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DESENVOLVIMENTO DO SORO ANTI-LONÔMICO E PROCESSOS DE INOVAÇÃO NO IBU Kátia Cibelle Machado Pirotta 1 Introdução. Acidentes com lagartas configuraram-se como um sério problema de saúde na região sul do Brasil, durante a década de 90. O contato de trabalhadores rurais e de crianças com a Lonomia obliqua foi responsável pelo aumento do número de casos de envenenamento, que levava à uma síndrome hemorrágica tendo sérias repercussões, inclusive a morte. O Instituto Butantan foi acionado para estudar o problema, cuja solução envolvia a realização de pesquisa básicas e aplicadas com a produção de um soro específico. Objetivo. O presente trabalho teve por objetivo analisar o processo de desenvolvimento do soro anti-lonômico e seus fatores intervenientes pelo Instituto Butantan. Metodologia. Foram realizadas entrevistas em profundidade com quatro atores chaves e levantamento documental e bibliográfico. Resultados. A descrição do processo mostrou as seguintes fases: construção de uma rede de colaboradores; estabelecimento de um sistema de coleta e envio das lagartas para o Instituto Butantan; identificação do gênero das taturanas, a forma de envenenamento e sua sintomatologia; a opção por produzir um soro a partir do extrato das cerdas da lagarta; realização dos ensaios clínicos; definição dos esquemas de imunização e de controle de qualidade e a aprovação pela Anvisa. O financiamento da produção do soro foi feito através de recursos institucionais; as pesquisas e ensaios clínicos tiveram apoio da FAPESP. A adoção pelo MS do soro reduziu o número de óbitos nos pacientes a zero em SC. Considerações finais. As pesquisas para o desenvolvimento do soro anti-lonômico desdobaram-se em outros projetos com potencial para a produção de novos fármacos. Esse fato, somado a outras situações semelhantes, tem gerado uma série de mudanças institucionais (necessidade de registrar patentes, de realizar a gestão da inovação, de realizar parcerias com a indústria farmacêutica, de transferir tecnologias, entre outras) favoráveis à criação de ambiente empreendedor. Difusão de Inovações, Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, Assistência à Saúde, Instituições de Saúde, Recursos Humanos e Serviços 1 Socióloga, Mestre e Doutora em Saúde Pública/USP, Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde/SES, [email protected]

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DESENVOLVIMENTO DO SORO ANTI-LONÔMICO E PROCESSOS DE

INOVAÇÃO NO IBU

Kátia Cibelle Machado Pirotta1

Introdução. Acidentes com lagartas configuraram-se como um sério problema de saúde na

região sul do Brasil, durante a década de 90. O contato de trabalhadores rurais e de crianças

com a Lonomia obliqua foi responsável pelo aumento do número de casos de envenenamento,

que levava à uma síndrome hemorrágica tendo sérias repercussões, inclusive a morte. O

Instituto Butantan foi acionado para estudar o problema, cuja solução envolvia a realização de

pesquisa básicas e aplicadas com a produção de um soro específico. Objetivo. O presente

trabalho teve por objetivo analisar o processo de desenvolvimento do soro anti-lonômico e

seus fatores intervenientes pelo Instituto Butantan. Metodologia. Foram realizadas entrevistas

em profundidade com quatro atores chaves e levantamento documental e bibliográfico.

Resultados. A descrição do processo mostrou as seguintes fases: construção de uma rede de

colaboradores; estabelecimento de um sistema de coleta e envio das lagartas para o Instituto

Butantan; identificação do gênero das taturanas, a forma de envenenamento e sua

sintomatologia; a opção por produzir um soro a partir do extrato das cerdas da lagarta;

realização dos ensaios clínicos; definição dos esquemas de imunização e de controle de

qualidade e a aprovação pela Anvisa. O financiamento da produção do soro foi feito através

de recursos institucionais; as pesquisas e ensaios clínicos tiveram apoio da FAPESP. A

adoção pelo MS do soro reduziu o número de óbitos nos pacientes a zero em SC.

Considerações finais. As pesquisas para o desenvolvimento do soro anti-lonômico

desdobaram-se em outros projetos com potencial para a produção de novos fármacos. Esse

fato, somado a outras situações semelhantes, tem gerado uma série de mudanças institucionais

(necessidade de registrar patentes, de realizar a gestão da inovação, de realizar parcerias com

a indústria farmacêutica, de transferir tecnologias, entre outras) favoráveis à criação de

ambiente empreendedor.

Difusão de Inovações, Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, Assistência à

Saúde, Instituições de Saúde, Recursos Humanos e Serviços

1 Socióloga, Mestre e Doutora em Saúde Pública/USP, Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde/SES, [email protected]

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I. INTRODUÇÃO

I.1 Instituto Butantan: a Trajetória de uma Instituição Pública de Pesquisa

O Instituto Butantan possui uma identidade e uma cultura institucional próprias,

desenvolvidas no decorrer de um século de história. A Fazenda Butantan foi adquirida pelo

Governo do Estado de São Paulo a fim de instalar um laboratório para a produção de soro

antipestoso, devido a um surto de peste bubônica que se propagava no porto de Santos.

(Stepan, 1976) Em 1901, esse laboratório foi reconhecido como instituição autônoma,

recebendo a denominação de Instituto Serumtherápico. Seu primeiro diretor foi o médico

sanitarista Vital Brazil. Devido ao alto número de acidentes com serpentes e outros animais

peçonhentos nas fazendas de café, que se expandiam pelo interior do estado, Vital Brazil

iniciou estudos sobre o ofidismo, assunto pouco pesquisado até então. O Instituto Butantan se

especializou nesta linha de pesquisa, com enorme potencial de aplicação, assim como na

produção do soro anti-ofídico. A divulgação dos resultados das pesquisas sobre o ofidismo em

países europeus e nos EUA deram reputação internacional ao instituto.

