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7/24/2019 Desencaixes da modernidade
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REVISTA USP, So Paulo, n.42, p. 20-33, junho/agosto 199920
MU
LTI
JOS MAURCIO DOMINGUES
JOS MAURCIODOMINGUESprofessor de Sociologia daUFRJ e autor de, entreoutros, Sociologia eModernidade(CivilizaoBrasileira).
INTRODUOtema do multiculturalismo foi extre-
mamente importante para o debate
poltico norte-americano e canaden-
se durante a dcada de 90. Na Europa
povoada de imigrantes de suas antigas
colnias ele pode vir a desempenhar um papel relevante, oque de fato acontece, em formas perversas em sua regio
oriental, com o ressurgimento de vrios conflitos tnicos.
Alm disso, Estados tnicos ou multinacionais se acham por
todos os quadrantes do mundo. Entre ns, embora se in-
sinue aqui e ali, de modo algum tem sido sua importncia
comparvel. Sem dvida, o tema do multiculturalismo pode
ter e tem tido impacto sobretudo sobre a questo do negro
e do racismo. Creio, todavia, que por razes de constitui-
o histrica, que discutirei nas consideraes finais deste
1 Devo a articulao conceitualque realizo a seguir em parte ademandas de Srgio Costa eaos debates proporcionadospelo convite de Tamara Bena-kouche para expor algumas deminhas idias na ps-graduaode Sociologia da UniversidadeFederal de Santa Catarina, emdezembro de 1998.
Desencaixes,abstraes
e identidades
OMO
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TUR
CUL
artigo, tentar uma transladao direta da problemtica norte-
americana e canadense para o Brasil resulta artificial.
possvel entender a questo do multiculturalismo tambm
de um outro ponto de vista, que remete a questes de
estilo de vida, opes religiosas, sexuais, do comunitarismo,
etc. e, nesse universo mais amplo, tnico-culturais, sem
contudo a elas se restringir.
Essa ser a embocadura deste artigo. No me fur-
tarei a tocar em questes de ordem poltica e normativa, o
que ser realizado em minhas consideraes finais, se bem
que, em particular no que toca ao tema dos direitos coleti-
vos, tenha de prometer para outra ocasio uma abordagem
efetiva, que evitarei aqui (ver, contudo, Domingues, 1999c);
viso no que se segue sobretudo sugerir alguns elementos
explicativos para essa valorizao do pluralismo das identi-
dades, naquelas mltiplas e variadas dimenses a que me
referi. Retomo aqui reflexes que avancei em outros con-
textos (Domingues, 1999a, sobretudo cap. 5, e 1999b), bus-cando articular o tema de um ponto de vista estritamente
terico, o que aponta para desenvolvimentos que pretendo
aprofundar em estudos posteriores. Minha argumentao
girar em torno dos trs conceitos que servem de ttulo a
este artigo: desencaixes, abstraes e identidades (1).
MODERNIDADEEDESENCAIXE
Recuperando implicitamente sugestes que pin-
ou em diversos autores clssicos da sociologia, Giddens
props como um dos temas fundamentais de sua inter-
pretao da modernidade o conceito de desencaixe
(disembedding) dos sujeitos de seus contextos especficos
de existncia, mais localizados em termos espaciais e tem-
porais. Reformulando o problema da ordem hobbesiano-
AL
IS
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parsoniano em termo do que nomeia de
nveis de distanciao do tempo-espao,
Giddens observa que a produo de um tipo
de tempo abstrato articulado ao relgio e
ao calendrio e sua desconexo do espa-
o proporcionaram novas formas de rela-
cionamento social. O controle do espao
crucial para as grandes organizaes que
caracterizam a modernidade, mas ele foi
separado do lugar, aqueles pontos fsi-
cos onde a atividade social coordenada
geograficamente. Em sociedades pr-mo-
dernas, espao e lugar coincidiam em geral
e a vida social era dominada por relaes
de co-presena, por interaes face-a-face.
A modernidade alterou profundamente esse
panorama: com ela o lugar torna-secrescentemente fantasmagrico e pe-
netrado por influncias muito distantes, que
contribuem decisivamente para mold-lo
(Giddens, 1990, pp. 18-9). Os processos de
desencaixe derivam em grande medida
dessas transformaes, uma vez que elas
permitem que os sujeitos lidem de forma
muito distinta com suas identidades.
Para Giddens, so dois os mecanismos
principais envolvidos com os desencaixesda modernidade (termo que ope, obscura-
mente, idia de diferenciao funcional):
fichas simblicas e sistemas de peritos.
Ambos levam a uma rearticulao das pr-
ticas sociais no tempo e espao. O repre-
sentante do primeiro , por antonomsia, o
dinheiro, e Giddens aqui clara e explicita-
mente faz recurso aos textos de Marx e,
sobretudo, Simmel (1900), para dar conta
de sua conceituao. Do primeiro toma a
idia do dinheiro servindo como standard
impessoal (prostituta universal), e do se-
gundo a tese de sua instrumentalidade para
a distanciao tempo-espacial. Sua tese reza,
enfim, que o dinheiro no funciona como
um meio de circulao, ao contrrio do que
supunha Parsons, mas sim como [] um
meio para pr o tempo-espao entre parn-
teses ao juntar instantaneidade e adiamento,
presena e ausncia (Giddens, 1990, pp.
