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e-cadernos ces21 (2014)Dez anos da Conveno do Patrimnio Imaterial: ressonncias Norte e Sul
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Regina Abreu
Dez anos da Conveno do PatrimnioCultural Imaterial: Ressonncias,apropriaes, vigilncias................................................................................................................................................................................................................................................................................................
AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.
Revues.org um portal de revistas das cincias sociais e humanas desenvolvido pelo CLO, Centro para a edioeletrnica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - Frana)
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Referncia eletrnicaRegina Abreu, Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias,e-cadernos ces [Online], 21|2014, posto online no dia 01 Junho 2014, consultado o 11 Maro 2015. URL: http://eces.revues.org/1742; DOI: 10.4000/eces.1742
Editor: Centro de Estudos Sociaishttp://eces.revues.orghttp://www.revues.org
Documento acessvel online em: http://eces.revues.org/1742Este documento o fac-smile da edio em papel. CES
e-cadernos CES, 21, 2014: 14-32
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DEZ ANOS DA CONVENO DO PATRIMNIO CULTURAL IMATERIAL: RESSONNCIAS,
APROPRIAES, VIGILNCIAS
REGINA ABREU
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIRIO, BRASIL
Resumo: No momento em que a Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial promulgada pela UNESCO completa dez anos, torna-se oportuna uma reflexo no sentido de avaliar os alcances e os sentidos das polticas pblicas e dos processos de patrimonializao do chamado imaterial ou intangvel. O presente artigo busca enunciar alguns aspectos sublinhados por pesquisadores e agentes do campo patrimonial com relao adeso ao Programa do Patrimnio Cultural Imaterial em diferentes contextos nacionais: diferentes ressonncias e apropriaes somadas a uma permanente vigilncia. No final, traz algumas notas sobre o tema no contexto de quatro pases da Europa do Sul Itlia, Frana, Portugal e Espanha a partir das observaes da autora durante o Colquio Internacional Polticas Pblicas para o Patrimnio Imaterial na Europa do Sul Percursos, concretizaes, perspectivas, realizado em Lisboa, em setembro de 2012.
Palavras-chave: patrimnio cultural imaterial, UNESCO, polticas pblicas.
A DECADE AFTER THE INTANGIBLE CULTURAL HERITAGE CONVENTION:
RESONANCES, APPROPRIATIONS, SURVEILLANCES
Abstract: As the UNESCO Intangible Cultural Heritage Convention completes ten years, we have an opportunity to assess the scope and direction of both public policies and patrimonialization processes pertaining to so-called immaterial or intangible heritage. This article aims to establish some aspects highlighted by researchers and heritage agents regarding adherence to the Intangible Cultural Heritage Program in different national contexts: different resonances and appropriations in addition to permanent surveillance. It ultimately provides some notes on the subject in the context of Southern European countries Italy, France, Portugal, and Spain grounded on observations by the author during the International Conference Public Policies for Intangible Heritage in Southern Europe Routes, achievements and perspectives, held in Lisbon in September 2012.
Keywords: intangible cultural heritage, UNESCO, public policies.
Regina Abreu
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1. INTRODUO
A Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial, promulgada em 2013, deu continuidade
aos clamores por inovao e popularizao no campo das agncias de
patrimonializao iniciados com o documento lanado pela UNESCO em 1989,
intitulado Recomendao para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular e que
gerou uma nova ordem discursiva e o fenmeno de mbito global da
patrimonializao das diferenas. Na ocasio, alguns representantes de Estados-
membros argumentaram sobre uma certa elitizao das polticas pblicas
patrimoniais at ento. Segundo estes representantes, estas polticas privilegiavam a
preservao de vestgios e legados das elites em seus pases de origem. O que
aparecia como inovador era a vontade poltica de redimensionar as polticas pblicas
de patrimnio para esferas de circulao das chamadas culturas populares e
tradicionais. Na esteira do processo de descolonizao, representantes de pases
africanos e latino-americanos veicularam a ideia de que a maior parte dos patrimnios
destes pases estavam em seus rituais, festas, saberes ainda no registrados, lnguas,
enfim, expresses artsticas e culturais muitas vezes efmeras, com poucos registros
e sistematizaes e que ficavam pouco visveis ou mesmo ocultas diante de polticas
patrimoniais que privilegiavam as realizaes das elites ou o registro da passagem do
colonizador, como igrejas catlicas, palcios, monumentos. Formulou-se assim o
conceito de patrimnio cultural intangvel ou imaterial, com a meta de abrir o campo
do patrimnio cultural para manifestaes e expresses da cultura popular ou
tradicional. incontestvel o sucesso desta nova formulao que deu origem a
diversas polticas pblicas e vem fomentando novos mercados e novas indstrias
relacionadas ao turismo e ao entretenimento.
As repercusses desta nova perspectiva patrimonial logo se fez sentir nos
diversos Estados-membros da UNESCO, desde pases da Europa e do Atlntico Norte
at aos pases do chamado Bloco do Sul, que incluem quase todos os pases
tropicais da Amrica Latina e do Sudeste Asitico, alm da China e de vrios pases
africanos. fundamental termos no horizonte que as polticas preservacionistas,
outrora restritas a iniciativas isoladas de alguns intelectuais visionrios, foram
gradativamente se capilarizando para os mais longnquos rinces do planeta e se
transformando em aes organizadas em esfera global. Trata-se efetivamente de uma
dinmica globalizada, onde o campo do patrimnio apropriado com fora
surpreendente, sobretudo a partir dos anos oitenta do sculo XX, nos lugares mais
remotos, imiscuindo-se em diversas atividades, das construes mais sbrias aos
nfimos detalhes da vida cotidiana. Como assinalou Nathalie Heinich (2009), a
categoria patrimnio se difundiu e adquiriu novos sentidos de forma crescente nas
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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ltimas dcadas. Aes de preservao das manifestaes abarcadas por esta
categoria foram colocadas em marcha, abarcando das catedrais s pequenas
colheres de ch, ou ainda das manifestaes arquiteturais em pedra e cal aos ritos
mais efmeros como as pinturas corporais, as festas, os cnticos de trabalho.