Diversos problemas relacionados ao financiamento e a contratação de recursos

humanos marcam o primeiro ciclo de funcionamento, que culmina, em 1927, com a saída de

Vital Brazil do Instituto Butantan. Em 1931, ocorre uma mudança e ampliação dos objetivos e

das atividades do instituto, por meio da sua vinculação à Secretaria de Educação e Saúde

Pública recém surgida. Destaca-se, neste momento, a ênfase ao estudo da Patologia Humana,

à distribuição de produtos biológicos para profilaxia ou terapia das doenças e a instalação de

postos antiofídicos. No contexto externo, são inauguradas as universidades estaduais, que

recebem cientistas estrangeiros para a sua formação. Inicia-se, também, a indústria privada de

produtos farmacêuticos e imunobiológicos. Em 1945, o Hospital Vital Brazil é criado e,

gradualmente, ocorre uma diversificação das áreas de pesquisa.

Segundo Ibañez, houve um aumento da interação entre cientistas nas instituições

públicas e privadas voltadas para a produção de fármacos. A indústria farmacêutica paulista

estava no seu nascedouro e deu-se uma melhoria nos processos produtivos, de distribuição e

inovação. Apesar da ausência de uma regulação estatal, são realizados intercâmbios para a

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articulação entre universidade, instituições de pesquisa e indústrias. (Ibañez, 2012) O Instituto

Pinheiros, que havia sido criado em 1928, assume um importante papel na incipiente indústria

farmacêutica paulista, mas os principais produtores de produtos biológicos continuam a ser as

instituições públicas de saúde. Ibañez observa que a discussão sobre as relações público-

privadas foi retomada na atualidade pelos órgãos de fomento à pesquisa, como a FAPESP,

mostrando a necessidade do intercâmbio entre os setores público e privado para o

desenvolvimento do campo da inovação.

Com a redemocratização da sociedade brasileira, nos anos 80, houve um processo de

modernização do instituto, ao lado da criação de cargos de Pesquisador Científico,

regulamentação da carreira de pesquisador e contratação de novas lideranças científicas. É

criado o Programa de Autossuficiência Nacional na Produção de Imunobiológicos (Pasni),

visando o fortalecimento dos laboratórios públicos e a autossuficiência brasileira na produção

de soros e vacinas. Surge o Centro de Biotecnologia, cujos financiamentos recebidos

permitiram o escalonamento de processos de pesquisa e produção. De acordo com Ibañez,

Wen e Fernandes (2007), o Ministério da Saúde teve importante participação neste projeto:

O Programa Nacional de Imunização (PNI), de 1973, e o de Autosuficiência

Nacional em Imunobiológicos (Pasni), de 1986, estimularam a produção nacional de

imunobiológicos e, ao fazê-lo, estimularam duas importantes instituições nacionais

de pesquisa e produção tecnológica - o Instituto Butantan, da Secretaria de Estado da

Saúde de São Paulo, e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-

Manguinhos), da Fiocruz, no Rio de Janeiro. O Governo Federal injetou recursos no

desenvolvimento de processos técnico-científicos próprios, alavancando desta forma

não apenas o potencial produtivo dessas instituições bem como seu ingresso no

patamar da terceira revolução tecnológica. (p. 21)

O Pasni desencadeou um processo de modernização do instituto, com o

desenvolvimento de produtos terapêuticos através da biotecnologia e a consolidação da

produção de vacinas. Os pesquisadores do Centro de Biotecnologia dedicam-se à pesquisa

tecnológica de produtos e processos, especialmente soros e vacinas. Como resultado dessas

iniciativas somadas ao apoio do Ministério da Saúde, teve início a produção da vacina contra

a Hepatite B pelo Instituto Butantan, um dos primeiros produtos em saúde desenvolvidos

através da tecnologia de recombinação genética. (Gadelha & Azevedo, 2003)

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Ibañez (2015) sintetiza a trajetória do Instituto Butantan em três ciclos. No primeiro, o

Instituto está inserido na construção de um modelo de intervenção, correspondendo à

implantação da Instituição apoiada no tripé pesquisa, produção relacionada à saúde pública e

difusão científica. Neste momento, o ofidismo passa a ser a marca do Butantan. Em um

segundo ciclo, a instituição muda de nome e passa a se chamar Laboratório de Medicina

Experimental. São trazidos cientistas do exterior, que montam a área de ciências básicas,

iniciando-se a realização de pesquisas básicas, ainda que voltada para a aplicação, com uma

redução do setor de produção. O terceiro ciclo, durante os anos 80, é marcado pela

modernização do Butantan, com a criação da Fundação Butantan entre outros importantes

aspectos, buscando maior flexibilidade administrativa e fortalecimento dos recursos

humanos. Todos esses fatores levaram ao aparecimento de novas questões e desafios, como,

por exemplo, o estabelecimento de parcerias com o setor privado, o registro de patentes, a

gestão científica e tecnológica, a melhoria da infraestrutura etc.

