do texto, breve e ensastico, de Giddens,

    falta articulao maior a suas teses. Em

    particular, preciso perguntar sobre o que

    exatamente caracteriza os processos de

    desencaixe da sociedade moderna. Odesenraizamento dos agentes de condies

    especficas de existncia fenmeno re-

    corrente em todas as sociedades. O que

    justificaria falar-se de desencaixe como

    fenmeno especfico? No me parece que

    a tese do tempo-espao ampliado seja sufi-

    ciente para dar conta desse fenmeno, que

    sequer, ademais, suficientemente estabe-

    lecido por Giddens do ponto de vista

    emprico, como se evidenciar posterior-

    mente. Outros autores buscaram exatamen-

    te realizar essa operao de teorizao mais

    profunda, inclusive no que tange a relaes

    causais, incorrendo, em contrapartida, em

    teses mais redutivas.

    ABSTRAES REAIS E DESENCAIXES

    Marx , obviamente, o primeiro cien-

    tista social a colocar a questo dos meca-nismos de desencaixe de forma altamente

    articulada e crtica. Ressalta em sua obra o

    tema da abstratividade gerada pelo desen-

    volvimento da sociedade humana que cul-

    mina no capitalismo, com suas noes de

    trabalho em geral, de valor de troca, de di-

    nheiro, organizados em um espao nacio-

    nal inicialmente mas, ao fim e ao cabo, pelo

    mercado mundial (Marx, 1859 e 1867, Li-

    vro 1, passim). Claramente a, como nas

    teses marxianas e marxistas em geral, o

    desenvolvimento das foras produtivas,

    engendrando determinados arranjos

    institucionais, que responderia causalmente

    pelo surgimento daquelas abstraes que,

    apostava, desapareceriam com o comunis-

    mo, uma vez que ao fetichismo da merca-

    doria e substituio fantasmagrica das

    relaes entre as pessoas pelas relaes

    entre as coisas sucederia uma sociedadeformada pela associao dos produtores que

    se reconheciam como tais. O mercado seria

    assim sepultado historicamente, deixando

    de mascarar as relaes de explorao e as

    lutas entre as classes que se escondiam sob

    o vu do individualismo ideologicamente

    determinado que regeria a conscincia dos

    agentes nas sociedades burguesas. Anteri-

    ormente, contudo, ele j notara como o

    cidado, enquanto forma de representa-o ideolgica, de fato escondia os apetites

    individualistas do burgus que se camufla-

    va sob sua pele (Marx, 1844). Seria Lukcs,

    contudo, que emprestaria preeminncia

    tese sobre as abstraes reais, que adqui-

    re com Habermas simultaneamente maior

    amplitude e escopo definido.

    Em um dos livros de maior impacto na

    filosofia do sculo XX,Histria e Consci-

    ncia de Classe, Lukcs retomou as ques-

    tes de Marx, com forte influncia de Weber

    e conhecimento detalhado dos trabalhos de

    Simmel, filtrando tudo isso atravs de len-

    tes hegelianas. No que nos interessa de

    perto, ele observa, ao incio de sua discus-

    so, que se podia achar na estrutura do

    comportamento das mercadorias o quadro

    original de todas as formas de objetivida-

    de e todas as correspondentes formas da

    subjetividade na sociedade burguesa

    (Lukcs, 1923, p. 257). Em sua indepen-dncia e universalidade, bem como em sua

    igualdade formal, a mercadoria condicio-

    nava o trabalho abstrato, sendo condicio-

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    nada, outrossim, pelos avanos histricos

    efetivos desse processo de abstrao.

