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REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 6(1) | P. 253-274 | JAN-JUN 2010 253 : 11 RESUMO ABORDA-SE A DESIGUALDADE DE GÊNERO, SITUANDO-A NO CONTEXTO PROBLEMÁTICO GERAL DA AVALIAÇÃO DA IGUALDADE NO SEIO DE SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS, QUE, EMBORA PLURAIS, ADOTAM CONCEPÇÕES ÉTICAS COM CERTO GRAU DE HOMOGENEIDADE, INFLUENCIADAS PELA CULTURA E PELO MODO DE VIDA CAPITALISTAS. ESSE CONTEXTO ÉTICO SUGERE O ÂMBITO DAS ATIVIDADES PRODUTORAS DE VALOR ECONÔMICO COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO PARA A ATRIBUIÇÃO DE VALOR SOCIAL À CONDUTA INDIVIDUAL E A AVALIAÇÃO DA IGUALDADE. PROPÕE-SE A POSSIBILIDADE DE AMPLIAÇÃO DESSES ESPAÇOS DE JULGAMENTO ÉTICO, COM ÊNFASE NA CONSIDERAÇÃO DO ÂMBITO DAS ATIVIDADES VOLTADAS AO CUIDADO COM O AMBIENTE DOMÉSTICO. ESSA MUDANÇA DE ENFOQUE REVELA QUE AS ORIGENS PROFUNDAS DAS DESIGUALDADES MATERIAIS ENTRE HOMENS E MULHERES ESTÃO ALÉM DA MERA DISCRIMINAÇÃO MOTIVADA ARBITRARIAMENTE PELO GÊNERO. ALCANÇAM ESTRUTURAS SOCIAIS PELAS QUAIS AS SOCIEDADES CAPITALISTAS MOLDARAM A ATIVIDADE HUMANA, TANTO NO MERCADO COMO NA FAMÍLIA. ABORDA-SE O PAPEL QUE A CIÊNCIA JURÍDICA PODE DESEMPENHAR, EM UMA ORDEM DEMOCRÁTICA, NA REVISÃO DE PARÂMETROS ÉTICO-JURÍDICOS, ATUALIZANDO O SIGNIFICADO DO VALOR FUNDAMENTAL DA IGUALDADE EM VISTA DOS ANSEIOS E DAS NECESSIDADES DOS INDIVÍDUOS. PALAVRAS-CHAVE DESIGUALDADE DE GÊNERO; ÉTICA CAPITALISTA; PLURALISMO E DEMOCRACIA; ANÁLISE JURÍDICA E AVALIAÇÃO DA IGUALDADE. Daniel Viana Teixeira DESIGUALDADE DE GÊNERO: SOBRE GARANTIAS E RESPONSABILIDADES SOCIAIS DE HOMENS E MULHERES ABSTRACT I t deals wIth gender InequalIty, located It In the context of the evaluatIon problem of equalIty wIthIn contemporary socIetIes that, although pluralIstIc, adopt ethIcal vIews wIth some degree of homogeneIty, Influenced by capItalIst culture and way of lIfe. thIs context suggests the ethIcal framework of the actIvItIes producIng economIc value as a prIvIleged space for the allocatIon of socIal value to IndIvIdual conduct and evaluatIon of equalIty. I t Is proposed the possIbIlIty of expandIng these spaces of ethIcal judgment, wIth emphasIs on consIderatIon of actIvItIes related to care of the home envIronment. thIs shIft In focus shows that the orIgIns of the profound materIal InequalItIes between men and women are beyond mere arbItrary dIscrImInatIon motIvated by gender. achIeve socIal structures In whIch capItalIst socIetIes shaped the human actIvIty, both In the market and wIthIn the famIly. dIscusses the role that jurIsprudence In a democratIc order can play In the revIew of ethIcal and legal parameters, updatIng the meanIng of the fundamental value of equalIty In vIew of the wIshes and needs of IndIvIduals. KEYWORDS gender InequalIty; capItalIst ethIcs; pluralIsm and democracy; jurIsprudence and assessment of equalIty. Gender inequality: on warranties and social responsibilities of men and women INTRODUÇÃO A reflexão sobre os temas igualdade e desigualdade, sob seus diversos aspectos, envolve discussões e questionamentos que, quanto mais aprofundados, tendem a ser

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253:11

RESUMOABORDA-SE A DESIGUALDADE DE GÊNERO, SITUANDO-A NO

CONTEXTO PROBLEMÁTICO GERAL DA AVALIAÇÃO DA IGUALDADE NO

SEIO DE SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS, QUE, EMBORA PLURAIS,ADOTAM CONCEPÇÕES ÉTICAS COM CERTO GRAU DE

HOMOGENEIDADE, INFLUENCIADAS PELA CULTURA E PELO MODO DE

VIDA CAPITALISTAS. ESSE CONTEXTO ÉTICO SUGERE O ÂMBITO DAS

ATIVIDADES PRODUTORAS DE VALOR ECONÔMICO COMO ESPAÇO

PRIVILEGIADO PARA A ATRIBUIÇÃO DE VALOR SOCIAL À CONDUTA

INDIVIDUAL E A AVALIAÇÃO DA IGUALDADE. PROPÕE-SE A

POSSIBILIDADE DE AMPLIAÇÃO DESSES ESPAÇOS DE JULGAMENTO

ÉTICO, COM ÊNFASE NA CONSIDERAÇÃO DO ÂMBITO DAS ATIVIDADES

VOLTADAS AO CUIDADO COM O AMBIENTE DOMÉSTICO. ESSAMUDANÇA DE ENFOQUE REVELA QUE AS ORIGENS PROFUNDAS DAS

DESIGUALDADES MATERIAIS ENTRE HOMENS E MULHERES ESTÃO

ALÉM DA MERA DISCRIMINAÇÃO MOTIVADA ARBITRARIAMENTE PELO

GÊNERO. ALCANÇAM ESTRUTURAS SOCIAIS PELAS QUAIS AS

SOCIEDADES CAPITALISTAS MOLDARAM A ATIVIDADE HUMANA, TANTONO MERCADO COMO NA FAMÍLIA. ABORDA-SE O PAPEL QUE A CIÊNCIA

JURÍDICA PODE DESEMPENHAR, EM UMA ORDEM DEMOCRÁTICA, NAREVISÃO DE PARÂMETROS ÉTICO-JURÍDICOS, ATUALIZANDO O

SIGNIFICADO DO VALOR FUNDAMENTAL DA IGUALDADE EM VISTA DOS

ANSEIOS E DAS NECESSIDADES DOS INDIVÍDUOS.

PALAVRAS-CHAVEDESIGUALDADE DE GÊNERO; ÉTICA CAPITALISTA; PLURALISMO E

DEMOCRACIA; ANÁLISE JURÍDICA E AVALIAÇÃO DA IGUALDADE.

Daniel Viana Teixeira

DESIGUALDADE DE GÊNERO: SOBRE GARANTIAS E RESPONSABILIDADES SOCIAIS DE HOMENS E MULHERES

ABSTRACT

It deals wIth gender InequalIty, located It In the

context of the evaluatIon problem of equalIty wIthIn

contemporary socIetIes that, although pluralIstIc,adopt ethIcal vIews wIth some degree of homogeneIty,Influenced by capItalIst culture and way of lIfe. thIs context suggests the ethIcal framework of the

actIvItIes producIng economIc value as a prIvIleged

space for the allocatIon of socIal value to IndIvIdual

conduct and evaluatIon of equalIty. It Is proposed

the possIbIlIty of expandIng these spaces of ethIcal

judgment, wIth emphasIs on consIderatIon of actIvItIes

related to care of the home envIronment. thIs shIft In

focus shows that the orIgIns of the profound materIal

InequalItIes between men and women are beyond mere

arbItrary dIscrImInatIon motIvated by gender. achIeve

socIal structures In whIch capItalIst socIetIes shaped

the human actIvIty, both In the market and wIthIn the

famIly. dIscusses the role that jurIsprudence In a

democratIc order can play In the revIew of ethIcal

and legal parameters, updatIng the meanIng of the

fundamental value of equalIty In vIew of the wIshes

and needs of IndIvIduals.

KEYWORDS

gender InequalIty; capItalIst ethIcs; pluralIsm and

democracy; jurIsprudence and assessment of equalIty.

Gender inequality: on warranties and social

responsibilities of men and women

INTRODUÇÃOA reflexão sobre os temas igualdade e desigualdade, sob seus diversos aspectos,envolve discussões e questionamentos que, quanto mais aprofundados, tendem a ser

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frequentemente renovados e a revelar novas dimensões e possibilidades de aborda-gem. De modo específico, a questão da desigualdade de gênero, que foi objeto degrandes discussões no meio político e acadêmico e de variadas intervenções institu-cionais durante todo o século recém encerrado, não foge a essa tendência.