I.2 Acidentes com Lagartas na Região Sul do Brasil

Por volta do ano de 1995, o envenenamento por acidentes com lagartas configurou-se

como um sério problema de saúde pública no Brasil. Esses acidentes provocam dor, urticária,

edema no local de contato, acompanhados de distúrbios nos gânglios, hemorragias nas

mucosas e alterações no sistema de coagulação do sangue. O envenenamento sistêmico

causado pelo contato com as cerdas da taturana pode causar uma síndrome hemorrágica,

levando o paciente à insuficiência renal aguda ou a um acidente vascular cerebral

hemorrágico que, em casos extremos, pode levar à morte.

Esse tipo de acidente já havia sido descrito no início do século XX, quando o médico

Zoroastro de Alvarenga relatou o caso de um agricultor, relacionando o contato com lagartas a

alterações na coagulação sanguínea. Ele fez uma descrição detalhada da evolução do quadro

clínico do paciente, que foi apresentada no VII Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia,

em 1912. Em 1967, na Venezuela, foram relatados outros cinco casos de síndrome

hemorrágica aguda ocorrida após o contato com lagartas por Arocha-Piñango. Por volta dos

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anos 80, foram identificados casos entre o Sudeste do Amapá e Ilha de Marajó, tendo ocorrido

36 casos de síndrome hemorrágica causada pelo contato com lagartas parasitas de

seringueiras, cuja mortalidade atingiu 38% dos casos, segundo estudos retrospectivos

apresentados por Guerini (2006). As lagartas causadoras desses acidentes, foram identificadas

como pertencentes ao gênero Saturnidae e foram classificadas, por Lemaire, como Lonomia

achelous.

As lagartas possuem hábitos gregários e, durante o dia, ficam agrupadas nos troncos

das árvores com os quais se mimetizam. Elas se alimentam durante a noite, quando sobem

para as copas das árvores. As lagartas, que antes eram encontradas somente em florestas,

atualmente habitam matas, parques e pomares. Entre os fatores que propiciaram o aumento de

acidentes, deve-se destacar o desmatamento e a substituição das florestas por plantações e

cidades. Uma outra razão para o crescimento populacional da espécie é a extinção dos

predadores naturais, que possivelmente se deve à destruição das florestas e ao uso de

agrotóxicos. Essa situação facilita a ocorrência de acidentes com seres humanos.

Em 1989, acidentes com lagartas passaram a chamar atenção na região Sul do Brasil.

Entre 1991 e 2000, o número de acidentes teve um aumento exponencial, atingindo 994 casos

e oito mortes no Estado do Rio Grande do Sul. As lagartas envolvidas nesses acidentes

pertenciam uma espécie diferente da Lonomia achelous. Nesse momento, o Instituto Butantan

foi acionado para pesquisar o problema.

II. OBJETIVO

O presente estudo teve por objetivo conhecer e analisar a experiência de

desenvolvimento do soro anti-lonômico pelo Instituto Butantan, durante os anos 90, e seus

fatores intervenientes.

III. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

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Trata-se de um estudo de caso, com o emprego de metodologia qualitativa, onde foram

realizadas entrevistas em profundidade com quatro atores chaves do processo que levou ao

desenvolvimento do soro anti-lonômico no Instituto Butantan, bem como levantamento

documental e bibliográfico.

III.1 Participantes do Estudo

A pesquisa teve a participação de quatro atores chave para a compreensão do processo

de desenvolvimento do soro anti-lonômico no Instituto Butantan. Foram eles:

1. Pesquisador, Professor de Imunologia, Liderança Científica do Instituto Butantan

atuando no Laboratório de Imunoquímica desde 1986;

2. Pesquisadora, Professora da Pós-graduação, Diretora do Laboratório de

Bioquímica e Biofísica, Vice Diretora da Diretoria da Divisão Científica,

Pesquisador Principal do CETICs/CEPID-FAPESP;

3. Diretor do Serviço de Imunologia da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e

Produção;

4. Pesquisador, Diretor Técnico do Laboratório Especial de Coleções Zoológicas do

Instituto Butantan.

III.2 Plano de Análise

O plano de análise possuiu as seguintes etapas:

Em relação à tecnologia:

Identificar um produto com alto interesse para a saúde pública, mas com baixo

interesse para as empresas privadas.

Analisar as etapas de desenvolvimento deste produto pelo Instituto Butantan,

considerando o início da pesquisa, a realização de estudos clínicos, o registro do

produto nos órgãos regulatórios, a produção e a disponibilização no SUS.

Analisar as possibilidades do desenvolvimento de produtos inovadores a partir da

tecnologia inicialmente desenvolvida.

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III.3 Aspectos Éticos

Todos os entrevistados foram esclarecidos sobre os objetivos do estudo, sua

importância e contribuição para os objetivos da pesquisa. Foi assegurado o direito à

confidencialidade, ao anonimato e à privacidade, em atenção à resolução 466/2012 do

CONEP. Para garantir o anonimato, não foram usados dados pessoais ou outras informações

que pudessem ferir a privacidade dos participantes da pesquisa. Os nomes dos entrevistados

foram substituídos por números (em conformidade com o perfil apresentado acima).

