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A APARIÇÃO DO POVO EM D’EST1
Tatiana Hora Alves de Lima2
RESUMO
Em D’est, a cineasta descendente de judeus Chantal Akerman faz uma travessia pela Europa do Leste no contexto pós-Queda do Muro de Berlim. O filme não conta com entrevistas e nem imagens de arquivo. D’est detém-se no cotidiano dos personagens e vai a não-lugares como estradas, estações de trem, aeroportos. O filme dialoga com a pintura impressionista e mostra espaços quaisquer e momentos quaisquer, em vez do território do Estado Nação e da grande narrativa historiográfica. Além disso, os personagens interpelam constantemente o olhar da câmera, convocando a presença do antecampo e o espectador. Os retratos dos personagens em situações cotidianas e os rostos ganham força no filme, de modo a apresentar uma abertura e comunicabilidade em vez de fixação de identidades. O filme parece uma resposta contra o cinema nazista da fusão identificadora e do adestramento dos espíritos, revelando-se como cinema da imanência entre visível e invisível e da liberdade do espectador. PALAVRAS-CHAVE: aparência; antecampo; retrato; rosto; espectador.
ABSTRACT
In D’est, the filmmaker descendant of Jews, Chantal Akerman, makes a crossing through Eastern Europe in the post-Berlin Wall fall. The movie does not have interviews or archive footage. D’est detains itself in the daily life of the characters and goes to non-places like roads, train stations, airports. The film dialogues with the impressionist painting and shows any places and any moments, instead of the territory of the Nation State and of the great historiographical narrative. Furthermore, the characters constantly interpellate the camera view, inviting the presence of the space behind the camera (antecampo) and the spectator. The portraits of the characters in everyday situations gain strength in the movie, in order to present an overture and communicability instead of the fixation of identities. The film seems like an answer to the nazist movies of identifying fusion and spirit training, revealing
1 Trabalho apresentado no GT Estéticas, Imagens e Mediações.2 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]
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itself as a cinema of immanence between the visible and invisible and the freedom of the spectator.
KEYWORDS: appearance; antecampo; portrait; face; spectator.
Um grupo de camponesas recolhe frutos do chão e os colocam em baldes, sendo
acompanhadas por uma caminhonete. O plano permanece fixo, como uma pintura em
movimento, enquanto elas atravessam o campo na direção da câmera, e volta e meia uma
ou algumas delas fitam a objetiva. Até que as mulheres saem de quadro e o plano
permanece por instantes diante do campo vazio.
Em D’est (1993), de Chantal Akerman, o que vemos não é uma cineasta que vai
para o mundo investigar os seus objetos, mas um filme que apresenta o duplo aparecer dos
personagens e da câmera inseridos no mundo. Numa ruptura com a metafísica3 e as
dicotomias entre sujeito e objeto, essência e aparência, Hannah Arendt afirma que Ser e
Aparecer coincidem, e nega o sujeito como espectador privilegiado do mundo, pois “a
mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e
que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade ‘objetiva’” (ARENDT,
1995 p.17). Em D’est, a presença do aparato cinematográfico no mundo se torna evidente
não através da apresentação das câmeras, de microfones, da diretora ou qualquer membro
da equipe técnica, como ocorre no cinema verdade, por exemplo, mas pelo modo como os
olhares dos personagens encaram insistentemente a lente tornando objetiva a presença de
quem filma, como também esses olhares interpelam a nós, espectadores, através do
paradoxo de um abismo e uma ligação entre os personagens e o nosso olhar.
Percorremos, em D’est, estações de trem, estradas, lugares bucólicos, paisagens
urbanas, visitamos casas, salões. O filme faz uma viagem pela Europa do Leste, passando
por Polônia, Rússia, Tchecoslováquia, ex-Alemanha Oriental e Bélgica, entretanto, não nos
3 Segundo Hannah Arendt (1995), a hierarquia da metafísica supõe uma essência verdadeira por trás de aparências ilusórias. Ela afirma que o funcionalismo de ramos da biologia, sociologia e psicologia identificaram funções das aparências no processo vital, analisando-as não como qualidades secundárias, mas enquanto condições essenciais para o funcionamento do organismo. Arendt aborda ainda os estudos de Adolf Portmann, que não se limita à hipótese funcional, e desenvolve uma pesquisa que atesta que as aparências não existem apenas em função de processos internos, mas a auto-exposição torna essas funções significativas.
