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61 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 61-81, jun. 2006 Pierre Bourdieu DIÁLOGO SOBRE A POESIA ORAL NA CABÍLIA ENTREVISTA DE MOULOUD MAMMERI A PIERRE BOURDIEU 1 Neste diálogo, Pierre Bourdieu e o etnólogo, escritor e poeta argelino Mouloud Mammeri (1917-1989) exploram e explicam as bases sociais, os usos e o sentido da poesia oral na sociedade e história cabilas. Como filho do penúltimo amusnaw (sábio; bardo) de sua tribo, Mammeri estava posicionado de maneira única para situar esse mestre das palavras que atuou na função tradicional de mediador e transportador do conhecimento e manteve-se como a encarnação viva da tamusni (a filosofia prática da excelência berbere), em relação com o marabuto (depositário das sagradas escrituras do Corão) e com os camponeses (que compõem seu público principal). Torná-se amusnaw graças a uma eleição e isso requer um duplo aprendi- zado: primeiro, por osmose em um meio saturado de comércio e disputas verbais (no treinamento de guerra, na assembléia da vila, nos mercados e nas peregrinações) e, depois, por meio de um treinamento explícito com um poeta-mestre que orienta uma série de exercícios e provas. Esse processo requer não apenas o domínio de uma variedade de técnicas verbais e de um cânone oratório, mas também implica absorver e encarnar a sabedoria. Jogando com a multidimensionalidade da linguagem, adaptando-a com flexibilida- de diante das especificidades de cada situação e público, o bardo cabila era continuamente testado e suas habilidades culturais infinitamente refinadas, até o ponto em que ele não apenas dominasse as regras do ofício, mas também jogasse com elas, trangredindo-as no espírito da tradição a fim de inventar novas figuras retóricas e extrair o máximo de “rendimento” da linguagem. A tamusni emerge assim não apenas como um corpo de conhecimento inerte, desligado da vida e transmitido por si mesmo, mas como uma “ciência prática”, constantemente revivida pela e para a prática. O poeta é o porta-voz do grupo que, por meio de seu discernimento cultural e uso técnico da linguagem, aperfeiçoa os valores específicos do grupo, separa coisas que são confusas e, ao iluminar o que é obscuro, mobiliza seu povo. PALAVRAS-CHAVE: poesia; oratória; tradição; saber prático; artesanato; Cabília. Recebido em 25 de outubro de 2005 Aprovado em 19 de novembro de 2005 Talvez seja porque sempre associei a análise da Cabília à análise de Béarn, em um trabalho de socioanálise, é que fui capaz de modificar a forma do discurso sobre os cabilas, dando condições para que eles pudessem aceitar a etnologia, mesmo os mais rebeldes e resistentes à objetivação, contribuindo para dissuadi-los da alternativa entre a etnologia colonial e a recusa da etnologia. O auge desse trabalho, a meu ver, são os diálogos que pude travar com Mouloud Mammeri, o primeiro deles publicado no número de abertura da revista Awal (‘Du bon usage de l’ethnologie’), o segundo nas Actes de la recherche en sciences sociales, este sob o título ‘Dialogue sur la poésie orale en Kabylie’. Esse texto mostra que não há antinomia entre o intuito de reabilitação, que motivou a pesquisa de Mammeri sobre a poesia anti- ga dos berberes da Cabília, e o intuito etnológico de interpretação. A etnologia, condição do conhecimento de si mesmo como exploração da 1 Tradução de Luciano Codato. Revisão da tradução: Fábia Berlatto e Bruna Gisi. Entrevista gravada em 17 de feverei- ro de 1978 e publicada originalmente em Mammeri e Bourdieu (1978). Todas as notas da presente edição são extraídas da tradução inglesa de Richard Nice e Loïc Wacquant, publicada na revista Ethnography (MAMMERI & BOURDIEU, 2004). Revisão final: Adriano Codato.

Diálogo sobre a poesia oral na Cabília

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 61-81 JUN. 2006

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 61-81, jun. 2006

Pierre Bourdieu

DIÁLOGO SOBRE A POESIA ORAL NA CABÍLIAENTREVISTA DE MOULOUD MAMMERI

A PIERRE BOURDIEU1

Neste diálogo, Pierre Bourdieu e o etnólogo, escritor e poeta argelino Mouloud Mammeri (1917-1989)exploram e explicam as bases sociais, os usos e o sentido da poesia oral na sociedade e história cabilas.Como filho do penúltimo amusnaw (sábio; bardo) de sua tribo, Mammeri estava posicionado de maneiraúnica para situar esse mestre das palavras que atuou na função tradicional de mediador e transportador doconhecimento e manteve-se como a encarnação viva da tamusni (a filosofia prática da excelência berbere),em relação com o marabuto (depositário das sagradas escrituras do Corão) e com os camponeses (quecompõem seu público principal). Torná-se amusnaw graças a uma eleição e isso requer um duplo aprendi-zado: primeiro, por osmose em um meio saturado de comércio e disputas verbais (no treinamento de guerra,na assembléia da vila, nos mercados e nas peregrinações) e, depois, por meio de um treinamento explícitocom um poeta-mestre que orienta uma série de exercícios e provas. Esse processo requer não apenas odomínio de uma variedade de técnicas verbais e de um cânone oratório, mas também implica absorver eencarnar a sabedoria. Jogando com a multidimensionalidade da linguagem, adaptando-a com flexibilida-de diante das especificidades de cada situação e público, o bardo cabila era continuamente testado e suashabilidades culturais infinitamente refinadas, até o ponto em que ele não apenas dominasse as regras doofício, mas também jogasse com elas, trangredindo-as no espírito da tradição a fim de inventar novas figurasretóricas e extrair o máximo de “rendimento” da linguagem. A tamusni emerge assim não apenas como umcorpo de conhecimento inerte, desligado da vida e transmitido por si mesmo, mas como uma “ciênciaprática”, constantemente revivida pela e para a prática. O poeta é o porta-voz do grupo que, por meio deseu discernimento cultural e uso técnico da linguagem, aperfeiçoa os valores específicos do grupo, separacoisas que são confusas e, ao iluminar o que é obscuro, mobiliza seu povo.

PALAVRAS-CHAVE: poesia; oratória; tradição; saber prático; artesanato; Cabília.

Recebido em 25 de outubro de 2005Aprovado em 19 de novembro de 2005

Talvez seja porque sempre associei a análise da Cabília à análise deBéarn, em um trabalho de socioanálise, é que fui capaz de modificar aforma do discurso sobre os cabilas, dando condições para que elespudessem aceitar a etnologia, mesmo os mais rebeldes e resistentes àobjetivação, contribuindo para dissuadi-los da alternativa entre aetnologia colonial e a recusa da etnologia. O auge desse trabalho, ameu ver, são os diálogos que pude travar com Mouloud Mammeri, oprimeiro deles publicado no número de abertura da revista Awal (‘Dubon usage de l’ethnologie’), o segundo nas Actes de la recherche ensciences sociales, este sob o título ‘Dialogue sur la poésie orale enKabylie’. Esse texto mostra que não há antinomia entre o intuito dereabilitação, que motivou a pesquisa de Mammeri sobre a poesia anti-ga dos berberes da Cabília, e o intuito etnológico de interpretação. Aetnologia, condição do conhecimento de si mesmo como exploração da

1 Tradução de Luciano Codato. Revisão da tradução: FábiaBerlatto e Bruna Gisi. Entrevista gravada em 17 de feverei-ro de 1978 e publicada originalmente em Mammeri eBourdieu (1978). Todas as notas da presente edição são

extraídas da tradução inglesa de Richard Nice e LoïcWacquant, publicada na revista Ethnography (MAMMERI& BOURDIEU, 2004). Revisão final: Adriano Codato.

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DIÁLOGO SOBRE A POESIA ORAL NA CABÍLIA

inconsciência histórica, abre um dos caminhos necessários à genuínareflexão”

Pierre Bourdieu, Esboço de uma teoria da prática.

Tikkelt-a add heg7g7ic asefruar Llleh ad ilhuar-d inadi deg lwedyatWin t-issnen ard a-t-yaruUr as iberruw’illan d lfahem yezra-t ...

Si Mohand-Ou-Mohand (segunda metade do séc. XIX)

Hei de compor o poemaTalvez seja bomCorra planíciesQuem ouvi-lo, poderá escrevê-loJamais o esqueceráO espírito perspicaz há de compreender seu sentido...

Aanic d bab i-y-idaaniffc felli lehdit llilIb bwd-ed yid madden akw ttsenger w’idlen d w’ur-endilAar nek imi d bu inezmanarmi-d iy’ âabban s-elmil

Hadj Mokhtar Ait-Saïd (primeira metade do século XIX)

Foi a maldição do paique me condenou a falar noite adentro?Quando cai a noite, todos dormemTenham ou não cobertorMenos eu, que sigo, coberto por inquietaçõesCurvando-me ao encargo

“Dar um sentido mais puro às palavras da tribo” (Mallarmé, LeTombeau d’Edgar Poe).

Pierre Bourdieu (Collège de France) – A poesiaoral e, de maneira mais genérica, aquilo que, poruma estranha combinação de palavras, é denomi-nado, às vezes, “literatura oral”, coloca a pesqui-sa diante de um aparente paradoxo. Um paradoxoque, sem dúvida, é produzido, em grande parte,pelas categorias de percepção que o pensamentoeuropeu, há muito dominado, mesmo nas formasditas “populares”, pela cidade, a escrita e a esco-la, utiliza para apreender as produções orais e associedades que as produzem. Como é possíveluma poesia oral e, ao mesmo tempo, dotada desabedoria, como a dos cantadores cabilas ou apoesia de Homero? A antinomia que desafia, des-de o início, a pesquisa sobre Homero é conheci-da: ou a poesia homérica é dotada de sabedoria, enão pode ser oral; ou é oral, e não pode ser dotadade sabedoria. A propósito, quando se admite que

ela é oral, como no caso da teoria de Lord e Parry2,os preconceitos em relação ao “primitivo” e ao“popular” impedem que as propriedades atribuí-das à poesia escrita sejam atribuídas também à

2 Nessa obra inaugural do estudo das literaturas orais (deque Bourdieu tira proveito, em Esboço de uma teoria daprática, para explicar a dialética prática do aprendizadotradicional e da invenção cultural), Lord compara a compo-sição e a técnica da poesia oral dos Bálcãs, coletada notrabalho de campo ao longo do séc. XX, com os poemashoméricos e outras obras européias medievais de caracte-rísticas semelhantes. O livro de Lord toma como ponto departida e desenvolve a teoria de seu mestre Milman Parry,classicista, professor assistente na Universidade deHarvard, que descobriu semelhanças entre os poetasiugoslavos e a Ilíada, no que se refere ao repertório depreceitos e códigos. Parry faleceu prematuramente em 1935,

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poesia oral. É inconcebível que as poesias orais epopulares possam, tanto na forma como no con-teúdo, ser produtos de uma investigação erudita.É inadmissível que possam ser feitas para seremrecitadas diante de um público de pessoas comuns,podendo conter um sentido esotérico, a ponto dese destinarem, portanto, à reflexão e ao comentá-rio. É inútil dizer que se exclui a possibilidade daobra ser produto de uma investigação consciente,que faz uso, em segundo grau, dos procedimen-tos, codificados e objetivados, mais característi-cos da improvisação oral como repetição. – Mastalvez devamos começar situando a relação dosenhor com a tamusni, a “filosofia” berbere, erecordar como o senhor “apreendeu” a tamusnie, sobretudo, como a “retomou” e a compreen-deu.