IV. RESULTADOS E DISCUSSÃO

IV.1 Identificação do Problema de Saúde Pública e Preparação da Pesquisa

O problema do envenenamento pelos acidentes com lagartas exigia a realização de

pesquisas básicas e aplicadas para sua solução. A situação emergencial causada pelo rápido

aumento do número de casos e pela sua gravidade chamou a atenção de alguns imunologistas

do Instituto Butantan. Os primeiros relatos sobre os envenenamentos foram feitos pela

pesquisadora Eva Maria Antônia Kelen:

Naquela época, eu era o diretor da divisão de desenvolvimento científico e tinha

aqui a Dra. Eva, amiga e pesquisadora muito importante. Ela entra no meu

laboratório e diz sobre o problema sério de envenenamento com uma taturana que

não havia, mas agora apareceu porque com o desmatamento ela vai para as áreas de

moradia da população. E disse que precisamos fazer o soro contra o veneno da

taturana. O nome dela é Lonomia obliqua e já foi detectada em alguns países da

América do Sul, mas aqui ainda não tinha acontecido. Quando ela ataca, causa

hemorragia intensa e deixa o sangue incoagulável por dias. [Para] Pessoas que tem

alguma doença com problema de cicatrizar ou crianças, o acidente é fatal.

(entrevistado 1)

O Instituto Butantan foi procurado por um médico nefrologista do Município de Passo

Fundo, no Rio Grande do Sul. Ele observou um alto número de pessoas com insuficiência

renal após o contato com lagartas. Com base no histórico clínico dos pacientes, foi levantada a

hipótese de que havia uma associação entre a taturana e os quadros desenvolvidos.

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Uma rede de colaboradores, então, passa a ser construída por iniciativa da Dra. Eva M.

A. Kelen. Através dessa colaboração, iniciou-se um esforço para a coleta e a identificação da

taturana. Um dos entrevistados relata uma série de questões que precisavam ser respondidas

no início da investigação:

Ela [Eva] acionou pessoas que poderiam ter um envolvimento com isso e que

poderiam ajudar nessa história. Primeiro, acionaram o pessoal do Sul e não se sabia

exatamente qual era a taturana. Então o Butantan fez uma coisa sistematizada: que

taturana é essa? Você consegue trazer a taturana para cá? Se estabeleceu uma

colaboração entre as regiões para arranjar uma forma de coletar as taturanas e

identificá-las. Perguntaram: como o paciente tem o acidente com a taturana? A

resposta foi: - Por meio de um contato com a cerda da taturana. Pensaram em depilar

ratos, por em contato com a cerda da taturana e ver se esse rato desenvolve

envenenamento. Qual era a sintomatologia do envenenamento? Compararam o

histórico do paciente com o que acontecia com o rato. Perceberam que o rato

desenvolve um problema de coagulação igual ao do paciente. A serpente tem uma

glândula de veneno bem estabelecida, mas a taturana é diferente. Onde é a glândula

de veneno da taturana? Ninguém sabia e não tinham estudos sobre isso. Como sai?

Sai do corpo? Tem a glândula na cerda? Várias perguntas começaram a ser feitas a

partir disso, mas não tinham respostas. (Entrevistado 2)

Era necessário proceder à identificação correta do agente causador do envenenamento

para dar início às pesquisas para o desenvolvimento do soro.

Quando os acidentes com ‘orugas’ (nome bem popular no RS) tiveram um aumento

desenfreado causando hemorragias graves, surgiu a necessidade de se conhecer (ou

identificar corretamente) esse agente etiológico. Houve algumas tentativas de

identificação, porém, erradas, visto que poucos pesquisadores estavem trabalhando

com esse gênero/espécie e também porque para a identificação é necessário estudar

características dos adultos (mariposas). Hoje, olhamos as lagartas e as mariposas de

L. obliqua e reconhecemos de imediato, porém, naquela época ninguém conhecia

nem as lagartas e nem os adultos alados. (entrevistado 4)

A identificação da lagarta causadora dos envenenamentos foi realizada por Claude

Lemaire, em Paris, por meio da criação de lagartas em laboratório que foram enviadas para

que o entomologista fizesse a classificação.

Naquele momento, o maior Entomólogo, especialista nesse grupo era Claude

Lemaire, do Museu de História Natural de Paris. Por iniciativa do pesquisador Irineu

Lorini da EMBRAPA de Passo Fundo, foram enviadas mariposas, que nasceram a

partir de lagartas criadas no laboratório, para a França, para a identificação correta.

Assim, Claude Lemaire identificou os espécimes enviados por Lorini como

pertencentes à ordem Lepidoptera, família Saturniidae, gênero Lonomia, espécie

obliqua . Lonomia obliqua Walker 1855. (entrevistado 4)

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Frente ao conhecimento das especificidades dos acidentes no Brasil, é estabelecida

uma integração com especialistas venezuelanos que tinham informações sobre acidentes

semelhantes, permitindo-se a comparação.

A taturana estava sendo enviada para identificação e chegou à conclusão que era

Lonomia obliqua e não Lonomia achelous. Porque os únicos relatos que tiveram

eram da Dra. Arocha-Piñango da Venezuela, que já descrevia acidentes por

envenenamento com a lagarta. Lá era Lonomia achelous. Aí se viu que a daqui foi

classificada como Lonomia obliqua. Tinha uma diferença de taturana. Também

nessa época a Dra. Eva começou a ter uma conversa com a Dra. Arocha-Piñango da

Venezuela para entender exatamente o que aconteceu lá, para ter uma normalização

do que acontecia. Saber que os pacientes apresentavam uma sintomatologia muito

parecida com a sintomatologia dos pacientes daqui. As duas passaram a ter uma

colaboração. (Entrevistado 2)

O aumento do número de acidentes e sua gravidade exigiam uma resposta rápida. O

conhecimento da molécula requeria um estudo mais demorado e, na visão dos pesquisadores,

uma solução deveria ser produzida em caráter de urgência. A saída encontrada foi produzir

um soro a partir do extrato das cerdas da taturana.