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situamos geograficamente com precisão no decorrer da obra. Segundo Chantal Akerman4
(2010, p.62), “eu queria fazer uma grande viagem através da Europa do Leste, enquanto
ainda é tempo”. Neta de judeus poloneses mortos em Auschwitz, Chantal percorre as terras
por onde muitos judeus vagaram fugindo da perseguição nazista na Segunda Guerra
Mundial, logo após a queda do Muro de Berlim. No entanto, ela foge de diagnósticos de
contexto, teleologias históricas, fixação de identidades, ou qualquer generalização, para se
deter na contemplação do cotidiano, dos rostos e das paisagens dos povos.
Akerman realiza um cinema diaspórico, traça “cartografias do êxodo”, pois “a
errância é uma constante em sua obra, seja no conteúdo ou na sua forma correspondente”
(LEANDRO, 2010 p.98). O êxodo incorporado nesse filme não se liga a uma história do
povo judeu, mas surge como indeterminação do povo. Povo em devir. Um cinema que quer
e pode “qualquer coisa”, pois “no império do espetáculo total, é tempo de destronar a
pretensão totalitária das imagens e de restituir o seu poder ao terceiro em devir, isto é, o
povo dos espectadores” (grifo nosso) (MONDZAIN, 2011 p.105).
O que nos conduz à seguinte pergunta: de que forma D’est convoca o povo em devir
através da relação do quadro com os corpos, o tempo e o espaço que habitam, e como eles
solicitam o espectador?
1- O cinema como aparência
Um modo de o êxodo se inscrever na forma de D’est é através do travelling. A
palavra que dá nome ao movimento de câmera também pode significar o ato de viajar, e
assim vemos a figura do travelling como travessia, como viagem pelo mundo sem uma
Terra Prometida. Inclusive neste filme são frequentes imagens de estações de trem,
estradas, ruas, enfim, lugares de passagem, onde não se permanece, lugares que não são
nem a origem e nem o destino e se situam no entre lugares, ou mesmo seriam não-lugares.
Segundo Marc Augé, exemplos de não-lugares seriam as estações de trem, os aeroportos, as
4 Essa declaração integra um dos textos lidos por Chantal Akerman numa vídeo-instalação que contava com 25 monitores apresentando imagens de D’est, denominada D’est – au bord de la fiction.
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rodovias, os clubes de férias, os campos de refugiados, etc. Enquanto os lugares seriam
relacionais, identitários e históricos, os não-lugares seriam a negação do lugar
antropológico, ou seja, nem relacionais, nem identitários e nem históricos. Os não-lugares
seriam constituídos tendo em vista determinados fins (transporte, trânsito, comércio, lazer),
e “assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam
uma tensão solitária” (AUGÉ, 2012 p.87). Na viagem empreendida por Chantal Akerman
no Leste Europeu, vemos muitos viajantes solitários em meio à multidão que atravessa as
cidades, estradas ou que espera em estações de metrô e aeroportos, e também personagens
melancólicos em suas casas fazendo atividades corriqueiras. E ao se encontrar em constante
deriva, ela prefere a estrada em lugar da fronteira, a banalidade cotidiana em vez da
narrativa histórica teleológica, os rostos em lugar das identidades.
O travelling como travessia está presente numa cena de D’est em que a câmera passa
por mulheres, crianças e homens vestindo pesadas roupas de frio, que se encontram
enfileirados e segurando malas num lugar a céu aberto com o chão tomado pela neve,
enquanto toca a melancólica melodia de um violino, música que vai desaparecendo aos
poucos. Alguns personagens olham para a objetiva, uma velha senhora fala próxima à
câmera de modo colérico, os personagens conversam e ouvimos vários murmúrios em
outras línguas.
Cenas como essa, em que os personagens miram a lente, lembram uma cena de Sem sol
(1982), de Chris Marker, quando o narrador das cartas com relatos de viagens pelo mundo,
Sandor Krasna, comenta, enquanto uma personagem encara fixamente a objetiva, que era
uma bobagem a regra de não mostrar os personagens olhando para a câmera, norma
ensinada nas escolas de cinema. Essa lei instaura uma separação bem definida entre o
mundo, os espectadores do filme e o antecampo, ou o lugar em que se situa a equipe de
filmagem. No filme em questão, Chantal Akerman não se retira do mundo, e assim
evidencia que o cinema não apenas está no mundo, mas pertence a ele. Lembremos, com
Hannah Arendt, que “(...) também somos aparências, pela circunstância de que chegamos e
partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem
equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo” (1995,
p.19).