    Racionalizao crescente queria dizer, nes-

    se caso, atravs da histria (do trabalho ma-

    nual, cooperao, manufatura e ma-

    quinaria), uma perda do carter qualitativo

    do trabalho. A calculabilidade dos proces-

    sos sociais, dependente de sua

    quantificao, era outro aspecto crucial

    dessa racionalizao, impossvel sem es-

    pecializao. No por acaso a matemtica

    a rainha das cincias na modernidade. O

    prprio tempo perderia seu carter qualita-

    tivo, mutvel, fluido para se transformar

    em umcontinuum preenchvel por coisas

    quantitativamente mensurveis (Lukcs,

    1923, pp. 263 e segs.). No obstante con-sistir em uma fantasmagoria necessria e

    decisiva para o funcionamento desse tipo

    de sociedade, baseada na troca de merca-

    dorias, a atomizao e o isolamento das

    mercadorias e dos indivduos so apenas

    ilusrios. A essa aparncia subjaz uma r-

    gida legalidade do processo econmico que

    domina, pela primeira vez na histria, toda

    a sociedade e consagra a seus membros um

    destino comum (Lukcs, 1923, p. 266).Assumindo obviamente a idia do pa-

    pel fundamental da infra-estrutura, Lukcs

    observa que a esse desenvolvimento capi-

    talista um direito, um Estado, etc., simila-

    res correspondem. Isso se d mediante uma

    sistematizao racional de toda a regulao

    legal da vida, que avana portanto buscan-

    do tudo englobar, pouco importando se um

    fechamento lgico do sistema acontece ou

    se lacunas especficas devem ser preen-

    chidas na prxis dos juzes. Cabe destacar

    sobretudo que a generalidade formal

    (formaler Allgemeinheit) do direito liga-se

    sua calculabilidade. Ele se apia em

    Weber (1921-22, p. 491) para asseverar que

    apenas a modernidade conheceu tal

    formalismo e sistematizao. Esse sistema

    de direito acha-se aposto como pronto,

    fixado, em face dos acontecimentos

    individuais da vida social, o que ocasiona

    conflitos entre a lei e o desenvolvimentocapitalista. Isso gera o paradoxo de um sis-

    tema fixo que, todavia, v-se obrigado a

    mudar constantemente. Sua independncia

    e reificao assim tambm se produzem,

    bem como sua desateno para com o

    concreto. Para ele isso implicava, de modo

    parelho ao que se v na economia e na ad-

    ministrao moderna, a passividade o

    carter contemplativo do sujeito na soci-

    edade burguesa: ele radicaliza ento a tese

    de que no h criatividade possvel nessa

    sociedade (Lukcs, 1923, pp. 271-3 e 276).

    Pode-se dizer com isso que, buscando des-

    velar e criticar a reificao, Lukcs cai nela

    ele mesmo, pois no se mostra capaz de

    identificar possveis espaos de atividade

    do sujeito e criatividade da ao individual

    e do movimento coletivo.

    Uma de suas concluses principais de

    grande relevncia para este estudo: segundoele, a indiferena (Gleichgltigkeit) da for-

    ma em face do contedo caracteriza a ra-

    cionalizao que se mostra tpica da moder-

    nidade capitalista (Lukcs, 1923, p. 304).

    O texto de Lukcs flagrantemente

    datado, no s em funo de seu carter

    marxista e redutivo, porm por abraar tam-

    bm uma perspectiva da racionalizao que

    deve em demasia a Weber. Em particular,

    clara sua desqualificao da modernida-de, nesse sentido seguindo em grande me-

    dida a Marx e a Weber, que no viam com

    bons olhos aquelas abstrao e racionali-

    zao formal. Entretanto, a anlise de

    Lukcs extremamente feliz ao apontar

    para o cunho genrico das abstraes re-

    ais que so to tpicas da modernidade.

    Ele toma de Marx o tema da mercadoria,

    mas avana tambm de modo incisivo na

    direo do direito e do pensamento bur-

    gus como um todo, em seu aspecto for-

    mal, no obstante sua derivao da totali-

    dade social das determinaes econmicas.

    O tema do direito, inclusive, para alm de

    sua formalidade e sistematicidade, poderia

    ser desdobrado em outra direo, na pr-

    pria definio daquele em que todo o siste-

    ma se apia: o indivduo abstrato, isolado,

    que, alis, caracterizava a troca de merca-

    dorias por ele mesmo descrita e conceitua-

    da. Lukcs descura, assim, de entender oprprio indivduo moderno o cidado ,

    sujeito, em duplo sentido, da lei. Guarde-

    mos isto para mais adiante, no entanto, e

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    examinemos como Habermas retomaria,

    transformando-a significativamente, a pro-

    blemtica de Lukcs.

    Como se sabe, a teoria social de Ha-

    bermas articula-se estreitamente com a

    questo da evoluo social, uma vez que

    ele cr mudar o objeto da sociologia a

    sociedade ao longo da histria humana.

    Isso significa em particular que ocorre uma

    separao entre o mundo da vida espa-

    o da cultura, das instituies e da sociali-

    zao dos indivduos, o qual mediado

    sempre lingisticamente e os sistemas

    auto-regulados que se diferenciam da-

    quele e, ocupando as dimenses da econo-

    mia e da poltica, dispensam a ao lin-

    gisticamente mediada e so coordenadospelo dinheiro e pelo poder. O problema

    que, se isso consiste em um desenvolvi-

    mento evolutivo normal, ele ser distorcido

    e gerar patologias em funo de uma

    expanso exagerada dos sistemas auto-re-

    gulados, que avanam sobre o mundo da

    vida e o colonizam. No quero explorar

    aqui o conjunto complexo e problemtico

    de teses que Habermas tece em ligao com

    esses fundamentos conceituais (o que fiz jem outras ocasies cf. Domingues, 1995,

    cap. 3, e 1999a, caps. 4 e 7, sobretudo).

    Concentremo-nos aqui na questo da colo-

    nizao e nas abstraes reais.

