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1 Introdução Aquilo que primeiro me motivou foi o desejo de investigar as práticas sonoras na arte, nomeadamente nas artes plásticas e nas artes visuais, em ter- ritórios artísticos potencialmente interdisciplinares e de integração interme- dia do som. Motivação que resultou do estudo do sonoro protagonizado pelas vanguardas modernistas durante a tese de mestrado, e que despoletou em mim um interesse mais aprofundado pelo sonoro e pela chamada sound art. Por outro lado, desta investigação resulta o desafio de uma nova praxis e a possibilidade de uma experimentação aprofundada do sonoro e de novas formas de visualização, como a objetual, integradas em outros dispositivos que não necessariamente os do cinema, a minha área de origem. Nesse sentido, também a intermedialidade subjacente ao título desta tese é um desafio ao co- nhecimento e à experimentação de diferentes media, e à sua fusão concetual, mantendo como referência a afirmação de um corpo experimental sonoro. Por outro lado, desta investigação resulta o desafio de uma nova praxis e a possibilidade de uma experimentação aprofundada do sonoro e de novas formas de visualização, como a objetual, integradas em outros dispositivos que não necessariamente os do cinema, a minha área de origem. Nesse sentido, também a intermedialidade subjacente ao título desta tese é um desafio ao co- nhecimento e à experimentação de diferentes media, e à sua fusão concetual, mantendo como referência a afirmação de um corpo experimental sonoro. A teoria produzida por esta investigação, situa a importância dos media e dos dispositivos no contexto comunicacional e artístico, ao mesmo tempo que traça o percurso de descobertas estéticas e de radicalização anti-arte das

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Introdução

Aquilo que primeiro me motivou foi o desejo de investigar as práticas sonoras na arte, nomeadamente nas artes plásticas e nas artes visuais, em ter-ritórios artísticos potencialmente interdisciplinares e de integração interme-dia do som. Motivação que resultou do estudo do sonoro protagonizado pelas vanguardas modernistas durante a tese de mestrado, e que despoletou em mim um interesse mais aprofundado pelo sonoro e pela chamada sound art.

Por outro lado, desta investigação resulta o desafio de uma nova praxis e a possibilidade de uma experimentação aprofundada do sonoro e de novas formas de visualização, como a objetual, integradas em outros dispositivos que não necessariamente os do cinema, a minha área de origem. Nesse sentido, também a intermedialidade subjacente ao título desta tese é um desafio ao co-nhecimento e à experimentação de diferentes media, e à sua fusão concetual, mantendo como referência a afirmação de um corpo experimental sonoro.

Por outro lado, desta investigação resulta o desafio de uma nova praxis e a possibilidade de uma experimentação aprofundada do sonoro e de novas formas de visualização, como a objetual, integradas em outros dispositivos que não necessariamente os do cinema, a minha área de origem. Nesse sentido, também a intermedialidade subjacente ao título desta tese é um desafio ao co-nhecimento e à experimentação de diferentes media, e à sua fusão concetual, mantendo como referência a afirmação de um corpo experimental sonoro.

A teoria produzida por esta investigação, situa a importância dos media e dos dispositivos no contexto comunicacional e artístico, ao mesmo tempo que traça o percurso de descobertas estéticas e de radicalização anti-arte das

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vanguardas modernistas, expresso através da irreverência do ready-made, das dissonâncias do ruidismo, da intermedialidade das suas criações e do indeter-minismo performativo das suas atuações públicas. Situa a origem do interme-dia de Dick Higgins na progressão deste contexto até finais dos anos sessenta, através do piano preparado de Cage, das ações, dos happening e do indetermi-nismo Fluxus. Define o intermedia e aprofunda a sound art. Introduz e analisa conceitos como o de escuta, auralidade, espacialização ou acusticidade, trans-versais aos de espaço-tempo, experiência-espetador ou visão-audição, enqua-drando-os nas práticas contemporâneas intermedia do sonoro. Finalmente, descreve e aprofunda o processo e os resultados da componente prática desta investigação.

A investigação teórica procurou colmatar lacunas que dificultassem a abordagem prática, abarcando a extensa literatura disponível. No entanto, este estudo revelou-se mais complexo do que inicialmente teria pensado, por não corresponder à minha formação de base, distinta da área da tese. Por essa ra-zão, a opção teórica passou obrigatóriamente por uma contextualização histó-rica e pela definição de intermedia e das práticas sonoras a ele associadas.

A investigação prática guiou-se pela procura histórica e concetual de princípios orientadores do meu trabalho no quadro do intermedia de base so-nora, segundo o modelo dispositivo da instalação. Ou seja, partindo da análise dos processos de transformação das práticas artísticas que levaram ao inter-media, da sua definição e dos desenvolvimentos entretanto verificados até à atualidade, procurei assumir no meu trabalho prático, tanto a sua fusão con-cetual, o hibridismo e a intermedialidade dos media, como a integração dos media situados fora da arte, a interdisciplinaridade e o papel do público.

As criações produzidas, centrais a esta investigação, resultaram de uma procura diversificada de conhecimentos teóricos e práticos, que passou pela frequência de cursos, workshops, conferências, exposições, concertos, etc., es-senciais ao questionamento e à aprendizagem, mas por vezes também algo dispersivos nas suas abordagens e na diversidade das soluções propostas. Na-turalmente, tudo parecia estar já feito e bem feito, sem que na realidade isso importasse demasiado, por haver sempre em todas as criações algo de único e de irrepetível, sobretudo nas site-specific, mas também nas place-specific, onde as alterações de contexto condicionam a leitura da criação.

A componente escrita da tese divide-se em três capítulos. O estudo teóri-co foi distribuído pelos dois primeiros capítulos, passando pela categorização do intermedia, pela identificação de territórios artísticos propícios à interme-

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dialidade com o sonoro e pelo aprofundamento do seu contexto atual de afirma-ção no âmbito da arte contemporânea.

No terceiro capítulo, situa-se a descrição e a análise da componente prática da investigação. São enumeradas as suas trajetórias em constante reformulação, ao mesmo tempo que reflete acerca dos processos de experimentação e da con-cretização das criações produzidas para a tese.

Assim, o primeiro capítulo introduz e analisa a noção de media e de dis-positivo, essenciais à arte do século XX e ao seu processo intermedial de des-sacralização dos próprios media e de reformulação disciplinar dos dispositivos conceptuais anti-arte. Nele se referem as dinâmicas vitalistas com que os artistas conceberam as suas criações, sobretudo as sonoras, onde o ruído contaminou todas as formas de arte e interagiu com a música, entretanto assumida como organização de sons. Pela sua importância, também a audiência é referida, en-quanto media e componente essencial ao processo artístico. O surgimento do intermedia, que é aqui definido e compreendido, formaliza este processo de fu-são entre meios participado pelo sonoro, em resultado da crescente afirmação do som nas práticas artísticas da segunda metade do século XX. Propiciador do surgimento da sound art, que é aqui situada no contexto da expansão do sonoro na arte.

No segundo capítulo, a abordagem às práticas intermedia contemporâneas é feita de modo a introduzir conceitos sonoros como o de escuta, auralidade e espacialização. A escuta, como processo percetivo do ouvinte enquanto artis-ta e enquanto audiência. A auralidade, situada no soundscape e na captação e criação de novas auralidades. A espacialização, como artifício multipontual do movimento dos sons. Enquadradas em noções de materialidade e imateriali-dade, ressonância e reverberação, acusticidade e plasticidade, e mediadas por relacionamentos de espaço-tempo, corpo-escuta, experiência-espetador e au-dição-visualização, estas leituras da contemporaneidade situam-se mediante a contextualização e analise da prática artística e das suas criações.

O terceiro e último capítulo enumera e analisa o resultado prático desta in-vestigação que situa cronológicamente dividindo-o em três partes. A primeira, incide sobre o trajeto prático de experimentação dos media e da sua intermedia-lidade realizado durante a investigação, e apresenta alguns resultados transitó-rios: o fílmico de Antero (2011) e o videográfico de film.frame (2013).

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A segunda e a terceira parte centram-se no essencial do trabalho práti-co, com a criação de nove instalações. Na segunda parte são apresentadas as primeiras três instalações, referentes a 2012: Matéria Sonora, Rádioatividade e A (des)ordem do discurso. Na terceira parte, apresentam-se as restantes seis, concretizadas em 2014, no Panóptico do Centro Hospitalar Conde de Ferreira, onde o caráter site-specific associado ao lugar foi determinante. Destas, cinco foram enquadradas no mesmo momento e contexto de intervenção: Leituras ressonantes: onde param os meus ouvidos. A sexta e última a ser realizada - Delírios espetrais: Aísthesis - apesar de conter em si diferentes componentes, funciona como um todo.

Por forma a complementar a componente prática, foi criado um DVD onde se podem visualizar os trabalhos videográficos realizados e ainda filma-gens das seis instalações apresentadas no Panóptico. A tese inclui ainda um CD onde se podem ouvir as composições elaboradas, associadas às diferentes instalações.

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1. Intermedia

1.1. Origens e dispositivos

Media: conceitos e conceptualizações

O intermedia remete naturalmente para os media enquanto componen-tes de um sistema que tanto pode ser de comunicação como artístico, e para o condicionamento de conteúdos que comporta a sua operacionalidade en-quanto medium. Especificidades que levaram Marshall McLuhan[1] a definir que o meio é a mensagem (the medium is the message), e a encarar cada meio como potenciador de uma determinada mensagem, capaz de controlar e de configurar as ações e associações humanas: “(...) the “message” of any medium or technology is the change of scale or pace or pattern that it introduces into human affairs.” (MacLuhan, 1964: 8). O meio aqui entendido como uma ex-tensão de nós próprios e do nosso corpo, cujo conteúdo[2] é sempre um outro meio ou veículo, estabelecedor de interligações[3] entre escrita e fala, imprensa e telégrafo, fala e pensamento, e capaz de eliminar fatores de tempo e de espa-

1 McLuhan publicou em 1964 Understanding Media: the extensions of man (1964), livro re-volucinador do entendimento do meio e do seu condicionamento da mensagem, numa análise abran-gente dos fenômenos sociais e tecnológicos da comunicação.2 Ao assumir o meio como mensagem, MacLuhan fá-lo distinguindo a sua noção de conteúdo do comumente entendido como significado.3 Freidrich A. Kittler, em Gramophone, Film, Typewriter (1999 [1986]), refere-se igualmente ao entendimento de McLuhan acerca dos media e do modo como estes fazem parte uns dos outros: a televisão do cinema e da rádio, a rádio dos vinis e das cassetes, o cinema das cassetes e dos filmes mudos, o sistema semi-media postal do texto, telefone e telegrama.

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ço, exatamente como o fazem o rádio, o telégrafo, o telefone e a televisão. Ma-cLuhan alerta ainda para o fascínio pelo conteúdo como impeditivo de uma tomada de consciência da natureza do próprio meio.

“The effect of the medium is made strong and intense just because it is given ano-ther medium as “content.” The content of a movie is a novel or a play or an opera. The effect of the movie form is not related to its program content. The “content” of writing or print is speech, but the reader is almost entirely unaware either of print or of speech.” (MacLuhan, 1964: 17)

Esta consciência dos media enquanto conteúdo de que nos fala Ma-cLuhan, permite considerar com naturalidade o processo intermedia, enquan-to progressão técnica crescentemente complexa e fortalecedora de cada me-dium. Freidrich A. Kittler reforça essa ideia relativamente às três tecnologias da era moderna que dão título ao seu livro, Gramophone, Film, Typewriter ([Grammophon, Film, Typewriter] 1999 [1986]), depois de mencionar os ca-sos citados por MacLuhan, da rádio feita dos vinis e das cassetes, do cinema feito das cassetes e dos filmes mudos, e da televisão feita a partir do cinema e da rádio. Processos em que cada media, novo ou velho, procurava correspon-der às capacidades humanas de percepção e de comunicação, sobretudo às da visão e da audição, ao mesmo tempo que afirmava a sua importância enquanto media de armazenamento (Kittler, 1999 [1986]: 2). Media cuja origem remonta à invenção da escrita, evoluindo depois para mecanismos capazes de registar e de reproduzir palavras, ruídos e imagens que as pessoas pudessem receber e transmitir, desenvolvendo assim a sua percepção. Equipamentos inicialmente incapazes de amplificar ou transmitir, mas que conservavam a informação, tais como o Fonógrafo (1877) (figura 1)e o Kinetógrafo (1891) de Thomas Edison ou o Cinematógrafo (1895) dos irmãos Auguste e Louis Lumière.

“What phonographs and cinematographs, whose name not coincidentally drive

from writing, was able to store was time: time as misture of frequencies in the acoustic realm and as the movement of single-image sequences in the optical. Time determines the limit of all art, which first has to arrest the daily data flow in order to turn it into images or signs.” (Kittler, 1999 [1986] : 3)

Tal como MacLuhan, que realçava a importância do tempo e o papel es-sencial das artes no controle dos media, Kittler refere a capacidade de fixar o

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tempo[4] como um elemento primordial e delimitador em todas as artes, re-correndo a mecanismos capazes de captar e de reproduzir o tempo real, mas também de permitir a manipulação da duração, do ritmo e do sentido dire-cional resultante dos registos obtidos, tanto fotográficos como fonográficos ou cinematográficos. Nestes últimos, a projeção teria de realizar-se em contextos propícios ao êxtase e à exaltação, como o das salas de teatro, das tendas de feira ou o das salas de cinema. Situados em contextos privados e público e organizados enquanto dispositivos de isolamento voluntário e de hipnotismo e submissão sensorial do espetador, estes espaços proporcionavam uma dupla temporalidade: a elíptica inscrita no filme entre o momento de captura e o de projeção, e a operada no interior do espetador durante e depois da projeção.

Fig. 1 - Edison e o seu Fonógrafo.

Dispositivo: cinema, arte e espetáculo Enunciado por Michel Foucault a partir de metade dos anos 70 e es-

sencial ao seu pensamento enquanto conceito operativo, o termo dispositivo identifica a rede estabelecida entre indivíduos, instituições e outras forma de subjetivação inscritas num jogo de poder. Igualmente analisado por Giorgio Agamben, recorrendo aos dicionários franceses comuns, este termo distingue--se em três significados: o jurídico, como parte de uma sentença; o tecnológico, de uma máquina ou mecanismo em si próprio e no modo como são dispostas as suas peças; e o militar, no modo como são dispostos os meios em função de um plano. Partindo destas leituras mais ou menos convergentes, mas assumin-

4 “Using projections and retrievals, this time memorizes itself - like a chain of chains.” (Kittler, 1999 [1986]: 5)

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do uma leitura própria, Agamben situa o dispositivo num novo contexto e em dois grandes grupos de classes: o dos viventes ou substâncias e o dos disposi-tivos em que estes permanecem continuamente encerrados. Acresce a estes o do sujeito, resultante da relação corpo a corpo entre viventes e dispositivos.

“Generalizando a amplíssima classe dos dispositivos foucaunianos, chamarei literal-mente dispositivo a qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos. Não somente, portanto, as prisões, os manicó-mios, o panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídi-cas, etc., cuja conexão com o poder é mais ao menos evidente, mas também a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telemóveis e – porque não – a própria linguagem, quiçá o mais antigo dos dispositivos no qual, à milhares e milhares de anos, um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de deixar-se capturar.” (Agamben, 2005: 13)

Nesta contrução de subjetividades gerada pelo sujeito, mediante disposi-tivos/media - que são mecanismos da memória que permanecerão como única fonte, correspondendo a um desejo de inscrever que remonta às origens da humanidade, como os media temporais da fotografia e do cinema - já em 1975 Jean-Louis Baudry retomava a noção de dispositivo através do espetador e da sua situação participante no conjunto da projeção, à qual permanece incorpo-rado o aparelho de base[5] representativo da filmagem e da montagem. Baudry (1975: 58) recorre à Alegoria da Caverna de Platão, em que o prisioneiro é ví-tima de uma ilusão de realidade, para eludir à impressão de realidade (Baudry, 1975: 62) tida pelo espetador. Resultante do movimento, cuja continuidade temporal e de ação apenas se tornou totalmente eficaz com o aperfeiçoamento dos dispositivos sonoros e óticos de simulacro perceptivo próprios do cinema, esta impressão é operada no interior da sala de cinema pelo dispositivo cine-matográfico[6].

5 “D’une façon générale, nous distinguons appareil de base, qui concerne l’ensemble de l’appareillage et des opérations nécessaires à la production d’un film et à sa projection, du dispositif, qui concerne uniquement la projection et dans lequel le sujet à qui s’adresse la projection est inclus. Ainsi l’appareil de base comporte aussi bien la pellicule, la caméra, le développement, le montage en-visagé dans son aspect technique, etc. que le dispositif de la projection. Il y a loin de l’appareil de base à la seule caméra à laquelle on a voulu (on se demande pourquoi, pour servir quel mauvais procès) que je le limite.” (Baudry, 1975: 58-59)6 “Na raiz de cada dispositivo está (...) um desejo demasiado humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência específica do dispositivo.” (Agamben, 2005: 5)

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“Le cinéma constitue en fait un appareil à simulation. Cela a été reconnu immédia-

tement. (…) on a cherché la clé de l’impression de réalité dans la structuration de l’image et le mouvement, sans vouloir apercevoir que l’impression de réalité relevait d’abord d’un effet-sujet et qu’il pouvait être nécessaire d’interroger la position du sujet face à l’image, pour dégager la raison d’être de l’effet- cinéma. (…) D’abord que le dispositif cinémato-graphique si l’on tient compte de l’obscurité de la salle, de la situation de passivité relative, de l’immobilité forcée du ciné-sujet, comme sans doute des effets inhérents à la projec-tion d’images douées de mouvement, déterminerait un état régressif artificiel. (…) Cette simulation, tout le dispositif cinématographique intervient pour la provoquer : il s’agit bien d’une simulation d’un état du sujet, d’une position de sujet, d’un effet-sujet et non de la réalité. (Baudry, 1975: 68-72)

A origem histórica do dispositivo enquanto produtor de subjetividades, princípio de que nos fala Giorgio Agamben, remonta ao pré-cinema e à relação de proximidade então estabelecida entre o espetador e os media de projeção, inicialmente assente em dispositivos óticos como a Lanterna Mágica (1643) de Athanasius Kircher, o Fantascope (1798) de Étienne-Gaspard Robert, ou Robertson, e o Teatro Praxinoscópico (1878) de Charles-Émile Reynaud. Em projeções de imagens próximas às artes plásticas, baseadas no desenho e na pintura em vidro ou gelatina, que partem da Lanterna Mágica para se diferen-ciarem através das Fantasmagorias de Robertson (figura 2), particularmente interessantes por se inspirarem na mística e no contexto espacial das ruínas do Convento des Capucines de Paris, onde decorriam as projeções. Acompa-nhadas de vozes e efeitos sonoros encenadores do sobrenatural, as imagens do Fantascope multiplicavam-se pelos espaços, recorrendo a truques óticos e a mecanicos que permitiam variar a sua escala em função da aproximação à tela[7]. Esta relação pluri-pontual e multi-cénica de interação entre espaço, ação e espetadores, permanecerá ausente do Teatro Praxinoscópico de Rey-naud e do ecrã dinâmico[8] do cinema, mas ganhará sentido acrescido no posi-

7 Não se tratava aqui propriamente da utilização de um ecrã opaco e esticado, mas antes do uso de um tecido menos perceptível ao olhar e translúcido que ajudasse a fixar a imagem, suspendendo-a de modo, se possível, ligeiramente agitado e em movimento.8 Lev Manovich, em The Language of New Media (2001: 99-100), define-o como um ecrã em permanente mudança ao longo do tempo, próprio do cinema, da televisão e do vídeo, capaz de es-tabelecer ligações entre a imagem e o espetador, de alguma maneira já implícitas no ecrã clássico da pintura enquanto espaço de representação.

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cionamento central dos espetadores do Panorama[9], face à escala e ao realismo dos painéis pintados, visíveis em 360º, ou do Diorama, que permitia assistir a efeitos de transição temporal da luz, como o de noite/dia.

Fig. 2 - Espetáculo de Fantasmagorias de Robertson

Em outro sentido, o da camera obscura menos fantasista, seguiram Ni-céphore Niepce, inventor do processo fotográfico em 1824, e Louis Daguerre, do daguerreótipo em 1837. Suficientemente realistas, os registos obtidos por Daguerre impulsionaram o desenvolvimento técnico e estético da fotografia, levando aos estudos de registo temporal dos movimentos realizados por Ea-dweard Muybridge e Étienne-Jules Marey, a que Edison e os irmãos Lumière deram continuidade nas vistas fotográficas animadas com que preencheram as suas projeções.

No som, o contributo de Edison com a invenção do Fonógrafo, máquina falante fundadora da cultura sonora contemporânea, permitiu gravar sons em rolos de cera e reproduzi-los depois para pequenas audiências. Este dispositivo técnico, como muitos outros destinados ao som, mas sobretudo à voz, levou à descoberta sonora da paisagem e à introdução de novas formas de escuta do quotidiano, potenciando o arquivo, a manipulação e a reprodução dos sons captados. Registos sonoros que, não se limitando ao escutado, assumiam uma componente de plasticidade visual que remonta ao Phonautographe (1857) de Édouard-Léon Scott de Martinville e ao processo de inscrição gráfica dos sons

9 “The problem of optical center and periphery, of the dispersed functioning of sensory re-sponse, has been part of the ongoing modernization of perception since the nineteenth century. Two of the most pervasive nineteenth-century constructions of optical experience define some of the terms of these new conditions. The first of these was the architectural model of panorama painting, in which the 360-degree image stood for a permanent activation of the optical periphery at the expense of a stable center of focused attentiveness. Then consider the stereoscope, which posed a rival (or com-plementary) model of visual consumption. Its decisive exclusion of the periphery (especially in the Holmes viewer) presented an illusory three-dimensional image that barely extended beyond the range of central foveal clarity, so that, within the optical model I am outlining, it produced an image which, in its hypertangibility, was all figure with no ground, no periphery. What is lost in both panorama and stereoscope is the possibility not only of a classical figure/ground relationship, but also of consistent and coherent relations of distance between image and observer.” (Crary, 1999: 295)

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em papel enegrecido riscado por uma agulha (figura 3), próximo à visualiza-ção obtida no som ótico da película cinematográfica ou à do áudio digital dos programas de edição em computador.

Fig. 3 - Fonautograma em papel da canção Au Clair de la Lune (1860)

“In contemporary practice, then, a sound recording or recorded sound isn’t neces-sarily intended for playback, and it isn’t necessarily made by documenting preexisting sound waves. The only condition is that it should represent sound in a certain very spe-cific way—namely, by expressing it in terms of amplitude or frequency as a function of

time.” (Feaster[10], 2012: 5)

Expandida pelo sonoro e pelo cinematográfico, mas de base profunda-mente musical, a questão temporal, rítmica e de duração, revelou-se essencial à composição e à manipulação dos sons e das imagens que revolucionaram a arte e a sua narratividade. A necessidade de controlar o tempo, enquanto elemento de precisão durante a gravação e a reprodução, levou a uma meca-nização eletrificada dos dispositivos técnicos que permitiu estabilizar e estan-dardizar o seu funcionamento. No Fonógrafo, procurando fixar a rotação do cilindro, ou do prato do Gramofone[11], no Cinematógrafo, permitindo contro-

10 Patrick Feaster é co-fundador da iniciativa First Sounds, que recuperou o áudio de um Fo-nautograma em papel da canção Au Clair de la Lune, registada por Martinville em 1860, recorrendo a ferramentas digitais.11 O Gramophone assumiu papel de destaque no cinema, na rádio e entre as vanguardas ar-tísticas, que nele intervinham físicamente manipulando as suas reproduções fonográficas. Inventado nos EUA por Emile Berliner, o Gramofone (1887) viria a ser comercializado na Alemanha, de onde Berliner era natural e a onde regressou em 1889.

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lar o movimento do obturadorador[12], responsável pelos intervalos de tempo do registo, cadenciados em número de fotogramas por segundo, e a velocidade de projeção do filme. Esta afirmação de padrões técnicos dos dispositivos per-mitiu a incorporação do som na película e tornou irreversível a afirmação do cinema sonoro, o que constitui em si um ato intermedia, resultante da fusão entre diferentes media e da necessidade de corresponder ao sincronismo hu-mano entre visão e audição.

Dispositivos aos quais recorreriam os artístas, com eles interagindo téc-nica e estéticamente, tal como veremos na continuação deste estudo, particu-larmente centrado na intermedialidade com o sonoro.

1.2. O contributo modernista

Em finais do século XIX e inícios do XX, com a afirmação das van-guardas modernistas, a arte tendeu a assumir a vitalidade do quotidiano e a recorrer à multiplicidade de media técnicos disponíveis, explorando novos relacionamentos e assimetrias. Cada vez mais interdisciplinar, sobretudo nas artes plásticas, mas também na música ou no cinema, a produção artística mo-dernista subverte o uso de media tradicionais, como a escrita e a palavra, ao mesmo tempo que opera artísticamente os meios disponíveis, num processo infindável de incorporação de novos media que permaneceu até à atualidade.

O desejo de ultrapassar os limites materiais e estéticos da arte e de ques-tionar as delimitações entre campos artísticos levou os modernistas à explora-ção sonora da matéria, das linguagens e do quotidiano. A um questionamento anti-arte da própria arte. impulsionador de uma não-música, sobretudo futu-rista, dadaísta e construtivista.

Nesse sentido, Marcel Duchamp deu um importante contributo, enquan-to introdutor de um conceito essencial às práticas artísticas contemporâneas, o de objet-trouveé ou ready-made patente em Roue de bicyclette (1913), Porte bouteilles (1914) e Fontaine (1917). Manifestamente subversivo e anti-arte, este conceito surge nas criações de Duchamp enquanto ready-made assisti-

12 O obturador, que fica situado imediatamente à frente da janela, é uma peça metálica rotativa em forma de segmento de círculo, que tapa e destapa sucessivamente a abertura da janela, permitindo uma abertura de círculo de cerca de 180º e de exposição de 1/48 a 24 fotogramas por segundo e de 1/50 a 25 fotogramas por segundo.