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D’est não conta com entrevistas, detendo-se em quadros de personagens e de paisagens
em situações cotidianas. Os travellings frequentes nessas obras estão mais próximos do
cinema de Lumière do que do cinema narrativo. Segundo Jacques Aumont (2004), no
cinema de Lumière eram comuns os travellings laterais percorrendo paisagens,
denominados de vistas panorâmicas.
Trata-se de vistas móveis, no mais das vezes feitas a partir de um veículo em movimento, e onde o deslocamento do quadro em relação ao campo não funciona como ato enunciativo visível, ao contrário do que sucederá quase sempre no cinema narrativo. Tais vistas salientam, ao contrário, a co-presença daquele que filma e do filmado em um mundo referencial afirmado como real (...) (AUMONT, 2004 p.41-42).
Essa maneira de enquadrar consistiria numa encarnação do ponto de vista, um ponto de
vista banal, que podia ser o de qualquer um, o que quer dizer que, “se vidro algum separa
aquele que filma do filmado, é porque os papéis são intercambiáveis, porque aquele que
filma é alguém “como-você-e-eu”” (AUMONT, 2004 p.41). Entretanto, esse ponto de vista
não é assimilável às “imagens que a personagem vê”: ou seja, não são simplesmente
imagens subjetivas da judia que viaja para o leste para conhecer as terras de seus ancestrais.
A narradora das imagens existe em sua indeterminação. O que vemos são papeis
intercambiáveis entre quem filma e quem é filmado através da instabilidade entre quem
olha e quem é objeto do olhar, de modo a convocar o espectador a perpassar essa relação e
torna-la mais complexa. Assim, D’est coloca em cena o campo e o antecampo como
fazendo parte do mesmo mundo, dando a ver a objetividade do antecampo em lugar da sua
transcendência.
2- O quadro: espaço qualquer, momento qualquer
Como uma descendente de judeus poderia filmar o leste europeu no contexto pós-queda
do Muro de Berlim? Com imagens de arquivo da Segunda Guerra Mundial e da derrocada
do socialismo na Alemanha e na União Soviética, entrevistas, paralelismos entre o passado
e o presente? Chantal Akerman escolhe um caminho adverso: o filme parece se aproximar
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da pintura impressionista no tratamento da temporalidade, dos espaços e dos personagens
que filma.
Cenas de D’est se assemelham a quadros impressionistas: como o plano fixo diante
de uma árvore situada na esquina entre duas estradas que cortam um campo aberto, onde se
vê tão somente um cachorro atravessando o caminho, seguido pouco depois por um homem
numa carruagem, e as folhas da árvore sendo movidas pelo vento; uma mulher sentada
numa cama, passando batom diante de um pequeno espelho, com uma menina ao seu lado
olhando para fora do quadro; crianças escorregando num caminho de gelo enquanto cai a
neve. Planos como esses investem nos efeitos atmosféricos (movimento das folhas, a neve),
na contemplação das paisagens e nas cenas de personagens em eventos cotidianos, aspectos
esses presentes em quadros impressionistas como Impressão, nascer do sol (1872), de
Claude Monet, Retrato de duas meninas (1870), de Edgard Degas, e Ao piano (1892), de
Pierre-Auguste Renoir.
Grande parte da pintura figurativa anterior ao impressionismo buscava transcender a
contradição entre imagem fixa e representação do tempo, apresentando o chamado
“momento essencial”, que “consiste em fixar, deter a ação no que se considera o momento
mais representativo do acontecimento que o pintor quer contar” (ORTIZ e PIQUERAS,
1995 p.30), como ocorreu em quadros como Os fuzilamentos de 3 de maio (1808), da
pintura romântica de Francisco de Goya, O beijo de Judas (1304-1306), do renascentista
Giotto, e A conversão de São Paulo (1601), do estilo barroco de Caravaggio. Já a pintura
impressionista entre o final do século XVIII e início do século XIX, influenciada pela
instantaneidade da fotografia, traz à tona a representação de um “momento qualquer”, pois
“a natureza já não é o livro de Deus, não temos que decifrá-la, mas o ‘teatro de fenômenos
efêmeros’”. (ORTIZ e PIQUERAS, 1995 p.28).
