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UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO DO HOMEM OCIDENTAL COM A MORTE E O MORRER NO FINAL DO MILÊNIO Simone Elisa Heitor Orientadora: Vera Casali

Destino: A Casa de Hades - um estudo sobre a relação do homem ocidental com a morte e o morrer no final do milênio

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Apresentação de trabalho de conclusão do curso de psicologia, PUC-SP (1998).

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UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO DO HOMEM OCIDENTAL COM A MORTE E O MORRER NO FINAL

DO MILÊNIO

Simone Elisa Heitor

Orientadora: Vera Casali

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O barqueiro Caronte, que faz a travessia do rio que separa o mundo dos vivos do reino de Hades (Alighieri, Dante. A Divina Comédia.)

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INTRODUÇÃO

• O presente trabalho tem por objetivo realizar e propiciar ao leitor uma reflexão sobre a morte e a importância da consciência da finitude para a construção da vida de modo livre e autêntico.

• A pergunta que permeou todo o trabalho, orientando esta reflexão, foi: qual o significado que o homem ocidental contemporâneo dá à sua morte? Que implicações tem essa significação na vida cotidiana?

• Esta reflexão foi feita através de estudo teórico e análise de uma entrevista, realizada com uma pessoa enlutada, a partir do referencial e do método da fenomenologia-existencial.

Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos

é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe.

Sócrates

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AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA MORTE: uma visão histórica e social

• A morte é uma questão essencialmente humana; o homem, por ser capaz de simbolização, pode saber-se mortal e pensar a morte. É no meio social que esta simbolização se dá; cada sociedade e cada cultura irá tratar o tema de forma própria. As atitudes frente à morte também vão sendo modificadas constantemente, ao longo dos séculos, acompanhando transformações sociais, culturais e econômicas.

• A atitude do sujeito frente à morte, por mais singular que seja, está impregnada de uma atitude prévia, aquela que determinada sociedade formula a partir do desaparecimento gradual de seus membros.

E somos Severinos / iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, da mesma morte,

severina: que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos

vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença / é que a morte severina ataca em qualquer

idade / e até gente não nascida).

João Cabral de Mello Neto

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• O homem representa e simboliza a morte desde a era paleolítica, com o surgimento do homo sapiens, quando se começou a enterrar os mortos. A idéia da imortalidade é uma constante nas sociedades primitivas; algumas acreditavam que os mortos seguiam vivendo na tumba; outras que a sobrevivência do defunto dependia da manutenção de sua memória entre os vivos; para outras, os mortos continuavam a viver como sombras. Acreditava-se que os mortos podiam interferir no mundo dos vivos.

• Nas sociedades antigas, como a grega, os rituais funcionavam como meio de proteção contra a possível ira dos mortos; além de oferendas, realizavam sacrifícios humanos e de animais; as reações de luto dos familiares eram bastante intensas. Era obrigação dos descendentes cuidar do túmulo e os falecidos eram lembrados nos “dias dos mortos”.

• Começa a surgir a idéia de que os mortos viviam em comunidades, no inferno e no paraíso. A idéia de alma chega a uma maturidade com Platão, é a partir do conceito de alma que vivos e mortos são definitivamente separados.

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• Para Ariès (1977), da Idade Média até os dias atuais, é possível verificar quatro diferentes posturas frente à morte; são elas:

1. A morte domada (Alta Idade Média): havia uma proximidade do homem com a morte; ele podia pressenti-la e não a recusava.A morte era uma cerimônia pública e era assistida pela comunidade, crianças inclusive. O moribundo deveria, nos momentos que antecediam a morte, rever sua vida, pedir perdão aos que devia, distribuir seus bens, declarar os últimos desejos; um sacerdote ministrava a extrema-unção. Após a morte, aconteciam as manifestações de dor dos enlutados; seguia-se a absolvição religiosa, os cuidados com o corpo, o cortejo e o enterro, que era uma cerimônia pagã, breve e sem solenidades.