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do, de que é exemplo A Bruit Secret (1916/1964) (figura 4), escultura sonora anti-música[13] realizada em colaboração com Walter Arensberg, cujo segredo sonoro é gerador de uma obra aberta visual (Alarcón: 2008, 11).

“It was around that time that the word “readymade” came to mind do designate this form of manifestation.

A point which I want very much to establish is that the choice of these “readyma-des” was never dictated by esthetic delectation.

This choice was based on a reaction of visual indifference with at the same time a total absence of good or bad taste… in fact a complete anesthesia.

One important characteristic was the short sentence which I occasionally inscri-bed on the “readymade”.

That sentence instead of describing the object like a title was meant to carry the mind of the spectator towards other regions more verbal.

Sometimes I would add a graphic detail of presentation which in order to satisfy my craving for alliterations, would be called “readymade aided”.

(Duchamp, 1961: 141-412)

Extensível a todo o dadaísmo, o conceito de ready-made introduz um fator de versatilidade de que careciam as artes plásticas e a música, na sua ex-pansão a todos os materiais e contextos e a todos os sons.

Fig. 4 - A Bruit Secret (1916/1964).

13 Segundo Alarcón (2008: 12), existe ainda a possibilidade veiculada por alguns teóricos de Duchamp de se tratar antes de uma obra anti-música que procura reposicionar a própria música. Nesse sentido, cita Sophie M. Stévance (nota 23): “¿sugiere una expansión de los valores, una música abierta al ruido, y ya no un compartimento en la sonosfera segregativa entre los sonidos puros (los doce sonidos de la escala cromática temperada dispuestos según el esquema romántico de la música) y los sonidos impuros o sucios (es decir, todo aquello que no está considerado por la tradición musi-cal)?”

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Arte dos sons

Na música, a principal rutura foi assumida pelo músico e pintor fu-turista Luigi Russolo[14], com a publicação em 1913 do seu manifesto, A Arte dos Ruídos (L’ Arte dei rumori), onde defendia uma aproximação aos sons naturais e ao som-ruído produzido pela crescente proliferação de máquinas e do trabalho humano, de modo a “controlar e regular, harmónica e ritmica-mente, estes variadíssimos ruídos”, sem que a “arte dos ruídos se deva limitar a uma reprodução imitativa” (Russolo, 2013 [1913]: 19). Nesse sentido, conjun-tamente com Ugo Piatti, iniciou a construção de mecanismos produtores de sons, os Intonarumori ou Entonadores de ruídos (figura 5), propiciadores de composições[15] ruidistas que, dessacralizadoras da música e da sala de concer-tos, expandiram o campo musical a novos timbres e sonoridades.

Fig. 5 - Orquestra de Intonarumori de Russolo e Piatti.

Russolo dá início à problemática acerca do que é ou não música, geran-do uma alteração de paradigma comparável à introduzida por Duchamp nas artes plásticas, ao mesmo tempo que contribuia para a diluição do limite entre o campo artístico e o musical, experimentado por autores oriundos das duas áreas, mas sobretudo da música, com recurso a sons instrumentais musicais e extra-musicais[16].

14 Russolo (2013 [1913]: 20) divide o ruído nas seis categorias que deveriam servir de referên-cia à orquestra acústico-musical futurista, na tentativa de trabalhar um sistema de agrupamentos de sons de acordo com as suas famílias sonoras: “1/ Rugido, palmas, barulho de queda de água, falar alto; 2/ Assobios, roncos, urros; 3/ Sussurrar, resmungar, murmurar, rugido, gemido, gargarejo; 4/ Som estridente, de estalo, de cochicho, de batida, de confusão; 5/ Ruídos de precursão utilizando metal, madeira, couro, pedra, terra queimada, etc.; 6/ Vozes humanas e de animal: gritos, lamentos, riso, cho-calhar, chorar”. Principal impulsionador do dilema acerca do que é ou não musical, o seu contributo extendeu-se às criações de John Cage e Pierre Schaeffer, assim como a todos os artistas e músicos que encontram no ruidismo uma forma de arte. 15 Composições que apresentou em Milão, como Despertar de uma Cidade, Encontro de Auto-mobilistas e Aviões, Jantar no Terraço do Casino e Escaramuça no Oásis. 16 “Within the history of Western art music, noises were not intrinsically extramusical; they were simply the sounds music could not use.” (Kahn, 2001: 68)

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O caminho foi seguido por alguns compositores, entre eles Carol-Bé-rard, que em 1908 recorre a motores, campainhas eléctricas, apitos e sirenes na sua Symphonie des forces mécaniques, defensor do uso do sons não-ins-trumentais, gravados[17] e organizados de modo a permitir a sua utilização em composições musicais. Também é exemplo disso Ottorino Respighi, em Pini di Roma (1924), onde associa pela primeira vez, segundo R. Murray Scha-fer (1977: 112), uma orquestra sinfónica a material pré-gravado, constituído por cânticos de pássaros; e ainda George Antheil que conjuga instrumentos de percussão convencionais com uma série de hélices de avião e uma sirene em Ballet Mecánique, composição de 1926 destinada a acompanhar o filme de Fernand Léger. Mas é Arseny Avraamov quem mais longe leva a criação sonora e instrumental ruidista, com a interpretação em Baku, em 1922, da sua Simfoniya gudkov ou Sinfonia de sirenes fabris (1922-1923) (figura 6), descrita em 1923 no seu caderno de instruções, assumindo a cidade e os seus elementos sonoros enquanto espaço acústico performativo de que todos par-ticipavam. Avraamov dispôs por Baku diferentes instrumentos sonoros com que interveio, como uma máquina de silvos a vapor com que interpretava A Internacional e A Marselhesa, e conjugou-os com os existentes: sinos de igreja, aeroplanos, transportes automóveis, artilharia, sirenes individuais seleciona-das pelo seu timbre e posicionamento geográfico, entre elas as de nevoeiro da frota russa do mar Cáspio.

Com Avraamov, o soundscape da cidade deixa de ser apenas quotidiano para se tornar composicional no modo como incorpora e organiza os seus dispositivos em sistemas sonoros, introduzindo uma inaudita escala operativa ao vivo e em direto, escutada de forma distinta consoante a posição do ouvinte e o seu entorno sonoro casuístico. Esta ligação à vida e à sua dinâmica, que se verificou na música mas que é transversal a todas as disciplinas e correntes modernistas, permitiu a construção de novas auralides a partir das existentes e estendeu-se à manipulação dos sons captados e à sua organização através de processos de montagem.

17 Carol-Bérard apul Khan (2001: 130): “The noisemakers were dedicated in purpose to the music of the future, but their realization fell far short of the goal. For all the hammers, the exploders, the thunderers, the whistlers, the rustlers, the gurglers, the crashers, the shrillers, and the sniffers of the ‘futurist’ orchestra obey the same laws of execution as the common violins, violoncellos, flutes, oboes, and other instruments in the traditional orchestra. No matter how new the acoustic effects they create, they are always in need of performers.”, in, “Carol-Bérard, “Recorded Noises: Tomorrow’s Instrumentation,” Modern Music 6, no. 2 (January-February 1929): 26-29 (27).”.

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Fig. 6 - Avraamov durante a execução de Sinfonia de sirenes fabris.

Novas auralidades que foram certamente inspiradoras para o futurista e construtivista russo Dziga Vertov, enquanto criação que partilha do mes-mo simbolismo modernista[18] a que este recorreria no seu primeiro filme sonoro, Entuziazm (Simfoniya Donbassa), ou Entusiasmo, Sinfonia de Don-bass[19](1930), depois de realizar experiências com som que remontam à cria-ção do seu Laboratório do Ouvido, em 1916, onde ensaiava o registo e a ma-nipulação das vozes e dos sons naturais e mecânicos, criando fonogramas que usava na leitura dos seus poemas, numa mistura de música com ruídos, de sons com palavras e de registos musicais fonográficos com sons instrumentais isolados.

“one day in the spring of 1918… returning from a train station. There lingered in

18 “Sirens signaled modernism in various ways—to call workers to mechanistic labor and, after the revolution in Russia, to call emphatically to the future” (Kahn: 1999, 125)“‘Differential’ music of sirens belongs completely to the future, whereas today we are scarcely able to feel specific rules of its harmony and melody”. Arseni Avraamov (1923) - “The Symphony of Sirens”, in, Kahn, 1992: 248.19 Lucy Fischer apul Khan (2001, 142): “A historiadora de cinema Lucy Fischer deu-nos uma valiosa descrição acerca de cômo Vertov produziu a sua complexa interacção do som com a imagem durante a primeira parte do seu primeiro filme sonoro, Entusiamo: Sinfonia de Donbass. As quinze categorias incluiam som a-corporal, som sobreposto, inversão temporal do som e da imagem, cortes abruptos no som, contrastes tonais abruptos, montagem do som para criar um efeito de ligação física inapropriada à imagem, colagem sonora sintética, sons inapropriados, desajuste da profundidade so-nora, desajuste do som e da localização visual, uso metafórico do som, distorsão sonora, reflexividade tecnológica, associação de um som a várias imagens, e simples assincronismo entre som e imagem. Em outras situações Vertov modificou a velocidade do som, inverteu-a, e implementou uma simbo-logia geral de sons produzidos. Ele empenhou-se mesmo na sincronização sonora.”, in, “Lucy Fischer, “Enthusiasm: From Kino-Eye to Radio-Eye”, in Film Sound: Theory and Practice, ed. Elisabeth Weiss and John Belton (New York: Columbia University Press, 1985), 247-64.”.

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my ears the signs and the rumble of the departing train... someone’s swearing… a kiss… someone’s exclamation… laughter, a whistle, voices, the ringing of the station bell, the puffing of the locomotive… whispers, cries, farewells… And thoughts while walking: I must get a piece of equipment that won’t describe, but will record, photograph these sounds. Otherwise it’s impossible to organize, edit them. They rush past, like time. But the movie camera perhaps? Record the visible… Organize not the audible, but the visible world. Perhaps that´s the way out?” (Vertov, 1984 [1926]: 40)

Dada

Experimentação de novas sonoridades a que muitos recorreram conju-gando a performance sonora ao vivo com mecanismos fonográficos de arma-zenamento e reprodução, que subvertiam alterando as frequências e os tempos de leitura e manipulando o próprio suporte físico das gravações, sobretudo em gramofones. Manipulações do suporte e dos mecanismos dos media em-pregues em Berlim pelos compositores Paul Hindemith e Ernest Toch, em Grammophonplatten-eigene Stucke (1930), desenvolvidas a partir de registos vocais reproduzidos em gramofone, e descritas por László Moholy-Nagy como reveladoras de facetas desconhecidas da voz humana: “(…) at high speed the recording gave back a perhaps never before suspected aspect of human voice, one never even heard before, impossible to produce in any other way. This is the principle of sound-time expansion”[20].

Noutro sentido, o da exploração da voz e da poesia sem palavras (Verse ohne Worte), seguiu o dadaista Hugo Ball, ao procurar na transculturalidade linguística o universalismo alcançado pela música. L’amiral cherche une mai-son a louer, poema simultâneo[21] de Ball apresentado em 1916 conjuntamente com Tristan Tzara, Marcel Janco e Richard Hulsenbeck, é disso exemplo, após a investigação onomatopaica dos futuristas italianos, a proclamação da des-truição da sintaxe por Marinetti, o poema etimológico Invocation of Laughter

20 László Moholy-Nagy apul Kahn (2001: 127-128/nota 12): “László Moholy-Nagy, “New Film Experiments” (1933), in Krisztina Passuth, Moholy-Nagy (New York:Thames and Hudson, 1995), 322.” 21 “30 de novembro de 1916. Todos os estilos dos últimos vinte anos se reuniram ontem. Huel-senbeck, Tzara e Janco apresentaram-se com um ‘Poème simultan’. Tratando-se de um recitativo ba-seado no contraponto, no qual três ou mais vozes falam, cantam, assobiam, ou algo parecido, ao mesmo tempo, de forma que este encontro vem a constituir a essência elegíaca , alegre ou bizarra da apresentação. Num poema simultaneísta, ao trabalho orgânico é dada forte expressão, assim como à sua dependência do acompanhamento. Os ruídos (um rrrrrr produzido durante minutos, ou colisões, ou sirenes, etc.) possuem uma energia que supera a da voz humana. (Richter, 1993 [1964]: 32-33)

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(1908-09) de Velimir Khlebnikov[22] e a poesia Zaum de Alexei Krutschenij. No seu poema, Ball combina a dissonância musical dos instrumentos, que uti-liza durante a leitura, com a polifonia vocal e linguística presente no Cabaret Voltaire de Zurique, numa mistura de palavras, de cânticos e de ruído… de bruitism[23], conceito abarcador da poesia simultânea, da poesia sonora, da performance ruidista e da música ruidista.

“The ‘simultaneous poem’ has to do with the value of the voice. The human organ represents the soul, the individuality in its wanderings with its demonic companions. The noises represent the background—the inarticulate, the disastrous, the decisive. The poems tries to elucidate the fact that man is swallowed up in the mechanistic process. In a typically compressed way it shows the conflict of the vox humana with a world that threatens, ensnares, and destroys it, a world whose rhythm and noise are ineluctable.”[24]

Fig. 7 - Hugo Ball apresenta poesia fonética no Cabaret Voltaire.

Momentos performativos munidos de uma intermedialidade concretiza-da nas exposições da Galeria Dada — onde se conjugavam, num mesmo tempo e espaço, leituras, conferências, quadros, dança, música, poesia, manifestos,

22 “Khlbenikov’s search in Slavonic roots led him to find that “stellar” language where “universal brotherhood” was possible, discovering a series of imaginary languages: “the language of the stars”, “the gods”, “the birds” or of “sound-painting.” (Alarcón, 2008: 14)23 Transmitido à ação dadaista pelo ruidismo futurista, segundo afirma Richard Huelsenbeck, no “Manifesto Colectivo Dada” de 1920, o bruitism tem origem em Marinetti e nos seus poème brui-tiste e le concert bruitiste.24 Hugo Ball apul Khan (2001: 49/nota 13): “Hugo Ball, Flight out of Time: A Dada Diary (New York: Viking Press, 1974), 57.”

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cenografia (guarda-roupa, máscaras), etc. —, a primeira das quais ocorrida com a apresentação do poema sonorista abstrato de Ball (figura 7), O Gadji Beri Bimba[25], de 1916. Simultaneidade que resultou numa alteração do posi-cionamento dos espetadores, provocatoriamente desassossegados por Tzara e Huelsenbeck, que introduzim assim fatores de interação apenas indiretamente presentes no público do cinema, da rádio ou do teatro, mas que vieram a ser essenciais ao desenvolvimento do happening e das ações nos anos 60.

Intermedialidade que remete, igualmente, para a Gesamtkunstwerk, ou obra de arte total, defenida por Richard Wagner em 1849, ao procurar unificar o teatro, a música, o canto, a dança e as artes plásticas num momento operático interdisciplinar imersivo dos espetadores, como o ocorrido com a apresenta-ção da série de quatro óperas, Der Ring des Nibelungen (O Anel do Nibelungo, 1848-1874), no Festival de Bayreuth, em 1876.

Sinestesia: arte total, color music e visual music

Entretanto, permaneceu nos modernistas a vontade de continuação do projeto sinestésico de color music[26] ou visual music entre as artes plásticas e a música, resultante da conjugação entre diferentes media e por diferentes disciplinas artísticas, num jogo puramente ótico de abstrações.

“If synesthesia represents the unity of the senses, the dream of synesthesia is the unification of the arts. Over the past century, artists have found ever more powerfull means of evoking and provoking the state of synesthesia, linking color, form, and sound in extraordinary fashion.” (Strick, 2005: 19)

Geralmente assentes em projeções luminosas, as experiências de color music remontam ao Cravo Ocular do Jesuíta francês Louis-Bernard Castel,

25 Poema que abriu caminho à poesia de Raoul Hausmann em Fmsbw, e de Kurt Schwitters em Sonata Primordial, ou ao Letrismo, vinte anos depois do primeiro poema sonorista Dada, Kikakoko Ekoralaps, ter sido escrito por Paul Scheerbart em 1915.26 Embora com diferentes origens, ambas as designações pretendem referir a interação entre som e cor ou musica e pintura. Assim, segundo Judith Zilcer (2005: 25), a origem de color music é devida a Louis Favre, em La musique des couleurs et les musiques de lávenir (1900), e ao teórico da cor, Maud Miles, em 1914: “The truest parallel that can conceive between direct light rays of color and music would be to lay aside all attempts to represents objects either in natural or conventional way, in using color. To simply use color as music, might prove a genuinely new art.”. Roger Fry, por sua vez, recorre ao termo visual music em 1912, em defesa do Pós-Impressionismo, para descrever as criações que “give up all recemblence to natural form, and create a purely abstract language of form – a visual music.”.

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na década de 1720, e a Bainbridge Bishop, que, dominado pela ideia de cor-respondência entre música e pintura, construiu em 1877 três órgãos de cor capazes de projectar luzes coloridas sincronizadas com a interpretação musi-cal, mas que acabavam por arder durante as apresentações. Experiências a que deu continuidade Wladimir Baranoff-Rossiné, pintor e músico futurista russo ocupado com a teoria da pintura e com a música de cor, que concretizou com a construção do seu Piano Optophonique (figura 8) entre 1912 e 1916, uma espécie de órgão de irradiação de cores operado por um teclado musical.

Fig. 8 - Piano Optophonique de Baranoff-Rossiné.

Também Wassily Kandinsky e František Kupka, que reclamavam o esta-tuto de arte pura[27] ou abstracta, eram defensores da importância da estrutura formal da composição musical como algo a que a arte deveria aspirar. Kan-dinsky publica em 1911 Do Espiritual na Arte, onde expõe uma complexa e revolucionária doutrina acerca da criação sinestésica e onde procura formular analogias entre o timbre da música e a tonalidade da pintura, associando[28] os principais tons cromáticos a instrumentos musicais específicos. Associa-ção esta que encontrará um novo impulso na música de Arnold Schoenberg, Erik Satie e Edgar Varèse, nas relações entre música e pintura em Francis Pi-

27 “It quickly emerged that the unique and proper idea of competence of each art coincided with all that was unique in the nature of its medium. The task of self-criticism became to eliminate from the specific effects of each art any and every effect that might conceivably be borrowed from or by the me-dium of any other art. Thus would each art be rendered “pure,” and in its ‘purity’ find the guarantee of its standard of quality as well as of its independence. ‘Purity’ meant self-definition, and the enterprise of self-criticism in the arts became one of self-definition with a vengeance.” (Greenberg, 1961: 1-2)28 Kandinsky (2010 [1911]: 82-90) compara o azul, se for claro, a uma flauta, ou, se for escuro, a um violoncelo, ou ainda, sendo mais escuro, a um contrabaixo; o amarelo, “que facilmente se torna agudo, não atinge grande sonoridade”; o verde, aos “sons amplos e calmos, de uma gravidade média do violino”; o branco ao silêncio; o vermelho claro e quente, “soa como uma fanfarra onde predomina o som forte, obstinado e importuno do clarim”, enquanto o cinábrio soa a uma tuba ou ao “rufo ensur-decedor do tambor”; o laranja, a um sino de igreja ou “uma poderosa voz de contralto, ou uma viola interpretando um largo”.

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cabia, Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, Paul Klee, Arthur Dove e Geórgia O’Keeffe, ou entre Jazz e pintura em Piet Mondrian, com referências à música eletrónica do Theramin (1919-1920), invenção do russo Leon Theramin[29].

“(...) ao desenrolar o fio da sua história da arte moderna, Greenberg (31)[30] admite que terá sido no confronto com o seu exterior, mais precisamente com a música, que as artes plásticas descobriram o modelo que lhes permitiu reencontrar a sua própria essên-cia. Inspiradas na música como uma arte “abstracta”, uma arte “da pura forma”, as artes de vanguarda do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX terão, no que respeita à delimitação dos seus campos de actividade, atingido uma pureza ímpar na

história da arte e da cultura.” (Leal, 2009: 340)

A importância do trabalho dos pintores abstratos e da música como me-dia de base temporal, desde início assimilada pelo cinema, tem igualmente seguimento na animação sinestésica inaugurada por Viking Eggeling, Hans Richter e Walter Ruttmann, e assume-se estrutural no desenvolvimento do fil-me abstrato de Oskar Fischinger e na síntese do som a que também Rudolf Pfenninger consagrou as suas pesquisas, praticamente em simultâneo ao de-senvolvimento da primeira técnica sistemática e sintética de escrita acústica.

“C’est finalement Pfenninger qui à découvert la voie de l’écriture acoustique. Tan-dis que Fischinger se contente de photographies le son en tent que processus, Pfenninger le capture sous forme d’images individuelles, ce qui le conduit à élaborer des gabarits grâce auxquels des sons particuliers et des groupes de sons peuvents être reproduits à volonté.” (Levin, 2004: 57)[31]

Intermedialidade que assume particular importância com a invenção do som ótico, rigoroso e claro na capacidade de organização do audível através do visível, numa aparente conjugação entre as capacidades de registo do Fonógra-fo de Edison e as de visualização do Phonautographe de Martinville. Inventado por Ernest Ruhmer em 1900, o som ótico ocupava inicialmente toda a largura

29 “‘The world is multidimensional in its senses. Mental processes are also multidimensional. Why not demand that models of musical thinking be multidimensional?’ Leon Theramin, 1965.” An-drey Smirnov (2013: 44/nota 5) refere “Shorthand record of the discussion at the Acoustic Laboratory at Moscow Conservatory. Autumn, 1965. TCA.”.30 Miguel Leal remete para: “GREENBERG, Clement (1940), “Towards a Newer Laocoon”, in O’BRIAN, John, Ed., The Collected Essays and Criticism, Volume 1: Perceptions and Judgments, 1939-1944, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1986, pp. 31.”.31 Thomas Y. Levin (2004: 57/nota 38) refere: “On trouvera en compte rendu contemporain intelligent et illustré, en anglais, dans Waldemar Kaempffert, ‘The week in Science’, New York Times, 11 août 1935, sect. 10, p.6”.

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da película de 35mm, vindo a ser corrigido para a versão atual por Frau Von Madel, em 1905, que o colocou lateralmente à imagem.

Fig. 9 - Fotograma de filme sonoro com banda de som à esquerda.

A introdução do som ótico potenciou o relacionamento som-imagem e favoreceu novas abordagens sinestésica[32], ao permitir isolar fisicamente os sons em diferentes rolos, agrupados de modo a permitir identificar, organizar e arquivar os seus conteúdos.Veio facilitar o trabalho de montagem, tornando possível cortar, misturar e montar com a precisão[33] necessária ao sincronismo entre a banda de som e a banda de imagem na película (figura 9). Possibilida-des que foram exploradas por Walter Ruttmann em Fim de Semana (Woche-nende, 1930), filme sem imagens[34] onde faz o retrato sonoro de um fim de se-mana em Berlim, que se tornaria uma referência para a música electroacústica (figura 10), preenchido por ruídos, vozes e música. A sua composição varia entre o ritmo das máquinas e do trabalho, o toque do sino da igreja, o cântico do relógio de cuco e a sirene da fábrica, elementos reguladores da temporali-dade das ações, e momentos de lazer onde as vozes se misturam com os sons

32 “The power of synaesthetic experience itself was thought to gain power from the interpen-etration of normally unrelated experiences and associations to the realm of art and, most frequently, to music.” (Strick, 2005: 15)33 Precisão que, não só trouxe rigor ao processo de montagem do som, como estendeu esse rigor à relação na película aos universos do visível e do audível nos filmes.34 “Un film sans le son demeure un film; un film sans image, ou du moins sans cadre visuel de projection, n’en est pas un. Sinon conceptuellement, dans un cas-limite comme le Week-End de Walter Ruttmann, em 1930: ce “film sans images”, comme l’a défini son auteur, constitué d’une montage de sons sur piste optique. Diffusé sur des haut-parleurs, Wochenende n’est rien d’autre qu’une émission de radio ou une ouvre de musique concrète; il ne devient un film que référé à un cades, même vide, de projection.” (Chion, 1990: 122)

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naturais da paisagem. Wochenende foi produzido para a RRG Berlim por Hans Flesch, enquan-

to responsável pela Berlin Radio Hour, que comissariou Ruttmann e Friedrich Bichoff. O interesse de Flesch, principal mentor do som ótico no contexto da rádio alemã, remonta a 1924 e à série de retratos sonoros de cidades iniciada com Hans Bodenstedt, diretor da Rádio Hamburgo. Alfred Braun, pioneiro da rádio alemã, completa esta associação intermedia entre rádio e filme com a introdução do termo filme acústico: com que identificavam uma peça radio-fónica, transferido as técnicas do cinema para a rádio. Esta noção deve-se à partilha de um conjunto de conhecimentos e de práticas de produção, como a conjugação entre material original e argumento, a linguagem de escalas e as diferentes grandezas sonoras assumidas durante a captação ou a organização da narrativa pela montagem[35], a atribuição de durações e a mistura e sobre-posição entre diferentes planos sonoros. Assim, enquanto criadora de imagens sonoras, a rádio tornou-se potenciadora do imaginário individual e coletivo, ao qual premaneceu associada como media acusmático do qual tiraram pro-veito os artistas da radio-art, acustic-art e da sound art.

Fig. 10 - A pauta de Wochenende, sintética no seu grafismo.

Enquanto media sonoro, a película, mas também o fonógrafo e o gra-mofone, permitiam inverter a leitura original das gravações e obter, com dife-rentes graus de fiabilidade, uma escuta amplificada e de velocidades variáveis. László Moholy-Nagy, no seu artigo publicado em 1922 na revista De Stijil, “Produktion.Reprodukrion”, como, mais tarde, em “New Form in Music: Po-tentialities of the Phonograph”, defendia o estudo da linguagem de gravação dos sulcos nos discos de vinil, de modo a transformar os equipamentos fono-gráficos, de reprodutores, em máquinas produtoras de sons, ideia que viria a confirmar uma década mais tarde, em “New Film Experiments”, relativamente às possibilidades de desenho do som na película. De facto, a película possui

35 “E importante esclarecer desde já que o conceito de montagem não introduz nenhuma cate-goria nova, alternativa ao conceito de alegoria; trata-se antes de uma categoria que permite estabelecer com exactidão um determinado aspecto do conceito de alegoria. A montagem pressupõe a fragmenta-cão da realidade e descreve a fase da constituição da obra. Posto que o conceito desempenha um papel, não só nas artes plásticas e na literatura, mas também no cinema, devemos averiguar a que se refere em cada meio concreto.” (Bürger, 1993 [1974]: 122)

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a capacidade de nela se poderem aplicar diretamente técnicas de desenho do som e da imagem, gerando uma auto-referêncialidade visual e sonora motiva-dora do interesse das vanguardas. Na imagem, pintando ou riscando direta-mente sobre a emulsão da película, de modo a que as transparências possam ser lidas pela luz projetada através da janela do projetor. No som, recorrendo às mesmas técnicas de registo mas por leitura fotoelétrica. Novas possibilida-des técnicas e estéticas que levaram Moholy-Nagy, na sua pretensão de alargar as pesquisas sonoras à pintura, a desenvolver uma escrita sonora que permi-tisse criar sons irrepetíveis, ou mesmo inexistentes, mas que mantivessem o princípio fundamental da separação entre som e imagem até ao momento da sua projeção em simultâneo.