Mouloud Mammeri (CERAM – Centre d’étudeset de recherches Amazigh – Maison des sciencesde l’homme) – Meu pai foi o penúltimo na linha-gem da tamusni. Teve um discípulo que tambémjá faleceu e, depois deles, outra coisa teve início.Isso não é uma visão pessoal, é algo reconhecidopor todo o grupo. As pessoas dizem: “Houve fula-no e sicrano”, citam toda a genealogia dosimusnawen [plural de amusnaw: sábio, poeta], quetransmitiam a tamusni entre si. Depois da mortedo último amusnaw, que se chamava Sidi Louenas,ela acabou... Depois dele, essa forma da tamusnimorreu, passando-se para outra coisa. Mesmo quetenham restado, exteriormente, algumas formassuperficiais da tamusni, todos sabem que morreucom aquele homem esse modo de pensar e dizeras coisas. Aliás, foi um verdadeiro drama coleti-vo. Quando ele faleceu, sabia-se que algo haviamorrido com ele definitivamente.

Portanto, não sou filho do último amusnaw,mas do penúltimo e parece-me que a relação fa-miliar me deu muita sensibilidade para esse tipode coisa. Não pude ser o sucessor de meu pai, jáque não levei a mesma vida. Freqüentei a univer-sidade, portanto já dispunha de outros pontos dereferência3. Mas também é verdade que, ao longo

de toda a vida, meu pai se preocupou em me inici-ar na tamusni o máximo possível. Fico me per-guntando se o gosto que, desde muito cedo, tivepela literatura não me veio desse ambiente em queestava imerso, apesar de não pensar sobre isso nainfância. Se meu pai não me ensinou as coisaspráticas da vida, de que tanto eu precisaria, todavez que ele recebia pessoas com quem sabia quenão teria um encontro trivial, ele pedia para queme procurassem por toda parte. Eu era bem pe-queno, meu pai sabia muito bem que eu não com-preenderia três quartos das coisas que seriam di-tas. Mesmo assim, ele me banhava naquela at-mosfera... Na adolescência, confesso que gosta-va daquilo tudo com muita paixão. Já não era maismeu pai quem pedia para que me procurassem namação do “letrado” e a formação sistemática einvisível do amusnaw?

M. M. – Comecei a transcrever os poemascabilas muito cedo.

P. B. – Seu pai sabia disso?

M. M. – Devia desconfiar. Encontrei em seuspapéis (ele era um pouco instruído, foi à escolaaté o primário, era da primeira geração de argeli-nos que freqüentou as escolas da Terceira Repú-blica) alguns poemas transcritos que ouvi ele re-citar. Além do mais, tive um tio-avô que fez umacompilação de poemas cabilas (ele freqüentara oliceu). Dito isso, meu pai também me apresentoua muitos de seus “pares”, não só na tribo dos AïtYenni, a que pertenço, mas também fora dela, poisos imusnawen faziam visitas de uma tribo a outra.Quando eu ainda era criança, meu pai me levavasistematicamente aos mercados, pois eles são lo-cais de encontro privilegiados. As compras de meupai duravam mais ou menos meia hora, o resto dotempo ele usava para encontrar as pessoas e ficarum pouco com elas, que faziam o mesmo. Haviauma espécie de formação no local de trabalho,uma formação difusa e, ao mesmo tempo, cons-ciente.

I. TAMUSNI: ARTE E ARTE DE VIVER

O aprendizado era pela prática. Não era umaprendizado abstrato. Era preciso agir tambémsegundo certo número de preceitos, de valores,deixando um rascunho de sete páginas com uma síntese de

seu projeto sobre a composição oral de doutrinas, que Lordassumiu e desenvolveu. Cf. Parry (1971) e Lord (2000[1960]) (nota de Nice & Wacquant).3 Para uma breve apresentação da biografia e do percursointelectual de M. Mammeri no rol das possibilidades dosintelectuais argelinos nas décadas do pós-guerra e do pós-

independência, cf. Yacine (2001) (N. de Nice & Wacquant).Cf. também as observações de L. Wacquant na nota 2 doartigo “A odisséia da reapropriação”, no presente númeroda Revista de Sociologia e Política (N. T.).

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sem os quais a tamusni não é nada. Uma tamusnique não se adota, que não se vive, não passa deum código. A tamusni é uma arte, é uma arte deviver, ou seja, é uma prática que se aprende pelaprática e que tem funções práticas. As criaçõesque ela propicia – poemas, máximas – não sãoarte pela arte, mesmo que sua forma, eventual-mente muito rebuscada, muito refinada, possa su-geri-lo...

P. B. – Não seria bom, talvez, especificar umpouco a particularidade da tribo dos Aït Yenni e asituação específica de sua família nessa tribo?

M. M. – Somos artesãos, já não sei mais háquantos séculos. Armeiros, às vezes joalheiros,mas principalmente armeiros. É um ofício queserve muito bem à tamusni, pois o artesão temlazeres, liberdades e condições de trabalho infini-tamente mais propícias que as condições de tra-balho de um camponês. O camponês, quando estáno campo, fica sozinho, com os animais, com aterra. Pela loja de um armeiro passam muitos ho-mens. Não só as pessoas que vêm consertar seufuzil, mas também as que vêm para conversar. Éum local de encontro especialmente no inverno,quando é muito melhor estar na loja de um armei-ro que no local da assembléia, por causa do frio.Um monte de gente passava pela lojinha de meupai. Meu avô transmitiu a meu pai,deliberadamente, tudo que sabia da tamusni. Issode maneira consciente, pois era ele quem a detin-ha em sua geração. Havia aí uma espécie de he-rança que fora legada a meu avô, que a transmitiua meu pai, que a transmitiu a um marabuto emnossa vila. As coisas se passavam assim não sóem nossa família, mas em muitas outras. Isso,sem dúvida, por causa da importância do artesa-nato na tribo. Em geral, as tribos cabilas são cam-ponesas. É verdade que também viviam campo-neses em nossa tribo, mas o artesanato tinha umaimportância maior, com certeza, que nas outrastribos. Vinha-se de muito longe, até nossa tribo,procurar coisas de que se necessitava: armas, jói-as, ferramentas etc.

P. B. – O senhor sabe que o poeta é designadopor Homero, em alguma passagem da Odisséia,pela palavra démioérgos, isto é, demiurgo, que setraduz por “artesão” e que, sem dúvida, seria pre-ciso traduzir por “iniciado”. Uma série de indíciossugere que se trata de um especialista, às vezesestrangeiro. Além disso, Weber recorda, em Eco-nomia e sociedade, no capítulo sobre as comuni-

dades religiosas, o estatuto particular do artesão,observando que se trata de alguém “profundamenteimerso nos contornos da magia”. Isso porque todaarte de caráter extracotidiano, esotérica, é consi-derada um dom, um carisma de tipo mágico, umdom pessoal geralmente hereditário, que separa oartesão dos homens comuns, isto é, dos campo-neses. Não seria o amusnaw um sophos, o mestrede uma técnica bastante prática, em oposição auma sabedoria abstrata e gratuita?

M. M. – Tamusni é simplesmente o nome daação correspondente ao verbo issin: saber. Massaber de um saber desde o início prático, técnico.Portanto, o amusnaw é exatamente o sophos ori-ginal.

P. B. – Não acontece, às vezes, esperar-se doamusnaw conhecimentos e competências práticas,como, por exemplo, médicas?

M. M. – Acontece. Mas mesmo não dandoreceitas nem assistência, ele ainda permanece umamusnaw.

P. B. – Ele não utiliza seu saber prático emquestões de limitação de áreas, de calendário agrí-cola etc.?

M. M. – Com certeza. O amusnaw era consi-derado mais conhecedor que os outros de tudoisso. Ele sabia como se distribuíam os trabalhosao longo dos doze meses do ano, o que era preci-so fazer antes, depois, como se fazia o plantioetc. O último amusnaw tinha grande reputação tam-bém por seu conhecimento de várias receitasmedicinais, tal planta curava tal enfermidade...

II. O ESTATUTO PARTICULAR DO ARTESÃO

P. B. – Qualquer pessoa podia ir à oficina?Podiam ir outros especialistas também? Que acon-tecia, então?

M. M. – As pessoas que iam à oficina tinhamoutro status social. Iam por saber que era um lu-gar privilegiado para esse tipo de troca da tamusni.Mas também era o caso de passar por lá quempodia dispensá-la e, nessa ocasião, havia uma tro-ca em condições iguais.

P. B. – Uma disputa?

M. M. – Não exatamente. Há uma expressãocorrente que diz: “Todos aprendem com o outro”(Wa iheffed cef-fa). Havia uma troca de provér-bios, parábolas a que os imusnawen reportavam-se, cada um cuidando de distinguir-se. Outros fi-

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cavam como espectadores, de certo modo, apren-dizes. Eles buscavam a sabedoria. Não era umlocal de diversão, propriamente falando, mas dediversão seletiva, enlevada. A vantagem era queisso podia ocorrer o ano todo, pois o artesão tra-balha todos os dias, o ano inteiro, sem interrup-ção. Já o camponês depende das estações e, nocampo, trabalha sozinho.

P. B. – Outra característica desse grupo deartesãos é a de que eles se deslocam, seja paravender, seja para comprar. Eles ficavam, mais queos outros, em contato com a vila, com o mundoexterior.

M. M. – É verdade, há exemplos precisos dis-so. Em geral, costuma-se dizer, na literaturaetnológica, que as tribos cabilas, antes da con-quista francesa, eram divididas, que só mantinhamrelações de hostilidade, que era preciso anaya [pro-teção] para ir de uma para outra. Há nisso algumaverdade, mas, de fato, existia uma grande mobili-dade da parte dos mascates, poetas, mulheres,imusnawen, marabutos e das pessoas comuns.Havia um código de amizade pelo qual você man-tinha ligação com amigos de fora da tribo. Você iapara lá sem mais, simplesmente. Mesmo em mi-nha família, um dos ascendentes armeiros, queviveu na segunda metade do séc. XVIII, ia regu-larmente à costa cabila vender os produtos de seuartesanato. Pensando-se nas condições em que sefaziam as viagens naquela época – não havia es-tradas e, portanto, havia mesmo certa inseguran-ça –, é algo realmente admirável, pois o artesãoera obrigado a passar por não sei quantos grupos,tribos, vilas. Além disso, na tradição familiar, conta-se que esse armeiro hospedou um turco que tevede sair de Argel porque cometera um homicídio ea justiça o procurava. Se o turco viajou até lá, éporque sabia que seria recebido por ele... Portan-to, o isolamento é, sem dúvida, relativo e osartesãos eram, com certeza, mais abertos ao ex-terior que os camponeses, que podiam passar avida toda dentro de sua vila.