A dinâmica social força uma constante revisão das avaliações sobre os critériosmais justos e igualitários de distribuição, entre os sexos, das diversas responsabilida-des implicadas na vida em sociedade — relacionadas à família, à comunidade, aomeio político etc. — e dos direitos e as garantias que a ordem social provê, em vistadessa distribuição e das características que definem cada sexo.

O modo como se dá tal distribuição no ambiente familiar e o acesso ao mercadode trabalho são temas centrais nas discussões sobre desigualdade entre os sexos.Neste artigo, serão abordados esses temas específicos, dentro do universo maisamplo da desigualdade de gênero, sugerindo-se uma revisão sobre o modo como têmsido comumente tratados pelos meios político e acadêmico e sobre o modo como sãopercebidos pelo senso comum.

Propõe-se um enfoque diferenciado sobre essas discussões, menos restrito aoaspecto econômico das relações entre os sexos, e que, ademais, contemple com bas-tante ênfase uma revisão dos papéis tradicionalmente desempenhados por cada umno seio da família.

Para facilitar a visualização e a compreensão dessa revisão, analisam-se as diferen-ças de tratamento entre os gêneros que o ordenamento jurídico brasileiro contemplana concessão de direitos sociais como a licença gestante e o benefício previdenciáriodo salário maternidade, diretamente relacionados ao dever social de cuidado com aprimeira infância. Tal enfoque se mostrará significativamente revelador sobre anecessidade de uma abordagem renovada do tema da desigualdade entre os gêneros.

1 SOBRE LIBERDADE E IGUALDADEA compreensão do senso ético da maioria das democracias contemporâneas passa pelaabordagem dos valores liberdade e igualdade como fundamentais e orientadores detodo o seu arcabouço jurídico e institucional. O conteúdo significativo que esses valo-res abstratos carregam na prática guarda relação direta com uma concepçãoindividualista do homem e da sociedade.

Sobre o valor liberdade, adota-se a perspectiva do indivíduo para a avaliação dosmodos adequados de seu exercício.1 Deseja-se uma sociedade cuja conformaçãoacrescente ao indivíduo maiores possibilidades de ação, seja no âmbito da autodeter-minação individual (perspectiva liberal), seja no âmbito da autodeterminaçãocoletiva (perspectiva democrática).2

A definição dos critérios de julgamento acerca daquilo que aumenta ou diminuia liberdade num grupo social requer a definição prévia sobre a forma de distribuição

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da liberdade. Fica clara a pressuposição de um princípio igualitário como forma dedistribuição desse bem, julgado importante, no contexto coletivo.3 Uma sociedadeé mais livre quando promove em igualdade a liberdade individual. Não importa sim-plesmente promover o aumento da liberdade, mas promovê-lo de forma igualitáriapara cada indivíduo.

Frequentemente, expõe-se o contraste entre propostas éticas alternativas – porexemplo, entre teorias liberais ou democráticas, de direita ou de esquerda, capitalis-tas ou socialistas – como orientado pela escolha entre os valores liberdade ouigualdade, tomados tais valores como fundamentais e em antagonismo irreconciliável.Tal compreensão não é rigorosamente correta, uma vez que essas teorias pressupõemum fundamento igualitário comum.4

O que diferencia as diversas concepções éticas não é a dicotomia oriunda daescolha entre os valores fundamentais igualdade e liberdade ou a busca de um meio-termo entre ambos. A questão fundamental que as diferencia é a escolha do âmbitoou aspecto da ordem social em que a igualdade deverá ser avaliada.

Na modernidade, a igualdade não pode ser compreendida como um princípiouniformizador que postule reduzir toda a desigualdade entre as pessoas e seus modosde vida. Reconhecer a dignidade moral dos indivíduos, concedendo igual considera-ção a cada um deles, importa em reconhecer a possibilidade de preferência pordiferentes valores e objetivos. Implica também reconhecer que as pessoas não se dife-renciam apenas por suas preferências, mas, ainda, por características e circunstânciaspessoais, como condições orgânicas e de saúde, habilidades físicas e mentais, idade,sexo, raça, além de distintos contextos sociais, ambientais, culturais e econômicos.

A própria diversidade humana coloca uma dificuldade teórica fundamental emrelação à exigência de igual consideração, uma vez que é impossível dar conta de todasas especificidades e circunstâncias individuais, a fim de formular uma proposta éticaabrangente. O problema que se configura consiste em como justificar a obrigaçãomoral/jurídica/política de forma convincente e razoável para os que se submeteriamà ordem social, quando se tem uma sociedade tão diversificada e plural.

A estratégia adotada pela filosofia moral e política, em vista dessa dificuldade,varia ao longo do tempo e de acordo com o caráter da sociedade tratada. O proce-dimento basicamente adotado pelas diferentes teorias consiste em eleger algumaspecto da ordem social em relação ao qual se entenda fundamental o tratamentoigualitário dos indivíduos e assimilá-lo à igualdade, enquanto valor a ser buscado.Esse aspecto da ordem social considerado importante para a avaliação da igualdade édenominado por Sen (2001) de “variável focal”.

As vantagens e desvantagens relativas que as pessoas têm, comparadas umas àsoutras, podem ser julgadas em termos de muitas variáveis diferentes, p. ex.,suas respectivas rendas, riquezas, utilidades, recursos, liberdades, direitos,

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qualidade de vida, e assim por diante. A pluralidade de variáveis quepodemos focalizar (as variáveis focais) para avaliar a desigualdadeinterpessoal faz com que seja necessário enfrentar, em nível bemelementar, uma difícil decisão com respeito à perspectiva a ser adotada.Este problema da escolha do “espaço de avaliação” [evaluative space] (querdizer, a seleção das variáveis focais relevantes) é crucial para analisar adesigualdade. (p. 51)

Uma das consequências desse procedimento é que a promoção e a justificação daigualdade, em um determinado espaço de avaliação, implicam, como corolário daexigência de respeito à diversidade humana (igual consideração), aceitar a legitimi-dade da desigualdade nos demais aspectos sociais eticamente avaliáveis.

Por considerações dessa natureza, Sen (2001) entende como fundamental para aavaliação ética da igualdade a definição do espaço, ou da variável focal, em que essevalor será abordado, problema que pode ser expresso sob a forma da questão: igual-dade de quê? A resposta a tal questionamento implica não somente a definição deespaços e valores considerados básicos ou essenciais num ordenamento social, emrelação aos quais a igualdade deve ser buscada, mas também a justificação de desi-gualdades que, desde que ocorram fora do âmbito escolhido, ou seja, desde queperiféricas, devem ser toleradas em nome mesmo dessa igualdade básica ou central.5

As diversas doutrinas morais e políticas, ao abordarem o tema da justificação daigualdade, estão simultaneamente, ainda que de modo implícito, tratando de justifi-car as várias formas de desigualdade dela decorrentes.

Quando se pretende expressar, em termos práticos e objetivos, o que significa aaplicação dos princípios de liberdade e de igualdade, torna-se necessário realizar diver-sas especificações sobre o conteúdo significativo desses valores. Tais especificaçõesimplicam decisões morais e políticas importantes para a configuração do modo de vidadas sociedades e para o estabelecimento de hierarquias entre o que se considera prio-ritário ou fundamental e o que se considera como secundário ou indiferente.

Na busca por esses significados, parte-se da hipótese de que as sociedades demo-cráticas contemporâneas, em sua maioria, orientam-se por concepções éticas que,por um lado, tenderam a eleger como espaço prioritário de avaliação da igualdade eexercício da liberdade aquele das relações econômicas, especialmente das relações depropriedade, trabalho e produção, e que, por outro lado, foram paulatinamenteampliando o grau de inclusividade do princípio de igual consideração.

A escolha desse espaço de avaliação decorre da adoção de um modelo de socie-dade identificado com a dinâmica comportamental das sociedades capitalistas demercado e da assimilação da lógica inerente a esse comportamento à natureza huma-na (TEIxEIRA, 2008; SEN 1999, 2001; MAcPhERSON, 1991; POlANyI, 2000;WAllERSTEIN, 2001; WEbER, 2004).

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2 IGUALDADE DE GÊNERO E PROTEÇÃO À INFÂNCIA: LICENÇA-MATERNIDADE VERSUS LICENÇA-PATERNIDADEUm dos desafios para a ampliação do grau de inclusividade do princípio de igual con-sideração tem sido, ainda hoje, o enfrentamento da desigualdade social entre osgêneros. Para se compreender o que os ordenamentos jurídicos querem dizer quandose reportam à igualdade de direitos sem distinção de sexo ou quando vedam o trata-mento diferenciado nas relações de trabalho em razão do gênero, é preciso ter emmente esse modo de avaliar o princípio da igualdade, baseado numa pré-compreensãocapitalista da sociedade sobre o ideal de felicidade e bem-estar dos indivíduos.