A ideia era pensar o seguinte: cortar as cerdas da taturana, fazer um macerado dessa

cerda para ver se isso induzia envenenamento no rato. Anestesiavam a taturana,

cortavam as cerdas, faziam o macerado que chamavam de ‘extrato bruto da cerda da

taturana’ e isso passou a ser injetado para ver se desenvolvia o mesmo tipo de

sintomatologia que acontecia quando ‘carimbavam’ os ratos com as taturanas.

(Entrevistado 2)

IV.2 Registro na ANVISA e Desenvolvimento de Protocolos de Imunização

O lançamento do soro dependia do seu registro na ANVISA. Essa atividade requer

uma atividade conjunta dos pesquisadores com as outras áreas do Instituto Butantan.

Basicamente, uma vez definida a necessidade, a urgência e a demanda, todas essas

áreas vão se conversar. Não podemos simplesmente desenvolver um produto e sair

produzindo para entregar, mas temos que comprovar a eficiência disso. Deve ser

apresentado a ANVISA e deve ter o registro desse produto, ele passa por um

registro. Então, o que vai fiscalizar e definir tudo isso é a parte final da ANVISA.

Mesmo o Ministério tendo uma demanda e necessidade, nós temos que passar por

todos esses órgãos a fim de estabelecer a eficiência e capacidade de produzir.

(Entrevistado 3)

As atividades regulatórias envolvem várias áreas, como a Divisão Científica, os

Escritórios de Regulamentação e Garantia e a Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e

Produção. Todas as equipes dos setores envolvidos, através de suas lideranças, devem confluir

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para que se estabeleça uma dinâmica de trabalho que facilite o desenvolvimento de lotes

pilotos e a realização de testes. Somente após aprovação do produto, serão definidas as

demandas e dar-se-á o início da produção.

Após a caracterização do veneno, com a determinação de suas atividades proteicas e o

estabelecimento de protocolos de imunização, foi possível determinar esquemas de

imunização e de avaliação do produto após a purificação. Ao lado disso, foram realizados

estudos clínicos em parceria com os profissionais de saúde das regiões afetadas. Segundo o

estudo de Guerini (2006),

A necessidade para um tratamento específico para este tipo de acidente peçonhento

levou os pesquisadores do Instituto Butantan, em São Paulo, a desenvolverem um

soro antilonômico específico (SALon) em equinos. Em 1995, os estados de Santa

Catarina e Rio Grande do Sul, iniciaram os estudos clínicos com o SALon. Em SC,

o estudo durou três anos e o soro foi avaliado em aproximadamente 600 pacientes. O

SALon demostrou ser altamente efetivo em reverter a síndrome hemorrágica

causada pelo veneno da Lonomia obliqua. (p.3)

A realização dos ensaios clínicos foi feita em parceria com os Centros de Informações

Toxicológicas (CIT) do Rio Grande do Sul. Era necessário acionar a rede de equipamentos

hospitalares a fim de encontrar os pacientes, cuja maioria estava no interior do Rio Grande do

Sul. Através do contato com os laboratórios dos hospitais, o CIT mapeava as regiões com

maior número de pacientes, treinava os profissionais locais para coletar as amostras e

identificar os casos suspeitos.

As instituições locais ajudaram com toda a campanha: o transporte para ir aos

lugares, a capacitação de pessoas dos laboratórios que iriam coletar o sangue para os

médicos... (Entrevistado 2)

Foi desenvolvido um tratamento específico para o envenenamento pela lonomia. O

tratamento com o SALon é indicado se houver sangramentos ou alteração no tempo de

coagulação. Estudos demostraram que as alterações na hemostasia ocorriam nas primeiras seis

horas após o acidente e que menos de ¼ das vítimas apresentavam sangramento visível logo

nas primeiras horas. Desse modo, foi recomendado o emprego de exames com maior

sensibilidade, como o tempo de protrombina, para a avaliação inicial. Com base nisso, o

Centro de Informações Toxicológicas de Santa Catarina estabeleceu um protocolo de

diagnóstico e tratamento.

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Segundo Guerini (2006),

Uma das mudanças nesse protocolo, em relação ao recomendado pelo Manual do

Ministério da Saúde em 2001, foi a realização de três exames laboratoriais para o

diagnóstico de alterações na coagulação – o TC, o TP e o TTPA – sendo prioritária a

realização do TP. Além disso, uma vez que os resultados estejam normais, orienta-se

a repetição dos três exames em seis horas após o contato, visando o diagnóstico mais

precoce de alteração na coagulação e buscando evitar as complicações temidas de

insuficiência renal aguda e hemorragia intracraniana. (p.7-8)

O Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos do

Ministério da Saúde, na sua 2ª edição de 2001, possuía um capítulo dedicado à Lonomia sp,

classificando a intensidade dos distúrbios hemostáticos nos pacientes em leve, moderado e

grave. O tratamento consistia em repouso e emprego de agentes antifibriolíticos, nos casos de

manifestações hemorrágicas. Indicava-se a realização do exame de Tempo de Coagulação

(TC) e, nos casos em que este se mostrasse normal, ainda assim o paciente deveria ser

acompanhado por 48 horas com a re-avaliação do TC a cada 12 horas.

Após a realização dos estudos do Centros de Informações Toxicológicas (CIT) do Rio

Grande do Sul em parceria com o Instituto Butantan, passou-se a realizar diagnósticos mais

aperfeiçoados. Os testes laboratoriais foram considerados indispensáveis para o diagnóstico

precoce das alterações na coagulação e o tempo decorrido entre o contato com as lagartas e o

início da soroterapia se revelou fundamental para o sucesso do tratamento.