P. B. – Os artesãos eram predispostos a reali-zar a função de intermediários, embaixadores,mediadores...

M. M. – Não diria embaixadores...

P. B. – Porta-vozes das notícias, idéias...

M. M. – Com certeza. Eles eram, por voca-ção, os homens do discurso, na medida em queporta-vozes das notícias. De todo modo, eles ti-

nham interesse em ser os homens do discurso.Aquele armeiro, antepassado nosso, de que euestava falando, era muito conhecido por isso. Aindase contam um monte de anedotas sobre como elesaía de situações difíceis com o discurso, porqueo discurso era realmente uma arma em suas mãos.

P. B. – Os próprios artesãos iam vender seusprodutos?

M. M. – Geralmente se ia até eles comprar osprodutos.

P. B. – Também é uma situação de contatocom o exterior...

M. M. – Com certeza. Quando pessoas de todaparte vêm procurá-lo, é porque você deve ter certonúmero de relações nas várias vilas e tribos.

III. O APRENDIZADO INFORMAL E A INICI-AÇÃO

P. B. – Voltando um pouco ao que o senhor jáfalou, existia um aprendizado informal, análogoàquele que o senhor mesmo recebeu. Não existi-am, porém, formas mais explícitas, mais especí-ficas de aprendizado?

M. M. – Parece-me que existiam duas coisas.Primeiro, esse aprendizado informal. A assembléiada vila desempenhava um papel importante nesseaprendizado. Ela ocorria em intervalos regulares– por exemplo, uma quinta-feira sim, outra não,todo mês –, e era onde se discutiam todas as tare-fas a realizar e as já realizadas. As assembléiaseram verdadeiras escolas de tamusni, pois quemas conduzia eram, evidentemente, os mais elo-qüentes, quem mais dominava o discurso. Qual-quer um podia participar das assembléias, até ascrianças. Particularmente, assisti a várias assem-bléias da vila desde muito criança e me lembrobem do que se passava. Portanto, já existia essaespécie de escola regular. Mas existiam tambémos mercados, as peregrinações, ocasiões particu-larmente importantes porque provocam concen-trações consideráveis, tanto pelo número de par-ticipantes quanto por suas diferentes proveniên-cias. Agora, além desse aprendizado quase espon-tâneo, existia uma iniciação propriamente dita. Elaera consciente, era dirigida por um mestre e diziarespeito só a dois tipos de homem: o poeta e oamusnaw. Mais claramente ao poeta que aoamusnaw, que tinha pelo menos a chance de apren-der a tamusni também de maneira informal (em-bora, em certo grau da iniciação, ele devesse re-

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correr, de forma voluntária, ao contato com ou-tros já “iniciados”). Mas, para o poeta, essa inici-ação é quase uma obrigação.

P. B. – Em outras palavras, os imusnawen sãoescolhidos, de certa forma, ao se devotarem a ummestre, que, por sua vez, faz a seleção. É umpouco a eleição mútua de dois carismas.

M. M. – É. Os candidatos pedem para ser ini-ciados e o mestre, dentre todos com quem travacontato, avalia quem tem mais dom e merece pros-seguir.

IV. A FUNÇÃO DO POETA

P. B. – Seria possível explicar, com mais exa-tidão, a diferença que o senhor faz entre o amusnawe o poeta?

M. M. – Primeiro, um amusnaw pode nãocompor versos, pode não ser dotado para a poe-sia, embora tenha dom para o discurso, para odiscurso em prosa. Essa é uma primeira diferen-ça. Dentre os poetas, existia quem assegurasse atransmissão mecânica, recitando poemas que nãohaviam composto.

P. B. – Eram os profissionais. Dava-se umnome específico a essa espécie de recitadores queandavam de vila em vila, por oposição aos verda-deiros “criadores”? Algo parecido com a oposi-ção entre o rapsodo, que recita, e o cantador, quecompõe? Ou entre o jogral, que é intérprete, e otrovador, que é autor?

M. M. – Na verdade, dois termos eram utiliza-dos para designar os iniciados: ameddah e afsih.O afsih é capaz não só de recitar, mas também decriar. É o amusnaw quase por definição.

P. B. – Enquanto o ameddah é apenas umrecitador...

M. M. – O ameddah pode conhecer milharesde versos e, sem ser particularmente dotado paraeles, pode recitá-los. O ameddah tem os versosna memória. Mesmo assim, ele desempenha umafunção indispensável na literatura oral.

P. B. – Ele servia quase de biblioteca, de con-servatório. Sabia coisas que todos sabiam umpouco, mas sabia mais que os outros.

M. M. – O ameddah sabia mais coisas e me-lhor. Em geral, os outros conheciam passagens,trechos.

P. B. – Ele vivia desse talento?

M. M. – Com certeza. Era um profissional esó fazia isso. Andava de vila em vila, mercado emmercado, especialmente na época da colheita deazeitonas, figos, grãos. Praticamente o ano todo.

P. B. – E às festas, ele comparecia?

M. M. – Não. Às festas ia menos. Todo mun-do podia recitar nas festas.

P. B. – O afsih não é, por sua vez, a mesmacoisa?

M. M. – Não. O afsih não age dessa forma.Ele é quem escolhe sua ocasião. Quando compa-rece, é um acontecimento... Não vai a um lugarporque a colheita de azeitona é boa.

P. B. – Assim como não é o caso de “pagá-lo”diretamente, abertamente...

M. M. – Não, claro. Nosso poeta nacional, seé que posso chamá-lo assim, no século XVIII,Yusef u Kaci, é realmente um grande poeta dogênero antigo. Dava-se óleo em quantidade con-siderável para ele. E não porque tinha ido a umlugar, era uma forma de tributo. Dizia-se assim:“Em um dia como hoje, vamos coletar óleo paraYusef u Kaci”. As pessoas traziam quanto queri-am doar e levava-se a doação até ele.

P. B. – Então, ele não trabalhava.

M. M. – Não trabalhava. Sua função era essa.Não era da nossa tribo, mas de uma tribo distan-te, At Djenad, perto do mar. O poeta era uma es-pécie de escolha que a tribo simplesmente fazia epronto. Nunca pude saber de que modo, vindo deAt Djenad, ele se tornou nosso poeta, a ponto dehoje conhecermos todos os seus versos, que, ali-ás, não são bem conhecidos em At Djenad, em-bora as pessoas o considerem, lá também, umgrande homem. A tribo dele ficava na fronteiraentre as terras cabilas independentes, não subme-tidas ao Dey, e as terras submetidas diretamenteao Dey. Essa localização gerava conflitos e guer-ras com as tropas do Dey. E sempre o enviadopara negociar com o califado era o poeta.

P. B. – Aí ele desempenhava o papel do embai-xador.

M. M. – É. Aí ele tinha, realmente, um papelde embaixador, um papel político. Ele tomava de-cisões. Por exemplo: em um negócio entre AtDjenad e os turcos, ele perguntava às pessoas desua tribo: “Que vou dizer ao caid [governante]turco?” As pessoas lhe diziam: “Diga o que quise-

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res, nós te apoiamos”. Portanto, ele é investido deuma espécie de autoridade. É realmente um papelpolítico.

V. DISCURSO ESOTÉRICO E DISCURSOEXOTÉRICO

P. B. – Isso está bem de acordo com a lógicadaquilo que o senhor descreveu, quando disse que,para seu pai, a palavra poética tinha sempre umafunção prática, ética. Em outros termos, quais-quer que fossem os usos dessa competência, eleseram sempre práticos...

M. M. – Essa competência é, em todos oscasos, sempre prática. Está ligada com a vida sem,por isso, ser utilitária. Não digo que, entre si, osimusnawen não fizessem aquela espécie de exer-cícios gratuitos que remetem à pura poesia. Fazi-am, mas entre si: “Agora que estamos entrevirtuoses, compartilhemos nossa alegria.

P. B. – Nesses casos, eles faziam discursosmais esotéricos?

M. M. – É. Faziam discursos como se fossemdiscursos para iniciados. Eles se entendiam muitobem. Havia etapas, temas, uma ritualização. Lem-bro-me de quando meu pai, no fim da vida, en-contrava-se com seu discípulo. Era um poucodramático até, pois eles estavam reduzidos, isola-dos... no fim de alguma coisa e sabiam disso. Quepirotecnia! Era muito bonito, mas eu tinha a im-pressão de que havia acabado. Ninguém poderiacontinuar e, diante de outras pessoas, eles não sepermitiriam um exercício de virtuosidade pareci-do, pois sabiam muito bem que aquilo não se trans-mitiria. Portanto, reservavam aquilo para elesmesmos. Havia uma linguagem especial (eu nãopodia interrompê-los e dizer: “Ah! sim. Mas o queisso quer dizer?”). Enfim, eles se entendiam.

P. B. – Essa espécie de cultura esotérica eraelaborada justamente nesses encontros entre os“iniciados” no trabalho de poeta...

M. M. – Não saberia dizer. Mas acho que elase desenvolvia assim. Tenho a impressão de quecada um tinha uma bagagem dessa culturaesotérica.

P. B. – Não existia, o tempo inteiro, uma hie-rarquia entre os próprios virtuoses, além daquelaque o senhor estabeleceu entre os poetas e osmeros recitadores?

M. M. – Existia. Parece-me que era uma hie-

rarquia fundada em um valor, se não absoluto, aomenos reconhecido pelos outros. As pessoas di-ziam: “Tal poeta está em tal nível da tamusni. Fu-lano está no topo da escala. Sicrano chega perto,mas ainda não está lá... Beltrano está aprenden-do...” Como existiam ocasiões de encontro, deperformance, o amusnaw estava sob provaçãopraticamente a vida toda e o tempo inteiro. Não sepodia errar.

P. B. – Era um juízo do povo, mas tambémdos iniciados.

M. M. – É, mas um passava para o outro. Ojuízo dos iniciados podia não coincidir exatamen-te com o juízo do povo, na medida em que a si-mulação pode impressionar mais o povo do queos profissionais. Entre os “iniciados”, não se podeolhar nos olhos sem rir. Se alguém blefa, os ou-tros sabem. De resto, pode-se blefar aos olhos dopovo, mas não por muito tempo.

VI. A EXCELÊNCIA

P. B. – Se compreendo bem, a tamusni era umtipo de sabedoria que só podia ser expressa pelodiscurso, se também fosse expressa pela prática.

M. M. – As pessoas admitem transgressões,mas sob certas condições. Elas dizem: “Se talamusnaw faz tal coisa, é porque ele pode se per-mitir fazê-lo, mas eu não posso. Não posso mepermitir transgredir a taqbaylit, o código de hon-ra. À taqbaylit só posso me conformar. Oamusnaw está além, pode transgredi-la. Eu, se atransgrido, é por falta, é por não estar à altura dossacrifícios que a taqbaylit exige. Se o amusnaw atransgride, visto que podia observá-la com per-feição, é porque vê mais longe”. As pessoas sa-bem que um homem é um homem e que, por serhumano, o amusnaw pode incorrer em dado nú-mero de erros. O grupo lhe permite alguns erros.

P. B. – Os imusnawen estão além das regras,mas eles as seguem, mesmo estando além, comorealização suprema da excelência cabila.

M. M. – Parece-me que é isso. As pessoasdizem: “Tudo bem, o amusnaw transgride a re-gra, mas com bom senso”, isto é, pelo melhor, enão pelo pior.