Intermedialidades que remetem para uma pluralidade de media e de in-ter-relações espaço-temporais, através das quais se tornava possível criar no-vos dispositivos conceptuais, aumentar a aproximação entre diferentes campos artísticos e acentuar as interações entre artístas e públicos, questões a desen-volver neste estudo.

1.3. John Cage e o movimento Fluxus

Prosseguidora das práticas e das ruturas modernistas, muita da arte do pós-guerra recusa a delimitação dos campos artísticos e procura reformulações que permitem prosseguir uma experimentação interdisciplinar incrementada pela crescente proliferação de novos media. Abordagens protagonizadas, en-tre outros, por John Cage e pelos artistas do grupo Fluxus, cujo contributo foi determinante na alteração de paradigmas na arte contemporânea.

John Cage

Com uma formação musical convencional, John Cage começa por rejeitar a importância atribuída por Arnold Schönberg, de quem foi aluno, à harmonia e à tonalidade, abdicando da estrutura tonal. Mais centrado na valorização dos elementos de percussão da orquestra, aos quais recorreu para dar início à sua estrutura rítmica, Cage reforçou a colocação do ênfase na duração, cuja instrumentação se baseava numa estruturação do tempo organizada de forma

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alternada e divisível entre sons e silêncios. Esta mudança permitiu-lhe cumprir a reivindicação de incorporação dos ruídos nas suas composições musicais.

“The composer (organizer of sound) will be faced not only with the entire field of sound but also with the entire field of time. The ‘frame’ or fraction of a second, following established film technique, will probably be the basic unit in the measurement of time. No rhythm will be beyond the composer’s reach. (…) Percussion music is a contempora-ry transition from keyboard-influenced music to the all-sound music of the future. Any sound is acceptable to the composer of percussion music; he explores the academically forbidden ‘non-musical’ field of sound insofar as is manually possible. Methods of wri-ting percussion music have as their goal the rhythmic structure of a composition.” (Cage,

2001 [1937/1968]: 5)

Também ele influenciado pelas técnicas cinematográficas e indiferente ao passado de desentendimento entre dissonância e consonância, Cage afirmou--se empenhado, à semelhança de Russolo e de tantos outros, na valorização do ruído enquanto elemento sonoro vitalista, opção que o levaria, em 1940, a passar da percussão ao piano preparado (figura 11), inspirado nos experi-mentos pianísticos de Henry Cowell, de quem foi aluno e que elegeu como seu mentor no ensaio de 1959, “History of Experimental Music in the United States”. Instrumento dessacralizador e determinante para Cage, que marcaria muitos artistas e músicos, entre os quais David Tudor, Nam June Paik e Joseph Beuys, o piano preparado consistia no recurso a diversos objetos, entre bor-rachas, parafusos, pregos etc., que, introduzidos por entre as cordas do piano, de modo a interferir na sua produção tímbrica, tornavam qualquer repetição impossível. Com o piano preparado Cage produziu uma espécie de assemblage sonora, no modo com incorporou ao instrumento musical elementos não ori-ginariamente musicais, numa associação matérica experimentada por Robert Rauschenberg[36] nas suas combines dos anos 50.

“Em analogia à obra de Rauschenberg, estas novas composições cageanas – tam-bém elas híbridas para um ouvido tradicional – poderiam eventualmente ser designadas de assemblages sonoras ou até mesmo de combine music. O som representado plastica-mente - enquanto metáfora -, tendia gradualmente a tornar-se num som apresentado,

isto é, enquanto matéria real” (Almeida, 2007: 76)

36 Segundo afirma Bosseur (1992: 73, 82), depois de realizar publicamente uma combine-pain-ting sonorizada por meio de micros de contacto em 1961, Rauschenberg concluiu as suas pesquisa acerca das colagens sonoras com a assemblage Oracle, em 1965, destinadas a entrar em contra-ponto com as colagens visuais.

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Fig. 11 - Cage em seu piano preparado.

A trajetória de Cage, influenciada por compositores como Edgar Varèse ou Cowell, revelou-se consistente desde Imaginary Landscape No. 1 (1939), a primeira de uma série de cinco composições que culminariam em Imagi-nary Landscape No. 5 (1952), onde recorre a dispositivos tão diversos como gira-discos, rádios, gravadores de fita magnética ou osciladores de frequência de áudio; à produção de micro-sons amplificados de arames, marimbas, latas, conchas, campainhas, etc.; e a sons pré-gravados de frequências ou do rugido de um leão. Composições que não são alheias à necessidade de ultrapassar a definição instrumental de séculos passados referida em “The Future of Music: Credo” (1937/1958), onde Cage formaliza a noção de organization of sound[37].

“Every film studio has a librery of ‘sound effects’ recorded on film. With film pho-nography it is now possible to control the amplitude and frequancy of any one of these sounds and to give to it rhythms within or beyond the reach of the imagination. Gi-ven four film phonographs, we can compose and perform a quartet for explosive motor,

37 “Every film studio has a librery of ‘sound effects’ recorded on film. With film phonography it is now possible to control the amplitude and frequancy of any one of these sounds and to give to it rhythms within or beyond the reach of the imagination. Given four film phonographs, we can com-pose and perform a quartet for explosive motor, wind, heartbeat, and landside. TO MAKE MUSIC If this word ‘music’ is sacred and reserved for eighteenth and nineteenth-century instruments, we can substitute a more meaningful term: organization of sound” (Cage, 2001 [1937/1958]: 3)

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wind, heartbeat, and landside. TO MAKE MUSIC If this word ‘music’ is sacred and reserved for eighteenth and nineteenth-century instruments, we can substitute a more meaningful term: organization of sound” (Cage, 2001 [1937/1958]: 3)

Entretanto, o sentido vitalista de Cage ganharia novo sentido depois da experiência de escuta por que passou na câmara anecoica da Universidade de Harvard. Confrontado com o continuum sonoro nele produzido pelo sistema nervoso e pela corrente sanguínea, Cage (2001:11-12) repensa o conceito de silêncio enquanto relação subjetiva som-silêncio, enquanto nova música que passa necessariamente por uma nova escuta de permanente atenção aos sons.

Progressivamente, em resultado da ampliação do seu entendimento pelo Budismo Zen, Cage foi abandonando qualquer pré-determinismo rígido, atri-buindo um papel central à indeterminação, enquanto processo performativo composicional essencial à progressão musical das suas ações. Assim, cada vez mais interessado no potencial de plasticidade dos sons e no seu indetermi-nismo , Cage assume em 4’33’’ (1955) e em 0’00’’ (1962) o silêncio enquanto escuta acústica[38] do espaço e do contexto da interpretação em que todos par-ticipavam, David Tudor ao piano e a assistência. Apenas condicionada na sua duração, esta ação resultou em ready-made sonoro, conceito introduzido por Cage em aproximação a Duchamp e ao seu ready-made assistido. Também os experimentos de Cage acerca do modo como os procedimentos aleatórios e as leis do acaso poderiam influenciar a música encontram antecedentes em Erratum Musical (1913) (figura 12) de Duchamp, interpretada conjuntamente com as suas duas irmãs, composta de três partes vocais e cujo texto resulta da repetição da definição de “imprimer”. Deixando ao acaso a ordem pela qual eram cantadas, as vinte e cinco notas incritas em cartões eram retiradas aleató-riamente do interior de um chapéu e posteriormente anotadas em sequência, mediante escrita convencional numa pauta vulgar. Procedimento de acaso a que os dadaístas[39] atribuíam particular importância, tal como ao sonho ou mesmo à alucinação, enquanto elementos inconscientes e metafísicos estimu-ladores da criação artística e libertadores das vivências.

38 “Robert Ashley indicaba que la música era cualquier acto temporal. Pero también existe un ‘tiempo cero’, para los compositores, que es el tiempo que pasa inadvertido y el tiempo que no se mide. Christian Wolff fue el creador de este concepto de tiempo cero y lo utilizó en sus composiciones junto con el tiempo del reloj. Cage define la música como tiempo pasado en cuanto que el sonido es tiempo hecho audible.” Ariza (2008: 46-47), remete a autoria deste excerto para “Tomkins, Calvin: The Bride and the Bachelors, Nueva York, Penguin Books, 1969, p. 102”.39 “Esta experiência revelou-se tão perturbadora, que é perfeitamente lícito considerá-la a ex-periência central, propriamente dita, do Dada, que distingue Dada de todos os movimentos artísticos anteriores” (Richter, 1993 [1964]: 63)

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Fig. 12 - Erratum Musical, 1913.

Em 1952, no Black Mountain College, Cage organiza[40] ações simultâ-neas, sem hierarquias e de partilha temporal do mesmo espaço. Ações como a de Theater Piece No. 1[41], onde Cage lê Meister Eckhart ao mesmo tempo que Robert Rauschenberg toca velhos discos e David Tudor desfruta do piano preparado. Desenvolvidas sob a influência de Kurt Schwitters e de O Teatro e o seu Duplo de Antonin Artaud, estas Black Mountain piece ou Black Mountain event (Kahn, 2001: 262) antecipam o happening, a que ficaria associado Allan Kaprow enquanto acontecimento temporal único num espaço não reservado à arte[42], depois dos seus primeiros environnements-collages, em 1957, e de 18 Happenings in 6 Parts (1959) (figura 13). Comumente citado como o primeiro happening, 18 Happenings in 6 Parts conjugava palavras pintadas nas paredes com projeções de filmes, diapositivos e intervenções acusticamente dispersas, ao mesmo tempo que Rauschenberg e Jasper Johns se penteavam mutuamen-te. Segundo Alexander Klar (2012: 12-15), à medida que o happening assume um maior grau de improvisação, os events scores, inicialmente criados por

40 “I organized an event that involved the paintings of Bob Rauschenberg, the dancing of Merce Cunningham, films, slides, phonograph records, radios, the poetries of Charles Olson and M. C. Rich-ards recited from the tops of ladders, and the pianism of David Tudor, together with my Juilliard lecture, which ends: ‘A piece of string, a sunset, each acts.’ The audience was seated in the center of all this activity.” (Cage, 2001 [1968]: x)41 Segundo Bosseur (1992: 99), nas “Theater Piece” iniciadas por Cage em 1960, cada executan-te compunha o seu próprio repertório de ações visuais e sonoras, escrevendo vinte nomes e/ou verbos à sua escolha em vinte fichas numeradas e referenciadas na partitura. As ações musicais, poéticas e gráficas resultantes evoluíam independentemente umas das outras.42 “Pour Kaprow, le ‘happening’ est un environnemet qui inclut une dimencion temporelle et vient s’inscrire dans un lieu nom réservé à l’art; il prent généralement le caractère d’un événement unique.” (Bosseur, 1992: 76)

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Brecht enquanto mail art, vão-se assumindo como manuais de instrução per-formativa essenciais às intervenções sonoro-musicais e à composição e uso performativo de objetos. Nesta profusão de ações iniciadas com Motor Vehicle Sundown Event (1960), que acumulava poesia, representação teatral e música instrumental, os events de George Brecht assumiam importância crescente. Processos onde a importância de Duchamp fica mais uma vez mais compro-vada, ao abrir a possibilidade de inclusão ready-made de situações, espaços, sonoridades e objetos do quotidiano, recorrendo a um conceito transversal a Cage e ao grupo Fluxus.

Fig 13 - Allan Kaprow e Robert Whitman na Reuben Gallery, durante a montagem de 18 Happenings in 6 Parts.

O contributo de Cage a esta alteração de paradigmas foi essencial, estimu-lando interações e cisões nas disciplinas artísticas, ao mesmo tempo que abria as fronteiras sonoro-musicais a muitos dos artistas plásticos presentes nas suas aulas de Composição de Música Experimental (1958-1959), na New School for Social Research, entre os quais Dick Higgins, Alison Knowles, Hal Hansen, Ja-ckson Mac Low, George Brecht e Allan Kaprow. A forma não convencional e a liberdade objetual, instrumental e conceptual com que Cage abordou a música nas aulas, combinando escuta, espacialidade e interação com as audiências, contribuiu decisivamente para alterar o modo como estes artistas encaravam o domínio do sonoro, cujo elemento composicional primordial é o tempo. Reveladora do trajeto musical e acústico percorrido, foi a organização de A Program of Advanced Music (1959), que incluía Music of Changes de John Cage, Suit de Christian Wolf, Alice Denham in 48 Seconds de Hal Hansen e Six Episodes de Dick Higgins, os primeiros dois interpretados por David Tudor e os seguintes pelo New York Áudio Visual Group de que faziam parte Higgins

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e Hansen.

Fluxus

Entretanto, o surgimento do movimento Fluxus, fica marcado pelo en-saio/manifesto fundador de George Maciunas, em 1961, ao qual se seguiriam outros quatro, em 1962, 1963, 1965 e 1966, nem sempre reconhecidos[43] pelos restantes membros do grupo, entre os quais se contavam John Cage, Geor-ge Brecht, Joseph Beuys, Allan Kaprow, Dick Higgins, Nam June Paik e Wolf Vostell. Marcadamente não institucional e assumidamente informal na sua or-ganização, com raízes modernistas e de inspiração Neo-Dada reforçadas pela exposição Dada de 1958 em Düsseldorf, o movimento Fluxus questiona as relações entre arte e sociedade, promove a simbiose entre arte e vida, debate a natureza do objeto artístico e estimula a intermedialidade, aglutinando dife-rentes géneros que até então permaneciam separados, muitos deles presentes na formação artística de base dos seus membros. Alison Knowles, Allan Ka-prow, Wolf Vostell e George Brecht vinham da pintura; Robert Watts e Joseph Beuys da escultura; John Cage, Benjamin Patterson, Toshi Ichiyanagi, Yoko Ono, Nam June Paik e Dick Higgins da música; Jackson Mac Low da escrita poética e, entre outros, George Maciunas da arquitetura.

Fluxus integra as noções de indeterminismo, acaso e aceitação dos re-sultados. Experimenta o som, a imagem e o corpo. Assume uma concepção da arte em que a participação/intervenção do próprio artista é essencial, em performances, ações ou happenings. Conjuga diferentes media e derruba bar-reiras entre disciplinas artísticas. Afirma a possibilidade de qualquer um ser artista - todo homem é um artista - pela voz de Joseph Beuys.

Música Fluxus

Presente desde início, o interesse pelo sonoro e pela música, enquan-to música Fluxus, foi estimulado por Cage e dá continuidade ao processo de des-musicalização iniciado desde os anos 50 no contexto das artes plásticas. Próxima às experiências sonoras do New York Áudio Visual Group, ao mini-

43 “In a letter that Dick Higgins wrote to Wolf Vostell in 1982, Higgins described how, in 1962, Maciuna’s manifestos were rejected collectively by Higgins and a group of Fluxus artists at the time, and that group even collectively decided to oppose being associated as a group.” (Maske, 2012: 173)

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malismo de La Monte Young e à música electrónica de Nam June Paik - ambos orientados por Karlheinz Stockhausen no Estúdio de Música Electrónica da Rádio da Alemanha Ocidental (WDR), entre 1958 e 1963 - esse interesse pelo sonoro surge no contexto das transformações introduzidas na música concre-ta[44], electroacústica e eletrónica pelos compositores Pierre Schaeffer, Pierre Henry, Edgar Varèse, Iannis Xenakis e Stockhausen. Inovadoras, estas catego-rias musicais contribuíram para afirmar o espirito Fluxus, muito impulsiona-do pela participação nos festivais Fluxus europeus organizados por Maciunas em 1962, onde era protagonista a música de ação/ protagonizados por ações musicais. Estes festivais incluíam concertos performativos que passavam pela manipulação de objetos e por ações quotidianas, ou pela desconstrução ins-trumental de um piano, como em Piano Activities (1962) de Philip Corner (figura 14). Muitos deles realizados com recurso a partituras anotadas, uma espécie de cartões contendo indicações gráficas e/ou textuais acerca dos de-senvolvimentos do evento, podendo incluir desenhos esquemáticos bastante detalhados ou apenas breves indicações abertas a eventuais interpretações.

Fig. 14 - Piano Activities, 1962, Fluxus Internationale Festpiele Neu-ester Musik, interpretação de George Maciunas, Emmett Williams, Benjamin Patterson, Dick Higgins e Alison Knowles

Princípios de organização e de ação idênticos aos aplicados a eventos Fluxus como o de George Brecht, Driping Music (1959), e o de Nam June Paik, Fluxus Champion Contest (1962), ou ao happening musical de Wolff Vostel, L’

44 A música concreta remete para uma descontextualização dos sons captados ou produzidos tendo como referência à realidade quotidiana. Sons que funcionam em off, segundo o princípio acus-mático introduzido por Pierre Schaeffer e referido por Michel Chion, sobretudo num contexto dis-tinto, o do cinema, produtor de novas associações metafóricas. Remete ainda, para a introdução de sons electrónicos gerados segundo frequências físicas electrónicas sem um referencial concreto, nem mesmo no sentido da música instrumental tradicional, do qual resulta, durante a sua escuta, uma abstracção temporal e espacial simultânea.

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aéroport comme salle de concert, de 1964.

“(...) Fluxus music is still in the tradition of Dada performance, strongly influen-ced by Cage’s concert-hall antics. (nota 15) As Fluxus created its own everyday objects (tickets, toys, furniture, etc.) as well as films, books, prints, poetry, and paintings, it was inevitable that music would be another one of its by-products.” (Licht, 2007: 144)

É pois neste contexto efervescente de finais dos anos cinquenta e iní-cios dos sessenta que Dick Higgins propõe o conceito de intermedia (1965) com que procurou abarcar um conjunto de práticas de fusão entre diferentes media, que se intensificariam a partir dos anos 70, cada vez mais envoltas na crescente e acelerada sofisticação tecnológica dos dispositivos.

1.4. Intermedia

O intermedia remonta aos escritos de Samuel Taylor Coleridge em 1812, onde o termo intermedium é introduzido para defenir trabalhos situados en-tre meios. Revisitado por Dick Higgins enquanto intermedia, o conceito per-mitiu formular a conjugação entre diferentes media defendida por Higgins no seu ensaio de 1965, “Synesthesia and Intersenses: Intermedia”[45]. Divulgado em diversas leituras e debates, este ensaio veio a ser publicado em 1966, na primeira newsletter da editora Something Else Press, de que foi fundador.

Higgins assume o intermedia como uma atitude, uma possibilidade, um processo e uma leitura, nunca como um modelo ou movimento, ao mesmo tempo que realça a naturalidade que dele advém, sobretudo, entre as artes vi-suais e o texto, ou a poesia visual e a sonora. Naturalidade que nos remete para a intermedialidade presente na formulação de MacLuhan de que os media se fazem uns dos outros. Higgins, contrariamente a Clement Greenberg[46], con-dena a opção por um media único e recusa a categorização das práticas artísti-

45 HIGGINS, Dick (1965) – Synesthesia and Intersenses: Intermedia, in, <http://www.ubu.com/papers/higgins_intermedia.html> [consultado a 05/08/2010].46 “(...) definir o lugar de cada arte será, antes de mais, enfatizar a opacidade do seu medium específico, isto é, a fisicalidade que lhe é inerente, porque “é em virtude do seu medium que cada arte é única e estritamente ela própria” [1940:] (32). Em suma, de acordo com o modelo proposto por Greenberg, ao centrarmos as atenções num determinado medium e nas suas dificuldades estaremos a fazer sobressair as qualidades puramente visuais e plásticas que lhe pertencem e, ao mesmo tempo, num jogo circular, a afirmar o seu lugar disciplinar entre as artes.” (Leal, 2009: 340)

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cas consoante o media utilizado. Situando o intermedia enquanto constru-tor de formas de arte híbridas, algures entre a pintura e a poesia, a música e a escultura, a fotografia e a gravura, Higgins manifesta a sua preferência por Duchamp relativamente a Picasso, precisamente por considerar as peças de Duchamp[47] verdadeiramente entre media, entre a escultura e algo mais, so-mething else. Trata-se aqui, refere K. Friedman[48], de reconhecer as criações que atravessavam as fronteiras dos media aceites, e da sua funsão com os media desconsiderados enquanto formas de arte. O recurso aos media situ-ados fora[49] da arte, e a necessidade de permanente interligação entre arte e vida, conceitos herdados do modernismo, prevaleceram, de resto, como princípios essenciais ao intermedia. J. Sage Elwell[50], apesar de considerar qualquer delimitação de conceitos contrária ao espírito intermedia, acres-centa mais dois relevantes: a fusão concetual defendida por Higgins e a ape-tência pela apropriação de novas tecnologias.

“In intermedia, on the other hand, the visual element (painting) is fused con-ceptually with the words. We may have abstract calligraphy, concrete poetry, “visual poetry” (…). Again, the term is not prescriptive; it does not praise itself or present a model for doing either new or great works. It says only that intermedial works exist.

(…) this creation of new media is done by the fusion of old ones; this was very common in the late 1950s and early 1960s, with the formal fusions I have already mentioned. No work was ever good because of its intermediality [1]. The intermedia-lity was merely a part of how a work was and is; recognizing it makes the work easier to classify, so that one can understand the work and its significances.” (Higgins, 1965)

Intermedialidade, de resto, já anteriormente presente no Pavilhão Phi-lips da Exposição de Bruxelas de 1958 (p. 20-21), projeto abrangente de Le Corbusier, Edgar Varèse e Ianis Xanakis onde os espetadores permanecem de pé e mantêm a mobilidade, num cenário de 360º em que experiênciam a

47 “The ready-made or found object, in a sense an intermedium since it was not intended to conform to the pure medium, usually suggests this, and therefore suggests a location in the field between the general area of art media and those of life media. However, at this time, the locations of this sort are relatively unexplored, as compared with media between the arts. I cannot, for ex-ample, name work which has consciously been placed in the intermedium between painting and shoes.” (Higgins, 1984 [1966])48 “(…) works that cross the boundaries of recognized media and often fuse the boundaries of art with media that had not previously been considered art forms.” (Friedman, 2013 [2012]: 395)49 “Because intermedia is by definition an exploration of the new and uncharted, it has never felt bound to a singular tradition that would inhibit the use of media not explicitly recognized as ‘artistic.’” (Elwell)50 ELWELL, J. Sage (2006) – Intermedia: forty years on and beyond, in, http://goliath.ecnext.com/coms2/gi_0199-5799360/Intermedia-forty-years-on-and.html [consultado em 15/05/2014].

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luz, a cor, o ritmo das projeções na cúpula e a sua conjugação com a dinâmica sonora dos quatrocentos altifalantes distribuídos pelo espaço, unidos num po-ema electrónico que antecede e exemplifica a noção de intermedia de Higgins.

Peter Frank[51], por sua vez, reafirma a importância da completa integra-ção disciplinar e a necessidade de indivisibilidade dos seus componentes. Na criação intermedia, não há música ou som retirado a uma escultura que lhe permita permanecer integra, do mesmo modo que não existe obra de arte sem a experiênciação do objeto. Numa obra de poesia sonora, o som é a poesia, a poesia é o som. Tudo o resto é notação e som desorganizado. O intermedia não requer apenas a co-dependência de efeitos, mas a integração completa das disciplinas, ou seja, das suas práticas formais.

“Indeed, intermedia is, if anything, a formal rather than a subjective condition. Intermedia dissolves traditional disciplinary praxis, and only incidentally confounds the sensate response of the audience. The graphic score, for instance, cannot be heard until it is played, but it inheres the tradition of musical notation at the same time as it inheres the praxes of drawing, writing, and/or graphic design; it is thus an intermedium because it manifests visual and musical praxis and infers the production of sound. Concrete poe-try conflates the praxes of formal verbal and visual disciplines – and, of course, can also

function as a score for sonic realization. (Frank, 2005)

No sentido de reforçar o papel da audiência, David Klemm[52] escreveu um ensaio acerca do intermedia e da arte como acontecimento performativo, onde refere o modo como o intermedia explicita o ato interpretativo enquanto qualidade essencial da arte. Normalmente apenas subentendida, essa valoriza-ção surge unicamente através da interação entre os elementos objetivos inte-grantes da peça e a subjetividade do espectador. “In intermedia, the subjective side of the experience is essential and integral to the work of art. Intermedia actualizes this quality as art”, refere Klemm (2005: 70). A consciência do papel do espetador e a interação com a audiência é uma componente essencial ao intermedia e ao fluir da arte, sobretudo no happening, nas ações e na perfor-mance art . Extensível a todo o intermedia, a interação com o público é con-

51 FRANCK, Peter (2005) – The Sound and the Theory - Intermedia as Construct, Intermedia as Category in, <http://goliath.ecnext.com/coms2/gi_0199-5799360/Intermedia-forty-years-on-and.html> [consultado a 05/05/2014].52 “Klemm, D. (2005) ‘Intermedial Being’, pp. 67–77 in H. Breder (ed.) Intermedia: Enacting the Liminal. Schriftenreihe des Instituts fur Kunst an der Universita Dortmund. Abteilung 3. Dortmund: University of Dortmund Press.” (Friedman, 2013: 390)

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siderada como parte integrante da conceção criativa do artista. Assim, para além do espaço e dos dispositivos media nele contidos, também a audiência ajuda a contextualizar a criação e a introduzir, quando necessário, fatores de interatividade e de intermedialidade.