Com a introdução do soro, o número de óbitos nos pacientes tratados caiu à zero em

Santa Catarina. As complicações, como a insuficiência renal aguda, se manifestam apenas em

pacientes que demoram para receber a soroterapia. Em relação ao processo que levou ao

surgimento do problema dos envenenamentos, um dos entrevistados do estudo sintetiza

dizendo que:

Disso saíram as seguintes lições... não se meche com o meio ambiente de maneira

impune. Nesse caso, a taturana estava num meio que foi retirado, ela é um animal

peçonhento. Ninguém está preocupado com o meio ambiente (...). Há uma

população de seres vivos, as bactérias, quietinhas, ajudando o plâncton a produzir o

alimento para os peixes que alimentam a gente. Não se meche com a natureza, então

preste atenção. (Entrevistado 1)

IV.3 Produção do Soro Antilonômico

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O Instituto Butantan está organizado por meio de três divisões: Pesquisa, Produção de

Soros e Vacinas e Cultural. A agenda de produção é definida pela diretoria da instituição que

chama as áreas envolvidas e comunica o que pretende produzir. Ao surgir uma demanda,

como no caso do soro antilonômico os laboratórios e os pesquisadores se articulam para

responder às necessidades, originando um estudo inicial.

O envolvimento da área de produção ocorre desde o início do desenvolvimento das

pesquisas.

A equipe é envolvida dentro disso, desde o desenvolvimento, do estudo inicial, até a

parte final que é o produto especificamente que vai atender a população. O objetivo

é um só, conhecer para produzir e atender. Então esse é o trabalho. Dentro da área de

produção, tínhamos uma expectativa do desenvolvimento desse trabalho, tendo em

vista que foi um trabalho recorde de envolvimento de pesquisadores e equipe do

Butantan para o desenvolvimento desse soro, pois a demanda era muito alta,

aconteciam acidentes e não existiam tratamentos específicos. (Entrevistado 3)

Inicialmente, o setor de produção de soros do Instituto Butantan foi chamado para

discutir os detalhes da produção de um novo tipo de soro, que utilizaria os mesmos moldes

empregados para o veneno de serpente.

A produção teve como meta a obtenção de uma matéria prima de qualidade e com

atividade suficiente para que, no processo de purificação, fosse garantido o isolamento do

anticorpo e a sua capacidade de neutralizar o envenenamento.

A produção de soros no Instituto Butantan é realizada na fazenda São Joaquim, onde

atualmente 750 cavalos são responsáveis pela produção de treze tipos de soro, dentre os quais

o soro antilonômico. Os animais são acompanhados por veterinários e por uma equipe

específica para o trabalho de imunização e sangrias, atendendo a demanda nacional de soros

do Ministério da Saúde.

Os soros são produzidos exclusivamente pelo Instituto Butantan e são disponibilizados

aos Centros de Informações Toxicológicas, onde são estocados para casos de emergência. Em

caso de necessidade, o Instituto Butantan é acionado para enviar maior quantidade. Existe a

possibilidade de distribuição do soro antilonômico para países vizinhos, como Argentina e

Venezuela, onde também tem acontecido acidentes com a lagarta.

Segundo o Diretor do Serviço de Imunologia do Instituto Butantan, atualmente existe

um programa de coleta das taturanas em parceria com os locais onde acontecem mais

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ocorrências. A sessão de parasitologia recebe os animais e prepara o extrato de lonomia,

utilizado nas imunizações dos cavalos. O extrato é feito com as cerdas das taturanas, por meio

de um trabalho em que se faz o corte, produz-se um macerado e o extrato é preparado.

Suas atividades [do extrato] são testadas, a proteína, e uma vez aprovado pelos

laboratórios é colocado à disposição para imunizar os cavalos, baseado num

esquema baseado na necessidade de produção das ampolas. A Seção de

Parasitologia é quem recebe os animais. Existe um esquema dentro disso onde tem

as caixas específicas para a coleta, uma comunicação entre a cidade que vai mandar,

o dia que chega. O Butantan paga esse transporte, para recebermos os animais vivos

aqui. (Entrevistado 3)

Face às desigualdades nacionais, tendo em vista que o centro de pesquisa e produção

do soro não se localiza próximo dos locais dos acidentes, é necessária organização em rede

para a coleta dos animais e para a distribuição do soro.

Existe um contato da seção de parasitologia junto com as cidades, prefeituras e

centros onde apresentam esses acidentes. Periodicamente a própria equipe do

Butantan (não são eles que fazem as coletas) faz um treinamento com esse pessoal.

Fornecemos o material para fazer a captura destes. Existe um período específico

para essa coleta do final do ano até o início do ano seguinte. Durante esse período se

tem maior atividade desses animais e se tem as coletas que são enviadas para o

Instituto. Os profissionais fazem essas capturas seguindo a orientação da equipe

Butantan, existem estados onde se tem essas coletas como Paraná, Rio Grande do

Sul e até em São Paulo. E uma vez capturadas, enviam para cá, onde já esperamos

os animais preparados para realizar o corte e o macerado. (Entrevistado 3)

As prefeituras e as secretarias de saúde, que são responsáveis pelo fornecimento de

animais vivos, essenciais para a preparação do extrato utilizado na imunização dos cavalos,

são as principais parceiras para a produção do soro antilonômico.

