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7 Tempo Desenvolvimento, trabalho e reforma agrária no Brasil, 1950-1964 Ana Maria dos Santos * “Ai de vós os que ajuntais casa a casa, e ides acrescentando campo a campo até chegar ao fim de todo o terreno; acaso habitais vós só no meio da terra?” (Isaías, V-8). Com a citação bíblica o deputado Carlos de Britto Velho apresentava, em 1961, suas “Bases e diretrizes para a reforma agrária no Brasil” como emenda a um projeto que fora apresentado sete anos antes. E acrescentava que a reforma era irreprimível, por bem ou por mal: Ou a realizam com violência , com sangue, com opressão ou contra a liberdade; ou a fazem os verdadeiros democratas em moldes que beneficiem com justiça a todos e se resguardem as liberdades. Noutras palavras – ou a reforma agrária com supressão da propriedade e da liberdade, ou a reforma agrária com garantias para a propriedade e para a liberdade. 1 O sentimento de urgência expressado pelo deputado não era de todo descabido: a questão agrária conquistava o debate político ao mesmo tempo que as pressões do campo aumentavam e tomavam outra dimensão, mais assustadora. Em 1963, o deputado Peixoto da Silveira, do PSD de Goiás, chegou a propor um plebiscito sobre reforma agrária, justificando-o com as graves ameaças que pesavam sobre a nação, com a agitação dentro e fora do Congresso causada pela discussão da reforma agrária. 2 Os movimentos rurais se disseminavam, a mobilização dos trabalhadores rurais aumentava, deixando de ter caráter local, com formas mais articuladas e abrangentes de organização, lutando pelos direitos trabalhistas do homem do campo, pela previdência social e pela reforma agrária. 3 Qual seria o lugar dos trabalhadores rurais nos projetos de desenvolvimento e a sua participação na democracia? Qual o papel da * Professora aposentada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, na área de História da América Contemporânea e História Agrária. 1. Câmara dos Deputados (Brasil), Emendas ao Projeto Nº 4389-A / 1954 encaminhadas à Comissão de Consti- tuição e Justiça e à Comissão Especial da Câmara dos Deputados. 2. Idem, Projeto Nº 353 de 1963. 3. Para uma periodização e uma visão geral dos movimentos sociais no campo ver Leonilde Sérvolo de Medei- ros, História dos movimentos sociais no campo , Rio de Janeiro, FASE, 1989.

Desenvolvimento, Trabalho e Reforma Agraria No Brasil 1950-1964

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    Desenvolvimento, trabalho e reforma agrria no Brasil, 1950-1964 Ana Maria dos Santos *

    Ai de vs os que ajuntais casa a casa, e ides acrescentando campo a campo at chegar ao fim de todo o terreno; acaso habitais vs s no meio da terra? (Isaas, V-8). Com a citao bblica o deputado Carlos de Britto Velho apresentava, em 1961, suas Bases e diretrizes para a reforma agrria no Brasil como emenda a um projeto que fora apresentado sete anos antes. E acrescentava que a reforma era irreprimvel, por bem ou por mal:

    Ou a realizam com violncia , com sangue, com opresso ou contra a liberdade; ou a fazem os verdadeiros democratas em moldes que beneficiem com justia a todos e se resguardem as liberdades. Noutras palavras ou a reforma agrria com supresso da propriedade e da liberdade, ou a reforma agrria com garantias para a propriedade e para a liberdade.1

    O sentimento de urgncia expressado pelo deputado no era de todo descabido: a questo agrria conquistava o debate poltico ao mesmo tempo que as presses do campo aumentavam e tomavam outra dimenso, mais assustadora. Em 1963, o deputado Peixoto da Silveira, do PSD de Gois, chegou a propor um plebiscito sobre reforma agrria, justificando-o com as graves ameaas que pesavam sobre a nao, com a agitao dentro e fora do Congresso causada pela discusso da reforma agrria.2 Os movimentos rurais se disseminavam, a mobilizao dos trabalhadores rurais aumentava, deixando de ter carter local, com formas mais articuladas e abrangentes de organizao, lutando pelos direitos trabalhistas do homem do campo, pela previdncia social e pela reforma agrria.3 Qual seria o lugar dos trabalhadores rurais nos projetos de desenvolvimento e a sua participao na democracia? Qual o papel da * Professora aposentada do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, na rea de Histria da Amrica Contempornea e Histria Agrria. 1. Cmara dos Deputados (Brasil), Emendas ao Projeto N 4389-A / 1954 encaminhadas Comisso de Consti-tuio e Justia e Comisso Especial da Cmara dos Deputados. 2. Idem, Projeto N 353 de 1963. 3. Para uma periodizao e uma viso geral dos movimentos sociais no campo ver Leonilde Srvolo de Medei-ros, Histria dos movimentos sociais no campo, Rio de Janeiro, FASE, 1989.

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    agricultura no desenvolvimento? E, sobretudo, qual o papel da reforma agrria: por que, para que e para quem faz-la?

    Este trabalho parte de um estudo maior sobre as propostas de reforma agrria que freqentaram a discusso poltica no Brasil a partir da dcada de 1950 e at o momento em que o golpe militar interrompeu o processo democrtico e imps um modelo de poltica agrria, em 1964. O objetivo mais amplo desse projeto a identificao do que foi concebido, no espao do poder Legislativo, como uma questo agrria no perodo, e a anlise dos papis atribudos agricultura, s relaes socioeconmicas rurais e mudana estrutural no campo. Trataremos ento de localizar os princpios de formulao de uma poltica agrria em uma poca de aprofundamento do desenvolvimento industrial, de associao mais intensa com o capital internacional para financiamento da nova fase da industrializao e de nova orientao na atuao do Estado, que ainda se beneficiava dos efeitos de um pacto populista e procurava estend-lo ao campo, no final do perodo democrtico.