2. A morte de si mesmo (Baixa Idade Média): os rituais foram transformados pelos ricos; surge o testamento – mutias pessoas deixavam sua fortuna para o pobres e para a Igreja, sacrificando a família em prol de um ato nobre que garantiria a salvação da alma. O funeral deixou de ser um ritual pagao para adquirir caráter religioso, com a realização de missa de corpo presente, seguida de outras missas após o enterro. Os pobres eram pagos para acompanhar o enterro e chorar o morto; passou a usar-se a cor negro para representar o luto.

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3. A morte do outro (a partir do séc. XVIII): a morte romântica, bela, que fará o culto aos mortos, associará erotismo e beleza ao cadáver, como em “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare. A dor da perda era exaltada, ostentada; existe uma atração pela vida em outro mundo, onde é possível reunir-se aos seres amados mais uma vez. A morte mais temida não é a própria, mas a do outro. A morte passa, assim, a habitar o mundo fantástico do imaginário.

Segundo Ariès, a partir da morte do outro o homem começa a perder a familiaridade que outrora tinha com a questão da morte, e é aqui que se encontra o início da recusa e da interdição da morte no século XX. No século XIX, a morte transforma-se em motivo de medo e cessa de ser representada para ser camuflada, escondida. Passou a haver uma repugnância em representar e imaginar o morto, transformação esta relacionada ao advento da burguesia e aos novos valores instituídos: a limpeza, a higiene e a ordem moral. As imagens da morte vão se tornando cada vez mais raras, não persistindo nas artes, até que praticamente desapareceram durante o século XX. A morte do século XX, desta forma é a morte interdita:

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4. A morte interdita: a morte não é mais vista como parte de um processo natural do desenvolvimento humano, mas algo a se combater, contra a qual lutar. Com o desenvolvimento da ciência, a medicina em particular, o objetivo é o de preservar e manter a vida. O moribundo passa a sujeito passivo, tutelado pela família e pela equipe hospitalar. A morte passou a ser escondida, camuflada; não é de bom tom falar sobre ela.

• Segundo Ziegler (1977), essa atitude frente à morte já se encontra arraigada em nossa sociedade e é tida como natural, como a única possível. Toda a postura frente à morte da sociedade capitalista ocidental vem da concepção de que o que deve ser valorizado é a produção, o consumo, a transformação constante, o desenvolvimento; se a morte é exatamente o contrário disto tudo, o caminho encontrado para deixá-la calar foi expulsá-la da linguagem e fazê-la aparecer o menos possível, especialmente nas grandes cidades: “tudo é acionado para que os vivos nada percebam. Em poucas horas sua presença é apagada, o corpo transportado, a lembrança imobilizada. Os ruídos da cidade mascaram o terror (…) para ganhar espaço, a sociedade mercantil prefere queimar os mortos” (Ziegler, J. Os Vivos e a Morte, pg. 138).

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A MORTE EM DIFERENTES CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS

• A morte é tema central na filosofia, por esta ser uma reflexão sobre a existência.

• Para Sócrates e Platão, há uma separação entre alma e corpo, sendo que esta alma é eterna e somente o corpo perece. A morte é transformação; os homens que se encontram demasiado ligados ao mundo físico não atingirão o conhecimento e a liberdade, e é apenas vivendo em liberdade que a vida possui verdadeiro valor.

• Aristóteles contrapôs esta concepção, afirmando que não há uma dualidade entre corpo e alma, ao contrário, são instâncias inseparáveis; o conhecimento vem dos sentidos e, portanto, pode ser alcançado através do corpo, e não da alma. A morte é o fim da existência.

• Para Epicuro, filósofo no qual se baseou a ciência moderna, a morte é a mera dispersão de átomos, que permanecem por serem eternos.

Nenhum mal pode acontecer a um homem de bem, nem em vida, nem depois da morte,

e o deus não o negligencia.