Essa concepção que caracteriza as sociedades democráticas contemporâneaselege como ideal uma sociedade em que os indivíduos, de modo igualitário, desfru-tem da maior liberdade possível em tudo o que diga respeito às relações de trabalho,propriedade e produção, do ponto de vista positivo e do direito de não serem moles-tados no exercício dessa liberdade e em sua privacidade, do ponto de vista negativo.

Em uma democracia deve sempre ser possível questionar se esse ideal de felici-dade corresponde de fato ao modo como cada um dos indivíduos submetidos àordem social entende deva ser estruturada uma sociedade livre e igualitária. Emboraesses indivíduos tenham ao menos uma ideia vaga sobre o que significam tais valoresno contexto social em que vivem, é importante que mantenham uma postura críticaem relação a eles, de modo a constantemente atualizá-los e adequá-los aos seus reaisanseios. A possibilidade de atualização desses conteúdos significativos em face dadinâmica social é o que se pode considerar a principal virtude do princípio democrá-tico de organização social.6

A importância dessa avaliação reside no fato de que o modo como se compreen-dem os mencionados valores reflete diretamente, no caso da liberdade, sobre o tipode atividades sociais e condutas individuais consideradas valiosas ou indesejadas eque, por isso, devem ser protegidas ou combatidas; e, no caso da igualdade, sobre omodo como se considera deva ser feita uma distribuição justa dos recursos e benefí-cios que a vida em sociedade provê – de todas as espécies: políticos, econômicos etc.– e dos ônus e esforços necessários para a manutenção dessa vida em comum.

com o objetivo de iniciar uma reflexão a esse respeito, enfoca-se um importan-te aspecto da existência do indivíduo humano, qual seja: a fase que compreende suagestação, seu nascimento e seus primeiros anos de vida. O ser humano, entre os seresvivos, é dos que mais carecem de cuidados nesse período de sua vida, o que o tornatotalmente dependente de outros indivíduos. Para que possa algum dia exercer, ple-namente e em igualdade, sua liberdade, o indivíduo, no início de seudesenvolvimento, precisa de especial proteção da sociedade.

Tradicionalmente, esses cuidados foram assumidos como obrigação (moral ejurídica) do grupo familiar, atribuídos de modo especial à mãe ou, não raro, a outrasmulheres do mesmo núcleo. Aos homens foi tradicionalmente associado o papel de

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provedor dos meios de subsistência e da proteção da família: aquisição de proprieda-de e provisões por meio de trabalho produtivo remunerado.

Em outras palavras, ao homem foi associado o papel de protagonista das ativida-des que a sociedade selecionou como espaço privilegiado de atribuição de valor, ouseja, aquelas relacionadas à economia de mercado; enquanto a mulher foi relegada aoespaço da privacidade domiciliar, imune e opaco à intervenção e à visibilidade exter-nas, protagonista das atividades relacionadas à economia doméstica.7

Para o bem e para o mal, a dinâmica das sociedades contemporâneas tem alteradoesse quadro, abrindo espaço para o exercício desses papéis por homens ou por mulhe-res, indistintamente. Para o bem, porque se garante à mulher maior liberdade paradeterminar sua existência de acordo com sua vontade, sendo-lhe hoje acessíveis maio-res espaços de atuação na vida social e no mercado de trabalho. Para o mal, porque,como a sociedade atribui maior valor e recompensas a tudo o que diga respeito à eco-nomia de mercado (trabalho produtivo) e como, em tese, não há mais um segmentosocial específico (as mulheres) encarregado das atividades de economia doméstica (tra-balho improdutivo), faz-se necessária a assunção desse encargo por novos atores.Diante desse problema, as sociedades contemporâneas têm adotado estratégias diver-sas, nem sempre por meio de abordagens satisfatórias no que concerne a uma justadistribuição dos ônus e das recompensas envolvidos na manutenção da ordem socialentre seus diversos segmentos.

como exemplo dessas abordagens, extraído do ordenamento jurídico brasileiro,temos a proteção social à gestação, ao nascimento e aos primeiros meses de vida dorecém-nascido. Na doutrina jurídica nacional, esses temas são comumente tratadosno contexto da proteção ao mercado de trabalho feminino (o que se faz com proprie-dade em vista do próprio texto constitucional, artigo 7º), ou seja, como direitosvoltados à garantia de tratamento diferenciado à mulher, tendo em vista suas neces-sidades específicas, para um acesso igualitário ao mercado de trabalho. Tal é oenfoque comum dado à licença gestacional, ao benefício previdenciário do salário-maternidade, entre outros direitos relacionados à reprodução (MARTINS, 2004a,2004b, p.593,606).

Pouco se discute na doutrina sobre a licença-paternidade, garantia de igual esta-tura constitucional. Do mesmo modo, são ainda incipientes as discussões sobresemelhantes direitos garantidos aos adotantes, homens ou mulheres.

É sintomático que o texto constitucional de 1988 albergue tais garantias no âmbi-to do seu artigo 7º, em que estão enumerados os direitos básicos dos trabalhadoresem nosso ordenamento jurídico. É também revelador que a constituição, ao tratar dalicença-maternidade, apresse-se em garantir, expressamente, um período mínimo deafastamento do trabalho de 120 dias, remunerado e com garantia de estabilidade noemprego (artigo 7º, xVIII), enquanto, em relação à licença-paternidade, relegue adefinição de sua conformação à legislação ordinária (artigo 7º, xIx), garantindo, em

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sua disposições transitórias, um período mínimo de afastamento de meros 5 dias, atéque a lei em questão fosse editada (artigo 10, § 1º, do ADcT).

A constituição, embora prodigalize em matéria de direitos humanos, prevendojá no primeiro inciso do seu artigo 5º, reservado a esse tema, a igualdade em direi-tos e obrigações entre homens e mulheres, reflete com toda a nitidez a tradicionaldivisão dos papéis sociais reservados a homens e mulheres, em matéria de direitossociais, conforme se vê no parágrafo anterior.

As garantias em tela vão evidentemente muito além da questão do acesso iguali-tário ao mercado de trabalho; dizem respeito, conforme já sugerido, de formaprimordial, à própria viabilização da vida humana em seus primeiros (e mais difíceis)meses de vida. A ênfase e valorização que a sociedade dá a tudo o que se relacione aoâmbito da economia de mercado e da produção de valor econômico por vezes nãopermite enxergar as razões bem mais profundas e relevantes que, de maneira geral,efetivamente orientam o modo de vida e o comportamento dos indivíduos reais.

O tratamento diferenciado dado à mulher em matéria de licença-maternidade,em contraste com a licença-paternidade, que têm ocasião em decorrência do mesmoevento, a reprodução, reforça e institucionaliza a discriminação de papéis sociais tra-dicionalmente conferidos a homens e mulheres.

A discriminação vai além da questão do gênero. A licença-maternidade e o bene-fício previdenciário do salário-maternidade são direitos assegurados à “mulhertrabalhadora”, ou seja, que exerce algum trabalho remunerado ou que, ao menos,tem condições financeiras de contribuir para a previdência social, tornando-se segu-rada. Não há proteção institucional semelhante à “mulher dona-de-casa”, que exerceas atividades não remuneradas relacionadas ao cuidado com o ambiente familiar.

Não se trata, insista-se, de mera questão de gênero. O fator de discriminação quemolda o arcabouço institucional diz respeito ao modo como a sociedade atribui valoraos diversos campos da atividade humana.

Tomem-se um pouco as funções, não remuneradas, relacionadas ao cuidado com asnecessidades próprias do ambiente de privacidade familiar. Tem-se em mente, especi-ficamente, todo o trabalho (sim, trata-se de trabalho) envolvido na reprodução(gravidez, parto, amamentação, cuidados com o recém-nascido), o cuidado e a educa-ção dos filhos (especialmente nos seus aspectos emocionais e morais), a assistência aosidosos, doentes e portadores de necessidades especiais e toda uma série de atividadesconcernentes, dir-se-ia, à “economia doméstica” (improdutiva), em contraposição àsatividades da “economia de mercado” (produtiva).

Todas essas atividades relativas ao ambiente doméstico, pouco importa se desem-penhadas por homens ou mulheres, são de suma importância para a manutenção ecaracterização do modo de vida que as sociedades capitalistas consideram valioso.contudo, o princípio de eficiência econômica implicado nessa ordem social não atri-bui valor relevante a essas atividades, que, tradicionalmente, posicionaram-se fora do

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mercado, privilegiando apenas a atividade produtora de bens e serviços os quaispodem ser objeto de negociação mercantil.