22-5). No caso dos sistemas de peritos, tra-ta-se de investigar as particularidades dos
sistemas tcnicos ou profissionais que orga-
nizam largas reas dos meios material e social
do mundo contemporneo. Todas as nossas
atividades so organizadas por processos dos
quais temos pouco conhecimento (como, de
resto, Weber (1919) notara com sua tese
sobre a racionalizao como, em parte, um
acmulo de conhecimento disponvel para
qualquer um, mas no possudo inteiramen-
te por ningum individualmente), sejam elas
aquelas relacionadas construo de auto-
mveis ou estradas, como sinais de trnsito,
sejam as atinentes a profisses como a psi-
cologia, a medicina ou a sociologia. Esses
sistemas de peritos constituem mecanismos
de desencaixe, segundo ele, porque as fi-
chas simblicas [] removem as relaes
sociais das imediaticidades de seus contex-
tos (Giddens, 1990, pp. 27-8) (2).Mais uma vez referindo-se a Simmel,
Giddens introduz a questo da confiana
como central para o funcionamento dos sis-
temas abstratos, pois a crena em desdo-
bramentos tranqilos e previsveis em nos-
sas relaes com eles fundamental para
sua vigncia social. Aquela crena se ba-
seia, por outro lado, em um fraco conhe-
cimento indutivo, no terico, que basta,
todavia, para nossa vida cotidiana (Giddens,1990, pp. 26-34, 83 e segs.). Ele argumen-
ta, criticando subseqentemente Habermas
de forma direta, que se trata de um equvo-
co opor a impessoalidade dos sistemas
abstratos s intimidades da vida pessoal,
porquanto se acham esses dois universos
enlaados de variadas maneiras. Conheci-
mentos profissional e leigo se influenciam
mutuamente atravs do que anteriormente
denominara de processos de dupla
hermenutica, isto , a reapropriao con-
tnua dos conceitos produzidos por esses
dois grupos de agentes, um pelo outro
(Giddens, 1990, pp. 120 e 144).
Giddens vai adiante e introduz um con-
ceito complementar em seu raciocnio:
reencaixe. Com ele quer se referir []
reapropriao ou relanamento de rela-
es sociais desencaixadas de modo a
amarr-las (conquanto parcial e transitoria-
mente) a condies locais de tempo e lu-gar, o que implica compromissos com
um trabalho com face que conjura con-
fiana em relaes de co-presena , junta-
2 Ele refere-se adiante ao traba-lho abstrato teorizado porMarx (ao qual voltarei em bre-ve), mas no o articula aos te-mas do desencaixe e sim sinstituies capitalistas da mo-dernidade (Giddens, 1990,pp. 61-2), cujas relaes comaquele conceito no sotampouco exploradas.
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mente com compromissos sem face, es-
tes sendo de cunho altamente abstrato
(Giddens, 1990, pp. 79-80). Giddens de-
senvolve sua interessante discusso medi-
ante uma anlise fina de noes como risco
e perigo, as quais no caberia aprofundar
neste contexto, bem como de indicaes
que retomam discusses anteriores sobre o
conceito de reflexividade, ao qual volta-
rei mais adiante.
Cumpre agora observar uma certa in-
consistncia na discusso de Giddens. Qual
a relao de fato entre fichas simblicas
e sistemas de peritos? Por que possuem
ambos carter abstrato? Ser isso uma co-
incidncia ou derivar esse trao comum
de processos subjacentes os quais, estes sim,deveriam ser melhor teorizados, no
obstante pistas interessantes serem
fornecidas pela idia de distanciao espa-
o-temporal? Creio que, de fato, embora
sejam muitas as idias que se podem extra-
ir do texto, breve e ensastico, de Giddens,
falta articulao maior a suas teses. Em
particular, preciso perguntar sobre o que
exatamente caracteriza os processos de
desencaixe da sociedade moderna. Odesenraizamento dos agentes de condies
especficas de existncia fenmeno re-
corrente em todas as sociedades. O que
justificaria falar-se de desencaixe como
fenmeno especfico? No me parece que
a tese do tempo-espao ampliado seja sufi-
ciente para dar conta desse fenmeno, que
sequer, ademais, suficientemente estabe-
lecido por Giddens do ponto de vista
emprico, como se evidenciar posterior-
mente. Outros autores buscaram exatamen-
te realizar essa operao de teorizao mais
profunda, inclusive no que tange a relaes
causais, incorrendo, em contrapartida, em
teses mais redutivas.
ABSTRAES REAIS E DESENCAIXES
Marx , obviamente, o primeiro cien-
tista social a colocar a questo dos meca-nismos de desencaixe de forma altamente
articulada e crtica. Ressalta em sua obra o
tema da abstratividade gerada pelo desen-
volvimento da sociedade humana que cul-
mina no capitalismo, com suas noes de
trabalho em geral, de valor de troca, de di-
nheiro, organizados em um espao nacio-
nal inicialmente mas, ao fim e ao cabo, pelo
mercado mundial (Marx, 1859 e 1867, Li-
vro 1, passim). Claramente a, como nas
teses marxianas e marxistas em geral, o
desenvolvimento das foras produtivas,
engendrando determinados arranjos
institucionais, que responderia causalmente
pelo surgimento daquelas abstraes que,
apostava, desapareceriam com o comunis-
mo, uma vez que ao fetichismo da merca-
doria e substituio fantasmagrica das
relaes entre as pessoas pelas relaes
entre as coisas sucederia uma sociedadeformada pela associao dos produtores que
se reconheciam como tais. O mercado seria
assim sepultado historicamente, deixando
de mascarar as relaes de explorao e as
lutas entre as classes que se escondiam sob
o vu do individualismo ideologicamente
determinado que regeria a conscincia dos
agentes nas sociedades burguesas. Anteri-
ormente, contudo, ele j notara como o
cidado, enquanto forma de representa-o ideolgica, de fato escondia os apetites
individualistas do burgus que se camufla-
va sob sua pele (Marx, 1844). Seria Lukcs,
contudo, que emprestaria preeminncia
tese sobre as abstraes reais, que adqui-
re com Habermas simultaneamente maior
amplitude e escopo definido.