Sócrates

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A MORTE NA RELIGIÃO GREGA E NO CRISTIANISMO

• A religião grega se encontra, segundo diversos autores, na origem da religião em geral, sendo que muitas de suas concepções e idéias estão presentes ainda hoje, em nossa cultura. O que diferencia o homem dos deuses é o fato de que o homem é mortal: esta é a nítida separação entre os dois mundos, o da terra e o do Olimpo; os deuses assistem à tragédia humana, podendo nela interferir de diversas formas, mas não podem salvar o homem da morte. Os mortos viviam na “Casa de Hades”, no mundo subterrâneo. Hades, além de ser o deus dos mortos, era também o deus das riquezas, propiciando a produtividade e abundância nos campos – ao mesmo tempo em que é o aniquilador, é o transformador. Desta forma, podemos pensar que Hades simboliza a transformação necessária, a fertilidade, os novos começos. A morte não é vista como fim, mas como transformação.

E quando este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá a palavra

que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória?

Ora, o aguilhão da morte é o pecado.

S. Paulo, 15:54-56

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• Cristianismo: conta o livro do Gênesis que, tendo Deus criado o mundo, criou o homem à sua imagem; Adão e Eva foram colocados no jardim do Éden, no centro do qual havia duas árvores: a árvore da vida (cujos frutos garantiriam ao homem a vida eterna, resguardando-o da morte) e a árvore da ciência do bem e do mal (cujos frutos dariam oa homem o conhecimento do bem e do mal, que somente Deus possuía). Deus proibiu Adão e Eva de comerem o fruto desta árvore; no entanto, tentada pela serpente, Eva come do fruto desta árvore, dando-o também a Adão. Esta desobediência é o pecado original, ou seja, a desobediência livre do homem, que deseja tornar-se um deus, tomando para si o poder. Adão e Eva são expulsos do paraíso. Também nesta ocasião, Deus estabelece que o homem há de viver com sofrimento, pois tudo o que emerge, o que nasce, traz dor. Desta forma, o homem não só é castigado com a finitude de sua vida, mas expulso do paraíso, da Casa de Deus e de sua bondade. Jesus veio à terra salvar o homem deste pecado e, portanto, da morte. O homem pode alcançar a vida eterna se conhecer por um só verdadeiro Deus e seu filho Jesus Cristo; viver a vida eterna é possuir o verdadeiro conhecimento e ser livre da obscuridade, do pecado e da morte. A existência na terra é vista apenas como uma passagem, na qual deve-se viver bem e em união com deus, pois o que importa é alcançar a vida eterna.

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A MORTE NA VISÃO DA FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL

• A fenomenologia-existencial não é uma teoria; se constitui em um movimento que propõe o “retorno às coisas mesmas”, na visão de Husserl; busca compreender o homem e o mundo a partir da descrição da experiência, tal como ela se dá, antes de qualquer interpretação ou de submeter-se a qualquer teoria explicativa:

“Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar” (Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção, pg. 3)

“Buscar a essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em idéia, uma vez que o tenhamos reduzido a tema de discurso, é buscar aquilo que de fato ele é para

nós antes de qualquer tematização” (Ibid., pg. 13)

Sei que vou morrer / não sei o dia / Levarei saudades da Maria

Sei que vou morrer / não sei a hora / Levarei saudades da Aurora

Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba

Mas o meu nome ninguém vai jogar na lama/ diz o dito popular: “Morre o homem e fica a fama”…

Ataulfo Alves / Paulo Gesta

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• O homem é visto como um ente, que se diferencia dos outros porque não é dado, mas é um constante vir-a-ser. É um ser-aí, está lançado no mundo, em jogo, nao está acabado; tem a responsabilidade de construir sua vida, de cuidar de seu ser. Este ser-aí recebe, com Heidegger, a denominação dasein, ou pre-sença. Enquanto o ente é, o dasein existe; é um constante esboço que só consegue uma conclusão, um acabamento, com a sua morte. Não há nada que, essencialmente, o dasein deva realizar; esse caráter de ser das possibilidades é que traz ao homem um peso, uma angústia essencial frente a tarefa de existir – que implica, ainda, em uma busca de sentido, não sendo um viver desinteressado.