Parece que, em D’est, Chantal Akerman está interessada em apresentar momentos
quaisquer, e, no lugar de decifrar o presente e o passado, pois, como ela mesma disse,
“quem procura acha, acha muito bem e filtra” (AKERMAN, 2010 p.62), em vez disso tão
somente prefere observar o mundo como teatro de fenômenos efêmeros. Acreditamos que
essa aproximação com a pintura impressionista é um recurso para não fixar as identidades
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dos personagens, nem qualificar os espaços que habitam de modo determinista, nem narrar
a história de um povo a partir de totalizações.
Tanto é que em D’est não vemos monumentos, vestígios de campos de
concentração, cemitérios, ícones do judaísmo, nem nada que evidencie uma ligação direta
com os clichês ligados ao povo judeu. Essa fuga em relação às imagens-clichês e a ausência
de uma narrativa estruturada elaboram espaços quaisquer, ou como diria Deleuze (2005):
espaços desconectados, vazios, onde acontecem situações óticas e sonoras puras,
desprovidas de ação. Segundo o autor, os clichês nos atentam para apenas o que queremos
perceber guiados pelos nossos interesses econômicos, ideologias e experiências
psicológicas. Através da ruptura com os esquemas sensório-motores, a imagem ótica-
sonora pura “faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de
beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser “justificada”,
como bem ou como mal...”(DELEUZE, 2005 p.31). É assim que, em D’est, a recusa aos
clichês dos espaços e a ruptura com a narrativa em função dos planos-sequências, da
profundidade de campo e da banalidade cotidiana é uma estratégia de abertura ao acaso que
impregna as imagens de ambiguidade e dedica ao espectador o lugar da liberdade.
Numa cena de D’est, a câmera faz várias panorâmicas em círculos percorrendo o
corredor de uma estação de trem onde há pessoas comprando bilhetes, caminhando, ou
olhando para um quadro onde ficam os horários dos trens. Nesse espaço, uma estátua de um
homem com o braço erguido, numa posição que lembra a saudação nazista, fica acima das
pessoas reunidas em torno do quadro de informações sobre os trens. A imagem dessa
estátua pode lembrar Hitler, no entanto, não se trata de uma estátua de Hitler, nem ao
menos a câmera a perscruta, como também não se elabora qualquer metáfora através da
montagem, nem há música. A imagem, assim, permanece carregada de ambiguidade.
Uma imagem: o primeiro plano do filme, um sobrenquadramento que mostra uma
janela que enquadra uma árvore lá fora, a câmera situada entre o interior e o exterior, e o
tempo vai passando. Como filmar a Europa do leste após a queda do Muro de Berlim?
Quadros “impressionistas”. Como filmar os personagens que moram lá? Retratos.
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3- Rosto e retrato
Uma mulher coloca um disco numa vitrola na sala de estar. A voz feminina que entoa a
canção é emocionada e triste. O plano seguinte apresenta a mulher na cozinha, ela coloca
um bule no fogão, então se senta à mesa e começa a cortar fatias de salame, depois pedaços
de pão. Noutra cena, uma velha senhora permanece sentada no sofá com o olhar perdido,
enquanto ouvem-se vozes de pessoas que devem estar em outro cômodo da casa. E noutro
momento do filme, um menino vê televisão, sentado no sofá, enquanto um homem toca
piano.
Quem são esses personagens? O que fazem, o que lhes ocorreu? São judeus? Não temos
resposta. Tudo é banal e cotidiano. Chantal Akerman prefere filmar os personagens que
encontra na Europa do Leste pela forma do retrato. Segundo Jean-Luc Nancy, o retrato não
procurar desvelar uma identidade e um eu por trás da aparência, em vez disso busca
“representar uma pessoa por ela mesma, não por seus atributos ou atribuições, nem por seus
atos, nem pelas relações das quais participa” (2009, p.11). O retrato não pressupõe uma
essência que está fora da imagem, pois enquanto a imagem identificadora5 categoriza um
modelo, o retrato apresenta um sujeito exposto, em si e para si: o sujeito é aquele do
próprio retrato.