    O alvo de Habermas em grande parte

    Marx, para quem, diz ele, o mercado apa-

    receria como mera forma de mascarar a do-

    minao de classe, devendo portanto desa-

    parecer sob o comunismo. Com isso, for-

    mas imediatas de relacionamento voltari-

    am a preponderar, dissolvendo a mercado-

    ria, seu carter fantasmagrico e as abs-

    traes reais a ela ligadas, como o caso do

    trabalho abstrato. Habermas recusa ter-

    minantemente essa tese, criticando ainda a

    teoria do valor de forma incisiva e afirman-

    do que a idia de transformao do trabalho

    concreto em abstrato implica a perda de pre-

    ciso (Bestimmtheit) do conceito de alie-

    nao (Entfremdung) (Habermas, 1981,

    vol. 2, pp. 489 e segs.). Sua interpretao deMarx extremamente problemtica, espe-

    cialmente por ser guiada por sua prpria, a

    meu ver insustentvel, diviso entre mundo

    da vida e sistema. Faltariam a Marx, estando

    ele privado daquela conceituao, critrios

    para distinguir entre a destruio de formas

    de vida tradicionais e a reificao

    (Verdinglichung) de mundos da vida ps-

    tradicionais, sem o que no haveria como

    dar conta de fato dos processos de diferen-

    ciao social. Marx sustentaria no fim das

    contas uma postura nostlgica. Alm dis-

    so, Marx no considera o sistema poltico-

    administrativo ao discutir o tema da

    reificao, restringindo-se economia.

    Embora ele reconhea que Marx de fato v

    a diferenciao do Estado e da economia

    tambm como um processo de diferenci-

    ao sistmica (Habermas, 1981, vol. 2, p.

    499), como Habermas quer enfatizar a per-manncia e irreversibilidade (pode-se di-

    zer sem rodeios a positividade) daquela

    diferenciao, ele atribui pouca importn-

    cia a esse reconhecimento.

    Em contraposio, a colonizao do

    mundo da vida, que se expressa imediata-

    mente na alienao que se produz na parti-

    cipao poltica e no trabalho, especialmen-

    te no capitalismo tardio, aps o estabele-

    cimento do Estado do Bem-Estar Social,na cristalizao de um papel de cliente

    pelo cidado e de consumidor pelo tra-

    balhador (Habermas, 1981, vol. 2, p. 515).

    A colonizao do mundo da vida, que pro-

    duz tambm a fragmentao da conscin-

    cia dos sujeitos substituindo a falsa

    conscincia de classe , eleita o princi-

    pal veculo da nova teoria da reificao.

    Mas a juridificao da vida social, que

    corresponde em parte ao deslocamento da

    integrao social caracterstica do mundo

    da vida para a integrao sistmica, desem-

    penha papel crucial na pintura de Habermas

    tambm: se bem que permanea ligado ao

    mundo da vida devido a imperativos de

    legitimao que dependem da cultura e das

    formas institucionais, o direito crescen-

    temente funciona como um meio de orga-

    nizao a servio dos sistemas auto-regu-

    lados, em conjuno com o dinheiro e o

    poder. Se a prpria institucionalizao dasociedade burguesa foi dependente dessa

    juridificao, o Estado do Bem-Estar a

    aprofunda ao introduzi-la no corao da

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    poltica social (Habermas, 1981, vol. 2, pp.

    522-31) (3). Isso leva a evidentes e profun-

    dos efeitos de reificao, ao ser o []

    direito social usado como meio

    (Habermas, 1981, vol. 2, p. 539).

    Tudo isso somado e assim posto, o con-

    ceito de abstrao real ganha status de

    questo emprica a ser analisada em pro-

    fundidade, mediante um programa de pes-

    quisa que prescinde inclusive da prpria

    teoria do valor (Habermas, 1981, vol. 2,

    pp. 548-9). Nas pginas conclusivas de seu

    livro, Habermas explora alguns temas que

    se colocariam nessa conexo. Vale obser-

    var, no entanto, que a cidadania enquanto

    tal no jamais posta em questo em rela-

    o s abstraes reais, sequer quando elediscute o tema do direito, o que se deve em

    grande parte a sua insero do direito em

    primeiro lugar no mundo da vida, sendo

    dependente da racionalizao comunicati-

    va (Habermas, 1981, vol. 1, pp. 346 e segs.).

    Sem dvida, uma ampliao do escopo do

    tema se produz com a contribuio de

    Habermas. Para isso no seria preciso, acre-

    dito, desvencilharmo-nos da teoria do va-

    lor, at porque no temos nada para pr emseu lugar. Mais interessante seria buscar

    um quadro explicativo mais genrico, o que

    Habermas de fato tenta, mas dificilmente

    alcana. Sem dvida, a racionalizao do

    mundo da vida e sua diferenciao, com o

    posterior predomnio dos sistemas auto-

    regulados (veja Habermas, 1981, vol. 2, cap.