3 CRÍTICA FEMINISTA À AÇÃO INSTITUCIONAL PARA REDUÇÃODA DESIGUALDADE ENTRE GÊNEROSA moderna filosofia moral e política ligada ao feminismo não é cega a essas distor-ções. há diversas críticas sobre o modo como as instituições sociais tentam promovera igualdade e combater a discriminação entre os sexos.

Argumenta-se que, embora a grande maioria das sociedades contemporâneastenha leis e institutos voltados à promoção da igualdade de gênero, essas garantiastêm resultado prático limitado:

Seu “impulso moral” é “conferir às mulheres acesso àquilo a que os homenstêm acesso” e realmente “conseguiu que as mulheres tivessem certo acesso aoemprego e à educação, às ocupações públicas — inclusive como acadêmicas,profissionais liberais e operárias —, à carreira militar e acesso mais que trivialao atletismo”. (MacKinnon, 1987:33:35). [...] Seus sucessos são limitados,porém, pois elas ignoram as desigualdades de gênero embutidas na própriadefinição desses cargos. (KyMlIcKA, 2006, p. 307)

Para o argumento feminista sobre a efetiva garantia de acesso igualitário entre osgêneros aos diversos espaços, atividades e posições sociais relevantes, ressalta a preocu-pação com a responsabilidade e o ônus do cuidado com os filhos em idade pré-escolar,função tradicionalmente desempenhada pela mulher. Essa atribuição importa numônus social consideravelmente pesado, demandando dos indivíduos dela encarregadosintensa dedicação ao longo de todo o dia, diuturnamente, por vários anos seguidos, e,de modo geral, justamente no período em que estão na plenitude de sua capacidadelaborativa e no qual teriam maiores chances de sucesso na competição pelo mercadode trabalho e posições sociais de destaque.

considere o fato de que a maioria dos trabalhos “exigem que a pessoa,neutra quanto ao gênero, que esteja qualificada para eles seja alguém que não é guardião primário de uma criança em idade pré-escolar”(Mackinnon, 1987:37). Dado que ainda se espera que as mulheres tomemconta dos filhos em nossa sociedade, os homens tenderão a se sair melhordo que as mulheres ao competir por tais trabalhos. Isso não aconteceporque haja discriminação contra as mulheres candidatas. Os empregadorespodem não dar atenção ao gênero dos candidatos ou podem, na verdade,desejar contratar mais mulheres. O problema é que muitas mulheres

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carecem de qualificação relevante para o trabalho – isto é, serem livres de responsabilidades pelo cuidado dos filhos. há neutralidade quanto ao gênero no fato de que os empregadores não atentam para o gênero dos candidatos, mas não há igualdade sexual, pois o trabalho foi definidocom o pressuposto de que seria preenchido por homens que tivessemmulheres em casa, cuidando dos filhos. [...] Essa incompatibilidade que os homens originaram entre a criação dos filhos e o trabalho remuneradotem resultados profundamente desiguais para as mulheres. O resultado é não apenas que as posições mais valorizadas da sociedade são ocupadas por homens, enquanto as mulheres encontram-se desproporcionalmenteconcentradas no trabalho de meio período e com salário mais baixo, mastambém que muitas mulheres tornam-se economicamente dependentes dos homens. (KyMlIcKA, 2006, p. 308–9)

O limitado sucesso da ação institucional voltada à promoção da igualdade entregêneros pode ser debitado ao fato de ela encarar os processos discriminatórios comoorientados por escolhas motivadas arbitrariamente pelo gênero, pura e simplesmen-te, quando, em verdade, eles guardam relação com a própria estrutura social,moldada, ao longo dos séculos, segundo interesses, necessidades e pontos de vistaprimordialmente masculinos. A crítica feminista reclama uma ação institucional quealcance as causas profundas da desigualdade entre homens e mulheres, as quais dei-tam raízes junto às estruturas e aos códigos que regulam a distribuição, entre essesseguimentos, dos ônus e das recompensas envolvidos na manutenção da vida social –em outros termos, dos mecanismos de atribuição e manutenção de poder:

[...] se devemos confrontar estas formas de injustiça, precisamos conceituarnovamente a desigualdade sexual como um problema, não de discriminaçãoarbitrária, mas de dominação. ... A subordinação das mulheres não éfundamentalmente uma questão de diferenciação irracional com base nosexo, mas de supremacia masculina, sob a qual as diferenças de gênero sãotornadas relevantes para a distribuição dos benefícios, para desvantagemsistemática das mulheres. ... como o problema é a dominação, a soluçãonão é apenas a ausência de discriminação, mas a presença de poder. A igualdade requer não apenas igual oportunidade de buscar papéisdefinidos por homens, mas também igual poder de criar papéis definidospor mulheres ou de criar papéis andróginos, que homens e mulherestenham igual interesse em preencher. ... a partir de uma posição de igualpoder, não teríamos criado um sistema de papéis sociais que definem ostrabalhos “masculinos” como superiores aos trabalhos “femininos”.(KyMlIcKA, 2006, p. 312–3)

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Diversos países têm adotado leis que revelam uma visão diferenciada do proble-ma da igualdade de gênero: em vez de abordarem o problema meramente do pontode vista das condições de acesso ao mercado de trabalho e posições sociais de poder,procuram interferir na estrutura, nas responsabilidades e nas funções desempenha-das por homens e mulheres no seio do ambiente familiar. A esse respeito, merecedestaque a experiência sueca.

4 O MODELO SUECO DE LICENÇA REMUNERADA PARA AMBOS OS PAISA Suécia tem realizado um experimento social já há bastante tempo, com o objetivodeclarado de induzir uma divisão mais igualitária de responsabilidades e funções con-cernentes à economia doméstica, em especial, estimulando os homens a seenvolverem de modo mais direto com as atividades relacionadas à criação dos filhos.Assim, desde 1974, a licença-maternidade então existente foi transformada em umsistema de licença remunerada para ambos os pais (FARIA, 2002).8

A seguir, destacamos as principais características do sistema sueco: (a) licençaremunerada de até 450 dias após o nascimento do filho ou a adoção de criança menorde dez anos; (b) cada membro do casal tem direito à metade do prazo da licença; (c)por motivo de impedimento (doença, incapacidade etc.) de um dos membros docasal, pode-se transferir todo o período de licença remunerada ao outro cônjuge; (d)por convenção, pode-se transferir a licença para apenas um dos membros do casal,exceto trinta dias intransferíveis; (e) pais solteiros, independentemente do sexo, têmdireito ao período integral de licença remunerada; (f) o auxílio financeiro é conce-dido independentemente da existência de vínculo empregatício remuneradomantido por qualquer dos beneficiários; (g) há, ainda, a garantia de um período dedez dias de licença-paternidade, para gozo dos pais (homens), nos primeiros sessen-ta dias após o nascimento ou adoção (FARIA, 2002).

Nota-se um grande esforço no sentido de desvincular o gozo do benefício socialde elementos como a condição de gênero e a vinculação a emprego remunerado.concede-se uma grande flexibilidade para que o casal planeje a melhor maneira deusufruir do benefício, de acordo com suas necessidades específicas. E, por fim, háum claro esforço para estimular uma participação mais ativa do homem na criaçãodos filhos.

Sem desmerecer a vanguarda e os inquestionáveis avanços advindos do esforçosueco, materializado no seu sistema de licença remunerada para ambos os sexos,estudos mostram que os níveis de utilização do benefício de licença remuneradapelos homens suecos têm sido significativamente baixos se comparados com omesmo dado referente às mulheres (FARIA, 2002).

Ao que parece, a intervenção estatal tem tido dificuldades na superação da arrai-gada estrutura de divisão de funções sociais entre homens e mulheres. Para Faria

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(2002), o sucesso até agora limitado do experimento sueco talvez sugira uma equi-vocada ênfase no domínio do mercado de trabalho em lugar de uma abordagemdireta sobre o seu objetivo principal, qual seja a promoção de uma maior igualdadeentre homens e mulheres.

Os dados apresentados e discutidos mostram que os benefícios relacionados à licença para os pais não conseguem fazer com que os homens passem a assumir um papel mais significativo no âmbito doméstico da criação dosfilhos, isto é, que os esforços do governo sueco no sentido de promoverum compartilhamento mais igualitário das tarefas ainda não tiveram osucesso esperado. [...] Entretanto, se o sistema de seguridade para os paisimplementado na Suécia é bastante “generoso” quando comparado a benefícios similares disponíveis em outras nações industrializadas,propiciando licenças longas, flexíveis e destinadas a suprir necessidadesdiversas, oferecendo compensações pelas perdas salariais relativamentealtas, parece plausível afirmar que a ênfase do sistema recai mais sobre a possibilidade de se compatibilizar a maternidade com o trabalhoremunerado do que sobre o declarado objetivo de induzir a criação de uma perfeita simetria entre os papéis assignados aos pais e às mães.(FARIA, 2002)

A questão da variável focal (SEN, 2001), ou espaço social relevante para avalia-ção da igualdade, novamente se coloca. Rememorando a crítica feminista, o enfoqueda intervenção estatal para promoção da igualdade, nesse caso, recai sobre o espaçotradicionalmente dominado pelo homem (compatibilização da maternidade com otrabalho remunerado) de modo mais intenso do que sobre o espaço social tradicio-nalmente ocupado pela mulher (divisão igualitária da responsabilidade pelo cuidadocom os filhos).