    Embora o debate sobre reforma agrria tenha conquistado diversos segmentos da sociedade brasileira, privilegiamos o Congresso, posto que nele se manifestavam mais claramente os conflitos entre os diferentes grupos. Atravs do estudo dos projetos apresentados ao debate parlamentar e relativos agricultura ou soluo dos problemas rurais, procuraremos identificar as posies e os princpios correntes que condicionaram um modelo de reforma agrria.

    A dcada de 1950 assistiu ao reconhecimento de que havia uma questo agrria para o capitalismo que se pretendia desenvolver no Brasil.4 No que fosse um debate novo. J no sculo XIX, na crise da escravido e seguindo-se a abolio da escravatura, havia a preocupao com o atraso representado pela agricultura brasileira. Na Repblica Velha (1889-1930) foram freqentes as crticas ao latifndio e s estruturas agrrias arcaicas dominantes no campo, com algumas propostas de reforma e modernizao. A poltica de industrializao, aps a dcada de 1930, no modificou as bases das relaes sociais e de propriedade no campo, visto que o pacto populista que a viabilizava exclua as populaes rurais, como penhor do apoio dos grandes proprietrios.5

    Mas nas dcadas de 1950 e 1960, com algumas diferenas em relao s tradicionais propostas de modernizao e diversificao da agricultura, os projetos apresentados no mbito do poder Legislativo enfatizavam a reforma agrria como mecanismo de superao dos obstculos ao desenvolvimento e dos desequi lbrios resultantes do modelo econmico privilegiado no perodo. A industrializao brasileira esgotava a sua primeira etapa e o pacto populista dava sinais de crise, necessitando ambos de aes mais avanadas para dar continuidade ao projeto desenvolvimentista e 4. Sobre a questo agrria em geral e no Brasil em particular, ver Samir Amin e Kostas Vergopoulos, A questo agrria e o capitalismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Alain de Janvry, The Agrarian Question and Refor-mism in Latin America, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1981; Caio Prado Jnior, A questo agrria no Brasil, 2 ed., So Paulo, Brasiliense, 1979. 5. Para uma viso do perodo em questo ver, entre outros: Thomas Skidmore, Brasil de Getlio Vargas a Caste-lo Branco, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Caio Navarro de Toledo, O governo Goulart e o golpe de 64, So Paulo, Brasiliense, 1982; Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e partidos polticos no Brasil (1930-1964), So Paulo, Alfa-Omega, 1983; Francisco Weffort, O populismo na poltica brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; Aspsia Alcntara Camargo, A questo agrria: crise de poder e reformas de base (1930-1964), in Boris Fausto (org.), Histria geral da civilizao brasileira. O Brasil republicano, So Paulo, Difel, 1981. v. III, t.3.

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    integrar setores sociais at ento deixados de fora. Isto poderia significar o rompimento, pelo menos em parte, com interesses dominantes no campo.

    Os elementos para uma poltica agrria decorriam de uma nova viso da agricultura como coadjuvante do projeto de desenvolvimento nacional, ainda na dcada de 1950.6 Uma reforma agrria, sem a qual nenhuma poltica agrcola seria possvel, deveria capacitar a agricultura para atender s novas necessidades de acumulao: mercado para os produtos industriais; fornecimento de insumos e alimentos baratos para a indstria e trabalhadores; financiamento da produo industrial; modernizao da produo. Alm disso, deveria a agricultura ajudar a prevenir a instabilidade no meio rural e a integrar politicamente o homem do campo, como foi claramente proposto em 1954 pelo deputado Coutinho Cavalcanti.7

    Entretanto, para o deputado, os fins bsicos da reforma agrria no eram filantrpicos e sim econmicos: amparar o trabalhador e assistir o agricultor estava no interesse da produo e do bem-estar social, dentro dos princpios da justia social e de um plano econmico orgnico e sem acarretar prejuzos ao errio pblico. A emenda de Britto Velho procurava colocar seu projeto em outra perspectiva: o de evitar a proletarizao das massas rurais via acesso propriedade da terra (ver nota 1). Mas os fins desenvolvimentistas dos projetos de reforma agrria sempre estiveram frente dos interesses do trabalho e do trabalhador.

    Nessas duas dcadas, at 1964, sob o rtulo de reforma agrria, registraram -se vrias proposies com objetivos diversos, alguns j conhecidos: obteno de crditos, subsdios e isenes tarifrias e fiscais; poltica de estmulo produo, pequena lavoura, modernizao, recuperao da agricultura em regies especficas do pas; fundao de ncleos coloniais e ocupao das terras devolutas e das fronteiras do pas; estabelecimento de prmios e assistncia ao agricultor. No entanto, foi nessa poca que se enfatizou a idia de interveno no direito e nas relaes de propriedade para aumentar o nmero de proprietrios, alterar e modernizar a estrutura fundiria do pas.