    6), visa substanciar uma resposta a esse

    problema, porm no creio que ela seja ade-

    quada. Isso ocorre no apenas por Habermas

    separar aquelas duas dimenses societais,

    mas igualmente porque no claro como

    racionalizao, universalizao e abstrao

    se relacionam. Alm disso, obscuro como

    processos internos ao sistema podem ser

    expressos por categorias do mundo da vida

    e tomar a forma de abstraes reais, in-

    clusive anteriormente ao processo de colo-

    nizao e, presumvel e esperanosamen-

    te, aps ver-se este bloqueado.

    Isso no obstante, claro que Habermasapresenta uma contribuio decisiva para

    uma mais adequada equao do problema

    das abstraes reais. No seria, contudo,

    possvel aprofundar esse conceito neste

    contexto; basta para meus fins o que foi at

    agora delineado. Buscarei evidenciar na

    seo seguinte em que medida e por que

    essa conceituao nos ajuda a entender

    melhor o tema do multiculturalismo.

    REENCAIXES, IDENTIDADES

    CONCRETAS E MULTICULTURALISMO

    As sociedades humanas conheceram ao

    longo da histria processos de desenrai-

    zamento que tiveram lugar aqui e ali em

    muitas ocasies, pelos mais variados moti-vos migraes, guerras, escravido, a

    emergncia de novos princpios de organi-

    zao social. Todos eles demandaram a

    reelaborao das identidades individuais e

    coletivas dos agentes. O que haveria de

    peculiar nesse sentido na civilizao mo-

    derna? O que poderia distinguir o que a se

    passa de especfico em relao aos desen-

    raizamentos, e justificar inclusive a utili-

    zao de uma expresso particular desen-caixe, sem que isso se restrinja to-so-

    mente a um rtulo suprfluo? A resposta

    acha-se presente exatamente, em parte, no

    conceito de abstrao real que examina-

    mos em Marx, Lukcs e Habermas, tema

    que o prprio Giddens intui tambm, em-

    bora no primeiro caso ele no tenha articu-

    lado de forma abrangente o suficiente (cau-

    salmente ou em termos de escopo) a gnese

    e relaes mais profundas das instituies

    modernas, e no segundo misture sistemas

    de peritos e fichas simblicas de modo

    pouco claro.

    As sociedades modernas, delimitadas

    pelos Estados-nao que apareceram na

    Europa e se espalharam pelo mundo, so

    formaes sociais que recobrem um terri-

    trio relativamente unificado bastante am-

    plo e o fazem por meio de mecanismos de

    vigilncia at ento no disponveis, impli-

    cando um nvel de intensividade do poderbastante elevado. Uma nova configurao

    espao-temporal ento se estabelece. Ela

    se recobre imediatamente, contudo, medi-

    3 curioso que Habermas pare-a desconhecer, ou ao menosno explor-la suficientemente,a distino entre ordem jurdi-ca e direito administrativo, daqual se utiliza continuamente aburocracia do Estado do Bem-Estar. Veja uma anlise dessasduas formas legais em: Unger,1977, caps. 2-3, passim.

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    ante duas categorias fundamentais: o tra-

    balho livre e a cidadania, ambas codifica-

    das juridicamente, por meio das constitui-

    es modernas e da ordem jurdica. Com

    aquela rearticulao do espao-tempo na

    modernidade, cujos ritmos ademais se ace-

    leram brutalmente, o desenraizamento de

    amplas camadas da populao tem lugar. O

    cercamento dos campos na Inglaterra,

    emoldurando a dissoluo total dos laos

    feudais na Europa, evidencia essa grande

    transformao. Obviamente, tem lugar aos

    poucos um reenraizamento dessas popula-

    es. Ele se realiza em princpio num plano

    muito mais abstrato do que fora o caso

    anteriormente. Previamente era moder-

    na, as populaes viviam em sua esmaga-dora maioria uma vida ligada a contextos

    especficos, como era o caso dos servos me-

    dievais e dos artesos, mas igualmente da

    nobreza e mesmo em grande medida da

    burguesia citadina; a exceo a isso eram

    andarilhos e vagabundos, aventureiros,

    bandoleiros e outras figuras semelhantes,

    minoritrias nessas sociedades e com fre-

    qncia em contradio com seus princ-

    pios fundamentais. Nascia-se e vivia-se emcontextos concretos, com funes sociais

    especficas, em geral conectadas a locais

    tambm particulares. Com certeza havia

    disrupes desse cenrio em princpio es-

    tvel e mutvel apenas no desenrolar de

    processos sociais de ritmo relativamente

    lento. Aqueles que eram desenraizados por

    qualquer motivo, conjuntural (como uma

    guerra) ou dependente de modificaes de

    fundo que se abatiam afinal sobre eles,

    encontravam reencaixe mais uma vez em

    condies semelhantes a que precedente-

    mente eram as suas. Um reenraizamento

    em relaes sociais concretas se seguia

    quele desenraizamento.