Todo este movimento pode estar ligado a um certo excesso, como se referiu
Andreas Huyssen em Seduzidos pela Memria (Huyssen, 2000), mencionando uma
virada nostlgica, onde indivduos marcados pelo mal-estar da instabilidade e da
velocidade do contemporneo, buscariam olhar para trs e recuperar um mundo que
j se foi. Outros, como a prpria Nathalie Heinich, parecem detectar uma inflao
patrimonial, onde expresses culturais, coisas e at pessoas no escapariam da
voracidade das polticas patrimoniais vidas em experimentar novos sistemas
classificatrios e prticas de patrimonializao. Por outro lado, a categoria patrimnio
em seu sentido expandido parece trazer novo conforto s culturas e civilizaes, como
antdoto lgica homogeneizadora da hegemonia neoliberal que iguala continentes
inteiros em seus mais variados regimes polticos e ideolgicos mesma sede de
desenvolvimento e consumo.
Teramos muitos motivos para olhar com desconfiana para a paradoxal corrida
patrimonial que vimos se configurar nas ltimas dcadas, trazendo este tema
inquietante para fruns diversos que envolvem governos, centros de pesquisa,
universidades, empresas, movimentos sociais, organizaes sociais e no
governamentais. Entretanto, se por um lado, a desconfiana e a crtica configuram-se
como salutares em contextos de necessria reflexo, por outro lado, h que imiscuir-
se e deixar-se contaminar por aquilo que faz girar e motiva efetivamente tantas
pessoas, instituies e movimentos sociais. Parafraseando Marcel Mauss (1974), o
campo patrimonial parece conter um mana especial com fundamentos afetivos e
mgicos que o mobilizam para alm das racionalidades das polticas e dos programas.
Patrimnios constituem, pois, tambm valores sagrados num circuito cultural cada vez
mais globalizado, onde diferentes sentidos e significados se difundem e se
miscigenam numa intensidade jamais vista.
assim, deste ponto de vista, que queremos indagar sobre o mana do Programa
de Patrimnio Cultural Imaterial nestes dez anos. Quais os fundamentos afetivos e
mgicos que vm sendo mobilizados? Quais as foras sociais que aderiram e se
mobilizaram a partir de ento? Quais as novidades e as questes colocadas em
marcha em contextos nacionais e locais? Quais as ressonncias e as apropriaes de
uma Conveno promulgada por uma agncia multilateral da magnitude da UNESCO
por representantes de Estados nacionais, movimentos sociais, associaes no
governamentais?
Regina Abreu
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2. A CONVENO DE SALVAGUARDA DO PATRIMNIO CULTURAL IMATERIAL DE 2003
COMO DISCURSO FUNDADOR
A Conveno de Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial de 2003 consistiu na
consolidao e no desdobramento de um discurso completamente inovador acerca do
que se privilegiava at ento com relao a processos de patrimonializao, voltados
prioritariamente para uma viso histrica e artstica marcadamente civilizatria. A
entrada em cena do paradigma da diversidade cultural, especialmente da valorizao
das culturas populares e das tradies intangveis, comeou a ganhar fora em 1989,
com a Recomendao da UNESCO aos Estados-membros sobre a Salvaguarda da
Cultura Popular e Tradicional promulgada na 31. Conferncia Geral. Esta
Recomendao constitui o embrio da noo de patrimnio imaterial. Nela
sublinhada a natureza especfica e a importncia da cultura tradicional e popular
como parte integrante do patrimnio cultural da cultura vivente, bem como
reconhecida a extrema fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e,
particularmente, dos aspectos correspondentes das tradies orais. Uma frase fica
ento clebre neste contexto: Numa cultura tradicional, muitas vezes quando um
ancio morre, toda uma biblioteca que se queima. Urge que sejam tomadas medidas
de proteo a estas culturas de tradio oral. A Recomendao de 1989 muito
importante por constituir a primeira ao de arregimentao de uma poltica
transnacional para as culturas tradicionais e populares, incitando os Estados-membros
a protegerem os testemunhos vivos ou passados destas culturas. J se fala em
proteo a culturas tradicionais e populares como uma forma especfica de proteo a
patrimnios coletivos e no materiais. E ainda especificam de um lado a necessidade
de encontrar vias jurdicas de proteo propriedade intelectual coletiva dos saberes
e, de outro lado, de criar arquivos e centros de documentao dedicados s culturas
tradicionais e populares. Ou seja, estimulam-se dois dispositivos-chave para as
dcadas que se seguiriam: o dispositivo jurdico e o banco de dados. A
Recomendao de 1989 chamava ainda a ateno de que a meta de proteo deveria
no apenas focalizar os produtos culturais, mas tambm os produtores e detentores
da tradio. fundamental assinalar que esta Recomendao, bem como todo o
movimento de valorizao da diversidade cultural e particularmente das expresses
intangveis das culturas, foi o resultado do posicionamento de movimentos sociais,
organizaes no governamentais, militantes e de representantes de pases do
chamado Bloco Sul, ou seja, dos pases considerados emergentes ou em vias de
desenvolvimento, incluindo a Amrica do Sul, a frica, pases do Oriente.
sintomtico tambm que tenha sido em 2002 que a UNESCO tenha lanado pela
primeira vez um documento voltado para o tema da diversidade cultural, a Declarao
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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Universal sobre a Diversidade Cultural, que passou a considerar o respeito
diversidade cultural no apenas um direito dos povos, mas uma condio
indispensvel das polticas nacionais e internacionais, para promover o dilogo entre
os povos. Outro elemento importante nesta nova configurao foi a criao pela ONU,
em 2002, do Grupo de Trabalho sobre Populaes Indgenas, que se tornou rgo
assessor do Conselho Econmico e Social, com reunies anuais.