Fluir da arte a que faz referência Hanna Higgins na sua interpretação do diagrama de Higgins (figura 15), intitulado Intermedia Chart, organizado segundo um modelo de intercessões visuais em círculos concêntricos e sobre-postos que parecem expandir-se e contrair-se em relação ao intermedia.

“It is an open framework that invites play. Its bubbles hover in space as opposed to being historically framed in the linear and specialized art/anti-art framework of the

typical chronologies of avant-garde and modern art.” (Higgins[53])

Fig. 15 - Diagrama Intermedia Chat

John Cage, mais do que ninguém, catalisou esta mudança com as suas experiências na música, na composição e na performance, assumindo-se como progenitor da arte conceptual e da intermedia, apesar de preferir situar o seu trabalho entre categorias. Numa entrevista a Bosseur (1992: 117), quan-do questionado acerca do uso por Morton Feldman da expressão entre cate-gorias para definir a ambiguidade de certas atividades artísticas, Cage prefere, ao uso do termo intermedia, a nomeação da escrita pela escrita ou da música pela música. No entanto, o entendimento de Freldman[54] e também de Alan Licht, reafirma a perspetivação de definições mais centradas no conceito de

53 HIGGINS, Hannah - “appendix by Hannah Higgins; Intermedia”, in, HIGGINS, Dick (1965) – Synesthesia and Intersenses: Intermedia, in, <http://www.ubu.com/papers/higgins_intermedia.html> [consultado a 05/08/2010].54 “Both these terms - Space, Time - have come to be used in music and the visual arts as well as in mathematics, literature, philosophy and science. [...] I prefer to think of my work as: between categories. Between Time and Space. Between painting and music. Between the music’s construction, and its surface.” (Feldman, 2000 [1969]: 89)

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entre categorias[55].

“Between categories is a defining characteristic of sound art, its creators histo-rically coming to the form from different disciplines and often continuing to work in music and/or different media. But in the last decade [1990-2007] sound art’s identity between categories has intensified, particularly as the term itself has spread. (…) Sound art, like its godfather experimental music, is indeed between categories, perhaps becau-se its effect on the listener is between categories. It’s not emotional nor is it necessarily intellectual. Music speaks to a listener as a human being, with all of the complexity that entails, but sound art, unless it’s employing speech, speaks to the listener as a living de-nizen of the planet, reacting to sound and environment as any animal would (with all the complexity that entails). (…) By taking sound not as a distraction or currency but as something elemental, it can potentially point to the kind of cosmic consciousness that so much art aspires to.” (Licht, 2007: 210/218)

Enquanto manifestação intermedia, o som foi-se afirmando como ele-mento primordial[56] de interligação entre o matérico e o imaterial e como um dos principais media presentes nas práticas artísticas contemporâneas. O ca-ráter interdisciplinar assumido por muitos artistas que recorreram ao som, independentemente dos seus media de origem, levou à sua autonomização en-quanto sound art, na tentativa de agrupar as criações de base sonora.

A sound art surge no contexto das artes visuais dos anos 80, em galerias, museus e em outros espaços da arte e da não arte, como os espaços públicos, sendo os seus autores geralmente originários das artes plásticas e da músi-ca, sobretudo da experimental, à qual permaneceu desde sempre ligada. Em muitos espaços próprios à arte, o som surge como uma novidade, agora sob o conceito de sonoro e em estreita relação com a imagem objetual da escultu-ra, do corpo performativo ou do espaço-tempo de uma instalação. Passa pelo desenvolvimento de relacionamentos som-imagem-objeto que passavam pela inserção do som na materialidade do visual e pela incorporação de dinâmicas de som-movimento associadas ao objetual.

“As sound is increasingly prevalent in intermedia installations, it suggests that

55 Segundo Licht (2007: 210), Ryoji Ikeda, Carsten Nicolai e Richard Chartier são exemplos des-se entre categorias de que falamos, ao produzirem sons eletrónicos com computadores e equipamen-tos analógicos, misturando-os com elementos visuais, sobretudo pinturas e esculturas, em instalações, embalagens de CD ou sessões VJ.56 “É imprescindível compreender que o som apesar de poder estar presente numa criação, po-derá não ser o elemento fundamental e catalisador do trabalho artístico. Quando esse facto acontece, devemos perceber que provavelmente não estamos perante uma obra sonora, mas sim perante uma obra de cariz transdisciplinar e intermedia.” (Almeida, 2007: 17)

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sound art is simply another art movement to be signified. Helen Mirra’s 2002 installation at the Whitney Museum, Declining Interval Lands, consisted (…) the sound component, suggesting the outdoors, is a reference to sound art, just as the blankets are a reference to Minimalist sculpture, rather than an example of sound art itself. Sound is a contribu-tor to an environment (a symbolized atrium, really) rather than the environment itself.” (Licht, 2007: 216)

O caráter intermedio da sound art revela-se, pois, no modo como o som se fundiu conceptualmente com outros media, abarcando todas as áreas disci-plinares e introduzindo em muitas delas uma componente vincadamente so-nora, em alguns casos presente mas ainda não evidenciada, como o da pintura e o da escultura anteriores aos anos 50. No entanto, assumidamente presente na poesia fonética ou sonora, na escultura sonora, na paisagem sonora, na instalação sonora, na rádio-arte/arte rádio, na ação sonora, que abarca o ha-ppening e a performance, e na áudio-performance, entre outras modalidades em que este caráter é mais ou menos assumido. Interdisciplinar por natureza, a sound art alargou o seu âmbito a práticas artísticas anteriores e posteriores à sua origem conceptual, assumindo-se, na sua ambivalência, dimensão e es-pecificidade/diversidade, enquanto acoustic art, audio art, tape art, sonic art, etc..

Sound Art

O termo sound art remonta ao surgimento da Sound Art Foundation de William Hellermann, em 1982, inicialmente mais associada à música experi-mental e à new music, e à exposição Sound/Art promovida por Hellermann em 1983, na qual participaram, para além dele próprio, Vito Acconci, Terry Fox, Pauline Oliveros, Richard Lerman, Les Levine e Carolee Schneeman, en-tre outros maioritariamente provenientes de campos artísticos interdisciplina-res, como o da performance, da escultura, do vídeo ou da experimentação mu-sical. No catálogo da exposição, o historiador Don Goddard identifica alguns dos pressupostos associados ao termo sound art:

“It may be that sound art adheres to curator Hellermann’s perception that ‘hearing is another form of seeing’, that sound has meaning only when its connection with an image is understood… The conjunction of sound and image insists on the engagement of the viewer, forcing participation in real space and concrete, responsive thought rather

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than illusionary space and thought.”[57]

No entanto, segundo afirma Dan Lander[58] na sua introdução, a Sound by Artists (1990), apesar da frequente actividade em torno da exploração da expressividade sónica e do recurso ao termo sound art, não existe um movi-mento apelidado enquanto tal. Contrariamente às restantes artes, não é aqui possível distinguir um grupo de artistas cujo trabalho remeta clara e exclusi-vamente para esta forma de arte, existindo antes uma associação (intermedial com o som) entre o som e outros media, sejam eles estáticos ou de base tempo-ral (time-based). Max Neuhaus, autor de Drive In Music (1967-68), trabalho que é consensualmente[59] considerado como inaugural do sonoro contempo-râneo (figura 16), corrobora desta opinião. Em Sound Art?,[60] sendo bastante crítico relativamente à possibilidade da sua existência, Neuhaus põe em causa a sua constituição enquanto nova forma de arte: “The first question, perhaps, is why we think we need a new name for these things which we already have very good names for. (…) Much of what has been called ‘Sound Art’ has not much to do with either sound or art.”

Fig. 16 - Plano de configuração das antenas (linhas coloridas) em Drive In Music (1967).

William Furlong, teórico da audio art, reforça em Sound in Recent Art

57 “Hellermann, William, and Don Goddard. 1983. Catalogue for “Sound/Art” at The Sculpture Center, New York City, May 1–30, 1983 and BACA/DCC Gallery June 1–30, 1983.” (Boros, 2012: 67)58 Dan Lander, compositor e artista sonoro canadiense, editor de Sound by Artists, um dos primeiros livros a recolher reflexões de artistas oriundos de diferentes áreas – críticos, escritores, com-positores, vídeo artistas, artistas visuais, do áudio, da rádio, etc. – acerca da importância da linguagem sonora.59 Segundo José Manuel Costa (2012: 23), esta atribuição é devida a uma anterior utilização circunstancial dos elementos sonoros, em que o acento não estava situado no auditivo, e onde não havia ainda uma conceção sonora abrangente como a que veio a caracterizar a sound art enquanto tal, de que o happening de Black Mountain é, apesar de tudo, e segundo este autor, um primeiro exemplo.Como projecto público, Drive In Music inaugura aquela que virá a ser uma das principais focalizações sonoras: a de uma arte sonora relacionada com o espaço arquitectónico, urbano e natural.60 NEUHAUS, Max (2000) - “Sound Art?”, Nova Iorque, <http://www.max-neuhaus.info/bibli-ography/> [consultado em 28/1/2010].

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(1994) essa dificuldade, para não dizer esse impedimento, em identificar a sound art enquanto categoria artística equiparável à de outros movimentos artísticos.

“Sound as never become a distinct or discrete area of art practice such as other manifestations and activities were to became in the 1960s and 1970s. Although it has been used consistently by artists throughout this century, there as never been an iden-tifiable group working exclusively in sound, so one is not confronted with an area of art practice labelled ‘sound art’ in the same way as one might be with categories such as Pop art, Minimal art, land art, body art, video art and so on. Another factor is the diversity of functions and roles that sound has occupied within various artist’s work.” (Furlong, 1994: 128)

Apesar dessa indefinição, em meados dos anos noventa tem início uma afirmação[61] pública consistente do sonoro e da sound art, concretizada em ex-posições temáticas, algumas delas retrospetivas ou reinterpretativas da própria arte segundo um prisma essencialmente sonoro, na organização de festivais e de residências, e na formação de galerias, algumas das quais exclusivamente dedicadas à sound art. Contributos aparentemente mais situados na preponde-rância do media, mas que estabelecem paralelismos transversais importantes à desconstrução do próprio intermedia. Nesse sentido, perante a abrangência disciplinar, a contaminação territorial e a intermedialidade predominante no trabalho da maior parte dos artistas intermedia - muitos deles ligados à pop art, mimimal art, conceptual art, etc. - a existência de conceptualidades tutela-res como estas ajudam a definir a forma de arte e o contexto das suas criações. Em alternativa, existe a possibilidade dessa classificação se dar em função do media mais preponderante, como acontece na sound art ou na video art.

Variam, no entanto, as abordagem a essa preponderância, em alguns ca-sos exclusividade, do som. Nos anos sessenta, a audio art propunha um uso conceptual do som, entretanto propiciado pelo desenvolvimento de tecnolo-

61 Exposições abrangentes da relação som-espaço-objeto-imagem e da música experimental da segunda metade do século XX: Murs du Son (Villa Arson, Francia, 1995), Klangkunst (Akademie der Künste. Berlin, 1996), Sonic Boom (Hayward Gallery, Londres, 2000), Sound Art-Sound as Media (Intercommunication Center, Tóquio, 2000), Sonic Process: A New Geography of Sounds (Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2002), Sons et Lumières (Centre Georges Pompidou, Paris, 2004) ou Bitstreams (Whitney Museum of American Art, Nova Iorque, 2001), especialmente dedicada à interligação entre arte digital e arte eletrónica, ou, mais recentemente, Soundings - A Contemporary Score (MOMA, 2013). Festivais como o Sonambiente (1996-2006) de Berlim ou os de Barcelona, Sonar-Festival Internacional de Música Avanzada y New Media Art (1994-2015) e Zeppelin. Festival d’Art Sonor (CCCB, 1998-2008). Galerias como a Cordier & Ekstrom Gallery de Nova Iorque ou a Galeria Rachel Haferkamp (Colónia), algumas delas especializadas, como a Singhur, sound gallery in parochial (Berlim, 1996-2015).

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gias portáteis de gravação e reprodução em suportes fixos, como a cassete de fita magnética lançada pela Phillips em 1963. Versátil e de pequenas dimen-sões, compacta, acessível e de simples funcionamento, a cassete permitiu a difusão áudio de conteúdos, como os publicados pela Audio Arts entre 1973 e 1996, contendo entrevistas de Furlong, co-fundador com Barry Barker, a diversos artistas: Andy Warhol, Joseph Beuys, Gilbert & George, Yoko Ono, R. Buckminster Fuller, Hermann Nitsch, Nam June Paik, etc..

Em outro sentido foi o dramaturgo Klaus Schöning nos anos setenta, recorrendo ao termo arte acústica, enquanto arte interdisciplinar associada à rádio[62], que a situa no universo dos sons e ruídos, das falas, dos fonemas e da música, produzidos natural ou artificialmente. Para Schöning, a música assu-me particular importância na definição da sound art, se consideramos as ex-perimentações da música electroacústica e da concreta realizadas em estúdios acústicos como o do Groupe de Recherche de Musique Concrète (GRMC), em Paris, ou o Estúdio de Música Electrónica da Rádio da Alemanha Ocidental (WDR), em Colónia, de que foi diretor e onde era possível conjugar sinesté-sicamente performances multi-dimensionais com instrumentos, microfones, vídeo, misturadores de som e voz.

Douglas Khan introduz entretanto a noção de som nas artes que serve de subtítulo ao seu livro de 1999, Noise Water Meat-A history of sound in the arts, onde não menciona a sound art, que considera como um tópico menor, tendo em conta que os artistas já antes dos anos oitenta usavam o som sem que a designação se tornasse necessária.

“I am not particularly fond of the term sound art. I prefer the more generic sound in arts. (...) Sound in the arts is a huge topic especially when one keeps in mind the syn-thetic nature of arts, i.e., the various intersecting social, cultural, and environmental re-alities wittingly and unwittingly embodied in any one of the innumerable factors that go into producing, experiencing, and understanding a particular work..” (Khan: 2005, 333)

A sound art, umas vezes mais assumida outras menos, tem vindo entre-tanto a modificar-se, associada ao perfil do artista sonoro e já não necessaria-mente ao do artista plástico ou visual e ao do músico. Também a reflexão em

62 A rádio como organismo vivo. A rádio é som e torna-se rádio-arte á medida que procede ao seu re-ordenamento estético, distinguindo-se da música. Os futuristas são os seus promotores iniciais. Em La Radia (1933), Filipo Tomasso Marinetti e Pino Masnata defendiam: “La Radia shall be: (…) 2 A new art that begins where theatre cinema and narrative end 3 The intensification of space No longer visible and framable the stage becomes universal and cosmic” (Kahn, 1992, 265-268).

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torno do conceito de sound art e de sonoro na arte se intensificou, protagoni-zada por autores que são simultaneamente artistas, como Alain Licht, Brandon Labelle, Sandra Naumann, José Iges ou Salomé Voegelin. Cabe agora analisar no proximo capítulo o sentido tomado pela expansão do sonoro.

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2. A construção intermedia do sonoro

Como vimos no ponto anterior (1.4), o intermedia resulta de um pro-cesso natural de relacionamento e de fusão conceptual entre os media, e da intermedialidade que permite cruzar diferentes campos disciplinares. Situado entre meios, o intermedia produz combinações situadas em zonas limite e de transição, que se prefiguram num processo construtivo permanente e desen-cadeador de novos conceitos e modalidades nas práticas artísticas. Enquanto sistema de criação, o intermedia resulta e produz interações entre o espaço--tempo contextual, a experiênciação do espetador e a visualização e audição das criações. O som, pelas sua características de profusão e imaterialidade, participa de modo expandido nesse processo, contribuindo para alterar pa-radigmas na arte contemporânea, tanto na relação entre as artes temporais, como na funcionalidade e no determinismo dos media, geralmente situados em dois mundos paralelos: o concreto e tridimencional do objetual, e o difuso e imaterial do digital e do online das redes digitais onde público e privado se diluem.

Na arte do século XX, após as primeiras tentativas de deslocação dos pro-cessos perceptivos do seu campo natural para outros meios e suportes, como o computacional, houve a necessidade (Sardo, 2006: 2-11), sentida pelos artistas visuais, de centrar a sua atividade no espaço emocional do sonoro, prescindin-do do habitual cruzamento com a imagem.

Quando falamos de som, por contraditório que possa parecer, falamos necessariamente de matéria transmissora de energia e do que nela ressoa e se movimenta através do ar, onde permanece imperceptível à visão, a não ser quando age sobre elementos físicos situados na sua trajetória. Como forma de

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energia, o som age sobre as membranas dos altifalantes, e através delas sobre outros materiais de baixa densidade, como os líquidos, potenciando através deles o seu efeito estético. Assim, apesar da sua imaterialidade, o som carece da matéria para existir sob a forma de ressonância, da mesma forma que ne-cessita dos espaços para se reverberar, refletindo as ondas sonoras nas suas superfícies, em múltiplas amplitudes e frequências que variam consoante a dimensão, a forma, a organização e as características matéricas desses espaços. Privada e íntima, a ressonância atua ao nível de qualquer corpo, percorrendo--o e interferindo com a sua estabilidade, configuração, progressividade e até emotividade. A quem puder ou souber escutar, transmite o testemunho das suas vibrações físicas e os trajetos interiores resultantes de ações próprias ou das sobre ele induzidas. Pública, a reverberação precisa de condicionantes que limitem ou potenciem a sua propagação e as suas características físicas tonais e de duração. Aliás, todo o som carece de um espaço para existir e da sua acús-tica para alcançar plasticidades próprias, de modo a atingir um caráter limite e introdutor de novas possibilidades. Nesses espaços onde a acústica é traba-lhada com recurso a alterações das características físicas e de organização dos elementos e matérias aí presentes, ou a meios eletrónicos e digitais de mani-pulação das propriedades de cada som, virtualizando a sua espacialização com recurso a sistemas multicanal e pluripontuais, como os utilizados em algumas instalações e esculturas sonoras ou na música eletroacústica.

2.1. O espaço enquanto construtor de auralidades

Ao espaço está associada uma leitura antropológica e sociológica do lu-gar e da sua auralidade enquanto soundscape ou paisagem sonora, conceito proposto por Murray Schafer[63] (1994 [1977]: 7-8), para quem o soundscape é um acontecimento sónico de amplitude variável entre a composição musical, o programa de rádio e o acontecimento acústico, cuja leitura pode implicar o recurso à literatura, à mitologia, à antropologia, à história ou a arquivos so-noros. Também Emily Ann Thompson (2001: 117-118) se debruça sobre este conceito, definindo-o como um auditório ou uma paisagem aural, que é si-

63 Sobre o assunto, Schafer viria a publicar, The New Soundscape (1969), The Music of the En-vironment (1973) e The Tuning of the World (1977), o seu mais importante contributo à compreensão e definição do conceito de soundscape.

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multaneamente um entorno físico e uma forma de o perceber, um mundo e uma construção cultural que lhe dá sentido. Duas leituras complementares de soundscape, relativamente à sua existência e às implicações associadas à sua origem e permanente construção sónica. Para Juan-Gil López (2008: 27), os sons do soundscape funcionam como elementos de coesão e de diferenciação de culturas que possuem as suas próprias acústicas e redes de significados, aju-dando a construir uma identidade aural onde memória e presente se fundem, conformando uma paisagem sonora ambivalente entre o que Schafer denomi-nou de lo-fi e de hi-fi.

“The hi-fi soundscape is one in which discrete sounds can be heard clearly because of the low ambient noise level. (…) The country is generally more hi-fi than the city; ni-ght than day; ancient times more than modern… sounds overlap less frequently… hi-fi soundscapes allows the listener to hear farther into the distance just as the countryside exercises long-rage viewing.”

“In a lo-fi soundscape individual acoustic signals are obscured in a overdense po-pulation of sounds. The peculiar sound… is masked by broad-band noise. Perspective is lost. (…) there is now distance; there is only presence”. (Schafer, 1994 [1977]: 43)

O termo soundscape estende ao som, o conceito visual geográfico e terri-torial de landscape, o desenvolvimento da paisagem na pintura (pelos pintores flamengos do Renascimento) e o sentido e profundidade da paisagem musical, tornada o principal género musical do século XIX. Ambas, pintura e música, apreciadas em sítios não-naturais, como a galeria de arte ou a sala de concer-tos, procuravam obter a mais absoluta expressividade na imitação da natureza, perante a mudança entretanto verificada na paisagem pelo crescimento das cidades. Sonoramente mais denso e pleno de sons industriais e mecânicos, este crescimento fez-se acompanhar pelo da orquestra sinfónica e pela introdução de novos elementos de percussão ruidistas, capazes de realizar ataques rápidos e de enorme vitalidade rítmica, em oposição[64] à potência sonora da fábrica e à multiplicidade e diversidade tonal cosmopolita.

Este entendimento musical da auralidade da paisagem e da sua escuta remonta a Luigi Russolo e ao seu manifesto futurista, com o qual marca um ponto de viragem na história da percepção aural, mas também a Edgar Varèse

64 A referência introduzida por Schafer (1994 [1977]: 108) por intermédio de Lewis Mumford (”Lewis Mumford, technics and Civilisation, New York, 1934, pp. 202-203.”), procura acentuar o pa-ralelismo entre fábrica e orquestra por via da potência: “…with the increase in the number of instru-ments, the division of labor, within the orquestra correspond to the factory: the division of process itself became noticeable in the new newer symphonies. (…) in the constitution of the orchestra, was the ideal pattern of the new society”.

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e a John Cage, para quem a música começou por corresponder a uma orga-nização de sons, até se transformar na “corporalização da inteligência que há no som” definida por Hoëne Wronsky[65]. Cage introduz ainda o seu entendi-mento do silêncio enquanto energia acústica aural de que deu provas nas suas ações-performance de escuta e interação com o som envolvente, enquanto ato de musicalidade emanante de que também participavam os ouvintes.

O interesse gerado pela auralidade das paisagens sonoras permitiu novas formas de interação e de conhecimento assentes na conjugação entre ciência e arte, nas noções de globalidade e em princípios de ecologia. Neste sentido, foram criados diversos projetos interdisciplinares como o World Soundsca-pe Project de Murray Schafer, iniciado em meados dos anos sessenta na Si-mon Fraser University, do qual faziam parte Bruce Davis, Peter Huse, Howard Broomfield e Barry Truax (figura 17), autor de Handbook for Acoustic Ecology (1978), e ao qual estiveram ligados sobretudo compositores. Esta possibilidade de proceder a múltiplas leituras cartográficas[66] do sonoro, como as realizadas em The Vancouver Soundscape (1973/1996), no Canadá, ou em Five Village Soundscapes (1975), na Europa, contribuíram para identificar e compreender a multiplicidade de sentidos e de linguagens presentes em muitos projetos so-noros globais da atualidade.

Fig. 17 - Da esquerda para a direita, R. M. Schafer, Bruce Davis, Peter Huse, Barry Truax e Howard

Projetos como o de Bonn, Bonn Hoeren, iniciado em 2010, no qual vêm

65 “Hoëne Wronsky (1778-1853), also known as Joseph Marie Wronsky, was a Polish philoso-pher and mathematician, known for his system of Messianism. Camille Durutte (1803- 1881), in his Technie Harmonique (1876), a treatise on “musical mathematics,” quoted extensively from the writ-ings of Wronsky.”, in, VARÈSE, Edgard (1962) - “The Electronic Medium (From a lecture given at Yale University, 1962)”, The Liberation of Sound, nota 3.66 “Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise. Esta última vincula profundamente o inconsciente à memória; é uma concepção memorial, comemorati-va ou monumental, que incide sobre pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los, autentificá-los. Desse ponto de vista, a superposição das camadas é neces-sariamente atravessada por uma flecha que vai de cima para baixo, e trata-se sempre de afundar-se. Os mapas, ao contrário, se sobrepõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um remaneja-mento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos.” (Deleuze, 1993 [1997]: 75)

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participando diversos artistas que procedem a registos e à implementação de novas instalações sonoras na cidade (http://www.bonnhoeren.de); Porto So-noro da associação cultural Sonoscopia, desenvolvido no Porto entre 2012 e 2014, que produziu recolhas em torno do património sonoro da cidade, iden-tificando e catalogando o som envolvente, a fonética, a fonologia e alguns mar-cos sonoros e elementos musicais localizados (www.portosonoro.pt); Sounds of Europe, plataforma de field recording aberta às práticas artísticas, que abar-ca diversos paises europeus, entre os quais Portugal, mantido por organizações locais de artistas desde 2011 (http://www.soundsofeurope.eu); ou Soundcities, que funciona à escala global, iniciado em 1995, publicado online em 2000 e transformado em arquivo sonoro desde 2004, cujos ficheiros permanecem dis-poníveis para manipulação. (http://www.soundcities.com/index.php).

Todas elas leituras das especificidades do lugar, aqui entendido enquanto espaço em permanente construção pelos que o habitam e percorrem, fazendo desse espaço o lugar praticado[67] defenido por Michel de Certeau, também no sentido em que nele se constrõem narrativas que o atravessam e organizam, assim como aos não-lugares descritos por Marc Augé:

“Se um lugar se pode definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário, nem como relacional e nem como histó-rico definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a sobremodernidade é produtora de não-lugares, quer dizer, de espaços que não são eles próprios lugares antro-pológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam nela uma área circunscrita e específica. (…) Os não-lugares são, todavia, a medida da época; medida quantificável e que poderíamos tomar adicionando, ao preço de algumas conversões entre superfície, volume e distância, as vias aéreas, ferroviárias, das auto--estradas e os habitáculos móveis ditos «meios de transporte» (aviões, comboios, auto-carros), os aeroportos, as gares e as estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques de recreio, e as grandes superfícies da distribuição, a meada complexa, enfim, das redes de cabos ou sem fios que mobilizam o espaço extra-terrestre em benefício de uma comunicação tão estranha que muitas vezes mais não faz do que pôr o indivíduo em contacto com uma outra imagem de si próprio.” (Augé, 2002 [1992]: 69-70)

67 “Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção que delimitará um campo. Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual distribuem elementos nas relações de coexistência. (...)Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabili-dade. Existe espaço sempre que se tomam em conta valores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. (...) Em suma, o espaço é o lugar praticado. Assim a rua geométri-camente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura éo o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos - um escrito.” (Certeau,1998 [1980]: 201-202).