P. B. – Ele é quem exprime a verdade do jogojogando com a regra do jogo, em vez de simples-mente jogar segundo as regras.

M. M. – O cabila entende isso. “O amusnaw

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DIÁLOGO SOBRE A POESIA ORAL NA CABÍLIA

jogou bem, pôs o problema em termos tais, quelhe permitem agir assim. Quanto a mim, estouobrigado a me conformar estritamente à regra.Ela está presente para a pessoa comum, mas oamusnaw está além.” A tamusni é, no sentido maisestrito, o conhecimento de um corpus de prescri-ções, valores etc. Mas existe alguma coisa quevai além disso. Um poeta respondeu, certa vez,com versos que começavam assim: “A compre-ensão das coisas é superior à tamusni” (“Lefhemyecleb tamusni” – Si Mohand). Não é uma con-tradição. Na verdade, isso quer dizer que, se vocêtratar a tamusni como simples soma mecânica depreceitos, você poderá aprendê-la. Basta procu-rar um amusnaw que lhe transmita todas as pres-crições. Agora, se você quiser ser um verdadeiroamusnaw, existe um além-das-regras que as trans-gride, ou melhor, que as transcende.

VII. O CAMINHO DA INICIAÇÃO

P. B. – Continuando aquilo que o senhor fala-va sobre a formação dos profissionais, pode-sesupor que, existindo graus de iniciação, deve ha-ver também uma espécie de curso iniciático, deprovas sucessivas?

M. M. – Parece-me que existe uma espécie deaprendizado em duas etapas. A primeira se dá nasmesmas condições que o aprendizado para atamusni. Nesse primeiro aprendizado, assiste-sea todas as reuniões ordinárias em que a poesia éinvocada constantemente para exemplificar umpropósito, para esclarecer uma situação concreta(a língua berbere ordinária não possui uma sériede termos abstratos, mas essas noções abstrataspodem ser usadas na linguagem cotidiana, seja pormeio da poesia, seja por meio das parábolas). Épor isso que, na sociedade cabila, todo mundopode ser poeta, em algum momento da vida, quan-do tomado por um sentimento mais intenso que ode costume. Do profissional é que se espera talsentimento a toda hora. Se alguém faz um achadopoético sobre um acontecimento qualquer, ele podeintegrar-se ao corpus. A diferença é que o profis-sional é capaz desses achados o tempo inteiro.

Para chegar a essa espécie de maestria, é pre-ciso passar para a segunda etapa do aprendizado,muito mais formalizada, institucionalizada. Vocêaprende os diferentes procedimentos ao acompa-nhar um poeta por muito tempo. Existia tambémuma espécie de exame em que o professor davauma autorização (issaden), uma licença. Consistiaem criar um poema com certo número de versos,

por exemplo, cem. Para uma apresentação oral,cem versos é muito. As pessoas diziam: “Ele com-pôs até...” (issefra-t...), identificando o número,geralmente cem.

Por exemplo: o poeta que, de certa forma, foiprofessor de todos os demais, Mohammed SaidAmlikec, era quem dava essa investidura. A umde seus discípulos (ele não teve poucos), El HadjRabah, ele disse um dia: “Se quiseres que te dê alicença para ser poeta, faz um poema de cem ver-sos”. O candidato respondeu: “Cem versos não énada...”, fazendo cento e cinqüenta, muito maisque o pedido. Conta-se que, em dado momento,ele não encontrava mais a palavra que podia rimarcom o verso anterior. Então disse: “Peço descul-pas aqui, não encontro a rima” (dagí ur as uficara lemgaz is) e continuou. Mas o mestre respon-deu: “Está ótimo. Você passou e muito dos cemversos”, concedendo-lhe a licença para fazer ver-sos.

Em contrapartida, o “licenciado” devia, cadavez que atuasse, onde quer que fosse, começarcom uma prece em verso feita por seu mestre.Começava-se assim: “Como disse meu mestreMohammed Said...” (“akken i-s inna wemcar SiMuhend Ssaâid...”). “Como disse meu mestre...”era uma forma de render homenagem, de fazerreferência. Não queria dizer que o poeta era inca-paz de compor uma prece em verso. Era simples-mente a retribuição, a homenagem prestada aomestre na poesia. Até o dia em que El Hadj Rabahpassou da medida, julgando-se, dali em diante, tãocompetente quanto seu mestre, talvez até mais.Ele vai se apresentar em determinado lugar e diz:“Como disse o menino El Hadj Rabah...” (“akkeni-s inna weq-cic Lhag Rabeh...”). E recitou a pre-ce, que era bela, tão bela quanto a do mestre. Sóque as pessoas ficaram escandalizadas: “Como?!Ele ousa recitar sua própria prece? É umusurpador! Isso é um sacrilégio!” Reza a lendaque, a partir desse momento, sua inspiração per-deu força porque ele transgrediu a regra do jogo.De certo modo, ele cometeu uma traição, rompeuo elo da cadeia. O poeta continuou a fazer versos,mas ninguém o escutava mais. Seu carisma tinhadesaparecido.

P. B. – Isso tende a confirmar que, como dizWeber, a arte do poeta é considerada um carismade tipo mágico, cuja obtenção e manutenção sãoasseguradas de maneira mágica. Mas é só isso, aarte do poeta? Também existe todo um aspecto

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técnico, regras de composição, procedimentos etc.

M. M. – Existiam regras muito precisas. Emvista dessas regras é que se podia determinar seum poeta era mais hábil ou menos. O poeta Yusefu Kaci, de que já falei, o maior poeta antes daocupação francesa, compunha de acordo comcerto número de cânones4. Lembro-me de umaanedota: certo dia um homem de Ait Yenni foiencontrá-lo. Vinha, portanto, de muito longe, pe-dir auxílio ao mestre para aperfeiçoar sua arte decompor versos. O homem chega, vê o poeta e sedirige a ele com estes versos:

A dadda Yusef ay ungalay ixf l-lehl isTecbid îîaleb l-lersalic di wedrisUl-iw fellak d amaâlalawi-k isaân d ccix is

Muh At-Lemsaaud

“Dada Yusef, irmão mais velho,mestre de todos teus semelhantespareces o grande talebque recita textos sagradosna escola de Wedrismeu coração anseia por tiqueria tê-lo por mestre”.

A rima é feita em “is, al”. Yusef u Kaci respon-de imediatamente, com seis versos, na mesmaforma, usando as mesmas rimas:

Cebbac w’ur nekkat uzzalicmet wagus isAm-min irefen uffald win i d leslaê isNac af_sih deg lmitalur nessefruy seg-gixf is.

Yusf-u-Qasi

“Digo do covardesuas armas são frágeisComo brandir um ramoUsado como armaFeito poeta cujos versosnão extrai de si mesmo”.

Ele quer dizer o seguinte: “Há coisas que pos-so fazê-lo aprender, mas isso que se aprende, qual-

quer um poderá te ensinar. Não vale a pena vir atéaqui para me ver”. Diga o mestre o que for, exis-tia uma técnica, cânones. Além do mais, havia umasabedoria. É o que diz o mestre na réplica: “Que-res a técnica? Pois bem, respondo com o mesmoritmo e as mesmas rimas, mas, além disso, comum ensinamento, com uma sabedoria”.

VIII. “DAR UM SENTIDO MAIS PURO ÀS PA-LAVRAS DA TRIBO”

P. B. – Eis por que a poesia berbere não é umaarte “pura”, na tradição da “arte pela arte”. Elafornece os meios para que as situações e as expe-riências difíceis sejam expressas e pensadas.

M. M. – É precisamente a função da metáforae da parábola: condensar, em poucas palavras, umensinamento último, em palavras contrastantes,certeiras, portanto fáceis de memorizar. E o ver-so é, desse ponto de vista, maravilhoso. Primeiro,as pessoas o gravam e, segundo, quando o poetatem o dom, chega a dizer, por uma série de apro-ximações, de procedimentos de estilo, coisas quea prosa comum não diz.

P. B. – Há também a licença para forçar a lín-gua e conformá-la à poesia.

M. M. – É, isso faz parte dos procedimentos:o contraste, o fato de dar a uma palavra um signi-ficado um pouco diferente do que ela quer dizerna língua corrente, um leve deslocamento quepermite o poeta dizer algo que normalmente nãoteria podido dizer.

P. B. – Esse uso intensivo da língua ordináriapermite o poeta fazer a língua “render” o máxi-mo, isto é, “dar um sentido mais puro às palavrasda tribo”.

M. M. – E isso é mais fácil em verso do queem prosa. Na prosa existem limites deinteligibilidade. Levei anos para compreender cer-tos versos que há muito eu conhecia. Um dia, ati-nei: “mas, claro, é verdade”. Alguma coisa meocorreu.

P. B. – Essa iluminação retrospectiva justificao velho preceito da maioria dos ensinamentos tra-dicionais fundados na memorização: “primeiroaprender, depois entender”... É como a idéia deque o sentido condensado, intensificado, levarátempo para se manifestar, para se exprimir, e pre-cisará de reflexão, resistirá ao deciframento.

M. M. – De todo modo, na poesia, o sentido4 Sobre esses cânones e sua evolução, cf. Mammeri (2001)(nota de Nice & Wacquant).

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profundo pode, à primeira vista, não ser aparente.Ao contrário, na prosa, o interlocutor deve com-preender.

IX. A DEGRADAÇÃO DO SENTIDO

P. B. – A busca de intensificação da linguagemé um passo em direção à obscuridade. A busca deassonância, de aliteração, os deslocamentos desentido, tudo isso faz essa linguagem tornar-seobscura.

M. M. – É verdade. Mas há uma espécie decontrapartida em relação ao que o senhor está di-zendo. Por exemplo: eu havia transcrito um poe-ma que meu pai recitava. Muito tempo depois,encontrei o texto do mesmo poema com ummarabuto, já falecido... Perguntei-lhe se não tinhaos manuscritos. Ele me trouxe algumas folhas. Vialgumas linhas que não chegavam até a margem.Pensei que podiam ser versos e, de fato, eramversos transcritos em letras árabes. Era o poemaque meu pai recitava, só que mais longo. Masmesmo na parte comum às duas versões, a línguaera mais difícil. E também algumas palavras ti-nham sido substituídas...

P. B. – Essa substituição não era feita por aca-so. Era para se aproximar do sentido ordinário?

M. M. – Era. Essa aproximação do sentidoordinário é uma perda, e não um enriquecimento.Eis a versão oral do poema em questão. Na reali-dade, duas versões eram conhecidas. Nota-se umaevidente simetria entre os dois poemas (masestabelecida depois): clássicos seis versos, comrimas alternadas, compostas de três dísticos, oúltimo (como sempre, nesse caso) comportandodois heptassílabos, sendo que variam os outrosdois. As rimas têm, nos dois poemas, a letra “i”como vogal de apoio nos versos ímpares e umavogal diferente nos versos pares. Além disso, oprimeiro verso tem a mesma forma nos dois poe-mas, com a simples e sutil variante do dia da se-mana (terça-feira/quinta-feira) e, sobretudo, dahora (noite da derrota/manhã da vitória).

