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Deuses Gauleses Deus do Submundo Este título, apesar de não poder descrever na perfeição estas divindades, é o que melhor se aplica a classificá- las, especialmente de um ponto de vista semelhante ao que existia na Antiguidade. Existem relatos de que na Gália e Irlanda era adorado um Deus de cariz ctónico, com ligações à vida e à morte. Para o caso Gaulês, temos as palavras de Gaius Iulius Caesar, que no “Commentarii De Bello Gallico” (6.18) afirma que os druuides (druidas) afirmavam que os Gauleses eram descendentes de Dīs Pater. Antes de mais, temos de definir esta divindade Romana. Dīs Pater era o nome dado ao original Deus do Submundo Romano, mas que foi posteriormente substituído por outros nomes (Ploutōn e Orcus); a etimologia por detrás do nome Dīs foi- nos deixada por Cicero (na sua obra “De Natura Deorum“), que afirmou que tal palavra significava “riqueza”. Juntamente com pater, o título significa “Pai da Riqueza”. A raison d’être deste título deve-se certamente aos minerais que provêm do interior da terra. (Note-se que é incorreto estabelecer uma ligação com o título Diespiter, que é atribuído a Iuppiter; Caesar faz uma clara distinção entre os supostos equivalentes Gauleses de Dīs Pater e Iuppiter) No caso Irlandês, temos duas figuras principais: Donn e Dagda. Donn – cujo nome provém do Proto-Celta *dusno-, “escuro” – é filho de Míl Espáine e Seang e é tido como o primeiro ancestral dos Gaélicos a morrer na Irlanda. Morreu afogado após cortejar Ériu (que pode ser considerada como uma Deusa Soberana ou Deusa da Terra) – nome dado à Irlanda, proveniente do Proto-Celta *φīweryon-. Uma ilha perto do local da sua morte ficou conhecida como Tech Duinn (Casa de Donn) onde os mortos residiam.

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Deuses Gauleses

Deus do SubmundoEste título, apesar de não poder descrever na perfeição estas divindades, é o que melhor se aplica a classificá-las, especialmente de um ponto de vista semelhante ao que existia na Antiguidade.

Existem relatos de que na Gália e Irlanda era adorado um Deus de cariz ctónico, com ligações à vida e à morte.

Para o caso Gaulês, temos as palavras de Gaius Iulius Caesar, que no “Commentarii De Bello Gallico” (6.18) afirma que os druuides (druidas) afirmavam que os Gauleses eram descendentes de Dīs Pater.Antes de mais, temos de definir esta divindade Romana. Dīs Pater era o nome dado ao original Deus do Submundo Romano, mas que foi posteriormente substituído por outros nomes (Ploutōn e Orcus); a etimologia por detrás do nome Dīs foi-nos deixada por Cicero (na sua obra “De Natura Deorum“), que afirmou que tal palavra significava “riqueza”. Juntamente com pater, o título significa “Pai da Riqueza”. A raison d’être deste título deve-se certamente aos minerais que provêm do interior da terra.(Note-se que é incorreto estabelecer uma ligação com o título Diespiter, que é atribuído a Iuppiter; Caesar faz uma clara distinção entre os supostos equivalentes Gauleses de Dīs Pater e Iuppiter)

No caso Irlandês, temos duas figuras principais: Donn e Dagda.Donn – cujo nome provém do Proto-Celta *dusno-, “escuro” – é filho de Míl Espáine e Seang e é tido como o primeiro ancestral dos Gaélicos a morrer na Irlanda. Morreu afogado após cortejar Ériu (que pode ser considerada como uma Deusa Soberana ou Deusa da Terra) – nome dado à Irlanda, proveniente do Proto-Celta *φīweryon-. Uma ilha perto do local da sua morte ficou conhecida como Tech Duinn (Casa de Donn) onde os mortos residiam.Dagda (do Proto-Celta *dago-deywo-, “Bom Deus”; o adjetivo “bom” refere-se à sua grande competência em tudo o que faz), porém, possui características que o relacionam com a morte e a vida; as mais notáveis são a sua enorme clava, que mata os vivos e ressuscita os vivos, e o seu caldeirão da abundância que nunca se esvazia. Também os seus vários epítetos revelam algo sobre as suas características:

É chamado de Athgen Bethai, que provém do Proto-Celta *ati-genā-bitu-, “renascimento do mundo” e que revela os seus poderes sobre a a morte e a vida.

Duir, que tem como antecedente *duro- , “porta” “portão” pode referir-se à sua qualidade como mestre dos portões do Outro Mundo.

Ollathair, do Proto-Celtca *olyo-φatīr, “pai de todos”, refere-se não à frequentemente repetida – e incorreta – ideia de que é pai de todos os Deuses (impossível), mas sim pai de todos os humanos.

Curiosamente, também tem o epíteto de Donn – que já vimos anteriormente que significa “escuro” – que é uma ligação interessante a Donn, embora não signifique que sejam o mesmo, mas sim versões semelhantes.

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Porém, é necessário ter em conta que Dagda não é uma perfeita representação dos atributos que se verificam nos outros Deuses do Submundo das restantes subculturas Celtas. Vários dos seus outros epítetos indicam que foram atribuídas a Dagda funções de outros Deuses, nomeadamente do Deus do Trovão/Tempestade, do Deus Campeão e do Deus Selvagem/Pastoril (que são abordados nos respetivos artigos). Para evitar que haja confusões na mente do leitor, deixo uma simples lista dos epítetos com indicações:

Cerrce. Fer Benn, que tem como claro antecedente *wiro-bando-, “homem cornudo”,

que pode ser uma referência a um esquecido Deus Selvagem/Pastoril (conhecido na Gália como Cernunnos e Carnonos).

Labair, que provém de *labaro-, “falador” “que fala”, que seria um epíteto que se esperaria de um Deus ligado à eloquência (Ogma na Irlanda e Ogmios na Gália).

Áed.

Então tendo isto em conta, como realmente eram as coisas na Gália?

Até hoje, não temos um exemplo melhor de Deus do Submundo que Sucellos. O nome deste Deus provavelmente provém do Proto-Celta *su-kel-n-, “bom golpeador”. Sucellos tem dois atributos principais, o seu enorme martelo e uma olla, que são bastante reminiscentes da clava e caldeirão de Dagda; pode-se argumentar contra isto, mas acho bastante provável que um martelo possa ser uma evolução da clava original e que o pote tenha sido um fruto do processo de romanização, pois representar um enorme caldeirão não seria algo esperado dos romanos – regra geral, os romanos simplificaram a religião original Gaulesa. Por vezes Sucellos aparece acompanhado por um cão com três cabeças.Apesar de não aparecer sincretizado com Dīs Pater ou outro Deus claramente ligado à morte, isso não é muito surpreendente. Os Deuses Helénicos e Romanos ligados ao Submundo não possuíam as características revitalizadoras dos Celtas e Eslavos e é por isso que Sucellos aparece sincretizado com Silvanus. Isto provavelmente deve-se a uma possível e provável relação entre o Deus do Submundo (Celta) e a fertilidade agrária. John T. Koch, no seu “Celtic Culture: A Historical Encyclopedia” (pág. 554) defende que Dagda pode ser classificado segundo o modelo trifuncional de Georges Dumézil (*) como um Deus da “terceira função” relacionado com a riqueza e produção de comida, o que parece ser ainda mais aplicável a Sucellos.

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Sucellos

Uma das placas do caldeirão de Gundestrup pode mostrar um Deus do Submundo a revivificar soldados mortos, usando um caldeirão. Além deste elemento, temos um cão ou lobo que impede a passagem de mais guerreiros, o que indica que estão a esperar a sua vez. Na parte de cima, vemos guerreiros montados em cavalos a perseguir uma serpente cornuda.Um ponto adicional a ter em consideração, é a representação de uma árvore; esta pode ser uma árvore do mundo. Em baixo, estão os mortos e em cima os vivos a perseguir uma serpente fugitiva (ver Deus do Trovão/Tempestade). Isto pode indicar a viagem entre mundos.Atenção: a ausência de um torque na figura de tamanho superior pode muito bem indicar que é um sacerdote e não um Deus. Assim sendo, ficamos com uma cena sacrificial algo peculiar, devido à presença de uma árvore e da serpente cornuda.

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Um paralelo interessante e consideravelmente exato pode ser encontrado no Deus Veles dos povos Eslavos, que para além de ser senhor do mundo dos mortos, também está relacionado com o gado e a fertilidade vegetal por meios ctónicos.

Outro ponto a adicionar para o facto de Sucellos ser um Deus do Submundo é a sua ligação a Nantosueltā. Esta Deusa – cujo nome provém do Proto-Celta *nanto-swelo-tā, “vale solarengo”- está claramente associada à Terra tendo em conta a etimologia do seu nome e ainda os atributos com que é representada na iconografia Romana que a aproximam de Proserpina. J. J. Hatt afirma em “Mythes et Dieux de La Gaule” (tomo II, capítulo IX) que Nantosueltā é uma divindade que passa o Inverno no Outro Mundo (com base na representação desta com uma aedicula e um corvo), além de estar relacionada com a fertilidade agrária e a própria terra. Uma Deusa, também de cariz local e não supra-regional (como Nantosueltā) e com atributos muito semelhantes à anterior, chamada Airecurā é colocada na posição de consorte de Dīs Pater e junto com estes está mencionado Ogmios (que tem função de psicopompo).

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Nantosueltā e Sucellos

Juntando tudo isto, forneço um esquema de qualidades e atributos deste Deus como um sumário do que foi dito.

Teónimos conhecidos: Sucellos, Aisus, CīcollusAtributos: Um dos primeiros Deuses, criador, ligado à fertilidade vegetativa, através de meios terrenos, ciclo de vida-morte-renascimento (assim sendo, longevidade),mundo inferior (Andedumnos) e criador dos humanos.Consorte: Nantosueltā (de Sucellos), Litauī (de Cīcollus).Posses: Caldeirão e martelo (feito de teixo?).Animais: Cães, javalis (per folklore Galês, Irlandês e iconografia Galo-Romana).Plantas: Teixo.Cores: Preto ou cinzento (relação à morte), verde (atributos relacionados com a vegetação e aproximação a Veles).Festival principal: Trīnoχtes Samoni.Oferendas: Libações no solo, deixar oferendas de alimentos ou objetos numa cova.

* – Confesso que não sou grande apologista do sistema de Georges Dumézil, que considero um pouco rígido e não permite explicar a totalidade das crenças Celtas (e de vários outros povos). É bom, sim, mas é inegável que falta algo.

Deus do Trovão/Tempestade

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Não poderia haver um panteão Indo-Europeu sem esta classe de divindade, e a religiosidade Gaulesa estaria incompleta sem ele.

A nomenclatura usada – bastante direta e precisa, devo acrescentar – deve-se ao facto de estes Deuses serem “descendentes” diretos do Proto-Indo-Europeu (PIE) *Perkʷunos, um teónimo resconstruído, que provém do termo *perkṷ�u, ‘carvalho’. Essencialmente, além de estabelecer uma ligação com a dita árvore (sagrada para todos os Deuses com a mesma função, de origem Indo-Europeia), também poderia estar relacionado com *per- ‘atacar’, *per-g- ‘chacinar’.Havia uma variante deste teónimo, proveniente do PIE *(s)tenH-, ‘trovão’. Esta é verificável em no Proto-Germânico *þonaroz ou *þunraz, Hitita tarhun (que adquiriu o significado ‘derrotar’)e, como seria de esperar, no Proto-Celta *torano-.

De facto não há melhor representação do Deus Gaulês do Trovão/Tempestade do que Taranus, quer em etimologia, quer em iconografia e em funções.Segundo Lucanus, na sua “Pharsalia“, Taranus era um dos Deuses que recebia sacrifícios humanos, além de ser um dos mais importantes para os Gauleses. Gaius Iulius Caesar também o menciona, mas sob o sincretismo com Iuppiter; após a conquista, Taranus aparece sincretizado com IOM, Iuppiter Optimus Maximus.

Porém, existem bem mais informação sobre Taranus em outras obras e mesmo paralelos incríveis com outros Deuses Indo-Europeus.

Há um relato (in HATT, 1989:188-9) sobre a morte de São Vicente, que menciona um rito dos Gauleses durante os tempos do Solstício de Verão:

“No o território antigo (ligado a vila de Agen) na região de Metenses, mais corretamente de Nemetenses ou Vernemetenses, que é uma das mais conhecidas cidades da Gália, a multidão sacríleja dos pagãos tinha o costume de se reunir para celebrar cerimónias não de uma verdadeira religião, mas de uma ilusão sedutora, num santuário consagrado a um de seus deuses.Sem dúvida que os demónios que ali habitavam, enganavam, através de suas manobras mentirosas, os olhos e os espíritos da multidão que se encontrava reunida, de tal modo que este povo infeliz acreditava assistir a algum milagre divino, aonde não havia senão artifícios diabólicos. Com efeito, transpondo a porta deste mesmo templo, como se ela fosse empurrada por uma vontade divina ou, falando mais verdadeiramente, por um demônio que ali morava, uma roda inflamada costumava sair dali e descer o cimo da colina até um riacho que corria para a direita.Ela em seguida tornava a subir a encosta, até o templo do santuário, por um movimento inverso, vomitando chamas. Esta ilusão se esvaneceu quando em oposição a ela, foi feito o sinal da cruz. A multidão furiosa dos pagãos, levou o santo à morte.”

Porém, este não é um evento isolado.Olivares Pedreño, no seu “Los Dioses de la Hispania Céltica” menciona um evento semelhante, que decorreu na França e na Alemanha:

“O ritual consistia em lançar, durante a noite, uma ou mais rodas feitas de um certo material coberto com palha ou outro material vegetal, desde picos de ontanhas até aos vales. (…) Em algumas regiões, como Hesse, acreditava-se que os sítios onde as rodas flamejantes passavam ficavam protegidos de tempestades e granizo.

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Numa aldeia do Baixo Konz, era objetivo de alguns jovens guiar as rodas  desde o topo da montanha Stromberg até às águas do Moselle. Caso a roda flamejante chegasse à margem sem ficar presa nas vinhas que estavam plantadas à volta deste e as chamas fossem apagadas pelas águas do rio, previa-se que haveria uma colheita abundante de uvas. Se, porém, isto não acontecesse, ambas as colheitas e o gado sofreriam.“

É bastante óbvio a que divindade a que estes relatos se referem. O mencionar de montanhas, rodas flamejantes, gado e tempestades só pode estar ligado a Taranus. Existem provas de que havia um festival em honra deste no tempo do Solstício de Verão.

Na Gália, em Narbonne, existe um mosaico que refere o “aniversário” de Iuppiter ser celebrado a 20 de Junho, altura em que os recém-nascidos eram “batizados”. Esta celebração, é diferente  de qualquer outra conhecida em Roma, por isso é bastante provável que havia um substrato Gaulês. Por esta razão, com a chegada do Cristianismo, o Solstício de Verão foi tão facilmente dedicado a São João Batista.Temos ainda outra mais uma prova, com base em uma inscrição:

“TARANIS DITIS PATER HOC MODO APVT EOS PLACATVR: IN ALVEO LIGNEO ALIQVOD HOMINES CREMANTVR“

Pode ser tentativamente traduzida como: Taranis é aplacado do seguinte modo: num rio lenhoso são cremados/queimados um certo número de homens”.Apesar de aparentemente não ligado à cerimónia descrita anteriormente, estabelece mais uma ligação com a água e o fogo.

Olivares Pedreño, de novo em “Los Dioses de la Hispania Céltica“, vê uma ligação mitológica entre este rito do meio do verão e a forma como Indra derrota Vṛ�trá, um Asura que é descrito como im dragão ou serpente, e postula o seguinte:

“A informação mais reveladora da relação entre o Júpiter indígena e os riachos nas províncias Gaulesas e Germânicas provém maioritariamente, primeiramente, de várias colunas de Júpiter encontradas em tais contextos.Este monumentos representam vários elementos: na parte inferior, há um plinto com quatro frontes e em cada está a face de uma divindade (Viergotterstein); acima do plinto, está um segundo elemento, frequentemente octogonal, com relevos de divindades planetárias. É no cimo desta estrutura que a coluna propriamente dita está construída, representando um tronco de uma árvore, encimada por uma capital  na qual está um Júpiter num trono, ou do último a cavalgar, frequentemente como um guerreiro, sobre um gigante com cauda de peixe. Por vezes, Júpiter carrega a típica roda Celta ou uma representação de um relâmpago. Se houver uma inscrição, geralmente é dedicada a Iuppiter Optimus Maximus, accompanhado por Juno.A maioria destas colunas apareceram perto de riachos no percurso do Reno no território dos Mediomatrici e dos Treveri, ou seja, terras ocupadas por Celtas, enquanto que não existem mais em outros territórios do Império Romano. Curiosamente, os nomes dos dedicadores são sempre de origem Celta.Isto fez com que muitos investigadores concluam que estas colunas de Júpiter, apesar de cheias de elementos culturais Romanos, são manifestações artísticas de crenças religiosas e mitos Celtas.“

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“Para Gricourt e Hollard, esta ligação entre colunas e fontes é perfeitamente compreensível e afirmam que não minimizam a divindade em termos de hierarquia, nem lhe dão atributos relacionados com a saúde.A chave está, para estes investigadores, nas funções míticas e religiosas que a figura esculpida no topo da coluna tinha. O episódio em que o cavaleiro assimilado a Júpiter cavalga o seu corcel contra um monstro serpentino tem muita semelhança ao mito Védico sobre a confrontação entre o Deus Indra e o demónio Vṛ�trá. É dito que o monstro manteve as águas cativas, perturbando assim a ordem do universo; (Vṛ�trá) é por vezes representado como sendo extremamente magro e com as costelas bem definidas, visto que é o demónio da seca, más colheitas e, assim sendo, fome na comunidade.A vitória de Indra teria libertado as águas para estas fluírem novamente como rios.(…)Este tipo de mito que opõe um Deus da Tempestade contra um dragão ou serpente anfíbia com características antropomórficas é bastante comum entre Celtas e Indo-Iranianos, mas também em várias religiões de origem Indo-Europeia.“

Infelizmente, os Vedas são ignorados por muitos Reconstrucionistas quando procuram material comparativo. Assim sendo, irei citar um hino do Rig-Veda que fala sobre quando Indra frustrou o plano de Vṛ�trá.

“[01-032] Hino XXXII. Indra.Irei declarar as ações másculas de Indra, a primeira que ele alcançou, o possuidor do

Trovão. Ele matou o Dragão, depois libertou as águas e rachou os canais até às torrentes das montanhas. Ele chacinou o Dragão que se deitava na montanha: o seu celestial relâmpago feito por Tvastar. Como gado, o fluxo das águas deslizou até ao

oceano. Impetuoso como um touro, escolhou o Soma e em três sagradas taças bebeu os sumos. Maghavan agarrou o trovão como sua arma e atingiu até à morte o primogénito dos dragões. Enquanto que tu, Indra, chacinaste o primogénito do dragão e superaste

os feitiços dos encantadores. Então, dando vida ao Sol, à Aurora e ao Céu, não achaste nenhum inimigo que se opusesse a ti.  Indra, com o seu próprio e mortal trovão

despedaçou Vṛ�trá, o pior dos Vṛ�trás. Como troncos de árvores, quando o machado os cortou, prostrado no solo está o Dragão. Ele, como um guerreiro forte e louco,

desafiou Indra, o impetuoso muito-chacinador Herói. Não quebrou o choque das armas, mas esmagou o inimigo de Indra que derrubou fortes enquanto caía. Sem pés e

mãos, ainda assim desafiou Indra, que o atingiu com o seu raio entre os ombros. Emasculado, mas ainda assim reivindicando vigor viril, ficou Vṛ�trá com membros

espalhados e cortados.Enquanto mente como um rio que embate nas margens, as águas ganham coragem e

fluem acima dele. O Dragão está debaixo dos pés das torrentes que Indra na sua grandeza havia englobado. Humilhada estava a força da mãe de Vṛ�trá: Indra tinha lançado o seu raio letal contra ela. A mãe estava acima, o filho estava por baixo e

como uma vaca ao lado do seu bezerro, estava Danu. Enrolada nas incessantes correntes que fluíam para sempre em frente. As águas levaram o corpo sem nome de

Vṛ�trá: o inimigo de Indra afundou-se na escuridão.Guardadas por Ahi ficaram os escravos de Dasas, as águas ficaram como gado seguro pelo ladrão. Mas ele, quando puniu Vṛ�trá, abriu uma caverna onde as cheias ficaram aprisionadas. A cauda de um cavalo era tua quando ele, ó Indra, foi atingido pelo teu raio; tu, Deus sem igual. Tu que ganhaste de volta o gado, ganhaste o Soma; soltaste para que corressem livremente os Sete Rios. Nada o beneficiou, nem relâmpago, nem

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trovão, saraivada ou névoa que se tinham espalhado à sua volta: quando Indra e o Dragão lutaram em batalha, Maghavan ganhou a vitória para sempre.

(…)Indra é Rei de tudo o que se mexe e não se mexe, de criaturas mansas e cornudas, é o Possuidor do Trovão. Governa sobre todos os homens como Soberano, contendo todos

como raios numa roda.“

Tendo em conta tudo o que foi dito acima, é possível reconstruir tentativamente as fundações de um mito Gaulês sobre Taranus e o aprisionamento das águas.

1. Um monstro serpentino decide apoderar-se das águas do rio mais importante (o que está mais próximo da tribo a contar a história ou uma fonte mítica de todos os rios).

2. O monstro consegue chegar à origem do rio e aprisiona (engole?) a sua Deusa tutelar (por exemplo, a Deusa do Marne é Mātronā).

3. O rio deixa de fluir, pondo em perigo as colheitas e o gado e, por extensão, a tribo.

4. Os elementos da tribo imploram a Taranus que os venha auxiliar.5. Taranus ouve o suplicar da tribo e pede ao Deus Ferreiro que prepare a cerveja

da imortalidade/invulnerabilidade para ele (veja as linhas sobre a imortalidade dos Deuses na página Noibioi / Os Sacros).

6. Taranus bebe uma grande quantidade de cerveja, preparando-se para a batalha e parte, montando o seu cavalo.

7. Ao chegar, faz o seu cavalo pisar o monstro e este foge.8. Mais tarde, Taranus atira uma roda flamejante ao monstro, libertando assim a

Deusa do Rio e as águas.9. Taranus retorna ao seu dūnon (forte) celestial e a Deusa do Rio à fonte do seu

rio, enquanto que o monstro volta ao seu lar subterrâneo ou submarino.