A Promulgao da Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Imaterial
(UNESCO), assinada pelos Estados-membros da UNESCO em 2003, abriu tambm
uma outra frente de expanso ao privilegiar o tema dos conhecimentos tradicionais.
Estes deveriam ser identificados, documentados, inventariados com o fim ltimo da
preservao deste legado para as geraes futuras. Em suma, a Conveno do
Patrimnio Imaterial de 2003 foi o resultado de muitos debates e aes no sentido de
abranger outras formas de patrimonializao e, portanto, de preservao de
manifestaes e expresses culturais consideradas vivas, dinmicas e pouco
palpveis como festas, rituais, lugares e saberes.
A Conveno de 2003 define Patrimnio Cultural Imaterial como:
as prticas, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto com
os instrumentos, objetos, artefactos e lugares culturais que lhes so associados
que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos
reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultural. Este patrimnio
cultural imaterial, que se transmite de gerao em gerao, constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em funo de seu ambiente, de sua
interao com a natureza e de sua histria, gerando um sentimento de
identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito
diversidade cultural e criatividade humana.1
Segundo esta mesma Conveno, este patrimnio cultural imaterial se manifesta
nos campos das tradies e expresses orais, incluindo o idioma como veculo do
patrimnio cultural imaterial; expresses artsticas; prticas sociais, rituais e atos
festivos; conhecimentos e prticas relacionados natureza e ao universo; tcnicas
artesanais tradicionais.
Aps a definio do objeto da Conveno, o documento estipula como atribuio
para os Estados-membros adotar as medidas necessrias para garantir a
salvaguarda do patrimnio cultural imaterial presente em seu territrio. Por fim,
1 Cf. http://www.unesco.org/culture/ich/doc/src/00009-PT-Portugal-PDF.pdf (consultado a 13.02.2015).
Regina Abreu
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especial destaque conferido participao das comunidades, grupos e
organizaes no-governamentais pertinentes na identificao e definio dos
diversos elementos do patrimnio cultural imaterial presentes em territrios nacionais.
Este novo agenciamento dos processos de patrimonializao a um conjunto de
agentes sociais marca uma distncia com relao a antigos procedimentos quando os
processos de patrimonializao eram atribuio de agentes estatais e especialistas.
Esta uma mudana a meu ver altamente significativa, pois vai alterar os
mecanismos, os ritos e fundamentalmente as correlaes de poder. O campo do
patrimnio a partir de ento dever integrar organismos do Estado e da sociedade
civil.
A Conveno entrou em vigor a 20 de abril de 2006 para os Estados que haviam
depositado seus respectivos instrumentos de ratificao, aceitao, aprovao ou
adeso a 20 de janeiro de 2006 ou anteriormente. Para os demais Estados, ficou
estipulado que a Conveno entraria em vigor trs meses depois de efetuado o
depsito de seu instrumento de ratificao, aceitao, aprovao ou adeso. Eram
ento considerados Estados-partes da Conveno aqueles Estados que ratificaram a
Conveno. Estes esto divididos em cinco grupos: frica; Estados rabes; sia e
Pacfico; Europa e Amrica do Norte; Amrica Latina e Caribe. At o incio de 2012,
142 Estados j haviam ratificado a Conveno. O primeiro deles foi a Arglia,
enquanto o ltimo foi o Cazaquisto (abril de 2012). O Brasil ocupa a 37. posio,
tendo ratificado a Conveno em 01.03.2006 (UNESCO, 2012).
Entretanto, alguns dados revelam diferentes ressonncias com relao
participao dos Estados no projeto da UNESCO. Analisando a Lista de Patrimnio
Imaterial, verificamos que, no momento, cerca de 90 pases participam de processos
de patrimonializao, o que significa que, embora signatrios, cerca de 50 pases
ainda no se mobilizaram efetivamente para participar do projeto. Os motivos so
diversos. O pesquisador Ismail Ali El-Fihail, do Departamento de Patrimnio Intangvel
da Unio dos Emirados rabes Abu Dhabi, United Arab Emirates (UAE), em
comunicao durante o Colquio Local Vocabularies of Heritage. Variabilities,
Negotiations, Transformations, ocorrido em 8 a 10 de fevereiro de 2012, na
Universidade de vora, comentou, por exemplo, que a reao por parte dos pases
que formam o mundo rabe Conveno foram muito desiguais. Enquanto a Arglia
foi o primeiro pas do mundo a ratificar a Conveno, trs importantes pases rabes
levaram seis anos para dar o mesmo passo. Quatro outros pases rabes ainda no
so signatrios da Conveno, entre eles o Barein e o Kuwait. Ironicamente, a Lbia
estava prestes a ratificar a conveno antes da queda do regime de Gaddafi; no
entanto atualmente o assunto precisa ser ainda mais trabalhado. A Somlia tambm
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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no ratificou a Conveno e pode continuar a no se posicionar com relao a este
tema devido guerra civil em curso. Estes exemplos podero constituir indcios de
que em pases com governos pouco democrticos ou em situao de instabilidade
social e poltica, a ressonncia para a Conveno da Proteo ao Patrimnio Imaterial
pequena ou mesmo inexistente.
No portal da Conveno, so sugestivas as notcias de fomento a comunidades
tradicionais como forma de estimular um aumento da participao no projeto. Na
frica, por exemplo, foi criada uma Escola do Patrimnio Africano, onde a UNESCO
tem procurado realizar aes com apoio de um Fundo Internacional para a
Salvaguarda do Patrimnio Cultural. O objetivo trabalhar numa ao conjunta de
sensibilizao dos Estados nacionais e de fortalecimento do papel das comunidades
nos assuntos de patrimonializao. Segundo o texto publicado no portal da
Conveno, o objetivo da sensibilizao atravs de oficinas, de destacar o papel dos
Estados na adoo das medidas necessrias para garantir a salvaguarda do
patrimnio cultural imaterial em seus territrios, tais como a adoo de uma poltica
geral, a designao de organismos competentes, o fomento de estudos cientficos e a
adoo de medidas legais, tcnicas e administrativas apropriadas. O papel das
comunidades na identificao e transmisso do patrimnio cultural imaterial ocupa
tambm um lugar destacado, assim como a importncia para salvaguardar o
patrimnio cultural imaterial para o desenvolvimento sustentvel e a coeso social
(UNESCO, 2012).