Primeiro Poema – versão oral

Win ur nehdir ass-n- et,t,lata tamedditmi-d tc¡udduKul asniq la-d iîîeggir kul ticiltla-d tfurruI tin u ribci Rebbiâaddik m’atnegêev azru.

Ah! Não ter visto na noite de terça

a batalha!Cada viela os jorrava [os combatentes]Cada colina os erguiaMas se Deus não quiserpodes demover o rochedo?

Segundo Poema – versão oral

Win ur nehdir ass l-lexmis tasebhitmi tembweîîajIbda lbarud l-lexzinla yeîîenîajxemsa-u-sebâin ay geclincas cef Tewrirt l-lheg7g7ag

Ah! Não ter visto na manhã de quintaa radiante! [tempestade]A velha pólvoraCrepitavaSetenta e cinco tombaramSó por Taourirt-El hadjadj [a vila em disputa]

O poema escrito é mais longo. Agora não otenho comigo, mas posso tentar me lembrar... Dozeversos me vêm à mente (se me recordo bem, opoema tem, no total, trinta e cinco). Aliás, o queagora está acontecendo comigo é o mesmo que,ao longo dos séculos, deve ter se passado com oscultores da tradição oral. Eis os versos que meocorrem agora:

A ttir yufgen iäallaifer huzz-itHebsen legwad la âadlahed ma nzerr-itTlatin hesbec kamlassarden semmvditay geclin deg twilacef teqbaylitKra bbwi iêuz êhed lcilaic¡c¡a ten ttrad msakit!cer tâassast ggaren aâwinkulyum d asrag7Ulac tifrat, yiwen ddincas ma texla nec? Atteggag7Ass l-lexmis may sen zzinikker waâjajibda Ibarud l-lexzir nla yet,tenîajXemsa-u-sebâin ay geclincas cef Tewrirt l-lheg7g7ag

Yousef-Ou-Kaci (segunda metade do séc.XVIII)

Pássaro voando nas alturas

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Deixa planar tuas asasSem trégua, os nobres [combatentes] estãoenfermosNão se via mais ninguémVi trinta, bem contadosque, debaixo d’água, congeladosTombaram com seus longos fuzispela honra da CabíliaCapturados, todos, pela hora H,a guerra os devorava, pobres!Pássaro azul brilhantecruza os aresvai a quem provêas sentinelasselando [montarias] todos os diasNão há trégua, só uma saída:morte ou exílio!Quinta, durante o cerco,na poeira,a velha pólvora começoua crepitarTombaram setenta e cincosó por Taourirt El Hadjadj.

[Eis, na íntegra, o texto do poema, tal comono manuscrito]5:

Belleh a ttir ma d w’iserrundd deg llyag7At Yanni laaz n tudrinsellem at wagus meêrag7Ass l-lèxmis mi yasen zzinikker waâjajIbda lbarud l-lexzinla yettentajXemsa-u-sebâin ay g-geclincas cef Tewrirt l-lheg7g7ag7Ar ida mazal-ten dini tembwettagcer taâssast ggaren aâwinkulyum d asrag7Ulac tifrat yiwen ddincas ma texla nec atteggagA ttir yufgen iâallaifer huzz-itHebsen leg7wad lemvillahed ma nzerr-itAssen ur irbiê sslammi myugen tîrad n-etwacitnTlatin êesbec kamla

ssarden semmditay-d iqqimen deg îwilacef teqbaylitKra bbwi yeîet hed lcilaic¡c¡a-ten ttrad msakitTtrec-k a waêed lewêida Lleh ur neîîisdâac-k s-esshaba laâyanAali d irfiqn-isTegd acdeg lg7ennet amkanjmâa akka-d net,êessis

Eis a tradução dos novos versos:

3 a 6:

Dentre os Ait-Yenni, das vilas a honrada:leva minha saudação àquele cujo cinturãomune-se de pólvora.Quinta, ao fazerem o cerco,a poeira levantou

11 e 12:

À noite ainda estãoem meio aos tiros

21 e 22:

Dia nefastoDe funesta batalha

29-final:

Único e insubstituível, imploro a TiDeus que jamais adormeceInvoco-te pelos gloriosos Companheiros doProfetaPor Ali e seus paresLeva-nos ao paraísoTodos nós, que aqui estamos a escutar.

Afinal de contas, não há grandes diferenças: aúltima estrofe de seis versos (29-34) é a dedica-tória obrigatória nesse tipo de poema. É um lu-gar-comum, pode-se adaptá-lo a qualquer poema.Aqui, uma marca disso é a mudança de rima. Naverdade, desconfio que falte um dístico na pri-meira parte (1-16), pois classicamente o conjuntose compõe por séries de seis versos (uma na últi-ma parte, duas na segunda e, via de regra, três naprimeira). Isso sugere que houve, já na primeiratranscrição, uma perda inicial.

P. B. – O senhor conhece outros casos pare-cidos de redução da linguagem extraordinária à5 Cf. a carta de Mammeri a Bourdieu, datada de 22 de abril

de 1978 (N. T.).

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linguagem ordinária?

M. M. – Com certeza, mas esse caso é muitosignificativo. Trata-se de um combate entre duastribos. De fato, ocorreram dois ataques: o primei-ro, em uma terça-feira, fracassou; o segundo, doisdias depois, na quinta, foi bem-sucedido. O pri-meiro poema (seis versos) foi improvisado na hora:os combatentes estavam de volta, mas não tinhamtomado a vila, foram derrotados... No dia seguin-te, decide-se que o próximo ataque ocorrerá naquinta-feira. O poeta faz outro poema, segundo atradição oral, também de seis versos. Ele simples-mente diz que o ataque, dessa vez, foi bem-suce-dido, a vila foi tomada etc. A versão escrita dosegundo poema é mais longa e totalmente dife-rente na forma. Ora, existe, sobre o mesmo as-sunto, outro poema de seis versos, que meu paihavia recitado para mim e que foi reelaborado deacordo com o modelo do primeiro poema de seisversos. O que ocorreu? Gravar seis versos é fá-cil. O segundo poema foi reduzido à forma doprimeiro, a ponto de modificá-lo inteiramente, ser-vindo-lhe de contraparte: é um ataque inicial fra-cassado e, depois, bem-sucedido. Portanto, exis-tiu todo um trabalho de reestruturação, em detri-mento não apenas da extensão, mas também dosentido e do alcance do poema: a versão escrita émais rica e mais humana. O poema original, quereencontrei no manuscrito, foi difícil decifrar. Nãotenho certeza, pelo menos em duas passagens, detê-lo entendido bem. Já o poema que me foi reci-tado é compreensível e tem certas vantagens emrelação ao primeiro. Não está todo ele na lingua-gem corrente, mas é facilmente compreensível.Portanto, é provável que a evolução, quando sedeu, tenha se destinado à “vulgarização”. Meu pairecitou certo número de versos que transcrevi eque depois reencontrei, com outros, versõesenfraquecidas. Enfraquecidas porque deixavamescapar algumas coisas e preferiam dizê-las nalinguagem corrente.

P. B. – Sem dúvida, o que desaparece são, emprimeiro lugar, os jogos com o sentido ordinário,os deslocamentos de sentido, os arcaísmos, asformas extraordinárias de vocabulário e, mesmo,de sintaxe. Porém as pessoas também não ficamlivres de um trabalho exegético, como aquele queo senhor mesmo teve que fazer para descobrir osentido desses poemas antigos? Não há uma po-lêmica em relação ao sentido das palavras, pelaqual se procura apropriar da autoridade implícitaem uma dicção, em um provérbio ou em um ver-

so que virou provérbio? Não é um dos aspectosda licença concedida ao poeta justamente jogarcom as palavras da tribo?

M. M. – Parece-me que sim. Há uma espéciede consumo corrente da poesia, mas também hágraus superiores de iniciação, em que as pessoasanalisam o sentido profundo. E, além do mais, os“sábios”, quando estão entre si, não dão o mesmovalor aos mesmos exemplos6.

P. B. – Eles criam, a partir do sentido ordiná-rio, um sentido esotérico, que a banalidadeexotérica aparente dissimula aos simples profa-nos. Não decorre daí que, mesmo na presença deum público profano, os poetas possam sustentaruma linguagem com dupla finalidade, com um du-plo sentido, uma dupla compreensão? Não há,necessariamente, vários níveis de interpretação,assim como há vários níveis de expressão?

M. M. – Isso me faz recordar uma experiên-cia que tive. Em certa época, havia dois imusnawenem uma vila, que eram os porta-vozes dos doissoffs (“partidos”, “ligas”) opostos. Eles sido con-temporâneos na adolescência e aprendido juntosa tamusni. Mais tarde, as vicissitudes políticas ossepararam. Ficaram afastados durante anos, cadaum como cabeça de um dos dois soffs. Assisti àrecomposição da unidade da vila. Um deles, queera mais “expansivo”, toma a palavra. O segundoresponde. Assisti, então, a um dueto extraordiná-rio. As pessoas escutavam, tendo a impressão decompreender o que se dizia. Mas não era o caso.O que lhes era acessível era o sentido evidente, osentido aparente desse discurso, mas todo o restolhes escapava. Os dois mestres se compraziam –e muito – no diálogo, visivelmente. Afinal, poderfalar para alguém que o compreende e que poderesponder nos mesmos termos... Foi quase umatroca de especialistas.

P. B. – Uma das capacidades específicas des-ses “iniciados” devia ser o conhecimento das re-ferências, a capacidade para dizer: “como fulanodisse...”.

M. M. – De fato. Há um corpo e um corpus datamusni. Tinha-se consciência disso. Dizia-se:“vou aprender com fulano e beltrano. Existiamescolas, com suas parábolas, versos, procedimen-tos, estilo e, sobretudo, com um conjunto de va-

6 Cf. Mammeri (1985) (N. T.).

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lores, referências que era preciso saber, possuir.Quanto mais se possuíam as referências, mais seavançava na tamusni. Os imusnawen faziam cons-cientemente esse aprendizado. Iam de uma tribopara outra, encontravam-se com fulano, conver-savam a noite toda com ele para aprender comele.

P. B. – Os grandes imusnawen “transtribais”não eram aqueles que acumulavam o conjuntodesses diferentes corpus?

X. O SENSO DA SITUAÇÃO

M. M. – Havia um amusnaw que, sob esseaspecto, era extraordinário. As pessoas se dirigi-am a ele para resolver um monte de problemas,problemas difíceis, casos críticos. Ele tinha certaautoridade... Sabia como adaptar seu discurso àtribo, ao lugar que visitava: “para tais e tais, é pre-ciso dizer isso e aquilo, é preciso agir com elesdessa ou daquela maneira”. Ele tinha “senso” deseu público. E não se trata de oportunismo. Sónão se diz qualquer coisa a qualquer um. Se vocêquiser que a tamusni seja eficaz em um caso par-ticular, é preciso ajustá-la de acordo com seu pú-blico.

P. B. – Sem dúvida, uma das propriedades maisimportantes do discurso oral é ter que se ajustar auma situação, a um público, a uma ocasião. A ver-dadeira ciência do discurso oral é também umaciência do momento oportuno, do kairos. Para ossofistas, o kairos é o momento oportuno, aqueleque é preciso aproveitar para falar sobre algo edar à palavra toda sua eficácia. Mas o termo kairossignifica originalmente, como Jean Bollack mos-tra7, o centro do alvo, e tem senso do kairos quemacerta na mosca...