    Os problemas no campo foram conquistando a ateno do Executivo e do Congresso, com pronunciamentos, pareceres, projetos de lei. Em 1951 foi constituda a Comisso Nacional de Poltica Agrria (extinta em 1962) que props o Conselho Nacional de Reforma Agrria; em 1954 criou-se o Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao. Ainda em 1953 foi proposta a lei de desapropriao por interesse social, que no teve continuidade, para renascer como uma das reformas de base quase dez anos depois.8

    Os projetos tambm tomaram outro formato. Seus autores deixaram de se preocupar com a soluo de problemas individualizados na agricultura para apresentar planos mais completos de reforma agrria, que incluam esclarecedoras justificativas e o estabelecimento de formas e mecanismos de execut-la. Embora houvesse um certo 6. Ver tambm Leonilde Srvolo de Medeiros, A questo da reforma agrria no Brasil , 1945-1964, dissertao de Mestrado, So Paulo, USP, 1983; Jos Gomes da Silva. A reforma agrria no Brasil (frustrao camponesa ou instrumento de desenvolvimento?), Rio de Janeiro, Zahar, 1971. 7. Cmara dos Deputados (Brasil), Projeto n 4.389, de 12 de maio de 1954, apresentado pelo deputado Coutinho Cavalcanti. Ele antecipa essas idias quanto aos papis da reforma agrria. Tais projetos foram conseguidos em folhetos (separatas) produzidos pela Cmara dos Deputados. Daqui em diante colocaremos entre parnteses o nmero e o ano de apresentao dos demais projetos. 8. Ben-Hur Raposo, Reforma agrria para o Brasil, Fundo de Cultura, [s.d.], pp. 46-62; Aspsia Camargo. "A questo agrria ...", op. cit., pp. 189-90.

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    consenso quanto necessidade de modificao do sistema de uso e posse da terra, as definies do que seria essa reforma agrria eram as mais dspares, influenciadas pelos interesses polticos e econmicos em jogo e, at mesmo, pelos inimigos da reforma. Mas definia-se claramente que o campo da discusso da reforma agrria era o Congresso, onde se poderiam articular, de maneira vista como democrtica, os interesses dos diversos setores da economia e da sociedade brasileira, para encontrar um projeto que satisfizesse a todo o pas, dentro dos preceitos constitucionais de 1946 sobre a propriedade privada. conveniente lembrar que as mudanas polticas levavam alguns grupos no poder a se aproximarem dos trabalhadores rurais para compor ou recompor as suas bases partidrias.

    A insatisfao dos trabalhadores rurais tambm crescia junto com a sua organizao: as Ligas Camponesas surgiram em 1955 e o sistema sindical no campo j se estruturava, para se completar na dcada de 1960. No princpio aceitava-se o projeto conservador de 1954, do deputado Coutinho Cavalcanti: somente se reivindicava o aumento da participao dos representantes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais a serem criados nas comisses municipais para levantamento das terras passveis de desapropriao.9 Logo esses trabalhadores se inclinariam para projetos mais radicais, medida que seu nvel de mobilizao aumentava.10 No Congresso, especialmente quando se entrava na dcada de 1960, disseminou-se a idia de que alguma reforma agrria era necessria, em face das presses mais radicais, porm contida dentro dos princpios liberais e democrticos.

    Aqui analisaremos algumas das iniciativas parlamentares, na Cmara dos Deputados, no ano de 1963, ainda no governo de Joo Goulart. Os poderes tinham sido devolvidos ao presidente atravs de plebiscito. A crise da aliana populista se precipitava. Nesse momento pressionava-se de forma mais aguda pela soluo da questo agrria dentro do contexto da discusso das reformas de base e das modificaes na Constituio atravs de emendas. A questo ia alm dos projetos de lei, caminhando na direo das reformas constitucionais que viabilizassem a reforma agrria.

    Intensificou-se ento a apresentao de projetos relativos aos problemas agrrios na Cmara dos Deputados, ao mesmo tempo que eram estimuladas as emendas constitucionais com vistas tanto reforma quanto definio do direito de propriedade privada da terra. Boa parte desses projetos, se no propunha uma reforma agrria, apresentava mecanismos que pudessem viabiliz-la. Outros apontavam formas de atender s demandas do campo e do desenvolvimento, evitando a soluo mais radical da reforma agrria. O presidente da Repblica e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) avanavam propostas para resolver os problemas do campo como resposta ao estrangulamento interno e ao crescimento das tenses que eles mesmos ajudavam a precipitar. O Partido Social Democrtico (PSD) e a Unio Democrtica Nacional (UDN) eram menos radicais.11 De qualquer maneira, colocava-se a questo

    9. Id., ibid., pp. 51-53. 10. Para uma sntese da evoluo das lutas camponesas no Brasil ver Jos de Souza Martins, Los campesinos y la poltica en el Brasil, in Pablo Gonzlez Casanova (coordenador), Historia poltica de los campesinos latinoamericanos, Mxico, Siglo Veintiuno, 1985, v.4, pp. 9-83; Fernando Antonio Azevedo, As ligas camponesas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

    11. Afrnio de Carvalho, Reforma agrria, Rio de Janeiro, Edies Cruzeiro, 1963, pp. 247-269.

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    de definir uma reforma agrria, seus objetivos, onde e como apl ic-la, os instrumentos para conseguir terras e distribu-las, os recursos para financi-la e as instituies para conduzi-la.

    Os projetos e emendas apresentados permitem-nos ver as idias recorrentes sobre a necessidade de uma reforma agrria ou sobre que problemas se queria resolver com ela e qual deveria ser o seu alcance. Devemos lembrar que essas razes tambm justificavam propostas que no vinham com o rtulo de reforma agrria, mas que pretendiam alcanar alguns dos seus objetivos. Este seria o caso da proposta de taxao progressiva sobre terras improdutivas (emenda 4/63) ou de reformulao agrria (233/63).