Em 27 de janeiro de 2012, o Portal da Conveno noticiou que mais de um milho
de dlares americanos haviam sido colocados disposio para assegurar esforos
de salvaguarda do patrimnio imaterial em oito pases da regio da sia e do Pacfico
(Buto, Camboja, Monglia, Nepal, Papua-Nova Guin, Samoa, Sri Lanka e Timor
Oriental). Como justificativa para esta ao, a UNESCO reiterava que a enorme
riqueza das prticas culturais, os sistemas de conhecimento e os rituais existentes na
regio se encontram ameaados, que a salvaguarda do patrimnio vivo se faz cada
vez mais necessria para o desenvolvimento sustentvel dos pases implicados, e que
o patrimnio imaterial influi no bem-estar das pessoas, nas suas relaes com as
demais e com seu entorno natural, alm de dotar as comunidades de um sentido de
pertencimento e favorecer a coeso social. Com recursos da Noruega para o Fundo,
outro projeto em andamento centra-se no desenvolvimento dos conhecimentos e da
capacidade institucional em pases da sia Central e pases africanos de lngua oficial
portuguesa e do Caribe. Para fomentar o projeto no Cazaquisto, representantes de
organizaes governamentais e no governamentais, instituies acadmicas e
educativas e as comunidades recebero uma formao sobre a aplicao da
Regina Abreu
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Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial de 2003 em nvel
nacional, com recursos provenientes de vrios pases, entre eles Bulgria, Chipre,
Flandres (Blgica), Hungria, Japo, Noruega, Repblica da Coreia, Espanha,
Emirados rabes e Unio Europeia.
3. O COLQUIO INTERNACIONAL POLTICAS PBLICAS PARA O PATRIMNIO IMATERIAL
NA EUROPA DO SUL PERCURSOS, CONCRETIZAES, PERSPECTIVAS 2
Entre 27 e 28 de novembro de 2012 ocorreu em Lisboa, no Auditrio do Institut
Franais du Portugal, um dos primeiros eventos destinados justamente a fazer um
balano dos dez anos da Conveno do Patrimnio Imaterial da UNESCO. Intitulado
Colquio Internacional Polticas Pblicas para o Patrimnio Imaterial na Europa do
Sul Percursos, concretizaes, perspectivas e promovido pelo Departamento Geral
do Patrimnio Cultural do Governo de Portugal com apoio do Programa Ibermuseus, o
evento convidava os participantes a um duplo movimento, de pensar e de agir, no
campo patrimonial, relacionando numa mesma confluncia atores e agentes sociais
com mltiplas inseres acadmicas, institucionais, militantes e afetivas. O convite
ao Colquio, pela natureza mesma de organizao e planejamento das mesas, incitou
a um debate caloroso e estimulante. A escolha dos palestrantes conjugou pontos de
vista e prticas profissionais diferenciadas: agentes institucionais, pesquisadores
ligados a Universidades e Centros de Pesquisa, representantes de autarquias e de
organizaes sociais.
De seguida irei introduzir algumas observaes sobre as perspectivas
apresentadas durante o Colquio de forma etnogrfica, levando em conta que as
palestras no foram publicadas. Tive acesso a algumas delas em textos digitalizados.
A Conferncia de abertura de Chrif Khaznadar coube ao presidente da Maison
des Cultures du Monde. Khaznadar (2013) assumiu em seu texto o tom militante,
oferecendo um testemunho de algum que participou do processo que culminou com
a implementao da Conveno de Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial de
2003. A narrativa de Khaznadar, ao enfatizar a longa trajetria de surgimento de um
discurso fundador, situou o Colquio num processo mais amplo e histrico. Sua
apresentao trouxe alguns elementos para a compreenso de motivos que levaram a
que este discurso, e particularmente o conceito de imaterial, tivessem se firmado no
mbito da UNESCO. Esta contextualizao nos fez refletir sobre o aspecto quente ou
forte de um conceito que foi gestado no calor de embates entre pontos de vista
2 Os textos citados foram publicados pela Direo-Geral do Patrimnio Cultural nas Atas do Colquio
Internacional Polticas Pblicas para o Patrimnio Imaterial na Europa do Sul. Percursos, Concretizaes, Perspectivas. Cf. DGCP, 2013.
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
22
diferenciados, ou seja, que no foi inventado por administradores e burocratas de
agncias multilaterais. O depoimento de Khaznadar nos trouxe a percepo de que na
base da gestao do conceito estava a viso, nova na poca, de que manifestaes
culturais de povos no ocidentais ou das culturas populares em contextos ocidentais
no podiam permanecer no lugar do exotismo, mas que deveriam ser apropriadas
como expresses de uma diversidade cultural mais ampla. Segundo o palestrante, a
Conveno do Patrimnio Imaterial de 2003 representava a afirmao de uma nova
vertente para o pensamento ocidental, to cioso de suas conquistas de progresso e
civilizao, consolidando a perspectiva de expresses culturais tradicionais como elos
de uma espiral de mudanas e permanncias, e no como elementos de um passado
que se almejava superar e transpor.
Desse modo, o palestrante situou logo na abertura um aspecto de fundamental
relevncia ao enunciar os diversos agenciamentos que levaram afirmao e
disseminao do conceito antropolgico de cultura no campo do patrimnio. Hoje, o
estudo da diversidade cultural deixou de ser o apangio de um crculo de iniciados
antroplogos, etnlogos, etnomusiclogos e curiosos de outras culturas , para se
tornar uma misso cada vez mais abrangente de cidados numa esfera globalizada.
