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Diálogo para respeito das diferenças - ufrgs.br · 1 Diálogo para respeito das diferenças Entrevista Revista Filosofia Para François Jullien, a harmonia entre os povos se dará

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Diálogo para respeito das diferenças

Entrevista Revista Filosofia

Para François Jullien, a harmonia entre os povos se dará por meio de um diálogo e do respeito às peculiaridades de cada cultura, mesmo no mundo globalizado. Caminho obtido com a compreensão e a aceitação

Por Thaís Rrücker e Vinicius Simas

Depois da Europa e da Ásia, a América do Sul. Em eterna pesquisa sobre a diversidade cultural, o filósofo francês François Jullien visitou o Brasil para disseminar e abranger seus conhecimentos sobre a complexidade do mundo.

Sinólogo, ele escolheu a China como contraponto forte à Filosofia francesa. "A cultura chinesa tem uma tradição escrita e é a única civilização distante ao ocidente que também está bem desenvolvida." O filósofo sabe como poucos as peculiaridades do pensamento difundido no Oriente e Ocidente e vê como um jogo de tabuleiro a disputa por influência travada entre as regiões. Para ele, é a compreensão – e não a tolerância, termo que seria mal empregado – a chave para a solução dos conflitos de diferenças de culturas e religiosos. Para tanto, é necessário rever alguns conceitos hoje impregnados: "Acho urgente criticar o universalismo para retomar e requestionar o universal e promover o comum, o que impediria o sectarismo da cultura".

Jullien esteve em Porto Alegre durante a 55ª Feira do Livro, onde ministrou palestras e divulgou sua mais recente publicação traduzida para o português, O diálogo entre as culturas: Do universal ao multiculturalismo. Na passagem pela cidade, o filósofo concedeu uma entrevista exclusiva à Filosofia Ciência & Vida, na qual teve oportunidade de explicar o método utilizado para analisar o hiato existente entre a Filosofia europeia e a filosofia chinesa. Também fez questão de destacar o desenvolvimento da cultura brasileira que, segundo ele, será o principal contraponto para o pensamento oriental no futuro.

O renomado filósofo é autor de mais de 20 livros, traduzidos para cerca de 20 países. Entre suas obras destacam-se Um sábio não tem ideia; Do tempo: elementos para uma filosofia do viver; Figuras da imanência - Para uma leitura filosófica do I Ching, o clássico da mutação; e Tratado da Eficácia, todos disponíveis em Português. Professor da Universidade de Paris VII, diretor do Instituto do Pensamento Contemporâneo e membro do Instituto Universitário da França, François Jullien dedicou-se ao pensamento chinês nas universidades de Pequim e Xangai, tornando-se doutor em estudos do Extremo Oriente.

FILOSOFIA – De onde surgiu e como aconteceu o interesse na cultura chinesa? Como foi o período de estadia lá?

François Jullien – Vem do meu interesse pela Filosofia europeia, particularmente a grega, numa tentativa de introduzir uma dissidência com a Filosofia tradicional do ocidente e achar um ponto de exterioridade. Escolhi a China por duas razões: pela distância das linguagens, já que

Mal-estar na Cultura / Abril-Novembro de 2010Promoção: Departamento de Difusão Cultural - PROREXT-UFRGSPós Graduação em Filosofia - IFCH – UFRGS

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o chinês não tem ligação com os idiomas europeus, e por causa da história das culturas e da sociedade. A Europa e a China não têm ponto em comum. Essa escolha não foi pautada por sedução, exotismo ou fascinação, mas realmente por um interesse em requestionar o pensamento francês.

Essa estratégia filosófica envolveu dois desafios: o primeiro trata de desabituar-se, quebrar com conceitos conhecidos como "sujeito", "ser", "realidade", "Deus". O segundo ponto é repensar a linguagem, é uma ruptura com as habitués do pensamento.A dificuldade é que normalmente se retoma à historia do pensamento filosófico, o que não é possível na China, em função da distância. Isso cria o que eu chamo de ecárt e proporciona uma maneira estratégica e indireta de requestionar o pensamento. Dessa forma, não poderia ter feito este estudo na Índia, por exemplo, porque há uma história em comum com as linguagens do Velho Mundo. Não podia ser em um país islâmico porque também está ligado historicamente à Europa, e o Japão tem uma cultura derivada da sociedade chinesa.

A cultura chinesa tem uma tradição escrita e é a única civilização distante do ocidente que também está bem desenvolvida. Por isso, oferece um contraponto forte. A primeira vez que visitei o país foi em 1976, um momento pouco acolhedor, era final da revolução cultural, logo antes da morte de Mao Tse Tung. Foi interessante ver a radicalização da revolução e o início da abertura para o pensamento ocidental.