Se não houvesse essa interação com as secretarias e prefeituras desse município a

gente não teria o número de animais suficiente para obter o extrato. (...) Até então

não tínhamos esse fluxo, capturavam e mandavam os animais que chegavam mortos

aqui e não se tinha uma atividade com animal morto. Até o momento que se

desenvolveu um programa de recebimento com a sessão de parasitologia. Houve um

desenvolvimento de uma caixa especifica, melhor para a captura, o transporte sendo

realizado de maneira eficiente e em tempo hábil para receber os animais. A

comunicação ficou melhor, se estabeleceu um fluxo com as prefeituras e as

secretarias de saúde desses municípios. (Entrevistado 3)

O Programa de Controle de Produção (PCP) comanda as atividades de preparo,

imunização, purificação, envasamento e distribuição do soro. Cabe ao PCP acordar a

distribuição do produto com o Ministério da Saúde e com o Programa Nacional de

Imunização (PNI). O produto só é disponibilizado para a entrega no intervalo de tempo

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estabelecido previamente. Antes da distribuição para a rede de saúde, o soro ainda será

avaliado pelo Instituto Nacional de Controle e Saúde.

O Instituto Butantan introduziu uma etapa de cromotografia, visando a purificação do

produto e a consequente minimização do risco de reações adversas. Trata-se de um

investimento de custo alto, que é absorvido pela instituição para dar qualidade ao soro. Desse

modo, obtém-se um produto com qualidade e eficiência.

IV.4 Financiamento para a Pesquisa e a Inovação

As necessidades de financiamento para a produção do soro foram atendidas com

recursos institucionais. No entanto, as pesquisas sobre o veneno dependeram das agências de

fomento. A FAPESP foi procurada para o financiamento dos ensaios clínicos, sobretudo para

a compra dos reagentes.

Novos estudos foram realizados com as moléculas que compõem o veneno, tendo em

vista seu grande potencial biotecnológico. O desenvolvimento de estudos para aperfeiçoar a

produção do soro, diminuindo a necessidade do extrato, permite substituir o plasma dos

animais e, consequentemente, evita reações inespecíficas nos pacientes. Essas pesquisas

revelaram propriedades das moléculas presentes no veneno até então desconhecidas. Não

obstante o Instituto Butantan ter como missão realizar pesquisas imunobiológicas, essas

descobertas apresentam grande potencial para a solução de outros problemas de saúde

pública, por exemplo, na cicatrização dos diabéticos.

Percebemos que essa molécula tem a capacidade de, em uma situação de stress, não

deixar as células morrerem. Isso significa um potencial biotecnológico para várias

coisas. (Entrevistado 2)

A análise química de venenos possui potencial para a descoberta de novas moléculas

de toxinas com finalidade terapêutica. Pesquisadores do Centro de Toxinologia Aplicada

(CAT), constituído em 2000, isolaram e caracterizaram quimicamente diversas dessas toxinas.

Essas proteínas foram patenteadas e se tornaram pontos de partida para o desenvolvimento de

inovação farmacêutica em parceria com indústrias locais. O financiamento para a criação do

CAT foi obtido através do primeiro edital CEPID da FAPESP. Essa modalidade de

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financiamento propiciou, no Instituto Butantan, as condições para a criação de um centro de

toxinas e resposta imune fundamentado nas abordagens atuais da biologia sistêmica.

Anteriormente ao CAT CEPID, o Instituto Butantan era concebido unicamente como

produtor de soros e vacinas. O CAT-CEPID, patrocinado pela FAPESP, permitiu a entrada do

setor privado e das indústrias em parcerias com o Instituto Butantan. As mudanças iniciadas

por meio do CEPID, no início dos anos 2000, geraram um novo dinamismo na instituição,

necessária para o desenvolvimento da inovação, em termos de fortalecimento do capital

humano e de infraestrutura para a pesquisa. O Instituto Butantan, que já vinha trabalhando

com várias possibilidades de inovação, desenvolveu a capacidade de gerar novos produtos

como, por exemplo, anticorpos monoclonais, toxinas, impactantes, entre outros. (Ibañez,

2015)

A pesquisa do potencial biotecnológico das moléculas que compõem o veneno da

Lonomia levou a sua inclusão no projeto CAT CEPID da FAPESP. Segundo um dos

entrevistados

Essa trajetória produziu um acumulo de ideias, ajudou a mudar o entendimento

jurídico de proteção. O tipo de pesquisa é feito dentro de uma instituição voltada

para produzir imuno-biológico e encontra outra coisa importante para remodelagem

tecidual. Deve-se pensar nessa outra coisa, nesse caso entra o CEPID. Quando

entramos no projeto, propomos esse tipo de moléculas que geraram patentes e

geraram parcerias público privada. (Entrevistado 2)

No entanto, por se tratar de uma instituição pública, foi necessário criar formas de se

evitar a insegurança jurídica frente aos limites impostos pela legislação. O Instituto Butantan

não possuía autonomia jurídica para a realização de contrato com o setor privado na geração

de tecnologias alheias à missão institucional.

Para poder fazer inovações no Brasil hoje em dia, a pesquisa (ideia) já deve estar

desenvolvida com a menor quantidade possível de riscos para ser apresentada às

empresas privadas. Um grande passo que o setor público enfrenta é conciliar o

benefício para a sociedade e trazer riquezas para a indústria ao mesmo tempo, pois

essas são o meio de gerar retorno para a sociedade. (Entrevistado 2)

Os projetos CAT CEPID foram marcantes para essa discussão. Buscou-se construir

novos entendimentos para facilitar a realização de parcerias público-privadas, aproximando os

investidores e incentivando a geração de inovações.