Em um dos livros de maior impacto na
filosofia do sculo XX,Histria e Consci-
ncia de Classe, Lukcs retomou as ques-
tes de Marx, com forte influncia de Weber
e conhecimento detalhado dos trabalhos de
Simmel, filtrando tudo isso atravs de len-
tes hegelianas. No que nos interessa de
perto, ele observa, ao incio de sua discus-
so, que se podia achar na estrutura do
comportamento das mercadorias o quadro
original de todas as formas de objetivida-
de e todas as correspondentes formas da
subjetividade na sociedade burguesa
(Lukcs, 1923, p. 257). Em sua indepen-dncia e universalidade, bem como em sua
igualdade formal, a mercadoria condicio-
nava o trabalho abstrato, sendo condicio-
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nada, outrossim, pelos avanos histricos
efetivos desse processo de abstrao.
Racionalizao crescente queria dizer, nes-
se caso, atravs da histria (do trabalho ma-
nual, cooperao, manufatura e ma-
quinaria), uma perda do carter qualitativo
do trabalho. A calculabilidade dos proces-
sos sociais, dependente de sua
quantificao, era outro aspecto crucial
dessa racionalizao, impossvel sem es-
pecializao. No por acaso a matemtica
a rainha das cincias na modernidade. O
prprio tempo perderia seu carter qualita-
tivo, mutvel, fluido para se transformar
em umcontinuum preenchvel por coisas
quantitativamente mensurveis (Lukcs,
1923, pp. 263 e segs.). No obstante con-sistir em uma fantasmagoria necessria e
decisiva para o funcionamento desse tipo
de sociedade, baseada na troca de merca-
dorias, a atomizao e o isolamento das
mercadorias e dos indivduos so apenas
ilusrios. A essa aparncia subjaz uma r-
gida legalidade do processo econmico que
domina, pela primeira vez na histria, toda
a sociedade e consagra a seus membros um
destino comum (Lukcs, 1923, p. 266).Assumindo obviamente a idia do pa-
pel fundamental da infra-estrutura, Lukcs
observa que a esse desenvolvimento capi-
talista um direito, um Estado, etc., simila-
res correspondem. Isso se d mediante uma
sistematizao racional de toda a regulao
legal da vida, que avana portanto buscan-
do tudo englobar, pouco importando se um
fechamento lgico do sistema acontece ou
se lacunas especficas devem ser preen-
chidas na prxis dos juzes. Cabe destacar
sobretudo que a generalidade formal
(formaler Allgemeinheit) do direito liga-se
sua calculabilidade. Ele se apia em
Weber (1921-22, p. 491) para asseverar que
apenas a modernidade conheceu tal
formalismo e sistematizao. Esse sistema
de direito acha-se aposto como pronto,
fixado, em face dos acontecimentos
individuais da vida social, o que ocasiona
conflitos entre a lei e o desenvolvimentocapitalista. Isso gera o paradoxo de um sis-
tema fixo que, todavia, v-se obrigado a
mudar constantemente. Sua independncia
e reificao assim tambm se produzem,
bem como sua desateno para com o
concreto. Para ele isso implicava, de modo
parelho ao que se v na economia e na ad-
ministrao moderna, a passividade o
carter contemplativo do sujeito na soci-
edade burguesa: ele radicaliza ento a tese
de que no h criatividade possvel nessa
sociedade (Lukcs, 1923, pp. 271-3 e 276).
Pode-se dizer com isso que, buscando des-
velar e criticar a reificao, Lukcs cai nela
ele mesmo, pois no se mostra capaz de
identificar possveis espaos de atividade
do sujeito e criatividade da ao individual
e do movimento coletivo.
Uma de suas concluses principais de
grande relevncia para este estudo: segundoele, a indiferena (Gleichgltigkeit) da for-
ma em face do contedo caracteriza a ra-
cionalizao que se mostra tpica da moder-
nidade capitalista (Lukcs, 1923, p. 304).
O texto de Lukcs flagrantemente
datado, no s em funo de seu carter
marxista e redutivo, porm por abraar tam-
bm uma perspectiva da racionalizao que
deve em demasia a Weber. Em particular,
clara sua desqualificao da modernida-de, nesse sentido seguindo em grande me-
dida a Marx e a Weber, que no viam com
bons olhos aquelas abstrao e racionali-
zao formal. Entretanto, a anlise de
Lukcs extremamente feliz ao apontar
para o cunho genrico das abstraes re-
ais que so to tpicas da modernidade.
Ele toma de Marx o tema da mercadoria,
mas avana tambm de modo incisivo na
direo do direito e do pensamento bur-
gus como um todo, em seu aspecto for-
mal, no obstante sua derivao da totali-
dade social das determinaes econmicas.
O tema do direito, inclusive, para alm de
sua formalidade e sistematicidade, poderia
ser desdobrado em outra direo, na pr-
pria definio daquele em que todo o siste-
ma se apia: o indivduo abstrato, isolado,
que, alis, caracterizava a troca de merca-
dorias por ele mesmo descrita e conceitua-
da. Lukcs descura, assim, de entender oprprio indivduo moderno o cidado ,
sujeito, em duplo sentido, da lei. Guarde-
mos isto para mais adiante, no entanto, e
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examinemos como Habermas retomaria,
transformando-a significativamente, a pro-
blemtica de Lukcs.
Como se sabe, a teoria social de Ha-
bermas articula-se estreitamente com a
questo da evoluo social, uma vez que
ele cr mudar o objeto da sociologia a
sociedade ao longo da histria humana.