Uma placa do caldeirão de Gundestrup pode, de facto, representar tal episódio:

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Repare na figura que carrega uma roda – que uns dizem estar quebrada, mas que a meu ver apenas é uma representação estilística de uma roda inteira, mas cortada a meio para não se sobrepor ao Deus – e na serpente cornuda que está sob os pés da figura “humana” completa. Esta serpente pode muito bem ser o equivalente a Vṛ�trá (algo que será abordado noutro artigo).

Além destas semelhanças, Taranus também pode ser identificado com outros Deuses Indo-Europeus, nomeadamente Perun e Perkūnas, um Deus Eslavo e outro Báltico (estes dois grupos, juntamente com os Celtas, têm muito de semelhante com os Védicos).

Segundo os mitos, Veles (já mencionado no artigo Deus do Submundo) além de poder ser um Deus, também lhe foi atribuída a função de monstro serpentino. É dito que Veles abandona o submundo para roubar o gado de Perun e que o último é forçado a punir afugentar Veles para obter o gado de volta. Tentando atingi-lo com relâmpagos, Perun perseguiria Veles de volta até ao submundo, obtendo de volta a sua propriedade e restaurando a ordem cósmica.Além desta associação mitológica, os símbolos de ambos os Deuses são muito semelhantes. Perun é representado por figuras semelhantes a rodas, que são chamadas de gromoviti znaci, ‘marcas de trovão’, enquanto que Taranus está quase sempre acompanhado por uma roda raiada, que pode ter seis (número mais comum), oito ou doze raios.

Gromoviti znaci.

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Estatueta de Taranus

As semelhanças entre estes três mitos pode fazer com que o Deus do Trovão/Tempestade Gaulês (e Britónico) possa ser encaixado na segunda função de Georges Dumézil, que está tipicamente relacionada com Deuses guerreiros . Porém, como seria de esperar, não traduz a totalidade dos atributos de Taranus.

Por fim, pegando no que foi dito no artigo Deus do Submundo, no que toca aos epítetos de Dagda, o leitor pode agora ter clara noção de como alguns são claramente designados para serem atribuídos a um Deus do Trovão/Tempestade:

Cerrce, que – segundo a interpretação de Marcílio Silva dos Brigaecoi, que segue a hipótese sugerida por William Sayers (“Cerrce, an archaic epithet of the Dagda, Cernunnos and Conall Cernach” – “Journal of Indo-European Studies“) – pode ter origem em *kerkyo- (“que envolve”), *kwerkyo- (“dono”) ou *kwerkwyo- (“que rodeia” “que encerra”); pode muito bem ser uma versão Q-Celta do Proto-Indo-Europeu *perkw- que deu origem ao teónimo do Teus Trovão/Tempestade *Perkwunos.

Áed, que é claramente proveniente de *aydu-, “fogo” (pensa-se que *aydu- seria o nome dado a um fogo sacrificial, diferente do fogo comum *teφnet-) e que se esperaria que fosse epíteto de um Deus do Trovão/Tempestade, visto que o fogo sagrado teria uma relação com o fogo celestial (relâmpago).

Dito tudo isto, fica uma concisa lista de atributos deste Deus.Teónimos conhecidos: Taranus, TaranisAtributos: Um dos primeiros Deuses, criador, ligado à fertilidade vegetativa através de meios celestiais (chuva e relâmpago),céu, montanhas, mudar das estações, fogo sacrificial (*aydu- > aidu), rei dos Deuses (funções soberanas), mundo superior (Albios), grande força, grande sede (de bebidas alcoólicas), carvalhos, chacinador de monstros (função guerreira).Consorte: Eponā (de Taranus, sincretizado com Iuppiter Optimus Maximus), Medunā (presume-se).Posses: Roda, Carro (?), Clava.

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Animais: Cavalos, touros, águias.Plantas: Carvalho.Cores: Cobre (por aproximação aos restantes Deuses IE semelhantes), vermelho (relacionada à soberania e classe guerreira entre Celtas).Festival principal: Sonnassodion Sami (Solstício de Verão) / Mediosamīnos (Meio do Verão)Oferendas: Libar, queimar comida (preferência para carne), bebidas alcoólicas (preferência para cerveja) e objetos votivos num fogo sacrifical especificamente dedicado ao Deus.

Deus da LeiEste artigo vai ser dedicado ao desvendar da natureza de Toutātis. Para o conseguir definir, vou-me servir de comparações com os seguintes Deuses: Varuṇ�a, Týr, e Njörðr.

Deixo aqui um poema genealógico Irlandês que será útil durante todo este artigo:

 “Veloz em navios,Ele atravessou o mar como guerreiro do oeste:

Um vento vermelho,

Que pintou as lâminas das espadas com uma nuvem sangrenta.Nuadu Necht(*1), forte e corajoso:

Um grande campeão que não amava castigo de um senhor justo.”

Ora, Toutātis não é – penso eu – um teónimo, mas sim um epíteto de um tipo específico de divindade Celta. Provém do Proto-Celta *towtā-āti- e significa algo como “o da tribo/nação”.Já com esta simples informação etimológica podemos obter uma definição preliminar: trata-se de um Deus especialmente dedicado à vida comunitária e social de uma toutā.

Infelizmente, não dispomos de muita informação sobre este Deus, apenas a suficiente para estabelecermos relações com teónimos que provêm de fora da Gália.

Na Irlanda, o melhor exemplo de um Toutātis de que dispomos, é Nuadu Airgetlám, que, no entanto, nunca é referido por este título ou semelhante (apenas se encontra fora da Irlanda).Nuadu foi rei da Tuatha Dé Danann, durante sete anos, até este “povo” chegar à Irlanda e se ver num conflito com os Fir Bolg, rejeitando o direito que estes tinham sobre esta terra. Algum tempo depois, na primeira batalha de Maige Tuired, perde o seu braço direito, que é decepado por Sreng, o campeão dos Fir Bolg; daí o seu epíteto Airgetlám, ‘Mão de Prata’, que provém do Proto-Celta *arganto-φlāmā, visto que Dian Cécht (o médico da Tuatha) lhe manufaturou uma mão falsa de prata completamente funcional após tal derrotaÉ neste momento que Nuadu perde a soberania sobre a Tuatha Dé Danann para os Fomoiri. Tudo leva a crer que foi o primeiro rei dos Deuses Gaélicos, já que nenhum antecedente seu é mencionado.Esta história não é um caso isolado. Em Gales temos um mito que Nudd Llaw Eraint – mais tardiamente conhecido como Lludd.

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Ora, o epíteto de Nudd é Llaw Eraint, que, à semelhança de Airgetlám, significa ‘da Mão de Prata’, mas que não usa uma palavra composta, recorrendo ao caso genitivo. Logo em Gaulês Médio e Britónico, teríamos ‘Lāmiās Arganti’. Porém, ao contrário do que aconteceu com Nuadu, não resta qualquer registo de como é que Nudd ganhou tal epíteto.Assim como Nuadu, Nudd também tem função de rei entre as figuras divinas da mitologia Galesa, assim como da Grã-Bretanha.

O que podemos concluir com isto é que no passado pré-Cristão e pré-Romano, haveria uma clara conceção de que o Deus da Lei teria sido o primeiro soberano entre os Deuses, mas que perdeu a sua mão direita num conflito com os rivais destes. Como entre os Celtas existia a noção de que apenas um indivíduo fisicamente perfeito poderia governar decentemente, isto impossibilitaria de continuar o seu papel. Como é mencionado nos artigos Deus do Trovão/Tempestade e Deus Multi-Habilidoso, o seu sucessor é o Deus do Trovão.Porém, apesar de deposto, o seu legado continuou sob a forma de regras morais e sociais. Como primeiro soberano, seria de esperar que tivesse sido ele a estabelecer as normas que regeriam a vida em comunidade; daí a denominação “Deus da Lei”.

Sirvamo-nos, então, dois exemplos comparativos: Týr e Varuṇ�a.

Segundo a mitologia Nórdica, Týr perdeu a sua mão direita quando esta lhe foi mordida pelo lobo Fenrir, tendo colocado a dita cuja entre as suas mandíbulas como forma de [falsamente] assegurar que os Æsir não o desejavam ludibriar.Assim, de forma algo semelhante a Nuadu, Týr perdeu a sua mão num esforço para assegurar a continuidade do seu povo. Ambos perderam a mão com a qual brandiam as suas armas. Algo que mais ambos têm em comum é o facto de estarem relacionados à justiça e assembleias tribais, além de serem ambos considerados heróis.Como é mencionado no poema acima transcrito, existe uma clara associação de Nuadu à arte da batalha, sendo ainda mencionada a cor associada à classe guerreira: o vermelho.Esta dimensão guerreira explica a associação a Mārs, após a conquista, de teónimos da Grã-Bretanha e da Gália como Noudons (> Nōdons), Nōdens e Noadatus.Uma das funções de Varuṇ�a é ser o senhor de ṛ�ta, a lei universal da ordem, por ele engendrada, e que deve ser mantida por todos os seres vivos aliados aos Devās e alguns Asurās. Logo, é sua tarefa punir os transgressores, ser o punho de ferro que garante o cumprimento da lei.

É esta a tarefa do Deus da Lei, manter as normas sociais e manter a coesão dentro da toutā. É uma função jurídica e guerreira.

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Representação moderna de Nuadu.

Mas o que significam ao certo estes teónimos Celtas, previamente mencionados?De acordo com a análise de Ranko Matasović in “Etymological Dictionary of Proto-Celtic” (pág. 293), é possível fazer estes teónimos remontar a *Nowdont-, que teria como antecedente *snowdo-, ‘névoa’.A outra hipótese é fazer os ditos teónimos remontar a *neh2w-, ‘necessidade’, o que é sinceramente impossível, já que a corresponde evolução em Proto-Celta – *nāwito- – nada tem em comum com os ditos teónimos.

Em Lidney, Gloucestershire, perto do rio Severn, existe um templo Romano que foi erigido em honra a Noudons. Estava repleto de associações à pesca e ao mar; num mosaico do chão do templo, é possível observar-se golfinhos, peixes e monstros marinhos. Um artefacto e um fresco representam um deus que “cavalga” os mares numa carruagem.Existe uma ligação à cura – presente em santuários Galo-Romanos em honra a Deuses sincretizados com Mārs – indiciada pela presença de quartos (no quadrante noroeste) que eram reservados para a prática de incubatio ou para tratamento privado a peregrinos. Também foram encontrados alguns instrumentos médicos.Curiosamente, existe ainda uma sincretização com Silvanus que pode ser ligada à representação de cães. Isto poderia, segundo John T. Koch in “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” associá-lo à caça e a Gwyn ap Nudd.Como é dito no poema Irlandês, Nuadu é associado ao mar e às atividades que envolvessem este elemento natural. Esta ligação é intensificada com a menção do oeste, que, claro está, se refere à direção que era associada ao oceano em toda a Europa ocidental; sendo que, nas regiões costeiras, havia uma associação mais forte ao pós-vida. Acontece que também é do oeste que costuma provir a névoa que por vezes esconde as terras da Europa atlântica, nas manhãs frias.No que toca à Gália, temos informação que provém da obra de Lucanus, “Pharsalia”. Nesta obra, é mencionado que as vítimas humanas que eram sacrificadas a Toutātis eram afogadas numa bacia (cheia de um líquido não especificado), num santuário em Massalia.

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Novamente de volta a Varuṇ�a, algo que também o descreve é a sua faceta como Deus das águas, sejam estas de rios, poços, chuva ou do mar. Além do mais, também ele está associado ao oeste, com o acréscimo de guardar as almas dos que morreram afogados.Porém, esta é como que uma característica secundária sua, já que a principal é a já previamente mencionada função jurídica.Mas as associações marinhas de Varuṇ�a não possibilitam que possa ser classificado como uma divindade marinha. O mesmo pode ser dito de Noudons/Nuadu/Nudd (*2), que apesar de ligado ao mar e ter um templo perto do ponto em que o Severn desagua, não é um Deus marinho per se.É para esta situação que se estabelece a ligação a Njörðr. Este Deus, apesar de estar obviamente ligado ao mar e à fertilidade, não rege o dito elemento, apenas tem afinidade a este e oferece o seu auxílio aos que nele navegam.

Será Noudonđ ou um Deus semelhante?

Apesar de frequentemente ignorado, o Deus Lēnus ou Lenus, dos Trēuerī, é o melhor exemplo de um Toutātis nativo gaulês.A etimologia deste teónimo é um tanto misteriosa… Se o “resultado” final (em Gaulês) for Lenus, o antecedente Proto-Celta permanece bem escondido.Mas se se tratar de Lēnus, é possível fazer o teónimo remontar a *leyno-, que pode significar ‘campo’ ou ‘suave’ (“Proto-Celtic – English Wordlist“, University of Wales, pág. 53) . Contudo,  em Pommern, o seu nome aparece como Laenus (“Les dieux gaulois : répertoire des noms de divinités celtiques connus par l’épigraphie, les textes antiques et la toponymie“),  que costuma implicar um antecedente em ai, ou seja, hipotético **Lainus, cuja etimologia é ainda mais misteriosa.Como as inscrições em que se pode ler “LENVS” são 7 (Feyen, FlieBem, Tréves, Welschbilig, Virton, Mensdorf e Mersch), de um total de 9, que abrange a Grã-Bretanha, vou optar por presumir a forma Lēnus < *leyno- como a mais correta.

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Estátua de Lēnus no templo de Martberg.

Este Deus dos Trēuerī – uma tribo que permaneceu muito fiel às suas tradições originais, até depois da conquista – tinha um grande santuário em Martberg, cujas origens remontam à Idade do Bronze final, altura associada ao Proto-Celta (“Mythes et Dieux de la Gaule”, J. J. Hatt, pág. 90) (“Der Martberg bei Pommern an der Mosel und seine Kultstätte“, de Joseph Klein, págs. 62 a 116). Neste santuário foram escavadas imensas peças de joalharia, moedas, assim como armas ritualmente danificadas que foram deixadas para Lēnus, que datam da época La Tène assim como da época Galo-Romana. Uma das duas inscrições, escrita por um indivíduo de nome helénico – Tychicos – agradece a Lēnus por o ter curado. Já em Martberg é notório que se tratava de um santuário dedicado à cura, não só devido ao testemunho de Tychicos, como também devido à existência de edifícios que se pensa terem sido usados para serem administrados tratamentos por parte de sacerdotes. Trata-se de um claro palalelo, em termos de funcionalidade, com o templo de Noudons.

Contudo, não podemos esquecer a óbvia sincretização a Mārs, ainda mais fortalecida pela estátua de Lēnus que é claramente representado como um guerreiro helenizado. Outro paralelo com Noudons, será a ligação à água, que está presente na sua fonte sagrada em Am Irminenwingert, perto de Trier; perto desta fonte, existiam banhos e santuários menores – alguns dos quais dedicados às Mātres e à esposa de Lēnus, Ancamnā – todos aproveitando as águas sagradas para os seus cultos (“Mythes et Dieux de la Gaule”, J. J. Hatt, pág. 91).As parecenças finais, que o tornam um perfeito Toutātis, são as oferendas de estatuetas, que representam crianças; pensa-se que foram depositadas no santuário de Trier para

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que fossem protegidas por Lēnus (“Mythes et Dieux de la Gaule”, J. J. Hatt, pág. 90). Ainda no mesmo santuário, existe uma inscrição em que se pode ler:

“Marti et Ancamnae et Genio pagi Vilciatis C. Serotinius Iustus ex voto posuit“

Como Hatt desvenda (“Mythes et Dieux de la Gaule”, J. J. Hatt, págs. 128 e 129), Lēnus e Ancamnā seriam os padroeiros responsáveis por abençoar as reuniões dos pagi encarregues de administrar o templo. Deste ponto de vista, ambos estão claramente integrados na sociedade tribal e teriam sido ainda mais importantes nos tempos antecedentes da conquista.

Nascente da fonte sagrada em Am Irminenwingert.

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Por fim, existe um último ponto a ter em consideração, que é o par do Deus da Lei. Como já foi mencionado no artigo Deus Multi-Habilidoso, estes dois estão ligados de raiz por causa de uma ligação que remonta a uma origem Proto-Indo-Europeia, que é abordada por Georges Dumézil em “Mitra-Varuna”.

Em suma, os panteões Indo-Europeus costumam ter um par de divindades que pertencem à primeira classe, ou seja, à classe “educada”, digamos; ou seja, que não exercem funções relativas à classe produtora ou à guerreira. Estes Deuses costumam ter, nos exemplos mais óbvios, funções de cariz social e comunitário e ainda alguma afinidade a fenómenos naturais opostos.

Existem dois exemplos perfeitos entre os Nórdicos – e, muito certamente, entre qualquer povo Germânico – e os Védicos.

O exemplo Nórdico é o caso de Týr e Óðinn. Apesar de o primeiro ter sido, em tempos, mais proeminente do que o último, ambos formam um duo que complementa mutuamente a dita primeira função de Dumézil. Enquanto que Týr se ocupa de atos sociais como julgamentos, assembleias e batalhas e de virtudes como a honra e a lealdade, Óðinn faz imenso uso das suas capacidades de mudar de forma, do conhecimento que ganhou através de várias provações e usa-o para levar avante a sua vontade. Um é um Deus de cariz jurídico e outro é de cariz mágico-religioso.Se analisarmos o teónimo Týr, apercebemo-nos de que provém do Proto-Germanico *Teiwaz, que remonta ao Proto-Indo-Europeu *Deiwos, ‘Deus’ Esta antiga divindade está relacionada com o céu diurno. Assim, seria de esperar que Óðinn esteja associado ao céu noturno ou escuro; já um dos seus imensos nomes, Fjölnir, que pode significar ‘oculto’ nos remete para esta hipótese, assim como Ýjungr, ‘tempestuoso’.

No caso Védico, temos Mitrá e Varuṇ�a. O primeiro trata de assuntos claramente políticos e está associado ao dia e ao sol, enquanto que o último é capaz de usar magia para punir infratores de normas sociais e tem ainda uma ligação à noite e às águas.

No caso Celta, temos dois mitos bastante semelhantes preservados.Na Irlanda, temos o exemplo da segunda batalha de Maige Tuired, em que Lug regressa do exílio e oferece as suas muitas capacidades a Nuadu, de forma poder ajudar a Tuatha Dé Danann a derrotar os Fomoiri.Em Gales, temos o conto “Lludd a Llefelys”, em que Lludd – ou seja, Nudd – é irmão de Lleu e o primeiro lhe pede ajuda para acabar com três misteriosas pragas que atingem o seu reino.Em ambos os casos, a figura do Deus Multi-Habilidoso age como um complemento do Deus da Lei.Ora, como *Nowdont- está associado ao pôr-do-sol, seria de esperar que *Lugu-, esteja associado ao nascer deste, algo que pode ser alargado para um estar associado ao período noturno e outro ao diurno.

Teónimos conhecidos: Noudons (> Nōdons > Nudd) e (Nōdens < Noudens <) Nōdens na Grã-Bretanha; Noadātus, Loucetios e Lēnus na Gália.Atributos: um dos primeiros Deuses, criador, mar e rios, primeiro rei dos Deuses (mais tarde forçado a resignar-se por perder uma mão), mão de prata, névoa, funções jurídicas, pesca, leis, navegação, caça, cura, o oeste, funções guerreiras, noite.Consorte: Ancamnā (de Lēnus) e  Nemetonā (de Louceitos).

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Posses: Espada, lança (?) e mão de prata.Animais: Cães.Plantas: ?Cores: Vermelho.Festival principal: ?Oferendas: Bens e alimentos deixados em bacias com água ou no mar.

*1 – O uso do nome Necht como se fosse um sobrenome ou epíteto pode ser uma ligação à figura mitológica – e de cariz divino – Nechtan. Também Nechtan está associado a águas, mas apenas às do poço de Segais.Um facto curioso é que se pensa que o nome de Nechtan está ligado ao Proto-Indo-Europeu *nepot-, ‘sobrinho’, ou, mais precisamente, ao teónimo Sânscrito Apām Napat  e ao Apąm Napāt, ‘sobrinho das águas’. Isto ligaria Nechtan a outras figuras como Neptunus e Nethuns.A questão é que o Proto-Celta *neφot- jamais daria origem a tal teónimo, visto que φ desapareceu completamente em todas as línguas Celtas antigas, com possível exceção no caso Lepôntico (em que persistiria como v). Uma regressão de Nechtan a Proto-Celta daria algo como *Neχtono-.Uma figura semelhante a este Deus permanece por atestar fora da Irlanda.

Deus Multi-HabilidosoEste tipo de Deus é algo relativamente curioso e – diria eu – único na cultura pan-Celta e que realmente não tem grandes paralelos, quando visto num todo, com as restantes fés Indo-Europeias. Porém, ao analisarmos cada um dos seus traços, é possível chegar a um consenso sobre as suas qualidades, algo que tem iludido a maioria dos estudiosos, principalmente nos tempos mais primordiais da arqueologia.

Quando se fala em “Deus Multi-Habilidoso”, é óbvio que é a *Lugu- que a pessoa se refere.Já foram propostas várias possibilidades etimológicas para desvendar o significado deste teónimo. a principal destas (e que é a menos descabida) é que provém do Proto-Indo-Europeu *lewk-. Isto não seria possível, já que o PIE ew transformou-se em ow em Proto-Celta e a vogal k não se alteraria para g.Porém, a raiz deste teónimo já foi descoberta. John T. Koch afirma que o teónimo tem origem no Proto-Celta *lugyo-, ‘juramento’, algo que faz sentido tendo em conta o aparente tabu em mencionar o nome de Lugus em fórmulas de juramento atestadas nas fontes insulares.

É tomando esta hipótese como correta que é possível caracterizar uma das facetas de Lugus…

Ora, tendo em conta que *Lugu- (uso esta forma para abranger os teónimos insulares e continentais) provém de *lugyo-, podemos estipular que uma das suas funções era ser Deus do juramento.Como seria de esperar, encontramos um paralelo não só na religião Védica em Mitrá, mas também no Zoroastrismo, em Mithra. Estes dois teónimos provêm do Proto-Indo-Iraniano (um ramo do Proto-Indo-Europeu) *Mitra – ‘contrato’ – e ambos são Deuses do juramento.

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Mitrá, era um Deus muito importante no período Védico, sendo que era considerado regente de contratos, tratados, amizades, alianças, assembleias e defensor da veracidade.Na linha 59 da terceira Mandala do “RigVeda”, Mitrá é mencionado na seguinte forma, no parágrafo 1, 2 e 6, respetivamente:

“Quando Mitrá fala, provoca agitação nos homens para que trabalhem (…)”

“(…) ó Mitrá, que lutas para manter a tua Lei sagrada.”