Uma ação mais justa para a promoção da efetiva igualdade entre os gênerosdemandaria, assim, esforços ainda mais ousados. A solução do problema, além deexigir um melhor conhecimento de suas causas profundas, está a desafiar a criativi-dade dos que se dedicam às ciências sociais. Entre elas, a ciência jurídica pode terimportantes contribuições a oferecer a esse respeito.

5 UMA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA MAIS JUSTA DO PRINCÍPIODA IGUALDADE ENTRE OS SEXOSNo brasil, os mecanismos institucionais de proteção à gestação e à primeira infância,no que toca à promoção da igualdade entre os gêneros, estão muito aquém daquelesempreendidos por outros países, a exemplo da Suécia. Estes, por seu turno, apenas

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começam a enfrentar o cerne dos problemas decorrentes desse tipo de desigualdadecom algum sucesso, embora limitado, dada a grandeza do desafio de modificar estru-turas sociais tão arraigadas.

O ordenamento jurídico brasileiro, a partir de sua constituição, aparentementereforça essas estruturas promotoras de desigualdade, ao garantir acesso ao benefíciode licença/salário-maternidade apenas à mulher, e somente àquelas vinculadas aalgum trabalho remunerado ou produtivo de valor econômico, excluindo-se amulher dona-de-casa, dedicada ao trabalho doméstico, “improdutivo”.9 Esta, que nomais das vezes não tem condições de contribuir para a previdência social, a fim deser alcançada pelo benefício em questão, torna-se refém de uma estrutura social quelhe impõe, entre outros, o pesado ônus de cuidar dos filhos pequenos e, ao mesmotempo, torna-a economicamente dependente de seu cônjuge.

A mulher brasileira, ante a justa expectativa de maior liberdade e acesso aosdiversos domínios da vida social, para além do ambiente doméstico, está sujeita auma angustiante escolha — quando tenha acesso a meios contraceptivos — entre acarreira e a família.

A ciência jurídica, contudo, deve servir de instrumento de subversão democrá-tica das estruturas sociais e enfrentamento criativo dessas desigualdades (UNgER,2004). Dela se espera muito mais que uma mera atividade descritiva de uma realida-de normativa previamente dada, mas sim o trabalho de atualização dos conteúdossignificativos associados aos princípios fundamentais que alicerçam a ordem jurídica,entre os quais o da igualdade entre os gêneros.

Na esteira das teorias interpretativas associadas à chamada teoria do discurso(AlExy, 2005; güNThER, 2004; ARAújO, 2003; hAbERMAS, 2004;MOREIRA, 2004), defende-se que a concretização do princípio democrático está adepender da existência de condições materiais básicas que possibilitem a discussãopública e acessível à participação de todos os interessados, de modo livre e igualitá-rio, sobre os problemas que afetam a coletividade. Embora não seja possível à análisejurídica resolver definitivamente sobre o conteúdo significativo dos valores funda-mentais da ordem social e sobre de que forma a sociedade deve buscar realizá-los naprática — o que somente se viabiliza legitimamente por meio de decisões, sempreprovisórias e revogáveis, surgidas de procedimentos discursivos democráticos —,cabe-lhe verificar se estão presentes aquelas condições materiais mínimas necessáriasà discussão pública.10

Está fora de questão uma interpretação jurídica do texto constitucional de 1988,que faz uma clara opção pela promoção dos direitos humanos, de que possa resultara cristalização de desigualdades motivadas arbitrariamente por questões de gênero.

No caso da licença-maternidade, mostra-se necessária uma abordagem interpre-tativa diferenciada do instituto e que ressalte seu viés instrumental, voltado, por umlado, ao cumprimento de um dever de cuidado com a infância, e, por outro lado, à

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garantia do direito ao estabelecimento do laço afetivo característico das relaçõesentre pais e filhos.

De modo prioritário,11 o instituto da licença-maternidade, antes de ser inter-pretado como um benefício concedido à mãe por razões de ordem natural oufisiológica, deve ser encarado como um instrumento pelo qual se viabiliza o cumpri-mento do dever moral de cuidado e proteção da prole. A par do forte conteúdo deobrigação moral, é a própria constituição Federal de 1988 que realça esse dever atri-buído ora à “família”, ora aos “pais” como obrigação jurídica igualitariamentedirecionada a homens e mulheres. Nesse sentido, os seus artigos 205; 208, caput eparágrafo 3º; 226, caput e parágrafo 5º; 227; e 229.12,13,14,15,16

Não se pode conceber uma interpretação jurídica do texto constitucional de queresulte como consequência prática que a responsabilidade e o ônus pelo cumprimen-to dessas obrigações jurídicas primárias do núcleo familiar sejam direcionadosdesigualmente, isto é, mais às mulheres que aos homens, a teor do que disposto noprimeiro inciso do seu artigo 5º, no qual está estatuída a igualdade em direitos eobrigações entre homens e mulheres.17

A não concessão aos homens de um instrumento equivalente à licença-materni-dade concedida à mulher, em nossa ordem jurídica, funciona muitas vezes como umaautorização implícita para que eles se dediquem a outros objetivos e se esquivem deuma participação mais direta e de uma divisão mais igualitária do ônus decorrente dodever de cuidado com os filhos. No mínimo há uma indução, talvez indesejada, e, detodo modo, tolerada, a comportamentos desse tipo pelo seguimento masculino.

há que se reconhecer que toda atividade que envolve o cuidado e a proteção dosfilhos, além de um dever, é parte de um conjunto de realizações humanas que associedades, por razões de ordem cultural, valorizam como um fim em si mesmo. Sãoatividades as quais, por si próprias e independentemente de qualquer objetivo quecom elas se pretenda alcançar – como o cumprimento de um dever jurídico –, dãosentido existencial à vida dos indivíduos. Por meio delas é que se constrói muitodaquilo de que são constituídos os laços afetivos entre pais e filhos.

Do mesmo modo como se pretende em relação ao mercado de trabalho, homense mulheres devem ter a mesma liberdade de acesso a essas outras atividades de sig-nificado existencial tão valioso e tão profundo. Se a licença-maternidade possibilitaàs mulheres um acesso privilegiado ao contato com os filhos em seus primeirosmeses de vida, igual direito deve ser concedido aos homens.

Em sentido inverso, sabemos que as posições mais importantes e mais valorizadasno âmbito do mercado de trabalho, em geral postos de direção, mas também a ativi-dade empresarial e o exercício de mandato eletivo, exigem dedicação muito intensado indivíduo, havendo a necessidade de um afastamento maior do ambiente familiar edas atividades a ele relacionadas. Para uma mulher que deseja ocupar essas posiçõessem abdicar do direito de ter uma família, talvez fosse mais conveniente que outro

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membro da família pudesse utilizar os instrumentos (por exemplo, licença/salário-maternidade) que a sociedade provê para o cuidado com a prole.

A concessão desigual desses instrumentos, em função do gênero, acaba por geraruma limitação à mulher, não vivenciada com a mesma intensidade pela populaçãomasculina em geral, na ocupação das posições mais valorizadas do mercado de traba-lho. A consequência disso, revelada em diversos estudos estatísticos, é a concentraçãoda força de trabalho feminina em postos menos remunerados ou no trabalho infor-mal e precário.

há que se reconhecer ainda que, para a avaliação da desigualdade de gênero, nãoparece ser suficiente a adoção de critérios de julgamento que privilegiem a perspec-tiva individual. As decisões de homens e mulheres em relação à condução de suasvidas em temas como carreira e família não levam em consideração unicamente inte-resses e conveniências individuais, mas também suas relações sociais, especialmentefamiliares. Não interessa apenas medir a desigualdade entre indivíduos isoladamenteconsiderados, mas também entre os diversos tipos de agrupamentos sociais e fami-liares em que eles se inserem.

Percebe-se que as novas formas de organização familiar que a modernidade temconhecido recebem da sociedade tratamentos diferenciados, em função de caracte-rísticas ligadas diretamente ao critério de gênero dos seus integrantes. Sobre esseaspecto, merece destaque o tratamento jurídico dado à adoção. A legislação brasilei-ra (artigo 392-A da clT) prevê o direito à licença-maternidade apenas à “empregadaadotante”, não havendo previsão semelhante, em caso de adoção, para os homens.Para estes, a lei prevê apenas a licença-paternidade de cinco dias.