    A modernidade alterou isso fundamen-

    talmente. Aqueles primeiros desencaixes

    lanaram as pessoas em uma situao cujas

    amarras concretas se enfraqueceram enor-

    memente. O reencaixe imediato que as

    aguardava possua caractersticas muitodistintas daquelas que desfrutavam antes:

    eles agora so meramente trabalhadores li-

    vres e cidados, seres abstratos, livres e

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    autnomos para circular pelo espao naci-

    onal a seu bel-prazer e vender sua fora de

    trabalho a quem desejar; no mais sditos,

    sua relao com o Estado muda tambm e

    agora faz-se sem a mediao da nobreza,

    direta e abstratamente concebidos seus di-

    reitos e deveres. Em outras palavras, esses

    novos sujeitos so detentores de direitos

    civis e polticos, estes ltimos todavia

    universalizados somente ao longo do tem-

    po. Embora o Estado nacional servisse de

    fronteira para essa abstratividade, o merca-

    do mundial desde o incio, entretanto, se

    colocava como horizonte do trabalho livre.

    De fato, a cidadania e o direito ao trabalho

    no se estabeleceram de modo algum mes-

    mo a esta altura do fim do sculo XX. Masa mobilidade internacional crescente do

    capital, tornando a fora de trabalho, se no

    livre para si, ao menos livre para outrem,

    at certo ponto aguou esse carter abstra-

    to do indivduo na era moderna. Carter

    que poderia ser descoberto nas mltiplas

    faces de sua vida e sociabilidade, a come-

    ar pela concepo de homem abstrato e

    em relao direta com Deus, que o protes-

    tantismo introduziu no Ocidente. Deve-seobservar que, embora se trate de abstra-

    es, no deixam de ser reais, posto que

    presidem a tecitura da conscincia dos su-

    jeitos e organizam as instituies sociais.

    Esse movimento bsico de reencaixe

    moderno, que sustentamos outrossim dia-

    riamente e sobretudo atravs da sucesso

    de geraes que assim recebem sua identi-

    dade das memrias das geraes anteriores

    e da tradio da modernidade, realiza-se de

    forma em princpio altamente dispersa.

    claro, movimentos polticos coletivos fo-

    ram necessrios para institucionalizar essa

    concepo. Mas na vida cotidiana como

    seres abstratos isolados que, por exemplo,

    buscamos o po de cada dia e votamos em

    eleies. Isso se faz por intermdio do

    movimento de uma subjetividade coletiva

    altamente descentrada (cf. Domingues,

    1995), uma vez que em particular essa ideo-

    logia burguesa moderna leva as pessoas aassim se conceberem e imaginarem como

    indivduos abstratos, atomizados, cuja ao

    deve prescindir ao mximo dos outros, que

    nos servem no mximo de instrumento.

    Reencaixamo-nos sobretudo como mem-

    bros de famlias nucleares (conquanto esta

    esteja ela mesma, a esta altura, absoluta-

    mente fragmentada e descentrada), onde

    investimos nossas identidades e afetos, ou

    como indivduos ainda mais isolados, que

    buscam apenas seu prprio prazer. Obvia-

    mente, chegamos a uma identidade social

    bastante uniforme, sem que esse fosse con-

    tudo um desgnio premeditado por algum.

    Mas isso no se passou sem que um

    movimento paralelo tivesse lugar. Na ver-

    dade, esse carter abstrato dos novos

    reencaixes, em outras palavras, dessas no-

    vas identidades individuais e coletivas, era

    insuficiente para dar sentido vida diria eao movimento da histria em que elas se

    viam inseridas. Isso teve como conseqn-

    cia novos reencaixes de carter mais parti-

    cularizado, mais concreto, que, contudo,

    se viram permanentemente em destroos,

    uma vez que o ritmo vertiginoso da moder-

    nidade que tudo dissolve no ar conju-

    ra modificaes constantes nas relaes

    sociais e nas instituies, obrigando-nos a

    recomear sempre mais uma vez e a tentarnovos reencaixes que recuperem um mni-

    mo de segurana existencial, ontolgica. A

    modernidade pe assim a reflexividade in-

    dividual e coletiva a trabalhar de forma

    muito mais acentuada (ver Wagner, 1994)

    (4). Duas formas principais, bastante am-

    plas, mas mais concretas de reencaixe tive-

    ram lugar (ver Calhoun, 1995, caps. 7-8).

    A nao foi o primeiro foco de nossas preo-

    cupaes particularistas para comear os

    direitos humanos foram logo transforma-

    dos nos direitos dos cidados de estados

    nacionais particulares. A classe social, so-

    bretudo a pertena classe operria, se co-

    locou tambm como foco da identidade.