“(…) auxiliador da raça do homem, que dás o maior esplendor, a fama gloriosa”

Porém, este Deus raramente aparece mencionado no RigVeda sem o seu companheiro Varuṇ�a, que o ajuda no manter da Lei – rtá – que o próprio Varuṇ�a engendrou. Esta relação também se verifica na mitologia pan-Celta (veja o artigo Deus da Lei).

Mithra, por outro lado, é tido como ligeiramente omnisciente, sendo que esta qualidade é mencionada no “Yasna”:

“Mithra das largas pastagens, dos mil ouvidos e da miríade de olhos.”

Isto é novamente referido no “Khordeh Avesta”:

“Homenagem a Mithra das amplas pastagens de gado, cuja palavra é verdadeira, que pertence à assembleia, que tem mil ouvidos, que é bem formado, que tem dez-mil olhos,

exaltado, que tem amplo conhecimento, que é prestativo.”

 Assim sendo, é possível concluir que Mithra não pode ser enganado, ludibriado e sempre vigilante. Ou seja, é impossível escapar às obrigações de um acordo após o celebrar deste, sem que Mithra possa punir a ofensa.Ao contrário do que acontece na religião Védica, não existe nenhum cognato direto Iraniano de Varuṇ�a, sendo que as funções de omnisciência deste foram atribuídas a Mithra já de raiz.

Agora é altura de comparar isto com as provas dos territórios Celtas.Como já foi dito, nas fórmulas de juramento, é possível confirmar que os seus autores estranhamente evitavam usar termos que aludissem expressamente ao termo ‘juramento’ (*lugyo-) e o nome de *Lugu- pertencia a esse tipo de vocabulário, certamente.Na Irlanda, temos, em Irlandês Antigo (no Ciclo de Ulster):

“Tongu do Día toinges mo thúath”

“Juro ao Deus a que a minha tribo jura”

 Como é possível constatar, evita-se termos derivados de *lugyo-, preferindo-se a alternativa derivada de *tong-e-, que significa ‘jurar’ e ‘prometer’.Em Gales, temos a seguinte fórmula, em Galês Médio (no “Math Fab Mathonwy”):

“Mi a dynghaf dyghet idaw”

“Juro um destino por ele”

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O “ele” mencionado é, muito provavelmente, Lleu, a forma Galesa de *Lugu-.Por fim, na inscrição de Chamalières, é possível ler:

“(…) toncnaman tonsciiontio (…)”

Esta parte da frase tem sido comparada às formas acima descritas, apesar de ainda não se ter chegado a um consenso quanto à possível tradução.Mas, tal como existe um aparente tabu em mencionar *Lugu-, também é possível encontrá-lo mais explicitamente referido.Novamente no Ciclo de Ulster, é possível encontrar:

“Luigim luigi luigis mo thuath”

“Juro o juramento que a minha tribo jura”

Esta forma já está obviamente ligada ao Proto-Celta *lugyo-.Na Gália, também na inscrição de Chamalières, é possível encontrar Lugus diretamente mencionado:

“Luge dessu-mmi-iisLuge dessu-mi-isLuge dessu-mi-is

Luχe”

“Por Lugus os preparo,Por Lugus os preparo,Por Lugus os preparo,

Por Lugus.”

 Ou seja, estamos perante algo (mencionar termos derivados de *lugyo- ou não) que podia ser opcional, já que ambas as formas estão atestadas, se bem que o não mencionar é mais comum.Ora, tendo já definido *Lugu- como um Deus do juramento, temos de ter em conta o que mais pode ser adicionado tendo ainda esta dimensão em conta.O primeiro a ter em conta, é o prestar de serviços. Como qualquer estudante da Lei atual saberá, os serviços são prestados e estão sujeitos a contrato/acordo (isto de forma simplificada). Acontece que a vassalagem é um serviço e que existe um epíteto do Mercurius Galo-Romano que se refere a isto mesmo: Uađđocaletos.Este epíteto remonta ao Proto-Celta *wasto-kaleto- e significa ‘duro com os servos’. Prestar vassalagem não é uma obrigação social per se e é diferente de escravatura (algo que estaria no domínio do Deus da Lei). Um vassalo presta juramento de servir um amo e é aqui que *Lugu- entra: o dito cujo vigiaria este contrato e trataria de punir o servo caso este não cumprisse a sua palavra.Algo ainda relacionado à contratualidade é o comércio. Em “De Bello Gallico”, Caesar refere que os Gauleses viam Mercurius – ou seja, Lugus e outros nomes que este teria – como “padroeiro” de trocas e dinheiro (entre outras coisas). Esta ligação ao comércio também está sujeita a contrato, se bem que – tal como atualmente – é algo que é feito de forma quase automática: o dono quer vender e o cliente quer comprar, logo acordam em fazer a troca por um montante.O próprio manuseamento de dinheiro – como empréstimos – também implicaria um

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contrato. *Lugu- também tem, portanto, a capacidade de intervir nestes casos, garantindo a honestidade entre ambas as partes (se o preço é justo, severidade dos juros, etc). Afinal, trata-se de um juramento. O próprio festival Gaélico de Lugnasad tem como uma das suas principais atividades o comércio.Assim sendo, temos – por agora – uma divindade que rege os juramentos, contratos, trocas comerciais.

A seguinte faceta de *Lugu- são os seus dotes “artísticos”. Tal como Caesar diz em “De Bello Gallico”, Lugus era considerado pelos Gauleses como “omnium inventor artium”, ou seja, inventor de todas as artes.Sabemos que Caesar não estava a inventar, pois Lug – a versão Irlandesa – tem como epítetos Samildánach, ‘igualmente dotado’, e Iludánach, ‘muito dotado’.No “Cath Maige Tuired” podemos ler uma descrição da totalidade das artes praticadas por Lug:

“O guarda da porta perguntou a Samildánach:– Qual é a arte que você pratica? – disse ele. – Pois ninguém entra em Tara sem saber uma arte.– Pergunte-me. – disse ele. – Sou carpinteiro.E o guarda da porta respondeu:– Não precisamos de si. Já temos um carpinteiro, Luchtae, filho de Luachaid.– Pergunte-me, ó guarda da porta! Sou ferreiro.E o guarda da porta respondeu-lhe:– Já temos um ferreiro, Colum Cualléinech dos três novos processos.Ele disse:– Pergunte-me: sou um campeão.O guarda da porta respondeu:– Não precisamos de si, já temos um campeão, Ogma filho de Ethliu.Ele disse de novo:– Pergunte-me – disse ele. – Toco harpa.– Não precisamos de si. Já temos quem toque harpa, Abhcán filho de Bicelmos, que foiescolhido pelos homens dos três Deuses dos montes dos síd.Disse ele:– Pergunte-me: sou um herói.O guarda da porta respondeu:– Não precisamos de si. Já temos um herói, Bresal Echarlam filho de Echaid Baethlam.Então ele disse:– Pergunte-me, ó guarda da porta! Sou poeta e sou historiador.– Não precisamos de si. Já temos um poeta e historiador, En filho de Ethaman.Ele disse:– Pergunte-me. – disse ele. – Sou feiticeiro.– Não precisamos de si. Já temos feiticeiros. Muitos são nossos feiticeiros.Ele disse:– Pergunte-me: sou médico.– Não precisamos de si. Já temos Dian Cécht como médico.– Pergunte-me. – disse ele – Sou copeiro.– Não precisamos de si. Já temos copeiros, Delt e Drucht e Daithe, Taé e Talom e Trog, Glei e Glan e Glési.Ele disse:– Pergunte-me. Sou um bom braseiro.

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– Não precisamos de si. Já temos um braseiro, Credne Cerd.E ele disse de novo:– Pergunte ao rei – disse ele. – se ele tem um único homem que possua todas estas artes, e se ele tiver, não entrarei em Tara.”

Embora se trate de uma lista bastante ampla, podemos discernir pelo menos quais as artes que eram prezadas entre os Gaélicos da Idade do Ferro até à Idade Média.Algo que também é possível discernir é como as suas habilidades não estão fixas a apenas uma classe social.A carpintaria, ferragem e tratamento de braseiros é algo que se encaixa na classe social mais baixa (excluindo os escravos, que nem eram considerados uma classe), a dos produtores.Os feiticeiros, poetas, historiadores e médicos encaixam-se na classe sacerdotal.Os heróis, copeiros (?) e campeões claramente pertencem à classe guerreira, que estava encarregue de exercer poder sobre as restantes, com ajuda da classe sacerdotal.Temos, portanto, uma divindade que não está restringida a apenas um certo tipo de atividades; tem a capacidade de obter excelência em cada uma delas.Como é dito por Koch, em “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” (pág. 1203), *Lugu- é tratado como um prodígio divino, um génio entre os Deuses, que mesmo conhecendo artes ligadas à classe produtora/artesã, consegue dominar outras das classes regentes.

Algo que também aponta para a sua natureza relacionada ao transcendente, ao que está para vir, é o seu animal por excelência: o corvo. Este animal é descrito e representado exaustivamente em fontes galo-romanas, não só associado a Lugus, mas também a outros Deuses como Nantosueltā e Sucellos.Para o caso de Lugus, temos o relato algo fictício sobre a fundação de Lugudūnon (> Lyon), registado por  pseudo-Plūtarkhos:

“Depois do Arar [o rio Saône], um monte chamado Lūgdūnos que também mudou de nome, daquela vez, pela razão seguinte. Inspirados por um oráculo, depois de terem sido perseguidos por Séséronéos, Mômoros e Atepomaros foram até aquela colina para fundar uma aldeia.Quando estavam a escavar as fundações, corvos apareceram, voando em todos os sentidos, cobrindo as árvores das redondezas. Versado na ciência dos augúrios, Mômoros batizou a aldeia de Lūgdūnos, pois, na sua língua, corvo diz-se ‘lūgos’ e um monte ‘dūnos’, tal como diz Clitophon no 13º livros dos seus “Ktiseis”.“

Não sabemos quanto deste relato foi inspirado pela história real da fundação de Lugudūnon, mas são visíveis pelo menos 3 elementos etimologicamente Celtas. O primeiro é o nome Atepomaros (corretamente escrito seria Attepomāros), que remonta ao Proto-Celta *ad-tekwo-māro, ou seja, ‘da Grande Fuga’ (que Koch entende como um epíteto de Lugus: “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia”, pág. 1291). Depois, temos o elemento dūnos, mais comummente escrito no neutro singular dūnon (daí o latinismo dunum). Por fim, temos lūgos, que, ao contrário do que o autor afirma, não se trata de um nome para ‘corvo’, mas, certamente, de uma falsa etimologia para o teónimo Lugus; afinal de contas, Lugdunum deriva de Lugudūnon, ‘Fortaleza de Lugus’.

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Algo de interessante é que no testo é referido que Mômoros conhecia o augúrio, ou seja, a arte divinatória de prever o futuro através do voo de pássaros. Isto, conjugado com o facto de corvos serem animais altamente ligados a presságios, pode ser mais uma pista de que Lugus seria um dos dois indivíduos da história, se não ambos. De forma vagamente semelhante, Llefelys tem poderes de divinação no “Cyfranc Lludd a Llefelys“, o que lhe permite descobrir quais são as pragas que o reino de Lludd sofre.Já num relato de Strabōn (in “Geographica“, IV) este alude a pássaros corvídeos com asas brancas, que possivelmente teriam sido pêgas, que era usados para um rito de divinação.

Curiosamente, foi achado em Lyon um recipiente que representa o Mercurius Galo-Romano acompanhado de animais que não são aqueles tipicamente associados à versão nativa Romana. Entre eles estão um corvo, que voa acima do dito Deus.

Recipiente achado em Lyon.

*Lugu- é uma divindade trans-funcional, capaz de se movimentar livremente sem restrições.Caesar, em “De Bello Gallico” afirma que os Gauleses acreditavam que Mercurius [Lugus] os guiava em viagens. Isto remete-nos para o seu epíteto (ou epíteto alternativo) Ciđđonios – atestado como Cissonius ou Cisonius –  que deriva de *kisto-ono-yo-, que significa algo como ‘da Grande Charrua’. Segundo o “Mythes et Dieux de la Gaule“, pág. 217, esta é uma ligação óbvia a Lugus ser padroeiro dos viajantes.Isto é ainda mais óbvio quando temos em conta um certo detalhe que é atestado em Gales, mas também na Ibéria e na Gália. No conto “Math Fab Mathonwy” (quarto ramo do “Mabinogi”) e nas “Trioedd Ynys Prydain” , é dito que Lleu tem ofício de sapateiro.

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Em território Celtibérico, existe uma dedicação por parte de um consórcio de sapateiros a uma tríade de *Lugowe-:

“Lugouibus sacrum L. L. Vrcico collegio sutorum”

“”L. L. Urcico dedicou isto aos sagrados Lugoues, pelo consórcio de sapateiros”

 Estamos perante três hipóteses:

1. Ou *Lugu- domina a arte de fazer sapatos.2. Ou tal afirmação é do domínio simbólico, estabelecendo um paralelo entre os

sapatos permitirem a deslocação (confortável) e a versatilidade de *Lugu- não só em termos de funções mas na sua capacidade de deslocação entre mundos e formas.

3. Ambas as coisas.

Ligada a esta capacidade trans-funcional, está a capacidade de *Lugu- de praticar magia. No “Cath Maige Tuired” Lugus usa magia para lutar, além das suas próprias armas, assim como Lleu – no “Cyfranc Lludd a Llefelys” – consegue fornecer a Llud conselhos sobre como magicamente ultrapassar as três opressões que prejudicam o reino do último.

Assim, podemos ainda estabelecer que *Lugu- tem domínio sobre magia, tornando-o ainda mais poderoso. Podemos estabelecer, portanto, um paralelo com *Wōđanaz, que domina a magia assim como as artes guerreiras (existe uma teoria que afirma que *Lugu- influenciou a evolução do culto de *Wōđanaz, mas não vejo razões para crer que não tenham evoluído de forma semelhante de forma natural mas também devido a proximidade territorial). *Lugu- pode, então, ser classificado como uma divindade da primeira função – nomeadamente de cariz mágico-religiosa – de Dumézil.

Algo a ter em conta é que Lugus é representado em forma tríplice, dentro e fora da Gália.Na Irlanda, uma versão do nascimento de Lug afirma que ele é um de trigémeos.Na Gália, temos duas representações de uma divindade com três faces, que se crê ser Lugus:

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Baixo relevo encontrado em Paris.

Altar achado em Reims.

Parece-me que estamos em condições de definir Lugus:

Deus de juramentos Deus de comércio, lucro e viagens Deus trans-funcional

Não poderia, porém, terminar este artigo sem mencionar o que Lugus não é.

Lugus não é uma divindade do sol (ou da lua).As associações à luz têm sido por demais feitas até hoje, isto não tem muito por onde se lhe pegue. Como já foi dito anteriormente, uma ligação a *lewk- seria impossível, já que

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temos o Proto-Celta *lowko-, que jamais se tornaria em lugus.Algo que certamente alimentou esta ideia – errada – da ligação à luz foi o que ocorreu nos territórios insulares.Na língua Galesa, lleu pode significar ‘luz’ e ‘brilho’. Porém, é provável que estejamos perante uma reinterpretação do significado original, tal como aconteceu nos termos para ‘druida’; a palavra para ‘druida’ deriva, originalmente, de *dru-wid- (‘conhecimento firme’) – que daria o Gaulês druuiđ – sendo que em Galês Médio deu-se um retorno à raiz anterior *derwo-wid- (ver “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia”, pág. 615).Curiosamente, as divindades Mitrá e Mithra têm cariz solar; Mitrá pertence ao grupo dos Ādityas, que são divindades de classe solar, enquanto que Mithra, num período mais tardio, parece chegar a um ponto de fusão com a própria divindade do sol (que até então tinha sido Hvarə-xšaēta).

Lugus não é uma divindade da tempestade. O Lugus Ibérico, Gaulês e Britónico não o são, mas Lug (Gaélico) pode ser interpretado como tal.Como pode ler nos artigos Deus do Trovão, Deus do Submundo e Lugunassātis, na Irlanda ocorreu um processo em que algumas divindades aglutinaram a si funções de outras; Lug não foi exceção.A sua subida ao poder após o destronar de Nuadu e, depois, de Bres, é algo que não ocorre fora da Irlanda. Tipicamente, o sucessor de Nuadu – excluindo o detalhe dos Fomoiri – seria o Deus do Trovão. Porém, Lug tendo já funções deste foi o óbvio candidato.Os seus outros epítetos Lonnbeimnech (‘atacante destemido’) e Lamhfhada (‘braço longo’) juntamente com a etimologia popular relativamente ao seu nome – que, novamente, é dito significar ‘luz’ – é sinal de que houve uma deslocação de funções, além da ligação à colheita e chuvas de verão. T. F. O’Rahilly, em “Early Irish History and Mythology” (págs. 60 a 65) postula que a sua lança, Gae Assail, seria uma representação do relâmpago.É seguro afirmar que fora dos territórios ocupados por Gaélicos, esta tarefa de assegurar as chuvas de verão que permitiriam as colheitas, seria tarefa do Deus do Trovão/Tempestade.Dagda assumiu o trono depois de Lug e creio que o tenha feito mais como Deus do Submundo, isto porque fora da Irlanda este tipo de Deus nunca alcança qualquer tipo de papel soberano sob o panteão; ou seja, Dagda seria a última escolha.

Lugus não é uma divindade da colheita.Como dito no parágrafo anterior, ao contrário de Lug, Lugus não tem qualquer domínio sob os fenómenos atmosféricos, pois tal cabe a Taranus (e afins).Assim sendo, num rito de Lugunassātis, um Reconstrucionista Gaulês teria de agradecer a Taranus e não a Lugus por este fenómeno.Porém, isto não implica que o que for recolhido na colheita não lhe possa ser dedicado também, visto que a própria colheita é um ganho que pode ser armazenado, trabalhado e até vendido.

Teónimos conhecidos: Lugus, Ciđđonios, Uisuciios.Atributos: Viagens, comércio, riqueza, astúcia, todas as artes, função mágico-religiosa, dia, juramentos, liderança, guerra, caminhos, calçado, assembleias, triplicidade.Consorte: Rosmertā, Atesmertā, Cantismertā.Posses: Lança e cavalo (?).Animais: Cavalos e corvos.

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Plantas: Freixo.Cores: ?Festival principal: LugunassātisOferendas: Dinheiro e bens manufaturados deixados em encruzilhadas, cimo de montes e no limite de propriedades.

Deus do SolOs Deuses do Sol são sem dúvidas os mais bem atestados em toda a Gália e a sua importância é mais que óbvia por tal facto.Embora a sua presença esteja curiosamente omitida ou dissimulada nos mitos insulares – principalmente no “Mabinogi” – tal deve-se ao desejo de quem registou os mitos de retirar estatuto divino ao sol e da própria “evolução” das mentalidades; ou seja, gradualmente o culto foi esquecido ou substituído por algo menos explícito (como culto a um qualquer santo).

Comecemos, antes de mais, por analisar qual seria o nome dado ao sol pelos Celtas. Existem várias opções no Proto-Celta *sowono-, *swel- *sūli- e *sāwol-.A primeira opção está atestada na Gália sob a forma de sonnos, nomeadamente numa anotação do calendário de Coligny: sonnocingos.A segunda opção aparece no teónimo Nantosueltā, cujo significado é ‘vale ensolarado’. A forma Gaulesa provavelmente seria suelos.A opção *sūli-, sem dúvida a mais curiosa, começou por significar apenas ‘sol’ mas eventualmente surgiu um significado secundário: ‘olho’, ‘visão’. Esta mudança será explicada mais abaixo. A palavra encontra-se atestada na Gália em alguns nomes próprios, como Sūlinus (“Dictionnaire de la Langue Gauloise” pág. 287). Assim sendo, em Gaulês teríamos sūlis.Apesar de os substantivos com terminação em -i serem maioritariamente femininos, também podem ser masculinos.Por fim, a última opção permanece por atestar na Gália, apesar de aparecer nas versões antigas das línguas Britónicas (Bretão, Cornualho e Galês). A evolução Gaulesa seria, provavelmente, algo como saūl.

Se queremos de facto descobrir a natureza do Deus Sol Gaulês (e, por extensão, Celta) temos de nos servir de outros Deuses solares Indo-Europeus. Os melhores paralelos, a meu ver, são  Apollōn (Grego Ático) Hēlios e Sūrya.

Hēlios, talvez seja o melhor paralelo por que começar, visto ser o mais familiar às perceções da maioria das pessoas que não está familiarizada com a totalidade das visões Indo-Europeias relativas às divindades solares.Ora, Hēlios é tido como um Deus solar de cariz mais “original”, ou seja, ele é o próprio Sol e não o seu “auriga”, digamos. Na “Odysseia”, o Titã faz jus ao seu epíteto Panoptes – que tudo vê – e espia Ares e Afrodíte enquanto estes estão na cama, indo depois acusar Ares a Hēphaistos.Apenas após mencionar este relato já temos algo com que relacionar o Deus do Sol Gaulês, nomeadamente Grannos. Este Deus tem o epíteto de Amarcolitanos, que provém do Proto-Celta *amarko-φlitano- e que significa “Olhar Amplo”. Não só é um paralelo ao vigilante diurno dos céus que é Hēlios, mas também ajuda na explicação mitológica para a passagem de um substantivo para ‘sol’ – *sūli- – adquirir o

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significado adicional de ‘olho’. Entre os povos Celtas, o sol era um olho no céu, sempre vigilante, para o bem ou para o mal do Homem. De facto, os eruditos da cultura Proto-Indo-Europeia costumam concordar que os Deuses solares eram considerados serem capazes de ver tudo.