O que não quer dizer nenhuma forma de solipsismo ou superficialidade. Peguemos mais
exemplos de retratos presentes no filme: Um homem sentado num banco fuma um cigarro e
às vezes olha para a câmera, às vezes desvia o olhar aparentemente incomodado. Uma
mulher segura uma carta e olha para a objetiva, sentada num sofá e com uma cortina branca
se agitando logo atrás dela, enquanto toca uma música cantada por um tenor clássico.
Nesses retratos, vemos o sujeito exposto em relação com outro sujeito, seja o antecampo
(lugar onde está a cineasta), ou nós, espectadores. A interioridade, a identidade e o eu dão
lugar ao sujeito em cotejo com o outro.
A exposição é essa colocação em espaço e esse ter lugar nem “interior” nem “exterior”, mas em abordagem ou relação. Se poderia dizer: o retrato
5 Segundo Jean-Luc Nancy (2009), quando o retrato dá preeminência ao estado civil, ou seja, é usado para reconhecimento da posteridade, do povo, da família e da polícia, a identidade da pessoa se encontra fora dela.
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pinta a exposição. Ou seja, põe em obra. Mas a “obra”, aqui, não é a coisa ou o objeto “quadro”. A obra é o quadro enquanto relação. Neste sentido, o sujeito é a obra do retrato, e é nesta obra onde ele se encontra ou se perde (NANCY, 2009 p.34).
Segundo Nancy (2009), a mirada do retrato mira a tela, ou seja, o pintor (ou a
cineasta) e o futuro espectador dessa imagem. Em D’est, uma mulher, sentada numa cama e
próxima a uma televisão ligada, mira a objetiva enquanto duas meninas brincam com peças
de montar; uma delas mexe um pouco o corpo quando a música do videoclipe que passa na
TV começa a tocar. Na cena seguinte, outra mulher toma café de pé e junto a um fogão, e
parece comovida com a música que toca. Talvez Akerman concorde com Hannah Arendt,
que afirma que “a vida da alma6 é muito melhor expressa em um olhar, em um som, em um
gesto, do que em um discurso” (ARENDT, p.26) – pois vários retratos do filme consistem
exatamente nisto: olhares, músicas e ruídos, pequenos gestos, nenhuma entrevista. Os
personagens silenciosos em D’est poderiam nos remeter a alguma incomunicabilidade ou
impossibilidade de relação com o outro, mas a comunicabilidade se elabora através dos
rostos, o lugar da comunidade.
Isso que o rosto expõe e revela não é qualquer coisa que possa ser formulada nessa ou naquela proposição significante, nem mesmo é um segredo destinado a restar para sempre incomunicável. A revelação do rosto é a revelação da própria linguagem. Essa não tem, consequentemente, nenhum conteúdo real, não diz a verdade sobre esse ou aquele estado da alma ou de fato, sobre esse ou aquele aspecto do homem ou do mundo: é unicamente abertura, unicamente comunicabilidade. Caminhar pela luz do rosto significa ser essa abertura, padecer dela (AGAMBEN, 1996 p.1).
Em D’est, os rostos nos olham em seus espaços íntimos de maneira durável, ou
cruzamos com eles rapidamente no meio de tantos outros rostos nas ruas, estações.
Segundo Alisa Lebow, “D’est é o retrato de uma paisagem, e a paisagem de um retrato”
(2003, p.58), de modo que as pessoas são tratadas como parte do cenário e, ao mesmo
tempo, o cenário é humanizado. Numa cena, um travelling passa por pessoas enfileiradas
segurando alimentos e sacolas, algumas conversam, outras olham para a objetiva. O último
6 Segundo Arendt (1995), a alma abarca as nossas sensações, as emoções, que se ancoram no corpo e transbordam dele. O espírito é o que articula aquilo que é recebido pelos cinco sentidos através da linguagem metafórica e conceitual, e é um abismo. As atividades espirituais são elaboradas por palavras antes mesmo de serem comunicadas, já o que conhecemos das nossas emoções e paixões nunca são as próprias experiências psíquicas, mas o que pensamos delas. Nossas emoções são experiências somáticas, e não espirituais.