Khaznadar procurou reconstituir a longa trajetria, marcada por disputas e
negociaes, que afirmou o discurso do patrimnio cultural e, especificamente, do
patrimnio cultural imaterial, como um discurso fundador. Situou ainda o avano
dotexto da Conveno do Programa do Patrimnio Cultural Imaterial, de 2003, com
relao ao documento da Recomendao para a Salvaguarda da Cultura Tradicional
e Popular, de 1989. Segundo ele, enquanto o primeiro estava marcado
hegemonicamente por uma concepo de folclore, o segundo trazia j a categoria
tradio ressemantizada e com novos sentidos.
Estes enunciados corroboram a suposio de uma mudana radical de paradigma
com a entrada em cena de medidas para identificar, valorizar e proteger o patrimnio
cultural imaterial. Talvez por estes motivos, a apresentao de abertura de Khaznadar
conclamou a todos para o sentido da vigilncia, criando meios para resguardar
conquistas importantes deste marco fundador, vinculadas ideia de salvaguarda e de
revitalizao como processo permanente dentro de um uma configurao sociocultural
e protagonizada pelos agentes sociais em seus contextos particulares. No seu
entendimento, um dos perigos que enfrenta o conceito de patrimnio cultural
imaterial relaciona-se com algumas de suas apropriaes, nomeadamente no
contexto mercantil e no contexto de um nacionalismo de Estado sem participao
social e popular. Outro dos perigos que rondam o conceito consiste na fossilizao de
manifestaes culturais que, por sua natureza, so vivas e dinmicas, o que geraria a
Regina Abreu
23
despotencializao de um conceito que surgiu pela vontade poltica de representantes
de pases do Sul e de intelectuais preocupados com a ameaa da homogeneizao do
capitalismo neoliberal diversidade das culturas. Centrando sua anlise nos conceitos
de combatividade, lucidez e vigilncia, Khazanadar concluiu sua apresentao
enfatizando o fato de que o futuro do patrimnio imaterial est em nossas mos e
conclamando que todos ns, agentes do Estado, intelectuais e representantes de
movimentos sociais, transformemos nossa prtica patrimonial num lugar do bom
combate, defendendo os princpios que fizeram nascer o discurso fundador da
Conveno de 2003.
Uma das grandes qualidades do Colquio foi, a meu ver, ter possibilitado uma
viso ampla das ressonncias da Conveno de 2003 em diferentes contextos na
Europa do Sul. Foi possvel ter uma viso das diferenas e similitudes das aes e
dos processos de patrimonializao do imaterial em Portugal, Espanha, Frana, Itlia,
incluindo diferentes pontos de vista, ou seja, a viso de agentes do Estado, dedicados
a processos de constituio de inventrios e patrimonializao propriamente dita, e
tambm uma viso reflexiva, de intelectuais devotados a sistematizar e analisar o
conhecimento j produzido neste campo.
A noo de ressonncia importante neste caso, uma vez que a Conveno do
Patrimnio Imaterial de 2003 implicou em diretrizes comuns para os Estados-membros
que compem a UNESCO, ficando a responsabilidade pela aplicao destas mesmas
diretrizes a cargo dos Estados-naes particulares. Esta diversidade de polticas
pblicas voltadas para o fim comum do inventrio e proteo do patrimnio por si s
um tema que desperta o interesse. Se, aparentemente as experincias apresentadas
no Colquio partiram de um contexto com certa homogeneidade a Europa do Sul ,
o que se verificou nos dois dias foi uma enorme heterogeneidade de prticas e aes
institucionais englobando Espanha, Frana, Itlia e Portugal.
Sylvie Grenet, membro da Direction Gnrale des Patrimoines du Ministre de la
Culture et Communication apresentou a maneira pela qual esto sendo realizados os
inventrios do Patrimnio Cultural Imaterial na Frana. Grenet (2013) exps sua
gnese, a metodologia que presidiu sua elaborao, sua difuso pela internet e as
novas orientaes que esto sob o encargo do Ministrio Francs da Cultura em
relao com as comunidades envolvidas.
Chiara Bortolotto (2013), antroploga, pesquisadora do Laboratoire
d'Anthropologie des Mondes Contemporains, Universit Libre de Bruxelles apresentou
o panorama das iniciativas italianas no domnio de inventrio dos elementos do
patrimnio cultural imaterial, tecendo uma comparao entre trs Inventrios, o
primeiro elaborado pelo Ministrio da Cultura por intermdio do Instituto Centrale per il
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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Catalogo e la Documentazione, o segundo realizado num contexto regional especfico,
a Lombardia, e o terceiro colocado em marcha por uma associao no
governamental, Unione Nazionale pro loco d'Italia, evidenciando um processo que,
diversamente de outros contextos, ocorre de forma descentralizada e diversificada,
envolvendo diferentes agentes.
O caso espanhol foi apresentado sob duas perspectivas diferentes. Mara Pa
Timn Tiemblo, Coordinadora del Plan Nacional de Salvaguarda del Patrimonio
Cultural Inmaterial do Instituto del Patrimonio Cultural de Espaa, vinculado ao
Ministerio de Educacin, Cultura y Deporte, discorreu sobre o Plano de Salvaguarda
do Patrimnio Cultural Imaterial elaborado e executado atualmente pelo Governo de
Espanha. Sua apresentao (Tiemblo, 2013) centrou-se nos programas e linhas de
atuao do Plano: o programa de investigao e documentao com seus
instrumentos de salvaguarda e critrios; programas de conservao dos suportes
materiais e, finalmente, o programa de formao, transmisso, promoo e difuso.