Seguidamente, partimos para o Olímpico Apollōn.Este Deus originalmente não tinha quaisquer associações solares, mas à medida que a cultura Helénica evoluía, o culto a Hēlios perdeu proeminência e deu-se uma ligeira fusão entre este e Apollōn. Porém, Apollōn não é o sol, embora possua características que são frequentemente atribuídas a uma divindade solar.A mais importante e com paralelos ao culto solar Celta é a capacidade de cura. Em Apollōn, esta capacidade pode ter origens não Indo-Europeias, mas já na “Ilíada” já este era considerado o curandeiro dos Deuses Helénicos. A luz do sol era, portanto, benfazeja.Temos, novamente um paralelo nos Deuses do Sol Celtas. Pegando novamente no exemplo de Grannos, este aparece referido como Grannos Phoebus, sendo que Phoebus é um epíteto de Apollōn que significa ‘Radiante’; isto assegura-nos de que Grannos é realmente um Deus do Sol. Por outro lado, tinha sempre como centro de culto uma fonte termal, sendo que o principal provavelmente seria Aachen (< Aquis Granni, ‘Águas de Grannos’). Sincretizado como Apollō (note o uso da grafia romanizada) Grannos, este Deus era grandemente venerado pelas suas capacidades de cura, existindo várias dedicações a este.A ligação de Deuses do Sol Celtas a fontes termais é algo bastante comum. Apollṓ�nios Rhódios escreveu que entre os Gauleses existia o mito de que as fontes termais teriam origem nas lágrimas do Deus do Sol que caíram à terra. Isto é algo que pode ser comparado pelo seguinte verso da “Canção de Amhairghin“:

“Uma lágrima do sol.“

Sūrya, por fim, tal como Hēlios era considerado como sendo o próprio sol, possuindo também uma carruagem no qual é transportado (embora esta seja puxada por um cavalo com sete cabeças ou sete cavalos). Sūrya tem como principal festival o Makara Sankaranti, que é principalmente um festival em honra ao sol e de colheitas, no qual os primeiros grãos são dedicados a este Deus.Novamente, recorremos a Grannos para mais um possível paralelo. Um relato (J. A. MacCulloch, 1911, “The Gods of Gaul and the Continental Celts“) menciona uma prática folclórica de inícios do século XX, segundo o qual os aldeões de Auvergne se reuniam à volta de fogueiras, queimavam tochas de palha e cantavam:

“Granno mon ami,Granno mon père,Granno ma mère.”

“Granno, meu amigo,Granno, meu pai

Granno, minha mãe.”

O relato parece algo duvidoso, mas faz algum sentido quando se adiciona o detalhe do festival chamado Decanoχtes Granni, ‘Dez Noites de Grannos’, que é atestado em Limoges e que será abordado com maior detalhe na página Uēlerios / Calendário.

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Possivelmente os Decanoχtes Granni teriam ocorrido durante as colheitas primaveris, por volta do mês de Março (“La fête des brandons et le dieu gaulois Grannus” pág. 428).

Existe ainda a questão de haver uma faceta menos amigável do Deus do Sol, que é frequente nas restantes culturas Indo-Europeias: o sol das doenças e da seca. Apollōn era, de facto, também um dador de doença, além de curador destas. Possivelmente o calor do sol poderia ter de facto uma faceta mais implacável associada às secas.

Fica a restar, então, a questão da simbologia. Entre Indo-Europeus, o sol é frequentemente associado ao dourado – como no caso de Sūrya – e também ao amarelo, por extensão.Porém a questão mais importante é o símbolo a utilizar. Como já é discutido na página Deus do Trovão/Tempestade e na página Simbologia, a roda adquiriu uma associação ao trovão em vez de à habitual conotação solar. Penso que seria provável que a suástica – no sentido anti-horário – tenha sofrido uma mudança de significado para um símbolo puramente solar, deixando a mais habitual ligação a *Perkwunos.Outro símbolo frequentemente usado em moedas para representar o sol é um círculo com um ponto ou outro círculo no interior deste; trata-se certamente de uma aproximação a um olho.Segundamente, o animal mais associado a um Deus do Sol é o cavalo, tendo em conta as figuras de cavalos oferecidas a Apollō Belenus.

Escudo de Battersea, no qual a suástica (anti-horária) e motivos circundantes parecem ser de conotação solar.

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Moeda dos Suessiones, na qual estão presentes uma suástica (anti-horária) e um cavalo.

Moeda Britónica com mais um símbolo solar e um crescente lunar.

Nota 1: Belenos e Belisamā, ao contrário do que é repetido frequentemente, não são consortes, mas sim irmãos. O Proto-Celta *belo-, ‘brilhante’, é usado no teónimo Belisamā com o superlativo -isamā, o que lhe atribui o significado de ‘brilhantíssima’. Esta Deusa é associada a Minerva – o que a torna uma Deusa da Aurora e Lareira – logo não pode ser consorte de um Deus do Sol, que tem sempre como cônjuge uma Deusa Celestial (ver artigo Deusa Celestial).

Nota 2: Apesar de problemática, a origem do teónimo Grannos parece ter origem no Proto-Celta *gwrenso-, ‘calor’, tendo-se dado a seguinte evolução: *gwrenso- > *gwranso- > *gwranno- > grannos.O significado da palavra é sem dúvida o mais apropriado às características do sol Celta, que é uma fonte de calor e não de fogo, fazendo lembrar o cognato Sânscrito ghrmansá, ‘calor solar’ (“Dictionnaire de la Langue Gauloise”, pág. 183) (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic”, pág. 147). Este “calor” seria a essência do próprio sol, que estaria contida no fundo de fontes termais.

Teónimos conhecidos: Grannos, Belenos/Belinos, Boruos, Moritascus.Atributos: Dia, sol, calor, fontes termais, maior curador, fertilidade agrícola, vista/olhos, seca.Consorte: Đironā (de Grannos), Briχtā*1(de Luxouios), Dāmonā/Damonā (de Moritascus)Posses: Cavalos e carruagem (?).Animais: Cavalos.Plantas: Meimendro (?) (Gaulês belenion ou belenuntiā)Cores: Amarelo e dourado.Festival principal: Decanoχtes Granni.Oferendas: Figuras de cavalos em fontes termais, frutos a um fogo.

*1 – este teónimo provém do Proto-Celta *briχtu-, ‘magia, encantamento’, o que lhe retira associação (em princípio) a uma Deusa da Aurora e Lareira, sendo sim uma Deusa Celestial, dado que o nome significaria ‘a mágica’.

Deus Ferreiro

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Frequentemente esquecidos – talvez com exceção dos que atualmente se dedicam às artes da ferragem – os Deuses Ferreiros tinham considerável importância na Antiguidade, tanto que relatos dos seus feitos foram bem preservados nos territórios insulares, até aos dias de hoje.

Pelo que tem sido evidenciado nas ilhas no continente, os teónimos mais comumente atribuídos a estes Deuses, eram os que tinham como raiz o PIE *ghwobh- ou *gwhobh-, que deram origem ao Proto-Celta *goban-: ‘ferreiro’.

A partir de tal raiz, surgiram os três teónimos conhecidos atualmente… Na Irlanda, temos Goibniu, cujo antecedente, em Irlandês Primitivo, teria sido Gobeniū; em Gales, temos Gofannon (ou Gouannon), que teria sido precedido por Gobannonos. Na Gália, encontramos os teónimos Gobannus (achado em Vézelay, no caso dativo singular) e Gobanus (atestado em Berne, também no dativo singular), que são claramente mais aparentados à versão Britónica.

Infelizmente, não dispomos de registos das palavras para ‘ferreiro’ ou de teónimos claramente associados a tais atividades, para que se possa fazer uma comparação ainda mais ampla. Assim sendo, este artigo focar-se-á, principalmente, nos casos insulares – com a ocasional comparação a paralelos Indo-Europeus – terminando no que se verifica na Gália.

Começando com o caso mais ricamente preservado…

Goibniu é o ferreiro da Tuath Dé Danann, e é mencionado, frequentemente, junto a outros Deuses que estão associados a outros ofícios essenciais para um povo da Idade do Ferro. No “Lebar Gabála Érenn”, Goibniu forma um quarteto homens de ofícios juntamente com Luchne, Créidne e Dian Cécht que são, respetivamente, carpinteiros, ourives e médicos. Por outro lado, no “Cath Maige Tuired” Goibniu figura, juntamente com Luchta e Créidne, uma tríade de artesãos encarregue de fornecer armas aos Deuses para estes lutarem contra os Fomoiri.Nestes dois textos, Goibniu está inserido – juntamente com os seus comparsas – em um grupo que se dedica a ofícios que correspondem, maioritariamente, à terceira função que Dumézil postulou: a função produtora. Digo maioritariamente, pois Dian Cécht talvez seja mais facilmente inserido na primeira função, como curandeiro (algo que pode ser tido como responsabilidade sacerdotal).

De forma semelhante, Gofannon aparece, também, mencionado junto com Amaethon (< Ambaχtonos), seu irmão, que é um Deus associado à produção agrícola, não só tendo em conta as funções que lhe são dadas, nos mitos, mas também devido à etimologia do seu nome: provém do Proto-Celta *ambaχto-, que tem o significado de ‘vassalo’ e ‘servo’; contudo, em Galês Médio, o termo [amaeth] passou a remeter-se a um servo que estivesse encarregue de tratar dos campos agrícolas (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic”, pág. 32).Apesar de não figurar tão amplamente nos mitos galeses como Goibniu aparece nos irlandeses, é possível, ainda, estabelecer mais um paralelo entre os dois. Gofannon não tem associação explícita aos tempos guerra e à produção em massa de armas – tanto que a principal tarefa mitológica que lhe é atribuída é o afiar das partes metálicas do arado do seu irmão Amaethon – mas no livro de Taliesin, no poema “Ymddiddan Myrddin a

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Thaliesin” são mencionadas as míticas 7 lanças de Gofannon, que foram por ele forjadas.

E quanto a Gobannus (e seus semelhantes)?

Até hoje, não foram achadas quaisquer alusões à produção de armas relativamente este teónimo e suas variações. Contudo, não podemos ser ingénuos ao ponto de negar que as tivesse; afinal de contas, a guerra e a caça faziam parte do dia-a-dia dos povos Celtas, e alguém teria de fabricar as armas: os ferreiros. Talvez pudessem escolher especializar-se na produção de ornamentos – amuletos, fíbulas, torques, etc – ou de peças para uso privado e público – caldeirões, taças, moedas, etc – ou de armas.

Contudo, o maior ferreiro – o Deus Ferreiro – certamente conseguiria produzir tudo isso.

Quanto a associações a outros artesãos divinos, isso também permanece por atestar, até mesmo fora da Irlanda. Alan Ward, no seu “Myths of the Gods – Structures in Irish Mythology” (pág. 17), teoriza que Luchta e Créidne são como que aspetos de Goibniu, por aparecerem sempre junto a ele e nunca terem aparições individualizadas nos mitos. Estou inclinado a aceitar a proposta de Ward, mas com um ponto de vista ligeiramente diferente… A meu ver, Luchta e Créidne são “faces” de Goibniu, tal como Lugus, Brigantiā e Mātronā têm 3 faces (dependendo da perspetiva); no caso de Goibniu, Luchta – o carpinteiro – e Créidne – o ourives e também ferreiro de bronze e latão – representam as duas áreas de “especialização”, além da produção de armas.

Existe ainda o reflexo (tardio) Goibniu: Gobhán Saor. Esta figura mítica, é dita ser o arquiteto responsável pela construção de várias igrejas, oratórios e campanários. Posteriormente, esta figura passou a ser conhecida como Santo Gobban, sendo dito, no livro “Life of St. Abban”:

“A fama de Gobban como construtor em madeira, assim como em pedra, persistirá na Irlanda até ao fim dos tempos.”

Porém, isto não quer dizer que Gofannon e Gobannus tenham 3 faces, podem, simplesmente, ter uma só e ser mestres da metalurgia (e construção) na mesma. Temos, de facto, provas de que tal podia ser assim na Gália.

Como já foi mencionado no artigo Deusa da Aurora e Lareira, em Alisiā, foi achada uma inscrição (http://db.edcs.eu/epigr/epi_einzel_en.php?p_belegstelle=CIL+13%2C+11247&r_sortierung=Belegstelle) num vasilhame para libações, em que é mencionado Ucuetis (*1), que é um teónimo alternativo para os que derivam de *goban-. Ora, os vasilhames de libações caem no domínio dos objetos metálicos usados para fins religiosos (algo que poderia ser atribuído a Créidne), o que acrescenta mais um ponto a esta “tese”.

Além do mais, e ainda em Alisiā, foi achada, na cave de um edifício, a seguinte inscrição:

“Martialis Dannotali ieuru Ucuetē sosin celiclon etic gobedbi (*2) dugiontio Ucuetin in Alisiā.”

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“Martialis [filho] de Dannotalos dedicou a Ucuetis este edifício, e juntamente com os ferreiros que honram Ucuetis em Alisiā.”

A cave estava repleta de restos de metal trabalhado, o que indica que foram ali deixados, propositadamente, como oferendas a Ucuetis.

A cave onde foram achados os restos de metal.

Também existe uma dedicação em honra a Gobanus que foi votivamente depositada na localidade de Berne, na Suíça. A dita cuja, escrita numa pequena tábua de zinco diferente do atual (continha chumbo, ferro, cobre, latão e cadmio), que havia sido recolhida do interior de uma fornalha. Pensa-se que teriam usado este subproduto do fundir de minério de zinco devido à grande conexão à arte da ferragem.

Sabemos que foi dedicada a Gobanus por causa da inscrição:

“ΔΟΒΝΟΡΗΔΟ ΓΟΒΑΝΟ ΒΡΕΝΟΔΩΡ ΝΑΝΤΑΡΩΡ”

“Dobnorēdo Gobanō Brenodor Nantaror”

“Para Gobanus, Viajante das Profundezas, dos de Brennoduron no vale de Arurā”

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Esta tábua de zinco, além de atestar o teónimo Gobanus, ainda fornece um epíteto seu: Dubnorēdos (< *dubno-reydo-). A lógica por detrás deste epíteto é que Gobanus (e afins) teria de viajar pelo interior da terra – quem sabe se não pelo Outro Mundo, também? – para encontrar minérios, para poder forjá-los. É, portanto, um Deus de caráter ctónico, como outros ferreiros divinos Indo-Europeus (Hēphaistos e Völundr).

E, por fim, existe o caso do tesouro de Cobannus (ou seja, Gobannus), que foi achado no centro da Gália oriental. Segundo a análise feita pelos arqueólogos, os objetos em bronze – entre os quais estavam caldeirões e estátuas, entre outros – provieram de um santuário de Gobannus, tendo em conta as inscrições votivas.

Para mais informações sobre o tesouro de Gobannus, podem consultar a obra “The Cobannus Hoard: Gallo-Roman Bronzes and the Process of Romanization”.

A tábua de zinco dedicada a Gobanus.

Agora, quanto ao assunto de relações familiares, o nosso conhecimento é algo fragmentado e, em certos pontos, um pouco contraditório. Contudo, sabemos que Gofannon é filho de Dôn, possivelmente uma Deusa associada à própria terra (ver Deusa da Terra); nos tempos antigos, tratar-se-ia, por exemplo, de Nantosueltā.Contudo, é a sua vida matrimonial que chega a ser confusa. Em Gales, não temos registo de que Gofannon tenha tido alguma esposa, se bem que a ausência de atestação não significa que não tenha existido; um praticante do Reconstrucionismo Britónico provavelmente teria de optar por não lhe atribuir esposa alguma.

É na Irlanda que temos vários possíveis exemplos de Deuses Ferreiros e das suas esposas, como mencionado no artigo Deusa da Aurora e Lareira.

Segundo a análise de Alan Ward, em “Myths of the Gods – Structures in Irish Mythology” (pág. 18), este tipo de Deus aparece sob 4 principais teónimos: Goibniu, Gaibhneann (ou Goibhneann), Bricriu (ou Bricre) e Tuirell Bicreo.

Citando e traduzindo:

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“No Ciclo de Ulster, contudo, ele [Goibniu] aparece como Bricre Língua Venenosa (Irlandês Antigo Bricriu, genitivo Bricrenn), enquanto que no “Lebar Gabála” e em textos a ele associados, aparece como Tuirell Bricreo (genitivo Tuirill Bicrenn, Tuirill Biccrenn).O topónimo de County Down, Loch Bricleann (Loughbrickland), indica que a forma original era *Bricliu (genitivo *Briclenn). Isto reflete o Celta Comum *Briktliū, ‘mestre de feitiços’, derivado de *briktlon, um sinónimo de *briktus (Irlandês briocht), ‘feitiço’. Os poderes de feiticeiro são comummente atribuídos a ferreiros, no folclore irlandês, e o Deus Ferreiro partilha tal característica: ele entoa feitiços (di-chan brichtu).Gaibhneann e Bricre são certamente idênticos. Em primeiro lugar, Gaibhneann – tal como Bricre – providencia, mas não preside, o banquete divino. Em segundo, Bricre (como Tuirell Bricreo) é pai dos gémeos Iuchar e Iucharbha. Brighid, a Deusa da Aurora, é mãe desses dois. Ela também tem aspeto de Bé nGaibhneachta, ‘Esposa de a arte da Ferragem”, o que significa que é casada com Gaibhneann neste aspeto.”

Após ler isto, somos remetidos para o que já foi mencionado no artigo Deusa da Aurora e Lareira: Ucuetis, um Deus claramente associado à forja, é casado com Bergusiā. Ora, o teónimo Bergusiā provém, claramente, do PIE *bhergh-, que serve de antecedente ao Proto-Celta *brig-, que é raiz de *Brigantī.

Assim sendo, a teoria de Ward é verificável na Gália, além de na Irlanda: o Deus Ferreiro é casado com a Deusa da Aurora e Lareira.

Ao analisar outras mitologias Indo-Europeias, torna-se óbvio que os Deuses associados à forja partilham um conjunto específico de caraterísticas mitológicas.

Völundr e Gofannon/Goibniu são responsáveis pela morte dos filhos de indivíduos de renome. Völundr mata os filhos do rei Niðhad, que o rapta e força a trabalhar para si. Gofannon mata o seu sobrinho Dylan, filho da sua irmã Arianrhod. Goibniu mata Ruadán, filho de Brigid e Bres, no “Cath Maige Tuired”.A união entre Goibniu (e afins) e Brigid tem um paralelo na relação entre Hēphaistos e Athēnā: ambos os Deuses helénicos são padroeiros das artes plásticas e dos ofícios, sendo que Hēphaistos era mais favorecido pelos homens e Athēnā pelas mulheres. De forma semelhante, os nossos Deuses Ferreiros e Deusas da Aurora e Lareira teriam um séquito semelhante em termos de género.Hēphaistos, Tvaṣ�ṭ�ṛ� e Gofannon/Goibniu forjaram armas grandiosas para os outros Deuses, além de terem – no caso de Hēphaistos e de Goibniu – construído as suas habitações.

Em último lugar, mas de grande importância, está a informação já mencionada no excerto acima citado e traduzido: o tal banquete divino.No “Altromh Tige Dá Medar” – uma obra escrita nos primórdios do Irlandês Moderno – é dito que o banquete de Goibniu (fleagh Goibhneann) protege a Tuath Dé Danann da velhice e da morte. Além disso, o seu hidromel dava invulnerabilidade a quem o bebesse.Isto é um ligeiro paralelo com o Deus védico Tvaṣ�ṭ�ṛ�. Tvaṣ�ṭ�ṛ� era pai de Viśvarūpa, um Deus com três cabeças que representava o ato sacrificial. Uma cabeça representava o sóma (uma bebida que garantia imortalidade), o licor surā e a comida sacrifical. De certa forma, Tvaṣ�ṭ�ṛ� era o guardião da receita para a imortalidade divina. (ver “The Broken World of Sacrifice: An Essay in Ancient Indian Ritual”, págs. 53 a 58).

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Este banquete divino lembra outras tradições Indo-Europeias (ver “A reader in comparative Indo-European Mythology” de Ranco Matasović, pág. 12) a ambrosía (< *n-mṛ�to-), o alimento dos Deuses, e néktar (< *nek-terh2), ‘triunfa sobre a morte’.Existe ainda, o caso das maçãs de Iðunn que davam juventude a quem as comesse, nomeadamente, aos Deuses.

Teónimos conhecidos: Gobannus, Gobanus e Ucuetis.Atributos: Forja, carpintaria, construção, arquitetura e organizar do banquete divino.Consorte: Bergusiā (de Ucuetis) e outras Deusas da Aurora e Lareira.Posses: Pinça e martelo (“Pagan Celtic Britain” de Anne Ross, pág. 251).Animais: Vaca branca (?) (Goibniu possuía uma vaca chamada Glas Gaibhnenn que produzia imenso leite).Plantas: ?Cores: ?Festival principal: ?Oferendas: Peças em metal.

*1 – A etimologia deste teónimo é desconhecida, podendo, até, demonstrar preservação do kwProto-Celta. Lambert sugere que se trato de um reflex de *h₂eḱ�-, ‘afiado’ ou ‘pontiagudo’, partindo do exemplo do Latim accus com o sufixo agentivo -tis. Assim sendo, podemos estar perante um nome que signifique “O Afiador”, o que seria bastante apropriado.

*2 – O temro gobedbi trata-se do dativo plural de gobeđ, ‘ferreiro’, que deriva do Proto-Celta *gob-et- (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic”, pág. 164). Este termo parece ter sido usado para ferreiros mortais em vez do próprio Deus.Contudo, nada impede o leitor de usar gobanos, tal como se usam os reflexos atuais de *goban nas línguas Celtas vivas; por exemplo: gabha (Irlandês Moderno), gof (Galês Moderno) e gov (Cornualho Moderno).

Deus Selvagem/PastorilTalvez alguns possam ficar impressionados por saberem que esta denominação se aplica ao famoso Cernunnos, entre outros, mas não há título que seja mais apropriado.

Ao contrário do que se diz entre Neopagãos, após anos de por de lado informação, Cernunnos e os seus semelhantes não têm qualquer ligação com a morte e afins. Em vez de tal, está relacionado com a vida animal, com a caça e com a disparidade entre os espaços não domados pelo Homem e a civilização e a interdependência destes.Não há em toda a iconografia destes Deuses algo que aponte para uma ligação com o Dīs Pater Gaulês, como já foi feito óbvio no artigo Deus do Submundo.Assim sendo, o que nos resta?

Primeiramente, podemos de analisar a etimologia dos teónimos que foram preservados até aos dias de hoje.Em Montagnac, Herault, foi descoberto em caracteres gregos, o teónimo καρνονου – a frase completa é “αλλετ[ει]υος καρνονου αλ[ι]σο[ντ]εας” – que é traduzido para o nosso alfabeto como Carnonū, que pode ser a forma dos casos dativo (tardio), ablativo ou instrumental do nominativo Carnonos. Fazendo uma regressão ao Proto-Celta, ficamos

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com *karno-ono-, ou seja, “grandes chifres”.Por outro lado, o teónimo Cernunnos apresenta um curioso afastamento do Proto-Celta *karno-, sendo que a única variação conhecida e atestada é *korno-. Porém, apesar das diferenças linguísticas, que podem muito bem ser corrupções, a imagem da divindade clarifica que se trata de uma do mesmo tipo.

Existem várias imagens e registos destes Deuses em grande parte da Gália, embora a grande maioria pertença ao período Galo-Romano.Começando pelas representações mais antigas…

Placa A do caldeirão de Gundestrup.