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plano do filme é um travelling a partir de um carro que faz um longo plano-sequência
atravessando a rua, onde há muitas pessoas na calçada, algumas delas miram a câmera, e
vemos altos edifícios ao fundo do quadro, com imagens em tom azulado. Se um rosto é a
expressão do sujeito em sua pura exterioridade e aparência, ele coloca em cena a
objetividade do sujeito e também é o lugar do que é próprio e do que é comum.
O rosto não é simulacro, no sentido de qualquer coisa que dissimula ou encobre a verdade: ele é a simultas, o estar-junto dos múltiplos semblantes que o constituem, sem que algum desses seja mais verdadeiro que os outros. Compreender a verdade do rosto significa tomar não a semelhança, mas asimultaneidade dos semblantes, a inquieta potência que os mantêm juntos e os reúne em comum (AGAMBEN, 1996 p.3-4).
Assim, a multiplicidade de rostos que nos olham aglomerados no meio de tanta
gente não constitui uma massificação, ou um apagamento das singularidades. Essas
paisagens de rostos em D’est tratam-se da promessa de uma possibilidade de “estar junto”,
de modos de desidentificação que promovem uma intensa comunicabilidade, pois é neste
“vazio comunicativo” que o rosto surge como pura abertura.
4- Povo em devir
Uma sequência de D’est mostra vários pequenos grupos de personagens caminhando
em estradas e carregando bagagens, primeiro num lugar ensolarado, depois em caminhos
cheios de neve. A sequência termina com um longo plano fixo que mostra um grupo de
pessoas atravessando uma estrada cercada de árvores e de neve na direção do ponto de
fuga. A imagem é fantasmagórica e o enquadramento transmite a impressão de que os
personagens viajam por um caminho infinito. O plano seguinte é um travelling que mostra
personagens andando na direção contrária à anterior, como se antes fosse a partida e desta
vez a chegada, e a câmera se afasta progressivamente.
Segundo Alisa Lebow (2003), as sequências de personagens partindo representam a
“cena primária” de Chantal Akerman, ou seja, as imagens de evacuação que, como num VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais
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lampejo, evocam os judeus sendo levados pelos nazistas para os campos de concentração
ou fugindo da perseguição nazista atravessando o mundo. A autora afirma que Akerman
produz em D’est uma memória indireta, isto é, elaborada através do contato com as
experiências traumáticas vividas por parentes, uma pós-memória que funciona não por
rememoração, mas por projeção.
Tais projeções são tecidas não de forma direta no filme, mas se elaboram no espaço do
fora de campo. Se, como afirma Jacques Aumont (2004), o fora de campo é o lugar do
potencial, do virtual, do passado e do futuro mais do que do presente, Chantal Akerman
lança a relação das imagens do presente com as do passado para o universo do fora de
campo. Assim, as imagens ensejam a liberdade do espectador e a imanência do invisível no
visível. Nos termos de Mari-José Mondzain (2009), são imagens que encarnam, que
operam na ausência das coisas, que fazem imagem do infigurável. Na encarnação, a
imagem constitui três instâncias com afinidade intrínseca entre si: o visível, o invisível e o
olhar. É assim que em D’est estamos sempre sendo confrontados com a imagem que falta e
com os olhares que nos interpelam: como naquele plano em que vemos tantas pessoas
sentadas em bancos numa estação, esperando, esperando, para ir a algum lugar. São muitos
os planos em que os personagens aguardam para embarcar ou estão perambulando, e o
constante retorno desses movimentos evoca a cena primária como uma infinita repetição.
De certo modo, D’est parece uma resposta ao cinema nazista. A abertura de O triunfo
da vontade (1934), de Leni Riefenstahl, inicia com imagens etéreas do ponto de vista de um
avião isolado no céu cheio de nuvens, seguidas de planos sobrevoando a cidade de
Nuremberg, até que vemos uma multidão em fileiras marchando pelas ruas da cidade. O
avião pousa, e Hitler desce dos céus incorporando uma figura divina, recebido por gritos
eufóricos e saudações de “heil Hitler” pelo povo. Os corpos fazem movimentos
semelhantes e se encontram aglomerados de modo a parecerem uma única massa guiada
pelo seu líder. Num discurso proferido pelo Füher no filme, ele é filmado em contra-
plongée, sempre acima de todos e com a bandeira nazista logo atrás, e, após saudar “os
trabalhadores alemães”, orquestra os movimentos dos corpos dos soldados com gestos aos
quais eles obedecem instantânea e simultaneamente, para depois bradarem em uníssono:
“Nós estamos prontos para levar a Alemanha a uma nova era”. Um travelling percorre os
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trabalhadores voltados para o Füher, com uma imensa estrutura de uma águia ao fundo, e o
plano seguinte mostra soldados erguendo bandeiras nazistas.