    Mais ainda, laos de solidariedade mais

    local se estabeleceram, em diversas comu-

    nidades de trabalhadores, cuja identidade

    se teceu em lutas contra o capital. As clas-

    ses dominantes, por outro lado, sempre

    cultivaram laos sociais fortes atravs dosquais consolidam sua identidade e dom-

    nio. A religio, as diversas seitas e denomi-

    naes tm servido de veculo tambm para

    4 Declino de discutir aqui o temada reflexividade, o que realizeiextensamente em Domingues,1999a, caps. 1-2.

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    a reconstruo mais concretamente orien-

    tada de identidades sociais, para alm das

    abstraes reais da modernidade.

    A burocracia do Estado do Bem-Estar

    introduziu novas formas de abstrao real.

    Estas diferem das anteriores em dois as-

    pectos principais o que, como vimos, no

    creio ser bem resolvido pela discusso en-

    cetada por Habermas. Primeiramente, por-

    que no so em geral urdidas por interm-

    dio da ordem legal, constitucional. Elas so

    estabelecidas com freqncia por meio do

    direito administrativo e pela discrio dos

    membros da burocracia estatal, que assim

    definem seus pblicos-alvo. Isso, alis, vem

    de longe, por exemplo no funcionamento

    do sistema de vigilncia e disciplina que seconstituiu na era moderna. Frente ao siste-

    ma judicirio o sujeito se apresenta como

    cidado portador de direitos, que ento

    castigado de acordo com critrios univer-

    salistas, para ser em seguida individualiza-

    do no de forma abstrata em funo de

    suas particularidades ao ver-se sob o jugo

    do sistema penal e sua corte de especialis-

    tas em punio e regenerao. Ao mesmo

    tempo, ele passa a integrar uma categoriacoletiva de delinqentes, ela tambm

    subdivisvel (ver por exemplo Foucault,

    1975, pp. 259 e 292-8). Magnifica-se em

    muitas outras formas, mais coletivizadas,

    porm que permitem simultaneamente uma

    vigilncia personalizada sobre os

    beneficirios do sistema de bem-estar esta-

    tal, que implica igualmente, em certa me-

    dida, um reencaixe identitrio. Esse car-

    ter coletivo e mais personalizado compe,

    portanto, a segunda diferena das novas

    abstraes reais do Estado do Bem-Estar

    vis--visa cidadania civil e poltica tout

    court. Assim tem sido construda a cidada-

    nia social. No obstante todos esses direi-

    tos terem sido conquistados ao longo de

    lutas por vezes ferozes, ao fim e ao cabo

    uma caraterstica compartilhada por to-

    das essas abstraes reais: elas implicam a

    passividade do sujeito moderno constitu-

    do, que no participa de sua definio co-tidiana e no capaz de emprestar a essas

    figuras perfil que responda a suas qualida-

    des mais concretas. Aqui deparamo-nos

    com dois elementos da discusso de Lukcs

    que so cruciais, creio, para uma correta

    compreenso dessa questo. Trata-se da

    indiferena da forma face ao contedo

    patente no caso desses reencaixes abstra-

    tos e da passividade do sujeito frente a

    eles, conquanto o registro em que coloco

    esta ltima questo seja distinto do de

    Lukcs e da prxis revolucionria que ele

    reivindica como essencial para o conheci-

    mento da realidade social, se bem que a

    criao dessa mesma realidade, no caso em

    foco, tenha bvia relao com quem e como

    se determinam as caractersticas dos direi-

    tos sociais e como devem ser dispensados.

    Antes de voltar mais diretamente ques-

    to do multiculturalismo, gostaria de fazeruma ltima observao. Ela diz respeito

    articulao entre esses dois pares de elemen-

    tos: universalidade e abstrao, concretude

    e particularidade, tanto no plano histrico

    (ou seja, no que tange gnese dessas cate-

    gorias em termos sociais), quanto em ter-

    mos lgico-categoriais (no que se refere a

    formas de conscincias ou no tocante a ar-

    ranjos institucionais). A despeito de discus-

    ses recorrentes sobre o tema, pode-se dizerque no claro na verdade como se articu-

    lam, em particular no caso dos dois primei-

    ros. Ser necessrio que universalidade

    corresponda sempre a abstratividade em

    outras palavras, abstraes reais , ou seria

    possvel pensar que aquela s se faz com-

    pleta na medida em que incorpora a si a

    particularidade dos sujeitos sociais? Esse

    obviamente um tema hegeliano, que passa,

    portanto, ao largo das preocupaes neo-

    kantianas de Habermas (1981, passim, por

    exemplo), cuja obra me parece nesse senti-

    do insuficiente, demandando a questo de-

    senvolvimentos posteriores.