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Lugares e não-lugares que procuram situar-se e redefinir-se, mutáveis, segundo Marta Traquino (2010: 33-34/57), através de dinâmicas culturais glo-bais de desterritorialização, de dispersão temporal e de concentração espacial, também eles percorridos por espetadores confrontados com leituras específi-cas, no sentido site-specific da arte. Entendido como categoria fundamental, para a autora, e independentemente das diferentes estratégias e meios utiliza-dos pelos artistas, o site-specific vem-se estabelecendo ao longo das últimas quatro décadas segundo dois eixos distintos: um orientado por abordagens ao espaço - mais geométrico e abstrato, que não necessariamente um lugar - o outro mais orientado por abordagens ao lugar - que emerge do espaço pela sua vivência e memória inscrita, o que implica inscrevê-lo na atualidade.

Nesse sentido, Christina Kubitch explora a auralidade site specific dos campos eletromagnéticos, que amplifica e torna audíveis em Electrical Walks (2004) (figura 18), no que Kubitch define como Electromagnetic Anthropolo-gy. Baseado numa paleta de ruídos, timbres e volumes, a percepção da reali-dade do ouvinte altera-se entre o que vê e o que escuta à medida que percorre os sítios e se aproxima dos objetos ou dos dispositivos, em transições e enca-deamentos sonoros mediados pelo espaço.

Fig. 18 - Electrical Walks durante o Festival de Música Contemporânea de Huddersfield, em 2007.

Kubitch também tem vindo a experimentar a possibilidade de uma di-mensão site-specific associada ao espaço nas suas instalações e a introdução de novas auralidades na leitura visual e sensitiva do lugar, mediadas pela leitura

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sócio-cultural e estética diversificada de cada ouvinte[68].

The choice of a place, the research before starting, the artistic and technical proce-dures and, of course, the results are inquired and reflected. The role of the public which can take part of the experience in an active way by its individual movement and listening approach is discussed as well. Site-specific sound installations might create awareness for the relationship between sound and space, between ourselves and our environment and our physical présence while listening. This kind of relation of space and sound can open

up and enlarge our experience of our surroundings.” (Kubitch, 2014: 291)

Determinada pela escolha do lugar, a intervenção site-specific assume por vezes a forma de instalação, enquanto possibilidade de recombinação do espaço-tempo. Explorada por muitos artistas como dispositivo, a instalação ressurge em força nos anos noventa, mediante processos artísticos relacionais e contextuais que trabalham o lugar e procuram um envolvimento total com o espetador. Na instalação site-specific, é essencial ter a noção dos elemen-tos que compõe o espaço, dos resultados das recolhas e da forma como elas são apresentadas, depois de sujeitas a processos de montagem narrativa e de manipulação dos seus componentes. Segundo Claire Bishop (2008 [2005]: 6), na instalação existe uma unidade entre objeto e espaço que difere dos media tradicionais - escultura, pintura, fotografia, vídeo - na consciência da presença e no diálogo com o espetador. Mais do que um espetador distante, a instalação pressupõe uma incorporação de tacto, cheiro e escuta, e não apenas da visão. A presença do espetador, a consciência da sua existência, é a chave da instalação.

Foram diversos os artistas que, marcados pela importância da escuta e pelo desejo de intervir em auralidades pré-existentes, desenvolveram projetos localizados de modo site specific em espaços naturais e rurais ou arquitectó-nicos e urbanos.

Nesse sentido, em Resoundings (1999), Bill Fontana refere-se a uma au-ralidade site-specific de grau variável, mas marcadamente identitária na rela-ção entre o que vemos e o que escutamos, assumindo um processo consciente de transformação e desconstrução do visual pelo aural na sua instalação sono-ra, Kirribilli Wharf (1976) (figura 19). Interessado na musicalidade e no sen-tido composicional dos sons ambiente, estende a sua escuta às sonoridades e ao contexto visual proporcionado pelo espaço, numa equivalência à escultura

68 Variação na escuta de ouvinte para ouvinte, mas também de geração para geração, com alte-rações de velocidade na escala temporal: algo misterioso, afirma Alvin Lucier.

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e à arquitetura[69]. Fontana[70] encontra, de resto, sentido próprio para o aural na procura de equivalências entre o sonoro e a composição musical. Nesta instalação, recorre a oito microfones para captar em oito pistas o som do mar através dos orifícios das rochas, que mais tarde reproduz no espaço da galeria, substituindo a geo-acústica natural pela re-colocação do material captado em pontos de escuta organizados enquanto escuta renovada genuinamente escul-tural.

Fig. 19 - Kirribilli Wharf (1976).

Projeto ao qual regressou doze anos depois, contrapondo ao sentido fragmentado do registo da primeira instalação a continuidade de transmissão dos microfones diretamente ligados à instalação sonora da galeria, experimen-tando de forma mais consistente a separação entre visual e aural pretendida na primeira versão.

“As these acoustic overlays create the illusion of permanence, they start to interact

with the temporal aspects of the visual space. This will suspend the known identity of the

site by animating it with evocations of past identities playing on the acoustic memory of

the site, or by deconstructing the visual identity of the site by infusing it with a totally

new acoustic identity that is strong enough to compete with its visual identity.” (Fontana,

69 “(…) my artistic mission consciously became the transformation and deconstruction of the visual with the aural. This led me to not only become interested in the musicality and compositional wholeness of environmental sound, so that the act of listening and its extension through sound recor-ding equaled music; but that the visual space that was sounding equaled sculpture and architecture”. 70 “What really began to interest me was not so much the music that I could write, but the states of mind I would experience when I felt musical enough to compose. In those moments, when I be-came musical, all the sounds around me also became musical. (...) I began to regard recording a sound as an act in mental intensity equal to writing music (...) But who would believe me? Composing by listening?”, in, FONTANA, Bill (1999) – Resoundings, <http://www.resoundings.org/Pages/Resound-ings.html> [consultado em 24/03/2013].

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1999)

Natural e ocasional, o aural tende à composição[71] e à alteração dos va-lores de clareza, reverberação e contexto que o remetem à música enquanto construtora de novas auralidades, idealmente perceptíveis mediante a orga-nização dos sons em múltiplos pontos de escuta, sobretudo na música con-creta e na eletroacústica. Distinguir o aural do musical pressupõe, no entanto, caracterizar territórios simultaneamente convergentes e divergentes, entre a auralidade da escuta da diversidade de paisagens em permanente mutação e a musicalidade associada à escrita, ao instrumental e ao maquinismo. Porém, contrariamente à música concreta, que no conceito inicial de Pierre Schaeffer alude a um apagar definitivo da natureza dos próprios sons para produzir ob-jetos sonoros estilizados, os processos criativos de composição de paisagens sonoras, não só não quebram os vínculos como reforçam a reflexão individual sobre os hábitos de escuta.

“What acousmatic music and soundscape composition share is the primacy of lis-tening, the ability to extract information at different simultaneous levels, and a recog-nition of the ability of sound to shape space and time, including the creation of sound spaces through diffusion practices. Where they diverge is more of a matter of emphasis regarding the role of context. Electroacoustic music recognizes the abstracted aspects of its language while acknowledging its movement towards some point of absolute abstrac-tness, whereas soundscape composition begins in complete contextual immersion and moves towards the abstracted middle ground. In terms of the balance between inner and outer complexity, phonography resides largely in outer complexity, abstract composition in inner complexity, with soundscape composition and some of the more abstracted for-

ms of acousmatic music based on the interplay between the two.” (Truax, 2008)

Assim, o soundscape, relativamente à composição musical situa-se a meio termo entre a imersividade abstrata do eletroacústico e a relação de pro-ximidade ao realismo dos registos fonográficos. Aspetos muito presentes na criação artística, onde a simultaneidade entre a procura de abstração e o en-contro vitalista com o quotidiano gerou, em meados do século XX, o gosto atual pelo abstrato através do ruidismo sonoro e visual de base tecnológica.

71 “(…) artists coming from the electroacoustic music community join with those coming from other acoustic-based backgrounds, such as field recordists, sound artists, and those involved with acoustic design in a variety of contexts, around a common interest in what I have called ‘soundscape composition’ (Truax 1992a, 1996, 2002).”, in, TRUAX, Barry (2008) – Soundscape Composition as Global Music: Electroacoustic Music as Soundscape, in, Organised Sound, 13(2), 2008, <http://www.sfu.ca/%7Etruax/OS7.html> [consultado a 24/03/2013].

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Na música como nas artes, de um modo geral todos trabalham o espaço, inter-vindo na sua auralidade e tirando proveito das suas características acústicas[72]: alterando a sua materialidade e escala, adicionando ou subtraindo elementos sonoros e tirando aproveito da acústica própria a cada espaço.

Essencial ao sonoro, o espaço possui uma tonalidade própria, o seu room tone, imprescindível a qualquer incorporação do som e marcadamente iden-titário. Gerado pela reverberação dos sons, produz uma acústica própria e ca-racterística, consoante a escala, textura, materialidade e configuração do espa-ço. De utilização diversa, a acústica é tida em consideração por muitos artistas no desenvolvimento de projetos que exploram a mediação do espaço enquanto filtro sonoro. Inspiradora, esta técnica resulta do intercalar entre sucessivas gravações e as suas reproduções, registadas em alternância e filtradas pelas ca-racterísticas acústicas do espaço, num processo expansivo de camadas sonoras sobrepostas. Este método foi introduzido por Alvin Lucier, em I am Sitting in a Room[73](1969).

Jacob Kirkegaard, assumidamente influenciado por Lucier, usou-o em AION (2006), uma projeção audiovisual única em quatro segmentos corres-pondentes a quatro espaços desertos de Chernobil (uma piscina, uma sala de concertos, um ginásio e uma igreja), cuja atmosfera sónica é trabalhada pon-tualmente, uma a uma no próprio espaço - gravando, re-bobinando, voltando a ler e re-gravando novamente - até ganhar, em massa e volume amplificado, um certo espessamento. Presente numa série de conferências a que assisti em Londres, o Supersonix 2012[74], Kirkegaard referiu, a propósito deste seu proje-to, a importância dos sons que não são o que parecem, do silêncio, e do nosso

72 Schafer (115) chama a atenção para a diferença entre espaço aural e espaço acústico: “Aural space is merely a notational convention and should not be confused with acoustic space, which is an expression of the profile of a sound over the landscape. We know that aural space is limited on three sides by thresholds of the audible and on one by threshold of bearable”.73 “I am sitting in a room, different from the one you are in now. I am recording the sound of my speaking voice.”74 O programa de conferências em Londres versava o som nas suas vertentes de corpo, espaço, voz, escuta, ruído e história. Apresentaram comunicações, para além de Jacob Kirkegaard, os artistas, Bernhard Leitner, Salomé Voegelin, Alexander Kolkowski, Liminar (Frances Crow e David Prior), Andreas Oldorp, Anna Friz e Sam Auinger, assim como os académicos, Barry Blesser e Linda Ruth Salter, Jonathan Sterne (editor do The Sound Studies Reader), Holger Schultz, Sha Xin Wei ou Julian Klein. Tiveram ainda lugar concertos eletroacústicas de Kaffe Matthews e Mira Calix.http://www.exhibitionroad.com/supersonix

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próprio ruído, interior[75] e iner-ear, em que à época trabalhava.

Fig. 20 - AION (2006) de Jacob Kirkegaard.

Também as esculturas sonoras tiram proveito dessa acústica dos espaços na difusão reverberante dos seus sons, sobretudo dos ressonantes. Plurisenso-riaais e sinestésicas, produz estímulos sonoros que rodeiam o espectador, e vi-suais que o ajudam a situá-la, gerando o que Javier Maderuelo[76] define como um descentramento da obra e uma dessimulação dos seus contornos, situação que re-centra a atenção do espectador, não na obra, mas no espaço onde esta se situa. Ariza (2008: 121) aborda a complexidade de relacionamentos entre a matéria visível e invisível da escultura sonora[77], situando a imaterialidade do

75 No mesmo sentido, mas com outra atitude conceptual, Henri Chopin encostou um microfo-ne ao estômago e disse, “a poesia sou eu”, frente a uma plateia de jovens artistas. Ato que influenciou as suas composições de música concreta realizados em 1949, onde o som do seu corpo integra o material sonoro, tal como os intestinos a Música Intestinal (1966) de Juan Hidalgo ou as vibrações musculares e orgânicas e as cavidades corporais o de Padith Pan Nath, Corey Fischer e John Grayson. Alvin Lucier, por sua vez, realiza uma série de experiências centradas na transformação das ondas electrocefalogra-ficas em sons, concretizadas com a primeira apresentação de Music for solo performance, histórica dentro do género, em 1965. Eléctrodos situados no couro cabeludo e conectados a amplificadores, tornavam audíveis as ondas alfa produzidas por Lucier e ressonantes nos instrumentos de percussão (diversos instrumentos metálicos e pequenos tambores) colocados frente aos altifalantes, com que produzia música.76 Ariza (2008: 120) cita: “Maderuelo, Javier: “Interferencias en el espacio escultórico”, Madrid. Espacio de Interferencias, Circulo de Bellas Artes, 1990, p. 28”.77 Na diferenciação das esculturas sonoras, Ariza (2008: 122) propõe três categorias diferentes: a das esculturas sonoras latentes, a das ativas e a das interativas. As primeiras, de forte potencial de produção de sons, precisam de ser fisicamente manipuladas por intervenção direta humana ou dos agentes naturais, sendo o seu resultado sonoro variável e imprevisível. A segunda, a das esculturas emissoras de sons, que repetem ciclicamente as mesmas frequências, mediante dispositivos mecânicos e eléctricos autónomos intrínsecos à própria obra, criando um efeito percussivo pré-determinado pela natureza dos materiais utilizados. A terceira, onde o som responde a estímulos exteriores de movi-mento intencionalmente produzido, por exemplo, pelo público, geralmente identificado através de células fotoelétricas.

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som, através da qual o artista se liberta da fisicalidade escultórica, não só como um referente poético, mas também como um instrumento necessário em cer-tas obras que integram equipamentos sonoros, cuja estética e morfologia por vezes supera o mero intrumental e os transforma em objetos artísticos.

A questão da espacialização surge nos anos 50 com a música concreta de Pierre Schaeffer. Fundamental à arte e à música, levou Schaeffer a sugerir a Ja-cques Poullin a criação de um aparelho de bobines de indução que movimen-tasse os sons no espaço, o pupitre d’espace (Licht, 2007: 43), mecanismo pró-ximo ao idealizado por Varèse em 1936: ”a sense of sound-projection in space by means of the emission of sound in any part or in many parts of the hall, as may be required by the score“[78]. Também Karlheinz Stockhausen, composi-tor associado à música espacial ou Raummusik, recorre a diferentes pontos de escuta, estejam eles fixos ou em movimento, agrupados ou desagrupados, relativamente aos instrumentistas, mas também ao público e à sua deslocação. Stockhausen compõe em 1956 Gesang der Jungling, peça de música concreta que incorpora canto, eletrónica e cinco altifalantes espalhados pelo auditório, seguida da peça eletrónica Kontakte (1960), onde lida com o movimento do som ao longo de vários altifalantes. Dois anos antes, Varèse ter concretizado o seu Poème Electronique[79] num sistema de 400 altifalantes, que transmitia e movimentava entre si o som no espaço do Pavilhão Phillips de Le Courbou-sier. Tornava-se evidente a importância acústica do espaço e as potencialida-des da espacialização criadas pela dinâmica sonora multi-canal na criação de diferentes pontos de escuta. Potencialidades a que estão atentos os artistas, sobretudo os que têm uma relação essencial com o espaço ou a ele recorrem na espacialização do sonoro necessária à construção das suas auralidades.

Nesse sentido, Bernhard Leitner declarou em 1986 o som como matéria da arquitetura. Leitner assume bem as componentes de ressonância e de espacia-lização multipontual, às quais deu um importante contributo em Sound:Space

78 “New Instruments and New Music (From a lecture given at Mary Austin House, Santa Fe, 1936)”, in, VARÈSE, Edgard (1936) - The Liberation of Sound.79 “Poéme ÉIectronique. It is the musical part of a spectacle of sound and light, presented dur-ing the Brussels Exposition in the pavilion designed for the Philips Corporation of Holland by Le Corbusier, who was also the author of the visual part. It consisted of moving colored lights, images projected on the walls of the pavilion, and music. The music was distributed by 425 loudspeakers; there were twenty amplifier combinations. It was recorded on a three-track magnetic tape that could be varied in intensity and quality. The loudspeakers were mounted in groups and in what is called ‘sound routes’ to achieve various effects such as that of the music running around the pavilion, as well as coming from different directions, reverberations, etc. For the first time I heard my music literally projected into space.” “Spatial Music (From a lecture given at Sarah Lawrence College, 1959)”, in, VARÈSE, Edgard (1959) - The Liberation of Sound.

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(1978), publicação onde aborda em catorze pontos os princípios de organi-zação do som nas suas esculturas sonoras. Inicialmente apenas interessado em criar linhas sonoras, Leitner encontrou no som modulado e organizado em linha uma correspondência, mediante a organização dos altifalantes em linha e com diferentes intensidades, recorrendo a tecnologias de controle in-dependente de cada um deles. A partir de sons simples que se movimentavam geometricamente, dá-se assim a transformação do espaço numa sequência de espaços, de sensações no tempo e de combinações entre espaços aurais. Ser-pentinta (2004) é disso demostrativa. Nos seus trabalhos a ressonância está sempre presente. Em Soundfield (Ton-Feld, 1995) coloca as colunas sob o peso de lages de pedra, obtendo diferentes visualizações e diferentes sonoridades, dependendo do seu tamanho, forma e características matéricas, não sendo in-diferente ao resultado final o tipo de som transmitido, neste caso o de uma guitarra-baixo. Também em Tuba-Architecture (Tuba-Architektur, 1999) se dá essa experimentação, desta vez em chapas industriais de aço, organizadas em paineis suspensos em paralelo, aos quais o magnetismo dos altifalantes se fixa e transmite pulsões ressonantes (figura 21). Na conferência de Londres, referiu uma vibração que funciona a 75/80Hz, de frequências inaudíveis, mas que se podem sentir no corpo como uma ressonância interior.

Fig. 21 - Tuba-Architecture (1999) de Bernhard Leitner.

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O que ouvimos, referiu, é também projetado pelo interior do nosso cor-po, que é precisamente o que acontece em Sound Chair (Ton-Liege, 1986), que experimentei em Karlsruhe/ZKM, na exposição Sound Art-Sound as a Medium of Art. Aqui, a postura do participante em contacto com a cadeira e os altifalantes nela acoplados, resulta no essencial desta experiência, a de vi-sualização do participante, como em todas as de Leitner de ligação entre som, corpo e espaço.

2.2. O espetador participante: ressonâncias

Desde os anos cinquenta que se abrem caminhos à expressão artística, que, influenciada pelas ciências sociais, passa a priveligiar o outro e o con-texto social, redefinindo a relação da arte com a sociedade, o papel do artista e a aproximação à audiência. Na atualidade, a arte questiona o que ouvimos, o modo como o fazemos e o que concebemos a partir dos sons. Que sentido lhes damos ou, inversamente, como os entendemos e como nos situamos re-lativamente a eles: à sua/nossa sensorialidade, aos seus conteúdos, durações e referênciais.

Neste processo, o espetador, simultaneamente ouvinte e observador, experiência a arte nas suas componentes sonoras, visuais, corporais (táteis, olfativas, termicas, etc.), mecânicas, eletrónicas, etc., num processo em que funciona muitas vezes, para não dizer sempre, como principal intermediário entre a criação e o artista, ou mesmo entre as diferente componentes interme-diais do projeto, com as quais interage e entre as quais estabelece ligações. Na componente sonora, o papel do ouvinte passa necessariamente pela escuta, mas também por relações de visibilidade e de ressonância que define e perce-ciona através do seu corpo como recetáculo sonoro. O corpo como habitáculo e mecanismo biológico ao qual permanecemos circunscritos até se dar a sua falência como dispositivo de intermediação com o real. Em si um dispositivo e um meio, o corpo configura um sistema, também ele intermedia na fusão dos seus componentes, onde são trabalhadas as perceções e as emoções, o dis-cernimento e a compreensão das situações e dos conceitos, tendo por base permissas físicas, culturais, antropológicas e etnológicas.

Fenómeno essencial ao sonoro, a escuta resulta de ações naturais e huma-nas, e do modo como elas se repercutem espacial e acusticamente sob a forma

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de campos sonoros[80]. Enraizada no espaço, natural ou virtual, enquanto lugar reverberante possuidor de características acústicas e de auralidade próprias, a escuta vê-se mediada por dispositivos corporais e auditivos fisiologicamen-te distintos entre si, tanto na escuta direta[81] pelo ouvinte, como na de cariz mais técnico ou tecnológico, com recurso a equipamentos analógicos e digi-tais essenciais ao processo de captação e reprodução dos sons. Determinante para a escuta, o espaço condiciona a propagação dos sons, ao mesmo tempo que permite estabelecer correspondências entre o audível e o visível, entre a imaterialidade do audível e a materialidade do visível, contextualizando a sua origem. A visão possibilita uma leitura pragmática e compreensível do espaço e dos objectos, fazendo com que respondamos melhor à sua informação. O conhecimento da sua distância e estabilidade resulta numa comunicação ob-jetiva e facilmente memorizável. A audição, por sua vez, permite ouvir os sons que se propagam pelo espaço de forma dispersa, cujo entendimento resulta necessário a uma escuta que permanece dependente de fatores físicos, psíqui-cos, culturais, políticos, etc, inerentes à interpretação subjetiva do ouvinte. As-sim, a leitura do sonoro passa a estar determinada por fatores de experiência e vivência sociocultural que passam pela criação e identificação de identidades.

Salomé Voegelin (2010: 3) aborda a escuta e o entendimento que pressu-põe aceitar e trabalhar o sentido a priori atribuído pelo ouvinte, ideológica e esteticamente pré-condicionado, independentemente da produção de sentidos empregue na criação sónica ou do modo como estes influenciam a perceção do assunto e do objeto.

”The task is to suspend, as much as possible, ideas of genre, category, purpose and art historical context, to achieve a hearing that is the material heard, now, contingently and individually. This suspension does not mean a disregard for the artistic context or in-tention, nor is it frivolous and lazy. Rather it means appreciating the artistic context and intention through the practice of listening rather than as a description and limitation of hearing.” (Voegelin, 2010: 3)

A suspensão proposta por Voegelin de pressupostos identitários e ideo-

80 Existem campos sonoros diretos ou reverberados, consoante as ondas sonoras estão mais ou menos condicionadas pelo espaço e pelas suas superfícies, com maior ou menor grau de reflexão ou de absorção. Entre o campo sonoro e o campo visual existe uma diferença de 360º para 180º graus na capacidade percetiva.81 Direta, caso não se verifique qualquer intermediação externa perturbadora da correta e na-tural perceção sonora tida pelo ouvinte. Schaeffer recorreu ao conceito de escuta direta em oposição ao de escuta acusmática. Chion (1990: 63-64) opta antes pela de escuta visualizada, por considerar o termo direta propenso a ambiguidades.

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lógico é difícil ou até pouco recomendável de alcançar, pois poderia resultar em sentido contrário ao da reatividade expectável ou pretendida pelo artista. A perceção deverá surgir como a interpretação de quem sabe ouvir o som pro-duzido e é capaz de o reinventar através da escuta do material sensorial, mais do que pelo reconhecimento do seu contexto histórico e contemporâneo. As-sim, através da expectativa de uma realidade apriorística, tal escuta produzirá o contexto artístico necessário a uma perceção inovadora.[82]

Em outro sentido, o da participação do ouvinte na dinâmica de escuta, Voegelin refere, citando Certeau, o papel do ouvinte enquanto produtor dos sons gerados pelo movimento dos seus passos e parte da sonoridade da cidade por ele escutada e para a qual contribui enquanto lugar. Deste modo, o espa-ço situa a escuta participada pelo corpo do ouvinte, também ele produtor de micro-sons, e alberga a imaterialidade sonora do objeto e os ecos performati-vos do artista: os do seu corpo e voz, ao vivo ou intermediada por dispositivos.

“Conceptualmente, el cuerpo de convierte, de ese modo, en el primero dispositivo con el que cuenta el artista para elaborar y desarrollar esculturas sonoras al ser, el proprio cuerpo, el instrumento generador de sonidos. El lenguage, el fonetismo, se convierte en una primera expresión de esa sonoridad escultórica que representa el cuerpo.” (Ariza, 2008: 123)

Prosseguindo uma leitura expandida da escultura, também o corpo pos-sui o caráter objetual necessário ao desempenho sonoro inicialmente proposto pelo poeta Sinclair Beiles durante a leitura do seu Manifesto Magnético, antes de assumir o papel de homem magnético em “L’Impossible, un homme dans l’espace” (1960) de Takis[83]. Nas componentes corpóreas, assume destaque o movimento induzido ou cinético do objeto, presente nas esculturas sonoras, designação adotada nos anos 50 do século XX pelo movimento de arte ci-nética, enquanto produtoras de ressonâncias de que também participam os espetadores, muitas vezes num corpo a corpo com os mecanismos de criação, como acontece em Le Cyclop (1969-1994) de Jean Tinguely, escultura no in-terior da qual circula o público em interação com os diversos elementos que a compõem (figura 22).

82 Chion (1998: 28-29) lembra que um som nunca tem apenas uma fonte, mas duas, três ou mais fontes. O som do riscar de uma folha resulta da caneta e do papel, mas também da ação de es-crever e de nós próprios que escrevemos, e assim sucessivamente. Se gravarmos um som, ele resulta também da gravação e da reprodução do gravador, do altifalante, da fita magnética de registo, etc.83 Takis (Panayiotis Vassilakis), entre 1962 e 1965, produziu as suas primeiras esculturas elec-tromagnéticas de denso campo de vibração do som e de profunda ressonância física, em diálogo com os limites do imperceptível e do inaudível.

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Fig 22 - Le Cyclop (1969-1994) de Jean Tinguely

Componentes visuais e sonoras que geralmente coexistem, quase sempre simultâneas e indissociáveis, mesmo quando pretendemos que assim não seja. Apercebi-me melhor disso numa conversa com Andreas Oldörp, em Londres, quando ele me fez perceber a impossibilidade da minha pretenção inicial nes-ta investigação, de encontrar formas de separar visão e audição, anulando as imagens, qualquer imagem, relativamente à escuta, num desejo inicial de afas-tamento.