M. M. – Acho que não é por acaso que asexpressões grega e cabila concordam. Na lingua-gem da tamusni, quando se busca, em uma reu-nião, a solução de um problema, fala-se assim: “adecisão correta é como o alvo, não se sabe quemacertará o centro...” (rray am lcerd, ur tezrid w”aatiêazen). Isso é para encorajar quem hesita discur-sar na assembléia, para sublinhar quão relativa é,necessariamente, toda performance.

Para exemplificar o “senso” da situação, esseamusnaw a quem eu me referia me contou a his-tória de duas vilas de outra tribo, que estavam em

conflito. Ele foi chamado para resolver a questão.Ao chegar a uma das vilas, vai encontrar-se nãocom os protagonistas do conflito, mas com osmarabutos. E lhes diz: “Vocês me acompanhem.Vou pedir que, depois que os membros da tribotiverem acabado de falar, vocês intervenham edigam a eles isso e aquilo. Mas quem vai lhes falarsão vocês, à maneira de vocês”. Os marabutosaceitaram porque sabiam que estavam lidando comum amusnaw excepcional. Eles falaram até meia-noite. Ao tomar a palavra em seguida, o amusnawsó parou às três da manhã: tinha fascinado todo opúblico. Em outro lugar, ele teria agido de manei-ra diferente, sabendo que defenderia os mesmosvalores, mas que seria preciso adaptar a forma,cada vez, de acordo com a audiência.

XI. O PODER DAS PALAVRAS

P. B. – De fato, o próprio fundamento da au-toridade que o amusnaw exerce reside em seudomínio excepcional da linguagem.

M. M. – É. Nessa lógica é que se compreendeo fato de os imusnawen disporem quase de umalinguagem própria, esotérica ou, pelo menos, deum uso particular da língua, mais profundo. Ocor-re-me um exemplo que me chamou a atenção. Umfato que aconteceu antes da ocupação francesa,em uma época em que os imusnawen intervinhamde maneira eficaz, real, em que detinham um po-der efetivo. É uma história um tanto trivial. Umhomem que tinha se casado com uma mulher deuma tribo vizinha e tinha sido obrigado – coisarara naqueles tempos – a deixar sua própria tribo.Ele partira não se sabia para onde, nunca maistinha dado sinal de vida. Fazia quase sete anosque partira. Certo dia, os pais da mulher vêm pro-curar os pais do marido para lhes dizer: “Nossafilha já esperou muito tempo, quase sete anos.Vocês hão de convir que essa situação já foi longedemais. A partir de agora, ou vocês estão segurosde que esse homem voltará em breve, e a esposadele vai ficar; ou, ele não dando sinal de vida, nóstomamos de volta nossa filha”. Os pais do maridorespondem que provavelmente ele estava vivendoem um lugar qualquer... Depois desse encontroainda ocorreram vários. A mulher era de outra tri-bo, não se podia resolver o problema de maneiratão simples. Em uma das reuniões, um represen-tante, muito eloqüente, da tribo da mulher – eraum grande amusnaw – constrangeu os represen-tantes da outra tribo com uma série de argumen-tos aparentemente irrefutáveis. No fim, concluiu:7 Cf. Bollack (1975) (N. T.).

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“Se vocês estão de acordo, tomemos a decisão.Essa mulher vai voltar para nossa tribo”. Mas umdos membros da tribo do marido, que sabia queum de seus porta-vozes mais notáveis não estavapresente, replicou que não se tivesse pressa e quese reunissem mais uma vez, em uma semana, pararezar a fatiha (a oração). Os grupos se vão e,uma semana depois, de novo se reúnem, dessavez com a presença do amusnaw que estivera au-sente. Ao chegar o grupo da mulher, seu porta-voz fala: “A questão já estando decidida, recite-mos a oração e roguemos a Deus que a maldiçãonão nos acompanhe” (Awer nawi daâussu). Aoque responde o porta-voz da tribo do marido: “Re-citemos a oração, mas proponho rogarmos quenão nos afastemos do caminho de Deus” (Awernecced deg-gwebrid r-Rebbi). Toma a palavra,então, o porta-voz da tribo da mulher: “Vamos noslevantar. Nada está decidido. Estamos de saída”.Na viagem de volta, os membros de sua tribo lheperguntam: “Que significado teve aquela conver-sa?”. O amusnaw explica: “quando falei – “que amaldição não nos acompanhe” –, quis dizer queum homem que abandona sua mulher tanto tem-po, se não volta para ela, é maldito”. Quando oporta-voz deles me respondeu: “Deus, não nosafastemos do Teu caminho”, ou seja, da regra, dodireito de Deus, ele queria dizer que o direito divi-no determina sete anos e, de fato, ainda não sepassaram sete anos. Quando ele pronunciou essafrase, entendi muito bem o que estava querendodizer: vocês não têm o direito de tomar de voltaessa mulher, pois ainda não se passaram os seteanos”. – Enfim, mesmo que se trate de um caso-limite, o exemplo é interessante, pois essa troca,que diz respeito a um pequeno incidente, podiaocorrer com relação a fatos mais importantes.

XII. AS ANTINOMIAS EXTREMAS DA EXIS-TÊNCIA

P. B. – A história que o senhor contou repre-senta a forma superior de relações que também serealizam entre homens comuns, por exemplo, porocasião das negociações de casamento, que, emum grau inferior de refinamento, davam lugar adisputas do mesmo tipo.

M. M. – Sem dúvida. Mas parece-me que exis-te uma diferença quase de natureza, e não apenasde grau.

P. B. – Vence quem traz a cultura “consigo”,quem domina melhor que o outro as regras emrelação às quais todo mundo está de acordo...

M. M. – É. Mas a palavra é inseparável dacoisa, a maneira de dizer é inseparável do que édito. No caso que o senhor menciona, o das ne-gociações de casamento, as pessoas “falam” dacultura em termos tais, que ela é compreensívelpara as duas partes. No outro caso, muda-se onível de interpretação: trata-se de Antígona eCreonte. O porta-voz da tribo da mulher podia terinvocado, contra a letra da lei, o direito humanoda esposa abandonada, mas sob a condição deachar a expressão adequada, bem escolhida,lingüisticamente exemplar. Para os imusnawen, eraum problema extremo que se punha diante deles,ao passo que, para os outros, se tratava simples-mente de uma disputa oratória. Graças à confron-tação de duas fórmulas, os imusnawen tinhamposto o dedo em um problema humano: o que éprimordial, a lei escrita ou o direito “humano” etc.?Tenho certeza de que, sem ter lido Sófocles nemos filósofos, eles fizeram, nessa simples anedota,ressurgir a questão das antinomias extremas daexistência humana.

P. B. – E é em nome da intuição que se tinhade sua capacidade para situar-se nesse nível ex-tremo, que se dava aos imusnawen o direito deestar além das regras da moral e da linguagemordinárias.

M. M. – Parece-me que é em nome disso quese dava aos imusnawen o direito de transgredir,ao menos exteriormente, o código. Lembro-mede um fato que ocorreu há muito, antes da con-quista, com um amusnaw bem conhecido. Suatribo, em guerra com uma tribo adversária, diri-ge-se a uma terceira tribo, a dos Ait Yenni, paraser ajudada no combate. De acordo com a regrado nif (questão de honra), não se trata de saber sequem pede ajuda tem razão ou não8. Se foi pedidoauxílio, é uma falta grave não prestar. Alguém datribo adversária encontra-se com o amusnaw deseu grupo e diz: “Agora não temos só a tribo vizi-nha contra nós. Os Ait Yenni vêm socorrê-los. Épreciso dividir nossas forças e mandar metade dosnossos homens combater os Ait Yenni”. Oamusnaw responde: “Não. Esqueça os Ait Yenni.Se eles vierem com os outros, seremos obrigadosa combatê-los. Mas, acima de tudo, não os ata-quemos!” As pessoas objetam: “Como? Vamos

8 Para uma explicação das bases sociais e da lógica culturaldo nif na sociedade cabila, cf. Bourdieu (1971) (nota deNice & Wacquant).

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passar por covardes!”. E o amusnaw explica:“Caso sintas que estás em situação de inferiorida-de, o nif não exige que corras em direção a tuadestruição”. E seus versos viraram provérbio:

Trec at tezmert meqqwretd ssalêin IgawawenUêeq Jeddi Mangellatlawleyya widen i-s inndenImi d Amejuv nsaâ-tur-d nerni lhem iden.

Laarbi At Bjauud (séc. XVIII)

Por piedade, grandes poderesSagrados poderes da Zouaoua[confederação]Juro por Jeddi Manguellet [santo]Pelos santos ao seu redorJá que temos Tamejjout [o inimigo]Não devemos atrair mais um obstáculo

Pronunciada por outrem, essa sentença teriaparecido escandalosa, em nome do princípio: ‘Tal-vez sejas vencido, mas deves lutar’. Diz um pro-vérbio conhecido: ‘Quando cais, cai a vergonha’(Mi teclid icli lâar). Mas, na condição deamusnaw, gozava-se de uma espécie de franque-za que aos outros era recusada.

XIII. O POETA, O LETRADO E O CAMPONÊS

P. B. – Mas a história que o senhor estavacontando há pouco, do amusnaw que vai procu-rar os marabutos dizendo o que eles devem fazer,impondo uma solução, de modo que os marabutosfizessem uso da autoridade que tinham, põe a ques-tão das relações entre a tamusni e a tradição doCorão, que detém a autoridade das escrituras e dosagrado. Como descrever essa espécie de triân-gulo formado pelo amusnaw, depositário exem-plar da excelência cabila (taqbaylit), pelomarabuto, letrado investido de autoridade religio-sa, e pelo simples camponês, que reconhece oamusnaw e o marabuto de diferentes maneiras,sem dúvida, e por diferentes razões? Como se or-ganiza essa concorrência entre eles? Pode-se ima-ginar que ela tenha conseqüências para o conteú-do tanto da tamusni como da mensagem corânica,tal como realmente veiculada pelos marabutos.Como esses dois “poderes”, fundados sobre prin-cípios tão diferentes, chegam a se pôr de acordo?Não é o caso, no fundo, de que a concorrênciaseja inevitável e, ao mesmo tempo, inconfessável,impensável, sendo sempre, portanto, mascaradae recalcada em comum acordo?

M. M. – Mesmo reconhecendo que um lamentocomo este é supérfluo, sempre lamentei que aevolução da tamusni berbere não tivesse podidoadquirir a forma de uma evolução autônoma e pro-gressiva, sem traumas, sem imposição de autori-dade exterior, como foi o caso na Grécia9. Sem-pre lamentei que os imusnawen não tivessem tidoa possibilidade de fazer a passagem à escrita, semter que contar com uma espécie de concorrênciaou de dominação vindas de fora. A cultura islâmica,com todas as suas qualidades, é muitofundamentalista, não admite variantes. Ela se in-veste da autoridade divina, foi revelada, está notexto do Corão. Está pronta e acabada, não hánada a fazer senão comentá-la.