A desigualdade de tratamento se revela ainda mais dramática em relação aoshomens adotantes em unidades familiares monoparentais ou decorrentes de uniãohomoafetiva. Nesses grupos familiares em que não há a presença da mãe ou damulher adotante, os filhos não poderão dispor do cuidado mais prolongado que segarante em famílias tradicionais, por meio da licença-maternidade. Semelhantes dife-renças de tratamento podem ser percebidas em relação aos grupos familiares nosquais haja inversão dos papéis tradicionais atribuídos a homens e mulheres, como,por exemplo, uma família em que a mãe seja a provedora e o pai seja o responsávelpor cuidar do ambiente doméstico, ou ainda uma outra, na qual ambos sejam prove-dores, mas a mãe exerça atividade que não se enquadre na tradicional figura dotrabalhador assalariado (empresária, executiva, exercente de mandato político etc.).

há injustificável diferenciação de tratamento não só entre os sexos, mas aindaentre a tradicional unidade familiar – composta por um homem e uma mulher – eessas novas formas de organização do núcleo familiar, cada vez mais observadas nassociedades contemporâneas.18

Uma interpretação adequada do texto constitucional, na parte em que, no seuartigo 7º, trata dos direitos dos trabalhadores, entre eles a licença à gestante e a

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licença-paternidade,19 não pode resultar no estabelecimento de desigualdades degênero, seja pelo viés obrigacional seja pelo viés garantista, e, ainda, em função domodo de organização do núcleo familiar em que os indivíduos se inserem, a despei-to de sua própria literalidade sugerir, em princípio, uma diferença de tratamento.

É possível concluir que uma interpretação do sistema constitucional efetivamentecomprometida com o programa ali desenhado de superação da desigualdade e promo-ção dos direitos humanos não há de admitir a compatibilidade jurídica de uma leiregulamentadora do inciso xIx do artigo 7º – que trata da licença-paternidade – queconceda ao homem menos do que concedido à mulher pelo inciso xVIII do mesmoartigo 7º – que trata da licença à gestante –, ou por outra lei ampliativa posterior.

A análise do regime jurídico da licença-maternidade no brasil revela, ainda,outro tipo de desigualdade de gênero, que ocorre de modo indireto, agora entremulheres que exercem atividades tradicionalmente masculinas (trabalho remunera-do ou produtivo de valor econômico) e aquelas que exercem atividadestradicionalmente femininas (trabalho doméstico não remunerado).

É ainda mais aguda a injustiça que decorre dessa espécie de desigualdade. Issofica evidente quando reconhecemos que a grande maioria dos trabalhos remuneradosem uma economia de mercado foi moldada na pressuposição de que o trabalhador,em especial aquele que tem filhos em idade pré-escolar, teria o suporte de algummembro da família, quem exerceria as atividades domésticas não-remuneradas,necessárias à subsistência do grupo familiar, entre as quais a guarda e o cuidado des-ses filhos. Em outros termos, as atividades produtivas de uma economia capitalistade mercado, geradoras de riquezas e de impostos que a sociedade tanto valoriza,sempre foram historicamente dependentes dessa “contribuição” oriunda do seiofamiliar, provida predominantemente pelo trabalho feminino não remunerado, e sema qual o exercício do trabalho remunerado seria inviável ou muito dificultado.20

Embora o salário-maternidade figure no ordenamento jurídico (artigo 18 da lei8.213/91) como benefício de tipo previdenciário – de caráter contributivo e embenefício apenas dos segurados –, o dever jurídico de proteção à infância é dirigidoindistintamente a todos, tenham ou não condições econômicas de contribuir com aprevidência social.

Tanto a mulher trabalhadora, que tem direito ao salário-maternidade, como adona-de-casa, que não tem, dividem com a sociedade e o Estado o dever jurídico deproteção à infância, em seus diversos aspectos. Não se justifica um tratamento dife-renciado do Estado em relação a essas categorias no que concerne ao provimento demeios materiais (salário-maternidade) preordenados ao cumprimento desse dever.

Tal regime jurídico ofende a constituição que prevê a proteção à maternidadecomo objeto de atenção tanto do sistema previdenciário, em benefício dos respecti-vos contribuintes, como do sistema de assistência social, em benefício de todos osque necessitarem (artigos 201, II, e 203, I).21

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Por outro lado, o custeio dos sistemas de seguridade social (saúde, previdência eassistência) lança mão de recursos provenientes de toda a sociedade, e não apenasdaqueles que exercem trabalho remunerado. O próprio sistema de previdência social,dito de caráter contributivo, não é totalmente financiado pelas contribuições dossegurados, valendo-se de recursos oriundos de outras receitas da União.22

Uma interpretação jurídica mais adequada do sistema constitucional tambémdeve afastar essa injusta disparidade de tratamento, garantindo igualitário acesso aobenefício do salário-maternidade independentemente da condição de gênero ou decontribuinte da previdência social.23

CONCLUSÕESA título de conclusão deste artigo, apresentam-se os seguintes tópicos:

1. A superação das desigualdades sociais entre homens e mulheres, garantindo-seliberdade de acesso igualitário a espaços de realizações humanas tradicionalmen-te seguimentados em função do critério de gênero – como o espaço da família(feminino) e o espaço da economia de mercado (masculino) –, demanda umareflexão prévia sobre os termos comparativos segundo os quais a avaliação dessadesigualdade terá lugar.2. A promoção de uma ordem social equilibrada em termos de ônus, responsa-bilidades, direitos e garantias distribuídos entre homens e mulheres requer queas intervenções feitas nesse sentido procurem dar a estes seguimentos condiçõesigualitárias não apenas no âmbito das relações de trabalho, propriedade e produ-ção – espaço preferencial de atribuição de valor às atividades humanas nassociedades capitalistas –, mas também no âmbito de outras relações importantespara a configuração e sustentação do modo de vida que as sociedades contempo-râneas valorizam, em especial as relações familiares.3. Em uma ordem democrática, deve ser possível aos indivíduos influir, segundoseus interesses e seu julgamento particular, sobre o modo como a sociedade devefazer uma distribuição adequada desses recursos e desses encargos.4. A ciência jurídica, longe de estabelecer vínculos e compromissos insuperáveiscom valores, modos de vida e concepções éticas do passado, bloqueando a indu-ção democrática que a dinâmica social exerce sobre a dinâmicapolítico-institucional, deve estar apta a atualizar o conteúdo significativo dosvalores fundamentais de nossa ordem social, de modo a manter o arcabouço jurí-dico-institucional em sintonia com a realidade, as demandas e os desafiosvivenciados pelos indivíduos nos novos tempos.5. A proteção à maternidade e à primeira infância por meio de direitos como alicença/salário-maternidade é, de modo geral, encarada como mera garantia de

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acesso da mulher ao mercado de trabalho, do que resulta um tratamento diferen-ciado em função do gênero, motivada por razões fisiológicas que caracterizam osexo feminino. 6. Entende-se que semelhantes direitos devem ser vistos, preferencialmente,como instrumentos pelos quais se viabilizam o cumprimento do dever moral ejurídico de cuidado e proteção da prole, por um lado, e a constituição de rela-ções familiares privilegiadas sob o ponto de vista afetivo e de grande valorexistencial, por outro. Os valores fundamentais que orientam nossa ordem jurí-dica e social não legitimam uma distribuição desigual desse dever e da liberdadede acesso a essas relações segundo o critério de gênero.7. Defende-se que uma interpretação jurídica desses instrumentos em face do sis-tema constitucional brasileiro, efetivamente comprometida com a superação dedesigualdades arbitrárias entre os sexos, deve garantir igual amplitude de direitose deveres a homens e mulheres. Deve ser garantido acesso igualitário a esses ins-trumentos independentemente da condição de gênero ou de outras condições,especialmente econômicas, indiretamente associadas ao primeiro critério.

NOTAS

1 Para bobbio (1994), o “nexo recíproco entre liberalismo e democracia é possível porque ambos têm um pontode partida comum: o indivíduo. Ambos repousam sobre uma concepção individualista da sociedade” (p.45).

2 Nesse sentido, cademartori (2006): “A diferença entre as teorias liberal e democrática reside em que a primeiratende a restringir o poder coletivo e a dilatar a esfera de autodeterminação individual, enquanto a segunda dilata a esferade autodeterminação coletiva, restringindo a regulação heterônoma. A teoria liberal considera o problema da liberdadeem função do indivíduo isolado, enquanto a teoria democrática o faz em função do individuo enquanto membro de umacoletividade. cada teoria responde a uma pergunta diferente. A primeira, sobre o significado da liberdade para o indivíduoisolado, e a segunda, sobre o significado de liberdade para o indivíduo enquanto parte de um todo” (p.32).