Entretanto, como nos ajuda a perceber Voegelin (2010: 5-13), a ligação entre quem escuta e aquilo que é escutado produz uma inventiva relação recí-proca que desafia ambas as noções de objectividade e de subjectividade[84]. A escuta produz atividade e interatividade, inventa e solicita ao ouvinte a cum-plicidade e o compromisso. Emancipados na escuta, passamos a inventar e a fantasiar o visual.

“Listening, in this sense, is an aesthetic activity that challenges the philosophical tradition of the West, which, according to film theorist Christian Metz, is based on a hie-rarchy between the senses which positions sound in the attributal location, sublimated

to the visual and its linguistic structure.”(Voegelin, 2010: 13)

Assim, e a propósito do que foi dito antes, faz sentido recordar o conceito introduzido por Pierre Schaeffer (2002 [1966]: 270-272) relativamente ao tra-tamento das qualidades e das formas específicas do som (verbal, instrumental, etc.), a considerar independentemente da sua causa ou sentido, enquanto ob-

84 ”This conception challenges both notions of objectivity and of subjectivity, and reconsiders the possibility and place of meaning, which situates the re-evaluation of all three at the centre of a philosophy of sound art.” (Voegelin, 2010: 5)

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jeto de observação. A noção da dificuldade individual de cada sujeito produzir um reconhe-

cimento unânime dos sons, em parte, devido à ambiguidade das palavras cor-rentes e à necessidade de não confundir a escuta com estados de alma, gera uma subjetividade que levou Schaeffer a procurar objetividade na partilha das perceções. É pois no ambito desta subjetividade nascida de uma intersubjetivi-dade que surge a escuta reduzida definida por Schaeffer. No entanto, o inven-tário descritivo de um som não se pode contentar apenas com a sua apreensão, sendo necessário fixar esses sons a um suporte que permita a repetição a sua escuta e a atribuição do estatuto de objetos reais.

Associada à escuta reduzida, surge uma outra noção, a de escuta acus-mática, mais uma vez de Schaeffer (2002 [1966]: 91-98) e aplicada à música[85], definida como aquela que, de modo geral, proíbe simbolicamente qualquer relação com o que é visível, palpável e mensurável. Nesta perspetiva de im-possibilidade, a escuta acusmática passa pois a permitir modificar e chamar a atenção para as características que a visão simultânea esconde, revelando aqui um enorme potencial de criatividade.

“L’écoute réduite et la situation acousmatique ont partie liée, mais d’une manière plus ambiguë que Pierre Schaeffer, à qui nous devons d’avoir pose cês deux notions, ne lê laissait entendre.

Celui-ci, en effet, soulignait combien la situation d’écoute acousmatique, définie plus loin comme celle ou l’on entend le son sans voir sá cause, peut modifíer notre écoute et attirer notre attention sur des caracteres sonores que la vision simultanée des causes nous masque, parce que celle-ci renforce la perception de certains éléments du son et en occulte d’autres. L’acousmatique permet vraiment de révéler le son dans toutes sés dimensions.” (Chion, 1990: 30-31)

Com a introdução do conceito de escuta acusmática, a relação entre som e imagem torna-se assunto de debate. As dúvidas que produz estimulam o sentido imagético gerado pela acusmaticidade do sonoro, de que participam a rádio, o telefone e as gravações em geral, vozes a-corporais referidas por Licht (2007: 35), que remetem para o primeiro impacto produzido pela invisibilida-de das gravações e pela transmissão da rádio e do telefone. A-corporalidade que inclui o cinema sonorizado, onde a disjunção entre som e imagem permi-

85 “Oubliant délibérément toute référence à dês causes instrumentales ou à dês significations musicales préexistantes, nous cherchons alors à nous consacrer entièrement et exclusivement à l’écoute, à surprendre ainsi lês cheminements instinctifs qui mènent du pur ‘sonore’ au pur ‘musical’. Telle est la suggestion de l’acousmatique : nier 1’instrument et lê conditionnement culturel, mettre face à nous lê sonore et son ‘possible’ musical.” (Schaeffer, 2002 [1966]: 98)

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tiu o acaso e o irrepetível no acompanhamento fonográfico, musical e inter-pretativo das vozes.

2. 3. Visão e audição

No interior das artes visuais, as aquisições mais significativas foram a absorção da fotografia, associada aos protocolos de inteligibilidade da pintura, e o surgimento do vídeo e das suas relações com o cinema. A deslocação do vídeo para o suporte do corpo do artista, para o espaço urbano e para a dispo-sição projetual da arquitetura, favorecido pela chegada do DVD e do projetor vídeo nos anos noventa, proporcionou-lhe escala e novas formas abertas de projeção em instalação, onde o ecrã ou os seus múltiplos introduzem um novo dispositivo de espaço-tempo na escuridão e no isolamento das galerias e dos museus.

Sendo o vídeo um media temporal, essa temporalidade é indissociável da base tecnológica que gera os seus varrimentos, ou da progressão e duração dos seus conteúdos. Situado no contexto de um dispositivo, é-lhe reconhecida a necessidade de uma autonomia resultante da ocupação do espaço e da nature-za objetual do seu modo de apresentação. Por outro lado, numa época em que a autonomização do espectador é um aspecto essencial, as vídeo installation permitem o movimento espacial do espetador e colocam-no em situação de confronto, tanto com a imagem, como com as suas próprias opções. Na ge-neralidade das instalações, são os próprios espectadores quem decide como experienciar o fluxo de imagens e sons, relativamente ao ponto de vista e de escuta a adotar, ao posicionamento e à permanência no espaço, e ao momento e ao modo saída. Apesar disso, o lugar do espetador não permanece estável, frente ao desenrolar de múltiplas imagens e sons, e na procura de alcançar um lugar transitório de imersão na criação. No seu dispositivo, onde, contraria-mente à imagem, o som continua a precisar de um posicionamento central que proporcione uma boa escuta.

O vídeo começou por ser um media híbrido da imagem, e portanto inter-media, assumido sobretudo pela sua arte do ruído, num contexto de finais dos anos sessenta, na mesma altura em que o expanded cinema alargou horizontes e estratégias de incursão intermedia. Recorrendo à performance, a projeções múltiplas e à dissecação das realidades do cinema, o expanded cinema refletiu

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sobre a estrutura do filme e desconstruiu os seus elementos formais e compo-sicionais, numa permanente manipulado e segmentação do tempo.

Para muitos artistas, o interesse pelo vídeo resultava da natureza plástica da imagem, o que os levou, sobretudo nas instalações, a uma menor integração do som, muitas vezes devido à frequente exploração do vídeo em tempo real, de modo a resultar numa continuidade e numa aproximação mais imediata à realidade através do direto e com o recurso ao feedback. Iniciado nos anos se-tenta por Bruce Nauman (Live/Taped Vídeo Corridor , 1970) (figura 23), entre outros, o sistema de feedback em directo desafiava o sentido de orientação do espetador, acentuando nele a sensação de desamparo físico confrontando-o com a sua própria imagem. Imagem que remete para a ideia de vigilância[86], como estratégia de poder e visão panóptica do espaço, geradora de um proces-so de autoconsciência da perda de controle.

Fig. 23 - Live/Taped Vídeo Corridor (1970) de Bruce Nauman.

Também o loop surge aqui como uma possibilidade de expansão da tem-poralidade através da repetição da mesma narrativa, geralmente de mais curta duração, tanto no vídeo como no expanded cinema, mas nem sempre de du-ração idêntica, como em Win, Place or Show (1998), de Stan Douglas, onde alterações mínimas introduzem níveis reflexivos adicionais.

Por outro lado, a representação forçada do real pressupõe a necessidade de manipular a temporalidade das imagens e dos sons, com imagens paradas, lentas, aceleradas ou de sons arrastados. É o caso da instalação de Thierry

86 Questões de vigilância - «vídeo can be left just running or triggered by sound or movement» - usadas por Bruce Nauman em “Mapping the studio I (“Fat chance John Cage” (2002) e em “Mapping the studio II with color shiff, flip, flop, flip, flop, εr , flip, flop (Fat chance John Cage)” (2001), onde filma, na sua ausência, os acontecimentos no seu estúdio. (questões...p. 98, no final do parágrafo).

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Kuntzel, L’eau (2003) (figura 24), onde o espetadores intervêm diretamente sobre o tempo e o movimento da representação, com avanços e recuos e alte-rações de velocidade, tanto na imagem como do som, que permanecem sín-cronos. No contexto atual, assiste-se a algum abandono dos espaços isolados e escuros, e a procura da integração dos materiais, dos contexto e das configu-ração dos espaços.

Fig. 24 - Instalação de Tierry Kuntzel, L’eau (2003)

Nas práticas contemporâneas, o vídeo introduz a noção de áudio-visual, impulsionando simultaneamente as questões sonoras deixadas em aberto pelo cinema experimental, geralmente mais limitado por dificuldades técnicas e fi-nanceiras de incorporação do som à película. Poder-se-ia dizer que as caracte-rísticas do próprio som - fluido, difuso, difícil de aprisionar e apenas limitado na intensidade e nas condições impostas pelo lugar de audição - dificultaram esta aproximação.

A imagem, delimitada ao observável, oferece ao olhar um ponto de fixa-ção tranquilizante, enquanto o som se expande ao espaço envolvente e persiste num distanciamento físico relativamente ao olhado. Contrariamente à imagem (Voegelin, 2010: 12), o som nega a estabilidade através da força da experiência sensorial e resulta da dinâmica natural das coisas, tornando-se num objeto percetual instável, fluído e efémero. Assim, o som desafia e expande a forma como vemos e como participamos na produção do mundo visual, estimulando a fantasia. Quando submisso, o som torna-se descritivo e serve as imagens, os seus objetos e o seu posicionamento. Quando crítico, gera a emancipação da escuta e passa a exigir ser algo mais do que um fantasma do visual.

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3. Contributos...

Fig. 25 - Pátio interior do CHCF, próximo à enfermaria das mulheres.

O objetivo deste capítulo, é o de apresentar o trabalho prático desen-volvido no âmbito desta investigação. Abordar a produção fílmica de Antero (2011), a sonora dos múltiplos soundscape registados, a videográfica de film.frame (2013), e a de um conjunto abrangente de instalações que conduziram progressivamente a duas intervenções site-specific no Panóptico do Centro Hospitalar Conde de Ferreira (CHCF), em 2014, importantes pela escala assu-mida e pelo seu reforçado caráter intermedia.

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Situado numa zona de transição entre a parte curricular deste programa doutoral e o início desta investigação, Antero é emblemático a vários níveis. Resulta de um processo assumido de plastidade da imagem, através da pelícu-la circunstancialmente deixada fora de prazo, e da procura de autonomia no relacionamento som-imagem. Nesse sentido, foi estabelecido um dispositivo concetual que passou por uma clara separação de processos e de componentes técnicas de registo. Foram estabelecidos diferentes dias para cada suporte, dois para o registo áudio, que proporcionaram o conhecimento e a cumplicidade necessárias à película e à sua curta duração, completados por um terceiro dia de registo em super 8mm. Mais tarde, a estas filmagens somaram-se outras da paisagem em vídeo digital sincrono. Autónomos, som e imagem passaram a permitir novas leituras dominadas por narrativas cruzadas ou paralelas entre ambos, assincronismos, descontinuidades contextuais, contrastes e alternân-cias rítmicas, sincronismo diegético e silêncios.

Em 2012, Antero (figura 26) foi selecionado para as seções de Cinema Emergente e Cinema Nacional do IndieLisboa, esteve presente no Festival des Cinémas Différents de Paris e recebeu o prémio Format Court OVNI atribuído no Festival du court métrage de Namur, na Bélgica.

Fig. 26 - Fotograma de Antero (2011).

Marcado por multiplas descobertas, 2012 começou por ser um ano de ex-ploração da amplitude sonora do soundscape urbano de cidades tão diferentes como Istambul, Lisboa, Veneza, Londres, Karlsruhe, Paris e do próprio Porto, mas também os naturais e rurais dos rios Paiva e Douro ou de Trás-os-Montes. Distinta em cada lugar representativo de contextos culturais e sociais próprios e diversos, esta exploração do soundscape teve um início entusiasmante e mis-terioso em Istambul (figura 27), de descoberta da cultura turca, transitória entre o Ocidente e o Oriente. Também a estreia do gravador de áudio digital Zoom H4n de microfones em configuração estéreo X/Y, que permite uma fil-

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tragem panorâmica potenciadora dos sons e do seu movimento, contribuiu para o impacto destas descobertas, ao até aí nunca por mim experiênciadas, essenciais a este processo de aproximação vitalista à paisagem. Assim, a den-sidade e as dinâmicas acústicas geradas pelas vozes e pelo movimento dos transeuntes ao final da tarde revelaram-se fascinantes, tal como o ressoar do cântico das mesquitas por toda a cidade. Vivenciava todo um novo mundo amplificado de acontecimentos e acasos que se dirigiam, fixavam ou afastavam do ponto de captação e escuta por mim definido, muitas vezes também eu em movimento, enquanto estabelecia trajetos e mapeava lugares. Tornava-se necessário compreender os mistérios do som, as suas trajetórias e maleabilida-des, os seus reflexos e analogias.

Fig. 27 - Captação do soundscape de Istambul.

Uníssona, esta abordagem sonora apenas se viria a alterar em dois mo-mentos de registo vídeo: o do vaguear do mar no estreito de Bósforo (figura 28) e o do movimento citadino, no passeio e na rua, enquadrado pelo fachada envidraçada de um Kebab. Tratou-se do primeiro registo video efetuado no contexto deste estudo, único até 2013, devido à opção inicial em não recorrer a este media. Apesar da minha formação de base ser em cinema, houve a ne-cessidade de desvendar as potencialidades artísticas do som, em si e noutros contextos intermedia, como o objetual.

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Fig. 28 - Vídeograma do mar no estreito de Bósfofo.

Em sentido contrário ao do soundscape urbano, as experiências de ru-ralidade pautaram-se por sonoridades mais minuciosas, recortadas na pro-fundidade dos sons e na amplitude rítmica dos seus intervalos. Diferentes au-ralidades e diferentes ações sónicas que progridiam para a intermedialidade através do media da fotografia, em registos simultaneamente sonoros e visuais. A registos fotográficos (figura 29) que foram obtidos com recurso a uma câ-mara pinhole cartonada P-Sharan SQ-35 e a película 35mm, mais uma vez fora de validade, gerados não como ilustração, mas como complemento cúmplice à leitura temporal e espacialmente adjacente a essas realidades. Este dispositivo, sem automatismos mecanizados, gerido por algum acaso e por imperfeições técnicas próprias, no modo como desfasa o foco, sobrepõe imagens ou quebra os limites indefinidos do quadro, revela-se de grande plasticidade[87], próximo à organicidade da Natureza e à metamorfose dos seus elementos.

Fig. 29 - Registo fotográfico em Gimonde, Bragança.

87 A mesmo presente em dois dos meus filmes - “Coração Supliciado” (2010) e “Antero” (2011) - ambos rodados em Super 8mm e com película do mesmo lote (Kodak Ektacrome 50D) já fora de pra-zo. Finalizado no âmbito deste doutoramento, “Antero” (doc.exp.-cor-18’) foi selecionado, em 2012, para o IndieLisboa, para as seções de Cinema Emergente e de Cinema Nacional, e para o Festival ... de Namur, onde recebeu o prémio “Format Court OVNI”. Nesse mesmo ano, foi ainda aceite a concurso no Festival des Cinèma Different de Paris.

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Organicidade explorada, sobretudo, ao nível dos micro-sons e da micro--narratividade, na Oficina de Verão organizada pela associação Binaural de Nodar, em junho de 2012, importante momento formativo e de experimenta-ção dos microfones de contacto e dos hidrofones. Onde as captações progre-diram para experimentações realizadas com o propósito de produzir instala-ções sonoras com origem em contextos específicos, como o rural da Serra da Gralheira, em Matéria Sonora (2012), ou o psiquiátrico do CHCF, em A (des)ordem do discurso (2012), posteriormente recontextualizadas nos espaços ex-positivos da Cozinha e da Torre, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).

Em 2012, procedeu-se ainda à experimentação do som enquanto fe-nómemo físico, nas suas componentes matéricas e de energia, recorrendo a diferentes técnicas, suportes e dispositivos. Simultânea à pesquisa teórica, a experimentação em oficina tornou-se essencial à compreensão dos fatores de produção e de manipulação do som. Nesse sentido, a vontade de experimentar as características físicas de resonância e ruidismo levou à construção e des-construção de diversos dispositivos, também eles indutores de novas corres-pondências conceptuais.

Tendo por base o manual de Nicolas Collins, The Art of Hardware Ha-cking (2009 [2006]), o desenvolvimento da pesquisa passou pelo recurso a ferramentas oficinais, como um ferro de soldar, alicates, fita isolante ou um descarnador de fio elétrico, e por dispositivos pré-configurados, como bate-rias, rádios (figura 30), amplificadores ou microfones, muitos deles disfuncio-nais mas parcialmente aproveitáveis. Foram ainda adquiridos, entre outros, diferentes modelos de altifalantes, conectores áudio, cablagens, colunas, mo-nitores vídeo e leitores de bobines áudio.

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Fig. 30 - Interferências rádio e acústica tubular.

As experiências realizadas passaram pela construção de vários mi-crofones de contacto piezo e pela utilização de outros, extraídos de telefo-nes, despertadores e microondas. Passaram também pela implementação de sistemas de transformação dos altifalantes em instrumentos percussivos elétro-mecânicos, seguindo os modelos inicialmente concebidos e desen-volvidos por John Bowers, aplicados a séries de altifalantes. Potencialidades que despertaram para as possibilidades estéticas visuais geradas pelos seus impulsos sobre matérias sólidas e aquosas colocadas sobre as membranas dos altifalantes. Esta fase de experimentação preosseguiu com o recurso a altifalantes de indução[88] (figura 31), seguidores do mesmo princípio de funcionamento dos piezo mas em sentido inverso, enquanto transdutores de vibração produtores de objetos ressonantes. Aplicados a diferentes ma-teriais, como o zinco, o vidro ou o cartão, mediante uma gama variada de frequências, deles resultaram timbres distintos consoante as características próprias a cada material. Esta possibilidade de inversão reverberante do som, que permite a qualquer superficie funcionar como membrana emisso-ra, resulta particularmente interessante e de múltiplas aplicações.

88 O interesse por este tipo de altifalantes surgiu em 2012 com a visita à instalação sonora de Bruce Nauman, Days (2009), no Institute of Contemporary Arts em Londres, onde sete vozes de diferentes tipologias recitam, contínua e aleatóriamente, os sete dias da semana em catorze altifa-lantes planos percorridos pelo ouvinte.

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Fig. 31 - Altifalante de indução em chapa de zinco.

Outro aspeto explorado foi o da interferência humana nas baixas fre-quências, mediante o toque ou a pressão dos circuítos com as pontas dos de-dos, sobretudo em rádios, mas também em outros equipamentos electrónicos de efeitos irregulares entre si. Em 2013, a frequência do workshop de Circuit Bending[89] com Miguel Pipa levou esta aprendizagem exploratória à mani-pulação de circuitos simples, como os existentes em brinquedos (figura 32), desconstruíndo a sua configuração eletrónica e tornando-os dispositivos de síntese sonora variável e acidental.

Fig. 32 - Workshop com Miguel Pipa na Sonoscopia.

89 A sua origem remonta às primeras experiências com amplificadores de Qubais Reed Ghazala em finais dos anos 60, desenvolvidas até meados dos anos 90 em torno das práticas eletrónicas de manipulação e da interação acidental amplificada com os circuitos. Em 1992, Ghazala inicia a publi-cação de artigos na Experimental Musical Instruments, onde recorre pela primeira vez à designação de Circuit Bending para identificar e abrir o debate em torno desta modalidade de que Phil Archer e o já anteriormente referido John Bowers são atuais artistas representativos.

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Aprendizagem que se estendeu, no som, à criação modular de pequenos cir-cuítos eletrónicos em placa padrão, com recurso a resistências, potenciómetros, transistores, circuitos integrados, LED, díodos; e, na imagem, à transformação de pequenos dispositivos vídeo, como as webcam, em sintetizadores de imagem, recor-rendo a ferramentes digitais.

A incorporação do vídeo deu-se neste fase da investigação, em Istambul, como medium de sobre-impressão visual, síncrono face ao sentido acúsmatico da instala-ção; em In-Cubango, na incorporação da motivada pela dinâmica documental pre-sente nas filmagens da batalha de Cuito-Canavale, no sul de Angola; e em Stalker, onde assume um regresso ao fílmico, com a projeção mascarada em torno das le-gendas em português do filme de Andrei Tarkovsky, com o objetivo de evidenciar a voz, o texto e a composição sonora.

Corresponde a este período a criação de film.frame (2013), vídeo realizado como contributo a Cinemas 1_Na Noite Desaparecida organizado por Cristina Ma-teus/i2ADS, cinemas resultante da participação de varios artistas e da colagem en-cadeada dos seus videogramas numa única e contínua projeção. Filmado em plano sequência e som direto, film.frame (figura 33) sintetiza o momento de silêncio em 1’44’’. Como um livro aberto, o seu registo correspondente ao momento da ação captada por uma câmara vídeo de tubos, escolhida pelas suas imperfeições técnica na formação da imagem e pela sua capacidade de gerar plasticidades visuais.

Fig. 33 - Vídeograma de film.frame (2013)

Em 2014, o meu trabalho centrou-se no Panóptico do Hospital do Conde Fer-reira, onde assumiu um caráter marcadamente site-specific e intermedia, com a

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realização de duas intervenção - Leituras ressonantes: onde param os meus ouvidos e Delírios espetrais: Aísthesis - assentes na interpretação conceptual das especificidades associadas ao edifício e ao seu entorno psiquiátrico e no recurso a medias de interação e expressividade assentes em relações espacio--temporais cúmplices.

3.1. Primeiras abordagens

3.1.1. Matéria Sonora (2012)

Um CD áudio em loop, dois altifalantes, cabos áudio, um biombo, um

candieiro, uma flanela preta e xisto. Instalação. Duração sonora de 3’09’’.

Cozinha, FBAUP, Porto.

A decisão de frequentar a Nodar Summer School 2012[90]: Documentar e reinventar a memória de um território, organizada pela Binaural em Carva-lhais, no maciço da Gralheira, e orientado por Luís e Rui Costa, Manuela Bari-le e Gianfranco Spitilli, revelou-se essencial na aproximação técnica, estética e filosófica ao sonoro, tendo como referência a paisagem física, antropológica e etnográfica. Inserida numa abordagem filosófica e estética da paisagem, a for-mação permitiu uma leitura multi-sensorial do território, mediante exercícios práticos de gravação sonora e de integração entre diferentes media. Permitiu ainda compreender a geografia como elemento topográfico de referência, con-dutor da recolha sonora, assim como explorar as possibilidades de intervenção durante a captação sonora (figura 34), alterando contextos de forma performa-tiva e variando a recolha mediante diferentes microfones[91].

90 Escola que tinhas como palavras-chave: território, paisagem, comunidades, tradição cultural, documentação, património imaterial, antropologia visual e sonora, etnografia sonora, arte sonora, instalação multi-media, land art.91 Aumentando a sensibilidade destes à vibração, estamos a melhorar a leitura da cadência, intensidade e perfusão das ressonâncias.

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Fig. 34 - Experiências realizadas em grupo com Luís Costa.

Resultante das experimentações ocorridas durante esta aprendizagem do sonoro, Matéria Sonora integra elementos materiais e imateriais, como os sons e o xisto, recolhidos durante o trabalho de campo desenvolvido em Pó-voa de Leiras, no contexto natural e sociocultural específico do seu território. Sons surgidos do devir natural dos elementos e da intencionalidade com que improvisei com recurso ao que ali encontrei: arame, galhos de pinheiro ou fio de algodão. Explorações ressonantes da matéria rochosa do xisto e do fluir contínuo das linhas de água, captadas com recurso a hidrofones, mas sobre-tudo a microfones de contacto, sensíveis às vibrações induzidas a partir da matéria semi-rígida do pinheiro e rígida do arame. Construções e desconstru-ções conscientemente marcadas pelo uso destes microfones e pela criação de dinâmicas sonoras micro-narrativas de leitura distinta à naturalista maioritá-riamente adotada pela captação field recording. Marcadas por plasticidades variáveis na intensidade, no timbre e na duração resultante das ações e dos acasos produzidos, entre o realismo ressonante da pressão hídrica, a abstração ruidista do riscar das superfícies e o funcionamento elétrico pré-amplificado dos equipamentos[92]. Memórias parcelares, que permitiram compor uma nova cartografia acústica do lugar, baseada em ações e na emanação dos sons en-quanto objetos manipuláveis.

A composição sonora resultante (CD: áudio 1), sem referências au-

92 A integração do arame na correnteza e o impulso de interagir com o xisto submerso e com o leito do canal, resultou em tonalidades sonoras diferentes, consoante a frequência e a intensidade empregue nos movimentos, condicionadas pelas caraterísticas morfológias e de ressonância dos ma-teriais.

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rais explícitas e subversiva do contexto da recolha, remete para a subje-tividade inerente à captação e para uma interpretação e reorganização meramente acústica dos sons, alguns deles fantasmas de si próprios. Maté-rica na porosidade sonora dos seus micro-sons, manifesta a sua plasticida-de no modo como enfatiza as diferenças tonais, entrecorta a continuidade dos sons e cria re-inícios de intensidade pontuados por silêncios; no modo compassado e explícito como intercala as tonalidades ruídistas, confe- rindo-lhes coloração e sentido musical.

Matéria Sonora remete para um contexto e uma memória espacio-tem-poral associada ao lugar de origem e às suas especificidades[93] geográficas. Conjuga a imaterialidade da composição com a materialidade visível do xisto (figura 35), situando-as num outro lugar de escuta amplificada, o da Cozinha, galeria situada na FBAUP, onde se re-contextualizam e re-interpretam em for-mato de instalação.

Fig. 35 - Xisto sobre flanela preta.

93 Escutadas localmente, as gravações sonoras obtidas permitiriam uma melhor contextualiza-ção e interação dos seus elementos, mas a opção foi a da sua recontextualização no espaço da galeria.