    De maneira geral, e coerente com seus objetivos desenvolvimentistas, a reforma agrria seria necessria para eliminar as dificuldades e os impedimentos ao aumento da produo e ao abastecimento dos mercados de alimentos ou de matrias-primas importantes para o desenvolvimento econmico do pas , impostos pela extenso territorial, pelo mau aproveitamento ou improdutividade e pela localizao de algumas terras (emenda 4225/62). A comisso que avaliou a emenda constitucional n 1/63 sublinhava a necessidade de: superar a incapacidade demonstrada pela agricultura de acompanhar o processo de crescimento do pas, o que se traduzia em empecilho ao progresso da economia; remover as causas que impediam a melhoria das condies de explorao da terra e determinavam os baixos nveis de produtividade e de renda da agricultura brasileira; incorporar reas ao desenvolvimento nacional.

    A ampliao do mercado interno, a satisfao das demandas da industrializao e do abastecimento eram uma motivao importante. O projeto apresentado por Leonel Brizola enfatizava a reforma agrria como meio de aumentar e diversificar a oferta de produtos agrcolas em funo do crescimento dos mercados interno e externo e das solicitaes dos centros de consumo (120/63) . A isto se acrescentava a necessidade de promover a cobertura da frente interna da produo, isto , a industrializao, atravs da produo de matrias-primas e da incorporao economia nacional de reas inexploradas ou mal cultivadas (233 e 234/63).

    O aumento da produtividade e a ampliao do mercado interno viriam tambm atravs de uma reforma agrria que possibilitasse a melhoria das condies de vida do trabalhador rural e eliminasse os extremos da estratificao social no campo. Havia que recuperar urgentemente o subnutrido homem do campo: erguer o nvel de vida das populaes rurais, melhorar sua produtividade e aumentar o volume da produo agrcola. Era necessrio desenvolver e difundir a propriedade privada rural e facilitar os meios para a sua aquisio, esperando-se, como conseqncia, a criao de uma classe mdia rural, prspera de pequenos e mdios proprietrios tornados consumidores de maior poder aquisitivo (4.225/62, 390/63, 809/63). O acesso terra prpria, associado ao estmulo s formas associativas, seria a condio para alcanar tal fim.

    Se em alguns projetos transparecia a crena quase ingnua em um efeito automtico do cultivo de terra prpria sobre a melhoria da produtividade e do consumo, em outros percebia-se que a reforma no devia se esgotar na superao e diviso do latifndio. Este devia ser eliminado enquanto antieconmico e anti-social, dando lugar a um maior nmero de propriedades familiares, estimulando -se tambm o desenvolvimento de empresas agropecurias (120/63). Da que a reforma agrria no

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    seria apenas a correo da estrutura agrria (emenda 1/63), mas a colonizao, o impulso produo, a assistncia tcnica e o financiamento ao aquinhoado com a terra prpria, fatores capazes de melhorar a produo agropecuria (234/63). O incentivo a planos de industrializao rural tambm conquistava espao nas propostas (809/63). A reforma agrria precisava estar associada a uma poltica agrcola para que seus efeitos fossem sentidos no desenvolvimento do pas.

    A busca da estabilidade, do bem-estar e da justia social e a garantia das instituies democrticas tambm eram motivos fortemente alegados para defender uma reforma agrria que corrigisse os desnveis de renda no campo, superasse as relaes de trabalho e de propriedade tradicionais e melhorasse o nvel de vida das populaes rurais, evitando as fontes de inquietaes sociais e as ameaas ao pleno funcionamento da democracia (4225/62, 234/63, emenda 1/63). Havia que valorizar economicamente o homem rural, melhorar seus ndices de sade e de instruo, assegurar -lhe os direitos de trabalhador (277/63) e propiciar -lhe as condies adequadas de habitao, de sade e de alimentao, alm da assistncia ao produtor e do estmulo pequena indstria e ao artesanato rurais (809/63).

    Se havia um consenso quanto necessidade de reforma agrria, variava o entendimento do que ela deveria constituir. Uma viso comum s vrias propostas era de que realizar a reforma agrria seria possibilitar o acesso terra ou explorao agrcola por vrios meios e no apenas pela redistribuio da propriedade j existente, embora no geral se aceitasse alguma correo da estrutura fundiria, a regulamentao das relaes de propriedade e de trabalho, a disciplina na posse e no uso da terra. Tal reforma seria parte de uma poltica de justia social e de redistribuio de renda (emenda 1/63) e incluiria a subdiviso da grande propriedade s admitida por alguns atravs de um imposto de renda progressivo que estimulasse os proprietrios a promov-la (234/63) , com a conseqente facilitao do acesso terra por um maior nmero de trabalhadores (emenda 4/63).

    Na proposta de Leonel Brizola a reforma viria para disciplinar o uso da propriedade rural em funo do bem-estar social e para assegurar o acesso terra para fins econmicos (120/63). Na de Plnio Salgado, reforma agrria era a reviso das relaes jurdicas, econmicas e sociais relativas propriedade agropecuria e ao trabalho rural, para uma distribuio mais justa e aproveitamento melhor da terra e da renda, visando um desenvolvimento harmnico, porm atravs da compra e venda e de projetos de colonizao, especialmente privada (277/63). Outros se afastavam da idia de redistribuio para propor, como reforma agrria, a colonizao em terras de domnio pblico e o arrendamento (234/63).