Em vez da justa distância e da liberdade crítica do espectador características da imagem
que encarna, o que vemos nessa sequência de O triunfo da vontade é a incorporação, ou
seja, o reino da imagem e a fusão identificadora: todos somos apenas um. Não resta
distância entre o visível e o sujeito do olhar. O espectador é convocado para se unir a um
único Povo subserviente à Nação personificada no próprio Füher. Como afirma Marie-José
Mondzain (2009), as operações incorporantes se apropriam de modo violento dos corpos e
dos espíritos, pois “o que é violento é a manipulação dos corpos reduzidos ao silenciar do
pensamento, fora de qualquer alteridade. Nunca os homens são tão sós como quando
funcionam como Um” (2009, p.45).
O triunfo da vontade trabalha a partir da personificação, isto é, do gesto de tomar os
corpos de Hitler e seus soldados como formas de dar corpo a um discurso. Segundo Marie-
José Mondzain, “para que a personificação seja operatória, é necessário que se estabeleça
um acordo sobre os signos e os emblemas no momento de sua leitura ou da sua inscrição no
visível” (2009, p.68). É por isso que o discurso nazista não cessa de recorrer no filme aos
clichês do nazismo através da onipresença de símbolos como a águia e a suástica.
D’est, por outro lado, recusa não apenas o uso de símbolos para representar o povo
judeu, como também os corpos dos sujeitos filmados não aparecem como pertencentes a
uma massa homogênea e unificada, mas, mesmo quando estão reunidos, eles surgem numa
multiplicidade de gestos, línguas e rostos.
Numa cena de D’est, filmada através de um longo travelling lateral, diversos
personagens caminham pela rua e fitam a lente, depois aos poucos a câmera se aproxima de
personagens que esperam numa fila, entre eles alguns guardas (alguns deles riem olhando
para objetiva), e em seguida vemos o plano em que muitas pessoas se aglomeram diante de
uma porta, enquanto cai a neve. Mais uma vez a cena primária nos persegue: como se
aqueles guardas lembrassem os soldados nazistas, como se aquelas pessoas estivessem
sendo levadas para um campo de concentração. Mas não há nenhuma metáfora, nenhum
clichê, apenas imagens ótico-sonoras puras.
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Em D’est, quem sabe, a Terra Prometida seja o lugar da liberdade do espectador. O
reverso do lugar dos campos de concentração para onde os judeus foram levados com o
impulso do adestramento dos corpos e dos espíritos promovido pela indústria de
propaganda nazista.
Um cinema modesto, em que a cineasta não exerce o poder soberano de criadora. Autor
vem de autoridade. Exousia já foi traduzido como autocritas, entretanto, exousia remete à
vida da indeterminação, este qualquer coisa que tem em vista o poder do possível, ou seja,
“exousia designa, portanto, esse crescimento autorial que de cada um de nós o sítio de uma
bravura, de um extravasamento para além de qualquer medida” (MONDZAIN, 2011
p.122).
O poder soberano se alimenta de sentidos mais fechados, da identificação e da fusão de
todos em Um. Diante do cinema promovido pelo poder soberano, máquina mortífera que
almejava controlar as paixões e o ódio do povo alemão, Chantal Akerman responde com a
abertura e a indeterminação através de retratos de sujeitos expostos e em diálogo, de
sujeitos que são “apenas seus rostos”, evadidos de suas faculdades e propriedades. E, em
lugar da conquista e da proteção do território buscadas pelo Estado-Nação, os espaços
quaisquer e o êxodo constante; em vez da teleologia do tempo homogêneo e vazio
conduzido pela marcha do progresso sob a égide do soberano, os momentos quaisquer e a
história tecida na imprescindibilidade entre passado e presente, entre visível e invisível.
Referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
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VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Geraishttps://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]
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___________________________ Nada, tudo, qualquer coisa ou a arte das imagens como poder de transformação. In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org). A república por vir. Arte, Política e Pensamento para o século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
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