• Este existir só se dá no mundo (entendido não como um lugar, mas como a totalidade significativa do dasein); o dasein é, essencialmente, ser-no-mundo. A existência do dasein se dá, ontologicamente, com os outros, com as coisas, com as circunstâncias e consigo mesmo; não há um “sujeito” separado de um “objeto”. O ser é no e com; é relação.

• No cotidiano, a existência se dá na impessoalidade, que não tem conotação negativa: é um modo de ser onde há um certo grau de indiferenciação do que é o eu e do que é o outro. Neste âmbito, a existência, que é absolutamente solitária, pode ser compartilhada com os outros; no modo do “a gente”, o dasein encontra a possibilidade, a chance de poder fugir da angústia causada pelo indeterminado, pelo desconhecido, repetindo o já conhecido e encontrando assim uma segurança. A existência do dasein pode se dar de forma saudável quando existe uma certa mobilidade, na qual se pode transitar entre a indeterminação e a cotidianeidade, o impessoal.

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• O ser-para-a-morte: o destino da existência é a morte; esta apresenta ao homem seu limite, a temporalidade – o fato de que o dasein tem um tempo restrito. Se é o limite que dá a forma, podemos nos dizer homens somente porque morremos. É com base no conhecimento da condição de ser finito que o homem pode construir sua vida.

• Cotidianamente, a morte é reconhecida no modo da impessoalidade; mas Heidegger pensa que é na vivência da angústia que o dasein encontra a morte de modo mais próprio, podendo sair da ilusão do impessoal, aceitar a possibilidade da morte e dar significado e sentido à existência e ao cessar desta. Somente saindo do esquecimento de si mesmo é que é possível dar um sentido à vida e ser livre. O contato com o não-ser que se dá através da finitude, da ruptura, proporciona o movimento de apropriação constante, movimento este necessário para a garantia da existência, que vai proporcionar sempre a abertura de novas possibilidades de ser, expandindo o universo do dasein.

“(…) a angústia une os extremos: liberdade, poder ser, a vida, de um lado; finitude, morte, de outro. Por ela, experimentamos antecipadamente para onde tende a condição humana. Ela nos faz antever a origem e o fim que estão em nós já

dados e que a angústia nos leva a ponderar. Por isso, ela é indescartável, como marca da condição humana em cada um de nós, antes de qualquer

conhecimento. Aceitar essa condição de ser-para-a-morte e lutar pela vida: eis a verdadeira coragem de ser, pois ela supõe o confronto constante com o desconhecido que é o não-ser que nos afeta de diferentes maneiras”.

(Dichtchekenian, M. F. Alienação e Solidão: caminho existencial, pg. 48)

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método

• Foi realizado um estudo de caso, como meio de chegar a uma aproximação e compreensão da vivência, abarcando aspectos estudados nos capítulos de fundamentação teórica, procurando fazer reflexões e levantamento de outras problematizações, a partir do referencial da fenomenologia-existencial. Com esta abordagem, foi possível chegar a uma compreensão de qual é o significado da morte para meu entrevistado, buscando o sentido da experiência para ele, tendo como proposta de investigação a redução fenomenológica.

• A proposta foi entrevistar uma pessoa que tenha passado ou estivesse passando por uma situação de luto. Isto poque estou partindo do pressuposto de que a morte do outro mobiliza sentimentos e reflexões sobre a morte e a vida e talvez seja o momento em que a morte se torna mais próxima de nós, porque nos obriga a olhar para ela.

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• Foi realizada uma entrevista como pré-teste, a partir da qual foi elaborado um roteiro de entrevista semi-dirigida. A entrevista foi realizada na casa do entrevistado; foi colocada uma questão com a instrução para que ele falasse livremente sobre ela, tendo sido explicado que no decorrer de sua fala eu interviria para esclarecer algumas questões. Esta forma de conduzir a entrevista garantiu que o entrevistado colocasse sua vivência da forma menos dirigida possível.