Nesta afamada representação (feita por artesãos da Trácia, a pedido de Celtas), vemos um Deus Selvagem/Pastoril, rodeado de animais: um veado, dois touros, três leões, e um lobo. Junto dele está uma figura (provavelmente não divina, pela ausência de um torque) montada num ser aquático.Esta imagem tem paralelos com um selo achado na Índia, que representa o Deus Védico chamado Paśupati, “Senhor dos Animais”.

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Selo de Mohenjo-daro.

Apesar de Paśupati ser atualmente um epíteto de Śiva, na altura em que o selo foi feito, esta divindade estava ainda por aparecer como hoje a conhecemos. Isto significa, obviamente, que Paśupati – e várias outras divindades Védicas cujas funções foram amalgamadas em Śiva – ainda retinha um culto e identidade independente.

Pondo de parte teorias fantasiosas sobre a divindade Celta – que tratarei por Carnonos doravante – estar a fazer Yoga, as semelhanças iconográficas são impressionantes: ambos estão rodeados de animais, ambos estão serenos e ambos possuem chifres (do animal cornudo mais importante, respetivamente).Mas o Carnonos do caldeirão de Gundestrup tem algo mais a ele associado. O mais notório é sem dúvida a serpente cornuda que Carnonos segura por detrás da cabeça, que é precisamente o método de pegar em serpentes se não se desejar ser mordido; isto indica que ao contrário do que acontece com os restantes animais, Carnonos tem de se esforçar para manter a serpente sob controlo. Como já foi dito no artigo Deus do Trovão/Tempestade, esta serpente é muito provavelmente um demónio da seca.Na outra mão, Carnonos segura um torque. Este ponto também é curioso, pois já tem um no pescoço. Pode-se especular que está de alguma forma a impedir a serpente de o obter, ou seja, de atingir poder (equiparável ao) divino e estatuto.Novamente mencionando o artigo anterior, os povos Celtas (assim como os Bálticos e Eslavos) tinham bastantes semelhanças em mitologia e cultura com os Védicos, o que torna estes métodos comparativos ainda mais apropriados.

A outra representação mais antiga é a de Val Camonica.

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Petroglifo de Val Camonica.

Nesta representação também temos uma divindade com chifres de veado, também vestida. No braço esquerdo tem um torque, e no lado direito do seu corpo tem uma figura ondulante, que poderá ser uma serpente. Em frente de Carnonos, está uma figura

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menor, presumivelmente um homem (repare nos genitais obviamente expostos entre as pernas).

Posteriormente a estas representações, apenas temos exemplos Galo-Romanos.À exceção da representação do pillier des nautes, encontrado em Lutetia (Paris), que apenas mostra a cabeça de Carnonos, as restantes revelam alguns atributos que podemos interpretar.

Deus Selvagem/Pastoril de Reims.

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Deus Selvagem/Pastoril de Etang-sur-Arroux.

Ambas as representações acima mostram Carnonos sentado, com as pernas cruzadas – a posição mais comum, assim parece – mas aí as semelhanças param.No exemplo de Reims, Carnonos é mostrado na companhia de duas divindades, Apollō à esquerda e Mercurius à direita. Acima destes três, está um rato (amplamente associado à pobreza e pragas, como nos exemplos de “Cyfranc Lludd a Llefelys” e no Terceiro Ramo do “Mabinogion“) e abaixo um boi e um veado, que pode ser considerada uma representação da dualidade entre o domesticado e o selvagem. Carnonos segura um saco do qual saem grãos ou moedas.No exemplo de Etang-sur-Arroux, temos Carnonos a segurar duas serpentes cornudas pela cabeça, enquanto que tem um torque no colo, para além do que traz ao pescoço. A figura apresenta duas ranhuras no topo da cabeça para a inserção de cornos. Na parte traseira da estátua, na zona da nuca, estão duas outras faces de menores dimensões.

A título de curiosidade e não só, é possível que em Gales o Deus Selvagem/Pastoril esteja presente nos mitos do “Mabonogi” sob o nome de Gwydion. Se tivermos em conta a proposta de John T. Koch (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia“, pág. 867) de que o nome Gwydion pode provir do Galo-Britónico Uidugenos – “nascido da madeira/floresta” – que por sua vez provém de *widu-geno-, as únicas divindades que

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poderiam-nos ocorrer seriam o Deus do Submundo e o Deus Selvagem/Pastoril.Mas como o Deus do Submundo – como visto no respetivo artigo – é a raison d’être da vegetação, seria plausível estabelecer o Deus Selvagem/Pastoril não só como filho deste, mas como tendo o seu lar em bosques.Mas apesar de Gwydion poder ser muito provavelmente um reflexo de uma divindade, é óbvio que lhe foram adicionadas características que não esperaríamos encontrar encontrar, nomeadamente as capacidades mágicas e de eloquência. Porém, a etimologia do nome e a maioria dos atos de Gwydion, como criar Lleu fora dos limites da sociedade como um pária, de facto remetem-nos para uma divindade semelhante a Carnonos.

Tendo tudo o que foi dito em conta, é óbvio que estamos perante uma divindade relacionada com as atividades relacionadas com a riqueza através dos animais – a caça, pastorícia e criação de gado – além da dicotomia associada entre os locais ermos e estábulos, vacarias, etc. Tudo isto o ligaria, adicionalmente, ao comércio e explicaria à ligação com Mercurius (Lugus) e o porquê de Cernunnos aparecer no pillier des nautes.Podemos, então, classificar o Deus Selvagem/Pastoril como um deus da terceira função, de acordo com o padrão de Georges Dumézil que relaciona esta função com a terra e a economia.É, portanto, essencialmente semelhante a Paśupati, Pan e Silvanus.

Teónimos conhecidos: Carnonos, Cernunnos.Atributos: Animais selvagens e domésticos, caça, criação de gado, pastorícia, bosques e espaços para criação de animais, comércio.Consorte: ?Posses: ?Animais: Veados, todos (?).Plantas: ?Cores: ?Festival principal: Equinócio de Primavera (Samalinoχđ Uesonniās) (per Ara de Marecos*) e Equinócio de Outono (Samalinoχđ Uogiami) (chacina, cio dos veados).Oferendas: Deixar comida num bosque (?), parte do lucro obtido por métodos relacionados à caça e criação de animais.

Deus da FontePara minha própria surpresa, parece que o padrão Irlandês da veneração de um Deus associado a fontes – principalmente termais – parece ter sido cumprido na Gália.

Em suma, a “personagem” de Nechtan é apresentada num mito que figura no “Dindsenchas” (e que Koch menciona, em “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” pág. 217), segundo o qual existe um poço chamado Poço de Segais (que seria a origem de todos os rios), que era habitado por um salmão e rodeado por nove aveleiras. Quem comesse o salmão ou as avelãs que caissem ao posso teria acesso a incrível sabedoria poética e conhecimento. Para evitar que tal acontecesse, apenas Necthan e os seus portadores de copos (cupbearers) se podiam aproximar do poço.Certo dia, Bóand, esposa de Nechtan, foi até à localização do poço e aproximou-se deste. Três ondas irromperam deste e desfiguraram-lhe um pé, um olho e uma mão, ao que esta fugiu para o mar para escapar à mutilação, mas foi seguida pelas águas brancas

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de Segais e afogou-se. Assim, surgiu o rio hoje conhecido como Boyne, que era uma das fronteiras territoriais do reino de Ulster.

Este poço e o seu dono – Nechtan – têm intrigado historiadores filologistas e muitos que buscam revitalizar as crenças Celtas antigas, tanto que é necessário enquadrar ambos no panorama religioso Indo-Europeu.

No seu afamado artigo “Le Puits de Nechtan“, Georges Dumézil faz comparações entre Nechtan e outros Deuses associados às águas, nomeadamente Neptunus e Apąm Napāt (Persa) e Apām Napāt (Védico). Sugere uma etimologia comum para estes quatro teónimos: *nept-o-no ou *h2epom nepōt-, ‘descendente das águas’. A primeira hipótese provavelmente seria viável para o caso Celta, devido à sua ausência no próprio Irlandês. A segunda, não seria apropriada, já que daria origem ao Proto-Celta *nefot- > Irlandês Antigo nia (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic“, págs. 286-287).

Quanto a uma análise mitológica, creio que a estabelecida por Jaan Puhvel, em “Myth in Indo-European Antiquity“, é a melhor no que toca ao formar de ligações entre os exemplos Indo-Iranianos e o exemplo Celta registado na Irlanda.

Referindo-se ao curioso conceito de “fogo dentro de água”(algo que na perceção Indo-Europeia tinha grandes poderes essencialmente mágicos), o autor refere que o védico Apām Napāt aparece no “RigVeda” como estando submerso irradiando luz, e rodeado de donzelas (as águas) que o purificam constantemente. O dito brilho seria concedido apenas àqueles que o honravam, algo que poderia ser feito nas águas de rios, do mar e de poços, segundo o conselho do “RigVeda“, no 30º hino da 10ª Mandala, que é dedicado às Águas:

“Vai ao reservatório, ó Adhvaryus [título de sacerdote com funções comparáveis às de um uātis] venerar o Filho das Águas com as tuas oblações.

A onda consagrada ele te concederá, por isso prepara-lhe o Sóma rico em doçura.Aquele que bé brilhante em cheias, em jejum de alimento, a quem os sábios veneram

com os seus sacrifícios:Dá águas ricas em doces, Filho das Águas, até mesmo as que deram heróico poder a

Indra.“

Por outro lado, na Persia, Apąm Napāt é ainda mais famoso na coletânea de textos religiosos conhecida como “Avesta“, tendo o seu culto sido rival do de Arədvī Sūrā Anāhitā. No mito que expõe o poder de Apąm Napāt este vê-se como o único capaz de resolver favoravelmente um confronto entre as duas forças opostas da cosmovisão Persa: Ahura Mazdā e Angra Mainyu. No mito, ambos os Deuses desejavam possuir Xvarənah – algo comparável à inspiração e sabedoria atribuída por Segais, mas que era um género de aura flamejante que distinguia reis e heróis – e, após uma batalha entre ambos os lados, Apąm Napāt rouba a substância e leva-a até ao fundo do lago Vorukaša. Ahura Mazdā aprova o ato e passa a incitar os humanos a tentarem obter Xvarənah, prometendo-lhes que se o conseguissem, que obteriam o dom do sacerdócio, domínio sobre gado e pastagens e o poder de derrotar qualquer inimigo.

Embora os casos Indo-Iranianos difiram entre si, têm as suas óbvias parecenças: enquanto que os dons de Apām Napāt parecem poder ser encontrados em praticamente qualquer corpo de água, mas através de uma demonstração devoção, podem ser obtidos;

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por outro lado, Apąm Napāt não incorpora o Xvarənah (‘glória’), sendo apenas seu mestre, e esta apenas pode ser obtida mergulhando no lago Vorukaša.O tema comum era, portanto, o místico fogo que pode subsistir dentro de água e que concede grandes bênçãos aos humanos e aos Deuses.

Faravahar, por vezes associado ao Xᵛarənah.

Algo curioso é que existe um relato de alguém que tentou alcançar o Xvarənah. O herói Fangrasyan chega ao lago Vorukaša, despe-se e mergulha. Avista Xvarənah e nada até ele, mas este escapa, provocando um turbilhão de água. O herói tenta alcançar Xvarənah mais duas vezes, e em cada uma delas, uma potente descarga de água é libertada do rio.Posteriormente, vários rios são exaltados somente por serem tributários do lago Vorukaša.

Este episódio lembra o do mito de Bóand e Nechtan, tal como Puhvel bem repara (“Myth in Indo-European Antiquity“, pág. 69), assim como ao motivo de Segais ser a fonte de alguns rios da Irlanda.

 

Pessoalmente, sou da opinião de que o conceito de “fogo em água” possa ter sido inspirado ou por fontes termais, ou pelo expelir de gases que se encontrem armazenados sob o fundo de uma fonte de água: ou seja, talvez tenha uma dimensão geológica.Na Irlanda existem, atualmente, 29 fontes termais (http://www.ecoserve.ie/index.php?option=com_content&task=view&id=28&Itemid=43) e penso que seja possível que o

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poço de Segais possa ter sido um. Isto alia-se ao facto de, segundo a proposta de Matasović, o teónimo Necthan provir do PIE *neygw- (‘lavar’, ‘banhar’), nomeadamente do particípio passado *nigw-to-, que passou para o Proto-Celta *niχto-, permitindo a existência do Irlandês Antigo Nechtan, de *Niχto-ono-, ‘Grande Banhado/Lavado’ (“A reader in comparative Indo-European Mythology”, pág. 13; “Etymological Dictionary of Proto-Celtic“, págs. 291-292).

Este é o metafórico bilhete de passagem para a Gália.

Em Haute-Marne a Champagne no centro-norte de França, existem dedicações a Deuses de nome Boruū, Bormū e Bormānus (latinização de Bormānos), todos sincretizados com Apollō. Todos estes teónimos têm raiz no Proto-Celta *berw-ā-, ou seja, ‘ferver’ ‘cozinhar’ (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic“, págs. 63), sendo que as formas que figuram -rm- se devem e lenição tardia do -rw- original, sendo que teríamos, em Gaulês Antigo e Médio: Boruū e Boruānos, ambos significando ‘Fervilhante’ (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” pág. 231) (“Dictionnaire de la Langue Gauloise“, pág. 83).Existe, contudo, um detalhe fulcral: apesar de sincretizados com Apollō, apenas partilham talvez um dos seus atributos – a cura. Se o leitor ler o artigo Deus do Sol, poderá ler uma ampla comparação entre vários Deuses solares Indo-Europeus, e como estes ajudam a interpretar o mais amplamente atestado Deus solar da Gália: Grannos. Para não ter de repetir tudo o que foi exposto no dito artigo, peço-lhe que o abra para que possa fazer a comparação de atributos por si próprio.

Ora, Boruū aparece na localidade de Vichy, representado na forma de um homem sentado numa rocha, nu, e segurando um cálice do interior do qual borbulha um líquido (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” pág. 230).

Boruū de Vichy.

Por outro lado, em Entrains, aparece segurando, de novo, um cálice, um saco cheio de dinheiro e uma patera com frutos (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” pág. 230).Por fim, em St-Aubin-des-Chaumes, este Deus segura um pote no qual é contido um líquido, uma ânfora, e uma cornucópia cheia de frutos (“Symbol and Image in Celtic Religious Art” pág. 107).

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Comparando-o com Grannos, podemos aperceber-nos de que a faceta de curador está, de certa forma implícita, pois era esta a fama das fontes termais na Antiguidade (e até na atualidade). Contudo, as duas representações sugerem que talvez não fosse a sua principal função.Não é feita nenhuma alusão a visão. Não há indícios de associações equídeas, Não tem epítetos que o remetam para um autêntico Deus solar (como Grannos Phoebus). Ou seja, é uma divindade distinta.

Atrevo-me a postular que o cálice de líquido borbulhante seja como que semelhante ao dos cupbearers de Nechtan, que, além do próprio, eram os únicos que podiam ter acesso ao poço de Segais. Olhando para a escultura de Entrains, é possível postular que o cálice conteria as águas borbulhantes que contivessem o “fogo em água” que concederia a quem a bebesse ou nela se banhasse, dons vagamente semelhantes aos do exemplo do “Avesta” e do “Didsenchas“:

inspiração (similarmente ao poço de Segais)

prosperidade agrícola (patera repleta de frutos)

riqueza (saco de moedas)

Quanto às suas relações familiares, estas fazem mais sentido quando olhadas à luz do já mencionado artigo Deus do Sol e Deusa Celestial.Boruū e Boruānos podem aparecer, por vezes, com versões femininas suas: nomeadamente Boruānā, como na inscrição de Die (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” pág. 231). Contudo, é mais frequente aparecerem na companhia da Deusa Damonā/Dāmonā; esta última é categorizada neste website como uma Deusa celestial, tendo em conta as suas semelhanças com Đironā e o sincretismo de ambas com a Deusa Hygēa. Se Damonā/Dāmonā é esposa de um Deus solar (como tentativamente presumo que Moritascus seja, na ausência de iconografia), como pode aparecer acompanhando Boruū e Boruānos?À luz do mito figurado no “Didsenchas“, poderíamos presumir uma ligação de Damonā ( < *damā-onā, ‘Grande Vaca/Toura’) a Bóand ( < *bow-windā, ‘branca como uma vaca’) e afirmar que seria amante ou esposa destes Deuses. Contudo, também é possível ver Dāmonā ( < *dāmā-onā, ‘Grande Seguidora’) como uma forma viável fazendo uma alusão à função desta como possível cupbearer.Pessoalmente, não estou inclinado a ver Damonā/Dāmonā como algo mais do que esposa de um Deus solar, sendo que prefiro vê-la como um género de mãe, fazendo alusão ao que foi afirmado por Apollṓ�nios Rhódios e à citação do “Canção de Amhairghin“:

“Uma lágrima do sol.“

Ou seja, de que Boruū e Boruānos, como origem do “fogo na água” tenham nascido das lágrimas do sol.Quanto à diferença mitológica entre fontes dedicadas a Deuses solares e a outras dedicadas a este tipo de Deus, é algo que não está muito bem claro na atualidade. Julgando pelo caso de Grannos, julgo que seria possível presumir que haveria fontes dedicadas a ambos os tipos, segundo um critério hoje desconhecido.De igual forma, as formas femininas dos teónimos também não são compreendidas,

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visto não existirem cognatos Indo-Europeus destas geminações. Serão consortes ou, mais provavelmente, irmãos?

Teónimos conhecidos: Boruū ( > Bormū) e Boruānos ( > Bormānos).Atributos: Fontes termais, cura (?), inspiração, riqueza, prosperidade agrícola.Consorte: (dúbio).Posses: Cálice.Animais: ?Plantas: ?Cores: ?Festival principal: ?Oferendas: ?

Deusa da TerraEsta tipo de Deusa era frequentemente mal interpretada e analisada há algumas décadas atrás, na medida em que era unida a outras Deusas com funções diferentes, mas com alguma afinidade entre si. Porém, o conhecimento de que dispomos atualmente permite que tais enganos sejam coisa do passado.

Em termos Proto-Indo-Europeus, a Deusa da Terra tinha o nome de *Plth2wih2, que significa ‘a ampla’, que provém do adjetivo *plth2u-, ‘amplo’.Esta é a principal característica da terra, é ampla, parece quase não ter fim, e assim surgiu o título para estas Deusas.Mas antes de partirmos para o paradigma Celta, temos de observar o ponto de vista Védico, no qual foram preservadas bastantes características religiosas PIE.Entre os Védicos, a Deusa da Terra era conhecida como Prithvi Mata, ‘Terra Mãe’, e era consorte de Dyauṣ� Pitā, ‘Céu Pai’ por aproximação. Prithvi Mata era tida em consideração como sendo a própria terra, a sua essência, e os seus epítetos de “provedora”, “sustentadora” e “enriquecedora” fazem jus aos seus atributos relativos à produção agrícola, riqueza mineral e como figura maternal geral.Estes dois foram responsáveis por parte da Criação, numa das versões do Rigveda: Dyauṣ� Pitā fertilizou Prithvi Mata através de chuvas.

Pares semelhantes ocorrem em outras culturas Indo-Europeias: Gaia e Ouranos, Dēmētēr e Zeús (entre outros), Þorr e Sif, Tellus e Aion… Porém este padrão não é universal; uma Deusa da Terra não tem sempre como consorte um Deus do Céu, até porque este pode não existir. Tal é o caso Celta.

É dito que a Deusa Galesa Dôn e o nome Irlandês ‘Danann’ são nomes de uma Deusa do Rio, cujo antecedente linguístico provém do PIE Deh2nu , mas recentemente tal etimologia foi provada errada por John T. Koch, que propõe uma origem no termo Proto-Celta *gdon-, ‘terra’. Citando o excerto próprio, da página 607 de “Celtic Culture: A Historical Encyclopedia“:

“Em muitas discussões modernas sobre mitologia Celta, Dôn é ligada ao epónimo da raçamitológica da literatura Irlanda, os Tuatha Dé Danann e a Deusa do rio Danúbio (ver Gruffydd, BBCS 7.1–4). No entanto, estas equações são foneticamente inexequíveis: o

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cognato do Irlandês Médio Danu, Britónico *Donū ou *Danū teria necessariamente de ser o Galês *Dyn ou *Dein. A autenticidade e antiguidade do Irlandês Médio Danu foi questionado por Carey (Éigse 18.291–4). Carey ofereceu uma interpretação de Math como um mito pré-Cristão (Journal of the History of Religions 31.24–37), o que sugere outra possível etimologia para o nome Dôn, que este é um cognato do genitivo, dativo e acusativo singular do Irlandês Antigo don ‘lugar, solo, terra’, que é ainda um cognato o genitivo do Grego (…) khthonós ‘terra’.”

Assim sendo, temos uma Deusa da Terra como mãe de alguns Deuses, não todos, isto porque não existe qualquer epigrafia ou folklore que faça da noção de que todos os Deuses sejam filhos de uma Deusa uma noção falsa que teria como provável origem a má compreensão por parte de monges cristãos que “registaram” os mitos. Algo que é frequentemente esquecido atualmente é que houve um processo de humanização quando os mitos foram registados, o que é incrivelmente óbvio no “Mabinogi“: apesar dos fantásticos poderes que algumas das personagens possuem, não é dito uma única vez que estas têm carácter divino, são apenas tratadas como humanas.

E é aqui que o argumento anterior de num ponto de vista Celta as Deusas da Terra não estarem ligadas a Deuses do Céu – que não existem, pois foram substituídos por Deuses do Trovão/Tempestade, como no caso Germânico – e o argumento de estas não serem mães de todas as Deusas fica ligado.Como o leitor se deve lembrar, ao ter lido o artigo Deus do Submundo, os povos Celtas acreditavam que era este Deus que era o seu ancestral, o seu criador. Na Gália, onde temos exemplos tangíveis de emparelhamentos autênticos, não encontramos uma Deusa da Terra uma única vez como consorte de Iuppiter Optimus Maximus. Em vez disso, estas podem ser encontradas como pares de Deuses do Submundo, como nos seguintes exemplos:

Sucellos e Nantosueltā. Cīcollus (< kīko-olyo-, ‘carne de tudo’) e Litauī (< *φlitawī < *plth2u-, ‘ampla’). Dīs Pater e Airecurā (este teónimo provavelmente não é Celta).