    Uma das preocupaes era por quais instrumentos se faria a reforma agrria. Duas vias se apresentavam no perodo que selecionamos, ambas descartando a participao direta e substancial das organizaes camponesas e do movimento dos trabalhadores rurais. Uma procurava o apoio das massas rurais para o projeto poltico da poca de Joo Goulart, enquanto a outra, embora evitando se colocar frontalmente contra as reivindicaes do campo, tratava de descartar projetos mais radicais.12

    Uma das vias seriam as leis apresentadas no Congresso por deputados, senadores ou bancadas que representassem a sociedade, discutidas no mbito do poder

    12. Aspsia Camargo, A questo agrria ..., op. cit., pp. 128-129 e passim.

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    Legislativo, visando-se alcanar um consenso entre o que os vrios grupos pensavam constituir a questo agrria no Brasil, quais as alternativas para a sua soluo, qual o espao da reforma agrria nessa soluo e, uma vez aceita, que tipo de reforma agrria seria adequada ao pas. Sublinhava-se a necessidade de que fossem leis livremente votadas pelos representantes do povo de acordo com as aspiraes desse mesmo povo (1657/64). Enfatizava-se a conduo da reforma de maneira ordeira e dentro da lei e dos padres democrticos. A reforma viria, assim, como um grande acordo entre as elites ou nunca viria, como de fato hoje podemos observar, mas essa foi a via considerada como democrtica, embora excluindo a maioria da populao rural. Desse modo, houve uma profuso de leis nesse sentido, com propostas que repetiam, incorporavam ou descartavam proposies de outros projetos apresentados no ano de 1963.

    A outra via era a interveno mais concreta do Executivo, atravs de projetos, comisses, decretos, regulamentos e interpretaes dos dispositivos constitucionais. O recurso mais radical eram as emendas constitucionais que consagrassem a reforma agrria na lei maior, ou mais especificamente, um tipo de reforma agrria que se relacionasse estreitamente com mudanas nas garantias do direito de propriedade. No caso em questo, essa via era tida como no democrtica, posto que se associava com as reformas de base necessrias para continuidade de um projeto poltico do governo de Joo Goulart. Por outro lado, havia a conscincia de que sem as modificaes constitucionais, as leis de reforma agrria no seriam eficazes.

    De maneira geral, a participao dos trabalhadores rurais, atravs de suas organizaes autnomas, e as reivindicaes camponesas se perderam e se diluram nesse emaranhado de discusses. A reforma deveria vir de cima. Isto se tornava tambm visvel quando se tratava da criao dos rgos gestores da reforma agrria. O projeto 4.225/62 criava uma Comisso Federal de Reforma Agrria (COFRA), subordinada ao Conselho de Ministros, com sede no Distrito Federal e jurisdio em todo o pas. Deveria executar a lei e elaborar o planejamento geral da reforma agrria, sendo composta de cinco membros de reconhecida competncia e reputao ilibada, nomeados pelo presidente aps aprovao pelo Senado, com mandato de cinco anos renovado anualmente pelo quinto. Em cada estado e territrio haveria uma subcomisso tambm nomeada pelo presidente.

    Quando se previa a participao das organizaes camponesas, especialmente atravs dos sindicatos de trabalhadores rurais, esta era sufocada pelos membros nomeados pelos governos federal e estaduais, por aqueles indicados pelos proprietrios rurais, por diversas associaes de carter tcnico e profissional e pelos organismos governamentais relacionados com problemas da agricultura e afins.13 Assim, nos organismos voltados para regulamentar, planejar e executar a reforma agrria e, mais especificamente, para a distribuio de terras, providenciava-se a participao tanto dos ministrios (da Agricultura e outros), quanto de instituies (SUDENE, Banco do Brasil e Conselho Nacional de Economia) e de entidades diversas (Confederao Rural

    13. Com alguma variaes, este era o caso dos organismos criados pela emenda 5/63 e pelos projetos 93-B/63 (Estatuto da Terra); 120/63 (Leonel Brizola); 233/63 (de reformulao agrria); 234/63 ( de Herbert Levy); 277/63 ( de Plnio Salgado); 390/63 (criando o Fundo Agrrio Nacional); 702/63 ( instituindo o Plano Agrrio Nacional).

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    Brasileira, Sociedade Brasileira de Agronomia, Sociedade Brasileira de Veterinria, Confederao Nacional das Indstria, Ordem dos Economistas do Brasil, entre outras).

    Os rgos incumbidos da execuo da reforma agrria eram freqentemente planejados como autarquias dotadas de personalidade jurdica ligada ao ministrio da Agricultura (93-B/63 e 809/63). Igualmente se procurava colocar o rgo gestor da reforma agrria sob o controle direto do Executivo, de acordo com o esprito das outras reformas de base, dando ao seu responsvel o status de ministro. Era o caso da Superintendncia da Poltica Agrria (SUPRA), criada em 1962 para gerir a poltica agrria nacional, includa no projeto do Estatuto da Terra de 1963 e extinta em 1964: no projeto 120/63 propunha-se a sua subordinao diretamente presidncia.14

    Apesar dos diferentes graus de conservadorismo, poucas proposies negavam que havia necessidade de se promover o acesso propriedade da terra como base para dar continuidade ao desenvolvimento econmico e promover a estabilidade social, embora algumas evitassem o prprio termo reforma agrria e preferissem outros, com implicaes menos redistributivistas e mais relacionados com uma poltica agrcola. A questo, portanto, era definir como se obteria as terras para a reforma, garantindo e, ao mesmo tempo, estendendo o direito de propriedade, mas dentro de limites seguros.

    Para solucionar essa questo o alvo das emendas eram os artigos 141 (especialmente o pargrafo 16) e 147 da Constituio Federal, que tratavam das desapropriaes por interesse social e por utilidade pblica. No ano anterior, tinham sido apresentados projetos regulamentando esses artigos e fixando os casos em que seriam aplicados, com a finalidade explcita de uma reforma agrria (3.848 e 4225/62). Restaurado o presidencialismo, o governo e os trabalhistas voltaram carga. A emenda constitucional n 1/63 alterava a forma de indenizao nos casos de desapropriao por interesse social; entre os proponentes estavam Bocayuva Cunha, Leonel Brizola e Franco Montoro. Da mesma maneira, a emenda n 5/63 visava os artigos citados, garantindo a indenizao em dinheiro no caso de desapropriao por utilidade pblica e em ttulos para as terras inaproveitadas, e promovendo uma reforma agrria. Era assinada tambm por alguns trabalhistas, entre os quais o prprio Bocayuva Cunha.