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3.1.2. Rádioatividade (2012)

Um rádio. Instalação.

Cozinha, FBAUP, Porto.

Concebida a partir da junção das palavras/conceitos rádio e atividade, rádioatividade contém em si a qualidade de ativo, de ação e de energia. Associa um dispositivo, que é igualmente um media, a um sistema de radiodifusão e ao movimento das ondas eletromagnéticas captadas nesta instalação.

Situado no compartimento interior da Cozinha da FBAUP, um rádio re-produz, em direto e em contínuo, o vaguear constante e padronizado das fre-quências ruidistas captadas em LW. Às escuras e apenas iluminado pelo seu próprio painel (figura 36), de modo a reduzir a componente visual sem perder presença como dispositivo de origem, o rádio permite uma leitura electromag-nética site-specific sonora do lugar e das especificidades espacio-temporais da sua escuta. A sua atividade críptica sonora permite, na abstração do seu ruidis-mo residual (CD: áudio 2), algum paralelismo com o resultante das medições de radioatividade nuclear, apesar de ambas se situarem em campos eletromag-néticos e comprimentos de onda distintos.

Fig. 36 - Espelho do aparelho rádio.

Esta instalação resulta não só do rádio, enquanto dispositivo de interme-diação entre o visível e o invisível, produtor de uma temporalidade contínua e sinusoidal (figura 37) com a plasticidade do ruído branco, mas também da

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rádio, enquanto acontecimento que se concretiza no lugar onde é escutada[94]. Composta por um dispositivo simples pensado para interagir em qual-

quer espaço de permanência, e nesse sentido place-specific,[95] esta instalação permitirá facilmente uma escuta alargada e simultânea, mediante a incorpo-ração de novos dispositivos rádios. Condicionada pelo tipo de reverberação inerente a cada espaço, mais húmido ou seco, consoante a sua maior ou menor capacidade de reflexão do som, essa escuta perspetiva a criação de um arquivo diversificado e mapeador das acústicas geradas pelo som direto a captar em cada novo exercícico de rádioatividade.

Fig. 37 - Imagem gerada pela emissão rádio.

3.1.3. A (des)ordem do discurso (2012)

Um disco vinil, um gira-discos, dois altifalantes, um amplificador, cabos áudio,

uma fotografia em versão original e ampliada. Instalação. Duração sonora de 20’25’’.

Torre, FBAUP, Porto.

Esta instalação decorreu de um convite de colaboração de uma docente da FBAUP, Rita Castro Neves, no âmbito da Oficina de Performance orienta-

94 Noção defendida por Ian Murray, artista canadiano pioneiro da radio-art, e referida por Licht (2007: 119): “Radio happens in the place it is heard and not in the production studio”.95 “A possibilidade de vários pontos de vista, a colocação da obra no espaço, a relação de per-tença criada com o objeto, observador e espaço fascinaram certos artistas e críticos dos anos 60. (…) na prática place-specific, e a imagem da obra que é construída à imagem do lugar e do observador: espaço tido como social e sujeito tido como múltiplo. (…) place-specific deve à site-specificity a tei-mosa ligação ao espaço a partir e para o qual a obra foi criada. Se a obra é removida, é destruída, se é transladada não sobrevive (pelo menos na mesma forma). Mas a arte place-specific difere da sua parente site-specific no sentido em que pode permitir, ao ser removida ou transladada, a incorporação da mudança (devir).” (Vaz-Pinheiro, 2001: 37)

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da por Marta Bernardes e Samuel Guimarães no Centro Hospitalar Conde de Ferreira (CHCF)[96]. Levada a efeito no Panóptico, edifício de albergue tem-porário de doentes psiquiátricos em estado de delírio extremo, a performance consistia na declamação, por um grupo de alunos (figura 38), de um texto de Michel Foucault, A Ordem do Discurso (L’Ordre du discours, 1971). No se-guimento desta investigação houve, pois, todo o interesse nesta colaboração, tanto pela reaproximação ao CHCF, tornado acessível em resultado de uma primeira colaboração minha em 2010, como pela interpretação do texto ini-cialmente previst, Vigiar e Punir (Surveiller et punir, 1975), também de Mi-chel Foucault.Para além disso, esta colaboração afigurar-se-ia na possibilidade de registar sonoramente a performance, permitindo a posterior concepção de uma instalação a apresentar na FBAUP.

Fig. 38 - Preparação para a leitura do texto no Panóptico do CHCF.

A performance correspondeu à leitura da totalidade do texto, tendo os interpretes interagido com os principais espaços do Panóptico: a entrada, o núcleo central e as celas. A gravação áudio levantou questões de captação rele-vantes, tais como o número de interpretes, ao todo treze[97], as partes do texto a ler por cada um deles ou o seu posicionamento no momento da leitura. Foram ainda considerados factores acústicos associados à materialidade e escala dos espaços, precavendo condicionamentos de reverberação, ressonância e mo-

96 Conjunto edificado do século XIX, inicialmente, de valência psiquiátrica única, o Hos-pital Conde Ferreira fo inaugurado em 1883. Inovador para a época, acompanhava os avan-ços farmacológicos e técnicos, nomeadamente, a invenção em Itália da polémica técnica de Eletroconvulsivoterapia, em 1937.97 Foram interpretes do texto, André Fonseca, Dalila Vaz, Filipe Garcia, Hernâni Reis Baptista, Hugo Pinho, Hugo Soares, Inês Vicente, Marta Bernardes, Patrícia Oliveira, Raul Ortega Moral, Rita Castro Neves, Rita Xavier Monteiro e Samuel Guimarães.

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bilidade face a uma captação (figura 39) assumidamente unipontual, móvel e relativamente autónoma face aos interpretes do texto. As opções então to-madas foram no sentido de uma aproximação aos interpretes e ao seu movi-mento, cruzando as vozes através dos espaços, numa exploração estereofónica que passou obrigatoriamente pela cave e por uma aproximação aos passos e ao ranger do soalho, o qual atuou como um filtro relativamente às leituras no andar superior. Obtido em contínuo, num único tempo-movimento, este re-gisto sonoro assimilou contributos ocasionais dando-lhes sentido. Iniciou-se com a chuva e o bater da porta da entrada que funcionou ao mesmo tempo como ato demarcador da clausura no espaço e da travessia de palavras que se seguiu. Marcado, em sentido musical, por um cut out sonoro originado por uma transição abrupta no modo e na tonalidade, assinalador da entrada em cena dos intérpretes.

Fig. 39 - Captação de som no Panóptico.

Partindo do registo sonoro recolhido, e de uma segunda análise ao texto de Foucault e ao seu sentido discursivo, foi criada uma composição sonora (CD: áudio 3). Esta procura explorar a intermediação emotiva da palavra com o ouvinte e a comunhão, por vezes cacofónica, das vozes, próxima ao coro e à liturgia. Sobrepõe interpretações e aprofunda as reverberações panópticas do espaço, com palavras que se cruzam e posicionam, apenas pontualmente per-ceptíveis no contexto geral da composição vocal. Transforma a leitura coletiva do texto numa sobreposição de monólogos, que, unificados por uma acús-tica comum, aparentam a mesma simultaneidade temporal. Introduz novas leituras que, metricamente cortadas e sobrepostas em camadas de colagem, se fundem com os conceitos, pontual e perceptivelmente, enunciados pelo texto, dando continuidade à interação anteriormante verificada entre este, os seus intérpretes, o espaço e a captação áudio. Reune a aparente (des)ordem da com-posição à ordem do discurso de Foucault.

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Incorporada a um objeto, o analógico do vinil (figura 41), a composição foi apresentada ao público, no âmbito do evento[98] de Performance Art, SIN-TOMA Nº 0.

A (des)ordem do discurso, nome dado a esta instalação, foi apresentada na Torre da FBAUP, local escolhido por permitir estabelecer ligações entre o espaço expositivo, os elementos nele incorporados e a composição sonora elaborada. Elevada sobre a paisagem, esta torre possui uma ampla sala retan-gular transversal ao edifício e janelas situadas ao nível das árvores, abertas ao soundscape do lugar. Foi, aliás, a perceção desta possibilidade fornecida pelo espaço que levou a uma abertura inclusiva ao exterior, tanto na luz, dispersa, crua, realista, sob a qual todo o dispositivo permaneceu visível, como no som e nos acasos que daí derivaram. Não só os provenientes das janelas, proposi-tadamente abertas durante a escuta, mas também os das vozes reverberantes do público (figura 40), ambos em permanente e recíproca contaminação com a composição.

Fig. 40 - Durante a escuta do vinil da instalação.

Fig. 41 - Dispositivo sonoro e retrato, aumen-tado e em versão original.

98 “O SINTOMA Nº 0, é o evento maior e mais público do grupo, e pensa-se como um encon-tro de um dia de ação e discussão, de e sobre Performance Art, nos espaços interiores e exteriores da FBAUP, com caráter site-specific e aberto a todos. “, in, SINTOMA Nº 0 (2012) – Porto, FBAUP. <http://sigarra.up.pt/fbaup/pt/noticias_geral.ver_noticia?P_NR=1189> [consultado a 06/01/2015].

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Para além do gira-discos, a instalação era também composta por um am-plificador e duas colunas, posicionadas de modo a traçar linhas delimitadoras da ação e da escuta dos espetadores.

Nesta instalação sobressai ainda a imagem fotográfica (figura 42) de um estudante trajado a olhar uma caveira, encontrada num antiquário e cuja ori-gem desconheço. Tanto na parede frontal, onde se encontrava ampliada, como á direita do gira-discos onde o original se encontrava sob a capa, esta fotogra-fia, anónima e encontrada por mero acaso, remetia para o contexto académi-co da instalação, com seus discursos disciplinares. Ao mesmo tempo aludia à contemplação e ao silêncio, à razão e à loucura, ao verdadeiro e ao falso, ao saber e aos seus sofismas, matérias enunciadas pelo texto de Foucault.

Fig. 42 - Fotografia de estudante segurando uma caveira.

Esta aproximação ao CHCF e ao seu Panóptico teve continuidade no pro-jeto Panóptico Sonoro, onde procurei enquadrar um conjunto diversificado de propostas artísticas de intervenção que passam pelas atuais instalações inter-media mas que se perspetivam para além delas, em projetos que envolvem o Ateliê de Artes Plásticas da instituição.

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3.2. Projeto Panóptico Sonoro

O projecto Panóptico Sonoro resulta do meu interesse, desde sempre manifesto, em desenvolver projetos artísticos em hospitais psiquiátricos, inte-resse esse consentâneo com a abordagem de Foucault à oposição entre razão e loucura, e com uma certa mística da arte bruta (Art brut), definida por Jean Dubuffet como uma arte marginal de livres criadores oriundos de fora do meio artístico, muitos deles iletrados, médiuns ou loucos, por vezes internados[99].

Nesse sentido, em 2010, no âmbito da minha docência na FBAUP, apre-sentei ao então administrador do CHCF, Dr. Elídio Lobão, uma proposta de produção de diversos registos vídeo, a serem realizados pelos meus alunos. Proposta essa que foi aceite, e que facilitou o posterior acesso ao Panóptico para a realização da Oficina de Performance em 2012.

Em 2014, no âmbito do programa doutoral, reafirmando o meu interesse por esta temática, procurei mais uma vez o CHCF (figura 43) para desenvover um projeto, agora de arte intermedia. Este, pela sua natureza e escala muito mais complexo que os anteriores, já que implicava um acesso ilimitado ao es-paço, a incorporação de novos materiais e a sua manipulação técnica in loquo. Por esta razão, a cedência do espaço implicou um pedido formal acompanha-do de um dossiê explicativo, contendo um conjunto de propostas de interven-ção, genéricamente designadas de projeto Panóptico Sonoro. Durante todo o processo, houve sempre a colaboração do então administrador, Dr. António

99 Em Portugal, surgiram os casos de Jaime Fernandes - retratado por António Reis em Jaime (1974) e presente em 2012 na exposição Arte Bruta, terra incognita da coleção Treger-Saint Silvestre, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva - e de Ângelo de Lima, internado no CHCF entre 1894 a 1898.

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Monteiro, de quem partiu a inciativa de integrar a primeira intervenção no âmbito das comemorações do 131º aniversário do CHCF. Também crucial no desenrolar de todo o processo foi a Dr.ª Maria da Luz Saraiva, então Responsá-vel pelo Núcleo Museológico do CHCF que abarca o Panóptico, desde sempre disponível para simplificar o acesso institucional e prestar todas as informa-ções históricas solicitadas, nomeadamente, as que implicavam uma consulta do arquivo.

Fig. 43 - Fachada do Centro Hospital Conde Ferreira

Centrado no Panóptico mas extensivo ao circundante, este projeto pro-curou cruzar a materialidade organizacional das volumetrias do edificado com a imaterialidade das vivências e das sonoridades aí existentes, lidas visual, so-nora e concetualmente. De resto, desde 2001 - Porto Capital Europeia da Cul-tura, que não havia qualquer intervenção artística no conjunto dos espaços que formam o então designado Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira.

Genericamente intitulada Elogio Da Loucura - Hiperquadro (figura 44), a intervenção de 2001, coordenada por Paulo Cunha e Silva, resultou de uma “aproximação não convencional” à obra de Erasmo, Elogio da Loucura (“En-comium Moriae”, 1509), e da incorporação essencial de Vigiar e Punir (Sur-veiller et punir, 1975), obra introdutora da abordagem foucaultiana à prisão e ao hospital psiquiátrico do século XIX.

”O Conde Ferreira é um quadro, um registo de convenções que encerra outras convenções, como o quadro clínico ao definir, ao cartografar, patologias. A própria ar-quitectura do hospital remete para esta ideia de quadro, de território definido, emol-durado. (…) Era como se procurássemos uma profundidade para essa superfície. E ao pensarmos na cirurgia que poderia conferir a este sistema essa natureza suplementar, ganhou evidência a oportunidade de um conjunto de intervenções artísticas que per-corressem o espectro de mobilidade que vai da pintura, ao autoretrato, à performance,

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passando pela fotografia, pela instalação, pelo vídeo, pelo teatro, pela dança, e... a jardi-nagem.” (Silva, 2001: 6)

Fig. 44 - Capa do catálogo de 2001.

Concretizada num espaço de referência para o imaginário da cidade, as-sociado à loucura e aos seus estereótipos e estórias, nesta intervenção parti-ciparam os artistas Albuquerque Mendes, Avelino Sá, Baltazar Torres, Lúcia Sigalho e Sensurround, Paulo Castro, Paulo Mendes e João Galante, Vera Man-tero e António Poppe.

Inserido na componente prática deste estudo, o projecto Panóptico Sono-ro enquadra-se no edificado do CHCF e no caráter histórico, clínico, filosófico, estético e antropológico a ele associados. Iniciado em 2014, dele resultaram, até ao momento, duas intervenções site-specific no Panóptico - uma diurna, Leituras ressonantes: onde param os meus ouvidos , a outra noturna, Delírios espetrais: Aísthesis - onde a arquitetura e funcionalidade, atual e passada, do edifício permanecem indissociáveis da figura arquitetural criada por Jeremy Bentham no século XVIII e da leitura que Michel Foucault fez do fenómeno panóptico e do panoptismo no século XX.

Referência essencial, Foucault ajuda a identificar a conceptualida-de subjacente ao edifício e a todo um sistema social e político de vigilância, condenação e aprisionamento. Tratava-se, no início do século XIX, da cria-ção de um modelo de dispositivo disciplinar alicerçado na individualiza-ção e na marcação de exclusões, do qual faz parte a prisão, a casa de cor-reção, o estabelecimento de educação vigiada e o hospital, mas também o asilo psiquiátrico, onde médicos e vigilantes são os principais responsáveis. Sustentado em janelas e num sistema de registo, o dispositivo disciplinar configura, segundo Foucault (1987 [1975]: 223), um controle individual fun-

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cional, impulsionado pela divisão binária e antagónica entre louco/não-louco, perigoso/inofensivo e normal/anormal, e por uma repartição diferencial que procura identificar e caracterizar, exercendo uma vigilância constante, coerci-tiva e de exclusão.

“O Panóptico de Bentham [figura 45] é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periféri-ca é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um ope-rário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individua-lizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmor-ra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.” (Foucault, 1987 [1975]: 223-224)

Fig. 45 - Estrutura panóptica do edifício de Bentham.

A organização panóptica do espaço obriga, pois, a uma visibilida-de axial, ao mesmo tempo que implica uma invisibilidade lateral, impos-ta por muros que impedem o contacto entre si dos aprisionados ou destes com o exterior. Mas o mais importante, é a permanência consciente e vi-

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gilante que essa invisibilidade assume nas consciências individuais, den-tro e fora das instituições, enquanto afirmação do princípio panóptico[100]. “Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia”, afir-ma Foucault (1987 [1975]: 226), substituindo assim a força e o velho siste-ma de casas de segurança pela simples e económica casa de certeza, onde a visibilidade pressupõe espontaneidade no controle sobre si mesmo, inscrevendo em si a relação de poder e o princípio da sua própria sujeição.

“O panoptismo é o princípio geral de uma nova “anatomia política” cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina. (…) Ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível, o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares.” (Foucault,

1987 [1975]: 232)

Mecanismos de uma sociedade disciplinar participada, de forma visível e concreta, pelo Panóptico, enquanto dispositivo disciplinar de encerramento e de imposição de uma qualquer conduta, onde, segundo refere Gilles Deleu-ze, “o encerramento dos loucos faz-se no modo do ‘exílio’ e segundo o modelo dos leprosos; o encerramento dos delinquentes, faz-se no modo do ‘quadri-culado’ e segundo o modo do pestilento” (2005 [1986], 63). Mecanismos aos quais ficou associado o Panóptico do CHCF, como espaço de reclusão e isola-mento, e ao qual dediquei boa parte de 2014, na concretização dos projeto de intervenção que passo a descrever.

3.2.1. Leituras ressonantes: onde param os meus ouvidos (2014)

Seis altifalantes, quatro amplificadores, um leitor DVD, dois um cartões de memória

cabos áudio, cabos vídeo, cabos de aço, um monitor, seis espelhos, celofane colante.

Intervenção sob a forma de cinco instalações: a) Duração sonora de 3’04’’; b) Duração

sonora de 14’; c) Duração sonora de 20’06’’; d) Duração vídeo e sonora de 14’.

Panóptico, CHCF, Porto

A intervenção site-specific desenvolvida, que resultou num conjunto

100 Foucault (1987 [1975]: 239) transcreve a interpretação de Julius: “Falando do princípio panóptico, dizia que nele se via bem mais que um talento arquitetural: um acontecimento na ‘história do espírito humano’.” - “N.H. Julius, Leçons sur les prisons, trad. Francesa, 1831, vol. I, p. 384-386”.

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de instalações interpretativas do Panóptico (figura 46) e dos elementos nele contidos, iniciou-se com o estudo das características históricas e estruturais do edifício. A análise detalhada da planta eneagonal original forneceu alguns elementos combinatórios, reforçando o sentido de centralidade inerente à sua concepção e à importância estrutural do patamar de vigia, entretanto desapa-recido. Permitiu compreender o funcionamento dos espaços, organizados em comuns e individuais, os primeiros, integrados pelo núcleo central da clara-boia(1????), a cave, o gabinete médico e um outro de apoio, os segundos, pelas celas de isolamento e clausura.

Fig. 46 - Fachada de entrada no Panóptico.

Quando iniciei o projeto deparei-me com a existência de narrativas mu-seológicas dentro do Panóptico que passei a considerar como uma das com-ponentes do edifício. Organizadas em núcleos temáticos permanentes distri-buídos pelas celas e pelos gabinetes, davam a conhecer a história e os objetos alusivos às práticas clínicas do CHCF. A história da sua origem e a dos pa-cientes que por ali passaram, por vezes submetidos a internamentos forçados no Pavilhão dos Furiosos, como é localmente conhecido o Panóptico, com re-curso a coletes de força e durante períodos de tempo indeterminados. Predo-minante, o sentido interpretativo dos espaços pré-definido pelo museológico acabou por se impôr, vindo a revelar-se conceptualmente determinante para a produção das novas leituras que pretendia encontrar para o edifício.

Assim, analisadas as componentes contextuais históricas, objectuais e materiais correspondentes a cada espaço, concebi como um todo a interven-ção no Panóptico, procedendo, numa fase inicial, à identificação dos elemen-tos em destaque e à anotação das ideias e dos conceitos a serem trabalhados. Elementos, como a configuração e a verticalidade do edifício, a importância da

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claraboia e das janelas de vigia, da cave e do seu recheio, das portas das celas com seus óculos e da mesa de autópsias.

Passei depois a verificar as possibilidades associadas à geometria enea-gonal do edíficio e ao seu núcleo central, onde me pareceu possível suspender diversos altifalantes e com os seus cabos desenhar uma teia sonora de palavras sussurradas. Geometria que me lembrava um Práxinoscópio em rotação, que liguei à ideia de uma projeção vídeo perpendicular da planta do edíficio em rotação no chão, cujo movimento associava ao de um carrocel. Também as janelas e os óculos das portas criavam uma relação de visibilidade que me parecia interessante explorar, fosse ela apenas interior ou interior-exterior. Já num dos gabinetes, o movimento matérico no ralo da mesa de autópsias, pro-fundo na sua ressonância sonora, criava uma relação interior-interior que quis explorar. Entretanto, da cave surgiram imagens e sensações, um imaginário de fantasmagoria. Das celas, a possibilidade de criar comunicação entre en-carcerados, através das chapas de proteção aos radiadores, induzindo nelas vozes e pequenos sons, pequenos toques. Tudo me parecia interessante, mas faltava uma ideia de conjunto integrada e de fusão concetual, que não passasse apenas por uma ou por um conjunto de representações isoladas. Decidi, pois ler o conjunto de elementos dispersos pelos espaços, encontrar um sentido nas designações museológicas atribuídas a cada núcleo e ativar o lugar através do som, como diz Jason Kahn (2009, 88).

Entretanto, como a vontade inicial de intervir em todos os espaços se me afigurou excessiva e dispersa, passei a optar por fazê-lo em apenas cinco: no núcleo central do edifício, que incluia a claraboia, em três celas e num gabinete, mantendo as designações pré-existentes: a) Claraboia, b) Mesa de Autópsias, b) Entradas, c) Isolamento e d) Farmácia (figura 47).

Constituída por diversas instalações, esta primeira intervenção no Pa-nóptico resulta ainda de momentos de permanência que permitiram uma perceção real do espaço e das suas alterações sensoriais de temperatura, luz,

entrada

a)

b)

c)

d)

e)

Fig. 47 - Diagrama do edifíco e do posicionamento das instalações.

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tempo e movimento, contribuíndo para o seu caráter irrepetível e site-specific. Esta minha experiênciação do espaço pretendia, antecipando a audiência, tor-na-lo de certo forma vivido e praticado, na experimentação dos seus materiais, no aprisionamento do corpo e do olhar, no movimento temporal da luz e na escuta das sonoridades provinientes do exterior. A este propósito, parece-me aqui apropriada a referência de Gille Deleuze, em Crítica e Clínica, ao vislum-brar de uma leitura possível do lugar, onde a tomada de posição por trajetos exteriores resulta na definição de caminhos interiores à própria obra:

“(…) embora caiba à nova escultura tomar posição em trajetos exteriores, essa po-sição depende primeiro de caminhos interiores à própria obra; o caminho exterior é uma criação que não preexiste à obra e depende de suas relações internas. (…) a po-sição no espaço circundante depende estreitamente desses trajetos interiores. É como se alguns caminhos virtuais se colassem ao caminho real, que assim recebe deles no-vos traçados, novas trajetórias. Um mapa de virtualidades, traçado pela arte, se su-perpõe ao mapa real cujos percursos ela transforma. Não é só a escultura, mas toda obra de arte, como a obra musical, que implica esses caminhos ou andamentos in-teriores: a escolha de tal ou qual caminho pode determinar a cada vez uma posição variável da obra no espaço. Toda obra comparta uma pluralidade de trajetos que são legíveis e coexistentes apenas num mapa, e ela muda de sentido segundo aqueles que são retidos. Esses trajetos interiorizados são inseparáveis de devires. Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros; ela torna sensível sua presença mutua e se define assim, invocando Dioniso como o deus dos lugares de passagem e das coisas de esqueci-

mento.” (Deleuze, 1997 [1993]: 79)

Deleuze refere dois caminhos coincidentes com a metodologia seguida por mim nesta intervenção no Panóptico: o primeiro, de interiorização in lo-quo, centrada na vivência possível dos elementos arquitectónicos, escultóricos, solares, olfativos, sonoros, térmicos, etc., que constituem o edifício, ao mesmo tempo lido como objeto; o segundo, de pesquisa histórica, científica, artísti-ca, etc., mais distanciada e exterior, mas igualmente interior, no modo como permite reler, sentir, ver e conceber (dispor os espaços e relacionar como um todo, sons, imagens e objetos, estabelecendo limites de contaminação entre si). Trajetos que resultam da necessidade de percorrer caminhos, de estabelecer mapas, de criar uma cartografia dinâmica onde real e imaginário se cruzem

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tendo o edifício como meio[101], agora histórico, arqueológico (figura 48) e da memória, ao qual a arte atribui novas vivências.

Fig. 48 - O Panóptico num pormenor da planta original do CHCF.

a) Na Claraboia (figura 49) situada no espaço central do edifício, a in-tervenção passou pela colocação de um altifalante subwoofer de frequências muito baixas e graves, propenso a maiores amplitudes de onda, adequadas aos elementos, aos movimentos e aos tempos que constituem a narrativa. Suspen-so em cabos de aço e alinhado com o vértice central da clarabóia, formando um círculo negro em contra-luz, o altifalante permaneceu visível do interior dos espaços circundantes, através das janelas de vigia. Perturbador e simbóli-co na abangência acústica da sua representação, omnipresente e intensamente reverberante no aproveitamento da concavidade do espaço e dos seus mate-riais, e sobretudo unificador, o som nele reproduzido (CD: áudio 4) assinala a cadência, a intensidade e a duração do abrir e fechar da porta de entrada do Panóptico. Presente desde o início do projeto, depois de registado pela primei-ra vez em 2012 para A (des)ordem do discurso, o som da porta assumiu aqui, relativamente às restantes narrativas sonoras, a marcação rítmica e temporal de um metrónomo[102].