Assim sendo, temos pelo menos a versão Gaulesa de parte da genealogia divina: o Deus do Submundo e a Deusa da Terra são um par.Mas nunca é dito nos relatos Clássicos qual é a ancestral dos humanos para os Gauleses, apenas sabemos quem que o antepassado. Porém, os posteriormente humanizados Deuses de Gales e Irlanda são tidos como “filhos da Terra”, segundo a interpretação linguística de John T. Koch. Podemos então postular que como o Deus do Submundo tem a Deusa da Terra como esposa que esta poderia ser considerada como mãe dos humanos… isto poderia ser muito bem um insulto por parte de cristãos aos velhos Deuses, dando-lhes um título que os diminuiria.Mas isto faz surgir outra questão… se a Deusa da Terra poderia ser considerada mãe por afinidade (geralmente apenas um Deus cria os humanos, como no caso de Óðinn, numa versão) da Humanidade, porque é que nunca é esta mencionada como tal?Para o leitor com um mínimo de conhecimento sobre a teologia Gaulesa e Britónica, talvez as Mātres sejam uma opção óbvia, mas, a meu ver, está incorreta.Isto porque o culto das Mātres – verifique a entrada “Matronae” página 1279 de “Celtic Culture: a Historical Encyclopedia” – está eminentemente associado a rios e não à terra, tendo em conta a origem do culto e o que se pode verificar fora da Gália. Porém, este assunto será abordado mais detalhadamente no artigo Deusa do Rio, pelo

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que o seguinte será uma versão “light”.Na sociedade pan-Celta, a adoção era algo intrínseco à comunidade, porque a maioria – se não todos os indivíduos – da população era mandada, desde cedo, viver com outra família, apesar de a sua família original se manter viva e capaz de cuidar destes. Pensa-se que praticamente todos os indivíduos teriam crescido numa família adotiva. Temos provas secundárias disto na Gália através de relatos Clássicos e na Irlanda através do folklore e de práticas que sobreviveram até ao séc. XVIII.Então se na sociedade Celta as crianças são dadas para a adoção, não seria nada impensável acredita que algo teria ocorrido em termos da criação da Humanidade: o Deus do Submundo, cuja esposa é a Deusa da Terra, criou o Homem, mas cedeu a sua “tutela” sobre este. Então, como espécie, ficámos ao cuidado da Deusa do Rio que teria, provavelmente Toutātis (note bem que este nome é um epíteto e não um teónimo) como consorte.

Deixando este assunto de parte, quais são, então, os atributos das Deusas da Terra? Para melhor responder, temos as representações de Nantosueltā e Airecurā.

Nantosueltā (*nanto-swelo-tā, ‘vale solarengo’), consorte de Sucellos, é representada frequentemente com os mesmos atributos: cornucópia, patera, corvo, ceptro encimado por uma aedicula e stèle-maison.

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Nestas representações, as cornucópias e paterae indicam uma relação óbvia à terra, campos férteis e à produção agrícola. Isto atribui-lhe um carácter de Deusa da terceira função de Georges Dumézil.Por outro lado, o corvo (como mensageiros do além), a aedicula e uma stèle-maison relacionam-na com o Submundo. Como já dito no artigo Deus do Submundo, J. J. Hatt afirma em “Mythes et Dieux de La Gaule” (tomo II, capítulo IX) uma stèle-maison ligaria Nantosueltā a um retiro invernal no Submundo, de forma semelhante a Proserpina; esta associação também lhe daria uma ligação com a estação primaveril, a mais produtiva.Nas pedras gravadas de Villiers-le-Sec, Teti e Liffol-le-Grand, Nantosueltā é representada como tendo ao pé de si stèle-maisons, que estão associadas aos túmulos, logo, aos mortos. Assim sendo, esta Deusa desceria ao Submundo periodicamente, provavelmente numa data importante, como Samonos ou o Solstício de Inverno. Em alternativa, pode ser que de facto nunca abandonasse esta região, sendo que os frutos e vegetais seriam os seus “presentes” enviados desde o Submundo.

Assim sendo, fica o resumo dos atributos aqui:

Teónimos conhecidos: Nantosueltā, Litauī, Airecurā.Atributos: Uma das primeiras Deusas, personificação da terra, fertilidadeagricultural, colheitas, vales, montes, gado bovino, Outro Mundo (Andedumnos), sexo.Consorte: Sucellos (de Nantosueltā), Cīcollus (de Litauī).Posses: ?Animais: Corvo (?), vaca (?).Plantas: Macieira (?), vegetais e grãos.Cores: Castanho (terra) e verde (vegetação).Festival principal: Trīnoχtes Samoni, Samalinoχđ Uesonniās (Equinócio de Primavera), Samalinoχđ Uogiami (Equinócio de Outono).Oferendas: Libações no solo e enterrar parte das colheitas.

Deusa da SoberaniaEste tipo de Deusa está intrinsecamente ligado à conceção Indo-Europeia de que uma Deusa ligada à Terra concede soberania a um homem que seja digno de governar. Isto é, claro, uma simplificação de algo mais abstrato.

Comecemos, primeiramente, com a versão Proto-Indo-Europeia que deu origem a todo um conjunto de mitos e ritos ligados à soberania.Algo essencial à cultura Proto-Indo-Europeia foi o uso de cavalos, principalmente para fins bélicos; algo que distinguia um guerreiro de um outro indivíduo era a posse de um cavalo, era algo que concedia estatuto e era prova de elevado estatuto.Assim sendo, é possível conhecer uma Deusa que assumiria uma forma equina  e que, ao mesmo tempo, teria ligações à Terra; talvez esta ligação se deva ao facto de o cavalo ser desde há milhares de anos o animal que mais rapidamente percorra grandes distâncias na Europa, na terra. Porém, esta ligação à Terra não é literal, mas sim simbólica. A Deusa da Soberania é uma “abstração” do conceito da Deusa da Terra, é ela que concede domínio sobre esta embora ela não seja a própria Terra.

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Estando a ligação aos equídeos estabelecida, é aqui que entra o seguinte ponto equação: o sacrifício de cavalos. Este ato bem Indo-Europeu, é tem uma atestação considerável e as funções de cada versão são bastante semelhantes.O melhor exemplo é o do rito Védico Aśvamedhá, ‘sacrifício de um cavalo’. Este rito, que era dos mais importantes ritos da realeza Védica, é descrito no “Yajurveda“. Este ocorria durante a samiti, a assembleia anual tribal na qual se tratava de assuntos políticos e se elegia, portanto, o novo rei. Tal como na maioria das culturas Indo-Europeias, o rei provinha sempre da classe guerreira – conhecida como kṣ�atriya; o rito tinha, de certa forma, a função de ligar o rei ao Deus responsável pela criação, Puruṣ�a, o ‘Homem Cósmico’. De forma semelhante a Ymir, Puruṣ�a, foi despedaçado para criar o cosmos e é este ato que se procura replicar através do sacrifício do cavalo, que é descrito como análogo do universo.Essencialmente, o sacrifício envolveria a chacina do cavalo e o posterior desmembramento deste em partes, de acordo com as analogias ao mito da criação do universo. É nesta parte do rito que o rei (rāja) é vigiado por um hotṛ�, um sacerdote que está encarregue de invocar os Deuses; por cada parte que era retirada do corpo do cavalo, era invocada uma divindade à qual se devia apresentar o dito órgão ou parte. O que restasse seria consumido pelos participantes.As mulheres do rei também estariam presentes na celebração.O Aśvamedhá é, portanto, rito de cariz restaurativo da cosmologia, de cariz fundacional, que se alia à política e socidade, na medida em que inclui a eleição de um rei em assembleia, a inclusão da classe sacerdotal e o requerimento de votos militares (era tradição deixar o cavalo que seria sacrificado andar livremente, mas vigiado por guerreiros; caso entrasse em território estrangeiro este teria de ser conquistado posteriormente à inauguração do rei). Existe ainda o detalhe de terem sido usadas três facas para o sacrifício: uma de ouro, outra de cobre e ferro. O outro representaria a realeza guerreira(kṣ�atriyā), o cobre os sacerdotes (brāhmaṇ�a) e o ferro os camponeses (vaiśya).(Confira “Aśvamedhá – A Vedic Horse Sacrifice” de Roman Zaroff, in “Studia Slavica 2005”)

Nas proximidades da Gália, em Roma, temos o semelhante – mas não igual – rito conhecido como October Equus, ‘cavalo de Outubro’. Este rito, apesar de não relacionado com a soberania nos tempos em que foi registado, pode ter origem num. Descrito por Ploútarkhos, Polybius, Paulus e Festus, este rito consistia em matar um cavalo – que tivesse ganho uma corrida – com um dardo após uma batalha encenada, que tinha lugar no Campus Martius, ‘Campo de Marte’. Era, essencialmente, um rito em honra de Mārs, e teria sido celebrado antes de batalhas importantes e guerras.O conceito de soberania entra em cena após a morte do cavalo. Após o animal ser morto, um dos grupos – que representavam as forças autóctones Romanas – tentaria colocar a cabeça do cavalo nas muralhas da Regia (edifício situado no Forum Romanum servia de lar aos reis de Roma e, posteriormente, ao Pontifex Maximus). O outro grupo, representava as forças estrangeiras, cuja função seria impedir tal ato de acontecer.Temos aqui, portanto, um ato que tem como função propiciar a vitória ao povo Romano, mantendo a soberania deste sobre as suas terras (presentes e futuras), através do sacrifício de um cavalo.

Os leitores mais familiares com a “Hervarar saga ok Heiðreks” (“Saga de Hervarar”), lembrar-se-ão de algo familiar aos exemplos descritos, em que Blót Sweyn é inaugurado como rei e para a ocasião requer-se que um cavalo seja sacrificado. O cavalo era morto,

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despedaçado e cozinhado, enquanto que o seu sangue era espalhado na árvore sagrada em Uppsala.

Entre os Citas (*Skuda), um dos mais misteriosos povos Indo-Europeus (apenas destronados pelos Tocarianos), também poderão ter celebrado um rito semelhante. Hēródotos menciona que os Citas sacrificavam regularmente cavalos a muitos dos seus Deuses (algo amplamente atestado arqueologicamente), mas davam principal primazia a “Ares”. A ligação de cavalos ao equivalente Cita de Ares faz sentido, já que os Citas usavam estes animais com grande frequência em guerras e batalhas. Infelizmente, a raison d’être deste rito perdeu-se para todo o sempre.

Por fim, antes de retornarmos aos Celtas, fica o caso Eslavo. De acordo com o etnógrafo russo Sergei Maksimov, quando uma doença do gado surgia, os camponeses levavam o ícone de São Blasius empurravam um cavalo, uma ovelha e um cordeiro para o fundo de uma ravina ou vala, juntamente com os animais doentes. Depois, os animais eram apedrejados até à morte e incinerados. Este ritual ocorreu ainda em tempos “recentes” (séc. XIX), mas foi corrompido sendo difícil de discernir os elementos pré-Cristãos claramente.Porém, a antiguidade do rito é evidente. A associação com São Blasius aponta para que anteriormente se tenha apelado a Veles/Volos. Este Deus, como é descrito no artigo Deus do Submundo, tem, entre outras funções, a de cuidar do gado. Existem provas de que os Bálticos (vizinhos dos Eslavos) também celebravam ritos semelhantes: sacrificavam cavalos, touros e bodes Vélinas/Velnias/Vóls, que é um cognato de Veles/Volos. O rito teria sido celebrado por sacerdotes especializados, pelo menos entre os Eslavos, que mantinham uma estrutura social tripla; com destruir da sociedade antiga, os ritos antigos passaram a ser celebrados pelo povo comum.O cariz comunitário do rito em tempos de ameaça ou perigo e o sacrifício do animal mais importante aponta para uma função de fomentar a coesão social, além da já mencionada tentativa de obter auxílio do Deus. Apesar de não estar diretamente relacionado com a soberania na forma como chegou aos dias de hoje, quer em práticas folclóricas ou em relatos, a conexão Indo-Europeia é bastante provável.

Eponā (achada em Köngen).

Entre Celtas, a história seria semelhante ao exemplo Védico. Giraldus Cambrensis (in “Topographia Hibernica”) – também conhecido como Gerald de Gales – relata que em Kenelcunill, na província de Ulster, Irlanda, no séc. XII, uma égua branca foi trazida para inaugurar um novo rei. Neste evento estava presente um grande número de

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pessoas, provavelmente toda a comunidade.A égua foi trazida e o rei teve relações sexuais com ela (não se sabe isto é algo fictício, simbólico ou literal) e após tal, foi morta. Foi cozinhada e certas partes foram consumidas pelo rei, enquanto que o resto foi distribuído pelas pessoas que estavam lá reunidas. Isto é um paralelo com o rito Védico.É dito que o rei se colocava no interior do caldeirão com água e come a carne e bebe o caldo ainda no seu interior. Isto é certamente um exagero, de tão alheio que é às conceções Celtas (e ao senso-comum, diga-se).A parte em que o rei tem relações sexuais com a égua é algo ligeiramente mais plausível, embora seja impossível de confirmar ou não. Trata-se de um ato que representaria a união entre a senhora da Terra – a Deusa da Soberania – e o rei que ficaria encarregue de governar o território. Também teria a função adicional de provar o vigor do indivíduo. O sacrifício inaugural de um rei, entre Celtas, é, essencialmente, um contrato entre a Deusa da Soberania – frequentemente chamada de Rainha (rīganī) – e o rei (rīx).

Algo bastante comum na mitologia sobrevivente da Irlanda e Gales são os mitos relacionados à soberania. A Deusa da Soberania é a personificação do direito de governar, e não da própria terra.Na típica narrativa sobre a soberania (*wlati- > ulatis), o homem destinado a tornar-se rei tem um encontro sexual real ou aludido com uma mulher misteriosa, que mais tarde é revelado ser uma representação da soberania do local que irá governar. Por vezes, a dita mulher é feia até se transformar em uma bela mulher quando se encontra com o futuro rei, como no “Echtra Mac nEchach Muigmedóin” (“A Aventura dos Filhos de Eochaid Muigmedón”).Algo comum entre quase todos os mitos de soberania é a presença de uma mulher com grande afinidade a cavalos. Temos vários exemplos insulares como Rhiannon, Medb, Macha e possivelmente Morrígan.Rhiannon (< Rīgantonā < *rīgant-onā, ‘grande rainha’)  foi associada por Catherine McKenna não só ao direito de governar de Pwyll, mas também à correta preparação deste para se tornar rei; temos então, uma Deusa da Soberania que defende quem é digno de governar. Caso restem dúvidas, o esposo de Rhiannon é Teyrnon, um nome que provém do Galo-Britónico Tigernonos, que teve origem no Proto-Celta *tigerno-ono-, ‘grande senhor’.Por outro lado, temos Medb (< Meduā, ‘a intoxicante’ < *medu-, ‘hidromel’) que carrega um copo com uma bebida ligada à soberania, o hidromel. Segundo os mitos do “Tain Bó Cuailnge”, Medb teve uma filha chamada Findabair. Medb usou a sua filha para vários planos que – que envolviam um campeão casar-se com a sua filha – tinham como função livrar-se de Cú Chulainn. Usando assim a sua filha de forma manipuladora temos então outro aspeto desta Deusa: a relutante e ressentida em atribuir o poder a quem considere indigno. O nome desta Deusa não é acidental. A temática do hidromel é abordada no Galês “Y Gododdin”, em que guerreiros nobres são convencidos a beberem bastante hidromel (e a se banquetearem também), mas a custo de uma posterior terrível derrota no campo de batalha. Aqui está a ligação quase paradoxal: apesar de ser uma bebida digna de guerreiros, tem efeitos nefastos, intoxicantes que toldam as capacidades dos homens. Pode-se postular que o posterior mito de Medb teria origem num mito em que uma Deusa da Soberania escolheria o seu esposo, oferecendo uma libação em honra deste. De facto, Medb faz isto mesmo, mas de forma dissimulada, com cada um dos três heróis do “Fled Bricrenn” (“Festim de Bricriu”); posteriormente, Medb dorme com Cú Chulainn. Isto pode ser uma sobrevivência de uma tradição relacionada com a soberania

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como a relatada por Giraldus Cambrensis, apesar de Cú Chulainn não ter vivido para se tornar rei, tendo sucumbido a uma violação das geasa (proibições, maldições) que lhe foram impostas.Máire Bhreathnach and Máire Herbert interpretam Morrígan (*moro-rīganī, ‘rainha dos pesadelos’) como mais outra Deusa Soberana. No “Cath Maige Tuired” (“(Segunda) Batalha de Mag Tuired”) é ela que atribui o território a Dagda ao se unir a este sexualmente. Ademais, é dito que Morrígan pode comparecer a uma derrota de um herói o rei.

John T. Koch postula que os relatos Helénicos e Romanos de mulheres Celtas de elevado estatuto – como Cartimanduā (cujo nome contém *mandu-, ‘pónei, cavalo pequeno’) – possam ter sido identificadas com Deusas da Soberania, visto que não poderiam cumprir as funções de um rei e copular e casar com a própria Deusa.

Eponā (achada em Bregenz).

Então como seriam as coisas na Gália?Sem grandes complicações, temos dois teónimos que são indubitavelmente pertencentes a Deusas da Soberania: Eponā e Medunā. O primeiro refere-se a cavalos, provindo do Proto-Celta *ekwo-onā, e significa ‘grande égua’. O segundo refere-se ao hidromel, de forma semelhante a Medb, contendo a raiz *medu-.Algo curioso sobre Eponā é que o seu culto foi adotado pela Ordo Equester de Roma, e o seu nome é o mais bem atestado de entre todas as divindades Gaulesas. Em “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia” podemos ler que o culto a Eponā ultrapassava a dimensão militar, sendo que a maior parte das provas do culto provém de inscrições de privados. Nestas inscrições, recebe epítetos que claramente a relacionam com a soberania e que denotam o antigo elevado estatuto que tinha entre Gauleses; tais epítetos são Dea, ‘Deusa’, e Regina, ‘Rainha’. Porém, é na inscrição achada em Rom, na commune de Deux-Sèvres, que ainda mais são revelados:

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Eponinnā – (Gaulês) ‘pequena Eponā, Eponāzinha’. Potia – (semelhante ao Grego potnia?) ‘senhora’. Dibonia – (Latim) ‘boa Deusa’ . Catonā – (Gaulês) ‘grande batalhante’. Uouesiā – (Gaulês) ‘sob a excelência’.

Como Eponā é rainha dos Deuses invariavelmente, necessita de um esposo, como nos mitos insulares; tal como nestes, não terá um esposo definitivo, sendo que mais do que um Deus assumiu a soberania ao longo da histórica teológica Celta.Primeiramente foi rei o Deus da Lei (Nuadu, Teyrnon, Nudd), mas após ficar fisicamente imperfeito ao perder uma mão, perdeu o direito à soberania.Posteriormente substituiu-o o Deus do Trovão/Tempestade (Dagda, Elcmar), cujo reinado poderia ainda estar em vigor aquando da conquista Romana. Porém, Eponā aparece demasiadas vezes acompanhada por Iuppiter Optimus Maximus (a sincretização deste Deus) para sermos levados a crer que o seu reino terminou.Eventualmente, o anterior seria substituído, tal como no caso Irlandês, pelo Deus Multi-Habilidoso (Lug, Lleu). Já no tempo da conquista dizia-se entre Gauleses (algo revoltados) que Taranus era “rude” e já o culto a Lugus era mais popular na altura. Se Lugus de facto atingiu o estatuto de rei dos Deuses, isto poderia significar uma coisa: que a sua esposa, Deusa da Prosperidade – Rosmertā, Cantismertā, Atesmertā – seria talvez filha dela (à semelhança de Findabair). Isto tem fundamentação na inscrição Gaulesa de Puy-de-Dôme em que se pode ler:

“(…) ieuri Rīganī Rosmertīac”“(…) dediquei à Rainha e a Rosmertā”

Ambas as Deusas aparecem claramente distinguidas, mas com uma ligação entre si. Afinal, Lug e Lleu nunca casam com figuras associadas à soberania, o que pode ser explicado por o seu reinado ter sido considerado (em tempos pré-Romanos e pré-Cristãos) como algo que aconteceria num futuro distante; algo a considerar, mas que demoraria a acontecer.

Teónimos conhecidos: Eponā, Medunā, Dēuonā (*deywo-onā, ‘grande Deusa’) (?).Atributos: uma das primeiras Deusas, governa a terra em vez de ser a sua personificação, concede soberania ao rei, bebida da soberania (hidromel), guerra, fertilidade terrena, riqueza, cavalos (e outros equídeos), rainha dos Deuses.Consorte: Deus do Trovão/Tempestade (atualmente), Deus da Lei (no passado).Posses: ?Animais: Égua branca.Plantas: ?Cores: Branco (?).Festival principal: Sonnassodion Giami (Solstício de Inverno) (per edícula de Castel e festival Romanizado de Eponalia)Oferendas: Libações de hidromel no solo ou pedregulhos.

Deusa do Rio

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Algo que distingue as várias subculturas Celtas da maioria dos povos Indo-Europeus é a importância que davam aos rios e, com franqueza, a todas as fontes de água consumível. Não sendo povos com especial aptidão marítima, contrastam com outras culturas, como a Helénica, que dão maior importância a divindades marinhas; os Celtas, por seu lado, não tinham divindades marinhas per se, mas há algumas que têm uma ligação com o oceano (verifique a página Deus da Lei).

A ligação dos povos Celtas aos corpos fluviais era de facto notável. Apenas na Gália existem dezenas de teónimos de Deusas de rios, frequentemente achados em santuários dedicados às próprias divindades. Na Grã-Bretanha existem mais alguns outros teónimos achados, mas em número menor. Também na Ibéria se podem encontrar vários teónimos de Deusas fluviais, alguns dos quais foram mais ou menos preservados (com alterações linguísticas, obviamente) até aos dias de hoje. Na Irlanda, por fim, temos Deusas que também estão associadas aos rios mais importantes, cujos nomes foram preservados nos mitos e nos próprios nomes atuais.

Quais seriam, então, as funções de uma Deusa do Rio?