• Foi adotado um nome fictício para o entrevistado e para as pessoas citadas na entrevista.

• A entrevista teve aproximadamente uma hora de duração, foi gravada e posteriormente transcrita.

• Para análise dos dados, foram levantados os temas que apareceram na entrevista, temas estes que se transformaram em categorias de análise.

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análise

• O entrevistado Marcos, 48 anos, perdeu a esposa há aproximadamente seis meses, em acidente de automóvel. As categorias para análise, surgidas da entrevistas, foram:

A. Concepção de morte

O entrevistado faz uma diferenciação entre morte natural e morte violenta, na qual inclui acidentes, guerras, doenças; a morte violenta, para ele, é uma morte em que a pessoa não cumpriu todo o seu ciclo de vida, ou seja, morreu jovem. A morte natural é vista como um acontecimento aceitável, enquanto a morte violenta é vista como uma morte injusta, revoltante, difícil de aceitar, sendo um impedimento do direito das pessoas de cumprirem um ciclo de vida desejável (realizar projetos, chegar à velhice). O entrevistado se pergunta se a morte violenta não seria também natural (próprio da humanidade), mas embora faça esta reflexão racionalmente, isto não impede que os entimento de revolta apareça. Pensando nas categorias utilizadas por Ariès, poderíamos dizer que, frente à morte de um idoso (natural) existe a “morte domada”, e frente à morte violenta existe a “morte interdita”.

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• O entrevistado diz que faz parte de sua concepção de morte a idéia de uma permanência, embora não saiba especificar exatamente como; acredita, pessoalmente, que algo permaneça, e um modo seria a permanência nas lembranças das pessoas que ficaram.Parece ser muito difícil pensar na morte como um fim absoluto; segundo o entrevistado, esta é uma idéia que lhe parece absurda. Existe a necessidade de pensar em alguma continuidade da existência. O entrevistado refere que muito de seu desconforto provém da falta de uma crença religiosa.

• A morte, para o entrevistado, é o deixar de ser, onde há a ausência da presença física da pessoa que se foi, mas ao mesmo tempo uma permanência. No caso da morte natural, esta situação é bem aceita e vista como parte de um processo; no caso de morte violenta, vê na morte uma grande negatividade, uma brutalidade que se apresenta como a negação da vida.

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B. Sentimentos frente à perda do outro

• O entrevistado relata sentimentos que podemos dividir em dois grupos: aqueles referentes à perda em si (tristeza profunda, falta, ausência, vazio) e aqueles referentes à morte e à situação na qual esta ocorreu (raiva, rancor, revolta, contrariedade, amargura). Os sentimentos de falta referem-se não somente à saudade da pessoa que se foi, mas também ao sentimento de perda de si mesmo; segundo o entrevistado, as pessoas são em suas relações (descrevendo precisamente a idéia de ser-com-os-outros) e, portanto, quando alguém morre, leva consigo um pedaço das pessoas com as quais se relacionava. O enlutado perdeu um relacionamento no qual ele se expressava, no qual ele era e, tendo perdido essa possibilidade, o seu modo de ser modifica-se. A partir de então, é um novo eu que deve ser construído, uma nova vida.

• O entrevistado refere-se também a uma sensação de “irrealidade”, como se a ausência da pessoa fosse temporária. Parece que esta sensação diz respeito a uma dificuldade em aceitar a morte, em aceitar a irreversibilidade da morte e o fim dos sonhos e dos projetos depositados na pessoa que se foi; fecham-se possibilidade de projetos futuros com a morte de uma pessoa próxima.

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• Estes sentimentos, de acordo com o relato do entrevistado, permanecem, mas de modo cada vez menos intenso com o passar do tempo. Inicialmente, eram extremamente fortes, profundos, angustiantes, e com o tempo vão se amenizando. Logo após a perda, experimenta-se um estado de torpor, como acontece quando se acorda após um pesadelo; aos poucos, vai recuperando o eixo, “voltando ao mundo real”, nas palavras do entrevistado, e a vida pode voltar a ser vivida, reconstruída, conforme o luto pode ser elaborado.