Maria Pia chamou a ateno para a importncia do dilogo e do entendimento entre
os agentes institucionais, sobretudo estatais, responsveis pelos processos de
patrimonializao, e as comunidades, portadoras ou detentoras das expresses
culturais que so objeto de patrimonializao. A questo central, segundo ela, estaria
no consenso entre estas partes sobre quais seriam os elementos das expresses
culturais dotados de maior valor e que se manifestam como mais frgeis frente s
aceleradas mudanas no mundo contemporneo. Para Maria Pia, o cuidado com a
identificao precisa destes elementos e, sobretudo, o trabalho de preciso com
relao ao conceito de patrimnio imaterial seriam fundamentais para a
implementao das polticas pblicas neste campo.
Jos Luis Mingote Caldern, Conservador de la Coleccin de Europa do Museo
Nacional de Antropologa, falou do ponto de vista de sua longa experincia no campo
da cultura popular e tradicional na Espanha. Caldern (2013) enfatizou a necessidade
de confrontar as diferentes apropriaes em contextos locais dos conceitos colocados
em marcha pela Conveno de 2003. Particularmente, ele se referiu aos desencontros
entre os entendimentos destes conceitos e suas consequentes aplicaes polticas por
parte, de um lado, dos agentes institucionais e dos acadmicos e, de outro lado, dos
grupos sociais implicados em aes relativas valorizao e preservao de suas
expresses culturais.
Com relao ao caso portugus, o antroplogo Paulo Ferreira da Costa, Chefe da
Diviso do Patrimnio Imvel, Mvel e Imaterial, da Direo-Geral do Patrimnio
Cultural(DGPC), apresentou uma comunicao do ponto de vista de um trabalho
consistente e de grande flego que vem sendo realizado na DGPC, ou seja do mbito
Regina Abreu
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do aparelho de Estado portugus. Paulo Costa (2013) centrou-se na plataforma criada
para inventariar o Patrimnio Cultural Portugus - Matriz PCI (cf.
http://www.matrizpci.imc-ip.pt/matrizpci.web/Apresentacao.aspx). O ponto central e
inovador desta plataforma, no seu entender, consiste em sua interatividade com as
comunidades detentoras de manifestaes culturais variadas no contexto nacional no
sentido de fomentar e potencializar o dilogo com este universo social e cultural, bem
como difundir a diversidade cultural em Portugal. Paulo Costa chamou a ateno para
o significado de uma poltica de Estado na rea do Patrimnio Cultural Imaterial, o que
implica necessariamente num regime jurdico prprio de salvaguarda e na
implementao de um Inventrio Nacional do Patrimnio Cultural Imaterial (INPCI), ou
seja, que abarque todo o territrio nacional. Desse modo, o INPCI constitui-se a nvel
nacional, a medida central para a salvaguarda do PCI, sendo igualmente o registro
neste inventrio condio indispensvel para a apresentao das candidaturas de PCI
para as Listas Representativas da UNESCO.
Ao longo do Colquio, tivemos tambm a oportunidade de escutar alguns estudos
de caso e experincias singulares de valorizao das culturas tradicionais e populares,
bem como de processos de patrimonializao. Uma destas experincias relaciona-se
ao Inventrio Regional do Patrimnio Cultural Imaterial dos Aores e nos foi relatada
por Jorge Augusto Paulus Bruno (2013), Diretor Regional da Cultura, do Governo
Regional dos Aores. Neste caso, foi apresentada uma iniciativa governamental e
institucional local associada a uma comunidade muito ativa. O grande destaque
consistiu na perspectiva da Antropologia Visual como ferramenta para a identificao e
valorizao das expresses culturais locais. Um documentrio muito preciso e com
forte nfase etnogrfica foi exibido com a presena da diretora, chamando a ateno
para a necessria dimenso do audiovisual para expressar a cultura imaterial. Por
meio de documentrios como este, possvel registrar detalhes de manifestaes
culturais que se caracterizam pela volatilidade e pela versatilidade de gestos, cores,
msicas, cantos e performances diversas que seus manifestantes experimentam. O
uso das novas tecnologias para a documentao destas expresses culturais tem se
mostrado praticamente obrigatrio em vrios contextos locais e nacionais.
A participao do antroplogo Joo Leal (2013) do CRIA Centro em Rede de
Investigao em Antropologia (Portugal), pautou-se pela anlise do conceito de cultura
no contexto da Antropologia e sua difuso no mbito das agncias multilaterais, como
a UNESCO. O antroplogo procurou clarificar o que a Antropologia entende como
cultura e quais os problemas e questionamentos que vm sendo feitos no prprio
mbito acadmico sobre o excessivo alargamento deste conceito. Utilizado como
principal eixo terico e metodolgico dos estudos antropolgicos, a banalizao do
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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conceito e sua apropriao por parte de diferentes segmentos sociais apresenta uma
instabilidade problemtica e complexa, sobre a qual os antroplogos vm investindo
grande parte de suas reflexes. Entretanto, a viso cuidadosa de Joo Leal com
relao explicitao das inmeras consequncias e desdobramentos da utilizao
desta ferramenta conceitual, no aplacou seu otimismo com relao s novas polticas
pblicas desencadeadas a partir da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial da
UNESCO em 2003. Ele mesmo lastimou que tivesse sido extinta em Portugal uma
Comisso de Antroplogos que assessorava o corpo de agentes institucionais
envolvidos com a execuo dos Programas Oficiais do Patrimnio Cultural Imaterial
em Portugal. Mostrou-se disponvel a continuar colaborando com a DGPC e os
Programas de PCI em Portugal. Trouxe tambm uma reflexo interessante sobre o
papel dos antroplogos e especialistas da cultura nos processos de
patrimonializao, chamando a ateno para o fato de que h muita experincia
acumulada neste campo no que tange aos estudos antropolgicos ou estudos da
cultura. Mas, tambm chamou a ateno para a arbitrariedade dos sistemas de
classificao e do quanto os intelectuais da cultura devem ficar atentos e vigilantes