Na página 22 de “The Myths of the Gods – Structures in Irish Mythology ” de Alan Ward, são brevemente descritas três Deusas Irlandesas que este classifica como “Deusas da Água”. Referindo-se a Sionna, Bóinn e Bann, os três rios mais importantes da Irlanda – cada um com uma Deusa a ele associado – é sobre o rio Bóinn que achamos mais material a analisar para se poder achar possíveis paralelos.Bóinn provém do Proto-Celta *bow-windā, ‘vaca branca’, o que pode indicar uma aproximação à visão Germânica da associação de vacas a corpos de água.  No mito, a fonte do rio Bóinn era o Poço de Segais, que também é a fonte do rio Sionna. O poço era afamado por ser origem de conhecimento sobrenatural que podia ser adquirido ao comer um salmão mágico do poço ou as avelãs repletas de sabedoria das nove aveleiras que rodeavam o poço. De acordo com a lenda, qualquer mortal que tivesse a sorte de comer as avelãs ou o salmão, obtinha os dons da profecia ou poesia. No dindshenchas, é relatada a história de como apenas Nechtan se podia aproximar de Segais, juntamente com os seus três portadores de copos. Ignorando este tabu – geis, em Irlandês – Bóinn aproximou-se do poço. Três ondas irromperam deste e desfiguraram-lhe um pé, um olho e uma mão, ao que esta fugiu para o mar para escapar à mutilação, mas foi seguida pelas águas brancas de Segais e afogou-se.Duvido que este mito tenha aplicações fora da Irlanda, exceto talvez no detalhe de cada rio poder ter uma fonte mítica, que é algo relativamente comum em culturas Indo-Europeias, embora haja algumas variações. Tendo em conta os princípios gerais, os rios podem originar em poços ou em montanhas míticas, como os exemplos Nórdicos e Avésticos, respetivamente.

Quanto à identidade da Deusa do Rio, existem bastantes variáveis, todas relativamente semelhantes aos exemplos Irlandeses, que se podem referir a características dos próprios rios ou a mitos a eles associados.Temos exemplos como Sequanā – *sekwā-nā, ‘a que segue (flui)’ – e Ancamnā – talvez de **an-kambo-nā, ‘a não curva’.Porém, temos um exemplo curioso de um desenvolvimento de um culto a uma Deusa do Rio cujos atributos se podem ter estendido, ou então que sempre existiram. Refiro-me à Deusa tutelar do atual rio Marne, em França, Mātronā, ‘grande mãe’. Como já foi mencionado no artigo Deusa da Terra, segundo a conceção Celta não teríamos uma

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“mãe terra” per se, mas sim “águas mães”. O culto a Mātronā pode muito bem ter sofrido uma alteração à medida que foi ganhando contornos familiares além das já existentes características associadas a corpos fluviais (que mais tarde se tornaram menos evidentes). Em vez de apenas uma só Deusa, podemos ter três ou uma Deusa com três faces com semelhança às divindades Védicas e atuais divindades Hindus. Temos, então, o culto às Mātres (‘mães’) ou às Mātronās (‘grandes mães’) (que em Latim são chamadas de Matronae). Tendo origem num culto fluvial, podendo ter-se espalhado para o restante mundo Celta naturalmente – no caso Britónico – ou por influência Romana – no caso Calleaco, creio eu.Antes de partirmos a conclusões aparentemente precipitadas, há que analisar a iconografia com que são apresentadas na época Galo-Romana.

Mātres de Bibracte.

No exemplo acima das Mātres de Bribractes, temos três Deusas que são apresentadas com atributos diferentes, além de idades aparentemente díspares.A primeira Deusa, à esquerda, tem uma criança no colo, com roupa de mulher casada, cabelos trançados, presos e parcialmente coberto; isto era “moda” de mulher casada, na época. Revela o seio direito à mostra para amamentar a criança, indicando que tem função de cuidar de crianças, das novas gerações.A segunda, tem um rolo de pergaminho no colo. Também tem o seio direito à mostra, veste roupa de mulher casada e tem o cabelo todo coberto, o que pode indicar velhice ou queda de cabelo. Provavelmente está encarregue do conhecimento relacionado com o

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passado – preservar das tradições antigas – e, talvez, com o conhecimento do futuro; uma Mãe algo ctónica.A terceira, à direita, tem uma patera ou vasilhame e outro objeto não claramente identificado. Está também vestida como uma mulher casada, bem composta, com semelhante à primeira Mãe. É possível que esta esteja mais diretamente relacionada com atividades fluviais e talvez responsabilidades laborais femininas.

Também existem representações menos explícitas que apenas as relacionam com a prosperidade agrícola.

Mātres Aufaniae.

A imagem acima das Aufaniae é relativamente semelhante ao anterior, no que toca ao vestuário de cada uma das Mães, mas todas carregam cestas com alimentos difíceis de identificar ao certo. Esta faceta relacionada à produção, provavelmente agrícola, faz bastante sentido, tendo em conta que sem a água dos rios, a irrigação dos solos é difícil.

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Estas Deusas parecem terem bastantes semelhanças com as Nornir, Parcae e Moirae, além da faceta ligada aos rios e à importância destes à comunidade.As ligações à vida familiar e social das tribos é tornada ainda mais evidente quando temos em conta que temos registados vários epítetos das Mães que se referem a tribos ou povos, como nos seguintes exemplos latinizados:

Matres Italae (Mães dos Itálicos) Matres Gallae (Mães dos Galos/Gauleses) Matres Germanae (Mães dos Germanos) Matres Tramarinae/Transmarinae (Mães Além-Mar)

Porém também temos exemplos que provêm do Gaulês, como Matres Ollototae, do Gaulês Tardio ollotōtānon, Mães de Todas as Tribos/Nações. A partir disto podemos partir do princípio que cada tribo teria um conjunto de Mães próprio, que teria “adotado” os primeiros ancestrais da dita tribo. Isto é dito tendo em conta o que foi aludido no artigo Deusa da Terra, que a Deusa da Terra apesar de ser consorte do Deus, não teve papel na criação dos humanos. Porém, de acordo com a tradição Celta de colocar as crianças para adoção, o primeiro casal humano foi entregue ao cuidado das Mães.

Existe, ainda, a questão dos laços familiares das Mães… Até hoje não foi descoberto qualquer emparelhamento com qualquer outro Deus, quer estando esta Deusa em forma una, quer em forma tripla. Talvez, de forma semelhante às outras Deusas do destino, acima enumeradas, não tenham tido cônjuge.Quanto à descendência, não parecem existir descendentes “biológicos” autênticos de acordo com o mito do “Mabinogi”. Nesta obra, temos Modron – que é um cognato do Galo-Britónico Mātronā – que tem como criança Mabon – que provém do Galo-Britónico Maponos, ‘grando filho’. Sem dúvida que se trata de uma memória do culto original a estas divindades, porém, não é claro quem é a mãe de Mabon.John T. Koch, em “Celtic Culture – A Historical Encyclopedia”, pág. 1299, refere que Mabon pode originalmente ter sido filho de Rhiannon – que provém do Britónico Rīgantonā, que por sua vez vem do Proto-Celta *rīgant-onā, ‘Grande Rainha’ – que é um nome Galês para a Deusa da Soberania. Assim sendo, poderíamos postular que a Deusa da Soberania – Eponā, por exemplo – seria mãe do Deus da Juventude – Maponos – mas que teria abdicado deste por força da tradição, em favor de Mātronā ou das Mātres.

Estando tudo explicado, fica aqui o habitual resumo:

Teónimos conhecidos: Mātronā/Mātres/Mātronās, Adsullatā, Sequānā, Ritonā.Atributos: uma das primeiras Deusas, rios (geralmente o que está geograficamente maisperto da tribo), lagos, fontes, cura, água, tratadora dos campos e gado (através de irrigação e providenciando água), colheitas. Maternidade, amamentação, família, casamento, divinação, velhice, profecia, envelhecimento, destino, união tribal.Consorte: Sem consorte?Posses: Pergaminho, …?Animais: Vaca (?)Plantas: ?Cores: ?Festival principal: Sonnassodion Giami (Solstício de Inverno) (per edícula de Castel)

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Oferendas: Armas, comida preparada; consultar a secção “Vida Familiar” do artigo Culto Doméstico.

Deusa da Aurora e LareiraEsta Deusa, numa perspetiva Indo-Europeia, é mais um exemplo de como os Celtas parecem ter, de certa forma, simplificado o panteão ancestral Proto-Indo-Europeu.

Como alguns dos leitores já podem saber, por fruto de pesquisas próprias e também devido a algum conteúdo já apresentado neste website, os Indo-Europeus veneravam (de entre várias outras) a “estrela da noite”, assim como a “estrela do dia”, a aurora. Além destas, veneravam também uma Deusa ligada à casa.Os Deuses ligados às estrelas e “ao” lua (*Meh1nōs / *Meh1ns-, ambos termos masculinos) foram unidas pelos Celtas numa só divindade – como explicitado no artigo Deusa Celestial – e o mesmo parece ter acontecido com as já mencionadas Deusas da aurora e da casa. E é daí que provém a designação que uso para esta Deusa, muito popularmente conhecida como Brighid ou Brigit.

Antes de avançar para esta Deusa e as suas muitas denominações em outras línguas Celtas, irei apresentar “definições” das suas antecessoras Proto-Indo-Europeias, para poder dar um background decente ao meu ponto de vista…Primeiramente, temos a Deusa da aurora, que foi chamada de *H2ausōs-, *H2ewstro- ou *H2ewsōs. Esta Deusa, que era considerada filha de *Dyēus Ph2ter, ‘Deus Pai’ celestial, e da “estrela da noite”, *H2stēr. Era vista como uma bela e luminosa donzela que era a auriga do sol, pois era ela a fronteira entre a noite e o dia; tanto podia ser mãe deste, como sua irmã ou simples anunciadora. A sua associação à esperança é, a meu ver, mais que óbvia, pois a sua aparição no horizonte pode ser interpretada como a chegada de mais uma oportunidade, de segurança e renovação: um novo dia.

Por fim, temos a Deusa do fogo, que se postula ter sido chamada de *Westyā, tendo em conta os seus mais famosos “avatares”: Héstia e Vesta. Esta Deusa estaria inerentemente ligada à lareira, pois este local da casa era o seu centro, o local à volta de qual toda a família se reuniria para comer e aquecer, onde estaria a mais útil (e, por vezes, perigosa) ferramenta: o fogo. O fogo tornar-se-ia, por excelência, a representação da presença desta Deusa; de facto, era considerado como se fosse a própria Deusa, manifestando-se em tal forma benevolente, propiciando calor e uma forma de preparar os alimentos (e afins).Para mais detalhes sobre estas duas divindades, e várias outras, de um ponto de vista Proto-Indo-Europeu, convido-vos a visitar o website de Ceisiwr Serith: http://www.ceisiwrserith.com/pier/index.htm

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Escultura de Brigantī sincretizada com Minerva.

Agora, passemos à nossa Deusa – ou Deusas? – Celta.Como já foi mencionado anteriormente, os teónimos Brighid (Irlandês Médio) e Brigit (Irlandês Antigo) provêm do Proto-Celta *brigā ou *brigo-, um termo para ‘poder’, ‘exaltação’ e ‘prestígio’, que por sua vez é provém de *brig-, ‘monte’ ‘elevação’. Ambos derivam da raiz zero do Proto-Indo-Europeu *bhergh-. Todos estes substantivos deram origem ao teónimo Proto-Celta *Brigantī.De uma forma geral, temos os seguintes teónimos que compartilham a mesma raiz:

Brigindū (atestado em França, na região de Côte d’Or, no caso instrumental Brigindone).

Brixiā (atestado em França, na região de Haute-Saône).

Bergusiā (atestado em França, nas ruínas de Alisiā).

Brigantī (origem de nomes de cidades como Briançon, Bregentz, Briençon, Briant, Briantes, além do etnónimo Brigantes…).

Algo que muitos estranham, é o facto de as várias Deusas atestadas na época Galo-Romana, terem sido assimiladas a Minerva e Victoria, mas não a Vesta como seria de esperar. No seu relato no “Commentarii De Bello Gallico”, Iulius Caesar refere-se à Deusa nativa da Gália como Minerva, da seguinte forma:

“(…) e Minerva; no que diz respeito a estas divindades, têm maioritariamente as mesmas crenças que as outras nações (…) e Minerva trata da invenção de artifícios e trabalhos.”

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O que Caesar muito provavelmente viu, foi o que os mitos Irlandeses nos contam sobre as capacidades de Brigit, que era como uma iniciadora nos ofícios (costura, olaria, cozinha, etc) e no artesanato. Caesar diz que ela “trata da invenção” no sentido de ser ela que auxiliaria no transmitir destes conhecimentos, através de inspiração divina.No “Sanas Cormaic”, Brigit é mencionada como filha de Dagda e é chamada de dea poetarum, ou seja, ‘deusa dos poetas’. Isto é um paralelo direto com a Deusa védica Uṣ�as – “A reader in comparative Indo-European mythology”, pág. 9 – que é tida como padroeira dos ṛ�ṣ�is, os poetas inspirados que compuseram os hinos védicos e que viram o seu papel alterado para “videntes” no período pós-Védico; supostamente, o conhecimento dos Vedas ter-lhes-ia sido revelado num estado alterado/superior de consciência, estado tal que seria da responsabilidade de Uṣ�as. É de salientar que esta Deusa é uma divindade da aurora, cujo nome provém do PIE *h2ausōs, que tem como epíteto um cognato do Proto-Celta *Brigantī: Brhatī.Algo curioso é que existe um género de profecia(*1)sobre o nascimento de “santa” Brigit que refere que duas irmãs. A primeira nasceria ao anoitecer, mas a segunda nasceria com a aurora e estaria destinada a ser mais famosa e prodigiosa que a sua irmã mais velha. Isto pode certamente ser interpretado como uma menção às crenças pré-cristãs de que a aurora e a lua/noite são irmãs, o que já é mencionado nos artigos Deusa Celestial e Deus do Sol.

Longe do domínio mais “transcendente” das capacidades desta Deusa [cujo nome foi usurpado por uma suposta santa], temos o mais famoso aspeto da domesticidade, que é por demais abordado pelo folclore. Um relato do “Vita Prima” (uma obra sobre a vida de “santa Brigit”), é dito que Brigit, filha de uma escrava e de um lorde, havia nascido na soleira de uma vacaria e lavada com leite; posteriormente foi comprada por um druida e forçada a trabalhar na mesma vacaria. Outros relatos – mencionados brevemente por John T. Koch, em “Celtic Culture – a Historical Encyclopedia”, pág. 288 – referem vários “milagres” da autoria de Brigit, como a transformação de água em cerveja (isto pode ser apenas um paralelo propositado ao mito de transformação de água em vinho, por parte de Yēšûă); distribuiu grandes quantidades de manteiga, que mais tarde reapareceram magicamente e entreteve bispos ordenhando as suas vacas três vezes no mesmo dia.

A iconografia litúrgica e as tradições do culto de “santa” Brigit sugere uma ligação ao fogo. A dita cuja aparece várias vezes carregando uma lamparina em algumas representações tradicionais, por exemplo. Existe, também, um relato por Giraldus Cambrensis – na obra “The Topography of Ireland”, pág. 54 – no qual este menciona que existia uma chama perpétua sagrada que era mantida e vigiada por 19 freiras, em Cill Dara (Kildare). Segundo o relato, caso um homem entrasse no recinto dentro do qual se encontrava a chama, ou até chegasse a entrar em contacto com ela, seria alvo de um género de maldição. Isto pode ser uma ligação aos cultos domésticos ao fogo, que costumavam ser do domínio feminino, como o das Virgens Vestais.Algo mais a ter em consideração, no que toca à sua ligação ao fogo e à aurora – nos mitos insulares, a aurora aparece aludida como uma coluna de fogo que brota da cabeça de Brigit – é a Cros Bríde, a Cruz de Brigit. Apesar de existirem vários designs, a forma mais comum é a que se assemelha a uma suástica. É possível que haja um paralelo com a cultura Báltica, em que uma suástica (voltada no sentido anti-horário) possa representar o fogo. O nome que lhe é dado é ugunkrusts (http://lv.wikipedia.org/wiki/Ugunskrusts_(z%C4%ABme)) – ‘cruz de fogo’ – sendo que o termo ugun é Letão para ‘fogo’, que é derivado do Proto-Indo-Europeu

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*h3egni-; a outra variante da palavra PIE, *h1egni-, deu origem ao teónimo Védico Agni, Deus do fogo e sacerdote divino.No caso Báltico, é um símbolo associado ao fogo e ao Sol, mas no caso Celta, uma suástica anti-horária possivelmente corresponderia apenas ao Sol, como é especulado nos artigos Deus do Sol e Simbologia. Por oposição, uma suástica horária – como a Cros Bríde – poderia corresponder à luz da aurora e ao fogo a ela associado, como é dito no artigo Simbologia.

Cros Bríde / Cruz de Brigit

Gravura de um jarro gaulês pintado com uma suástica.

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Por fim, temos a questão das relações conjugais. Pondo de parte a fictícia “santa” Brigit, a Deusa gaélica aparece como esposa de Bres, um dos Fomoire que oprimiu os Tuatha Dé Danann, no “Cath Maige Tuired”.Por outro lado, segundo a análise de Alan Ward em “The Myths of the Gods – Structures in Irish Mythology” (págs. 17 a 18), o suposto marido de Brigit no ciclo de Uslter – Bricre – também aparece no “Lebor Gabála” como Tuirell Bicreo e que ambos os nomes se referem à mesma personagem: Goibniu. Esta teoria requer mais análise, se bem que tal será feita no artigo Deus Ferreiro.Curiosamente, em Alisiā, foi achada uma inscrição (http://db.edcs.eu/epigr/epi_einzel_en.php?p_belegstelle=CIL+13%2C+11247&r_sortierung=Belegstelle) num vasilhame em que aparecem mencionados Bergusiā e Ucuetis, que certamente seriam um casal divino. Sobre Bergusiā sabe-se apenas que a etimologia do seu nome está ligada ao Proto-Indo-Europeu *bhergh-, o que verifica que é semelhante ao “protótipo” *Brigantī. Quanto a Ucuetis, sabemos – devido a outra inscrição achada em Alisiā – que era um Deus associado à forja devido aos imensos pedaços de bronze e ferro que foram encontrados junto com a inscrição. Na dita cuja pode ler-se (“Celtic Cultures – A Historical Encyclopedia”, pág 41):

“Martialis Dannotali ieuru Ucuetē sosin celiclon etic gobedbi dugiontio Ucuetin in Alisiā.”

“Martialis [filho] de Dannotalos dedicou a Ucuetis este edifício, e juntamente com os ferreiros que honram Ucuetis em Alisiā.”

Assim sendo, é possível, em parte, confirmar que *Brigantī estaria ligada a uma divindade ligada às artes da ferragem, já que ela própria também tem associação ao fogo da forja que ajuda no moldar do metal.

Teónimos conhecidos: Brigindū, Bergusiā e Brigantī.Atributos: Aurora, fogo da lareira (lareira: *teφnet-legos- > tenetolegos), ofícios domésticos (coser, cozer, lavar, limpar, etc) e sua aprendizagem, família, proteção da casa e talvez da tribo, cura, fontes e poços, virgindade (?), Primavera.Consorte: Gobannos (genérico?), Ucuetis (de Bergusiā).Posses: Vaca branca.Animais: Gado bovino e ovino.Plantas: Bétula (?), sorveira (?).Cores: Branco (óbvio devido à ampla menção de elementos desta cor nos mitos) (Héstia e Uṣ�as também são representadas por estas cores).Festival principal: Ambiuolciā.Oferendas: Leite, manteiga, pão, parte da comida preparada no fogão. Consultar a secção “Lareira” do artigo Culto Doméstico e ainda o artigo Oferendas para a Deusa da Aurora e Lareira para uma sugestão de como celebrar um rito simples de devoção.

*1 – Peço imensa desculpa, mas não consigo encontrar a fonte onde li tal coisa. Na verdade, parte da demora para publicar este artigo deveu-se a querer encontrar a fonte para poder citá-la e não parecer que incluo toda e qualquer informação – fidedigna ou não – que me aparece à frente nas minhas pesquisas. Caso a encontre, rapidamente editarei o artigo e a mencionarei. Se o leitor a conhecer, por favor mencione-a nos comentários para que eu possa completar de vez este artigo há muito prometido.

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Deusa CelestialAo contrário do que se esperaria, os Celtas parecem não ter tido divindades exclusivamente dedicadas à lua, mas sim ao céu noturno em geral, algo que é possível de comprovar principalmente na Gália, com base na epigrafia. Esta “teoria” é de Alan Ward, que a aborda no seu “The Myths of the Gods – Structures in Irish Mythology”, sendo que este artigo pode ser considerado uma extensão da análise de Ward, tendo-a como fundação.Um aviso: apesar de várias das ideias de Ward estarem erradas, algumas mantêm-se extremamente funcionais atualmente para a interpretação da teologia Celta.

Citando as páginas 23 e 24 da já mencionada obra de Ward:

“A Deusa da Lua tem quatro nomes, todos originalmente epítetos. O primeiro e mais popular é Bé bhFionn ‘a Senhora Branca’ (LL 33102, TBFr, TE III 10). O segundo é Éadain (TE I 11) que parece refletir o Celta comum *YANTUDÂNÎ ‘presente poderoso”. O segundo é Dar Earca ‘filha do Deus do Céu, Earc’(CS 83ff). O quarto é Lí Bhan (LU 3312, 3340, SCC) que superficialmente parece significar ‘deleite das mulheres’.(…)Agallamh na Seanórach afirma simplesmente que ela [Bé bhFionn] é filha de Earc (AS 6803). Isto é apoiado pela Dinnsheanchas que, dando-lhe outro nome para a ocasião, Engleic, afirma que ela é filha de Earc e amante de Midhir, que a levou para Sliabh na mBan (tal como faz no Tochmharc Éadaine) (MD 3, 40, LL 16565). Assim, Dar Earca, apesar de aparecer apenas numa forma cristianizada como Santa Dar Earca (CS 83ff), pois mostra claramente aspetos de Deusa da Lua, deve ser equacionada a Bé bhFionn.Lí Bhan também o deve ser. É esposa de Labhraidh (SCC) que já vimos ser um aspeto do Deus do Vento, consequentemente idêntico a Midhir. Ademais, como Bé bhFionn é filha de Earc, é necessariamente filha de Bóinn, Deusa da Água, logo um epíteto digno que basicamente significa ‘deleite das Águas’.Bé bhFionn é também mãe de Neachtan. Isto é dito explicitamente no caso da encarnação como Fraoch (sobre o qual mais é dito abaixo sob a rúbrica Deus da Fonte) de Neachtan (LL 33102, TBFr). O próprio Neachtan é filho de Labhraidh (MD 3.26, LL 1739) que, como já vimos, é marido de Lí Bhan. Consequentemente, a Deusa da Lua é mãe de Neachtan.

(…)

Dar Earca é deusa da noite: viaja durante a noite, protege o gado dos lobos e os viajantes dos ladrões (CS 88, 90). O seu nascimento precede o da Deusa da Aurora, Brighid (CS 84).“Antes da aurora amanhã, duas crianças irão nascer nesta casa. Aquela que é a última no nascimento será a maior em grau. A altura do nascimento será a mais própria para cada uma, pois uma criança – a menor – irá erguer-se após o pôr-do-sol hoje e amanhã durante a aurora a outra criança irá aparecer”. (CS 3)

Apesar de ser um superficial relato de santos humanos de Leinster, este é um relato puramente mitológico do nascimento da Lua e da Aurora.”