P. B. – Em vários exemplos que o senhor men-cionou, percebe-se o laico, o amusnaw, invocar apalavra de Deus, a norma religiosa. Do ponto devista de um sacerdote, é quase uma usurpação.Como se põe, concretamente, o problema da re-lação da sabedoria profana, a tamusni, expressãoprofunda dos valores específicos, da cultura na-cional, com a cultura religiosa, pretensamenteuniversal, revelada e detentora da autoridade dasescrituras?

M. M. – Parece-me que, ao longo de séculos,nunca se deixou de vivenciar o caráter ambíguodessas relações, mesmo se ninguém o declarasse,pois isso teria sido escandaloso, impensável. Tra-tava-se de pensar, a todo custo, que a tamusni e acultura religiosa eram a mesma coisa. A vontadede Deus e o texto da lei divina não podiam sercontrários à tamusni e, por sua vez, a tamusni sópodia se alinhar diretamente à verdade revelada.Nem por isso inexistiam, na prática, casos de con-corrência efetiva, embora não fosse desejada nem,muito menos, reivindicada. Parece-me que se ad-mitia o primado da verdade religiosa: o Corão é oCorão, ninguém pode contestar a palavra de Deus.A verdade do Corão é secularizada pela tamusni,ou seja, é prolongada pela tamusni na prática, narealidade, na vida cotidiana. A despeito disso, ain-da podia haver contradições entre a cultura religi-osa e a tamusni. Na maioria das vezes, essas con-tradições eram ignoradas. Os marabutos, únicosa ter instrução na lei corânica, viam-se obrigados,pela situação deles próprios, a certos compromis-sos. Aí eles cometiam transgressões, só podiamfalar, no que se refere ao Corão, o que era com-

9 Cf. Mammeri (1950) (N. T.).

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patível com as normas da sociedade, sem o queeles se condenavam a si próprios. Eles tinham um“truque”: diziam que o direito apoiava os costu-mes, o que, a meu ver, nem sempre é verdade.Quando os cabilas deserdaram as esposas, aten-taram contra a lei religiosa. Portanto, existiamcontradições efetivas. O amusnaw era quem asvivia mais intensamente, ficando mais sujeito atais contradições, pois estava em contato freqüentecom os marabutos, capazes de ver nos livros coi-sas a que ele próprio não podia ter acesso.

P. B. – A melhor prova disso é a massa detextos de poemas berberes que o senhor encon-trou com os marabutos.

M. M. – É. Provavelmente o letrado tinha essevalor puramente instrumental, como detentor deuma técnica de conservação. Mas o amusnaw sa-bia que, além disso, existia nos livros outra sabe-doria, que ele próprio não possuía. Os imusnawenfreqüentavam bastante os marabutos. Mas vivi-am, ao mesmo tempo, com todo mundo. Portan-to, estavam como que no ponto de intersecçãodas duas coisas. Assim como o marabuto, só quede outra maneira, pois o marabuto está no pontode intersecção de dois mundos, mas do lado da leireligiosa. Ao passo que o amusnaw está do ladoprofano. Antes de mais nada, ele é um represen-tante da taqbaylit elevada a seu grau superior, queconstitui a tamusni.

P. B. – O amusnaw é um especialista na elabo-ração dos valores próprios. É uma forma de peri-to na taqbaylit, no caráter cabila.

M. M. – O amusnaw é um perito no carátercabila em todos os aspectos: social, moral, psico-lógico. Já o marabuto é, antes de mais nada, ointérprete do Corão e dos comentários do Corão,do direito corânico. O marabuto é marabuto denascença; o amusnaw é amusnaw por seleção, éobrigado a assumir uma série de valores, de téc-nicas, para se tornar amusnaw. O marabuto nãotem escolha, é filho de seu pai, deve simplesmen-te representar o direito. Ele pode acumular as duasfunções: existem muitos marabutos que sãoimusnawen. É raro que o amusnaw tenha feito osestudos em árabe. E os estudos não eram feitosem árabe porque não é a mesma lógica.

XIV. A CENSURA DO DISCURSO DOMINAN-TE

Portanto há, com certeza, um problema nessecaso e diria que as conseqüências são mais nefas-

tas para a tamusni. Sem dúvida, a tamusni podebeneficiar-se de certas coisas que estão nos li-vros, coisas que ela toma de empréstimo, que se-culariza. Mas parece-me que, no plano mais ge-ral, a evolução que se realizou no caso da socie-dade grega jamais se produziria na sociedadecabila. Isso porque, quando a sociedade cabila ti-nha que dizer certas coisas, quando tinha que pas-sar para outro registro (por exemplo, o dacosmologia), ela se chocou com algo que já exis-tia e que, com base nesse fato, exercia um efeitode censura, impedindo os cabilas de tirarem asrespostas de suas próprias fontes, de sua própriatamusni. Uma das grandes diferenças entre as ci-vilizações grega e cabila consiste, sem dúvida, nofato de que a tamusni berbere se desenvolveu emuma circunstância desfavorável, pois se trata deuma cultura oprimida. O Islã goza de uma espéciede privilégio simbólico que o outro lhe reconhece.Pelo simples fato da existência dessa cultura do-minante, a tamusni encontra imediatamente seuslimites. Ibn Khaldun diz que os berberes recita-vam tantos poemas que, se tivessem que ser trans-critos, encheriam bibliotecas. Portanto, pode-seconcluir que houve um período de resplendor, emque a cultura oral era muito mais desenvolvida.Isso antes da invasão da Cabília pelos marabutos,a partir do séc. XVI, ou seja, por homens quetrazem uma civilização sagrada, internacional, ur-bana, escritural e ligada ao Estado.

P. B. – A existência de uma cultura erudita,letrada, significa que, em se tratando de certasformas de cultura, o lugar já está ocupado.

M. M. – Esse confronto entre uma cultura eru-dita e uma cultura popular é um fato muito antigona cultura berbere.

P. B. – Mas é todo o problema da culturaberbere10 ...

M. M. – É. Esse problema foi vivido sem tré-gua, particularmente no terreno do direito, por-que aí são evidentes a contradição e a concorrên-cia. Parece-me que, no texto de 1748 que deserdaas mulheres, existe um prefácio, talvez uma con-clusão, já não sei mais, dizendo que os marabutose os imusnawen, ao se reunirem e julgarem que asituação era essa e aquela, decidiram isso e aqui-lo... E Deus punirá qualquer um que contrarie a

10 Esse tema é desenvolvido por Bourdieu (1958, cap. 1 e4) (nota de Nice & Wacquant).

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decisão”... As pessoas não eram idiotas, sabiamque a decisão contrariava a lei religiosa e, no en-tanto, tomaram essa decisão anticlerical, se pos-so chamá-la assim, invocando não só a proteção,mas o auxílio de Deus. O texto diz isso com todasas letras.

XV. O DE FORA E O DE DENTRO

P. B. – Na experiência ordinária, o camponêstem uma relação muito ambígua com o marabuto,reconhecido e, ao mesmo tempo, rejeitado (estoupensando nos provérbios sobre os marabutos, que,como certos rios transbordando nos temporais,também aumentam nas situações de conflito). Seo marabuto não fosse essa espécie de poder trans-cendente e, ao mesmo tempo, exterior – em con-traste com uma expressão verdadeiramente pro-funda da cultura –, a tamusni não teria esse tipode franqueza que lhe é permitida como sabedorialaica, esotérica mas laica. Estou querendo dizerque, se a relação com o marabuto tivesse sidosimples, menos ambivalente, a tamusni não teriapodido se sustentar.

M. M. – Acho que sim. O marabuto não é umamusnaw, ele é parte exterior da sociedade.

P. B. – Os marabutos se casam entre si, nãovivem do trabalho de suas mãos. Não têm quepraticar os valores cabilas, eximem-se disso.

M. M. – O marabuto é de fora, o que permitesua rejeição. É essa própria exterioridade que otorna útil, que o permite servir de mediador.

P. B. – Em todo caso, ainda se faz necessárioquem é de dentro, quem pode reconciliar o grupoconsigo mesmo, e não só com outros grupos.

M. M. – E quem é de dentro é o amusnaw.

P. B. – É por isso, sem dúvida, que há situa-ções em que os imusnawen e os marabutos de-vem se reunir, como no caso que o senhor men-cionou a pouco, em que são obrigados a se asso-ciar de algum modo. Mas, na maior parte do tem-po, suas esferas de ação permaneciam indepen-dentes.

M. M. – O essencial é que há certa indepen-dência. Não se podia, é claro, evitar interferênci-as, que, de fato, eram muitas. Mas parece-me queos imusnawen e os marabutos trabalhavam, narealidade, em dois domínios diferentes. Requisi-tavam-se a eles coisas diferentes. Um amusnawpodia servir muito bem de mediador. Mas não se

incumbia dessa função por delegação, por esco-lha divina, como descendente do profeta, como éo caso do marabuto, mesmo que intelectualmentemedíocre. Ao contrário, exige-se do amusnaw umesforço próprio.

P. B. – O papel do amusnaw tem algo de pro-fético. É baseado na escolha das pessoas, ao pas-so que o marabuto não é escolhido.

M. M. – No interior do grupo religioso tam-bém podem existir personagens proféticos. Estoupensando, por exemplo, no Xeque Mohand, querompeu com o grande Xeque, de quem era o se-gundo, reprovando-lhe o fato de aplicar as regrasao pé da letra, de sacrificar-se a um meroritualismo, sem levar uma verdadeira vida espiri-tual11. Portanto, a oposição entre profeta e sacer-dote já existe no próprio grupo de marabutos. Nempor isso deixa de haver algo de profeta no amusnaw.Ele tem um estilo profético.

P. B. – O amusnaw é o homem das situaçõesde crise, das situações críticas, ele é capaz de dis-cursar e dizer o que deve ser dito quando todomundo fica em silêncio.

XVI. RENOVAR A TRADIÇÃO PARA CON-SERVÁ-LA

M. M. – O amusnaw tem a virtude da inven-ção, seja no momento de uma crise, seja em tem-pos de ordem. É quem pode dar um passo adian-te, para o lado, à direita ou à esquerda, fazer umavanço ou um desvio. Ele diz não apenas o que é,mas também o que inventa a partir da experiênciaou de sua própria reflexão. A tamusni não é umcorpo de conhecimentos à parte da vida, que se-ria transmitida “por prazer”, mas uma ciência prá-tica, uma “arte” que a prática revive sem parar, aque a existência lança desafios sem parar. É porisso que a herança só sobrevive mudando semparar, a transmissão remodela continuamente a he-rança, ao atualizá-la. O papel do amusnaw é tor-nar a tradição compreensível em vista da situaçãoatual, a única realmente vivida, e tornar compre-ensíveis as situações atuais em vista da tradição,transmitindo a tradição na práxis do grupo. Exis-tem as respostas ordinárias da rotina codificada,o breviário dos usos e costumes, dos valores ad-mitidos, que constitui uma espécie de saber iner-te. Acima disso existe o nível da invenção, que é o

11 Cf. Mammeri (1989) (nota de Nice & Wacquant).

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domínio do amusnaw, capaz não só de pôr emprática o código admitido, mas de adaptá-lo,modificá-lo, até mesmo revolucioná-lo (é o casodos dois Mohands), infringi-lo, romper com ele,essa ruptura permanecendo no espírito da tamusniancestral, pois trair o aparato aparente da tamusnié ser o mais profundamente fiel a ele. Isso nemsempre ocorre sem riscos ou mesmo sofrimento.Um conhecido provérbio diz: “A tamusni é angús-tia” (tamusni d acilif).