para no permitirem que as instituies e agncias, sobretudo governamentais,
terminem reificando critrios utilizados para distinguir entre as expresses culturais
que podem ser consideradas como patrimnio cultural imaterial de um pas ou de uma
localidade e aquelas que por certas caractersticas deveriam ficar de fora deste
campo. Muitas vezes, segundo o antroplogo, pela inrcia ou pela dificuldade de se
fazer face ao peso e burocracia institucional, todo este movimento de valorizao
cultural poderia servir a um congelamento de algumas expresses culturais e a uma
discriminao de tantas outras que a inventividade humana capaz de criar. Joo
Leal sublinhou que muitas vezes a tendncia no corpo dos agentes institucionais tem
sido uma postura conservadora e que esta postura representa a anttese da proposta
enunciada pela Conveno de 2003, onde o objetivo consiste justamente em estar
aberto para perceber aspectos das culturas humanas pouco visveis, quase
imperceptveis, mas que so de grande relevncia para os grupos sociais que as
praticam em seus cotidianos. O antroplogo se reportou por exemplo a uma certa
tendncia impregnada nas mentalidades daqueles que lidam com o campo patrimonial
de excluir quase sempre o novo, o hbrido, o pouco conhecido, o inusitado. Conclamou
a todos que exercitassem aquilo que tem sido uma das principais posturas da prtica
antropolgica: escutar o outro, colocar-se no lugar do outro, aprender a ver com os
olhos do outro, e deste modo, relativizarmos um pouco nossas certezas e nossos
pressupostos concebidos a priori. Alm disso, lembrou que, embora as polticas
pblicas relativas ao PCI sejam benvindas no sentido de trazer luz manifestaes
Regina Abreu
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culturais pouco conhecidas e valorizadas, h muita vida para alm do Patrimnio
Cultural Imaterial! Ou seja, estas polticas pblicas tm e tero sempre suas
limitaes e nem tudo ser contemplado ou includo. Esta assertiva chama a ateno
tambm para o facto de que continuaro a existir muitas outras formas de estudar e
valorizar as culturas em suas dinmicas tangveis ou intangveis.
Um outro antroplogo a tecer reflexes sobre as prticas do Patrimnio Cultural
Imaterial a partir da Conveno de 2003 foi Cyril Isnart, Investigador Auxiliar
convidado do CIDEHUS Universidade de vora. Isnart (2013) apresentou trs
aspectos centrais que caracterizariam, na sua viso, a novidade advinda com a
Conveno de 2003 sobre a salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial pela
UNESCO: em primeiro lugar, o fato de ter colocado no centro da ao patrimonial
objetos bem diferentes dos monumentos arquitetnicos ou do chamado patrimnio
material; em segundo lugar, o fato de atribuir um lugar central para os indivduos
detentores de patrimnios e no mais apenas aos profissionais da rea; em terceiro
lugar, porque esta Conveno e seus princpios foram pensados principalmente pelos
pases do Sul. Mas, segundo Cyril Isnart, se a conveno da UNESCO constituiu-se
como um instrumento administrativo para o reconhecimento de aspectos culturais
relevantes relativos aos pases no ocidentais, os pases europeus tambm dele se
apropriaram, inscrevendo a ao cultural relativa ao patrimnio cultural imaterial numa
genealogia que parte do folclore do sculo XIX para responder s reinvindicaes
culturais contemporneas. Cyril Isnart apresentou alguns exemplos de usos sociais do
Patrimnio Cultural Imaterial na Europa do Sul, mostrando como este conceito foi
apropriado por diferentes grupos sociais, ultrapassando o enquadramento original da
ao institucional e impulsionando uma reformulao das reivindicaes culturais para
contextos mais simples de prticas da vida cotidiana na Europa do Sul. Os debates
foram concorridos e muitas questes foram levantadas. Foi possvel perceber ao final
do Encontro algumas convergncias entre as apresentaes, como por exemplo, o
papel central para as polticas pblicas nos quatro pases focalizados com relao aos
Inventrios. De algum modo, a criao de um mecanismo capaz de identificar,
documentar, valorizar e proteger os Patrimnios Culturais Imateriais tem sido uma
preocupao recorrente nestes contextos. Contudo, os procedimentos, as
metodologias, os agentes envolvidos bem como o nvel de participao das
comunidades parece variar de um contexto a outro. Enquanto em alguns pases, as
polticas pblicas so mais centralizadas na esfera de uma pasta estatal para a
cultura, como o caso da Frana, em outros pases, como o caso da Itlia, parece
predominar a descentralizao, sendo que mesmo no mbito governamental, o tema
do patrimnio cultural imaterial gerenciado em esfera interministerial, enquanto
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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outras instncias locais e no governamentais tambm vm atuando neste campo.
Outro ponto que mereceu destaque foi a reflexo sobre o impacto da poltica da
austeridade corrente no circuito europeu com relao ao avano das polticas pblicas
do Patrimnio Cultural Imaterial. Os palestrantes referiram-se a dificuldades desta
ordem. De um lado, relativa aos recursos cada vez mais escassos para construir o
aparato tcnico e as competncias necessrias para alavancar os trabalhos no
campo. De outro lado, pelas mobilizaes muito heterogneas da sociedade civil. Se,
em alguns contextos, esta mobilizao se verifica com especial intensidade, em outros
contextos, ela quase nula, o que torna invivel o que seria a maior aspirao do
campo patrimonial: o inventrio participativo, quando agentes institucionais e
movimentos sociais se encontram no objetivo comum de identificao, mapeamento e
sistematizao de manifestaes culturais em processo de patrimonializao. Desse
modo, verificamos que apesar das boas intenes de alguns agentes institucionais, as
condies de trabalho so muitas vezes problemticas. Outro ponto que mereceu
destaque no Colquio diz respeito participao diferencial dos antroplogos e
especialistas da cultura nos programas de patrimnio imaterial nos diferentes pases.