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Antes de partir para a análise em si, gostaria de primeiro deixar alguns avisos quanto à proposta de Ward.

Primeiramente, a análise etimológica do nome Éadain está incorreta, em dois níveis. O Proto-Celta *yantu-dānu- significa ‘presente invejoso’ e não ‘presente poderoso’. Éadain parece ser a forma genitiva singular ou o nominativo plural de éadan, que remonta ao Irlandês Antigo étan, provindo do Proto-Celta *antono- (Etymological Dictionary of Proto-Celtic” pág. 39).

Em segundo lugar, a relação conjugal entre o Deus do Trovão/Tempestade – ao qual Ward chama de Deus do Céu – e a Deusa do Rio – chamada de Deusa das Águas pelo dito cujo – não se verifica na Gália nem na Britânia. Nas conceções teológicas Gaulesas e Britónicas o Deus do Trovão/Tempestade é casado com a Deusa da Soberania.

Com apenas o material citado, podemos definir os básicos quanto à Deusa Celestial Celta. Primeiramente, esta é – na Gália e Britânia – filha do Deus do Trovão/Tempestade e da Deusa da Soberania. Isto seria de esperar de uma teologia Indo-Europeia.Em segundo lugar, temos a Noite – e por extensão, a Lua – e a Aurora como irmãs, ou seja: a Deusa Celestial foi a primeira a nascer, seguida da Deusa da Aurora e Lareira e, por fim, do Deus do Sol.

Porém, na Gália não dispomos de mitos que recontem como era a visão Gaulesa quanto à identidade da Deusa Celestial. Assim sendo, resta-nos recorrer à epigrafia Galo-Romana.

O primeiro, e melhor exemplo, é o da Deusa Đironā. Đironā, cujo nome provém do Proto-Celta *sterā-onā, ‘grande estrela’, é o exemplo mais claro da existência de uma Deusa Celestial na Gália.O poema Irlandês “Rioghainn na h-oidhche” fornece uma interessante possibilidade de entender o porque de chamar a uma Deusa ‘Grande Estrela':

“Eu te saúdo,Tesouro da Noite,

Beleza do Céu,Tesouro da Noite,Mãe das Estrelas,Tesouro da Noite,

Criança adotiva do Sol,Tesouro da Noite,

Majestade das Estrelas,Tesouro da Noite.“

Parece, então, que o título ‘Grande Estrela’ seria bastante apropriado para uma Deusa de cariz lunar e estelar; a lua poderia, de facto ter sido considerada a maior das estrelas.

Đironā, apresentada sempre como esposa de Apollō, especialmente deste sincretizado com o Deus Grannos, é representada com vários atributos recorrentes, como serpentes, ovos, cornucópias, paterae, vestidos longos e diademas.Como é notado pelos arqueólogos e eruditos, existe uma grande semelhança às

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representações da Deusa Hygēa, responsável pela higiene (como o nome indica) e pela limpeza.

Đironā e Grannos

Miranda Aldhouse-Green interpreta os atributos das serpentes e dos ovos como pertencentes a uma divindade que teria funções regenerativas e relacionadas à fertilidade. Ambas as funções estão intimamente ligadas, tendo em conta que os enfermos não estão aptos para serem férteis, pelo menos de um ponto de vista literal e algo arcaico.Đironā era honrada em locais que envolviam fontes “frias” e termais, e era geralmente acompanhada em culto e dedicações pelo seu consorte Grannos, ele próprio um Deus ligado à cura mas também ao Sol.O que seria mais apropriado para uma Deusa Celestial do que ter como consorte um Deus Solar?

Em Alesiā (no recinto sagrado com fontes), temos uma Deusa semelhante, mas que é frequentemente mal interpretada. Damonā ou Dāmonā, acompanhada por Apollō Moritascus (*mori-tasko-, ‘texugo marinho’ ?!) ou Apollō Boruos (*berwo-, ‘que ferve, borbulha’), pode ter como antecedente o Proto-Celta *damo-onā ou *dāmā-onā. No primeiro caso, temos *damo-, que significa ‘touro’, o que daria o teónimo ‘Grande Toura’. No segundo, temos *dāmā, ‘acompanhante, seguidora’, ou seja, ‘Grande Seguidora’. Não existe forma de comprovar qual a etimologia correta, pois em ambos os casos o o inicial do sufixo -onā sobreporia-se à última vogal da primeira palavra.Apesar de restar uma cabeça de uma estátua com uma coroa com grinaldas de grãos, assim como uma mão esquerda com uma serpente nela envolta (semelhante à iconografia de Đironā), isto não contribui para a identificação da raiz (“Celtic Culture – a Historical Encyclopedia“, pág. 557).Porém, trata-se incontestavelmente de uma Deusa Celestial, tendo em conta as semelhanças com Đironā em termos iconográficos, em formas e localização de culto e ainda com os acompanhantes; ambas as Deusas estão ligadas a Deuses do Sol.

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Quanto ao porquê de ver a Deusa Celestial como curandeira, existe um relato de Gaius Plinius Secundus (in “Naturalis Historia“) que pode ser usado como prova de tal visão:

“Os druidas – é isto que chamam aos seus magos – não têm nada mais sagrado do que o visco e a árvore em que este cresce, desde que seja um carvalho (…) O visco é raro e quando é encontrado, é recolhido com grande pompa, particularmente no sexto dia da lua (…) Saudando a lua com a palavra nativa que significa ‘cura tudo’, preparam um ritual de sacrifício e banquete sob a árvore e trazem dois touros brancos, cujos cornos são atados pela primeira vez naquela ocasião. O sacerdote com vestimentas brancas trepa a árvore e, com uma foice dourada, corta o visco, que é colocado num manto branco.Então, finalmente, matam as vítimas, rezando a um deus para que torne a sua dádiva propícia para aqueles a quem a conceder. Acreditam que o visco dado em bebida irá garantir fertilidade a qualquer animal que seja estéril e que é um antídoto para todos os venenos.“

Como Plinius refere, a lua era vista como uma divindade curadora, um par digno do sol que também tem tais dotes e é, frequentemente, tido como maior curandeiro nos “panteões” Celtas.A título de curiosidade, em Gaulês ‘cura tudo’ seria Olloiaccā, do Proto-Celta *olyo-yekkā.

Adicionalmente, tendo em conta a importância da lua na contagem do tempo entre Celtas, seria de esperar que uma Deusa Celestial também tivesse uma ligação a este ato e à passagem do tempo em si, especialmente sendo a primogénita do Deus do Trovão/Tempestade.

Teónimos conhecidos: Đironā, Damonā/Dāmonā.Atributos: Céu noturno, lua, constelações, estrelas, medição do tempo, cura, fertilidade.Consorte: Grannos (de Đironā), Moritascus (de Damonā/Dāmonā).Posses: ?Animais: Serpentes.Plantas: ?Cores: Azul-noite (?), branco (?).Festival principal: Decanoχtes Granni (?).Oferendas: ?

Deusa do Santuário (?)Este foi, sem dúvida, o artigo mais complicado de escrever, especialmente devido à falta de atestação e representações da Deusa em questão, assim como a suspeita ausência quase total de cognatos Celtas e até Indo-Europeus. Contudo, será o artigo mais curto de todos.

Provavelmente não haverá interessado na religão Celta que não se tenha deparado com Nemetonā. Este teónimo, atestado em inscrições em Klein-Winternheim, Altripp e Trier. Apesar de parecer óbvio qual poderá ser a etimologia do teónimo, essa é, na verdade, uma das razões para a escrita deste artigo. Estamos, claramente, perante um reflexo do Proto-Celta *nemeto-onā.

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E então, o que é que significa?Como Xavier Delamarre (“Dictionnaire de la Langue Gauloise“, pág. 233) e Ranko Matasović (“Etymological Dictionary of Proto-Celtic“, pág. 288) bem dizem, *nemeto- pode ter dois significados, não apenas um.

O mais famoso atualmente, é o de ‘santuário’ e ‘recinto sagrado’, que evoluiu para o Gaulês nemeton (nominativo neutro singular).

O segundo significado pode ser ‘privilégio’ em termos sociais – nemetos (nominativo masculino singular), em Gaulês – que pode ser adjetivado como *nemeto-yo- (> nemetios), ‘priveligiado’.

E aqui está uma das grandes dificuldades para entendermos este problema: trata-se de um teónimo ou epíteto (ou ambos)?Tratando-se de *Nemeto(m)-onā, o significado será ‘Grande Santuário’.Contudo, se se tratar de *Nemeto(s)-onā, passa a querer dizer ‘Grande Privilégio’.

Gravura da inscrição de Bath, da autoria de um homem dos Treuerī.

Isto é tudo menos uma escolha fácil, que se torna ainda mais complicada tendo em conta a falta de iconografia concreta.

Segundo que é dito por John T. Koch (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia“, pág. 1351), foi achada uma estatueta de Nemetonā em Trier, mas infelizmente, tem-me

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sido impossível encontrar alguma imagem da dita cuja, quer na Internet, quer em livros. Assim sendo, teremos de continuar a guiar-nos por teónimos e afins.

Ora, algo que geralmente é ignorado é que Nemetonā aparece assimilada à Deusa Victoria na inscrição de Altrip (“Mythes et Dieux de la Gaule“, de J. J. Hatt, pág. 180), o que certamente é uma pequena ajuda para os problemas de interpretação. Victoria era relativamente afamada entre os Romanos, e os seus atributos eram uma coroa de louros e alguns símbolos de prosperidade como espigas de trigo. Não sei como é que a Nemetonā de Trier foi representada, mas provavelmente teria, pelo menos, os ditos símbolos de prosperidade.A razão por detrás da associação de Nemetonā a Victoria provavelmente seriam conotações bélicas, que fazem lembrar os santuários de cariz [total ou parcialmente)] militar, como o de Ribemont-sur-Ancre e Gournay-sur-Aronde em que se podiam encontrar postes nos quais foram dispostas armaduras como forma de celebração de vitórias militares (ver artigo Recintos Sagrados e Templos).

Representação artística de cadáveres de soldados, e suas armas e armaduras, expostos no nemeton de Ribemont-sur-Ancre.

Para complementar esta possível associação bélica, é de notar que Nemetonā aparece juntamente com Loucetios (cujo nome é romanizado como Leucetius e Loucetius) – que é sincretizado com Mars – em Klein-Winterheim (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia“, pág. 1192) e em Altrip (“Mythes et Dieux de la Gaule“, de J. J. Hatt, pág. 180). Contudo, este detalhe de uma possível relação conjugal de Nemetonā, tanto pode facilitar a análise, como dificultá-la.Associada a Nemetonā, está Ancamnā (< *an-acamnā, ‘não dura’?), que é esposa de Lēnus, em Am Irminenwingert. Esta Deusa possuiu grandes atributos tribais – como padroeira dos Trēuerī – como mencionado no artigo Deus da Lei (“Mythes et Dieux de la Gaule”, J. J. Hatt, págs. 128 e 129).

Por um lado, temos alguma segurança de que teria uma ligação com a guerra e a vitória, já que o seu possível consorte é sincretizado com Mars.Por outro, temos a questão da etimologia… O teónimo Loucetios deriva do Proto-

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Celta *lowk(k)et-yo-, e significa ‘Relampejante’ – *low(k)et- > louce significa ‘relâmpago’ – como John T. Koch afirma (“Celtic Culture – A Historical Encyclopedia“, pág. 1192). Parece um nome mais apropriado para um Deus celestial, mas, Koch faz uma relação interessante a mítica aura dos guerreiros, chamada lúan em Irlandês Antigo. Pessoalmente, penso que pode haver uma possível ligação à Claidheamh Soluis, a coruscante espada de Nuadu (“The Four Jewels of the Tuatha Dé Danann’, págs. 73 a 88″).

É possível dar a volta a este problema, se tivermos em conta que Taranus – que é claramente um Deus do Trovão/Tempestade – apesar de poder ser associado (de forma algo secundária) a cursos de água, nunca foi associado a Mars, apenas a Iuppiter/ Iuppiter Optimus Maximus. Porém, Noudons e Lēnus são indubitavelmente ligados a fontes e rios (“Mythes et Dieux de la Gaule“, de J. J. Hatt, pág. 90), sendo que ambos são sincretizados com Mars e aqui [Celtocrābiion] classificados como Deuses da Lei (ou seja, dignos do título de Toutātis). Loucetios, por mais descabido que o seu nome possa ser, também obedece as estes dois critérios (“Mythes et Dieux de la Gaule“, de J. J. Hatt, pág. 192)Apesar de o mistério de Loucetios parecer estar praticamente resolvido, pelo menos quanto às suas funções, Nemetonā ainda permanece um pouco “distante”. A sua suposta ligação aos nemetā é viável?No que toca a “personificações” de espaços sagrados, apenas consegui encontrar Vé, também conhecido como Loður, que além de ser o responsável por atribuir os 5 sentidos ao primeiros humanos, também parece ter sido o je ne sais quoi que atribuía cariz sagrado a um santuário nórdico (“The Northern Tradition“, de Galina Krasskova, pág. 82).Se Nemetonā provir de *Nemeto(s)-onā, então é possível que como Deusa associada ao privilégio social – ou ao privilégio sagrado, como diz John Koch – que também ela, além de o Deus da Lei, estaria encarregue de decidir quem seria digno o suficiente para penetrar num santuário. Afinal, como bem sabemos, era possível ser excluído dos ritos – certamente como punição por ofensa ou crime, como ocorria entre os povos Germânicos (sagas de Eyrbyggja e Viga-Glúms) – se os druuides o achassem punição suficiente (“De Bello Gallico“). Na verdade, durante um rito Gaulês que envolvesse um banquete, a posição social era extremamente importante.

Em conclusão, Nemetonā parece estar associada à guerra num sentido mais nobre e heróico, ao estatuto social, e, possivelmente com a sacralidade dos santuários e ao protocolo a eles associado (“Mythes et Dieux de la Gaule“, de J. J. Hatt, pág. 197).

Teónimos conhecidos: Nemetonā e Ancamnā.Atributos: Guerra, vitória, estatuto social, santuários (?).Consorte: Loucetios e Lēnus.Posses: ?Animais: ?Plantas: ?Cores: ?Festival principal: ?Oferendas: Peças de armadura, troféus.

Deusa da Prosperidade

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Curiosamente, esta Deusa é particularmente popular, apesar de não ser frequentemente sujeita a grandes análises de mitologia comparativa, quer entre povos Celtas, quer com outros povos Indo-Europeus. Para ser honesto, apenas conheço uma tentativa concreta (“Lady with a Mead Cup”, de Michael J. Enright).

O título “Deusa da Prosperidade” talvez não seja o melhor para definir os 3 teónimos a que este artigo se refere: Rosmertā, Atesmertā e Cantismertā.

Rosmertā – sem dúvida a mais popular – foi adorada em Alzey, Cologne, Eisenberg, Neumagen, Reinsport, Trèves, Wasserbilig, Andernach e Worms (na Alemanha); Côted’Or, Haute-Marne, Loiret, Meurthe-et-Moselle, Puy-de Dôme, Vosges e Yonne (em França); e, por fim Sarmizegetusa, na Roménia. Tendo a sua grande disseminação, é possível postular que foi adorada pelas seguintes tribos: Eburones, Ēduī < Aeduī < Aiduī, Trībocī e Senones.Atesmertā apenas tem o seu nome atestado na região de Haute-Marne, em França. A sua localização sugere que foi adorada pelos Suessiones.Por fim, Cantismertā foi adorada em Lens, na Suíça, o que torna possível que tenha sido objeto de veneração por parte dos Eluētiī (Helvetii).

Certamente que o leitor já reparou que existe um padrão que une os 3 teónimos: o termo smertā. Não há consenso quanto a qual será a raiz Proto-Indo-Europeia deste termo, mas Fleuriot, apoiado posteriormente por Delamarre (“Dictionnaire de la Langue Gauloise”, pág. 277) achou cognatos nas línguas Celtas atuais, nomeadamente no Galês armerth (‘preparação ‘provisão’), armerthu e darmerthu (‘prover’ ‘providenciar’), assim como no Bretão armerh (‘economia’ ‘poupança’). A partir desta análise, podemos chegar a um Proto-Celta *smerto-.

Tendo em conta o que foi concluído por Fleuriot e Delamarre, é possível chegar à etimologia precisa dos 3 teónimos:

Rosmertā < *φro-smertā – ‘Grande Provedora’

Atesmertā < *ati-smertā – ‘Novamente (Sempre?) Provedora’

Cantismertā < *kanti-smertā – ‘Provedora da assembleia/dos que se reúnem’

É de salientar que *smer não pode significar, ao contrário do que Vendryes afirma, ‘destino’ ou ‘pensamento’ (“Dictionnaire de la Langue Gauloise”, pág. 277), que permanece por atestar nas restantes línguas Celtas. Os termos celtas para as ditas palavras são universalmente descendentes do Proto-Celta *tonketo- ou *sedo/*sīdo- e *menman-, respetivamente.

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Rosmertā acompanhada por Mercurius (Autun).

Mas quem é Rosmertā (e semelhantes)?

Existem 3 principais teorias: a primeira defende que se trata de uma Deusa da Soberania, à semelhança de Eponā, enquanto que a segunda prefere a visão de que se trata de um género de Deusa da Terra, tal como Nantosueltā. A terceira afirma que Rosmertā é uma Deusa associada à profecia (algo já mencionado acima).Nenhuma das 3 pode, na verdade, ser aplicada.

Como mencionado no artigo Deusa da Soberania, existe uma inscrição, achada em Lezoux, na qual se pode ler:

“(…) ieuri Rīganī Rosmertīac“

“(…) dediquei à Rainha e a Rosmertā”

Ou seja, é uma clara distinção entre ambas as figuras da Deusa Soberana e a Deusa da Prosperidade. Contudo, a sua aparição em conjunto numa só inscrição votiva, revela que o seu culto poderia estar relacionado, sendo possível postular que o(a) autor(a) da inscrição – que não está identificado – pertenceria à classe governante e teria deixado a oferenda por ocasião de um rito ou data associados à política local.

Podemos, então, ver Rosmertā como um género de auxiliar da Rainha dos Deuses. No artigo Deusa da Soberania, estabelece-se uma ligação entre a dita Deusa e o hidromel

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– que é a bebida soberana por excelência – e de como provavelmente existiria um rito pan-Celta que uniria ambos os aspetos, na altura de um novo rei tomar o poder; um casamento entre o rei da tribo mortal e a Rainha da tribo imortal, que tinha poder sobre a terra. Curiosamente, o termo darmerth (mencionado previamente), ‘prover’ ‘providenciar’, aparece na ocasião do banquete de casamento de Pwyll, filho de Rhiannon.Se tivermos isto em conta, e observarmos a iconografia das representações Galo-Romanas de Rosmertā, podemos concluir que a patera, o balde ou tanque com que é muitas vezes representada, pode estar relacionada com o portar do hidromel “cerimonial” (“Lady with a Mead Cup”, de Michael J. Enright, pág. 243).Já dizia Diodorus Siculus, no seu “Bibliotheca Historica”):

“Enquanto [os Gauleses] jantam, são servidos por adolescentes masculinos e femininos.”

Se o Deus Ferreiro (veja o respetivo artigo) é encarregue de produzir o hidromel para o festim dos Deuses, a Deusa da Prosperidade está encarregue de o guardar e servir (“Lady with a Mead Cup”, de Michael J. Enright, págs .263 e 264), sob comando da Rainha.

A partir deste ponto de vista, faz sentido que o marido de Rosmertā seja Lugus, normalmente sob o “disfarce” de Mercurius; é aqui que é necessário requerer alguma ajuda da mitologia insular.O festival irlandês de Lugnasad significa ‘união/contrato de Lug’ e provém do Proto-Celta *lugu-nad-sk-e-āti-. A temática principal é o organizar de jogos e de uma feira para honrar a morte de Tailtiu, a mãe-adotiva de Lug; contudo, o nome do festival parece não ter nada em comum com o evento mitológico descrito. Uma possibilidade que me atrevo a avançar é que poderia ter existido, também, um mito relativo ao casamento de Lug, que deu origem à tão afamada e bem documentada prática dos casamentos que duravam um ano e um dia (“The Year in Ireland: Irish Calendar Customs”, de Kevin Danaher, págs. 167 a 186).Se esta hipótese tiver pernas para andar, então o reflexo (ou variação) gaulês provavelmente foi preservado no casamento de Lugus e Rosmertā, que teria ocorrido no equivalente gaulês de Lugnasad: Lugunassātis.A complementaridade de um Deus encarregue de juramentos e de uma Deusa dispensadora de hidromel, formariam um ótimo casal de padroeiros para uma celebração de casamento.

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Taça de prata que representa Maia-Rosmertā e Mercurius-Lugus.

A iconografia Galo-Romana também parece ter tendências a ligar Rosmertā e Maia (Deusa helénica e romana), além de, por vezes, atribuir à primeira uma cornucópia. A única interpretação possível, é que Rosmertā também é responsável pelo crescimento e amadurecimento dos frutos das árvores e dos campos.A partir desta noção, é possível entender o porquê de Rosmertā ser vista como semelhante a Maia (na perspetiva romana), e vice-versa: originalmente, Maia era uma Deusa associada ao processo natural de crescimento, tanto que se julgava que o seu nome estava ligado etimologicamente aos adjetivos maius e maior, ‘maior’; nesses tempos arcaicos, era vista como uma abstração deificada (“The Gods of Ancient Rome: Religion in Everyday Life from Archaic to Imperial Times”, de Robert Turcan, pág. 70). Ou seja, não é uma Deusa da Terra.

Podemos, portanto, reconhecer que a Deusa da Prosperidade engloba a prosperidade não só nos campos e pomares – de forma secundária, digamos – como também a “prosperidade divina”, nos seus atributos de guardiã e repartidora do hidromel e do banquete da imortalidade. Também tem o papel de manter a prosperidade, ordem e paz sociais, na medida em que é sob a sua influência que os costumes dos festins e das tradições matrimoniais são defendidos.

Teónimos conhecidos: Rosmertā, Atesmertā e Cantismertā.Atributos: Prosperidade na agricultura, prosperidade social e divina, crescimento agrícola, colheitas, deveres sociais femininos, matrimónio.

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Consorte: Lugus (e afins).Posses: Balde/vasilha/tanque de hidromel.Animais: ?Plantas: Cevada (componente essencial do hidromel)?Cores: ?Festival principal: Lugunassātis.Oferendas: Cereais (?), frutos (?) e mel (?).