3 Para Ronald Dworkin (2005), a cultura política do ocidente não se orienta por valores fundamentais distintos eirreconciliáveis, conforme sugere a dicotomia liberdade versus igualdade, comumente adotada para descrever o espectrode opções político-ideológicas em que se dividem as sociedades ocidentais. Para ele, qualquer teoria política que sepretenda defensável no contexto civilizatório atual deve se orientar pelo mesmo valor fundamental, a igualdade.

4 Segundo Dworkin (2005): “Acredita-se que, se a liberdade e a igualdade, estiverem em conflito, é preciso fazeruma escolha angustiante entre as duas virtudes. Um mapa conhecido dos argumentos políticos, de fato, posiciona ospartidos ou grupos políticos ao longo de uma escala definida pelas escolhas que cada uma faz em tal situação. A escala vaido absolutismo da liberdade em um extremo (a liberdade não deve ceder nunca à igualdade quando estiverem emconflito) e um absolutismo inverso da igualdade no outro extremo. As opiniões mais moderadas posicionam-se

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: ARTIGO APROVADO (26/06/2010) : recebido em 19/03/2010

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supostamente entre esses dois pólos, atribuindo pesos relativos diversos às duas virtudes políticas. contudo essatopografia popular é, acredito, profundamente equivocada como relato de opiniões existentes em nossa cultura política.Nenhuma teoria que respeite os pressupostos fundamentais que definem essa cultura poderia subordinar a igualdade àliberdade, concebidas como ideais normativos, em hipótese alguma. Qualquer disputa genuína entre a liberdade e aigualdade é uma disputa que a liberdade deve perder” (p.169).

5 conforme Sen (2001): “A questão importante na presente discussão é a natureza da estratégia para justificar adesigualdade por meio da igualdade. A abordagem de Nozick é um exemplo lúcido e elegante desta estratégia geral. Seuma pretensão de que a desigualdade em algum espaço significativo é correta (ou boa, ou aceitável, ou tolerável) vai serdefendida com razões (e não, digamos, atirando nos que discordam), a forma do argumento consiste em mostrar que estadesigualdade é uma conseqüência da igualdade em algum outro espaço – fundamentalmente mais importante. Dado oamplo acordo sobre a necessidade de ter igualdade na ‘base’, e também a conexão desse amplo acordo com a necessidadede imparcialidade entre os indivíduos [...], os argumentos cruciais têm de ser sobre a razoabilidade das ‘bases’ escolhidas.Por isso, a pergunta ‘igualdade de quê?’ não é, neste contexto, materialmente distinta da interrogação: ‘qual é o espaçocorreto para a igualdade basal?’. A resposta que damos a ‘igualdade de quê?’ não somente endossará a igualdade naqueleespaço escolhido (a variável focal relacionando-se com as exigências de igualdade basal), mas terá conseqüências de longoalcance sobre os padrões distributivos (incluindo as necessárias desigualdades) nos outros espaços” (p.52). A teoria políticade Robert Nozick, mencionada por Sen, é classificada dentro da filosofia política contemporânea na corrente denomina“libertarismo”, ao lado, por exemplo, de Friedrich von Rayek. Sua “teoria da titularidade” parte do pressuposto inicial deque as pessoas têm direitos legítimos que devem ser respeitados pelos outros. Postula que qualquer distribuição de bense direitos livremente acordada deve ser considerada justa. Em vista disso, entende que a atuação do Estado deve serrestrita à manutenção das condições institucionais necessárias para a garantia do princípio da livre transferência dos benslegitimamente titularizados. Desse modo, considera-se injusta, por exemplo, qualquer política tributária que exceda onecessário para a manutenção de tais instituições (polícia, justiça etc.) e que se destine a manter políticas redistributivasde renda ou de prestação de serviços sociais de saúde e previdência. Para uma crítica da teoria de Nozick, ver:KyMlIcKA, Filosofia política contemporânea: uma introdução (São Paulo: Martins Fontes, 2006) e RENAUT, As filosofiaspolíticas contemporâneas (lisboa: Piaget, 2002).

6 Essa é a pretensão das teorias democrático-deliberativas no contexto da interpretação constitucional em matériade direitos fundamentais: “As teorias democrático-deliberativas partem de um problema fundamental: o fato dopluralismo. As sociedades contemporâneas são plurais, convivendo em seu interior inúmeras doutrinas compreensivas decaráter ético, filosófico ou religioso, i. e., inúmeras concepções individuais acerca do que deve ser a vida digna, sendoinviável um consenso generalizado sobre o conteúdo das normas jurídicas e dos fins que devem ser perseguidos peloEstado. Tendo-se em vista a impossibilidade desse amplo consenso acerca de conteúdos, grande parte das teoriasdemocrático-deliberativas se alicerçam em concepções procedimentais da legitimidade; entendem que há, inversamente,a possibilidade de consenso a respeito das condições da democracia, que seriam neutras ou imparciais em relação àsdiversas doutrinas compreensivas que habitam as sociedades contemporâneas” (SOUzA NETO, 2006, p. 316). Sobre otema ver ainda habermas, A inclusão do outro: estudos de teoria política (São Paulo: loyola, 2004, p. 277–92).

7 A esse respeito, segundo Wallerstein (2001): “Sob o capitalismo histórico, assim, como sob sistemas históricosanteriores, os indivíduos tenderam a viver suas vidas no interior de estruturas relativamente estáveis – que podemoschamar de unidades domiciliares – que partilhavam um fundo comum de renda e capital acumulado. [...] Para viver, aspessoas consideram toda a sua renda potencial, não importa de que fontes, e a avaliam comparando-a com os gastos reaisque tem pela frente. [...] Para todos os fins reais, a unidade domiciliar foi a célula econômica engajada nessas atividades,geralmente – mas nem sempre, ou não exclusivamente – a partir de um grupo formado por laços de parentesco. [...] Foino contexto dessa estrutura domiciliar que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo começou a ser imposta àsclasses trabalhadoras. O trabalho produtivo passou a ser definido como aquele que recebe remuneração em dinheiro(principalmente, trabalho assalariado) e o não produtivo como aquele que, embora necessário, constitui uma atividade demera ‘subsistência’, sem produzir um ‘excedente’ que possa ser apropriado por alguém. [...] A diferenciação entre tiposde trabalho se ancorou na criação de papéis específicos a eles vinculados. O trabalho produtivo (assalariado) se tornoutarefa principalmente do homem/pai adulto e secundariamente de outros homens adultos mais jovens. O trabalho nãoprodutivo (de subsistência) se tornou tarefa principalmente da mulher/mãe adulta e secundariamente de outras mulheres,além das crianças e dos idosos. O trabalho produtivo era feito fora da unidade domiciliar, no ‘local de trabalho’. Otrabalho não produtivo era feito dentro da unidade domiciliar. [...] No capitalismo histórico [...] houve [...] a correlaçãoentre divisão de trabalho e valorização do trabalho. homens e mulheres (assim como adultos, crianças e velhos)frequentemente realizaram trabalhos diferentes, mas sob o capitalismo histórico houve uma desvalorização do trabalhodas mulheres (e dos jovens e velhos) e uma ênfase correspondente no trabalho masculino adulto. Enquanto, em outros

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sistemas, homens e mulheres realizavam tarefas específicas (mas normalmente comparáveis), sob o capitalismo históricoo homem adulto assalariado foi classificado como ‘arrimo’ do grupo, aquele que ganha o pão, e a mulher adultatrabalhadora doméstica como ‘dona de casa’. Assim, quando as estatísticas nacionais [...] começaram a ser produzidas,todos os arrimos foram considerados membros da população economicamente ativa, mas o mesmo não ocorreu com asdonas de casa. O sexismo foi institucionalizado. O aparato legal e para-legal de diferenciação e discriminação foi quaseuma decorrência lógica dessa valorização diferencial do trabalho” (p. 22–4).