Como decorrncia dos estudos sobre a cultura em seu carter diverso e plural, os
antroplogos vm acumulando ao longo dos anos uma expertise e um conhecimento
que se faz necessrio ao campo do patrimnio imaterial. Muitas vezes, tornam-se
articuladores e mediadores entre saberes locais e as instituies voltadas para os
processos de patrimonializao. Alm disso, h muito trabalho de pesquisa de teses,
dissertaes e monografias sobre manifestaes culturais que podem subsidiar o
empreendimento patrimonial. A experincia com a pesquisa campo e sua
sistematizao pela via da documentao etnogrfica tem sido tambm uma
contribuio importante dos antroplogos e estudiosos da cultura nesta nova fase dos
processos de patrimonializao.3
Mas, certamente o saldo mais positivo deste Colquio tenha sido a possibilidade
de as pessoas se encontrarem e a partir deste encontro melhor estruturarem o dilogo
em rede e a troca de experincias. Afinal, no contexto do patrimnio cultural imaterial
o maior Patrimnio tem sido mesmo as pessoas que com seu empenho e dedicao
vm contribuindo para o alargamento dos horizontes e a difuso de expresses
culturais antes completamente invisibilizadas.
3 Ver Abreu (2013).
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4. RESSONNCIAS, APROPRIAES, VIGILNCIAS DAS POLTICAS PBLICAS DO
PATRIMNIO CULTURAL IMATERIAL
Diferentes ressonncias e apropriaes somadas a uma permanente vigilncia
destacam-se entre os temas e as colocaes daqueles que circulam no universo do
campo patrimonial, em especial do Programa do Patrimnio Imaterial. Nos dez anos
que se seguiram promulgao da Conveno do Patrimnio Imaterial pela UNESCO,
os representantes de Estados-membros tiveram compreenses e envolvimentos muito
diversificados com relao ao estabelecimento de polticas pblicas voltadas para esta
finalidade. Alguns concentraram-se na realizao de grandes inventrios, outros
partiram para uma ao direta de revitalizao de manifestaes tradicionais, outros
concentraram-se em esforos de difuso por meio de filmes etnogrficos, portais,
livros. Os antroplogos parecem ter estado presentes com muita nfase nos trabalhos
de campo e no corpo a corpo das pesquisas nestes dez anos.4 Por outro lado, as
camadas populares e particularmente as populaes tradicionais, como as
comunidades indgenas, vm se apropriando por vezes de formas extremamente
criativas das polticas pblicas, o que muitas vezes vm surpreendendo os agentes
governamentais e os intelectuais envolvidos com os programas. Mas, um ponto que
tem merecido destaque a preocupao de grande parte dos envolvidos com o perigo
da desvirtuao do projeto inicial, o que se caracterizaria pelo congelamento ou o
enrijecimento das manifestaes culturais a serem valorizadas e protegidas. A noo
de vigilncia enunciada por Chrif Khaznadar expressa este temor que ronda os
ideais do discurso fundador da Conveno de 2003. Seguindo a formulao de
Khaznadar, assumir a vigilncia neste caso implicaria zelar pelo esprito da
Conveno a partir de alguns cuidados essenciais, tais como: levar em conta nos
processos de salvaguarda e de revitalizao que o patrimnio cultural imaterial est
em permanente transformao; salvaguardar o contexto sociocultural ao qual o
patrimnio est integrado; estar atento para no impor a outras culturas certas noes
ocidentais disciplinares (como a noo de msica para contextos africanos, onde o
mais adequado consistiria em aplicar o conceito de culturas sonoras); levar em conta
as especificidades de cada cultura nas aes patrimoniais; respeitar prioritariamente
as opinies dos agentes sociais engajados nas manifestaes culturais que so
objetos de patrimonializao; estar atento a obstculos que podem se opor
sobrevivncia de certos patrimnios imateriais, entre eles as manipulaes de ordem
4 Ver Abreu (2003).
Dez anos da Conveno do Patrimnio Cultural Imaterial: Ressonncias, apropriaes, vigilncias
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religiosa, poltica, comercial ou econmica; relacionar estreitamente as aes de
patrimonializao as de revitalizao e de difuso.5
REGINA ABREU
professora do Programa de Ps-Graduao em Memria Social da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO, Brasil; Pesquisadora do CNPq;
Coordena o Grupo de Trabalho Memria, Cultura e Patrimnio/CNPq; Ps-Doutora
do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal; autora de
livros e ensaios sobre o tema do patrimnio cultural no Brasil e atualmente realiza uma
pesquisa comparada sobre polticas pblicas e processos de patrimonializao do
imaterial no Brasil e em Portugal.
Contato: [email protected]
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5Traduo livre do texto digitalizado da palestra de Chrif Khaznadar (2013). Cito o trecho na ntegra: 1)
tenir compte dans le processus de sauvegarde et de revitalisation du caractre essentiel du patrimoine immatriel qui est dtre en volution perptuelle, contrairement au patrimoine matriel ; 2) ne pas extraire les cultures-produits de leur contexte dorigine, comme dans le cas du phnomne de folklorisation, mais au contraire veiller sauvegarder lensemble socio-culturel auquel le patrimoine appartient certains spcialistes considrent quil ne faut pas chercher tout prix revitaliser quelques lments des donnes culturelles dont la fonction a cess dexister ; 3) tre attentif ne pas imposer la notion occidentale de discipline, telle la musique lorsque lon tudie les cultures dautres civilisations, comme par exemple les cultures sonores en Afrique; 4) tenir compte dans toute action de la spcificit de chaque culture ; 5) respecter en priorit les avis des porteurs et des amateurs des patrimoines immatriels des pays concerns lorsque des actions de revitalisation sont engages; 6) tre attentif aux obstacles qui peuvent sopposer la survie de certains patrimoines immatriels, telle la manipulation des fins politiques, religieuses, commerciales, etc.; 7) lier troitement les actions de collecte des patrimoines immatriels celles de revitalisation et de diffusion.
Regina Abreu
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