C. Mudanças, alterações

• O entrevistado relata que procurou manter a rotina, buscando nela uma segurança, um meio de não perder-se completamente na situação vivenciada como absurda, buscando mudar o menos possível.

• As mudanças ocorridas foram no modo de compreender algumas coisas; o entrevistado relata que passar por esta experiência fez com que ele questionasse o modo com que costumava tentar prever, planejar e controlar a vida como um todo; a questão do acidente inesperado levando à morte levou o entrevistado a refletir sobre estas questões de modo mais profundo e pessoal.

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D. A busca da racionalização como modo de escapar da angústia

• O entrevistado relata que passa por um momento de tentar entender racionalmente o acontecido, buscando explicações; este processo é visto como uma necessidade. As questões feitas não foram respondidas, mas o simples fato de refletir sobre elas aliviou o sentir-se atônito, dando uma certa organização ao turbilhão de sentimentos vivenciados.

• A perda exige um processo de reformulação do pensar e do viver, pois a morte do outro nos aponta a própria condição humana de ser-aí, nossa própria fragilidade. Faz-se necessário a busca de um “porquê”, de uma explicação, a partir da dificuldade em aceitar a morte como um fato imprevisível e inevitável.

E. O sentido da vida

• Para o entrevistado, o sentido da vida é viver bem, estar em harmonia com o mundo de forma em geral e ter a possibilidade de deixar alguma contribuição; relata que sempre pensou desta forma e, após a morte da esposa, confimou esta percepção.

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CONCLUSÃO

A angústia, que é sempre angústia de morte, é algo essencial do humano. No entanto, o convívio com a questão da morte também passa pelo aspecto cultural, e parece que a sociedade atual esfoça-se, mais do que qualquer outra, para encobrir a morte e a angústia. Quando se guarda muita distância da morte, é muito mais difícil saber lidar com ela quando acontece.

O objetivo deste trabalho foi propriciar uma reflexão sobre o tema, oferecendo para isto alguns elementos importantes: as diferentes formas com as quais o home lidou, na sua história, com a questão; como alguns filósofos e a religião entendem a morte. E, enfim, como um homem vivencia a morte do outro e pensa a questão a partir desta experiência.

Investigar e compreender como se dá a vivência do luto também traz contribuições para a prática psicológica, não apenas no trabalho com enlutados, mas no trabalho com qualquer situação em que esta vivência da falta, do vazio e da angústia esteja presente.

Existirmos: a que será que se destina? Pois quando tu me deste a rosa pequenina (..)

apenas a matéria vida era tão fina…

Caetano Veloso

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Apropriar-se da condição de ser finito e ter a consciência de que a existência está inscrita em um tempo limitado é fundamental para que o homem dê sentido e significado à sua vida e, desta forma, viva de modo autêntico, sendo livre e ativo na construção da própria história. Desta forma, a vida não será um mero despertar desinteressado todas as manhãs; cada ato, longe de ser uma ação repetitiva e automática, estará carregado de significado, de sentido.

A morte faz parte da vida… é o destino para o qual todos caminhamos. Destino já dado, destino cujo significado é o fim, a impossibilidade de toda a possibilidade. Mas se é justamente esse destino que nos faz humanos…

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Nem nos tribunais nem na guerra devo eu, ou qualquer outro homem, tentar escapar à morte por todos os meios. É certo que, muitas vezes, nas batalhas, um homem deve tentar escapar à morte, lançando for a as armas e suplicando a misericórdia dos seus adversários; e há muitas

maneiras de evitar a morte nos perigos de vária espécie, sempre que se queira fazer ou dizer tudo. Evitá-la não é difícil, cidadãos; é muito mais

difícil evitar a maldade, porque corre mais depressa do que a morte

Sócrates

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