Isso significa em particular que ocorre uma
separao entre o mundo da vida espa-
o da cultura, das instituies e da sociali-
zao dos indivduos, o qual mediado
sempre lingisticamente e os sistemas
auto-regulados que se diferenciam da-
quele e, ocupando as dimenses da econo-
mia e da poltica, dispensam a ao lin-
gisticamente mediada e so coordenadospelo dinheiro e pelo poder. O problema
que, se isso consiste em um desenvolvi-
mento evolutivo normal, ele ser distorcido
e gerar patologias em funo de uma
expanso exagerada dos sistemas auto-re-
gulados, que avanam sobre o mundo da
vida e o colonizam. No quero explorar
aqui o conjunto complexo e problemtico
de teses que Habermas tece em ligao com
esses fundamentos conceituais (o que fiz jem outras ocasies cf. Domingues, 1995,
cap. 3, e 1999a, caps. 4 e 7, sobretudo).
Concentremo-nos aqui na questo da colo-
nizao e nas abstraes reais.
O alvo de Habermas em grande parte
Marx, para quem, diz ele, o mercado apa-
receria como mera forma de mascarar a do-
minao de classe, devendo portanto desa-
parecer sob o comunismo. Com isso, for-
mas imediatas de relacionamento voltari-
am a preponderar, dissolvendo a mercado-
ria, seu carter fantasmagrico e as abs-
traes reais a ela ligadas, como o caso do
trabalho abstrato. Habermas recusa ter-
minantemente essa tese, criticando ainda a
teoria do valor de forma incisiva e afirman-
do que a idia de transformao do trabalho
concreto em abstrato implica a perda de pre-
ciso (Bestimmtheit) do conceito de alie-
nao (Entfremdung) (Habermas, 1981,
vol. 2, pp. 489 e segs.). Sua interpretao deMarx extremamente problemtica, espe-
cialmente por ser guiada por sua prpria, a
meu ver insustentvel, diviso entre mundo
da vida e sistema. Faltariam a Marx, estando
ele privado daquela conceituao, critrios
para distinguir entre a destruio de formas
de vida tradicionais e a reificao
(Verdinglichung) de mundos da vida ps-
tradicionais, sem o que no haveria como
dar conta de fato dos processos de diferen-
ciao social. Marx sustentaria no fim das
contas uma postura nostlgica. Alm dis-
so, Marx no considera o sistema poltico-
administrativo ao discutir o tema da
reificao, restringindo-se economia.
Embora ele reconhea que Marx de fato v
a diferenciao do Estado e da economia
tambm como um processo de diferenci-
ao sistmica (Habermas, 1981, vol. 2, p.
499), como Habermas quer enfatizar a per-manncia e irreversibilidade (pode-se di-
zer sem rodeios a positividade) daquela
diferenciao, ele atribui pouca importn-
cia a esse reconhecimento.
Em contraposio, a colonizao do
mundo da vida, que se expressa imediata-
mente na alienao que se produz na parti-
cipao poltica e no trabalho, especialmen-
te no capitalismo tardio, aps o estabele-
cimento do Estado do Bem-Estar Social,na cristalizao de um papel de cliente
pelo cidado e de consumidor pelo tra-
balhador (Habermas, 1981, vol. 2, p. 515).
A colonizao do mundo da vida, que pro-
duz tambm a fragmentao da conscin-
cia dos sujeitos substituindo a falsa
conscincia de classe , eleita o princi-
pal veculo da nova teoria da reificao.
Mas a juridificao da vida social, que
corresponde em parte ao deslocamento da
integrao social caracterstica do mundo
da vida para a integrao sistmica, desem-
penha papel crucial na pintura de Habermas
tambm: se bem que permanea ligado ao
mundo da vida devido a imperativos de
legitimao que dependem da cultura e das
formas institucionais, o direito crescen-
temente funciona como um meio de orga-
nizao a servio dos sistemas auto-regu-
lados, em conjuno com o dinheiro e o
poder. Se a prpria institucionalizao dasociedade burguesa foi dependente dessa
juridificao, o Estado do Bem-Estar a
aprofunda ao introduzi-la no corao da
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poltica social (Habermas, 1981, vol. 2, pp.
522-31) (3). Isso leva a evidentes e profun-
dos efeitos de reificao, ao ser o []
direito social usado como meio
(Habermas, 1981, vol. 2, p. 539).
Tudo isso somado e assim posto, o con-
ceito de abstrao real ganha status de
questo emprica a ser analisada em pro-
fundidade, mediante um programa de pes-
quisa que prescinde inclusive da prpria
teoria do valor (Habermas, 1981, vol. 2,
pp. 548-9). Nas pginas conclusivas de seu
livro, Habermas explora alguns temas que
se colocariam nessa conexo. Vale obser-
var, no entanto, que a cidadania enquanto
tal no jamais posta em questo em rela-
o s abstraes reais, sequer quando elediscute o tema do direito, o que se deve em
grande parte a sua insero do direito em
primeiro lugar no mundo da vida, sendo
dependente da racionalizao comunicati-
va (Habermas, 1981, vol. 1, pp. 346 e segs.).
Sem dvida, uma ampliao do escopo do
tema se produz com a contribuio de
Habermas. Para isso no seria preciso, acre-
dito, desvencilharmo-nos da teoria do va-
lor, at porque no temos nada para pr emseu lugar. Mais interessante seria buscar
um quadro explicativo mais genrico, o que
Habermas de fato tenta, mas dificilmente
alcana. Sem dvida, a racionalizao do
mundo da vida e sua diferenciao, com o
posterior predomnio dos sistemas auto-
regulados (veja Habermas, 1981, vol. 2, cap.