    A proposta de emenda constitucional n 1/63 tambm estabelecia o arrendamento compulsrio de propriedades rurais como passo inicial para a desapropriao definitiva, a fim de que cada famlia pudesse ter uma propriedade que satisfizesse o mnimo vital que a lei viesse fixar. A indenizao seria atravs de ttulos da dvida pblica, resgatveis em prestaes sujeitas correo monetria. O parecer do relator, Plnio Sampaio, do Partido Democrata Cristo (PDC), procurava garantir que a lei promovesse a reforma agrria e que a indenizao por ttulos somente atingisse as terras voltadas para reforma, inaproveitadas ou exploradas em condies econmicas ou anti-sociais. Quanto ao arrendamento e parcerias rurais, o relator notava que eram prticas comuns no Brasil (em So Paulo, 34,5% dos agricultores exploravam a terra dessa maneira) e que deviam ser regulamentados por lei ordinria.

    Outras emendas Constituio Federal visavam permitir uma redistribuio de terra por formas menos radicais, pelo lado da taxao. A emenda n 4/63 modificava

    14. Este projeto foi apresentado por Leonel Brizola e tambm criava, para participar do processo e onde fosse possvel, comisses agrrias regi onais compostas por trabalhadores rurais, proprietrios de terras e membros da comunidade.

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    os artigos 15 e 29 sobre imposto territorial. Em seu parecer sobre a emenda n 1, Plnio Sampaio lembrara que o ministro da Agricultura, por sua vez, havia encaminhado ao Conselho de Ministros uma emenda transferindo para a Unio a competncia para decretar a criao de impostos sobre a propriedade territorial rural, com o objetivo de imposio fiscal terra improdutiva ou mal aproveitada, a fim de estimular a produtividade e penalizar, pela taxao progressiva, os latifundirios e especuladores. A justificativa ministerial era de que, sem essa medida, no restaria seno emendar o pargrafo 16 do artigo 141 da Constituio.

    Em anexo, sugeria o relator emendar a proposta do ministro da Agricultura: o imposto cobrado pela Unio deveria ser repassado para os estados. A poltica fiscal seria excelente instrumento para a execuo do plano governamental de colocar terras disposio da reforma agrria ou de colocar o proprietrio perante a alternativa de torn-las produtivas ou de reduzi -las, para evitar o prejuzo. Incluiu tambm, entre as terras desapropriveis, as consideradas importantes para solucionar o problema do baixo nvel da populao rural, onde existissem salrios nfimos ou regimes de trabalho que violassem as normas da justia social. Mais tarde apresentou a emenda n 5/63 nesse sentido, consagrando na Constituio a necessidade de uma lei de reforma agrria mediante um Plano Nacional.

    Os projetos na Cmara dos Deputados seguiam orientaes semelhantes. Algumas proposies ou crticas a propostas apresentadas descartavam logo a idia de redistribuir terras a partir de propriedade j existente ou de afetar de alguma maneira o direito propriedade privada. Outras faziam uma escala que atingia primeiro terras ainda no apropriadas at chegar quelas em propriedade privada. Outras, mais radicais, visavam comear exatamente por essas ltimas, quando improdutivas, a partir de uma definio conservadora de latifndio. Nenhuma partia da subdiviso e redistribuio da grande propriedade, produtiva ou no. Da a importncia das leis que regulamentavam a questo da desapropriao e indenizao, mesmo quando no se referiam explicitamente reforma agrria.

    O projeto n 4.225/62 de Oswaldo Lima Filho colocava entre os meios de facilitao do acesso explorao agrcola a desapropriao por interesse social, compra e venda, doao, arrecadao dos bens de que tratava o 2 do artigo 589 do Cdigo Civil, reverso ao domnio pblico de terras devolutas indebitamente apropriadas e o arrendamento de terras pblicas. No caso, as terras desapropriveis seguiriam a orientao constitucional com varivel nvel de aprofundamento: as improdutivas; as exploradas de maneira inadequada com prejuzo do abastecimento alimentar ou da produo de matrias -primas indispensveis ao desenvolvimento econmico do pas; as necessrias para ncleos de colonizao e povoamento, para formao de zonas agrcolas e pastoris voltadas para o abastecimento das cidades ou regies populosas, para proteo do solo e dos mananciais. Nesse caso, a justa indenizao seria com base no ltimo lanamento do imposto territorial, levando em considerao as benfeitorias realizadas, excluindo-se a valorizao decorrente de obras pblicas.

    Leonel Brizola propunha que as terras para reforma deveriam vir, primeiro, da desapropriao por interesse social, da doao e reverso posse do governo de terras pblicas ocupadas e exploradas indevidamente. A indenizao seria baseada na declarao do imposto de renda e do imposto territorial e na avaliao judicial

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    (120/63). J Herbert Levy dava preferncia primeiro s terras devolutas da Unio, dos estados e dos municpios, seguindo-se, nessa ordem, as propriedades pblicas utilizadas inadequadamente, as terras arrendadas por perodo superior a cinco anos, as doadas e, em ltimo lugar, as desapropriadas por interesse social (234/63). O projeto de Plnio Salgado seguia a mesma linha (277/63), enquanto que o de Maciel Terra se limitava a propor uma reformulao agrria em terras pertencentes Unio, inclusive as disponveis no Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao (233/63).