8 De acordo com Faria (2002): “O sistema sueco de seguridade para os pais parece também marcar o início de umaépoca em que, paralelamente à ênfase dada à redução dos diferenciais econômicos e de bem-estar relativos às classes sociais,a questão de gênero passa a assumir um lugar cada vez mais destacado na agenda pública do país. O grande ingresso dasmulheres no mercado de trabalho prenunciava a debilitação do tradicional modelo familiar do provedor e da dona-de-casa,e o Estado sueco começa a implementar políticas formuladas não apenas com o intuito de reduzir as diferenças nas médiassalariais e nas condições de trabalho entre homens e mulheres, mas também visando a tornar mais igualitária a divisão detarefas no âmbito doméstico”. A experiência sueca tem sido também seguida, por vezes com objetivos distintos e diferençasconsideráveis, por diversos países desenvolvidos: “A licença maternidade após o nascimento da criança, com compensaçãomonetária proporcional aos rendimentos, é um benefício previsto em lei na Suécia desde 1955; essa licença maternidadeoriginal, de três meses, foi estendida para seis meses em 1962. Em 1974, a Suécia tornou-se o primeiro país do mundo atransformar a licença maternidade em um sistema de licença remunerada para os pais, capaz de beneficiar tanto a mãequanto o pai. Em países como a Áustria, holanda, japão e Austrália, por exemplo, legislações similares foram introduzidasapenas no início dos anos de 1990 (OEcD, 1995). Nos países nórdicos, os pais passaram a ter direito a compartilhar alicença remunerada após o nascimento da criança nos seguintes anos: Suécia (1974), Noruega e Finlândia (1978), Islândia(1980) e Dinamarca (1984). Na Escandinávia, somente na Suécia e na Noruega uma parte da licença é reservadaexclusivamente para o pai (licença remunerada como um direito individual, não apenas como um direito da família); esomente na Suécia (1979) e na Finlândia (1988) os pais de crianças pequenas têm o direito de optar por uma jornada detrabalho de seis horas (com redução proporcional dos salários) (Nordic council of Ministers, 1994)” (Faria, 2002).

9 Ressalva-se a figura do segurado facultativo, de que trata o artigo 13 da lei 8.213/91, não engajado ematividade produtiva.

10 há, portanto, limites claros ao trabalho da análise jurídica em seu papel de interpretação desses valores:fundamentais: “Parte-se do ponto de vista de que os ideais deliberativos da igualdade, da liberdade e da abertura só podemse concretizar se determinadas condições sociais estão garantidas a todos os participantes. [...] Mas, note-se bem: o tipode igualdade material exigida pela democracia não é uma igualdade absoluta, mas a igualdade material relativa suficientepara que possamos deliberar quais são as diferenças que consideramos justas. Tampouco nos parece ser possível extrair doprincípio democrático a conclusão de que a democracia esteja vinculada, quanto às suas finalidades, à realização dedeterminado projeto social igualitário. O estabelecimento de finalidades se situa no campo do dissenso político e deve serresolvido através do princípio majoritário. como sublinhamos, as teorias democrático-deliberativas levam a uma restriçãoda atividade judicial ao campo da neutralidade política, deixando em aberto à deliberação majoritária o dissensoconteudístico. O que não pode ocorrer é o Estado violar os direitos fundamentais ou deixar de implementá-los —hipótese em que estará agindo ilegitimamente, ficando justificada a ação judicial” (SOUzA NETO, 2006, p. 324).

11 A teor da literalidade do artigo 227 da constituição Federal de 1988.

12 “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboraçãoda sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificaçãopara o trabalho.”

13 “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - educação infantil,em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda constitucional nº 53, de2006) [...] § 3º - compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar,junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.”

14 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 5º - Os direitos e deveres referentesà sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”

15 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao

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respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

16 “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar eamparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

17 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aosestrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta constituição.”

18 Para Silva (2009): “Primeiramente, é preciso destacar que a situação do pai solteiro que adota é totalmentediversa daquele que casado, adota uma criança. Isso porque em uma família binuclear (composta de pai e mãe, pode-sechamá-la assim) há, pelo menos do ponto de vista ideal, uma divisão de tarefas na promoção da adaptação familiar. Assim,o fato de um deles, no caso a mãe, poder gozar de uma licença mais ampliada, nos termos do artigo 392-A da clT,repercute positivamente no âmbito familiar. já em uma família monoparental, composta por um pai solteiro, a concessãode licença-paternidade de 5 dias somente, nos moldes do art. 7º, inciso xIx da cF/88 e do art. 10, inciso II do ADcT,seria extremamente prejudicial para a nova família que se forma, uma vez que não há a suposta divisão de tarefas presentena adoção feita por casais, não dispondo o pai, nessa situação, da disponibilidade de tempo necessária para cuidar daquelenovo membro da família. Nessa hipótese apresentada, constata-se que o princípio da igualdade tem espaço para suaaplicação, não para igualar a licença-paternidade entre os homens, mas para igualar o prazo da licença-paternidade dosolteiro que adota ao da licença-maternidade à adotante, prevista no art. 392-A da clT. O elemento discriminador sejustifica para promover a igualdade daqueles que se encontram em situação de desigualdade, em outras palavras, o solteiroque adota deve ter um prazo maior do que o casado que adota, pois deverá dispor de uma maior disponibilidade paracuidar da criança, já que não tem, mais uma vez frise-se, a princípio, como dividir seus cuidados na adaptação daquele serno meio familiar. Assim, verifica-se que as circunstâncias materiais entre solteiro adotante e empregada adotante sãosemelhantes, merecendo, por isso, tratamento igualitário”.

19 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição. Art. 7º São direitosdos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] xVIII - licença àgestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; xIx - licença-paternidade, nostermos fixados em lei; xx - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos dalei; [...] xxx - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,idade, cor ou estado civil.”

20 Para um aprofundamento sobre o tema, conferir Wallerstein (2001), de que destacamos o trecho a seguir:“Supondo-se que, sempre e em toda parte, um produtor que empregue trabalho assalariado prefira pagar menos do quemais, o nível salarial mais baixo que o trabalhador pode aceitar depende do tipo de unidade domiciliar em que eles seinserem. Dito de maneira mais simples: para trabalhos idênticos, com níveis idênticos de eficiência, o trabalhadorassalariado inserido em uma unidade domiciliar muito dependente da renda de salários (vamos chamá-la de unidadedomiciliar proletária) tendeu a buscar um patamar monetário mais alto (abaixo do qual seria irracional que elerealizasse o trabalho assalariado) do que o trabalhador assalariado oriundo de uma unidade domiciliar poucodependente da renda salarial (vamos chamá-la unidade domiciliar semiproletária). Essa diferença no que podemoschamar de patamar salarial mínimo aceitável tem a ver com a economia da sobrevivência. Nas situações em que umaunidade domiciliar proletária dependia principalmente de renda salarial, o salário precisava cobrir os custos mínimosde sobrevivência e reprodução. [...] Nas unidades domiciliares semiproletárias, aqueles que produziam outras formasde renda real (basicamente na produção domiciliar para consumo, para venda no mercado local ou para ambos), fossemo próprio assalariado (em suas horas livres) ou outras pessoas (de qualquer sexo ou idade), criavam excedentes quecontribuíam para baixar o nível salarial mínimo aceitável. O trabalho não assalariado permitia que alguns produtoresdiminuíssem a remuneração da força de trabalho, reduzindo assim o custo da produção e aumentando a margem delucro. Por isso, como regra geral, os empregadores de trabalhos assalariado preferiram recrutar trabalhadoresassalariados de unidades domiciliares semiproletárias, em vez de proletárias. A realidade global do capitalismo históricomostra uma regularidade estatística surpreendente: os trabalhadores assalariados vinculam-se mais a unidadessemiproletárias, e não a unidades proletárias” (p.22–6).

21 A lei Orgânica da Assistência Social (lei n. 8.742/93) prevê benefícios voltados à proteção da infância e damaternidade, mas apenas destinados a famílias de baixa renda: “Art. 22. Entendem-se por benefícios eventuais aqueles que

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visam ao pagamento de auxílio por natalidade ou morte às famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (umquarto) do salário mínimo. [...] § 2º Poderão ser estabelecidos outros benefícios eventuais para atender necessidadesadvindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa portadorade deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública. § 3º O conselho Nacional de Assistência Social(cNAS), ouvidas as respectivas representações de Estados e Municípios dele participantes, poderá propor, na medida dasdisponibilidades orçamentárias das três esferas de governo, a instituição de benefícios subsidiários no valor de até 25%(vinte e cinco por cento) do salário mínimo para cada criança de até 6 (seis) anos de idade, nos termos da renda mensalfamiliar estabelecida no caput”.

22 Nesse sentido, o art. 16, parágrafo único, da lei 8.212/91: “Art. 16. A contribuição da União é constituída derecursos adicionais do Orçamento Fiscal, fixados obrigatoriamente na lei orçamentária anual. Parágrafo único. A União éresponsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras da Seguridade Social, quando decorrentes do pagamentode benefícios de prestação continuada da Previdência Social, na forma da lei Orçamentária Anual”.

23 Na falta de melhor parâmetro para o valor do benefício para o trabalhador doméstico não remunerado, dever-se-ia garantir ao menos o correspondente à remuneração mínima do trabalhador comum.

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Rua Carolina Sucupira, 1180, ap. 1301Aldeota –60140-120

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Daniel Viana TeixeiraMESTRE EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA UNIVERSIDADE DE

FORTALEZA (UNIFOR)

PROCURADOR FEDERAL DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

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