6), visa substanciar uma resposta a esse
problema, porm no creio que ela seja ade-
quada. Isso ocorre no apenas por Habermas
separar aquelas duas dimenses societais,
mas igualmente porque no claro como
racionalizao, universalizao e abstrao
se relacionam. Alm disso, obscuro como
processos internos ao sistema podem ser
expressos por categorias do mundo da vida
e tomar a forma de abstraes reais, in-
clusive anteriormente ao processo de colo-
nizao e, presumvel e esperanosamen-
te, aps ver-se este bloqueado.
Isso no obstante, claro que Habermasapresenta uma contribuio decisiva para
uma mais adequada equao do problema
das abstraes reais. No seria, contudo,
possvel aprofundar esse conceito neste
contexto; basta para meus fins o que foi at
agora delineado. Buscarei evidenciar na
seo seguinte em que medida e por que
essa conceituao nos ajuda a entender
melhor o tema do multiculturalismo.
REENCAIXES, IDENTIDADES
CONCRETAS E MULTICULTURALISMO
As sociedades humanas conheceram ao
longo da histria processos de desenrai-
zamento que tiveram lugar aqui e ali em
muitas ocasies, pelos mais variados moti-vos migraes, guerras, escravido, a
emergncia de novos princpios de organi-
zao social. Todos eles demandaram a
reelaborao das identidades individuais e
coletivas dos agentes. O que haveria de
peculiar nesse sentido na civilizao mo-
derna? O que poderia distinguir o que a se
passa de especfico em relao aos desen-
raizamentos, e justificar inclusive a utili-
zao de uma expresso particular desen-caixe, sem que isso se restrinja to-so-
mente a um rtulo suprfluo? A resposta
acha-se presente exatamente, em parte, no
conceito de abstrao real que examina-
mos em Marx, Lukcs e Habermas, tema
que o prprio Giddens intui tambm, em-
bora no primeiro caso ele no tenha articu-
lado de forma abrangente o suficiente (cau-
salmente ou em termos de escopo) a gnese
e relaes mais profundas das instituies
modernas, e no segundo misture sistemas
de peritos e fichas simblicas de modo
pouco claro.
As sociedades modernas, delimitadas
pelos Estados-nao que apareceram na
Europa e se espalharam pelo mundo, so
formaes sociais que recobrem um terri-
trio relativamente unificado bastante am-
plo e o fazem por meio de mecanismos de
vigilncia at ento no disponveis, impli-
cando um nvel de intensividade do poderbastante elevado. Uma nova configurao
espao-temporal ento se estabelece. Ela
se recobre imediatamente, contudo, medi-
3 curioso que Habermas pare-a desconhecer, ou ao menosno explor-la suficientemente,a distino entre ordem jurdi-ca e direito administrativo, daqual se utiliza continuamente aburocracia do Estado do Bem-Estar. Veja uma anlise dessasduas formas legais em: Unger,1977, caps. 2-3, passim.
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ante duas categorias fundamentais: o tra-
balho livre e a cidadania, ambas codifica-
das juridicamente, por meio das constitui-
es modernas e da ordem jurdica. Com
aquela rearticulao do espao-tempo na
modernidade, cujos ritmos ademais se ace-
leram brutalmente, o desenraizamento de
amplas camadas da populao tem lugar. O
cercamento dos campos na Inglaterra,
emoldurando a dissoluo total dos laos
feudais na Europa, evidencia essa grande
transformao. Obviamente, tem lugar aos
poucos um reenraizamento dessas popula-
es. Ele se realiza em princpio num plano
muito mais abstrato do que fora o caso
anteriormente. Previamente era moder-
na, as populaes viviam em sua esmaga-dora maioria uma vida ligada a contextos
especficos, como era o caso dos servos me-
dievais e dos artesos, mas igualmente da
nobreza e mesmo em grande medida da
burguesia citadina; a exceo a isso eram
andarilhos e vagabundos, aventureiros,
bandoleiros e outras figuras semelhantes,
minoritrias nessas sociedades e com fre-
qncia em contradio com seus princ-
pios fundamentais. Nascia-se e vivia-se emcontextos concretos, com funes sociais
especficas, em geral conectadas a locais
tambm particulares. Com certeza havia
disrupes desse cenrio em princpio es-
tvel e mutvel apenas no desenrolar de
processos sociais de ritmo relativamente
lento. Aqueles que eram desenraizados por
qualquer motivo, conjuntural (como uma
guerra) ou dependente de modificaes de
fundo que se abatiam afinal sobre eles,
encontravam reencaixe mais uma vez em
condies semelhantes a que precedente-
mente eram as suas. Um reenraizamento
em relaes sociais concretas se seguia
quele desenraizamento.
A modernidade alterou isso fundamen-
talmente. Aqueles primeiros desencaixes
lanaram as pessoas em uma situao cujas
amarras concretas se enfraqueceram enor-
memente. O reencaixe imediato que as
aguardava possua caractersticas muitodistintas daquelas que desfrutavam antes:
eles agora so meramente trabalhadores li-
vres e cidados, seres abstratos, livres e
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autnomos para circular pelo espao naci-
onal a seu bel-prazer e vender sua fora de
trabalho a quem desejar; no mais sditos,
sua relao com o Estado muda tambm e
agora faz-se sem a mediao da nobreza,
direta e abstratamente concebidos seus di-
reitos e deveres. Em outras palavras, esses
novos sujeitos so detentores de direitos
civis e polticos, estes ltimos todavia
universalizados somente ao longo do tem-
po. Embora o Estado nacional servisse de
fronteira para essa abstratividade, o merca-
do mundial desde o incio, entretanto, se
colocava como horizonte do trabalho livre.