101 “(…) o imóvel como meio… um meio é feito de qualidades, substancias, potências e acontec-imentos: por exemplo a rua e suas matérias, como os paralelepípedos, seus barulhos, como o grito dos mercadores, seus animais, como os cavalos atrelados, seus dramas (um cavalo escorrega, um cavalo cai, um cavalo apanha...). O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o próprio objeto é movimento.” (Deleuze, 1997 [1993]: 73)102 No sentido em que a sua predominância e repetição gera ciclos temporais marcados por pequenos períodos sucessivos, encadeados e iguais.

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Fig. 49 - Vista geral do altifalante central à claraboia.

Pendular e objetual na sua presença e visibilidade, o altifalante reproduz as ações simuladas por mim durante a exploração do diferencial de reiniciação entre os intervalos de tempo e os níveis de som performativamente produzidos com o abrir e fechar da porta. Ações simultaneamente captadas por um mi-crofone shotgun hipecardioide, mais direcionado aos movimentos do trinco e das dobradiças, assim como por um cardióide omnidirecional situado a meia altura, em linha com o vértice central da clarabóia. Através deste seu posicio-namento, procurei aproximar o ponto de captação ao ponto de reprodução. Dessa conjugação entre a horizontalidade do som direto produzido à entrada do Panóptico com a verticalidade do propagado pelo altifalante, resultou um alongamento na temporalidade do som, agora duplamente amplificado pelo próprio espaço[103] relativamente à reverberação inicialmente captada.

b) Na sala de apoio e Mesa de Autópsias, a intervenção funcionou em dois sentidos: em torno da mesa e dos instrumentos cirúrgicos expostos nas vitrines, que remetem para o orgânico e para os fluídos comportáveis pelo cor-po; em torno do movimento do sol poente através da janela, e da sua trajetória pelo espaço (figura 50) até à parede da cela situada em frente, a de Isolamento. O movimento da luz, como o do sangue, num vermelho[104] vivo intimamente

103 “Yes, the space acts as a filter; it filters out all of the frequencies except the resonant ones. It has to do with the architecture, the physical dimensions and acoustic characteristics of the space.” (Alvin, 1990: 194)104 “Foucault soube sempre pintar quadros maravilhosos no fundo das suas análises. Aqui, a análise torna-se cada vez mais microfísica e os quadros cada vez mais físicos, exprimindo os ‘efeitos’ da análise, não no sentido causal, mas no sentido ótico, luminoso e cromático: do vermelho sobre o vermelho dos suplícios ao cinzento sobre o cinzento da prisão.” (Deleuze [1986] 2005: 40)

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ligado à mesa de autópsias, ao mesmo tempo intenso, fogoso, agitado, e imer-sivo do espaço, foi obtido mediante a filtragem da luz proveniente da janela e das vitrines. A mesa, preponderante na sua centralidade e imponência física, impôs-se nesta procura de co-relações ou de co-ações com os instrumentos de uma medicina desejosa por desvendar a complexidade íntima do corpo. Evocativo da ação dos objetos médicos expostos, o movimento dos fluídos corporais fica associado ao dos fluxos sonoros (CD: áudio 5) escutados ao cen-tro da mesa, reproduzidos em contínuo e em loop por um altifalante colocado na base do ralo. Performativo, o registo sonoro que executei foi obtido em resultado de um descontínuo e volúvel derramar de água pelo ralo, ao longo do qual escorria até uma vasilha em inox. Simultaneamente captado por um microfone hipercardioide e pelos estereo X/Y de um gravador portátil, o seu som ressoava e adquiria um timbre agudo e dinâmico que acentuava a sensa-ção de profundidade na escuta.

Fig. 50 - Vermelha, a luz movimenta-se ao longo da parede.

c) Segue-se a cela representativa das Entradas (figura 51), composta pelo primeiro livro de registo dos pacientes do Hospital Conde Ferreira, por alguns documentos alusivos ao internamento de Jorge Castelo Branco[105] e por um painel de retratos fotográficos de pacientes (realizados em meados do século XX), gente anónima e sem voz, impossibilitada de contar a sua história.

No início do século XX, entre as funções atribuídas ao Hospital, estava a de avaliar psiquicamente os acusados presentes ao Tribunal da Relação do Porto. A decisão de recorrer a excertos sonoros, por mim selecionados e mon-

105 Jorge Camilo Plácido Castelo Branco, filho de Camilo Castelo Branco e de Ana Plácido, sofria ataques epilépticos. Internado em 1886 no então Hospital de Alienados Conde Ferreira, onde exer-ciam os psiquiatras Ricardo Jorge, António Maria de Sena e Júlio de Matos, foi considerado um doente irrecuperável.

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tados, do filme[106] de Manuel Guimarães (CD: áudio 6), O Crime de Aldeia Velha (1964), resulta de um destes casos: o de Joaquina Couto, principal insti-gadora do exorcismo pelo fogo de Arminda de Jesus, em 1934, numa aldeia de Marco de Canaveses. Descrito na peça teatral de Bernardo Santareno e adap-tado ao cinema por Guimarães, o crime assume no filme uma estética sonora de conflitualidade e suspense que acentua o dramatismo das vozes, dos ruídos e da música, a que todos os pacientes retratados parecem corresponder. Voz ou vozes essas, apenas aqui presentes no conjunto de leituras sonoras produzidas por estas instalações intermedia.

Fig. 51 - Tripé clínico com altifalantes.

Visualmente, a intervenção complementa-se com a colocação em cena de um tripé clínico, usado como suporte vital à incorporação de dois altifalantes que permaneciam emparelhados com um terceiro. Os primeiros, de menor potência e gama de frequências limitada aos agudos, reforçavam a proximida-de do ouvinte às vozes, enquanto o segundo, de frequências médias combina-das, acentuava a intensidade tímbrica destas e o dramatismo instrumental da música, dando espessura ao som e enchimento ao espaço, ao mesmo tempo que criava dinâmicas complementares entre a amplitude longa e duradoura dos graves e a curta e rápida dos agudos.

d) Em Isolamento, a única cela totalmente vazia, o observador vê-se con-frontado consigo próprio, refletido num espelho frontal à porta, através do

106 A proximidade com o filme resulta do facto de o Tribunal da Relação do Porto ter pedido ao Hospital Conde de Ferreira uma avaliação do estado mental da principal instigadora do crime cometido na aldeia de Soalhães, cuja inimputabilidade se veio a confirmar, por sofrer de alienação mental durante as crises estero-epileptoides. No filme, Guimarães assume o título e as personagens da peça de Bernardo Santareno, que ambos adaptam a argumento cinematografico.

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qual se vê enquadrado com as imagens vídeo[107] do monitor (figura 52), a jane-la de vigia e o altifalante central. Inclusivo, o espelho gera um acontecimento, ao quebrar o distanciamento do espetador face ao dispositivo envolvente e aos protagonistas de referência, levando-o a integrar, enquanto sujeito participa-tivo e igual, a narrativa gerada pelo conjunto das instalações. Nesse sentido, o espelho retira ao espetador a imunidade, colocando-o no duplo papel de observador e de observado, visível[108] a si próprio e aos outros: auto-vigilante. Introduz uma componente auto-reflexiva[109] que tem continuidade nos espe-lhos colocados no interior do óculo das celas fechadas, onde o olhar, próprio de quem espreita na procura de algo ou alguém, adquire um recorte e uma intimidade próxima à do muito grande plano cinematográfico.

Na porta da cela, a transparência do óculo de vigia foi substituída pela opacidade do altifalante (semelhante a uma orelha que escuta, que ausculta, substituindo-se à visão) e pelo seu debitar contínuo de sons ressoantes para o interior do espaço (CD: áudio 7), próximos aos tinires produzidos pelo ouvi-do interno e às oto-emissões acústicas referidas por Nancy (2014 [2002]: 33). Sons de intensidade variável e crescentemente obsessivas, geradores de vazios, na sua uniformidade tímbrica[110], em contínuo e em loop. Permanentemente síncronos à narrativa vídeo (DVD: opção 1/#3 Monitor), na duração, no corte e no suporte. Presos aos planos fixos e ao movimento transitório das sombras e das luzes projetadas nas paredes e no chão, enquanto reflexos de uma tem-poralidade quotidiana perdida na imobilidade do olhar e dos corpos (aparen-temente ausentes) no espaço.

107 Apesar de inicialmente ter posto a hipótese de associar o olhar panóptico à vigilância vídeo, criando um jogo de olhares em que o espetador seria alternadamente vigia e vigiado, achei a presença do espelho e o confronto não mediado pela tecnologia mais físico (mesmo na relação com o espaço), direto e autónomo (por parte de quem observa).108 “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e recon-hecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.” (Foucault, 1999 [1975]: 231)109 Em Elogio da Loucura, Foucault (1991 [1972]: 491-492) refere o jogo de espelhos, enquanto processo figurado cúmplice e desmistificador - individual, social, clínico - originador da consciência da loucura por parte do doente (de si próprio através dos outros).110 Do mesmo modo que o ruído branco, sendo cheio nas suas múltiplas frequências, resulta vazio e sem vitalidade na sua variação de amplitude.

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Fig. 52 - Espelho, monitor, altifalante e luz vermelha.

O monitor, situado em contra-ponto à janela e ao seu exterior, aos quais se direciona e com os quais establece um contra-campo, reproduz imagens que partilham com o som a mesma intensidade e densidade. No entanto, na narra-tiva visual, é a consistência do tempo que corre através dos planos que marca o rítmo[111], e não a duração de cada um deles. A união existe pela pressão do tempo no seu interior. O quadro é aqui, um indício de vida (Tarkovski, 2002 1990: 139).

e) Em Farmácia (figura 53), colocado no chão frente à entrada da cela, um espelho de toucador reflete o mundo exterior recortado pelos limites da janela, ladeado por vitrines com objetos e instrumentos farmaceuticos. Quebrado, e mais uma vez auto-reflexivo para o espetador, o espelho assume-se represen-tativo de múltiplas fragmentações afetivas, oníricas, imagéticas, da memória e do corpo, também ele quebrável pela farmacologia hospitalar. Multiplicador de imagens e de reflexos fraturantes da realidade perceptível através das grades da janela, o espelho impossibilita o discernimento e fixa um presente incapaci-tado de o ser, preso a sonhos e laços quebrados, disfuncionalidades e silêncios, a delírios factais. Colocado ao fundo da cela, sob a janela, um outro espelho reflete intacto o lilás florescente da luz negra, poderosa na fantasmagoria dos seus brancos, misto de transe e de delírio que a todos parece rodear e atingir.

111 “O ritmo, então, não é a sequência métrica das diferentes peças: ele é a criação pela pressão temporal no interior dos quadros. Além disso, estou convencido de que o principal elemento formal do cinema é o ritmo, e não a montagem, como as pessoas costumam pensar. (...) a montagem cin-ematográfica junta pedaços de tempo, que estão impressos nos segmentos da película (...) o ritmo é comunicado pela vida do objeto visualmente registado no fotograma.” (Tarkovski, 2002 1990: 139-143)

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Fig. 53 - Entrada na cela Farmácia.

Trata-se da única instalação sem som, mas onde todos os sons se conju-gam para ganhar novo sentido visual, entrecortados na sua escuta pelo movi-mento do público. Aqui, o silêncio de Cage ganha novamente sentido, assu-mido como fusão entre a reverberação sonora produzida pelo conjunto das instalações e a formação de novas narratividades participadas por todos os ouvintes, de modo a transformar o Panóptico num lugar praticado.

3.2.2. Delírios espetrais: Aísthesis (2014)

Um altifalante, um amplificador, um cartão de memória, cabos áudio, cabos elétricos,

vinte florescentes, cinco focos, cinco radiografias, um sinalizador de emergência e

uma bola de espelhos.

Duração sonora de 00’45’’.

Instalação.

Panóptico, CHCF, Porto

A primeira intervenção realizada no Panóptico do Conde Ferreira com-punha-se de diversas instalações que perfaziam um todo interpretativo assente em relações de conectividade com a história e com a museologia instalada. Esta segunda intervenção remete para uma dimensão mista, entre fantasia e fantasmagoria, resultante da leitura do edifício enquanto objeto, verticalmente assumido da cave à clarabóia, e do desejo de subverter a funcionalidade e his-toricidade do edifício.

A transformação da claraboia em vitral colorido foi o primeiro sinal ex-

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terno da intervenção fantasista no Panóptico. Iniciado com a montagem do andaime (figura 54), o processo passou pela medição, limpeza e colagem dos celofanes. Constituídas por múltiplos pares de oito tonalidades diferentes, as cores da claraboia foram escolhidas de modo a criar um conjunto alternado entre cores quentes e frias.

Fig. 54 - Montagem dos filtros em celofane nos vidros da claraboia.

Para a iluminação da claraboia foi pensada uma luz rotativa que desse o efeito de um farol mágico e colorido. A solução encontrada passou pela sua criação a partir de um sinalizador de emergência adaptado, ao qual foi neces-sário adicionar intensidade luminosa. Conseguida essa alteração, e depois de verificada a sintonia entre a cadência do som (CD: áudio 8) e o movimento da luz, passei à sua colocação na claraboia, a meia altura dos vidros, de modo a tornar eficiente o seu efeito de projeção das cores para o exterior do Panóptico. Efeito de fantasia que se vê reforçado pelos múltiplos reflexos produzidos pela bola de espelhos colocada à entrada do edifício, de movimento consentâneo com o sentido melódico da música ouvida.

Fig. 55 - Exterior da claraboia iluminada.

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Diretamente captada a partir de uma caixa de música, a melodia que serviu de base ao som da instalação foi ligeiramente estendida no tempo, de modo a acentuar o sentido de suspensão dos timbres musicais e dos silêncios, e a gerar uma continuidade incerta. Central e reverberante em tudo e em to-dos, aproveita a acústica do edifício para propagar o sua direcionalidade mo-nocanal até à cave. A música, refere Nancy (2014 [2012]: 36), encarrega-se de pôr em marcha o instante presente do lugar, que é ao mesmo tempo passado: passado e presente em devir. Assim, o sentido musical melódico, instrumen-talmente simplificado e repetitivo no mote, gera a segurança acórdica de uma harmonia e produz um efeito de leitmotiv que, contínuo, abarca a totalidade temporal da instalação. Música, cuja emotividade vai alterando à medida que progredimos no espaço em direção ao contexto visual da cave.

No núcleo central do Panóptico, sob a penumbra da luz refletida da cla-raboia, as portas fechadas das celas acentuam a verticalidade do edifício e per-mitem observar as radiografias colocadas em contra-luz nos óculos de vigia. Indutoras de ambiguidade imagética acerca da realidade retratada, entre espa-ço sideral e microcosmos humano, as radiografias (figura 56) expõem a inti-midade da minha caveira e a perenidade dos meus ossos, em comunhão com os esqueletos esquecidos da cave.

Fig. 56 - Radiografias do meu esqueleto.

À medida que penetramos na cave (figura 57), o encantamento inicial deixado à superfície vai-se metamorfoseando em inseguranças e medos su-gestionados pelo estreitamento e a contenção do espaço, mas sobretudo pela intermitência eletrocutante e psicótica das luzes da cave, visíveis do exterior. Técnicamente imprevisíveis e disfuncionais, tal como os mapas, as máquinas de eletrochoques, os instrumentos médicos e os musicais deixados na cave, as florescentes geravam assincronismos contrastantes com a melodia musical e

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o ressoar do caminhar dos visitantes no piso superior, central ao Panóptico. Recolhidas de um armazém escolar, onde se tinham acumulado durante anos, estas florescentes correspondiam ao imaginário gerado em mim pelo que en-contrei na cave, e em que não mexi: mais de um século de camadas sucessivas de abandono. Colocadas com precisão, iluminavam parcialmente o espaço e os objetos ali encontrados, em número não excessivo e de modo a contracenarem entre si, regidas por tempos, intensidades e durações previamente estudadas e consecutivamente corrigidas durante a montagem e a afinação do dispositivo da instalação. Sobretudo visual, esta desfuncionalidade resultava igualmente sonora, na fraca intensidade ruidista que assinala os cíclicos fluxos e re-fluxos energéticos dos arrancadores e das lâmpadas. Assim, esta instalação remete para uma aísthesis fenomenológica do sentir que se manifesta através da con-dição sensitiva do sonoro e do visual.

Fig. 57 - À entrada da cave.

3.3. Em preparação...

3.3.1. In-Cubango

Desenvolvimento de técnicas com vista a experimentar a reverberação de sons de guerra em chapas zincadas, recorrendo a altifalantes indutores. Sons de guerra que farão vibrar uma campânula de alumínio com dois altifalantes fixos no seu interior. Suspensa, a campânula projeta uma luz vermelha sobre restos de serradura com odor a madeiras exóticas.

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3.3.2. Stalker

No filme de Andrei Tarkovsky, Stalker, mantendo o som original e re-cortando as legendas da imagem projetada a partir de uma cópia VHS, num retorno à importância do texto e do escutado, à oralidade e ao imaginário por ela despoletado.

3.3.3. Câmara Aural

Instalação sonora interior ao espaço auditivo, de onde é possível obser-var. O audível através dos microfones colocados no exterior do edifício e dos altifalantes que reproduzem a auralidade manipulada da paisagem. Visível e audível remetem para o aparente realismo da captação e do seu sincronismo.

3.3.4. Sputnik

De forma simples, associar o sinal sonoro do primeiro Sputnik aos múl-tiplos reflexos resultantes da projeção da luz de um foco sobre um bola de espelhos. Um sinal minimal de leituras variáveis, correspondente a diferentes técnicas e latitudes geográficas, quando não geo-políticas.

Nesta instalação, o ritmo da composição é determinado pelos intervalos internos e externos a cada um dos seus elementos sonoros.

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Conclusão

Esta investigação realizou-se na procura de uma definição de intermedia, identificativa das suas origens históricas e dos pressupostos que regem as suas práticas. Nesse sentido, houve um regresso a 1965 e aos pressupostos defen-didos para o intermedia por Dick Higgins que foram enunciados e debati-dos neste estudo por diversos autores. Dessas formulações, surgiram algumas referências que se foram tornando conclusivas e recorrentes em quase todos os capítulos: a naturalidade que advém do intermedia enquanto processo de cruzamento e de fusão entre diferentes media; a intermedialidade inerente à construção de formas de arte híbridas; a integração disciplinar em que se es-tabelece; a ligação entre arte e vida, o indeterminismo e a inclusão dos media de fora da arte, como princípios orientadores; a importância dos espetado-res, também eles media da arte, e da sua subjetividade na contextualização da criação. Referências que têm origem em práticas modernistas e continuação alargada em John Cage e no movimento Fluxus, situados no primeiro capítulo. Capítulo onde a distinção entre medium e media, e a noção de dispositivo, são igualmente importantes, por se tratar de referências essenciais à abordagem do intermedia, tanto no sentido instrumental da sua intermedialidade, como no sentido contextual da criação e interpretação dos seus dispositivos.

Associadas à definição de intermedia, surgem as componentes sonoras e da sound art, mais uma vez, numa perspetiva histórica e concetual que contri-bui para situar a intermedialidade do sonoro abordada no segundo capítulo. Nele, as noções de imaterialidade, de escuta, de ressonância ou de auralidade ajudam a definir um quadro terminológico de leitura das criações produzidas.

A investigação realizada, mais centrada na componente prática, corres-

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ponde ao conjunto de instalações apresentadas, que têm como referentes o intermedia e o sonoro. As instalações realizadas, em adequação ao perfil in-termedia que serve de orientação a esta investigação, situam-se: a) na atitude intermedial de fusão concetual entre os media presentes em Matéria Sonora, onde a matéria rochosa do xisto se liga à imaterialidade do som; b) no in-determinismo ditado pelas janelas abertas, em A (des)ordem do discurso, e pela captação em tempo real de Rádioatividade; c) na integração dos media situados fora da arte, presentes nas duas intervenções no Panóptico, ou seja, no recurso ao espelho, ao tripé clínico, à bola de espelhos, às florescentes, às radiografias e a todo um conjunto diversificado de artefactos inerentes aos diferentes espaços.

Em todas estas instalações, o ato interpretativo do público foi essencial à intervenção, tanto no seu posicionamento face ao cénico, como no sentido e na duração dos percursos empreendidos sem indicações explícitas a seguir, determinados em função da subjetividade inerente à sua experienciação, em interação com os diversos componentes de cada criação.

Com a prática desenvolvida durante esta investigação, procurei contri-buir para o incremento do intermedia, ao mesmo tempo que dei início ao meu trajeto de criação intermedia do sonoro.

Devido à minha área de origem ser tão distinta, tive a necessidade de me adaptar a procedimentos materiais e concetuais próprios das artes plásticas. Adaptação essa que terá de passar pela adoção contínua de novas metodolo-gias de trabalho e por novos dispositivos e ferramentas digitais, bem como por um aprofundamento do conhecimento das práticas contemporâneas. Preten-do ainda continuar a explorar práticas de intermedialidade do sonoro e sua expansão a outras formas de inclusão do cinematográfico e do vídeográfico, encarando esta investigação como uma etapa no processo de construção do conhecimento através da experimentação, ao qual será sempre imprescindível uma base teórica.

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Fontes iconográficas

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Fig. 10 — A pauta de Wochenende, sintética no seu grafismo.Walter Ruttmann, «Weekend», 1930score for «Weekend» | © <http://www.medienkunstnetz.de/works/weekend/>Fig. 11 — Cage em seu piano preparado.Photograph By Irving Penn / © 1947 (Renewed 1975) Condé Nast Publica-tions Inc. <http://www.newyorker.com/magazine/2010/10/04/searching-for--silence>Fig. 12 — Erratum Musical, 1913.<http://www.toutfait.com/issues/issue_1/Music/erratum.html>Fig 13 — Allan Kaprow e Robert Whitman na Reuben Gallery, durante a montagem de 18 Happenings in 6 Parts.<https://neokunst.wordpress.com/2015/03/30/arte-para-dummies-7-el-ha-ppening/>Fig. 14 — Piano Activities, 1962, Fluxus Internationale Festpiele Neuester Musik George Maciunas, Emmett Williams, Benjamin Patterson, George Ma-ciunas, Dick Higgins e Alison Knowles © 2015 Philip CornerFig. 15 — Diagrama Intermedia Chat elaborado por Dick Higgins.<https://muse.jhu.edu/journals/leonardo/v034/full/34.1higgins_fig01f.jpg>Fig. 16 — Plano de configuração das antenas (linhas coloridas) em Drive In Music (1967).Fig. 17 — Da esquerda para a direita, R. M. Schafer, Bruce Davis, Peter Huse, Barry Truax e Howard Broomfield.<http://www.sfu.ca/~truax/wsp.html>Fig. 18 — Electrical Walks durante o Festival de Música Contemporânea de Huddersfield, em 2007.<http://www.statedecay.co.uk/p18.php>Fig. 19 — Kirribilli Wharf (1976).<http://resoundings.org/Pages/Untitled1.html>Fig. 20 — AION (2006) de Jacob Kirkegaard.<http://fonik.dk/works/aion.html>Fig. 21 — Tuba-Architecture (1999) de Bernhard Leitner.<http://www.archdaily.com/168979/bernhard-leitner-sound-spaces>Fig 22 — Le Cyclop (1969-1994) de Jean Tinguely<http://www.atlasobscura.com/places/le-cyclop>Fig. 23 — Live/Taped Vídeo Corridor (1970) de Bruce Nauman.<https://www.youtube.com/watch?v=9IrqXiqgQBo>Fig. 24 — Instalação de Tierry Kuntzel, L’eau (2003)<https://vimeo.com/58473589>

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Fig. 25 — Pátio interior do CHCF, próximo à enfermaria das mulheres.Fig. 26 — Fotograma de Antero (2011).Fig. 27 — Captação do soundscape de Istambul.Fig. 28 — Vídeograma do mar no estreito de Bósfofo.Fig. 29 — Registo fotográfico em Gimonde, Bragança.Fig. 30 — Interferências rádio e acústica tubular.Fig. 31 — Altifalante de indução em chapa de zinco.Fig. 32 — Workshop com Miguel Pipa na Sonoscopia.Fig. 33 — Vídeograma de film.frame (2013)Fig. 34 — Experiências realizadas em grupo com Luís Costa.© Binaural/Nodar, 2012Fig. 35 — Xisto sobre flanela preta.Fig. 36 — Espelho do aparelho rádio.Fig. 37 — Imagem gerada pela emissão rádio.Fig. 38 — Preparação para a leitura do texto no Panóptico do CHCF.Daniel Pinheiro / SintomaFig. 39 — Captação de som no Panóptico.Daniel Pinheiro / SintomaFig. 40 — Durante a escuta do vinil da instalação.Fig. 41 — Dispositivo sonoro e retrato, aumentado e em versão original.Fig. 42 — Fotografia de estudante segurando uma caveira.Fig. 43 — Fachada do Centro Hospital Conde Ferreira<http://porto-sentido.blogs.sapo.pt/tag/hospital>Fig. 44 — Capa do catálogo de 2001.Fig. 45 — Estrutura panóptica do edifício de Bentham.<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d8/Penetentiary_Pa-nopticon_Plan.jpg>Fig. 46 — Fachada de entrada no Panóptico.<http://arquiteturaufpamemoria.blogspot.pt/2012/08/missao-de-pesquisa--em-portugal-parte.html>Fig. 47 — Diagrama do edifício e do posicionamento das instalações.Fig. 48 — O Panóptico num pormenor da planta original do CHCF. Fig. 49 — Vista geral do altifalante central à claraboia.Fig. 50 - Vermelha, a luz movimenta-se ao longo da parede.Fig. 51 — Tripé clínico com altifalantes.Fig. 52 — Espelho, monitor, altifalante e luz vermelha.Fig. 53 — Entrada na cela Farmácia.Fig. 54 — Montagem dos filtros em celofane nos vidros da claraboia.

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Fig. 55 — Exterior da claraboia iluminada.Fig. 56 — Radiografias do meu esqueleto.Fig. 57 — À entrada da cave.

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RANGEL, André (2015) – Estudo Particular das Dinâmicas Intermedia no Início Do Século XXI, Porto, Universidade Católica Portuguesa/Tese de Dou-toramento, 2015.