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V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amartya Sen, economista cuja contribuição adquiriu grande importância para o estudo

das relações entre sociedade e Estado no século XXI, procura demonstrar que o

desenvolvimento de um país está intrinsecamente ligado às oportunidades que sua população

possui para fazer escolhas e exercer a cidadania. Isso inclui a garantia dos direitos humanos e

dos direitos sociais, como saúde e educação. Para o autor, a centralidade da provisão pública

de recursos amplificadores das capacidades é um elemento fundamental para o

desenvolvimento econômico no século XXI. (Sen, 2010) O desenvolvimento, na sua visão,

consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades

das pessoas de exercer sua condição de cidadão.

As capacidades, na teoria de Amartya Sem, são uma condição essencial para o

desenvolvimento. Elas podem ser entendidas como conhecimentos e habilidades que as

pessoas possuem, interligadas por redes de aprendizado e comunicação. Na perspectiva desse

autor, o principal motor do crescimento econômico são as capacidades em conjunto com a

garantia do bem estar.

Para Peter B. Evans (2012), que pretende incorporar a teoria de Amartya Sem às

questões sobre ciência e inovação, as instituições estatais têm um papel fundamental para uma

bem sucedida construção do desenvolvimento. Segundo o autor, “A ideia de Estado

desenvolvimentista posiciona instituições públicas sólidas e competentes no centro da matriz

desenvolvimentista.” (p.35) Analisando as vertentes da teoria do desenvolvimento, Evans

conclui que elas convergem no sentido de que, para acelerar o crescimento econômico no

século XXI, é imperativo que haja um aumento da efetiva utilização do atual acervo de ideias

e a geração de novas ideias, adequadas para as circunstâncias particulares de cada país ou

região. O desenvolvimento, assim, depende de redes e de instituições com capacidade de

aprendizado e de expansão do acervo de ideias.

O debate democrático ocupa o primeiro lugar entre as capacidades que devem ser

incentivadas pelo Estado. Estruturas democráticas ativas são o substrato para o crescimento

econômico. Evans, citando Rodrik, afirma que a democracia é uma metainstituição que

promove outras instituições de alta qualidade. Essa é a dinâmica que permitirá o crescimento

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econômico no século XXI, alerta o autor. Consequentemente, a deliberação pública é o único

meio justificável de ordenar as capacidades e as instituições políticas e a sociedade civil estão

no centro do processo de definição de metas desenvolvimentistas.

A realização do presente estudo de caso aponta que as instituições públicas de

pesquisa, como o Instituto Butantan, tem um importante papel a desempenhar para contribuir

com o desenvolvimento social. Nota-se, no desenvolvimento do soro anti-lonômico, que esse

processo foi permeado pela aprendizagem em diversas dimensões. Na medida em que o

envenenamento pela lonomia foi percebido e reconhecido como um problema relevante,

diversos foram os aprendizados até que o soro estivesse disponível para a população nos

serviços de saúde. Tais aprendizados referem-se não apenas ao desenvolvimento de pesquisa

básica, mas também à solução de problemas relacionados à coleta e transporte dos animais, à

capacitação dos profissionais para o emprego do soro e à educação da população. Sem a

presença de uma rede de atores institucionais e individuais comprometido com a solução do

problema, a população não teria condições de reconhecer os acidentes causados pela lonomia

e de saber a importância de buscar os serviços de saúde rapidamente.

Diversos atores participaram para a construção da resposta ao envenenamento pela

lonomia, incluindo serviços públicos e empresas, sobretudo aquelas relacionadas à

agricultura, que colaboraram para a divulgação da informação em saúde. Destaca-se, também,

a interação com os órgãos regulatórios, com financiadores, com serviços de vigilância

sanitária, com o Ministério da Saúde e com instituições de ensino, imprescindíveis para os

estudos clínicos e para o estabelecimento de protocolos seguros para a utilização do soro anti-

lonômico. Destaca-se que todos esses atores participaram de uma rede de aprendizagem e

comunicação, cuja presença foi essencial para a construção de uma rápida resposta aos

envenenamentos.

Do ponto de vista interno ao Instituto Butantan, a articulação entre as áreas da

pesquisa e da produção é fundamental para que o conhecimento se transforme em um produto

acessível à população. Observa-se que as possibilidades de aplicação dos resultados das

pesquisas com o veneno da lonomia ampliaram-se para muito além do soro, sobretudo por

meio da presença de linhas de financiamento para a inovação, como o CAT-CEPID. Novas

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perguntas surgiram, exigindo a ampliação dos limites da missão institucional e novas

aprendizagens. Esse fato, somado a outras situações semelhantes, tem potencial para gerar

uma série de mudanças institucionais (necessidade de registrar patentes, de realizar a gestão

da inovação, de realizar parcerias com a indústria farmacêutica, de transferir tecnologias,

entre outras) favoráveis à criação de um ambiente empreendedor em consonância com a busca

por um novo paradigma para as relações entre a ciência e a sociedade democrática.

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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armadilhas. In: VIANA, Ana Luiza D’Avila, IBAÑEZ, Nelson; BOUSQUAT, Aylene.

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recomendado pelo CIT/SC nos envenenamentos provocados por lagartas da espécie Lonomia

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IBAÑEZ, Nelson et al. O SUS e a inovação em saúde. In: TOMA, Tereza et al. Avaliação de

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STEPAN, Nancy. Gênese e Evolução da Ciência Brasileira. Rio de Janeiro: Artenova, 1976.

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