De fato, a cidadania e o direito ao trabalho
no se estabeleceram de modo algum mes-
mo a esta altura do fim do sculo XX. Masa mobilidade internacional crescente do
capital, tornando a fora de trabalho, se no
livre para si, ao menos livre para outrem,
at certo ponto aguou esse carter abstra-
to do indivduo na era moderna. Carter
que poderia ser descoberto nas mltiplas
faces de sua vida e sociabilidade, a come-
ar pela concepo de homem abstrato e
em relao direta com Deus, que o protes-
tantismo introduziu no Ocidente. Deve-seobservar que, embora se trate de abstra-
es, no deixam de ser reais, posto que
presidem a tecitura da conscincia dos su-
jeitos e organizam as instituies sociais.
Esse movimento bsico de reencaixe
moderno, que sustentamos outrossim dia-
riamente e sobretudo atravs da sucesso
de geraes que assim recebem sua identi-
dade das memrias das geraes anteriores
e da tradio da modernidade, realiza-se de
forma em princpio altamente dispersa.
claro, movimentos polticos coletivos fo-
ram necessrios para institucionalizar essa
concepo. Mas na vida cotidiana como
seres abstratos isolados que, por exemplo,
buscamos o po de cada dia e votamos em
eleies. Isso se faz por intermdio do
movimento de uma subjetividade coletiva
altamente descentrada (cf. Domingues,
1995), uma vez que em particular essa ideo-
logia burguesa moderna leva as pessoas aassim se conceberem e imaginarem como
indivduos abstratos, atomizados, cuja ao
deve prescindir ao mximo dos outros, que
nos servem no mximo de instrumento.
Reencaixamo-nos sobretudo como mem-
bros de famlias nucleares (conquanto esta
esteja ela mesma, a esta altura, absoluta-
mente fragmentada e descentrada), onde
investimos nossas identidades e afetos, ou
como indivduos ainda mais isolados, que
buscam apenas seu prprio prazer. Obvia-
mente, chegamos a uma identidade social
bastante uniforme, sem que esse fosse con-
tudo um desgnio premeditado por algum.
Mas isso no se passou sem que um
movimento paralelo tivesse lugar. Na ver-
dade, esse carter abstrato dos novos
reencaixes, em outras palavras, dessas no-
vas identidades individuais e coletivas, era
insuficiente para dar sentido vida diria eao movimento da histria em que elas se
viam inseridas. Isso teve como conseqn-
cia novos reencaixes de carter mais parti-
cularizado, mais concreto, que, contudo,
se viram permanentemente em destroos,
uma vez que o ritmo vertiginoso da moder-
nidade que tudo dissolve no ar conju-
ra modificaes constantes nas relaes
sociais e nas instituies, obrigando-nos a
recomear sempre mais uma vez e a tentarnovos reencaixes que recuperem um mni-
mo de segurana existencial, ontolgica. A
modernidade pe assim a reflexividade in-
dividual e coletiva a trabalhar de forma
muito mais acentuada (ver Wagner, 1994)
(4). Duas formas principais, bastante am-
plas, mas mais concretas de reencaixe tive-
ram lugar (ver Calhoun, 1995, caps. 7-8).
A nao foi o primeiro foco de nossas preo-
cupaes particularistas para comear os
direitos humanos foram logo transforma-
dos nos direitos dos cidados de estados
nacionais particulares. A classe social, so-
bretudo a pertena classe operria, se co-
locou tambm como foco da identidade.
Mais ainda, laos de solidariedade mais
local se estabeleceram, em diversas comu-
nidades de trabalhadores, cuja identidade
se teceu em lutas contra o capital. As clas-
ses dominantes, por outro lado, sempre
cultivaram laos sociais fortes atravs dosquais consolidam sua identidade e dom-
nio. A religio, as diversas seitas e denomi-
naes tm servido de veculo tambm para
4 Declino de discutir aqui o temada reflexividade, o que realizeiextensamente em Domingues,1999a, caps. 1-2.
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a reconstruo mais concretamente orien-
tada de identidades sociais, para alm das
abstraes reais da modernidade.
A burocracia do Estado do Bem-Estar
introduziu novas formas de abstrao real.
Estas diferem das anteriores em dois as-
pectos principais o que, como vimos, no
creio ser bem resolvido pela discusso en-
cetada por Habermas. Primeiramente, por-
que no so em geral urdidas por interm-
dio da ordem legal, constitucional. Elas so
estabelecidas com freqncia por meio do
direito administrativo e pela discrio dos
membros da burocracia estatal, que assim
definem seus pblicos-alvo. Isso, alis, vem
de longe, por exemplo no funcionamento
do sistema de vigilncia e disciplina que seconstituiu na era moderna. Frente ao siste-
ma judicirio o sujeito se apresenta como
cidado portador de direitos, que ento
castigado de acordo com critrios univer-
salistas, para ser em seguida individualiza-
do no de forma abstrata em funo de
suas particularidades ao ver-se sob o jugo
do sistema penal e sua corte de especialis-
tas em punio e regenerao. Ao mesmo
tempo, ele passa a integrar uma categoriacoletiva de delinqentes, ela tambm
subdivisvel (ver por exemplo Foucault,
1975, pp. 259 e 292-8). Magnifica-se em
muitas outras formas, mais coletivizadas,
porm que permitem simultaneamente uma
vigilncia personalizada sobre os
beneficirios do sistema de bem-estar esta-
tal, que implica igualmente, em certa me-
dida, um reencaixe identitrio. Esse car-
ter coletivo e mais personalizado compe,
portanto, a segunda diferena das novas
abstraes reais do Estado do Bem-Estar
vis--visa cidadania civil e poltica tout
court. Assim tem sido construda a cidada-
nia social. No obstante todos esses direi-
tos terem sido conquistados ao longo de
lutas por vezes ferozes, ao fim e ao cabo
uma caraterstica compartilhada por to-
das essas abstraes reais: elas implicam a
passividade do sujeito moderno constitu-
do, que no participa de sua definio co-tidiana e no capaz de emprestar a essas
figuras perfil que responda a suas qualida-
des mais concretas. Aqui deparamo-nos
com dois elementos da discusso de Lukcs
que so cruciais, creio, para uma correta
compreenso dessa questo. Trata-se da
indiferena da forma face ao contedo
patente no caso desses reencaixes abstra-
tos e da passividade do sujeito frente a
eles, conquanto o registro em que coloco
esta ltima questo seja distinto do de
Lukcs e da prxis revolucionria que ele
reivindica como essencial para o conheci-
mento da realidade social, se bem que a
criao dessa mesma realidade, no caso em
foco, tenha bvia relao com quem e como
se determinam as caractersticas dos direi-
tos sociais e como devem ser dispensados.