    MULTICULTURALISMO, TRADIES

    E ESTILOS DE VIDA

    Em um livro bastante comentado,Kymlicka (1995, principalmente pp. 10 e

    segs.) focalizou a questo do multicul-

    turalismo sob dois ngulos o nacional e o

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    tnico. No primeiro caso tem-se estados

    multinacionais, uma vez que se trata de

    sociedades formadas a partir da incorpora-

    o, forada ou voluntria, de minorias na-

    cionais que anteriormente possuam cultu-

    ras territorialmente concentradas e desfru-

    tavam de autonomia. No segundo, a diver-

    sidade cultural fruto da imigrao indivi-

    dual ou familiar e, conquanto esses indiv-

    duos possam em maior ou menor grau bus-

    car o reconhecimento de sua identidade

    tnica, tipicamente eles desejam integrar-

    se sociedade mais ampla. Como j obser-

    vei, esse um tema crucial, que entretanto

    no pode ser tratado de forma uniforme,

    como se se colocasse com a mesma inten-

    sidade em todos os pases e regies domundo. A nao brasileira, forjada por uma

    assimilao bastante ampla de indivduos

    e povos de origens dspares, escapa dos dois

    tipos assinalados por Kymlicka, no

    obstante a permanncia de diferenas e uma

    certa heterogeneidade, assim como da rei-

    terao das comunidades tnicas indgenas

    que hoje inclusive por vezes comeam a

    multiplicar o nmero de seus integrantes.

    No somos um estado multinacional, nemtampouco uma sociedade multitnica. Sem

    dvida, essa uma afirmao controversa,

    principalmente se tivermos como interlo-

    cutores membros do movimento negro bra-

    sileiro, que por vezes demanda um reco-

    nhecimento tnico distinto para as popula-

    es que de alguma forma tm sua origem

    ligada ao continente africano. Contudo, sua

    assimilao nao brasileira, sem em-

    bargo do carter violento e forado de que

    se revestiu, dissolveu em grande medida

    esse carter tnico que, alis, no era de

    modo algum homogneo (ver Domingues,

    1993 e Souza, 1997). No conjunto da po-

    pulao, creio, no se acharia identidade

    tnica separada.

    certo que as identidades modernas se

    mostram cada vez mais abertas a um traba-

    lho reflexivo que lhes permite servir a for-

    mas mltiplas de reencaixe social e

    contextual. Elas no possuem carteressencialista e se apresentam com feio

    bastante plstica (ver Costa e Werle, 1998).

    Entretanto, no creio que seja plausvel pen-

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    sar uma identidade tnica separada para

    nenhum segmento da populao brasileira

    (exceo feita aos membros das j mencio-

    nadas comunidades indgenas). E, por mais

    que as identidades sociais, individuais e

    coletivas sejam abertas ao trabalho da

    reflexividade, esta opera sob condies de

    plausibilidadeque estabelecem limites para

    aspossibilidadesde reconstruo da iden-

    tidade (cf. Domingues, 1999a, cap. 2).

    Assim, se a valorizao das identidades

    tnicas tem se feito de forma pervasiva e

    muitas vezes radical pelo mundo, freqen-

    temente em conjuno com a acentuao

    de aspectos religiosos, isso tem tido lugar

    quando historicamente se mostra plausvel

    o que , infelizmente, o caso em muitassociedades em que isso se desdobra no em

    formas benignas, ainda que conflituosas,

    de afirmao tnica e/ou nacional, mas sim

    em desenlaces violentos e mesmo carrega-

    dos de tragicidade. No me parece ser esse

    o caso do Brasil, em funo das condies

    de formao histrica da nao, em que pese

    a bvia subordinao dos elementos e tra-

    dies de origem africana na cultura e na

    vida social do pas, j para no falar dascondies de pobreza em que essas popu-

    laes se mostram como maioria. Alm

    disso, no se deve esquecer que dificilmente

    se as encontra em estado puro, com fre-

    qncia a miscigenao dos setores sobre-

    tudo de baixa renda da populao demons-

    trando que a noo de democracia racial

    com certeza mais que um mito no Brasil.

    Se, contudo, o tema do multicultura-

    lismo tomado em um sentido mais amplo,

    englobando crenas e prticas religiosas

    distintas, aquilo que alguns autores carac-

    terizariam como a tribalizao da socieda-

    de contempornea, a multiplicao de es-

    tilos de vida distintos, formas variadas de

    expresso cultural inclusive de fundo

    tnico , o termo se patenteia adequado ao

    Brasil, no s descritiva como tambm

    normativamente. Conquanto a modernida-

    de brasileira se mostre bastante tradicio-

    nalmente moderna tanto institucional-mente quanto no que tange s formas de

    conscincia que predominam no pas (cf.