    Embora defendesse a desapropriao na forma da Constituio, o deputado Joo Menezes priorizava como via de acesso terra a desapropriao das terras inexploradas ou aproveitadas de forma antieconmica (as que no permitiam ao proprietrio pagar salrio mnimo aos seus empregados). Seguia-se a compra e venda, a ocupao (reconhecimento da posse), o arrendamento, a locao por interesse social e a arrecadao de bens vagos (702/63). O projeto de Orlando Bertoli se preocupava em excluir da distribuio de terras os que as ocupassem de forma violenta (773/63) e o de Aniz Badra inclua na sua proposta de reforma o minifndio antieconmico (809/63).

    O projeto de Amaral Netto (422/63) se baseava tambm na criao de um imposto sobre terras no aproveitadas com uma tabela progressiva que se aliaria a um estatuto da terra. Reagia contra a reforma agrria por emenda constitucional, classificando de farsa a idia de que sem emenda no haveria reforma. Resumia assim, nas suas justificativas, a posio dos partidos: PTB (desapropriao com ttulos resgatveis em vinte anos a juros de 6% e correo mxima de 10%); PDC (desapropriao com pagamento em ttulos, juros de 6% e correo de 10 a 100%, dependendo da terra); vanguarda udenista, PL e PSD (desapropriao com pagamento em ttulos, resgatveis em vinte anos, juros de 6% e correo monetria total). Acusava tais propostas de pretenderem transformar a reforma em negociata de terras.

    A distribuio das terras obtidas para reforma agrria obedecia s idias de formar uma determinada classe no campo, evitando a proletarizao do homem rural, e de aumentar o nmero de proprietrios e o acesso propriedade. Mas a insistncia em que as terras fossem vendidas e a um preo que permitisse financiar a reforma agrria, especialmente no campo das indenizaes, demonstrava a preocupao em contemplar os que pudessem desde j dar viabilidade econmica a seus lotes.

    Basicamente seguia-se o estabelecido por Oswaldo Lima Filho em 1962 (4.225/62): as terras seriam divididas em lotes agrcolas e vendidas a agricultores no proprietrios pelo preo da desapropriao acrescido das despesas e de juros de 6% ao ano, quando em prestaes. As de domnio pblico seriam vendidas pelo preo da terra para colonizao. A doao era prevista para o caso do posseiro em terras de domnio pblico, com morada ali e exerccio direto da atividade agrcola: seria inalienvel, impenhorvel e indivisvel. As terras pblicas poderiam ser arrendadas a agricultores no proprietrios.

    No projeto 93-B/63, sobre o Estatuto da Terra, j com emendas, as terras pblicas e as que fossem adquiridas para fins de reforma agrria seriam subdivididas em lotes e vendidas nas zonas de explorao pioneira preferencialmente a posseiros, com pagamento em quinze anos. Quanto s terras desapropriadas, a venda seria a prazo, pelo preo da desapropriao mais juros de 6%. Os beneficiados deveriam ser no proprietrios ou donos de terras insuficientes para sua manuteno e a de sua

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    famlia. O projeto de Leonel Brizola previa a distribuio de terras por compra e venda, nas mesmas condies do anterior, vedando-se a doao. O prazo no deveria exceder o do pagamento da desapropriao (120/63).

    No projeto 234/63, apresentado por Herbert Levy, mantinham-se as mesmas condies dos anteriores, mas introduzindo programas e projetos de colonizao, com preferncia para os que arrendavam terras com mais assiduidade, para os que tinham propriedade no polgono das secas, para filhos casados e com prole numerosa e para os sitiantes, os empregados e os trabalhadores rurais que demonstrassem capacidade de administrar propriedade sua.

    Pelo projeto 809/63 as terras seriam distribudas por venda nas zonas pioneiras, de preferncia a posseiros, para pagamento em quinze anos; nas demais reas seriam vendidas e arrendadas. A Unio poderia ceder para uso gratuito e temporrio as terras pblicas do seu patrimnio ou arrend-las (10% do valor, por trs anos renovveis), tambm dando preferncia aos posseiros.

    A distribuio das terras atravs da venda associava-se questo das fontes de financiamento da reforma agrria. Os recursos para o resgate de ttulos emitidos para pagamento das indenizaes e outras finalidades viriam das alienao das terras expropriadas (3.842/62); do imposto de renda pago pelos que se dedicavam s atividades agropecurias; de dotaes oramentrias (120/63); dos impostos na fonte sobre aluguis, aforamentos, arrendamentos e venda de imveis rurais (233/63); do apurado na venda das terras que constituam patrimnio da Unio e de parte dos recursos do imposto de renda (390/63); de emprstimo compulsrio subscrito obrigatoriamente pelos contribuintes do imposto de renda (486/63); do produto da venda de Bnus Rurais com garantia de depreciao da moeda (702/63). Chegou-se a propor especificamente a criao de um Fundo Agrrio Nacional, para incrementar a produo, difundir a propriedade privada da terra e assistir aos lavradores, e de um Fundo Nacional para a Reforma Agrria com vistas a financiar desapropriaes, com fontes anlogas de recursos.15

    Dentro desses projetos de distribuio de terras estava explcito o tipo de explorao agrcola que se queria privilegiar: a pequena e a mdia propriedade familiar, capazes de sustentar uma famlia e produzir um excedente para o mercado. Como complemento, procurava-se reunir essas unidades em projetos mais amplos de colonizao e cooperativas, para assistncia tcnica e para promover atividades agropecurias em reas pioneiras. Em geral, dirigiam -se para aqueles que j tivessem experincia de agricultura familiar, como posseiros ou arrendatrios de terras alheias, colocando por ltimo o trabalhador rural.