FILOSOFIA – Como você vê a transformação da China de um regime comunista para o capitalismo? No seu último livro, você fala em uma "transformação silenciosa". Significa que não houve uma ruptura?

Jullien – Exato. É o que a diferencia de outras nações, como a União Soviética, onde houve várias rupturas com o regime. A China passou por uma transformação global, contínua e homogênea. Foi do socialismo ao hipercapitalismo sem eventos maiores. Em nenhum momento se disse "vamos desmaoizar agora". O que se percebeu foi uma mudança gradativa de comportamento. Por exemplo, a presença do Mao nos jornais foi diminuindo progressivamente, uma mudança lenta que não gerou argumentos para revolta. Uma particularidade do partido comunista chinês é que, a partir da morte do Mao, ele se transforma, passando de um comunismo clássico para um comunismo mais administrativo. Isso é único no mundo. Em outros países comunistas, o regime acabou ou se isolou, como em Cuba ou na Coreia do Norte. O que aconteceu na China foi muito original e os ocidentais não sabem reconhecer essa transformação silenciosa.

FILOSOFIA – De que forma você acha que essa transformação silenciosa pode beneficiar a China e qual é o real potencial de desenvolvimento do país?

Jullien – Um bom exemplo é o que acontece na África. Os chineses, de uma maneira discreta, estão tomando o comércio, se instalando, sem um movimento forte que vá gerar reconhecimento. É bem sutil. Essa maneira de se comportar não permite que haja revolta, indignação ou um contra-argumento de outros países. Posso fazer uma comparação com o Go (tradicional jogo chinês de tabuleiro, originalmente chamado de Wei Qi) e o Xadrez. O Go não é disputado entre dois adversários que buscam conquistar territórios como acontece no Xadrez. Você vai devagar, criando zonas de influência, e assim prende o adversário. Hoje em dia, a influência da China no mundo acontece dessa forma. Ela se desenvolve sem ser percebida.

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É uma nova maneira de imperialismo. Por exemplo, a China está comprando as dívidas financeiras de alguns países, mas isso não é muito comentado, ocorre de forma discreta e eficaz. Na Europa e no ocidente, temos uma imagem do imperialismo que vem da cultura romana, de conquista de territórios através de um alto custo em termos de vidas e dinheiro, o que cria uma oposição forte. Se analisarmos a história das colonizações, veremos que na África os franceses fizeram uma colonização dura, imposta. Já a China se expande comprando petróleo e outros recursos naturais, se instala sem permitir uma oposição mais incisiva. Posso ilustrar esse ponto de vista citando o que ocorre em Paris. A festa da primavera, do calendário chinês, acontecia apenas no bairro 13, de maioria chinesa. Atualmente ela já é comemorada em toda a cidade. É a maneira da China agir.

FILOSOFIA – Qual é a definição exata do termo multiculturalismo? E qual é a visão do mundo atual acerca desta questão?

Jullien – Não vejo as culturas em termos de identidade. Elas se transformam o tempo inteiro, se homogeneízam e se expandem. Em alguns momentos serão mais dominantes e em outros menos. Por isso, prefiro usar a palavra fecundidade. A cultura é um recurso de desenvolvimento que pode criar uma écart. Quero fazer uma diferenciação entre "distância" e "écart". Distância tem relação com identidade. Écart permite explorar até onde vão as possibilidades de diálogo. Minha maneira de ver o termo "diálogo entre as culturas" é essa possibilidade entre os écarts. A palavra "diálogo" é muito usada jornalisticamente, na Política, e se banalizou. É um termo suspeito porque permite esconder as dualidades. Para retomar o verdadeiro sentido, é preciso entender que, em latim, dia significa écart, e logos é inteligível. Na China, há um grande movimento que questiona os valores asiáticos. Para mim, é uma maneira de reescrever o que é natural e comum. A inteligência humana não é algo fechado, acabado. Creio que é melhor analisar diferentes inteligibilidades para criar uma parte comum entre todos.

FILOSOFIA – Em seu livro, você busca a genealogia dos conceitos "universal", "uniforme" e "comum" em contraste com os termos "alteridade", "singular" e "heterogêneo". Quais são as conclusões desta pesquisa e o que isso pode influir nesta troca intercultural?

Jullien – Considero que "universal" tem um sentido fraco e outro, forte. O primeiro constata que tudo sempre foi da maneira que é e não vai mudar. O segundo aponta para uma necessidade a priori, que vem antes da experiência, e tem base no pensamento clássico europeu. Acho que, no momento em que você encontra outras culturas, essa questão do universal precisa ser revista, nos damos conta da visão singular do que encarávamos como universal. Existe a contradição com a própria exigência da palavra. O "uniforme" é uma perversão do "universal". É um conceito de produção, faz pensar em termos de comodidade, porque é repetido muitas vezes.