P. B. – Assim, a tamusni é a capacidade paradizer ao grupo o que ele é, segundo a tradição queele deu a si mesmo. E dizer mediante uma defini-ção por construção de conceito, que diz o que eleé e, ao mesmo tempo, o que há de ser para serverdadeiramente ele mesmo. E isso no calor dahora, de imediato, no instante mesmo em que issose impõe, depois de uma derrota ou antes de umabatalha, e a todo momento, o que significa que oamusnaw está sempre sendo posto à prova, estásempre na fissura. A tamusni também é, portanto,arte de improvisar em uma situação ou diante deum público. Ora, como se marcam, na própriapoesia, esse contato com o público, com suasreações, com sua aprovação? Não existem ocasi-ões em que tudo fica à mercê de uma palavra in-feliz, casos em que o poeta deve ter cuidado paradizer a palavra que é preciso, para dizer o que épreciso? Não existe também uma teatralização des-tinada a dar às palavras toda sua força, acentuan-do o caráter extraordinário do discurso e daqueleque o profere?

XVII. O UNIVERSAL NO PARTICULAR

M. M. – A relação com o público, no caso dopoeta, é imediata, sem intermediário. O públicoestá lá, o poeta também, em carne e osso, umdiante do outro. Portanto, existe produção imedi-ata e aceitação imediata. Parece-me que isso con-tribui para impedir uma criação pela criação, umabusca autônoma e puramente formal.

P. B. – Isso significa que as aparências quepodem sugerir uma busca formal, as obscurida-des e arcaísmos que evocam as formas de poesiamais elaboradas, são enganosas? Ler a poesiacabila assim seria tão falso como ler a poesia deMallarmé vendo apenas uma forma “primitiva” daexpressão poética12.

M. M. – Podemos voltar a um exemplo que jámencionei, aquele do poeta aprendiz que vai pro-curar o mestre para lhe pedir iniciação. O poemade seis versos que, de imediato, o mestre lhe diri-ge como resposta depende da ocasião puramentefortuita em que foi criado. O que é próprio dopoeta é dar uma resposta exemplar, ou seja, daruma resposta universal a propósito de um casoparticular, elevar um problema particular, oriundode uma situação particular, a um nível universal.Mas o fato de que essa resposta universal tenhasido produzida em relação a um acontecimentobastante preciso lhe confere justamente uma rea-lidade que a distingue de uma simples preocupa-ção intelectual, interna a um meio.

P. B. – O poeta é quem sabe universalizar oparticular e particularizar o universal. Sabe res-ponder a uma situação particular e a um públicoparticular, assegurando assim a eficácia simbóli-ca de sua mensagem. O senhor se referiu a poucoao conhecimento prévio que o poeta deve ter deseu público para que sua palavra “prenda”, paraque ela seja eficaz.

M. M. – A relação público-poeta é tal, que umaperformance poética pode ser verdadeiramenteuma espécie de dueto entre o poeta e seu público.Ao criar, o poeta não está sozinho. É motivado,parece-me, por seu público, por uma espécie deapelo de seu público, a que o poeta responde. Porexemplo: certo dia Yusef u Kaci, um poeta que jámencionei, vai até uma tribo e faz o elogio de suastrês vilas. A tribo era, de fato, composta por trêsvilas, mas havia recém-conquistado, na guerra,outras três. Ele vai terminando o poema e os ou-vintes percebem que a conclusão está próxima.Alguém sai do círculo em volta do poeta, chegamais perto e lhe diz: “Ótimo, Dadda Yusef, masparece que vais concluir. Presta atenção: nãoestamos mais sozinhos, há outras três vilas!”. Opoeta estava em um tapete, tinha nas mãos umtamborim triangular, em que dava uns poucos to-ques. Ele anda em volta do tapete, retoma o enca-deamento e, de improviso, faz o elogio das outrastrês vilas. Os ouvintes ficaram admirados. Nessecaso, pode-se dizer que a metade do poema de

12 Para uma análise do modo poético de leitura exigidopela tradição erudita da poesia ocidental quando se tenta

decifrar seus sentidos abstratos seguindo a autonomizaçãodo campo da produção cultural, cf. os textos de Bourdieusobre Baudelaire (BOURDIEU, 1995a), Apollinaire(BOURDIEU, 1995b) e Mallarmé (BOURDIEU, 1997)(nota de Nice & Wacquant).

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Yusef lhe foi ditada pela audiência. Em outra oca-sião, outro poeta vai a uma vila e, no momentoem que recita, percebe que os ouvintes estão dis-traídos, cochichando. Ele pára e recita um poemaad hoc, cuja conclusão virou provérbio: “canto eo rio leva embora” (kkatec iteddem wassif) (AaliAamruc, primeira metade do séc. XIX). A partirde um fato menor, o poeta extraiu, ali mesmo,algo universal.

XVIII. O ENIGMA DO MUNDO

P. B. – Mesmo quando não inventa completa-mente, como nesse caso que o senhor mencio-nou, o amusnaw faz sempre o trabalho necessáriode invenção para adaptar o poema à situação. Defato, sendo a criação a operacionalização únicados esquemas geradores tradicionais, portantocomuns, cada produção é tradicional (no nívelgerador) e, ao mesmo tempo, única (no nível daperformance). No limite, visto que não há texto,não há discurso fixo, estabelecido de uma vez portodas, existem tantas variantes quanto diferentessituações de produção, portanto de ajustes à situ-ação e ao público.

M. M. – No que se refere ao ajuste ao público,transcrevi um longo poema, que data do início daocupação francesa, por volta de 1856-1857, pou-co antes da introdução do francês na Cabília. Oscabilas tinham sofrido um primeiro ataque, masele não tinha sido bem planejado e acabou semum desfecho, perto de Drâa-el Mizan. Diante doscombatentes que acabavam de voltar, um poeta(aquele tido por mestre dos poetas, de que já lhefalei) improvisa um poema curto, que foi bemacolhido e, depois, desenvolvido por ele. O poetamencionava os nomes de tribos, vilas, homensque tinham se distinguido no combate. Isso erade interesse das tribos que, de fato, tinham parti-cipado da batalha. Mas o poeta ia se apresentarem vários lugares. E eu encontrei três versões domesmo poema, em que os nomes das tribos, vilasou personagens tinham mudado.

P. B. – O senhor recolheu-os oralmente?

M. M. – Recolhi um por escrito e dois oral-mente. O que recolhi por escrito estava em umcaderno, transcrito por um professor que ouvirauma declamação. As adaptações tinham interesseno detalhe. Por exemplo, uma vila não quis parti-cipar dessa guerra por já considerá-la perdida. Eradifícil deixar que se modificasse um fato tão par-ticular, mas o poeta se virou para encontrar... as

acomodações...

P. B. – Mas quem inventava essas variantesera o próprio poeta ou as pessoas fizeram essetrabalho de apropriação?

M. M. – Eu não saberia dizer. Acho que foi eleou, talvez, as duas coisas ao mesmo tempo. Opoeta deve ter feito, pelo menos, uma das modifi-cações. Sei que uma das variantes foi recolhidade sua própria boca. Outra pode ser uma recria-ção das pessoas do local, que julgaram belos aque-les versos e os adaptaram para que pudessemaplicá-los a si mesmas.

P. B. – Mas essas adaptações e acomodaçõessão favorecidas pela polissemia do poema, de modoque o mesmo discurso, com duplo (ou triplo) sen-tido, pode ser entendido de diferentes maneirasde acordo com a audiência. Já vimos um exemplodisso, em que os dois imusnawen falavam comoque passando por cima da audiência.

M. M. – Uma das designações para a poesiano dialeto cabila é asefru (plural: isefra), que pro-vém de fru, elucidar, esclarecer uma coisa obs-cura (em outros dialetos berberes é um pouco di-ferente). Parece-me uma acepção antiga. Em la-tim, poema é carmen, que significava, se não meengano, o sortilégio, a fórmula eficaz, que abreportas. É o mesmo sentido de asefru e, talvez,essa concordância não seja puramente acidentalnesses idiomas mediterrânicos, para os quais overbo é, de início, um instrumento de elucidação,que torna as coisas permeáveis à nossa razão.

P. B. – Fru também significa selecionar o grão?Seria o poeta, então, aquele que sabe distinguir,tornar distinto, quem, por seu discernimento, operauma diacrisis, separa coisas ordinariamente con-fundidas?

M. M. – O poeta é quem elucida coisas obs-curas. Um poema de Yusef u Kaci começa assim:

Bismilleh annebdau lhasuna lêadeq t,hessiskkateclmaani s-errzunsakwayec lgisYusf-u-Qasi

Em nome de Deus, hei de começarAvisados, ouçam-meCanto parábolas com artedesperto o povo

Quer dizer: dou exemplos e os explico, faço

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um discurso que contém uma lição e desperto opovo. Talvez se pudesse dizer: mobilizo o povo(djis é o exército, os homens que combatem). Opoeta é quem mobiliza o povo, é quem esclarece.O mais prestigioso dos poetas dizia:

Mouloud Mammeria foi professor de língua berbere e de Antropologia Norte-Africana na Universidadede Argel, onde dirigiu o Centro de Pesquisas Antropológicas, Pré-Históricas e Etnográficas de 1969 a1982. Ele também foi o fundador do Centre d’études et de recherches amazigh (CERAM) e de suarevista, Awal, na Maison des sciences de l’homme, em Paris, e Presidente da União de EscritoresArgelinos. Foi o autor de diversos livros sobre a língua e sobre gramática, poesia, etnografia e literaturaberberes e um dos líderes mais destacadas da resistência cabila à “arabização” forçada de seu povo peloEstado argelino até sua morte, em 1989. Entre seus maiores escritos estão La Colline oubliée (1952),Les Isefra. Poèmes de Si Mohand-ou-Mohand (1969) e Poèmes kabyles anciens. Textes berbères etfrançais (2001).

Pierre Bourdieu ocupou a cadeira de Sociologia no Collège de France, onde dirigiu também o Centro deSociologia Européia e editou a revista Actes de la recherche en sciences sociales até sua morte em 2002.Ele é autor de vários livros clássicos em Sociologia e Antropologia, incluindo La Reproduction: élémentsd’une théorie du système d’enseignement (com Jean-Claude Passeron; 1970), Esquisse d’une theorie dela pratique (1972), La Distinction: critique sociale du jugement (1979), Homo Academicus (1984) eLes règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (1992). Dentre seus estudos etnográficosestão: Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (com Adbelmalek Sayad,1964), Algérie 60: structures économiques et structures temporelles (1977), La misère du monde (1993)e Le Bal des célibataires: crise de la societé em Béarn (2002).

Ad awen-d berrzec lemuram-midrimen di sselfai

“Vou tornar as coisas tão claras a vocêQual moedas em uma bolsa”.

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