    Seguindo os objetivos desenvolvimentistas maiores, a capacidade de produo para o mercado era o elemento comum em todas as propostas de criar uma classe mdia rural. Da que se previa tambm a ao do governo ou dos rgos executores para que a distribuio de terras alcanasse os objetivos da reforma agrria. Algumas dessas medidas de poltica agrcola foram apresentadas como precedendo a distribuio de terras para preparar e qualificar a populao do campo. Outras faziam parte do prprio processo de reforma: a terra seria a pr-condio para os

    15. Projetos 390/63, apresentado pelo deputado Cunha Bueno, e 486/63, encabeado por Plnio Salgado.

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    trabalhadores melhorarem as suas condies de vida e se qualificarem como produtores adequados.

    No seu artigo 2, o projeto 120/63 apresentava como principal objetivo da reforma o aumento do nmero de propriedades agrcolas do tipo familiar, entendendo-se como tal as exploradas pelos agricultores e suas famlias, admitindo -se a participao no preponderante do trabalho assalariado e tendo a capacidade de serem exploradas em bases econmicas. Os agricultores deveriam preferentemente se organizar de forma associativa. No planejamento da reforma agrria e no acompanhamento de sua execuo, previam-se comisses agrrias com representantes dos trabalhadores rurais e assistncia tcnica e financeira prioritariamente para os beneficirios da reforma.

    Com seus programas de colonizao, o projeto de reformulao agrria de Maciel Terra (233/63) tambm visava o mesmo tipo de propriedade do anterior, com extenso fixada de acordo com o cultivo, com a regio e com a capacidade produtiva da terra. Previa a organizao de cooperativas na zona colonizada para assistncia tcnica, comercial, social e financeira ao produtor e criava a Fundao de Assistncia ao Agricultor (10% sobre os impostos federais). O projeto 702/63 propunha um plano agrrio nacional e a organizao de cooperativas, mas singularmente destacava a criao de fazendas coletivas em zonas apropriadas, para melhor rendimento; o domnio dessas fazendas seria da Unio. Um fundo agrrio tambm se destinaria assistncia tcnica, aquisio de maquinrio e sementes, ao beneficiamento e armazenamento.

    Com essas caractersticas, a reforma agrria ia deixando de ser uma bandeira das esquerdas e passando a integrar, especialmente aps a Carta de Punta del Este, o discurso e as propostas de setores liberais e at conservadores. Admitindo-se a necessidade de estimular um tipo de desenvolvimento e temendo-se o aprofundamento da presso de grupos sociais at ento margem das polticas desenvolvimentistas, reconhecia-se a existncia de um problema agrrio e a necessidade de resolv-lo atravs de algumas mudanas nos padres tradicionais vigentes no campo. A questo agrria no poderia ser transformada em questo tcnica: era, sim, econmica, social e poltica e se relacionava com o acesso ou com a defesa do direito de propriedade da terra. Em face das condies do pas, disseminou-se a impresso de que alguma reforma agrria seria inevitvel.

    O momento poltico levantava temores quanto ao alcance e significado da reforma agrria no conjunto das iniciativas do governo Joo Goulart. Sob esse rtulo, vrias propostas chegaram ao plenrio da Cmara dos Deputados, mas no vingaram para se efetivar em leis ou para se concretizar em polticas efetivas. A reforma agrria no Brasil permaneceu (e permanece) uma questo em aberto. O Estatuto da Terra, discutido por tanto tempo, somente seria promulgado no final de 1964, pela ditadura militar, e incorporaria alguns elementos do antigo discurso sobre reforma agrria, ao admitir a desapropriao e a redistribuio de terra, especialmente em reas marcadas pelas tenses sociais. 16 Utilizou-se de razes defendidas pela Carta de Punta del Este e de argumentos conhecidos para conquistar a burguesia para a reforma agrria. Mas acabou-se por privilegiar os grandes empreendimentos de colonizao e a expanso da 16. Instituto Brasileiro de Reforma Agrria IBRA (Brasil), Estatuto da Terra, Departamento de Imprensa Na-cional, 1965.

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    fronteira agrcola, ao mesmo tempo que aumentava a represso no meio rural em face dos movimentos que recrudesciam.17

    As discusses e os projetos apresentados antes de 1964 com a finalidade de implementar a reforma agrria no pas no apontavam para uma modificao radical da estrutura de posse e uso da terra. Ao contrrio, visavam a continuidade de um modelo de desenvolvimento com base na expanso do mercado interno e na integrao poltica de amplos setores da populao rural. Acreditava-se que as condies do homem e da produo rural prejudicavam a expanso e a modernizao da agricultura, o que afetava os projetos de desenvolvimento. Embora avanassem na concepo de reforma agrria, deixando de associ-la preferentemente ocupao de reas pioneiras e colonizao, mantinham o vis conservador.18 Tratavam de modificar o monoplio latifundirio sobre a terra e de integrar ou recriar o campesinato, base do crescimento do mercado interno, capaz de garantir a estabilidade e permitir a produo agrcola nos moldes exigidos pelo processo de industrializao.

    17. Ana Maria dos Santos, Questo agrria e o Estatuto da Terra como soluo, in Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica, Anais da XVII Reunio, So Paulo, 1997, pp. 317-320. 18. Para uma discusso mais ampla do que seria uma reforma agrria e estabelecimento de uma tipologia ver Robert Jackson Alexander, Agrarian Reform in Latin America, New York, MacMillan, 1974; Antonio Garcia, Tipologa de las reformas agrarias latinoamericanas, Lima, Instituto de Estudos Peruanos, 1969; Oscar Delgado, Reformas agrarias en la Amrica Latina: procesos y perspectivas, Mxico, DF, Fondo de Cultura Economica, 1965.