O que acontece hoje no mundo, é que o uniforme se desenvolve tanto, em tantos países, que somos levados a pensá-lo como universal. Já o comum é definido pelo compartilhamento, seja com a família, com a natureza, com amigos, com outros países. É o início do pensamento político de Aristóteles, de que as noções de comum levam a uma posição política de pensar. O outro sentido é o inverso, impõe um limite, uma fronteira para o compartilhamento, vem daí o termo "comunidade". Essa noção pode ser inclusiva e exclusiva. As noções de "comum", "universal" e "uniforme" são ambíguas. Analisando o ecárt entre a China e o Ocidente, não

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acredito que exista no mundo a possibilidade de pensar como universal, essa contradição fica evidente no convívio com outras culturas. Questionar o universal significa questionar conceitos como o "ser humano", "Deus", "a verdade". Mas o outro lado disso não é ruim. Essa noção de "universal" fez com que os pensadores, o mundo, pensassem em termos do que é comum.

FILOSOFIA – De que forma o universalismo oprime e estimula os choques culturais?

Jullien – Eu vejo o "universal" como o contrário do "universalismo". A noção de universalismo é completa, enquanto a de universal é falha. Cito um exemplo: na França, quando foi instituída a eleição, o voto era encarado como algo universal, embora as mulheres não tivessem esse direito. Atualmente, falamos de sufrágio universal, mas os estrangeiros não podem votar. Por isso, uso o termo "universalismo preguiçoso", porque pretende ser global sem se dar conta do que lhe falta. Em contrapartida, uma visão positiva de universal é abrir a noção de ausência, permitindo repensar a questão do universalismo.

FILOSOFIA – A declaração dos Direitos Humanos pode ser considerada um exemplo de universal?

Jullien – Na definição dos Direitos Humanos não foi diferenciado o sentido forte e fraco de "universal". O sentido fraco da declaração é acreditar que todo país tem a possibilidade de adotá-lo, e o forte é que cada país precisa fazê-lo. É equivocado pensar na declaração como algo que inclui todos os países e as culturas. Os direitos humanos são resultado da história particular do ocidente nos séculos XVII e XVIII, até a civilização grega não se pensava nisso. E sendo parte de um momento tão específico, podemos nos perguntar se é possível vê-los como universais ou se perdem esse teor absoluto.

O desafio, então, em se tratando dos direitos humanos é articular o fato de serem fruto de uma época específica com a importância global que representam. A posição da UNESCO, hoje, afirma que devemos relativizar os conceitos. Eu proponho pensar essa relação entre a singularidade dos direitos humanos com a exigência de absoluto, fazendo uma distinção entre o lado positivo e o negativo. Para isso, retomo a noção de ausência do "universal". O lado positivo é a adesão a alguns valores particulares da sociedade burguesa europeia dos séculos XVII e XVIII, como "o individual", "o contrato social", "a felicidade na Terra para todos" e "a crença religiosa". Sendo particulares, não vejo porquê eles deveriam ser impostos como algo universal para todos os países. O lado negativo é o "não" que gera uma resistência, a partir do momento em que se tenta impor algo a alguém. Quando você nega uma situação, não faz isso por causa de certos valores, mas por uma reação humana.

O inaceitável gera reação. É por isso que no meu último livro (L’invention de l’idéal et le destin de l’Europe ou Platon lu de Chine, 2009) crio o conceito de "universalizando". Os direitos humanos não são universais, mas sim uma maneira de trazer e promover o "universalizando". Com essa palavra se percebe que o universal é um processo. Às vezes as pessoas perguntam se os direitos humanos são universalizados. Não acho, porque se falo isso, vejo como uma verdade, mas não é uma questão de verdade ou conhecimento. O "universalizando" é uma noção que promove o universal dentro da humanidade. Na Filosofia antiga, o conceito de universal foi construído como sendo o oposto do conhecimento.

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FILOSOFIA – Há alguma influência do pensamento chinês na Filosofia grega? E na cultura contemporânea ocidental?

Jullien – Na filosofia grega não existe. Quanto ao mundo ocidental, eu hoje tenho dúvidas quanto à influência do pensamento oriental na Europa, ou até mesmo no Brasil. Creio que existe uma fantasia ocidental de tentar encontrar respostas no pensamento oriental. O interessante, quando se passa da Grécia para a China, é perceber que os questionamentos dentro da Filosofia europeia perdem o sentido. Por exemplo, as noções de liberdade e determinismo, tão debatidas no ocidente, na China se decompõem e são desnecessárias. A crença em Deus, que no ocidente é algo existencial, nem precisa ser pensada na China, ninguém vai refletir e tentar provar a existência Dele. Acho que não vale a pena buscar soluções na China ou em outro país, isso nunca vai acontecer. De maneira geral, ir a outro lugar para achar respostas não funciona. Você deve encontrá-las sozinho. O que alguém pode ganhar indo à China é uma oportunidade de reflexão em relação aos pensamentos ocidentais.