    Domingues, 1999a, cap. 5) os reencaixes

    concretos e potencialmente multiculturais

    que parecem marcar outros quadrantes da

    modernidade global contempornea aqui

    se mostram tambm como soluo em face

    dos problemas ocasionados pela abstra-

    tividade que impregna as instituies mo-

    dernas e do declnio ao menos relativo de

    outros tipos de identidade coletiva (de classe

    e nacional). A identificao de grande par-

    te da juventude morena de Salvador com

    a cultura caribenha, principalmente

    jamaicana, apenas um exemplo expressi-

    vo, entre outros, dessas identificaes

    identitrias por sobre as fronteiras nacio-

    nais (se bem que no necessariamente as

    contradigam inteiramente e com certeza

    bebam nas modernas tradies brasileiras).O prprio tema do comunitarismo deveria

    ser colocado nas mesmas coordenadas, uma

    vez que ele crescentemente se apresenta

    como soluo para os dilemas identitrios

    da modernidade avanada, ao colocar de-

    mandas de reconhecimento para culturas

    particulares, sejam elas claramente delimi-

    tadas ou seja sua definio mais imprecisa

    e difusa (cf. Taylor, 1992). Se isso se apre-

    senta como uma problemtica que, em suarelao com as limitaes do liberalismo

    individualista, pode assumir um cunho

    universalizante, o caso brasileiro pode por-

    tanto se beneficiar do debate em curso em

    seus aspectos gerais; mas no seria correto,

    ao que me parece, tomar o debate exata-

    mente como ele se apresenta em pases

    efetivamente multiculturais no sentido na-

    cional ou tnico (como o Canad, os Esta-

    dos Unidos, ou a Alemanha contempor-

    nea). Seja como for, a questo dos desen-

    caixes, das abstraes reais e dos reencaixes

    reflexivos a mais uma vez comparece, e

    esses elementos conceituais, os quais ex-

    plorei acima em maiores detalhes para dis-

    cutir a modernidade, podem ser extrema-

    mente teis para tematizar a florescncia

    recente do comunitarismo.

    Uma nota normativa final. O multi-

    culturalismo pode assumir um aspecto de-

    mocrtico e democratizante, no sentido depermitir que demandas por reconhecimen-

    to legtimas se apresentem na esfera pbli-

    ca e passem a pautar o debate e a vida co-

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    REVISTA USP, So Paulo, n.42, p. 20-33, junho/agosto 199932

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    ______. Sociologia e Modernidade. Para Entender a Sociedade Contempornea. Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 1999b.

    tidiana das sociedades contemporneas. Os

    reencaixes que so por meio disso busca-

    dos podem levar, todavia, a cairmos nas

    conservadoras e excludentes ciladas da

    diferena (Pierruci, 1990) ou inclusive em

    resultados desastrosos se se ligam a formas

    exclusivamente particularistas e antagni-

    cas de reconstruo da identidade.

    A soluo de Joas em face disso vale a

    pena ser aqui brevemente ponderada, tanto

    no que diz respeito anlise quanto

    normativamente. Em que medida nossos

    reencaixes assumem valores particula-

    ristas ou normas universalistas, para fa-

    zer uso de sua terminologia, so questes e

    escolhas cuja resoluo no dadaa priori,

    e cujas conseqncias, porm, so emcontrapartida obviamente decisivas. A par-

    tir do pragmatismo de James, Dewey e

    Mead, e com forte influncia da tica

    discursiva de Habermas, Joas (1997, cap.

    10) avana uma soluo original para esses

    impasses. Segundo ele, os valores emer-

    gem sempre de forma contingente, a partir

    de situaes concretas e vivncias espec-

    ficas, possuindo, portanto, forte elemento

    particularista. Dentro deles, no entanto,sempre o reconhecimento de outros que

    compartilham a mesma forma de vida in-

    troduz desde sempre um elemento moral,

    se no universalista em princpio, ao me-

    nos potencialmente universalizante. Essa

    intuio pode ser ento estendida a outros

    que no se incluem nesse crculo menor

    de identificao e reconhecimento, em

    outras palavras, pode ser universalizado

    no sentido de chegar ao reconhecimento

    de nossa humanidade comum, a despeito

    e em parte mesmo em virtude do reconhe-

    cimento concomitante de nossas diferen-

    as. O discurso o meio atravs do qual

    isso pode se realizar, pois, proporcionan-

    do ocasio e forma para uma definio

    universalista da justia, pode levar inclu-

    sive prpria modificao dos bens

    (Guten) que aqueles valores originalmen-

    te haviam estabelecido, o que permite sua

    definio de forma compatvel com os

    bens de outras coletividades.A, creio, radica uma esperana no s

    de convivncia mais respeitosa e democr-

    tica das diferenas (multiculturais) nas so-

    ciedades contemporneas, mas tambm de

    mudana social no longo prazo, desde que

    sejam estabelecidas formas institucionais

    que permitam, e talvez mesmo estimulem,

    a proliferao de particularidades coleti-

    vas sem prejuzo de normas universais de-

    mocrticas, e, na verdade, delas dependen-tes e para elas contribuindo. Nesse sentido,

    o multiculturalismo um horizonte refle-

    xivo e prtico o qual todos, inclusive bra-

    sileiros, no deveramos recusar.

  • 7/24/2019 Desencaixes da modernidade

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