Antes de voltar mais diretamente ques-
to do multiculturalismo, gostaria de fazeruma ltima observao. Ela diz respeito
articulao entre esses dois pares de elemen-
tos: universalidade e abstrao, concretude
e particularidade, tanto no plano histrico
(ou seja, no que tange gnese dessas cate-
gorias em termos sociais), quanto em ter-
mos lgico-categoriais (no que se refere a
formas de conscincias ou no tocante a ar-
ranjos institucionais). A despeito de discus-
ses recorrentes sobre o tema, pode-se dizerque no claro na verdade como se articu-
lam, em particular no caso dos dois primei-
ros. Ser necessrio que universalidade
corresponda sempre a abstratividade em
outras palavras, abstraes reais , ou seria
possvel pensar que aquela s se faz com-
pleta na medida em que incorpora a si a
particularidade dos sujeitos sociais? Esse
obviamente um tema hegeliano, que passa,
portanto, ao largo das preocupaes neo-
kantianas de Habermas (1981, passim, por
exemplo), cuja obra me parece nesse senti-
do insuficiente, demandando a questo de-
senvolvimentos posteriores.
MULTICULTURALISMO, TRADIES
E ESTILOS DE VIDA
Em um livro bastante comentado,Kymlicka (1995, principalmente pp. 10 e
segs.) focalizou a questo do multicul-
turalismo sob dois ngulos o nacional e o
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tnico. No primeiro caso tem-se estados
multinacionais, uma vez que se trata de
sociedades formadas a partir da incorpora-
o, forada ou voluntria, de minorias na-
cionais que anteriormente possuam cultu-
ras territorialmente concentradas e desfru-
tavam de autonomia. No segundo, a diver-
sidade cultural fruto da imigrao indivi-
dual ou familiar e, conquanto esses indiv-
duos possam em maior ou menor grau bus-
car o reconhecimento de sua identidade
tnica, tipicamente eles desejam integrar-
se sociedade mais ampla. Como j obser-
vei, esse um tema crucial, que entretanto
no pode ser tratado de forma uniforme,
como se se colocasse com a mesma inten-
sidade em todos os pases e regies domundo. A nao brasileira, forjada por uma
assimilao bastante ampla de indivduos
e povos de origens dspares, escapa dos dois
tipos assinalados por Kymlicka, no
obstante a permanncia de diferenas e uma
certa heterogeneidade, assim como da rei-
terao das comunidades tnicas indgenas
que hoje inclusive por vezes comeam a
multiplicar o nmero de seus integrantes.
No somos um estado multinacional, nemtampouco uma sociedade multitnica. Sem
dvida, essa uma afirmao controversa,
principalmente se tivermos como interlo-
cutores membros do movimento negro bra-
sileiro, que por vezes demanda um reco-
nhecimento tnico distinto para as popula-
es que de alguma forma tm sua origem
ligada ao continente africano. Contudo, sua
assimilao nao brasileira, sem em-
bargo do carter violento e forado de que
se revestiu, dissolveu em grande medida
esse carter tnico que, alis, no era de
modo algum homogneo (ver Domingues,
1993 e Souza, 1997). No conjunto da po-
pulao, creio, no se acharia identidade
tnica separada.
certo que as identidades modernas se
mostram cada vez mais abertas a um traba-
lho reflexivo que lhes permite servir a for-
mas mltiplas de reencaixe social e
contextual. Elas no possuem carteressencialista e se apresentam com feio
bastante plstica (ver Costa e Werle, 1998).
Entretanto, no creio que seja plausvel pen-
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sar uma identidade tnica separada para
nenhum segmento da populao brasileira
(exceo feita aos membros das j mencio-
nadas comunidades indgenas). E, por mais
que as identidades sociais, individuais e
coletivas sejam abertas ao trabalho da
reflexividade, esta opera sob condies de
plausibilidadeque estabelecem limites para
aspossibilidadesde reconstruo da iden-
tidade (cf. Domingues, 1999a, cap. 2).
Assim, se a valorizao das identidades
tnicas tem se feito de forma pervasiva e
muitas vezes radical pelo mundo, freqen-
temente em conjuno com a acentuao
de aspectos religiosos, isso tem tido lugar
quando historicamente se mostra plausvel
o que , infelizmente, o caso em muitassociedades em que isso se desdobra no em
formas benignas, ainda que conflituosas,
de afirmao tnica e/ou nacional, mas sim
em desenlaces violentos e mesmo carrega-
dos de tragicidade. No me parece ser esse
o caso do Brasil, em funo das condies
de formao histrica da nao, em que pese
a bvia subordinao dos elementos e tra-
dies de origem africana na cultura e na
vida social do pas, j para no falar dascondies de pobreza em que essas popu-
laes se mostram como maioria. Alm
disso, no se deve esquecer que dificilmente
se as encontra em estado puro, com fre-
qncia a miscigenao dos setores sobre-
tudo de baixa renda da populao demons-
trando que a noo de democracia racial
com certeza mais que um mito no Brasil.