FILOSOFIA – Você diz que desconfia das junções greco-romanas e judaico-cristãs. Por que?

Jullien – É muito fácil fazer esse tipo de composição, mas para analisar mais a fundo é importante ir ao princípio, quando Roma era muito diferente da Grécia. Foi só num segundo período, quando o império romano conquista a Grécia, que surge essa influência grega. Temos uma visão global da civilização greco-romana, mas é preciso ter em conta que a história de cada um dos dois têm características próprias, que se cruzaram em determinado momento. Não existe filosofia romana, ela veio da Grécia e foi traduzida, mas é bom notar que a noção de leis e direitos vem da cultura romana. É um abuso pensar em globalidade quando se fala em judaico-cristão. É uma maneira preguiçosa de pensar. Da mesma forma, são duas histórias particulares que se cruzaram.

FILOSOFIA – Você acredita que o diálogo entre as culturas pode contribuir para a redução dos conflitos étnicos e religiosos? Como isso seria possível?

Jullien – Eu diria que sim, é a única solução. Mas devo deixar claro que não vejo a resolução desses conflitos a partir de um compromisso de valores. Por isso não encaro as relações de culturas a partir de valores. Não gosto de falar em tolerância. Acho que esse termo remete a compromisso, onde se reduzem as exigências próprias para alcançar um ponto de encontro com o outro. Cada um vai perder um pouco. Faço um contraponto entre compreensão e compromisso, e prefiro a compreensão porque no momento em que se faz esse exercício, o processo faz você repensar algumas das suas verdades, refletindo de acordo com as concepções do outro.

A liberdade, por exemplo, é vista como um conceito absoluto. Concordo com isso, mas não há razão para a cultura chinesa mudar sua ideia de liberdade para estar de acordo com o ocidente. Perceber a visão de liberdade da China é obter uma chance de reflexão da nossa própria forma de vê-la. Não é uma tolerância que se faz com compromisso, mas uma inteligência que acontece com compreensão. Saliento que "inteligência" é um processo de questionamento, é como uma obra em eterna construção.

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FILOSOFIA – Completando esta questão acima... Podemos notar na religião um dos maiores focos de choque de cultura. É possível sentir, no islamismo, por exemplo, uma hostilidade a fim da reafirmação de sua cultura frente a imposições ocidentais. O 11 de setembro talvez seja o exemplo máximo. Você que viveu no oriente, quais são outros exemplos, não tão evidentes desta reafirmação, que se legitimam no choque de culturas?

Jullien – É o que a China está fazendo nesse momento, tentando reafirmar os valores de Confúcio. É uma maneira ofensiva contra os valores ocidentais, ditos universais. Um exemplo são os Institutos Confúcios criados em várias partes do mundo. Alguns estão inclusive dentro de universidades, como na Paris VII, onde trabalho. Claro que não tem nada a ver com as reações violentas do mundo islâmico, mas é uma estratégia bem pensada da China.

É preciso lembrar que a Europa é que foi para a China, no final do século XIX, e levou conhecimentos de Política, Ciência, Física e também a noção de revolução e comunismo. Acho que, hoje em dia, há uma vontade de revanche por parte da China, para sair da tutela ocidental. Podemos perceber, através de reivindicações de setores tradicionais, que existe uma busca pela identidade nacional, diferente da proposta europeia, que tenta se promover como universal. É por isso que acho urgente criticar o universalismo para retomar e requestionar o universal e promover o comum, o que impediria o sectarismo da cultura. Na história do Brasil também houve um processo de criação de uma identidade nacional, no início do século XX. Mas é uma situação diferente, pois sempre existiu uma ligação com a Europa, e não houve uma revolta, que se pode notar na China e mais ainda nos países islâmicos.

FILOSOFIA – Para concluir, qual a sua visão da cultura brasileira e sua relação com outras culturas?

Jullien – A cultura ocidental, graças ao Brasil, está se transformando, ela ganha através da vitalidade política e econômica brasileira. Eu vim para ver isso, o Brasil é um lugar de desenvolvimento novo da cultura ocidental e, por isso, tenho interesse em ter meus livros traduzidos para o português. No entanto, há um grande ecárt entre Brasil e China, especialmente se pensarmos na sociabilidade brasileira. Os chineses estão evoluindo rápido, percebem muito bem o pensamento ocidental, mas não são capazes de entender essa originalidade brasileira. Creio que, no futuro, é a cultura brasileira que fará um contrabalanço com a chinesa, pelo fato de não poder ser assimilada facilmente.

Fonte: http://www.revistafilosofia.com.br/ESFI/Edicoes/43/artigo162140-1.asp

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