Se, contudo, o tema do multicultura-
lismo tomado em um sentido mais amplo,
englobando crenas e prticas religiosas
distintas, aquilo que alguns autores carac-
terizariam como a tribalizao da socieda-
de contempornea, a multiplicao de es-
tilos de vida distintos, formas variadas de
expresso cultural inclusive de fundo
tnico , o termo se patenteia adequado ao
Brasil, no s descritiva como tambm
normativamente. Conquanto a modernida-
de brasileira se mostre bastante tradicio-
nalmente moderna tanto institucional-mente quanto no que tange s formas de
conscincia que predominam no pas (cf.
Domingues, 1999a, cap. 5) os reencaixes
concretos e potencialmente multiculturais
que parecem marcar outros quadrantes da
modernidade global contempornea aqui
se mostram tambm como soluo em face
dos problemas ocasionados pela abstra-
tividade que impregna as instituies mo-
dernas e do declnio ao menos relativo de
outros tipos de identidade coletiva (de classe
e nacional). A identificao de grande par-
te da juventude morena de Salvador com
a cultura caribenha, principalmente
jamaicana, apenas um exemplo expressi-
vo, entre outros, dessas identificaes
identitrias por sobre as fronteiras nacio-
nais (se bem que no necessariamente as
contradigam inteiramente e com certeza
bebam nas modernas tradies brasileiras).O prprio tema do comunitarismo deveria
ser colocado nas mesmas coordenadas, uma
vez que ele crescentemente se apresenta
como soluo para os dilemas identitrios
da modernidade avanada, ao colocar de-
mandas de reconhecimento para culturas
particulares, sejam elas claramente delimi-
tadas ou seja sua definio mais imprecisa
e difusa (cf. Taylor, 1992). Se isso se apre-
senta como uma problemtica que, em suarelao com as limitaes do liberalismo
individualista, pode assumir um cunho
universalizante, o caso brasileiro pode por-
tanto se beneficiar do debate em curso em
seus aspectos gerais; mas no seria correto,
ao que me parece, tomar o debate exata-
mente como ele se apresenta em pases
efetivamente multiculturais no sentido na-
cional ou tnico (como o Canad, os Esta-
dos Unidos, ou a Alemanha contempor-
nea). Seja como for, a questo dos desen-
caixes, das abstraes reais e dos reencaixes
reflexivos a mais uma vez comparece, e
esses elementos conceituais, os quais ex-
plorei acima em maiores detalhes para dis-
cutir a modernidade, podem ser extrema-
mente teis para tematizar a florescncia
recente do comunitarismo.
Uma nota normativa final. O multi-
culturalismo pode assumir um aspecto de-
mocrtico e democratizante, no sentido depermitir que demandas por reconhecimen-
to legtimas se apresentem na esfera pbli-
ca e passem a pautar o debate e a vida co-
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reencaixes que so por meio disso busca-
dos podem levar, todavia, a cairmos nas
conservadoras e excludentes ciladas da
diferena (Pierruci, 1990) ou inclusive em
resultados desastrosos se se ligam a formas
exclusivamente particularistas e antagni-
cas de reconstruo da identidade.
A soluo de Joas em face disso vale a
pena ser aqui brevemente ponderada, tanto
no que diz respeito anlise quanto
normativamente. Em que medida nossos
reencaixes assumem valores particula-
ristas ou normas universalistas, para fa-
zer uso de sua terminologia, so questes e
escolhas cuja resoluo no dadaa priori,
e cujas conseqncias, porm, so emcontrapartida obviamente decisivas. A par-
tir do pragmatismo de James, Dewey e
Mead, e com forte influncia da tica
discursiva de Habermas, Joas (1997, cap.
10) avana uma soluo original para esses
impasses. Segundo ele, os valores emer-
gem sempre de forma contingente, a partir
de situaes concretas e vivncias espec-
ficas, possuindo, portanto, forte elemento
particularista. Dentro deles, no entanto,sempre o reconhecimento de outros que
compartilham a mesma forma de vida in-
troduz desde sempre um elemento moral,
se no universalista em princpio, ao me-
nos potencialmente universalizante. Essa
intuio pode ser ento estendida a outros
que no se incluem nesse crculo menor
de identificao e reconhecimento, em
outras palavras, pode ser universalizado
no sentido de chegar ao reconhecimento
de nossa humanidade comum, a despeito
e em parte mesmo em virtude do reconhe-
cimento concomitante de nossas diferen-
as. O discurso o meio atravs do qual
isso pode se realizar, pois, proporcionan-
do ocasio e forma para uma definio
universalista da justia, pode levar inclu-
sive prpria modificao dos bens
(Guten) que aqueles valores originalmen-
te haviam estabelecido, o que permite sua
definio de forma compatvel com os
bens de outras coletividades.A, creio, radica uma esperana no s
de convivncia mais respeitosa e democr-
tica das diferenas (multiculturais) nas so-
ciedades contemporneas, mas tambm de
mudana social no longo prazo, desde que
sejam estabelecidas formas institucionais
que permitam, e talvez mesmo estimulem,
a proliferao de particularidades coleti-
vas sem prejuzo de normas universais de-
mocrticas, e, na verdade, delas dependen-tes e para elas contribuindo. Nesse sentido,
o multiculturalismo um horizonte refle-
xivo e prtico o qual todos, inclusive bra-
sileiros, no deveramos recusar.
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